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A. GOMES PENNA **
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mentada por Koyré (1981, p. 45-6) como ideal: bastaria que "desde o nasci-
mento ficássemos de posse da razão, de toda a nossa razão. Não da que de fato
possuímos hoje, na idade madura, e que está cheia de erros, de preconceitos e
de idéias feitas, mas da que teríamos possuído então, da razão completamente
pura, completamente perfeita, da razão essencial, tal como a deveríamos ter tido,
tal como a teria um homem que como Adão tivesse sido criado adulto, com
uma razão diretamente saída das mãos da natureza ou de Deus. Sem dúvida
que então nunca a deixaríamos cair no erro e nenhum preconceito viria ofuscar
a luz natural do nosso espírito". Trata-se de uma nostalgia platônica, clara-
mente visível na idéia de uma razão que se desse a n6s de uma forma plena e
acabada, mas que, conforme assinala Koyré, ninguém converteu em programa de
ação, salvo Descartes. "Ninguém, salvo Descartes" - escreve Koyré - que o
mais seriamente possível empreendeu devolver ao nosso espírito a pureza e a
perfeição nativas (e assim levar a natureza humana ao seu mais alto grau de
perfeição). E para isso, para o desobstruir e desembaraçar das esc6rias que o
atulham, parece-me, diz-nos "que em relação a todas as opiniões a que até agora
eu tinha dado crédito, melhor não podia fazer que empreender, uma vez por
todas, afastá-las, a fim de, em seguida, pôr em seu lugar, ou outras melhores
ou as mesmas, depois de as ter ajustado ao nível da razão" (Koyré, 1981, p. 46).
Conforme. ainda, assinala Koyré (1981. P. 48), "o homem tem necessidade. uma
vez na vida (e sem dúvida, a humanidade tem igualmente essa necessidade e
mais do que uma vez) de se desfazer de todas as idéias anteriores e recebidas,
de destruir em si todas as crenças e todas as opiniões para as submeter todas
ao controle e ao julgamento da razão". E mais adiante: "Precisamos de nos des-
fazer de todas as idéias, de todas as crenças recebidas, ou seja, libertarmo-nos de
todas as tradições, de todas as autoridades, se quisermos alguma vez reencontrar
a pureza nativa de nossa razão, chegar à certeza da verdade" (p. 49). Tudo
isso implica o exercício da dúvida. De uma dúvida que não seja um estado,
mas uma ação livre e voluntária. Dúvida que não seja sofrida como a de Mon-
taigne, mas efetivamente exercida. Dúvida otte nos nermita vencer o cético com
as suas próprias armas, como registra, ainda Koyré.
Vale assinalar que a importância de Descartes, tão exaltada por Koyré, equi-
para-se à de Galileu no que concerne à reieicão do obstáculo p.mpirista introdu-
zido por Bacon. E é ainda Koyré, em seus Estudos de história do pensamento
cientifico quem aponta para a relevância da obra de Galileu. Especialmente re-
gistra-a em ~'O de motu gravium de Galileu" quando comenta a audácia com
que Galileu introduziu as experiências imaginárias e as experiências de pensa-
mento como preferiu E. Mach, ou seja, experiências puramente pensadas, mas
efetivamente não realizadas e, na verdade, irrealizáveis para a época em que
foram descritas. De qualquer modo, elas se revelaram rigorosamente objetivas
conforme se comprovou quando da possibilidade de se converterem de expe-
riências imaginárias em experiências reais. Assinale-se que a idéia mesma de
uma experiência imaginária ou de pensamento constituiu-se numa forma eficaz
de se removerem os obstáculos represenlados pela impossibilidade técnica e his-
t6rica de se promoverem os experimentos reais.
Sobre as experiências imaginárias escreve Koyré: "As experiências ima-
ginárias que Mach chamará experiências de pensamento (gedankenexperimente)
e sobre as quais Popper acaba de nos chamar a atenção desempenharam um
papel muito importante na hist6ria do pensamento científico. Isso se compreende
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facilmente: as experiências reais são, freqüentemente, de difícil realização, pois
implicam, não menos freqüentemente, a necessidade de uma complexa e custosa
aparelhagem. Além disso, comportam, necessariamente, certo grau de impre-
cisão e, portanto, de incerteza. Com efeito, é impossível produzir uma superfí-
cie plana que seja verdadeiramente plana, ou uma superfície esférica que seja
realmente esférica. Não há e nem pode haver, in rerum natura, corpos per-
feitamente rígidos; tampouco, corpos perfeitamente elásticos. Não se pode efetuar
uma medida perfeitamente exata. A perfeição não pertence a este mundo. Cer-
tamente pode-se se aproximar dela, mas não se pode atingi-la. Entre o dado
empírico e o objeto teórico existe, e sempre existirá, uma distância que é im-
possível vencer" (Koyré, 1982, p. 209). E mais adiante: "A asserção galileana
da queda simultânea dos corpos graves, tal como nos foi apresentada, até aqui,
nos Discorsi, não repousa, como bem nos damos conta, senão em raciocínios
a priori e em experiências imaginárias. Até aqui jamais fomos colocados diante
de uma experiência real. E nenhum dos dados numéricos invocados por Galileu
exprimia medidas efetivamente executadas (Koyré, 1982, p. 233).
Vale assinalar que Husserl vislumbrou no método das experiências ima-
ginárias uma espécie de antecipação do método fenomenológico das variações
imaginárias que, por igual, permitem ir além do que podem permitir as va-
riações imaginárias que, por igual, permitem ir além do que podem permitir
as variações empiricamente produzidas. A referência a Husserl nesta altura jus-
tifica-se pelo fato mesmo de ele ter retomado o projeto de Descartes. Também
a Husserl toca o problema da certeza e do rigor. Também aqui a meta é a
busca de uma razão pura através da prática ou das práticas da redução. A meta
visada é a conquista da objetividade, ou seja, a produção de uma ciência rigo-
rosa, no sentido de uma sólida fundamentação. A diferença entre Descartes e
Husserl está no fato de que enquanto o primeiro se fixa na dúvida, Husserl
opta pela epokhé, ou seja, pela suspensão de julgamento que apenas implica
que se ponha o mundo entre parênteses. Na verdade, ele não poderá ser negado,
pois, de certo modo, beneficia-se pela própria apoditicidade da consciência en-
quanto consciência intencional, ou seja, enquanto consciência heteróclita, aberta
sobre o mundo, efetivamente definida como presença dele.
Convém assinalar que Husserl pretendeu ter ido além do projeto de Des-
cartes, ao admitir, ao lado da redução fenomenológica, a redução transcendental.
De fato, com o método da dúvida Descartes atinge o ego cogito, isto é, o sujeito
enquanto atividade de pensamento e como realidade psicológica e mundana.
Husserl ultrapassa esse limite através da redução transcendental que lhe é pe-
~uliar e que permite alcançar a consciência pura ou transcendental. Nessa cons-
ciência pura, as vivências perdem o inteiro caráter psicológico e existencial para
se converterem em simples relações do sujeito com o objeto enquanto mera-
mente significado. Precisamente essa atitude caracteriza a chamada posição trans-
cendental, radicalmente oposta à posição natural e ingênua, inicialmente des-
crita. Em função dela o ego puro apresenta-se como espectador desinteressado
ou imparcial, apto, por isso mesmo, a apreender tudo quanto se lhe possa apre-
sentar como fenômeno da consciência.
Husserl representa no presente século o filósofo que mais lutou pela pureza
e objetividade do conhecimento e pelo afastamento dos obstáculos que dificultam
a sua aquisição. Essa condição lhe é tributada inclusive por Kolakowski (1975).
"A fenomenologia - escreve Kolakowski - foi a maior e a mais séria ten-
tativa em nosso século de alcançar as fontes últimas do conhecimento." Precisa-
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mente em consequencia desse esforço é que sé converteu na grande fonte de
resistência ao psicologismo, ao sociologismo e ao historicismo. Nenhuma ciência
empírica, no seu modo de ver, se poderia converter "em fundamento para as
demais ciências empíricas. Conforme observou Merleau-Ponty (1964, p. 21), "o
homem que filosofa crê inutilmente que, quando pensa e afirma, não faz senão
expressar o contato mudo de seu pensamento com seu pensamento, procede
como se estivesse sem laços com as circunstâncias, porém quando o considera
do exterior, como faz o historiador da filosofia, aparece condicionado por causas
fisiol6gicas, psicol6gicas, sociais e hist6ricas. Seu pensamento aparece, por con-
seqüência, como um produto sem valor intrínseco e o que era aos olhos do
fil6sofo, pura adequação de seu pensamento, aparece aos olhos do crítico ex-
terior como fenômeno residual ou simples resultado".
Num século muito marcado pelo avanço do irracionalismo, a presença da
fenomenologia, retomando e ampliando o programa de Descartes, representa o
mais sério movimento de resistência a esse avanço e, conseqüentemente, a esse
obstáculo que se opõe a toda e qualquer possibilidade de conquista epistêmica.
Graças à fenomenologia, fica bastante clara a condição de obstáculo epistemo-
16gico que define não s6 o psicologismo, como o sociólogismo e o historicismo,
aos quais Husserl acrescenta o pr6prio logicismo, pois que, também este não
escapa à cerrada crítica ao se pretender posição que busca proporcionar a
aquisição da verdade sem qualquer intermediação da experiência contingente_
Sobre o psicologismo e sobre o sociologismo, resume Merleau-Ponty' (1964) o
pensamento de Husserl quando escreve: "Se o psicologismo nos diz que o fil6-
sofo e seu pensamento não são senão marionetes, mecanismos psicol6gicos ou
hist6ria exterior, podemos sempre responder-lhe que ocorre o mesmo com ele
e, assim, desacreditar sua pr6pria crítica. O psicologismo, se ao menos é conse-
qüente, toma-se um ceticismo com relação a si mesmo" (p. 22). E com relação
ao sociologismo, escreve ainda Merleau-Ponty (1964, p. 22): "À força de demons-
trar que todo nosso pensamento é expressão de uma situação social, cujas limi-
tações fazem também com que este pensamento não seja verdadeiro, alguém
se expõe a provar demasiado, a acreditar na idéia de que o sociologismo não
tem seu verdadeiro sentido em si mesmo, de onde pode resultar um irraciona-
lismo político e uma conduta política sem critério".
Como observa Merleau-Ponty, todo o esforço de Husserl se orientará na
direção de um método capaz de possibilitar a total remoção dos obstáculos ci-
tados (o psicologismo, o sociologismo, o historicismo) e este ele o consegue
através da intuição eidética ou Wesenschau. Na verdade, distingue Husserl entre
o ato que vivemos e aquilo que vivemos através dele e que, devidamente captado,
constitui-se numa essência, atemporal, a-hist6rica e com significado universal-
mente válido. A possibilidade da episteme estaria, assim, assegurada, como asse-
gurada a Husserl a condição de grande derrubador de barreiras ou obstáculos à
aquisição do conhecimento científico.
Abstract
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theoretical contribution in cognitive area carne from elose estimate with Knowle-
dge Theory, as was well pointed ou by J. S. Bruner in h1S eritie eomments
developed around the so-called Personal Construct Theory.
Referências bibliográficas
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