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SObre os obstáculos epistemológicos ou cognitiyos~

A. GOMES PENNA **

As idéias aqui brevemente expostas complementam o capítulo sobre a natureza


do conhecimento, que integra nossa Introdução à psicologia cognitiva, editado
pela Editora Pedagógica Universitária (1984). Na verdade provê algumas
informações sobre seu processo de aquisição e nos parece constituir-se tema
fundamental no domínio do cognitivismo. Implicam uma fecunda' aproximá-
ção da psicologia com a epistemologia e' com a históriá das ciências. Tradu-
zem, pois, uma perspectiva que deve alguma coisa a George Kelly cuja con-
tribuição teórica na área cognitiva já resultou de uma aproximação com a
Teoria do Conhecimento como, de resto, foi muito bem assinalado por J. S.
Bruner em seus comentários críticos desenvolvidos em torno da chamada
Teoria do Constructo Pessoal.

A expressão obstáculo epistemológico é de Bachelard. Com ela também trabalhou


Althusser. Sumariamente designa a série de dificuldades com que nos defron-
tamos, quando envolvidos nos processos de aquisição do conhecimento. O reco-
nhecimento dessas dificuldades registra-se a partir de Bacon, para não recuarmos
além dos começos do pensamento moderno. O que se sustenta é que a aquisição
epistêmica é difícil. Supõe, efetivamente, uma prática ascética. Implica a estra-
tégia do detour e funda-se numa hábil exclusão da ingenuidade dogmática e numa
prudente convivência com a dúvida. No estilo, por exemplo, com que Descartes
a cultivou ou a exerceu e não em função da forma como Montaigne a sofreu,
para sempre recorrermos a uma brilhante comparação proposta por Koyré (1981).
Supõe a certeza de que o caminho a percorrer enche-se de obstáculos ou de bar-
reiras que devem e podem ser superados.
Ao nível do pensamento moderno, como observamos, quem os analisou
mais profundamente foi Bacon e isso é enfatizado por Koyré (1981) quando es-
creve que "ninguém melhor que ele classificou os erros humanos; ninguém me-
lhor que ele revelou sua origem, simultaneamente natural e social; ninguém tem
menos confiança que ele nas forças espontâneas e próprias da razão" (p. 30).
Bacon, efetivamente, apontou para os quatro idola que "enviesam" o procedimento

* Artigo apresentado à Redação em 23.8.84.


** Chefe do Centro de Pós-Graduação do ISOP/FGV. (Endereço do autor: Rua Pompeu
Loureiro, 196/901 - 22.061 - Copacabana - Rio de Janeiro, RJ.)

Arq. bras. Psic., Rio de Janeiro, 36(4):42-48, out./dez. 1984


da episteme: os idola tribus, os idola specus, os idola fori e os idola theatri. Com
extraordinária perspicácia analisou-os e os definiu. Os primeiros fundam-se na
natureza humana que responde por alterações mais ou menos severas impostas
às coisas com as quais o homem se põe em contato, desfigurando-as·e as cor-
rompendo. Os idola specus .apontam para as distorções produzidas pelo próprio
indivíduo. Os idola fori indicam as ilusões decorrentes das interações sociais e
da linguagem através da qual elas se processam. Finalmente os idola theatri
referem-se aos erros que decorrem dos- sistemas ou doutrinas metafísicas a que
nos ligamos e subordinamos. Ao apontar e caracterizar cada uma dessas quatro
fontes de erros, Bacon atingiu o grande nível que marcou sua intervenção no
pensamento crítico.
Não obstante, Bacon não se advertiu de que ele próprio tornava-se responsá-
vel por um dos grandes mitos que dificultam a produção do conhecimento. Refe-
rimo-nos à sua idéia de que o conhecimento parte de fatos. Que ele é fundamen-
talmente indutivo. Que é a expressão de uma postura rigorosamente empirista.
Conforme observou Koyré (1981, p. 31), "A solução de Bacon teve um sucesso
enorme. Sucesso puramente literário, de resto, porque esta ciência nova - ciência
ativa, empírica e prática - de que seus livros anunciavam o advento, ele não a ti-
nha posto em prática. E ninguém o fez depois dele. Pela simples razão de que era
impossível. O empirismo puro não leva a nada. Nem mesmo à experiência.
Porque toda a experiência supõe uma teoria prévia". De acordo, ainda, com o
comen~ário de Koyré, ao descrever assim as estratégias de aquisição epistêmica,
dela se afastou Bacon e dela se afastou por não ter vivência científica. Por isso
Koyré destaca a relevância de Descartes. Coube-lhe realizar a virada de 180
graus na história da ciência, com a introdução do que chamamos de método hi-
potético-dedutivo de que, por outro lado, também se serviu Galileu. Na verdade,
percebeu Descartes que nenhum cientista trabalha como Bacon imaginou. Ne-
nhum parte de fatos. Todos partem de problemas. Começam com idéias como
magistralmente registrou Bachelard ao assinalar que antes que o movimento da
Terra em torno do Sol fosse um fato, efetivamente revelou-se como uma idéia.
Os fatos não nos são dados. Eles são produzidos. Revelam-se como expressão
de um movimento de détour. Exprimem-se como conseqüência de uma rejeição
do testemunho dos sentidos. Na verdade, não podemos confiar neles. A excessiva
confiança em seus processos de informação responde, por exemplo, pelo geocen-
trismo, expressão maior e perfeita de uma ilusão do movimento induzido. O
heliocentrismo constitui, nesse particular, a vitória da razão sobre os sentidos.
A idéia que o sustenta é a de que a objetividade é algo que se conquista me-
diante uma exclusão progressiva do sujeito. Mediante descentralizações suces-
sivas, conforme observou Piaget. Quanto mais próximo de nós um saber, tanto
menor a sua possibilidade de se revelar. objetivo. Na verdade, ele nos revelará
muito mais do que reunirá os objetos dos quais pretende ser uma expressão
adequada. Conforme escreve Bachelard .(1972, p. 9-10): "de fato, a objetividade
científica só é possível se, antes de tudo, fizermos abstração do objeto imediato,
se recusarmos a sedução da primeira escolha e se contrariamos os pensamentos
nascidos da primeira observação~ Toda objetividade devidamente verificada des-
mente o primeiro contato com o objeto. Ela deve, antes de tudo, criticar tudo:
a sensação, o senso comum, até a prática mais vulgar; porque o verbo, que é
feito para cantar e encantar, raras vezes corresponde ao pensamento".
Por outro. lado impõe-se a prática do que Bachelard chamou de "Psicanálise
do saber", visando-se, através dela, a uma liberação da episteme relativamente
Obstáculos epistemológicos 43
à opinião, que apenas se define como a expressão de desejos e se compõe como
o primeiro obstáculo a afastar. Vale recordar que, para Bachelard, a opinião só
preenche uma função: a de ser descartada. Sua exclusão proporciona seja intro-
duzida a episteme, ou seja, o saber enquanto exorcizado ou psicanalisado. Sobre
a opinião escreve Bachelard (1972, p. 14): "Tanto em sua necessidade de aca-
bamento quanto em seu princípio, a ciência se opõe radicalmente à opinião. Se,
em algum ponto particular, ela chega a legitimar a opinião, é por razões dife-
rentes daquelas que fundam a opinião; sendo assim, de direito a opinião está
sempre errada. A opinião pensa mal; ela não pensa: traduz necessidades em co-
nhecimento. A designar os objetos por sua utilidade, ela se impede de conhecê-los.
Nada pode ser fundado na opinião; primeiramente é preciso destruí-la. A opinião
é o primeiro obstáculo a ultrapassar. Não bastaria, por exemplo, retificá-la em
alguns pontos particulares e manter, como uma espécie de moral provisória,
um conhecimento vulgar provisório. O espírito científico nos proíbe de ter uma
opinião sobre questões que não compreendemos, sobre questões que não sabemos
formular claramente. Antes de mais nada, é preciso sabermos colocar problemas.
O sentido do problema é, precisamente, a marca do verdadeiro espírito científico.
Para um espírIto científico todo conhecimento é uma resposta a uma questão.
Se não houve questão, não pode haver conhecimento científico. Nada é óbvio.
Não é dado. Tudo é construído."
~ claro que Bachelard captou muito bem a idéia de obstáculo. Mas a cer-
teza da existência deles foi vivida com muita intensidade por filósofos e cien-
tistas. Alguns considerando-os insuperáveis, como os céticos. Outros enten-
dendo-os removíveis através de estratégias refinadas. No século XIX, por exem-
plo, Marx conscientizou-se da existência deles quando introduziu o conceito de
ideologia em seu sistema. Na verdade, o conhecimento poderia ser menos a ex-
pressão de uma lógica autônoma, operando descompromissadamente, do que a
expressão dos modos de produção dominantes. Exprimiria muito mais os inte-
resses da classe do que a realidade por eles objetivada. De qualquer modo, a
ideologia em sua condição de obstáculo, seria descartável pela tomada de cons-
ciência das fontes sociais que a alimentam.
No domínio da psicologia a idéia de obstáculo tanto se propõe na esfera
da percepção quanto na do pensamento, tendo sido relevantes as contribuições
do gestaltismo no sentido de sua indicação e, obviamente, no sentido de seu
descartamento. Acerca da contribuição gestaltista, de resto, escrevemos breve
ensaio que abre o livro Percepção e aprendizagem. Também relevante foi a con-
tribuição do movimento da New Look in Perception, com Bruner e Postman, ao
assinalar a constante presença de fatores motivacionais e emocionais a compro-
meterem a objetividade de nossa captaçao dos objetos. Na verdade, a percepção
seria muito menos a apreensão do que se mostra do que a produção do que se
deseja. Obviamente corrigível pela consciência que se tem dessas distorções. In-
terferências produtoras de obstáculos podemos, ainda, registrá-las na perspectiva
cultural-relativista de B. L. Whorf. Na realidade, o nosso modo de ver o mundo
não seria rigorosamente objetivo diante das influências derivadas da cultura
a que estamos ligados. Também aqui, perceberíamos o mundo em função das
nossas expectativas alimentadas pela cultura de que fazemos parte. Veríamos
aquilo para cuja designação dispomos de palavras. Mais uma vez o descarta-
mento do obstáculo se enseja pelã consciência mesma de nossas limitações.
Por certo, os obstáculos poderiam revelar-se menos presentes em nossa con-
vivência com o mundo se ocorresse a condição apontada por Descartes e co-

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mentada por Koyré (1981, p. 45-6) como ideal: bastaria que "desde o nasci-
mento ficássemos de posse da razão, de toda a nossa razão. Não da que de fato
possuímos hoje, na idade madura, e que está cheia de erros, de preconceitos e
de idéias feitas, mas da que teríamos possuído então, da razão completamente
pura, completamente perfeita, da razão essencial, tal como a deveríamos ter tido,
tal como a teria um homem que como Adão tivesse sido criado adulto, com
uma razão diretamente saída das mãos da natureza ou de Deus. Sem dúvida
que então nunca a deixaríamos cair no erro e nenhum preconceito viria ofuscar
a luz natural do nosso espírito". Trata-se de uma nostalgia platônica, clara-
mente visível na idéia de uma razão que se desse a n6s de uma forma plena e
acabada, mas que, conforme assinala Koyré, ninguém converteu em programa de
ação, salvo Descartes. "Ninguém, salvo Descartes" - escreve Koyré - que o
mais seriamente possível empreendeu devolver ao nosso espírito a pureza e a
perfeição nativas (e assim levar a natureza humana ao seu mais alto grau de
perfeição). E para isso, para o desobstruir e desembaraçar das esc6rias que o
atulham, parece-me, diz-nos "que em relação a todas as opiniões a que até agora
eu tinha dado crédito, melhor não podia fazer que empreender, uma vez por
todas, afastá-las, a fim de, em seguida, pôr em seu lugar, ou outras melhores
ou as mesmas, depois de as ter ajustado ao nível da razão" (Koyré, 1981, p. 46).
Conforme. ainda, assinala Koyré (1981. P. 48), "o homem tem necessidade. uma
vez na vida (e sem dúvida, a humanidade tem igualmente essa necessidade e
mais do que uma vez) de se desfazer de todas as idéias anteriores e recebidas,
de destruir em si todas as crenças e todas as opiniões para as submeter todas
ao controle e ao julgamento da razão". E mais adiante: "Precisamos de nos des-
fazer de todas as idéias, de todas as crenças recebidas, ou seja, libertarmo-nos de
todas as tradições, de todas as autoridades, se quisermos alguma vez reencontrar
a pureza nativa de nossa razão, chegar à certeza da verdade" (p. 49). Tudo
isso implica o exercício da dúvida. De uma dúvida que não seja um estado,
mas uma ação livre e voluntária. Dúvida que não seja sofrida como a de Mon-
taigne, mas efetivamente exercida. Dúvida otte nos nermita vencer o cético com
as suas próprias armas, como registra, ainda Koyré.
Vale assinalar que a importância de Descartes, tão exaltada por Koyré, equi-
para-se à de Galileu no que concerne à reieicão do obstáculo p.mpirista introdu-
zido por Bacon. E é ainda Koyré, em seus Estudos de história do pensamento
cientifico quem aponta para a relevância da obra de Galileu. Especialmente re-
gistra-a em ~'O de motu gravium de Galileu" quando comenta a audácia com
que Galileu introduziu as experiências imaginárias e as experiências de pensa-
mento como preferiu E. Mach, ou seja, experiências puramente pensadas, mas
efetivamente não realizadas e, na verdade, irrealizáveis para a época em que
foram descritas. De qualquer modo, elas se revelaram rigorosamente objetivas
conforme se comprovou quando da possibilidade de se converterem de expe-
riências imaginárias em experiências reais. Assinale-se que a idéia mesma de
uma experiência imaginária ou de pensamento constituiu-se numa forma eficaz
de se removerem os obstáculos represenlados pela impossibilidade técnica e his-
t6rica de se promoverem os experimentos reais.
Sobre as experiências imaginárias escreve Koyré: "As experiências ima-
ginárias que Mach chamará experiências de pensamento (gedankenexperimente)
e sobre as quais Popper acaba de nos chamar a atenção desempenharam um
papel muito importante na hist6ria do pensamento científico. Isso se compreende
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facilmente: as experiências reais são, freqüentemente, de difícil realização, pois
implicam, não menos freqüentemente, a necessidade de uma complexa e custosa
aparelhagem. Além disso, comportam, necessariamente, certo grau de impre-
cisão e, portanto, de incerteza. Com efeito, é impossível produzir uma superfí-
cie plana que seja verdadeiramente plana, ou uma superfície esférica que seja
realmente esférica. Não há e nem pode haver, in rerum natura, corpos per-
feitamente rígidos; tampouco, corpos perfeitamente elásticos. Não se pode efetuar
uma medida perfeitamente exata. A perfeição não pertence a este mundo. Cer-
tamente pode-se se aproximar dela, mas não se pode atingi-la. Entre o dado
empírico e o objeto teórico existe, e sempre existirá, uma distância que é im-
possível vencer" (Koyré, 1982, p. 209). E mais adiante: "A asserção galileana
da queda simultânea dos corpos graves, tal como nos foi apresentada, até aqui,
nos Discorsi, não repousa, como bem nos damos conta, senão em raciocínios
a priori e em experiências imaginárias. Até aqui jamais fomos colocados diante
de uma experiência real. E nenhum dos dados numéricos invocados por Galileu
exprimia medidas efetivamente executadas (Koyré, 1982, p. 233).
Vale assinalar que Husserl vislumbrou no método das experiências ima-
ginárias uma espécie de antecipação do método fenomenológico das variações
imaginárias que, por igual, permitem ir além do que podem permitir as va-
riações imaginárias que, por igual, permitem ir além do que podem permitir
as variações empiricamente produzidas. A referência a Husserl nesta altura jus-
tifica-se pelo fato mesmo de ele ter retomado o projeto de Descartes. Também
a Husserl toca o problema da certeza e do rigor. Também aqui a meta é a
busca de uma razão pura através da prática ou das práticas da redução. A meta
visada é a conquista da objetividade, ou seja, a produção de uma ciência rigo-
rosa, no sentido de uma sólida fundamentação. A diferença entre Descartes e
Husserl está no fato de que enquanto o primeiro se fixa na dúvida, Husserl
opta pela epokhé, ou seja, pela suspensão de julgamento que apenas implica
que se ponha o mundo entre parênteses. Na verdade, ele não poderá ser negado,
pois, de certo modo, beneficia-se pela própria apoditicidade da consciência en-
quanto consciência intencional, ou seja, enquanto consciência heteróclita, aberta
sobre o mundo, efetivamente definida como presença dele.
Convém assinalar que Husserl pretendeu ter ido além do projeto de Des-
cartes, ao admitir, ao lado da redução fenomenológica, a redução transcendental.
De fato, com o método da dúvida Descartes atinge o ego cogito, isto é, o sujeito
enquanto atividade de pensamento e como realidade psicológica e mundana.
Husserl ultrapassa esse limite através da redução transcendental que lhe é pe-
~uliar e que permite alcançar a consciência pura ou transcendental. Nessa cons-
ciência pura, as vivências perdem o inteiro caráter psicológico e existencial para
se converterem em simples relações do sujeito com o objeto enquanto mera-
mente significado. Precisamente essa atitude caracteriza a chamada posição trans-
cendental, radicalmente oposta à posição natural e ingênua, inicialmente des-
crita. Em função dela o ego puro apresenta-se como espectador desinteressado
ou imparcial, apto, por isso mesmo, a apreender tudo quanto se lhe possa apre-
sentar como fenômeno da consciência.
Husserl representa no presente século o filósofo que mais lutou pela pureza
e objetividade do conhecimento e pelo afastamento dos obstáculos que dificultam
a sua aquisição. Essa condição lhe é tributada inclusive por Kolakowski (1975).
"A fenomenologia - escreve Kolakowski - foi a maior e a mais séria ten-
tativa em nosso século de alcançar as fontes últimas do conhecimento." Precisa-

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mente em consequencia desse esforço é que sé converteu na grande fonte de
resistência ao psicologismo, ao sociologismo e ao historicismo. Nenhuma ciência
empírica, no seu modo de ver, se poderia converter "em fundamento para as
demais ciências empíricas. Conforme observou Merleau-Ponty (1964, p. 21), "o
homem que filosofa crê inutilmente que, quando pensa e afirma, não faz senão
expressar o contato mudo de seu pensamento com seu pensamento, procede
como se estivesse sem laços com as circunstâncias, porém quando o considera
do exterior, como faz o historiador da filosofia, aparece condicionado por causas
fisiol6gicas, psicol6gicas, sociais e hist6ricas. Seu pensamento aparece, por con-
seqüência, como um produto sem valor intrínseco e o que era aos olhos do
fil6sofo, pura adequação de seu pensamento, aparece aos olhos do crítico ex-
terior como fenômeno residual ou simples resultado".
Num século muito marcado pelo avanço do irracionalismo, a presença da
fenomenologia, retomando e ampliando o programa de Descartes, representa o
mais sério movimento de resistência a esse avanço e, conseqüentemente, a esse
obstáculo que se opõe a toda e qualquer possibilidade de conquista epistêmica.
Graças à fenomenologia, fica bastante clara a condição de obstáculo epistemo-
16gico que define não s6 o psicologismo, como o sociólogismo e o historicismo,
aos quais Husserl acrescenta o pr6prio logicismo, pois que, também este não
escapa à cerrada crítica ao se pretender posição que busca proporcionar a
aquisição da verdade sem qualquer intermediação da experiência contingente_
Sobre o psicologismo e sobre o sociologismo, resume Merleau-Ponty' (1964) o
pensamento de Husserl quando escreve: "Se o psicologismo nos diz que o fil6-
sofo e seu pensamento não são senão marionetes, mecanismos psicol6gicos ou
hist6ria exterior, podemos sempre responder-lhe que ocorre o mesmo com ele
e, assim, desacreditar sua pr6pria crítica. O psicologismo, se ao menos é conse-
qüente, toma-se um ceticismo com relação a si mesmo" (p. 22). E com relação
ao sociologismo, escreve ainda Merleau-Ponty (1964, p. 22): "À força de demons-
trar que todo nosso pensamento é expressão de uma situação social, cujas limi-
tações fazem também com que este pensamento não seja verdadeiro, alguém
se expõe a provar demasiado, a acreditar na idéia de que o sociologismo não
tem seu verdadeiro sentido em si mesmo, de onde pode resultar um irraciona-
lismo político e uma conduta política sem critério".
Como observa Merleau-Ponty, todo o esforço de Husserl se orientará na
direção de um método capaz de possibilitar a total remoção dos obstáculos ci-
tados (o psicologismo, o sociologismo, o historicismo) e este ele o consegue
através da intuição eidética ou Wesenschau. Na verdade, distingue Husserl entre
o ato que vivemos e aquilo que vivemos através dele e que, devidamente captado,
constitui-se numa essência, atemporal, a-hist6rica e com significado universal-
mente válido. A possibilidade da episteme estaria, assim, assegurada, como asse-
gurada a Husserl a condição de grande derrubador de barreiras ou obstáculos à
aquisição do conhecimento científico.

Abstract

Reviews some informations about the acquisition process of knowledge, a fun-


damental matter in the field of Cognitivism. These informations imply fertile
close estimate between Psychology and Epistemology as with History of
Sciences. Reflects a perspective that owes something to George Kelly whose

Obstáculos epistemol6gicos 47
theoretical contribution in cognitive area carne from elose estimate with Knowle-
dge Theory, as was well pointed ou by J. S. Bruner in h1S eritie eomments
developed around the so-called Personal Construct Theory.

Referências bibliográficas

Bachelard, G. La formation de L'esprit scientifique. Paris, Vrin, 1972.


Bacon, F. Novum Organum. In: --o Great Books of the Western World, 30. Encyclo-
paedia Britannica, The University of Chicago, 1952.
Kolakowski, Leszek. Husserl and the search for certitude. New Haven/London, Yale Uni-
versi ty Press, 1975.
Koyré, A. Considerações sobre Descartes. Lisboa, Presença, 1981.
--o Estudos de história do pensamento científico. Rio de Janeiro, Universidade de Bra-
sília/Forense Universitária, 1982.
Merleau-Ponty, M. La fenomenologia y las ciencias dei hombre. Buenos Aires, Nove, 1964.

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