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E N T R E V I S T A

Antonio Gomes Penna

A
ntonio Gomes Penna nasceu em 13 de maio de 1917, no Rio de
Janeiro. Sua contribuição pioneira à Psicologia brasileira é atesta-
da por vários historiadores. Parte desta contribuição está expressa
nos 14 livros que publicou. O Prof. Penna realizou duas docências-livres,
em Psicologia e em Psicologia Educacional. Exerceu várias funções aca-
dêmicas, entre elas, a chefia do Centro de Pós-graduação em Psicologia
do ISOP, da Fundação Getúlio Vargas. Atualmente é professor emérito da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Antonio Gomes Penna concedeu
esta entrevista a Elza Dutra, psicóloga e professora da UFRN, no Rio de
Janeiro, em outubro de 1996.

(EP): Inicialmente eu gosta- nomes. Depois fui fazer Fi-


ria que o senhor falasse um losofia, que eu desejava mui-
pouco sobre a sua formação. to, onde se podia estudar Psi-
cologia. O meu encanto era
Antonio Gomes Penna Filosofia e Psicologia. Lá eu
(AGP): A minha formação encontrei grandes professo-
foi um pouco complicada. Eu res; foi lá que eu me realizei
sou filho de imigrante; meu mesmo. Quando eu terminei,
pai era industrial, queria que fui convidado para ser profes-
eu me dedicasse a vida eco- sor de História da Filosofia e
nômica e o sucedesse na fá- professor da Psicologia. Eu
brica. Eu não tinha interesse preferi a Psicologia. A minha
mas, para atender a ele, fiz o formação então foi essa, Eco-
curso de Economia que, na- nomia, Direito e Filosofia.
quela época, estava se inici- Depois dos três cursos de gra-
ando. Mas depois me entu- duação, me dediquei inteira-
siasmei por Direito. A facul- mente à Psicologia. Naquela
dade de Direito tinha professo- época não havia psicólogos,
res muito badalados, grandes apenas profissionais que se

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especializavam em Psicolo- duas docências livres. A uma
gia. Ou eram psiquiatras, es- semana do concurso para efe-
tudavam psicopatologia, liam tivação, o reitor recebeu um
alguma coisa sobre anormal, documento dizendo que eu
ou então os que faziam curso não poderia ser catedrático. E
de Pedagogia, estudavam um suspenderam o concurso. Pa-
pouco de Psicologia Educa- ra acabar com os confrontos,
cional e uma introdução de pedi aposentadoria especial;
Psicologia Geral. Mas já ha- para não ter mais contato com
via o curso de Psicologia no a Universidade do Estado. E
departamento de Filosofia, fiquei na universidade fede-
com três anos de duração; aí ral, onde eu já tinha feito o
sim, era um curso mais rico, concurso, felizmente. Há mui-
da Universidade do Brasil. tos anos não havia concurso
na Faculdade Nacional de Fi-
(EP): O Prof. Nilton Cam- losofia mas, em 1965, por
pos era o responsável por uma exigência do Castelo
este curso? Branco, abriram o concurso.
E eu fui o primeiro a fazer ins-
(AGP): Era. Mas o Nilton crição. Quando o diretor per-
Campos sempre me encarre- guntou se eu queria concor-
gava do primeiro ano e eu rer, eu disse: “amanhã”; esta-
acabava dando os três anos de va louco para fazer o concur-
curso. Eu fui aluno do Nilton so. Mas tive que esperar três
Campos no curso de Direito meses. Não tive problemas,
e Economia, em 1944. Duran- fui aprovado. Mas minha car-
te 15 anos, lecionei História reira foi muito dificultada,
da Psicologia. Ao mesmo porque eu nunca consegui ser
tempo, já era assistente da fa- diretor do Instituto de Psico-
culdade do Estado e na Uni- logia. Sempre que meu nome
versidade do Brasil. Na uni- ia em primeiro lugar nas lis-
versidade federal, eu comecei tas, era vetado. Até que afi-
em 1948, como professor de nal, em 1979, eu consegui que
Psicologia. Na Universidade meu nome fosse aprovado,
do Estado, comecei como in- para surpresa minha, pois já
terino, em 1950. E fiquei in- poderia estar aposentado. Na-
terino até 1970. Fiz duas do- quela época, começava a ha-
cências livres e até hoje eu ver uma certa abertura e eu
sou o único livre docente com pude ser chefe de departa-

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mento de Psicologia na facul- Dentro, a Colônia dos Psico-
dade. O curso foi fundado na patas, como o Engenho de
Faculdade Nacional de Filo- Dentro era conhecido. Na
sofia e fui chefe de departa- época em que ele trabalhou lá,
mento de 64 até 67, quando a o Engenho era dirigido pelo
faculdade se extinguiu. Já no grande higienista Gustavo
Instituto de Psicologia, do Riedel. E foi Gustavo Riedel
qual deveria ser o diretor, mas que pensou em montar um
não consegui por razões po- laboratório de pesquisas psi-
líticas, só mesmo em 79. Em cológicas para ajudar aqueles
1949, eu publiquei uma psiquiatras que estivessem
monografia sobre Behavio- interessados em fazer pesqui-
rismo, em homenagem ao sas sobre os doentes mentais
Nilton Campos, que havia da colônia. Ele pensou em
feito o concurso em 1948. criar esse laboratório e, por
Depois, eu criei, no Instituto sorte, encontrou o Waclav
de Psicologia, o Boletim do Radecki, que havia sido as-
Instituto no qual escrevi mui- sistente do Claparède.
tos artigos. O Instituto de Psi- Radecki era professor na
cologia foi o herdeiro do La- Universidade Livre de Varsó-
boratório de Psicologia da via e chefe do Laboratório
Colônia de Engenho de Den- Experimental de Cracóvia.
tro. Na verdade, ele foi cria- Ele veio para o Brasil como
do por volta de 1932. Em imigrante e foi para o Paraná,
1937, ele já fazia parte do Mi- onde há uma colônia polone-
nistério da Saúde; só em sa muito grande. Ele era gran-
1939 é que ele foi incor- de violoncelista e até chegou
porado à Universidade do a montar um quarteto de cor-
Brasil. das no Paraná. Uma vez veio
ao Rio, entrou no sebo e viu
(EP): Quem trabalhava na um livro de Psicologia de um
Colônia, na época? professor do Instituto de Edu-
cação. Achou interessantíssi-
(AGP): O Nilton Campos, mo. Então ele procurou con-
que era psiquiatra, foi discí- tato com esse professor, que
pulo do Waclav Radecki. era o Lourenço Filho. E o
Logo que terminou o curso, Lourenço terminou indican-
ele foi para o Engenho de do o Waclav Radecki para a

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chefia do laboratório. Ele foi zir a cadeira de Psicologia nos
contratado para lecionar e fa- cursos de formação do Esta-
zer pesquisas. Depois disso, do Maior. Eles convidaram o
foi à Europa comprar equipa- Nilton Campos, que era o as-
mentos de pesquisa e conse- sistente principal do Waclav
guir verbas para a fundação, Radecki. O Nilton Campos
o que ocorreu em 1925. Era era muito doente e, na última
um homem muito habilidoso; hora, não pôde lecionar. Foi
fez muitos aparelhos de ma- aí que me chamaram. E, de
deira, servindo à pesquisa. repente, fui jogado para dar o
Foi ele, inclusive, quem rea- curso. Acontece que gosta-
lizou a primeira grande pre- ram muito e, de 1953 até
paração dos psicólogos que 1968, eu dei cursos. Depois
trabalharam na primeira sele- disso, durante anos, utiliza-
ção de pilotos de aviação. A ram apenas o meu manual de
primeira aplicação de Psico- Psicologia Aplicada ao Tra-
logia nas Forças Armadas. balho. Na verdade, era quase
Daí se iniciou a relação entre um curso de Psicologia Soci-
o antigo Laboratório e o Ins- al, que incluía temas como li-
tituto de Psicologia, no qual derança, disciplina, propa-
o Laboratório se converteu. ganda e também seleção. En-
tão continuou a relação entre
(EP): Como Radecki deu se- o Instituto de Psicologia e a
qüência a esse trabalho? Aeronáutica.

(AGP): Ele deu um curso so- (EP): E com o Exército, não


bre Psicologia Geral para havia nenhum contato?
médicos, militares, com o
objetivo de prepará-los para (AGP): Nessa época, ainda
realizar, sob a direção dele, as não. O contato ocorreu quan-
provas na seleção de aviado- do eu fui convidado para ser
res. Era um curso interessan- um dos fundadores do CEPE
tíssimo, com capítulos magis- - Centro de Estudos do Pes-
trais. Mas o fato é que se es- soal do Exército, onde eu
tabeleceu uma ligação entre também dei aulas. Mas de-
a Aeronáutica e o Instituto de pois começaram a estória que
Psicologia. Em 1953, eles eu era contra os militares, de
quiseram realmente introdu- que era um subversivo.

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(EP): O senhor teve muitos uma solução política; para
problemas com os militares? não desmoralizar o professor.
Eu sabia que se tivesse qual-
(AGP): A chamada Revolu- quer outra atitude, a punição
ção quase acabou comigo. era certa em cima deles. Na
Sofri várias punições na uni- verdade, quem mandava era
versidade porque eu não pu- o agente de segurança. Mas,
nia ninguém O Passarinho felizmente, depois de muitos
mandou abrir um processo meses, até curso de Fenome-
com três membros, presidido nologia ele fez. Fui acusado
por um embaixador. Um de- de ser fenomenologista, por-
les estava querendo que eu que a Fenomenologia era
fosse punido mesmo, mas os considerada um disfarce do
outros dois sempre estavam marxismo. O gestaltismo
a meu favor. Por sorte, eu ga- também era considerado um
nhei de dois a um. Na verda- disfarce do marxismo. Então
de, não encontraram nada que o agente tomou aulas para
me incriminasse. Achavam saber o que era isso. Bem,
que eu era muito liberal à sub- depois que terminou o inqué-
versão no Instituto de Psico- rito, não ficou provada nem
logia. uma palavra contra mim.
Mas, de qualquer modo, eu
(EP): Exigiam que o senhor atravessei uma fase difícil,
punisse os estudantes? apesar de ter sido durante 17
anos professor da Escola da
(AGP): É. Na época, eu co- Aeronáutica, onde introduzi
ordenava o curso de Psicolo- um curso de Psicologia Soci-
gia e não poderia punir al- al, de 1953 até 1970. Fui até
guém que pedia melhores au- condecorado pelo presidente
las, porque eu concordava Castelo, em 1964. Depois
com os alunos. Quem pode começaram rumores de que
punir um aluno que se recusa eu assinara protestos contra as
a assistir aulas de baixa qua- violências cometidas pelos
lidade? Quem pode punir um policiais militares, pelas For-
aluno que está apenas solici- ças Armadas. Isso quando in-
tando o que é uma obrigação vadiram o Campus da Praia
da universidade? Então, eu Vermelha, espancaram e
sempre pedia tempo para dar prenderam estudantes. Eu, de

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fato, assinei e depois presidi Neste ano, o Nilton, que já
duas reuniões de protesto. estava muito doente, faleceu,
Naquela época, quem protes- e eu assumi interinamente a
tasse ou quem não rezasse cátedra. Um dia, fui procura-
pela cartilha deles, era puni- do por um aluno do Rio Gran-
do. Apesar disso, tive meu li- de do Norte, o presidente do
vro - Manual de Psicologia diretório dos estudantes. Não
Aplicada adotado, adotado me lembro do nome dele, só
até 1970. Depois disso, nun- lembro que depois ele se tor-
ca mais fui convidado para nou deputado federal.
nada. Nem para entrar na es-
cola. Apesar de ter grandes (EP): João Faustino. Hoje é
amigos militares, de nada adi- suplente de deputado federal
antava. Em 1964, como eu e já foi secretário de Educa-
disse, fundei o curso de Psi- ção e diretor da Escola Téc-
cologia na universidade. Em nica Federal.
64 já estava funcionando o
curso na Faculdade Nacional (AGP): Pois é, ele me convi-
de Filosofia, não no Instituto dou para fazer umas confe-
de Psicologia. O Instituto de rências lá em Natal. Em 15
Psicologia era um órgão com- dias recebi passagem e, eu
plementar, de apoio às cadei- que nunca tinha voado, fiquei
ras de Psicologia Geral e Psi- terrivelmente amedrontado
cologia Educacional, dadas com a viagem. Naquela épo-
nos cursos de Filosofia e de ca era muito tempo de vôo,
Pedagogia, respectivamente. lembro até que o avião era da
A cadeira de Psicologia Ge- Panair. Cheguei em Natal de
ral era dada pelo Nilton Cam- noite e foi uma surpresa , não
pos e a cadeira de Psicologia tinha nenhum hotel, em 1963.
Educacional pelo Lourenço Foi a primeira viagem que eu
Filho. fiz para dar um curso. Eu já
havia viajado para aprovar
(EP): Foi nessa época que o cursos de Psicologia, pelo
senhor esteve no Rio Gran- Conselho Federal, mas esta
de do Norte? foi a única vez que recebi um
convite de um diretório aca-
(AGP): Foi. Em 1963, eu era dêmico. Fiquei encantado
assistente do Nilton Campos. com Natal, com a atividade

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intensa no plano da Educa- do na Psicologia. Eu tenho o
ção, as escolas “De-pé-no- hábito de fazer roteiros de
chão-também-se-aprende-a- aula, dava os cursos com eles;
ler”, do Djalma Maranhão e depois, transformar em livro
do Paulo Freire. Lembro da era fácil. Comunicação e Lin-
enorme quantidade de profes- guagem foi o primeiro curso
sores de São Paulo que esta- de Psicolingüística dado no
vam visitando o interior do Brasil, em 1966. E o livro saiu
Estado. Eu fiquei encantado em 70, com o prefácio do pro-
com Djalma Maranhão, o tra- fessor Lourenço Filho. De-
balho que ele estava fazendo; pois eu publiquei 53 verbetes
depois eu soube que ele foi na Enciclopédia Mirador In-
violentamente varrido pela ternacional, com mais de 500
Revolução. Fiquei encantado laudas. Publiquei ainda Lin-
com o que assisti naquele mo- guagem, Personalidade e Te-
mento, com as aulas à noite, rapia e Introdução à Histó-
as barracas de palha, todo ria da Psicologia Contempo-
mundo tendo aula, uma rânea. Este último teve um
dedicação. Eu achei que o Rio impacto muito grande. Certa
Grande do Norte era todo uma ocasião, encontrei em Ribei-
lição de como se deveria fa- rão Preto, José Aparecido,
zer Educação. E pensei, se is- que hoje é um grande pesqui-
so estivesse acontecendo em sador em Psicologia da Per-
todo o país, como seria mui- cepção, especialmente em
to importante para o Brasil. Psicofísica. Ele me mostrou
um recorte que havia retira-
(EP): O senhor tem muitas do de uma revista americana
publicações. O senhor utili- com um vasto elogio à minha
za um método para sistema- História da Psicologia. Curi-
tizar os conteúdos? oso é que foi feito por um
peruano que estudava na Ale-
(AGP): Desde cedo comecei manha, com o maior histori-
a publicar. Primeiro publiquei ador da Psicologia da Alema-
Psicologia da Percepção e nha. Ele até ficou surpreso
Aprendizagem. Percepção e porque, conforme registrou,
Realidade, foi o segundo li- era o primeiro livro de Histó-
vro. Na verdade, foram fru- ria da Psicologia com um ca-
tos dos cursos que eu fui dan- pítulo sobre Fenomenologia.

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Estava estarrecido porque ra ou na Itália. Depois, recebi
imaginava que só na Alema- muita correspondência me
nha dessem importância à Fe- perguntando sobre as obras de
nomenologia. Por causa dis- Bergson. Escrevi ainda Intro-
so, recebi uma carta de um dução da Psicologia Contem-
grande historiador americano, porânea, Motivação e Apren-
pedindo que eu remetesse um dizagem e História das Idéi-
exemplar. Ele ficou entusias- as Psicológicas. Esse último
mado e me convidou para par- foi um livro a pedido do
ticipar de um congresso que Zahar. Ele havia publicado
estava preparando para ser re- um outro livro (A História da
alizado em 1967, na Alema- Psicologia) e, posteriormen-
nha. Lá, havia um instituto te, descobriu que os autores
para o estudo da moderna haviam copiado o livro de
História da Psicologia, com Max Wertheimer. Ele ficou
um grande simpósio em ho- muito chateado e foi obriga-
menagem a Fechner, porque do a retirar o livro de circula-
exatamente se deu na época ção. Então, me pediram que
do centenário da morte dele. eu escrevesse. E eu escrevi ra-
Ele queria que eu fizesse uma pidamente, estava com tudo
apresentação, mas eu estudei na cabeça, era ir para a má-
muito Fechner, nos cursos de quina e bater. Na verdade, era
Psicologia e Filosofia, e nas exatamente o curso que eu,
aulas de Psicologia, em fun- durante 15 anos, dei na Fa-
ção das críticas que foram fei- culdade Nacional de Filoso-
tas por Bergson. Então, ele fia, apenas com uma introdu-
sugeriu que eu escrevesse so- ção da História da Ciência,
bre isso. Eu acatei; elaborei que em geral pouca gente es-
um trabalho sobre Bergson e as tuda. Um pouco de história da
suas críticas a Fechner. Foi uma ciência é absolutamente neces-
surpresa, descobri que entre os sário. Depois, escrevi sobre 4
presentes, ninguém conhecia ou 5 processos cognitivos, um
Bergson. Descobri também resumo sobre Percepção, Lin-
que, em geral, os alemães não guagem, Motivação e Aten-
estão muito atualizados com ção, e fiz um estudo sobre in-
o que se faz na França. Eles trodução à Psicologia
dão muito mais importância Cognitiva, em 1984. Em
ao que se produz na Inglater- 1987, publiquei Cognitivis-

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mo, Consciência e Compor- 1992 para uma jornada sobre
tamento Político. Em 1988, Ética para Juízes. Queriam
História e Psicologia. Neste que abrisse a jornada e eu fiz
livro, faço referência à impor- a conferência inicial. Falei so-
tância do tempo em Psicolo- bre o conceito de Ética, mos-
gia, o longo tempo e o tempo trando a impressão que eu ti-
breve em Psicologia. Falo nha de que, no exercício da
também de diferentes temas. magistratura, o indivíduo que
Não sei se é nesse livro que tem em suas mãos o destino
tenho um trabalho sobre Psi- de um outro, em termos de
cologia Existencial, as bases condená-lo ou absolvê-lo,
do pensamento existencial, deve viver um estado de an-
fundamentalmente baseado gústia muito grande. E quem
nas idéias de Jean Wahl, o não vive esta angústia, não
grande nome na divulgação do tem condições de ser juiz. A
pensamento existencial na vivência, a experiência da an-
França, o grande historiador gústia, tem de ser uma con-
da Psicologia Existencial. Em dição fundamental para todo
1990, publiquei Filosofia da aquele que tem nas mãos o
Mente; em 1992, História da destino de um ser humano.
Psicologia no Rio de Janeiro. Nesta conferência, estava pre-
Depois escrevi Freud, as Ci- sente um professor de São
ências Humanas e a Filoso- Paulo, o diretor da escola de
fia. E, ultimamente, Introdu- magistratura paulista, e ele
ção à Psicologia Política. Ao pediu para editar um livro,
todo, são 14 livros publica- que saiu em São Paulo pela
dos, além da monografia so- Revista dos Tribunais, com o
bre Behaviorismo e do manu- título de Ética através dos
al de Psicologia aplicada às tempos.
Forças Armadas. E, no mo-
mento, eu estou preparando (EP): Fale-nos um pouco so-
dois livros: Psicologia da bre seu interesse em Filoso-
Religião e Filosofia Moral. fia da Religião?
Isso porque recentemente fui
convidado para a aula inau- (AGP): Meu interesse por
gural na Escola da Magis- essa área é antigo. Fui discí-
tratura do Rio de Janeiro. Eu pulo do homem que, a meu
já havia sido convidado em ver, foi a maior cabeça filo-

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sófica que nós tivemos: padre sobre religião e moral: Les
Penido. Muita gente pensa deux sources de la morale et
que falar sobre Filosofia da de la réligion. Nesse livro, ele
Religião é fazer apologia da fecha praticamente sua obra.
religião. Não é. Recentemen- Ele foi muito coerente, e
te, fui à Inglaterra e li um li- grande parte desta obra foi
vro sobre Filosofia da Reli- dedicada não à moral, mas à
gião, de um professor ameri- religião. Inclusive, um belo
cano. Esse livro me causou capítulo sobre misticismo.
um impacto muito grande. Ele tinha um grande entusi-
Um livro absolutamente cé- asmo pela experiência místi-
tico. É uma crítica no sentido ca.
kantiano, uma crítica aos fun-
damentos da religiosidade, da (EP): O Professor Penido
experiência religiosa, do mis- aceitava o misticismo?
ticismo.
(AGP): O Penido criticava
(EP): O senhor estudou com muito os críticos do misticis-
o padre Penido? mo, inclusive Pierre Janet,
que considerava os místicos
(AGP): Ele foi meu profes- psicastênicos. E dele ouvi o
sor de Filosofia. Ele era bra- argumento que mais me im-
sileiro, mas quando estava es- pressionou: quando um atle-
tudando em Friburgo, na ta se dispõe a marcar um re-
Suíça, foi contratado pela Es- corde olímpico, almeja a me-
cola Nacional de Filosofia do dalha de ouro, é submetido a
Rio para ensinar Filosofia e um treinamento exaustivo,
acabou ensinando Psicologia tem um objetivo, uma moti-
Religiosa. Penido lembrava vação para o seu desempe-
muito o papa Pio XXII: ma- nho. Isso é dignificante, o ser
gro, seco, quase não sorria, humano a descobrir os seus
muito fechado. Um professor limites. Mas se alguém faz
fantástico e brilhantíssimo. E tudo isso com o objetivo de
ele era encantado por se aperfeiçoar moralmente,
Bergson, que foi o filósofo deve ser um doente mental.
que eu mais estudei na facul- Essa era a tese do Pierre Janet.
dade. Em 1932, Bergson es- Eu sempre me interessei por
creveu um belíssimo livro esse tema por causa do

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Penido. O Penido escreveu nou-se professor na Univer-
uma obra maravilhosa, em sidade de Oxford. Também
francês: La conscience lecionou na Universidade de
religieuse. Considero a mais Yale, em Chicago. Ele tem
brilhante da Psicologia na uma variedade imensa de
área da religião, embora nun- obras. Uma delas sobre Filo-
ca tenha sido traduzida para sofia da Religião, dividida em
o português. Ele deu um cur- três capítulos: o Deus da
so maravilhoso na Suíça, in- Odisséia de Leibniz, o Deus
clusive, eu tenho me aprovei- dos Racionalistas de Descar-
tado muito quando falo nes- tes e o Deus dos Místicos.
se assunto. Neste livro, com 800 páginas,
ele estuda estas três concep-
(EP): Em síntese, o que foi ções de Deus. Ele fala sobre
esse curso? os místicos do século XVIII,
que estão convencidos da
(AGP): Penido divide o es- possibilidade de contato dire-
tudo da experiência religiosa to com Deus; dispensam a
em três grandes etapas: des- igreja, a hierarquia eclesiás-
de o momento em que o indi- tica, convivem com Deus,
víduo se converte, passando sem necessidade dos padres,
pelo momento em que é sub- bispos. Por isso, são cristãos
metido a uma série de práti- sem igreja. Eles eram muito
cas ascéticas para aperfeiço- freqüentes no século XVII,
ar-se moralmente e, final- quando houve a grande Re-
mente, o momento em que forma de Calvino e Lutero.
chega ao misticismo, que é a Eu me lembro da análise fei-
experiência religiosa sem ta, quando li a peça de
igreja. Há um trabalho do Bernard Shaw sobre Santa
maior pensador polonês vivo Joana d’Arc, mostrando que
- hoje com 70 anos, chamado ela não foi queimada viva por
Kolakowski. Ele foi o maior motivos religiosos, mas mo-
expositor do marxismo. Ele tivos políticos. No momento
foi membro do partido comu- em que ela dispensava a Igre-
nista na Polônia mas rompeu ja, estava ameaçando a Igre-
com o partido, foi expulso e ja, e ao antecipar-se à Refor-
teve de sair da Polônia. En- ma se antecipava também aos
tão, foi para a Inglaterra, tor- místicos, que pretendiam ser

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cristãos sim, mas sem igreja. (EP): Então o senhor ques-
Mas, ao mesmo tempo, esse tiona essas terminologias,
contato direto com Deus, com Psicologia Fenomenológica
o poder máximo, implicava Existencial, Psicologia Hu-
uma crítica terrível ao Feuda- manista Existencial?
lismo. Então, as razões polí-
ticas fizeram com que ela fos- (AGP): Apesar de se falar
se queimada viva. muito freqüentemente em
Psicologia Fenomenológica e
(EP): Então seu tema atual Existencial, eu sempre fui
é Filosofia e Religião? contra isso. Uma coisa é a
Psicologia, a Fenomenologia
(AGP): É, mas obviamente e o método fenomenológico
não é só isso. Tenho grande in- e outra coisa é a Filosofia
teresse também em História da Existencial. Tem-se de fazer
Filosofia, Ética e Política. In- logo uma distinção que é fun-
clusive, recentemente, proferi damental: de um lado a Filo-
conferência sobre a História da sofia Existencial e, de outro,
Filosofia no Rio de Janeiro. o Existencialismo. A diferen-
ça está em que, quando se fala
(EP): O senhor tem também em Existencialismo, se está
um interesse pela Fenome- pensando em uma corrente
nologia. que trabalhou praticamente
com a natureza humana; é
(AGP): Eu tenho uma gran- uma antropologia. Por exem-
de base em Fenomenologia. plo o existencialismo de
Enquanto aluno na faculdade, Sartre, Jaspers, Marcel, que
trabalhei muito, dei aulas. Fui são centrados no estudo do
um bom especialista em Homem, na existência huma-
Merleau-Ponty, que é uma na, no problema da liberda-
das figuras mais importantes de, da escolha, etc. A Filoso-
da Fenomenologia. Ele vin- fia Existencial é fundamen-
culou a Fenomenologia à Fi- talmente Heiddeger e aqueles
losofia Existencial, embora que o seguiram. O que carac-
sejam coisas que a gente te- teriza a Filosofia Existencial
nha de separar sempre. é o fato de que ela se utiliza
da experiência humana, mas
o objetivo dela não é estudar

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o ser humano; é um objetivo nológico, o método dele foi
ontológico (estudar o ser), e progressivamente se afastan-
não antropológico (estudar o do, e depois, não tinha mais
homem). Mas, como eu que- nada a ver com o de Husserl.
ro alcançar o ser e o único ser E ele, inclusive, critica mui-
que pode dar um depoimento to aquela preocupação exces-
é o ser humano, então se co- siva, que deixava os alunos
meça pela Antropologia. Mas entediados de tanto que
o objetivo não é o ser huma- Husserl falava em redução.
no. O objetivo é discutir o
problema do ser, da natureza (EP): Então são duas cor-
do ser e dos entes. Por outro rentes?
lado, uma terceira caracterís-
tica importante é que a Filo- (AGP): Sim. Há a Psicologia
sofia Existencial nunca usou Existencial e a Psicologia
o método fenomenológico Fenomenológica. Nos cursos
como Husserl o concebeu, e de Merleau-Ponty, a gente vê
nem poderia usá-lo exata- que o trabalho foi muito com
mente. o conceito de existência mes-
mo, até no sentido da tradi-
(EP): Por que? ção de Kierkegaard. O pri-
meiro nome é mesmo
(AGP): Porque o que carac- Kierkegaard e nós temos
teriza o método fenomenoló- mesmo que estudá-lo porque
gico em Husserl é o descar- há pelo menos 16 teses fun-
tamento total dos aspectos damentais para caracterizar a
existenciais para se concen- sua contribuição. Uma delas
trar nos aspectos essenciais, é que enquanto em todos os
na essência. Ele está interes- animais a espécie é mais im-
sado na essência do ser. Isso portante que o indivíduo, na
faz com que, quando se fala espécie humana, o indivíduo
em método fenomenológico, é mais importante que a es-
se pense principalmente no pécie. É a exaltação do indi-
método tal como Husserl o víduo, e essa exaltação é re-
empregou, com aquelas redu- almente que cada um de nós
ções contínuas. Agora, no é único, não tem outro igual.
caso de Heiddeger, quando E a nossa individualidade é
ele fala em método fenome- tão importante que, como diz

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 121


um grande nefrologista fran- lógica, quando se fala em
cês, você transplanta um rim gestaltismo, uma concepção
e o rim é rejeitado; é como se realmente fenomenológica,
você dissesse: “ou a minha não existencial. Então acho
individualidade é preservada uma estupidez separar a Psi-
ou eu prefiro a morte”. Isso é canálise da Psicologia. O que
muito bonito, porque o sujei- eu discuto é a impossibilida-
to rejeita, e só podemos im- de de unificação da Psicolo-
pedir a rejeição, se enfraque- gia.
cemos o sistema de defesa do
indivíduo, o sistema imuno- (EP): E quanto as críticas ao
lógico. Aí o sujeito aceita gestaltismo?
qualquer coisa, mas perde a
individualidade. (AGP): A preocupação dos
gestaltistas foi sempre em de-
(EP): No seu texto “Repen- tectar a essência da percep-
sando a Psicologia”, o se- ção. Eles fizeram as práticas
nhor coloca a Psicanálise no da redução; eles procederam
âmbito da Psicologia, con- exemplarmente porque quan-
trariando as idéias de mui- do Wertheimer estudou a per-
tos psicanalistas. cepção, não estava preocupa-
do com as influências emo-
(AGP): Neste trabalho, eu cionais, influências derivadas
falo da necessidade de acabar da personalidade, nada disso.
com esta estória de que a Psi- Eles deixaram tudo isso de
canálise não tem nada a ver lado. E a crítica de que eles
com a Psicologia. É preciso fizeram uma Psicologia sem
salientar que a Psicologia não sujeito, feita pela New Look
tem unidade. O que caracte- in Perception, por Postman e
riza a Psicologia é o fato dela por todos que integraram esse
mobilizar muitas metodolo- movimento, foram injustas.
gias: quando se fala em Psi- Portanto, não é verdade que
canálise, mobiliza-se uma eles fizeram uma Psicologia
metodologia hermenêutica, sem sujeito. Eles deram mui-
quando se fala em Psicologia ta importância ao fator
Experimental, mobiliza-se “setting”, ao fator atitude do
uma metodologia positiva; sujeito. Agora, o que eles dei-
uma metodologia fenomeno- xaram de lado foi o seguinte:

122 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134


não interessa estudar a influ- cientificidade da Psicologia,
ência dos fatores emocionais mas ele dizia que talvez a Psi-
- sem dúvida eles existem - cologia pudesse ser fundada
mas essa influência não é com base nas idéias da
substantiva; ela é puramente Galton: a Frenologia. Não
adjetiva. Se eu quero saber o que ele acreditasse na
que é a percepção; a mim in- Frenologia, mas pela primei-
teressa pegar a percepção no ra vez, alguém dizia coisas
estado de pureza total e, nes- que podiam ser submetidas a
se estado, posso deixar de verificação e rejeitadas. A
lado as influências emocio- cientificidade estaria exata-
nais, influências históricas, mente nisso: a possibilidade
etc. de verificação. Em 1851, ele
faz uma série de afirmações
(EP): O senhor se referiu à sobre a Psicologia. Diz que
falta de unidade na Psicolo- Psicologia científica ainda
gia? Essa é uma caracterís- não está fundada; no dia que
tica transitória na Psicolo- for fundada, ela terá de ser, e
gia? não poderá deixar de ser, se-
não fundada na Biologia e
(AGP): Eu não vejo saída, inspirada na Sociologia, quer
continuo achando que nós te- dizer, no estudo do ser huma-
mos de conviver com uma no. Você pode dar uma ênfa-
diversidade de enfoques mui- se muito grande em aborda-
to grande, até porque o ser gens neurocientíficas, abor-
humano é um ser que foi mui- dagens biológicas, mas não
to bem visto por Augusto pode esquecer que tudo quan-
Comte. Comte tem uma ob- to você faz, tudo quanto vê,
servação extremamente im- pensa, está sob a influência da
portante, que pouca gente cultura, da linguagem. Da lin-
fala. Quando ele escreveu o guagem exprimindo a cultu-
Curso de Filosofia Positiva, ra, sendo ao mesmo tempo
por volta de 1836, dizia que um obstáculo, porque a cul-
a Psicologia científica, a Psi- tura ao cunhar a linguagem,
cologia positiva, na verdade cunha de tal maneira, que
não existe: passa-se da Bio- você vê apenas aquilo para o
logia para a Sociologia. Apa- qual a cultura tem palavras.
rentemente ele negava a Então, desde aí, você tem

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 123


uma divisão da Psicologia. A Psicologia é, a meu ver, difí-
História da Psicologia não foi cil de conseguir, embora te-
outra: de um lado a Psicolo- nha sido sonho dos
gia Social, e de outro, a Psi- positivistas.
cologia Biológica. Quando se
fala de uma Psicologia Bio- (EP): E, dentro desta disper-
lógica, pensa-se numa Psico- são toda do conhecimento,
logia totalmente dominada do saber psicológico, como o
pela metodologia das ciênci- senhor vê o aparecimento
as físicas naturais. Mas aí dessas abordagens corpo-
também cabe uma outra di- rais, místicas?
visão: você pode descobrir
que o corpo não é um corpo (AGP): Essa é outra coisa
qualquer, ele está dominado que é importante, eu tenho
pela mente, que é um produ- um trabalho, chama-se Auto-
to emergencial. Surge emer- matismo e Subjetividade; eu
gentemente a partir do mo- escrevi inspirado em Pascal.
mento que ela emergente- Pascal tem dois pensamentos
mente surge e passa a domi- extraordinários: ele mostra
nar o corpo. Então, não pos- que eu posso alterar a mente
so estudar o corpo como um através do corpo e posso al-
objeto qualquer, tenho de es- terar o corpo através da men-
tudar o corpo próprio, tal te. Ele é dualista cartesiano,
como eu experimento, e eu mostra que posso desenvol-
experimento não como uma ver em você humildade, mo-
coisa, mas como algo que é déstia, através da exigência
totalmente diferente do resto. de que você assuma determi-
Então, já há uma divisão e a nadas posturas. Por exemplo,
divisão permanece. Quando quando você se ajoelha, quan-
os neurocientistas se debru- do olha de baixo para cima,
çam procurando as bases da você está de certo modo sen-
memória no cérebro, estão fa- do levada a sentir-se inferior
zendo algo que é científico, a quem você olha. E o ato de
mas quando se estuda a me- ajoelhar é sentir humildade.
mória do ponto de vista soci- Eu posso desenvolver, através
al, também é ciência pura, de determinadas práticas físi-
mas a metodologia é outra. cas, uma série de mudanças
Então, pensar na unidade da psicológicas. Mas, ao mesmo

124 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134


tempo, posso, através de mu- pode, pela auto-sugestão, ter
danças psicológicas, determi- benefícios terapêuticos. Des-
nar efeitos totalmente diver- cobri ainda que havia uma li-
sos no campo físico. Foi o que nha na terapia de vidas pas-
fez Freud, quando trabalhava sadas que diferia da outra, a
com a histeria. Ele mostrava que acredita realmente que o
que o ato de falar determina- indivíduo está reencarnado.
va alterações internas, ele se Havia lá uma mineira que in-
libertava. Catarticamente. É ventou uma coisa, que me pa-
um tema tipicamente receu mais inteligente. Uma
pascalino, que mostra como terapia das vidas passadas,
nós encontramos em Pascal como se a vida não tivesse
uma abordagem interessante sido vivida, a vida que o in-
sobre as relações do corpo divíduo gostaria de ter vivi-
com a mente. do. É mais projetiva, traduz
mais ou menos as caracterís-
(EP): E quanto às chamadas ticas de personalidade. Achei
terapias alternativas? mais interessante. Mas o que
me irrita muito na terapia das
(AGP): Recentemente fui vidas passadas é que o sujei-
convidado para falar sobre to sempre foi uma persona-
esse tema, pela PUC. Eles gem importante do reino de
têm um centro de Teologia, Luís XVI , Luís XIV, e eu não
uma associação de psicólogos vejo ninguém sendo um mi-
cristãos e um centro de Fé e serável, um sapateiro, nin-
Ciências. Pediram que eu fos- guém tendo uma função hu-
se mais cedo para ser apresen- milde. Parece que o pobre já
tado aos psicólogos cristãos, morreu mesmo, não tem nem
e lá eu encontrei realmente mesmo direito a reencarna-
muitos terapeutas. Eram as- ção, só quem reencarna são os
sociados a esse grupo de cris- ricos. Isso me irrita, pois é o
tãos. Encontrei alguns que contrário de tudo quanto eu
praticavam a terapia das vi- sei de História da Psicologia,
das passadas, apesar de ser e de Psicologia histórica, o
um centro católico. Outros que eu aprendi em Psicologia
praticavam a terapia pela ora- histórica, que não tem nada a
ção. Um crente, que está ver com História da Psicolo-
orando para Deus com fé, gia.

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 125


(EP): O que é a Psicologia vel; os poucos místicos que
histórica? alcançaram um maior nível
foram posteriores a Cristo, já
(AGP): É uma corrente no foram, de certo modo, influ-
campo da Psicologia, que es- enciados pela tradição cristã.
tuda como os processos men- Por outro lado, na Grécia hou-
tais se alteram com o tempo. ve misticismo. O ofismo foi
Os gregos não inventaram a um produto do culto de Deus,
razão, mas o tipo de razão, e de Dionísio. O ofismo trans-
realmente, a função do tem- formou-se em pitagorismo.
po altera não só o corpo, mas Os gregos, pela
a mente, e os processos tam- racionalidade, superaram a
bém se alteram com o tempo. tradição mística e converte-
Mas, voltando à sua outra ram-se numa tradição real-
pergunta, o que me impressi- mente racional. E com isso
ona é que as chamadas tera- não tiveram misticismo. Os
pias das vidas passadas igno- grandes místicos foram os
ram a Nova História: a His- cristãos porque, apesar dos
tória colocada não do ponto judeus terem um sistema mís-
de vista dos reis, das classes tico, com grandes profetas,
mais poderosas e dos grandes foram muito marcados pelo
generais, mas a história do nacionalismo. Os judeus nun-
povo. Na História tradicional, ca fizeram proselitismo, os
o povo não era lembrado, e cristãos é que fizeram
estas terapias repetem isso. proselitismo. Os cristãos de-
sejam que o cristianismo seja
(EP): E quanto às aborda- cada vez mais numeroso, que
gens esotéricas? venha mais gente para a cris-
tandade, mas os judeus se fe-
(AGP): Eu acho essa preocu- charam, é uma religião naci-
pação em buscar o Oriente, onal. Então, o cristianismo,
que é uma fuga de nossa cul- sendo uma religião universal,
tura para outra, é sempre ex- teve um nível de alcance mai-
pressiva de um certo or. Isso dito pelo próprio
desajuste. Quem leu As duas Bergson, que era judeu. Na
fontes da moral, de Bergson, época da perseguição nazis-
sabe que os místicos hindus ta, Bergson estava com febre
não atingiram um grande ní- de 40 graus, com pneumonia,

126 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134


quando soube que todos os nossa cultura é eminentemen-
judeus estavam sendo te grega por um fato extrema-
conclamados a se inscreve- mente banal. Nossa cultura
rem num registro de judeus, teria sido, com todos os mo-
para serem possivelmente tivos mais relevantes, uma
perseguidos. Ele se levantou cultura religiosa, do tipo
da cama e, em pleno inverno, persa. Mas não foi porque
colocou-se para ser registra- houve uma batalha banalíssi-
do como judeu, embora já ti- ma, pequeníssima, insignifi-
vesse se convertido ao cato- cante, uma batalha de mara-
licismo. Isso mostra que, na- tona, no desfiladeiro das
quele momento de dificulda- Termópilas, quando 300 gre-
de, ficar ao lado da antiga li- gos derrotam o exército persa.
gação religiosa que ele man- E derrotando o exército persa,
tivera era o mais importante. eles impediram que os persas
Mostra o vínculo com sua fizessem na Grécia o que fi-
cultura. Então, buscar no Ori- zeram em todas as colônias
ente uma orientação melhor que eles conseguiram domi-
a que nós temos no Ociden- nar no Oriente. Ou seja, eles
te, acho que é uma fuga da estabeleciam ligações com a
cultura, um desajuste. Não religião dominante e impu-
vejo nada de melhor que se nham a religiosidade, o que
possa ter do lado de lá. Há até permitia a eles o domínio
um trabalho de Max Weber, mais fácil. Na Grécia, quem
que é fantástico. O Weber é venceu foi a razão, e a cultu-
contra o historicismo, que é ra que nós herdamos foi a gre-
a doutrina da história que é ga.
regida por leis. Por ela, po-
deríamos prever o rumo da (EP): Freqüentemente faz-
história. Ele era contra e nos se uma ligação entre as idéi-
mostra que realmente a pre- as de Freud e Marx. Qual é
visão histórica é impossível, a origem desta associação?
porque o que prevalece na
história são os fatos banais; (AGP): Realmente é muito
os dados contigentes, que têm freqüente esta ligação entre
efeitos incríveis, que alteram Freud e Marx. Porque Marx
qualquer predição. Ele chama foi o primeiro a fazer uma
atenção para o fato de que a crítica a Descartes, na medi-

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 127


da em que Descartes conside- um artigo sobre Lenin e
rava que o mundo pode não Freud, no qual discuto um tra-
existir, mas eu existo. Se eu balho que Lenin escreveu em
duvido, eu penso. Eu posso 1902: O que fazer”. Lenin
duvidar do mundo, o mundo sustentava a tese de que o
pode ser um sonho, uma alu- operariado perdeu a força re-
cinação. Ainda que seja um volucionária porque um ope-
sonho ou uma alucinação, rariado que vive no sistema
existe aquele que sonha e vive marcado epistemologicamen-
a alucinação, que sou eu. En- te por certas categorias im-
tão, a minha consciência é postas pela classe dominante
alguma coisa que constitui não pode senão pedir aumen-
um ponto de partida. E Marx tos de salário. Então um PT
dizia que existe uma falsa só poderia, segundo Lenin,
consciência; mostrou que a aspirar e reivindicar aumento
consciência pode fraudar, er- de salário, nunca poderia pen-
rar. Ele trabalhou muito com sar na eliminação do sistema
o conceito de falsa consciên- assalariado. Para isso seria
cia no sentido de que eu, por necessário alguém que pudes-
exemplo, não sei quais os se pensar sem as categorias
motivos pelos quais possa que dominam o sistema; só
agir desta ou daquela forma. alguém de fora. Ele introduz
O operariado usava motivos a idéia de que somente al-
que não eram dele, motivos guém de fora, que não seja
que eram exatamente da clas- contaminado pelas categori-
se dominante. Aí está um as lógicas e epistemológicas
exemplo de falsa consciência, do sistema, é capaz de jogar
de uma ideologia pejorativa, abaixo este sistema. Ele ima-
negativa, aquela que faz com ginou que isso fosse trabalho
que eu sustente como vanta- para o Partido Comunista,
joso para mim, um determi- arregimentando intelectuais
nado motivo que me leva a desvinculados do sistema e
agir, e que, na verdade, é o que poderiam ter liberdade
motivo que só interessa àque- para pensar outras categorias.
les que dominam a situação E foi isso que inspirou
social. Então, Marx foi um Marcuse, quando ele imagi-
dos que trabalhou muito com nou que o operariado tinha
isso. Recentemente escrevi perdido força revolucionária,

128 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134


embora com uma ascensão eu não tenho um corpo, eu
muito grande no primeiro sou um corpo. Há uma dife-
mundo, mas ele tinha de jo- rença muito grande aí. A mi-
gar muito com a possibilida- nha experiência é de eu sou
de de que a sociedade pode- um corpo. As dificuldades da
ria ser modificada pelos linguagem, os limites da lin-
hippies, no final dos anos 60. guagem, fazem com que eu
Exemplo disso é o filme “Um me refira a mim mesmo como
estranho no ninho”, um filme tendo um corpo. Essa é uma
tipicamente marcusiano, em- influência da tradição dua-
bora pouca gente tenha per- lista. O meu corpo e a minha
cebido isso. O momento que mente. Então eu sou platôni-
marcou é quando o Jack co, todos nós somos platôni-
Nicholson tenta levantar, não cos, temos uma dívida aqui e
sei se é um cofre, para jogar ninguém consegue se libertar
contra os grades e se libertar, dela em relação a Platão. A
mas não consegue. Quem grande contribuição de Des-
consegue é um índio, alguém cartes foi apresentar o corpo
de fora do sistema. De outra como uma máquina. E isso
cultura, não contaminado pe- foi de um certo modo aceito
las categorias ideológicas do- até pela medicina do século
minantes. Isso é tipicamente XIX. A idéia é a de que, as-
marcusiano. sim como se substitui uma
peça de um carro, também
(EP): No seu texto “Acerca pode-se substituir uma peça
do corpo máquina e do cor- de um corpo humano. Com
po próprio”, o senhor discu- uma diferença: o automóvel
te o outro lado do dualismo pode se sustentar com qual-
cartesiano. A consciência, a quer peça, o corpo humano
mente pode fraudar. E o cor- não. O corpo humano repele.
po? Por outro lado, a idéia de má-
quina está presente por influ-
(AGP): O conceito de corpo ência do Iluminismo. É a ra-
é muito importante. Os psi- cionalização do trabalho, a
canalistas só falam em corpo idéia de divisão do trabalho
erógeno, o aspecto sexual. em atividades elementares de
Nesse trabalho, eu falo de um tal maneira que o indivíduo
corpo como sendo não meu; se automatiza. E isso foi cri-

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 129


ticado genialmente por meu próprio exemplo. A pri-
Chaplin em “Tempos Moder- meira cadeira que eu dei na
nos”, quando ele passa o tem- minha vida, em 1940, no iní-
po todo repetindo movimen- cio da minha carreira, foi so-
tos. Então todo o processo do bre História Econômica. Hoje
capitalismo industrial no sé- estou com 56 anos de sala de
culo XIX se inspirou em Des- aula. Eu me lembro até hoje,
cartes e inspirou-se na racio- dei um curso sobre economia
nalização do trabalho, no fun- pré política - a economia dos
do transformando o trabalha- primitivos, em que eu me uti-
dor numa máquina. Corres- lizava muito dos antropólo-
ponde, de um lado, à linha fi- gos, depois eu discutia a eco-
losófica com Descartes e, de nomia grega, que não conhe-
outro lado, a linha social com cia a propriedade privada,
a racionalização do trabalho, conhecia a propriedade fami-
transformando o Homem liar, e com as revoluções, as
numa máquina. E, obviamen- tentativas de implantar na
te, quando Marx fez a grande Grécia a reforma agrária. De-
crítica do capitalismo, ele es- pois, eu estudava a economia
tava tentando libertar o ser italiana romana, depois a eco-
humano dessa condição. E, nomia medieval, com o sis-
em princípio, todo psicólogo tema feudal, com o sistema
industrial, que faz Psicologia das corporações de ofício, e
Industrial tem de trabalhar a origem progressiva do sis-
muito com isso. Mas, infeliz- tema capitalista, através da
mente, em geral, os psicólo- evolução das cidades, as
gos que se dedicam à Psico- quais tiveram que ultrapassar
logia do Trabalho ficam intei- as muralhas que as cercavam,
ramente integrados ao Siste- e tudo quanto estivesse fora
ma, porque falta a eles a for- das muralhas, fugia ao con-
mação em História Social. trole das corporações e, con-
Eles não têm nenhuma visão seqüentemente, permitia a
de História Social. economia de mercado. Foi aí
que começou o capitalismo.
(EP): E por que ocorre isso? E depois do capitalismo,
É um problema de formação? Marx, com o estudo do capi-
talismo industrial, comercial,
(AGP): Eu tenho uma razão financeiro e o imperialismo.
muito simples. Vou tomar Foi um curso que eu dei de

130 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134


1940 até 1945, dava a visão uma maldição, um castigo.
histórica. Então, eu acho que Na tradição grega, o trabalho
a falta de formação em His- era escravo, mas não era a
tória Social impede a visão escravidão que nós conhece-
histórica dos psicólogos e os mos depois da descoberta da
integra ao Sistema. América; era a escravidão dos
prisioneiros de guerra, que
(EP): Que outras disciplinas poderiam ser intelectuais,
seriam importantes na for- príncipes e até nobres. Eram
mação do psicólogo do tra- presos e transformados em
balho? escravos para o trabalho. Na
verdade, em Platão, nas Leis,
(AGP): Acho o estudo da já há um pequeno texto, co-
História do Trabalho impres- mentado até por Marcuse, no
cindível. O estudo histórico qual ele diz que o trabalho
do trabalho é uma coisa pode ser perfeitamente
lindíssima, porque nós temos erotizado, o trabalho pode ser
duas grandes influências so- algo realizado com grande
bre a nossa cultura: a influ- prazer, com um imenso pra-
ência judaico-cristã e a influ- zer. É a possibilidade de que
ência grega. Infelizmente, o trabalho seja uma coisa
prevalece na área cultural, a muito agradável. E eu pensei
influência grega. A influência que esta pudesse ser uma tese
judaica ficou principalmente notável de Claparède.
limitada à área religiosa; a Claparède escreveu um texto
grande influência foi a grega. notável sobre trabalho e jogo,
E o conceito de trabalho que no qual ele mostra que o tra-
nos foi transmitido pela tra- balho nas suas formas supe-
dição judaico-cristã é o traba- riores identifica-se perfeita-
lho como pena, pelo pecado mente com o jogo e, só nas
original. O homem pecou, formas inferiores, é que ele se
então, vai ganhar a vida com divide. O jogo é sempre ale-
o suor do rosto, a mulher vai gre, e o trabalho, nas formas
parir com dor e a serpente vai inferiores, é escravo, é puni-
rastejar por toda eternidade. ção. Por exemplo, o jogo de
É uma idéia de punição terrí- xadrez é terrível, no sentido
vel que recebemos da tradi- de levar o sujeito à exaustão
ção judaica, o trabalho como e, entretanto, é um jogo ex-

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 131


tremamente agradável. O tra- ro, mas trabalha numa loja,
balho é tão agradável que o numa fábrica, trabalha 8 ho-
indivíduo esquece de jantar ras, e quando vai para casa,
ou almoçar. Se ele está envol- vai para o fundo do quintal
vido no tema que o está en- para fazer os móveis de casa,
cantando, se ele está tendo isso pode ser algo muito
insights, ele não quer nem ser prazeroso. É um prazer por-
perturbado. que ele é um artista, e um ar-
tista não se cansa porque ele
(EP): É essa sua experiên- está sendo profundamente be-
cia pessoal com o trabalho? neficiado pelo ato de criação.
Mas isso não se estuda em
(AGP): Felizmente, eu tenho Psicologia do Trabalho. Ge-
essa experiência de trabalho. ralmente como é dada é uma
Eu trabalho muito, escrevo cadeira triste, e o tema é real-
muito, mas escrevo com mente lindo. Seria necessário
enorme prazer e fico feliz que se estudasse o conceito de
quando eu termino um artigo. trabalho com a visão filosó-
É como se eu tivesse tirado fica e histórica para se com-
uma loteria. Quando eu tenho preender a própria atuação do
idéias que me parecem origi- psicólogo. Por exemplo, uma
nais, eu me sinto assim como coisa que me irrita é o empre-
agraciado com presentes que sário dizer: eu garanto 5.000
não têm preço. Mas, para empregos, dou 5.000 empre-
isso, é importante que a gen- gos, sou importante porque
te estude a História do Tra- forneço empregos. A formu-
balho, o trabalho na Idade lação está errada, ele não dá,
Média, na Idade Moderna, o ele precisa de 5.000 trabalha-
significado da divisão do tra- dores para que ele possa rea-
balho, tudo isso fez com que lizar o que está querendo.
o homem perdesse a visão do Mas ele inverte e dá a impres-
conjunto e se sentisse real- são que ele é que está doan-
mente infeliz, porque não do, quando na verdade o ato
chega a produzir nada que de produção é coletivo, a re-
possa ter sentido. Mas, ao partição que é injusta. A in-
mesmo tempo, eu chamo justiça começa no momento
atenção para o fato de que se em que se divide o apurado,
alguém é um bom marcenei- mas o ato de produção é ab-

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solutamente um ato de natu- rigem continuamente e, ao
reza social; é sempre funda- mesmo tempo, uma lição de
do num processo cooperati- modéstia. Estudar História da
vo. Está todo mundo traba- Ciência é ser modesto, é per-
lhando, inclusive, o próprio ceber que todas as chamadas
dono da empresa também tra- Verdades, que foram
balha. No fim, o operário ga- engrandecidas, de repente fo-
nha um salário vil, o salário ram jogadas abaixo. Nós vi-
mínimo, e o empresário fica vemos numa cultura centrada
com quase tudo. A questão é na importância das respostas
que não se olha para o outro - e as respostas são decora-
com fraternidade, que foi a das. Às vezes, numa sala de
grande descoberta da Revo- aula, ninguém pensa, o pen-
lução Francesa. A liberdade samento é a coisa mais rara.
é incompatível com a igual- Nietzsche tem uma frase ma-
dade, só deixando de sê-la, ravilhosa: “na Alemanha já
pela fraternidade. não se pensa mais. Repete-
se”. A verdade é que quando
(EP): E, de modo geral, digo que não se pensa numa
como o senhor vê a questão sala de aula, é porque o pro-
do ensino e da pesquisa em fessor está ensinando um fal-
Psicologia na academia, nas so problema, porque ele co-
universidades? nhece o resultado, então para
ele não é um problema. E os
(AGP): Cada vez mais acho alunos não escolheram aque-
que o ensino está totalmente le problema, não o descobri-
errado. Quando eu começo ram. Estão ali atendendo a
um curso, peço aos alunos uma solução, aprendendo
que não acreditem em nada uma solução; o que é impor-
do que eu vou dizer. Peço tante é a solução, é aprender
apenas que tomem aquilo a solução. Quando mais im-
como um estímulo para o es- portante do que qualquer so-
tudo, mas não acreditem em lução que se aprenda, é a im-
nada, pois se tudo que eu dis- portância da pergunta. Porque
sesse fosse verdadeiro, não a pergunta revela uma moti-
haveria História da Ciência. vação epistêmica, revela que,
A História da Ciência é uma de repente, você viu alguma
história de erros, que se cor- coisa e se espantou; exige

Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134 133


uma resposta, uma explica- do você entra no mestrado, a
ção, uma resposta. Por exem- primeira providência é encon-
plo, na medida em que a cri- trar um professor para a
ança faz perguntas e o adulto orientação. O professor diz,
responde, ela vai diminuindo então, que só orienta se for na
a freqüência de perguntas. área dele, e a área dele é a área
Quando ela se converte num do professor que o orientou.
adulto, não faz mais pergun- O professor que o orientou
tas, ela repete respostas dadas trabalha nessa área também
pelo professor em sala de porque foi orientado por
aula. O professor, por sua vez, alguém dessa área. O que
ouviu do seu professor aque- ocorre é que todo mundo está
las respostas. Ele repete aqui- repetindo, trabalhando com
lo, a segunda geração repete pequenas variáveis, mas no
novamente, a terceira geração mesmo problema. O
repete e realmente o ato de importante no mestrado é o
perguntar é raro. Eu costumo aluno ter coragem de dizer:
dizer que o bom professor é “eu gostaria de estudar isto,
aquele que, quando sai da sala isto é que me interessa”, e o
de aula, sai sabendo mais, ele professor dizer: “eu não sei,
não se limitou a repetir. É pre- mas vamos estudar juntos”.
ciso que a aula seja um mo- Ele tem muito mais estudo,
mento para pensar e o profes- muito mais disponibilidade
sor pense também que esteja de leitura que o aluno, então,
ali, humildemente, para ele pode ajudar, mesmo que
aprender um pouco mais. Às nunca tenha feito um traba-
vezes, o aluno faz uma per- lho naquela área. Ele vai es-
gunta e o professor não dá tudar junto com o aluno e
atenção, e aquela pergunta era ambos vão aprender e progre-
realmente importante. É pre- dir.
ciso valorizar a pergunta. Na
área da pós-graduação, (EP): Muito obrigado por
estamos dominados pela sua entrevista.
compulsão à repetição. E isso
é uma prática mundial. Quan- (AGP): Eu é que agradeço.

134 Estudos de Psicologia 1996, 2(1), 109-134

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