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Motivação e Emoção: Bases Etológicas, Psico-

lógicas e Sociais

2009-2010

Rodrigo de Sá-Nogueira Saraiva

Texto em trabalho, na 7ª versão


Table of Contents
Introdução: O que significa motivação e que relação tem com o
conceito de emoção?.............................................................................8
. ......................................................................................................17
O estudo comparado das instruções para o comportamento adaptado18
A perspectiva etológica...................................................................18
O estudo das instruções para o comportamento adaptado.........20
Uexküll e os mundos próprios...............................................20
Lorenz e Tinbergen................................................................24
A Etologia objectivista.....................................................24
A extensão ao humano e as informações para o
comportamento adaptado......................................................26
Conclusões sobre Uexküll e a Etologia.....................................28
O estudo dos processos de relação com o ambiente e a Psicologia29
As características principais da proposta...................................30
Objectivos conceptuais e empíricos......................................30
As instruções para o comportamento adaptado nos humanos
...............................................................................................31
Algumas vantagens da perspectiva aqui defendida...............33
O tipo de conceitos explicativos................................................35
Conclusão.......................................................................................37
Perspectivas da Física e do significado...............................................39
Os sistemas teleonómicos...............................................................40
Metodologia....................................................................................42
Limites da introspecção.............................................................42
Introspecção provocada.............................................................45
Processos mais experimentais....................................................45
Conclusão.......................................................................................46
Capítulo 2: Processos pré-humanos e evolução da linguagem............47
O espaço de Representação (ER)....................................................47
Regras de relação no ER.................................................................50
Evolução das regras de representação no er...................................55
A questão da linguagem.............................................................56
Referencialidade....................................................................56
Pongídeos que falam.............................................................58
Primórdios da linguagem......................................................60
A reificação e as classes......................................................................65
Introdução.......................................................................................65
O que são as classes?......................................................................65
As categorias (classes) como deformadores cognitivos........66
Tipos de categorias (Classes)..........................................................68
Recortes do real..........................................................................68
Classes de experiência e reificação entre os Dinka,
segundo Lienhardt......................................................................70
As teorias partilhadas.................................................................73
Redes de significado..................................................................75
Como se transmite a cultura...........................................................77
A procura de razões ...................................................................77
As razões são socialmente dadas ..............................................81
Importância das pressões sociais ..............................................83
Conclusão sobre as reificações.......................................................85
Objectos, classes e relaçoes.................................................................86
Inteligência eidoloanafórica.......................................................88
Representação de polílitos no ER..............................................89
Espaços, objectos, substâncias, relações e transformações...89
As relações entre agentes...........................................................91
A dinâmica da acção..............................................................91
A lógica das relações e a linguagem.................................92
Importância das classes no ER...................................................93
Inteligência das relações sociais................................................94
Inteligência social..................................................................94
A «teoria da mente»...............................................................96
A identificação das emoções nos outros................................98
Auto-centração e compreensão do outro..........................99
A leitura do campo social....................................................101
Enquanto espectadores...................................................101
Como actores..................................................................102
Reconstruir os objectivos dos outros – a inteligência
maquiavélica........................................................................103
Funcionamento conjunto das duas inteligências......................103
Religião e estrutura social...................................................104
A tensão no ER.........................................................................105
A imposição de categorias e os cânones..............................110
O mundo do invisível...............................................................111
As forças e as energias e variantes do conceito de mana....112
Os mortos e os espíritos.......................................................114
A imortalidade da alma...................................................115
A lógica do espaço reificado: a sintaxe do imaginário...118
As consequências da reificação......................................118
O eu..........................................................................................119
As geografias da alma.........................................................120
A trídade d-e-r/c.......................................................................122
Espécie Bio-Psico-Social..............................................................123
Origem filogenética do Eu................................................................125
Introdução.....................................................................................125
O ciclo Funcional..........................................................................125
O ponto de referência interno..................................................126
Memória e o pri...................................................................128
O espaço de representação..................................................130
Resumindo...........................................................................131
Conclusão sobre os dados da Etologia Animal...................131
As novidades evolutivas em Homo..............................................132
A nossa espécie: redução de toda a experiência a categorias
.............................................................................................134
Memória episódica..............................................................135
O pri como origem do eu..............................................................136
Pri – sintaxe – Er......................................................................136
Gramáticas anafóricas.........................................................136
O eu e a linguagem..............................................................137
A descentração do pri..........................................................138
A apercepção do Eu.............................................................139
A pessoa social.........................................................................141
A persona como objecto do pri............................................141
Contrução social da persona................................................142
Ontologia e escatologia do Eu......................................................144
Conclusão.....................................................................................146
Referências...................................................................................147
Capítulo 3: Agressão Humana...........................................................154
As raízes da agressão: a competição por recursos........................154
Lutas e ritualização..................................................................157
Refutação do «bem da espécie» ..............................................160
A teoria dos jogos e a agressão................................................162
Submissão................................................................................166
Quando se esperam lutas de morte?.........................................167
Conclusões...............................................................................169
A motivação para a agressão.........................................................170
Dados da Etologia....................................................................170
Autonomia da motivação de agressão.................................171
Os «animais»............................................................................174
O carácter endógeno da agressão........................................174
A nossa espécie........................................................................176
A agressão como constituinte biológico..............................176
A agressão humana..............................................................179
Guerra, xenofobia e genocídio: Paralelos animais..............180
Especificidade humana........................................................182
Os dados da Psicologia Social........................................183
O controlo da agressão por critérios arbitrários..................188
A passagem de controlo das motivações
biológicas para a cultura......................................................190
A agressão e o espaço de representação.......................................191
Motivação de Sadismo.............................................................191
Motivação de posse e controlo.................................................194
Exemplos.............................................................................194
Contra-exemplo..............................................................195
Prazer de ter.........................................................................195
Prazer da autoria..................................................................195
Possuir uma pessoa..............................................................196
Exemplo..........................................................................197
Post-scriptum sobre o Hau Kwakiutl..................................198
A agressão e o espaço de representação............................................199
Motivação de Sadismo..................................................................199
Motivação de posse e controlo.....................................................201
Exemplos..................................................................................202
Contra-exemplo...................................................................203
Prazer de ter.............................................................................203
Prazer da autoria......................................................................203
Possuir uma pessoa..................................................................204
Exemplo...................................................................................205
Post-scriptum sobre o Hau Kwakiutl.......................................206
Eu e espaço de representação, espaço físico, agêngia e posse.207
Capítulo 4: Sexualidade.....................................................................210
O problema...................................................................................210
determinantes biológicos..............................................................210
Teoria subjacente......................................................................212
A Biologia do sexo humano.....................................................214
Espécie de tendência poligínica..........................................214
A maior agressividade entre machos...................................215
Diferenças de excitabilidade...............................................217
O imaginário erótico............................................................218
O que os machos e as fêmeas procuram no parceiro...............219
Especificidades da escolha das fêmeas....................................221
Especificidades da escolha dos machos...................................223
Diferenças no ciúme................................................................226
Infidelidades.............................................................................228
As armas de cada sexo e a organização social correspondente
.............................................................................................228
Conclusões sobre a perspectiva biológica................................229
Os dados da Antropologia.............................................................230
O que é o casamento?..............................................................231
Os casamentos são combinados pelos homens fortes de cada
cultura......................................................................................232
Exogamia.................................................................................232
Endogamia...............................................................................233
Irrelevância das escolhas do ponto de vista etológico.............234
A poliandria como exemplo do controlo pelos machos...........235
Tibete...................................................................................235
Os Lele do Congo................................................................236
Kadaras e Kangoros da Nigéria...........................................237
Os Guaiaqui do Amazonas..................................................237
O empréstimo de mulheres..................................................238
Conclusões sobre a poliandria.................................................238
O caso particular dos Naires do Malabar.................................239
As rupturas do social pelas motivações biológicas..................240
A fuga aos casamentos combinados e a infracção de tabus 240
A rejeição da espera ............................................................241
As infidelidades...................................................................241
O amor-paixão.....................................................................242
Conflito de instruções...................................................................242
O problema do bem do grupo..................................................243
Os organismos eussociais.........................................................244
O plano virtual dos humanos...................................................246
A redefinição dos grupos de parentesco...................................246
Vantagens em seguir as estratégias do grupo e conformismo
social........................................................................................247
Vantagens em prosseguir estratégias individuais.....................248
A reprogramação dos ciclos funcionais humanos....................250
Conclusão.....................................................................................252
A origem dos deuses e do sagrado.....................................................253
Objectivo.......................................................................................253
A trídade d-e-r/c............................................................................253
O Pressuposto de intenção............................................................254
o que se passa no pressuposto de intenção?.............................255
A distinção entre vivo e não vivo........................................255
O vivo e a intenção..............................................................255
O sagrado como categoria humana...............................................256
O medo e o enorme..................................................................257
A motivação do medo..........................................................258
O agente do medo................................................................261
O mistério............................................................................262
porque é que os cristais são mágicos?..........................................265
Nos chimpanzés.......................................................................266
O poder das formas Raras........................................................266
Os cristais no Acheulense........................................................267
As pressões selectivas para O Espaço de representação referencial. 270
Cooperação e mutualismo.............................................................272
As teorias biológicas do altruísmo................................................273
O altruísmo de parentesco........................................................273
O altruísmo recíproco..............................................................275
O altruísmo recíproco na nossa espécie. .................................277
Os superorganismos sociais.....................................................280
A «pseudo-eussocialidade» humana........................................282
A evolução da cooperação humana e as pressões selectivas para a
reificação.......................................................................................283
A extensão dos conceitos naturais............................................284
A redefinição cultural do parentesco e da cooperação.............285
A facilitação da cooperação pela reificação.............................286
A formação de grupos e a xenofobia........................................288
Memes, genes e conflito...............................................................292
As raízes do conflito indivíduo-grupo.....................................294
Conclusão.....................................................................................295
A condição humana: Consequências Psicologicas da Reprogramação
Cultural e da determinação genética.................................................297
Estrutura deste capítulo.................................................................297
Estátuas de Bronze, moldes de barro, originais de Cera...............297
Introdução ao problema...........................................................297
Consequências Psicológicas.....................................................298
Verdades..............................................................................298
Conformismo social por pressão do grupo..........................300
A construção do Eu.........................................................303
A interiorização da regra................................................303
Estátuas de bronze, moldes de barro, originais de cera.. 304
A Culpa e a frustração..............................................................307
conclusão......................................................................................308
Segundo texto: Ars vivendi – ler o Jornal.....................................308
Conclusão dos dois textos.............................................................314
INTRODUÇÃO: O QUE SIGNIFICA
MOTIVAÇÃO E QUE RELAÇÃO TEM COM O
CONCEITO DE EMOÇÃO?
Na palavra «motivação» está implícita a ideia, psicológica, de que fazemos
as coisas por um «motivo». «Motivo» significa causa, mas no sentido de
«causa interna», isto é, coisa que queremos ou que desejamos. Assim, faz sen-
tido dizer que o motivo pelo qual queremos ter um objecto – telemóvel
com acesso à internet, apartamento com uma sala de 80 m2, automóvel com
termómetro de temperatura exterior e segurança passiva, etc – é interno, é
um desejo, racional ou não. Assim sendo, o conceito de motivação assenta
na ideia de que há «desejos» que deveremos tentar explicar. Nesse sentido, o
conceito de motivação tem uma componente psicológica. É isso que explica
que a ideia de motivação esteja sempre ligada à de emoção: ambos são esta-
dos internos, estados psicológicos que nos fazem sentir qualquer coisa relati-
vamente a um objecto exterior. Desejamos um automóvel ou uma pessoa,
zangamo-nos com uma pessoa, sentimo-nos contentes porque aconteceu
alguma coisa: em todos os casos o que é comum é uma alteração do estado
psicológico que, de «neutro», ou passivo, passa a activo (motivação) ou reac-
tivo (emoção).
As maneiras de estudar a motivação e a emoção dependem integralmente
na maneira como vemos a psicologia. Se é verdade que ambos os conceitos
nos dirigem para estados psicológicos que deveriam ser explicados por
introspecção, todos sabemos que há uma corrente antiga mas ainda muito
influente que nos impede de nos sentirmos à vontade ao usar apenas a
introspecção e nos impele a procurar causas «palpáveis», «visíveis». Daí que se
procure identificar as motivações e emoções com base no comportamento
ou na fisiologia. Por exemplo, a motivação da sede pode ser explicada fisio-
logicamente; a emoção do medo pode ser identificada a partir de vários
indícios comportamentais. Contudo, nenhuma destas abordagens nos per-
mitem compreender o que realmente se sente quando se está com sede ou
quando se está com medo. Ou seja, as perspectivas mais «objectivistas» da
Psicologia não consideram aquilo que é mais óbvio nas noções de motivação
e de emoção: a fenomenologia desses estados motivacionais e emocionais. Esta
situação é bastante paradoxal – mas a Psicologia é uma disciplina paradoxal
– porque ao recusar a fenomenologia recusamos aquilo que é realmente psi-
cológico (o comportamento ou a fisiologia não são fenómenos psicológicos
puros, no sentido de que não são fenómenos que se exprimem em termos de
estados psicológicos; são, em vez disso, fenómenos fisiológicos ou etológi-
cos). Contudo, é verdade que há muita vantagem em saber porque é que
temos sede ou medo: saber qual é a fisiologia da sede ou a etologia do medo
ajuda-nos a compreender o porquê das coisas.
Os estudos fisiológicos são importantes porque nos permitem compreen-
der como modificar os fenómenos. Para dar um exemplo extremamente
simples, se quisermos que uma pessoa deixe de estar deprimida, a maneira
mais fácil seria saber qual é a fisiologia da depressão e modificar os processos
de maneira a garantir que a pessoa deixe de estar deprimida. Chamou-se a
isso, na psicologia, «o modelo médico», mas essa designação é completa-
mente enganadora: é apenas a perspectiva organicista, fisiológica e, se quise-
rem, positivista. Uma metáfora pode ajudar a compreender melhor que não
se trata de «modelo médico» mas apenas de modelo de redução às causas.
Imaginemos um automóvel que começa a travar mal. Se quisermos que
passe a travar bem, é necessário compreender como é que um automóvel
trava, isto é, qual é a mecânica (fisiologia) da travagem. Esta perspectiva é
perfeitamente racional: se há um problema numa máquina é necessário que
saibamos como a máquina está feita para podermos resolver o problema.
Portanto, e saindo agora da metáfora, a perspectiva fisiológica das motiva-
ções não é «médica», mas sim «mecânica» no sentido em que se pensa que as
pessoas são máquinas que funcionam de maneiras específicas, maneiras essas
que podem ser compreendidas e modificadas em caso de «avaria».
Alguns leitores dir-me-ão imediatamente que as pessoas não são máqui-
nas. Podem querer acreditar nisso, mas nesse caso são o quê? Esses leitores
podem aceitar que os corpos são máquinas, mas as nossas mentes são, dir-
-me-ão, entidas subjectivas. Sim, respondo eu fazendo de advogado do
diabo, mas isso quer dizer o quê? E, mais a propósito, em que é que isso
afecta a visão do homem como máquina? Porque, acrescento eu, para que
haja uma subjectividade é necessário um mecanismo que a produza. Mas,
responde o leitor, ainda que isso seja verdade, somos individualmente dife-
rentes, e aquilo que para mim é bonito ou bom depende da minha história
de vida e da minha «subjectividade». Sim, mas também as máquinas – os
automóveis – são todos diferentes (não há dois carros iguais, mesmo da
mesma marca e modelo) e isso deriva exactamente da história de vida deles;
a maneira como se usa o motor, a caixa de velocidades, os travões e mesmo
os pneus fazem que dois carros à partida muito semelhantes se tornem bas-
tante diferentes. O leitor avesso ao homem-máquina responde-me então
que o carro não tem subjectividade. Eu poderia continuar a fazer de advo-
gado do diabo e perguntar ao leitor como é que sabe, mas aceito este argu-
mento. Uma máquina não tem subjectividade: um automóvel não sente a
estrada nem sofre quando está cansado enquanto que os seres vivos comple-
xos (os vertebrados, pelo menos) sentem esse tipo de coisas. Mas, e retomo

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aqui a minha posição de advogado do diabo, o facto é que sentir ou sofrer só
é possível porque, tal como as máquinas, temos um maquinismo; a diferença
é que esse maquinismo nos informa de que as coisas não vão bem. E, sendo
de novo provocatório, mesmo num automóvel isso ocorre: quando os tra-
vões estão quentes demais, quando o óleo do motor aquece para lá de certo
limite, aparece no mostrador (os manómetros) do automóvel informação
sobre isso; e aparece sempre as rotações a que o motor está sujeito. Há, pois,
no automóvel, uma séria de dispositivos que dizem o que ele está a «sentir».
Não é a mesma coisa!, diz-me o leitor, ultrajado por ser comparado com um
automóvel, ainda que seja um Rolls-Royce. Mas eu concordo: não é a
mesma coisa.
Qual é a diferença? Voltamos então ao início: a diferença é que o automó-
vel anuncia o que se passa, enquanto que nós sentimos, e ao sentirmos a nossa
mente sofre uma alteração de estado. A diferença entre o automóvel e nós é,
então – voltamos ao início – a fenomenologia.
Mas poderá então o estudo do comportamento dar-nos uma resposta
mais clara do que a simples investigação da fisiologia? O leitor «psi», esperan-
çado, poder-me-á dizer: «Sim, porque o comportamento resulta da nossa
mente, da fenomenologia». Não, responderei eu, isso não é sequer verdade:
como veremos no decurso deste texto há muitos comportamentos que não
dependem em nada da nossa mente. Para dar um exemplo completamente
simples, os reflexos não dependem da nossa mente ou dos nossos sentimen-
tos. e, como veremos, muitas mais coisas são aparentemente independentes
da nossa escolha. Mas imaginemos que consideramos o comportamento
visto de fora, sem referência aos processos mentais. Isto dar-nos-á uma repre-
sentação mais fiel? O leitor psi aqui não diz nada: espera, porque não com-
preendeu muito bem o que significa «considerar o comportamento visto de
fora». Pois bem, significa tentarmos compreender quais as relações entre os
vários comportamentos e o ambiente. Por exemplo, se alguém nos falar com
um sorriso e com um determinado tom de voz tenderemos a achar essa pes-
soa simpática; se alguém nos falar de outra forma poderemos sentir-nos zan-
gados; se uma pessoa de sexo oposto tiver certas características poderemos
sentir-nos atraídos por essa pessoa; ou ainda, se alguém disser uma coisa
com muita segurança, tenderemos a acreditar nela, e assim por diante. Até
que ponto – é esta a pergunta – isso nos esclarece sobre as motivações? O
leitor psi espera, ainda, incerto sobre o que eu vou dizer a seguir. A resposta
pode desapontá-lo: não esclarece mais do que a análise fisiológica. O que a
análise do comportamento «visto de fora» – a perspectiva etológica e da psi-
cologia social – mostra é uma «fisiologia» (estudo das funções, ou das rela-
ções entre partes integradas numa resposta funcional) de mais alto nível. Sig-

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nifica isto que se trata de uma maneira de estabelecer relações funcionais
entre pessoas (ou animais), mas não nos esclarece nada sobre a subjectivi-
dade. O facto de sabermos que uma determinada interacção comportamen-
tal entre duas pessoas leva a um determinado resultado – agressão, sexo, etc.
– não é fundamentalmente diferente de saber que quando se carrega no
pedal do meio de um automóvel o automóvel anda mais devagar. Há uma
relação entre o que quer que pressione o pedal do meio e a velocidade do
automóvel tal como há uma relação entre insultar uma pessoa e essa pessoa
zangar-se. Há, contudo, uma diferença importante: é que as relações (rela-
ções funcionais, para ser mais exacto) não se estabelecem apenas dentro do
organismo (ou da máquina) mas entre dois organismos. A lógica das relações
entre organismos é diferente da lógica das relações dentro do organismo são
diferentes: a segunda é assegurada pelos sistemas de comunicação – hormo-
nas, impulsos eléctricos – das várias partes do corpo enquanto que as rela-
ções entre dois organismos são asseguradas por sinais comportamentais,
como a abertura pupilar, a posição do corpo, o sorriso, o tom com que se
fala e, também, o que se diz. Não se consegue inferir a lógica das relações
entre organismos a partir dos sistemas de comunicação entre organismos
porque os sistemas de comunicação não são os mesmos, mas esses sistemas
de comunicação entre organismos nem por isso são mais psicológicos: o
objectivo da etologia e da psicologia social é, precisamente, prever o com-
portamento de dois organismos em interacção sem haver referência à feno-
menologia de cada um desses organismos. Um exemplo extremo é o da
comunicação entre plantas: em certos casos, havendo uma praga que influ-
encie uma árvore, as outras árvores respondem com uma alteração de meta-
bolismo que as torna mais resistentes a essa praga; mas o processo, nas plan-
tas, é apenas mecânico – ninguém seriamente pode pensar que uma planta
tem mente – e não implica, sequer, representações daquilo a que a planta
responde. No mundo inanimado há relações do mesmo tipo: dois ímanes
atraem-se de determinada forma (não de uma forma qualquer), mas isso não
implica qualquer «mentalidade» dos ímanes.
Podemos então concluir que não chegámos nada mais perto da subjectivi-
dade, da fenomenologia das causas do comportamento, estudando-o a aprtir
de fora. Contudo, isso não tira à perspectiva etológica mérito e importância.
Por um lado é imprescindível conhecer as regras que regem o comporta-
mento entre organismos; por outro, embora não permita que se chegue
mais perto da subjectividade – do sentir – permite saber a que partes das coi-
sas é que os sujeitos reagem. Darei exemplos disso mais tarde, mas ficarei
apenas por um, neste momento.

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Se eu perguntar aos meus leitores qual das imagens é mais simpática, é
natural que me respondam que é a da esquerda. Porquê? Se o leitor for curi-
oso e tiver boa capacidade de dar atenção a detalhes verificará que a figura da
esquerda tem os olhos com pupilas mais dilatadas. Não é nada óbvio e con-
tudo a nossa apreciação das duas imagens é suficientemente diferente para
nos fazer achar que há uma diferença de simpatia, de disponibilidade, de ter-
nura (a imagem e os resultados são de Eckardt Hess, 1965).
Embora isto não nos informe em nada sobre a fenomenologia do leitor –
só sabemos que o leitor achou a imagem com pupilas grandes mais simpática
– sabemos a que é que ele responde. Isto não é nada pouco importante por-
que nos permite compreender quais são os estímulos em que o sujeito se
baseia para fazer os seus juízos. Procedendo desta maneira sistematicamente,
poderemos saber quais são os aspectos do ambiente que têm importância
para que os sujeitos façam os seus juízos subjectivos. Isto é, não sabemos
nada sobre a subjectividade do sujeito, mas sabemos quais são os aspectos
que influenciam essa subjectividade.
Contudo, para que esta perspectiva funcionasse, seria necessário que todo
o nosso comportamento fosse determinado por estímulos externos e não é
esse o caso. Até que ponto a perspectiva etológica permite avançar mais? Na
verdade permite. Os estudos com humanos são difíceis por razões éticas,
mas sabemos, dos animais, que aquilo que o organismo procura no ambiente
depende da activação interna do sujeito – ou, se quisermos, do seu estado
motivacional. Para compreender esta ideia seria necessário entrar mais profun-

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damente na teoria etológica, mas basta dizer o seguinte: o nosso comporta-
mento, tal como o dos animais, organiza-se em grupos. Por exemplo, pode-
mos estar com muita fome, caso em que seremos mais reactivos a estímulos
(cheiros, formas) provenientes de alimentos; podemos estar com muito
sono, caso em que nada nos interessará realmente a não ser deitar-nos e dor-
mir; podemos estar loucos de desejo, caso em que apenas daremos atenção a
estímulos provenientes de indivíduos do sexo oposto. Estes estados são
mutuamente inibitórios: mesmo que uma pessoa esteja com sono e com
fome, uma das duas motivações há-de triunfar sobre a outra. Se estivermos
interessados num filme na televisão e com fome, tenderemos a esperar pelo
fim do filme para comer. Isto traduz-se em termos dos comportamentos que
podemos esperar: se uma mulher e um homem estiverem muito interessados
sexualmente um no outro é pouco provável que parem a corte para comer.
E traduz-se também naquilo a que cada um deles dará atenção: é pouco pro-
vável que algum deles ligue muito ao que se passa a não ser ao outro.
Assim, a perspectiva etológica dá-nos aparentemente mais informações
sobre o que pode influenciar a fenomenologia do que a fisiologia interna.
Contudo, isso pode ser uma ilusão. Antecipando mais uma vez nos dados, os
apaixonados têm uma representação – uma fenomenologia – completa-
mente diferente daquilo que se vê de fora. Uma das características dos casais
apaixonados é a frequência e a intensidade do comportamento sexual. Na
verdade, mesmo em termos evolutivos, é para isso que serve o apaixona-
mento: para que as pessoas copulem muitas vezes de maneira a que tenham
descendência. Contudo, as pessoas realmente apaixonadas tendem a subva-
lorizar a importância do sexo na relação (procurar referências em Eibl-Eibes-
feldt, Human Ethology). Recordemos a imagem apresentada antes: olhando
para as duas imagens também não temos uma representação do que se passa:
apenas achamos que as imagens diferem em termos de simpatia.
E, além disso, como é que a etologia nos pode permitir compreender a
vida interior de uma pessoa? É impossível, porque a vida interior de uma
pessoa só pode ser sentida por cada uma e nunca se vê de fora. O que se vê
de fora são comportamentos e a nossa espécie tem uma maneira especial de
interpretar esses comportamentos em termos da inferência do estado mental
que lhes deu origem. Chama-se a isto, nas ciências do comportamento, «teo-
ria da mente», significando que nós como que «partimos do princípio» de
que os outros têm estados mentais. Veremos mais tarde que esta caracterís-
tica nos faz ver mente mesmo onde ela não existe (qualquer objecto aparen-
temente intencional é visto como tendo «desejos» e «motivos» – por exem-
plo, uma planta carnívora). Mas ainda que tenhamos essa característica, nem
por isso podemos dizer que vendo o comportamento dos outros podemos

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inferir, com segurança, o que os outros sentem: tudo quanto podemos é
reconstituir o que pensamos que eles sentem, e mesmo isso de maneira
muito simplificada: ao vermos uma pessoa a chorar não choramos necessari-
amente com ela porque não sentimos a tristeza que ela sente: apenas sabemos
que está triste e partimos do princípio de que ela está triste da mesma
maneira que nós já estivemos.
De modo que se é verdade que a etologia nos permite inferir nos outros
sentimentos e intenções semelhantes aos nossos, nem por isso nos permite
saber o que os outros realmente sentem e pensam. A única forma de o saber
consiste ou em explorar-nos a nós próprios ou em ouvir, traduzido por
palavras, gestos e expressões corporais, o que o outro nos diz que sente.
Aqui entramos num impasse: a linguagem não é boa a traduzir estados emo-
cionais complexos. Na Introdução do seu livro Pensar Vergílio Ferreira
torna completamente claro o problema: para nos exprimirmos de maneira a
ser compreendidos pelos outros temos apenas à nossa disposição a capaci-
dade de tentar, através da linguagem, evocar, em que nos ouve ou lê, a con-
figuração mental que queremos transmitir. Isto pode ser feito com metáfo-
ras, através do uso poético da linguagem, ou evocando situações que espera-
mos que nos outros desencadeiem a mesma emoção que queremos evocar.
Mas nunca teremos completa certeza de ter conseguido. A comunicação
através da linguagem é sempre falível e, não havendo um estudo psicológico
profundo sobre a retórica – a maneira de suscitar nos outros emoções e esta-
dos de espírito – não sabemos como isso é conseguido (há alguns estudos
sobre a retórica dos demagogos; ver referência em SNS, 1999).
Contudo, há teorias sobre o que se passa dentro da mente. Não me refiro
às teorias de processamento, como as da psicologia cognitiva, que não são
teorias fenomenológicas, mas sim à Psicologia Fenomenológica e, especial-
mente, à Psicanálise. A Psicologia fenomenológica tem raízes profundas no
pensamento filosófico ocidental mas não é fácil de traduzir para a ciência e
os dados que tem gerado não são, a meu ver, completamente convincentes (a
relação entre a teoria e as previsões é muito frouxa e as teorias não são real-
mente testadas). Outra corrente que tentou entrar efectivamente na feno-
menologia do sujeito pensante foi a Psicanálise. Contudo, a teoria psicanalí-
tica é demasiado interpretativa: como os dados de observação do sujeito
sobre si próprio se consideram pouco fiáveis, porque haveria sempre censura
e deformação dos conteúdos da consciência (não estou a afirmar que isso não
exista) por influência do superego e dos mecanismos de defesa, o que acaba
por ser aceite pelo psicanalista é a sua própria teoria do que realmente signi-
ficam os conteúdos de consciência do sujeito estudado. Este procedimento é
muito pouco empírico e muito pouco fiável.

15
Outra perspectiva que se interessou pela fenomenologia (na realidade
deriva precisamente de considerações fenomenológicas) é a Psicologia Ges-
talt. Neste caso, procura-se saber como é que a nossa mente representa as
situações em que nos encontramos. Geralmente refere-se sobretudo os estu-
dos sobre percepção, mas a Psicologia Gestalt interessou-se por muito mais
coisas: pelo papel das imagens mentais na resolução de problemas e, especifi-
camente, pela representação de campos motivacionais. Quem é mais conhe-
cido por esses estudos é Kurt Lewin (pronuncia-se curt’ lêvin’, e não cart’
lêuin’). Segundo ele havia um campo psicológico em que, por exemplo,
representamos duas coisas que queremos. Esse campo psicológico tende para
a resolução dos problemas que nele se representam. Assim, dizia Lewin que
o nosso comportamento depende de um espaço psicológico em que são
representados os desejos das pessoas; normalmente, há mais do que um
desejo ao mesmo tempo. Esses desejos levam as pessoas a tentar obter coisas
ou a resolver problemas. Um problema por resolver cria um espaço de tensão
até ser resolvido (como na teoria da boa forma da Gestalt, em que tendemos
a fechar psicologicamente uma forma geométrica incompleta). Veremos que
esta noção de campo psicológico será retomada aqui em termos da ideia de
Tensão do Espaço de Representação.
Contudo, os estudos de Lewin e da Psicologia Gestalt não tiveram real-
mente continuação na Psicologia moderna. Desse modo, encontramo-nos
sem uma boa base para compreender como funciona a fenomenologia da
motivação e da emoção. Se o leitor aceitar um conselho, a melhor fonte para
o conhecimento das emoções são os escritores do Séc. xx. Dois exemplos
que me parecem paradigmáticos são Fernando Pessoa, único na capacidade
de se auto-analisar e de compreender o que sentia, e o já mencionado Vergí-
lio Ferreira, que analisa os seus motivos através de uma mente poderosa e
desapiedada. Florbela Espanca dá-nos muitas intuições sobre o que é o amor.
Finalmente, embora este campo esteja muito mal investigado, a música é
uma das formas mais directas de chegar às emoções, mas nem toda a gente
lhe é sensível. Há alguns estudos (ver, por exemplo, SNS, 1997, e outras
Reff ) mas o campo está por estudar, talvez por falta de uma boa teoria de
como a movimento, tensão, intensidade e equilíbrio são representados na
música e como essa representação é sentida pelas pessoas.
Em suma, encontramo-nos na ausência de teorias que permitam gerar
dados inteligíveis sobre como as pessoas sentem. Nessa ausência apenas
podemos dar algumas pistas (não concordo com Wittgenstein quando diz
que quando não sabemos devemos ficar calados: quando não sabemos deve-
mos tentar perceber e para isso fazer hipóteses, por mais nebulosas que
sejam; uma hipótese vaga é melhor do que hipótese nenhuma).

16
.

17
O ESTUDO COMPARADO DAS INSTRUÇÕES
PARA O COMPORTAMENTO ADAPTADO

A PERSPECTIVA ETOLÓGICA

É comum definir a Etologia como a ciência do comportamento ocorrente


em contextos ecológicos. Essa afirmação é, parcialmente, correcta, no sen-
tido de que o objecto da Etologia é conhecer o comportamento seleccio-
nado de forma a permitir a adequação do organismo ao seu ambiente evolu-
tivo. A Etologia interessa-se, pois, pelos comportamentos típicos da espécie,
isto é, pelo comportamento que ocorre em contextos ecologicamente realis-
tas.
Contudo, reduzir a Etologia a isto é confiná-la a um ramo das curiosida-
des intelectuais: pretender conhecer o comportamento das outras espécies
revela uma curiosidade que não é muito diferente da vontade de conhecer
outros países, outras culturas ou realidades diferentes das do nosso quotidi-
ano. É inquestionável que a Etologia se presta facilmente a esse aspecto ape-
lativo: não teve Maetterlinck sucesso em gerações passadas precisamente
revelando «o maravilhoso mundo das formigas» e de outros artrópodes? Os
próprios Souvenirs enthomologiques de Fabre, sem dúvida o mais belo conjunto
de observações publicado sobre o comportamento animal, podem ser lidos
(e, sobretudo, foram escritos) nesse espírito: descobrir os maravilhosos mun-
dos que se desenrolam paralelamente ao nosso.
Mas, por mais belo que seja o empreendimento, tem de se conceder que,
do ponto de vista filosófico, o desafio não é muito grande. As empresas da
Psicologia ou da Física — compreender as leis do entendimento humano e a
estrutura do universo — parecem incomparavelmente mais amplas e nobres.
Mas defenderemos que a Etologia, mais do que um entretenimento para
espíritos curiosos, é uma matriz em que se podem inserir, de forma inte-
grada, várias disciplinas do estudo do comportamento. Nomeadamente,
defender-se-á a possibilidade de integrar dados da etologia animal propria-
mente dita, da sociobiologia, da Psicologia social e cognitiva e da Antropo-
logia cultural e evolutiva num todo coerente e que responda a uma curiosi-
dade intelectual mais sofisticada do que a do mero amante da natureza.
Para justificar esta pretensão é necessário reflectir sobre a génese e os prin-
cípios da Etologia. Fá-lo-ei, ainda que brevemente, a seguir.
O estudo das instruções para o comportamento adaptado

A palavra «etologia», no contexto em que se usa actualmente, está associ-


ada a Lorenz e a Tinbergen que a usaram, na sequência de Heinroth, para se
referir ao estudo comparado do comportamento animal (ver Singer, 1987).
Mas a disciplina científica a que a palavra corresponde é mais antiga; não me
refiro apenas aos trabalhos de Fabre e de outros naturalistas, mas muito par-
ticularmente a Jakob von Uexküll e à sua doutrina dos mundos próprios.
Lorenz reconhecia a dívida relativamente a Uexküll (ver Lorenz, 1958).
Contudo, superficialmente as empresas diferem num ponto fundamental, a
saber, que a Etologia lorenziana é evolucionista e a Biologia uexkülliana é
vitalista. A diferença pode parecer de monta: de facto, ao pretender-se com-
preender a adequação de um organismo ao seu ambiente, deveria ser funda-
mental estar de acordo quanto à origem dessa adequação.
Mas isso corresponde a esquecer que o próprio Darwin foi inicialmente
fascinado pela adequação das características dos organismos ao ambiente na
sua forma criacionista: através de Paley (ver Ruse, 1979 e Mayr, 1982), um
dos seus autores favoritos, Darwin desde cedo foi confrontado pela precisão
do trabalho do relojoeiro divino, para usar a metáfora do próprio Paley. Na
realidade, o argumento da adequação dos organismos ao ambiente não era,
inicialmente, um argumento dos evolucionistas, mas sim dos criacionistas.
De facto, é mais fácil acreditar que a extraordinária e complexa perfeição da
teia de uma aranha, os comportamentos parentais das vespas, ou os sistemas
sociais dos himenópteros são fruto de uma inteligência criadora do que de
um mero acumular de pequenas modificações ao acaso (ver, acerca da evolu-
ção do pensamento sobre a adaptação, Ruse, 1979). Era, aliás, precisamente
esse o argumento de Fabre (também ele um criacionista).
Assim, é igualmente possível estudar as adequações ao ambiente sob os
pressupostos de que são obra de um criador perfeito ou de que são fruto de
um processo dirigido apenas pela selecção natural. A tarefa do observador,
num e noutro caso, não difere.
Ou seja, estudar as relações entre os organismos e o seu meio não implica
nenhuma tomada de posição quanto à evolução.

Uexküll e os mundos próprios

É essa a razão de ter sido um convicto anti-darwinista que apresentou


mais claramente a importância das relações entre organismo e ambiente.
Uexküll (por exemplo, 1909/ 1921) defendeu, com base na constatação da

20
perfeição da maioria das adaptações dos organismos ao ambiente, que existia
um plano, de origem divina, no qual se inscreviam as relações entre as várias
espécies do mundo biológico.
Na sequência de Kant, descrevia o espaço e o tempo como entidades sub-
jectivas, e compreendeu que o «mundo exterior» é diferente para cada espé-
cie. Antecipando claramente as posições de um Glasersfeldt (1997) e de toda
a corrente sistémica e autopoiética, afirmava que os ambientes dos vários
organismos eram construídos por eles e eram irredutíveis fenoménicos, ou
«mundos-próprios».1 Por isso, a tarefa de tentar caracterizar funções como
«a» percepção era impossível, e os fisiologistas e psicofisiologistas tinham
embarcado num navio condenado. Esta posição é absolutamente inovadora
na Biologia, Fisiologia e Psicologia do seu tempo por denunciar a reificação
do mundo exterior em «mundo objectivo». Wundt, por exemplo, não
detectou esse erro e tentou, precisamente, caracterizar as funções psicológi-
cas humanas por referência aos parâmetros físicos de medida da matéria (no
que foi, aliás, criticado quer por William James quer pelos gestaltistas). Mas
Uexküll compreendeu claramente que o estudo objectivo dos mundos-pró-
prios não implicava a reificação do ambiente que, apesar de ser medido por
nós de maneira objectiva (ou pelo menos assim o pretendia o espírito cienti-
fista da época) não deixa de ser necessariamente subjectivo para cada ser
vivo. Esta não-correspondência entre o mundo da Física e o mundo da Bio-
logia era atestada, segundo Uexküll, pela doutrina da energia específica dos
nervos, de Johannes Müller, que mostrava que cada órgão sensorial traduz
(actualmente diríamos «transduz») a estimulação do mundo físico sempre
para a mesma modalidade. Assim, os mundos-próprios são, como já o com-
preendera claramente Kant, reconstruções dos a priori dos organismos, base-
ados numa incognoscível «Coisa em Si».
A constatação da irredutibilidade fenoménica do mundo-próprio não
conduz, em Uexküll, a uma queda no subjectivismo. Pelo contrário, preci-
samente por serem subjectivos, nunca poderemos experienciar outros mun-
dos-próprios além do nosso. Mas se não podemos experienciá-los podemos,
1
Há alguma dificuldade terminológica com a teoria de Uexküll. Sigo aqui em parte a termi nologia
consagrada em portugês, na sequência da boa tradução de Alberto Candeias de um texto da Bowohlts
Deutsche Enzyklopädie, Streifzuge durch die Umwelten von Tieren und Menschen. Assim, «Umwelt»,
que significa «o mundo circundante», ou, mais correntemente, ambiente, opõe-se em alemão a
«Umgebung», que não tem tradução em português senão, de novo, como «ambiente». A diferença, na
forma utilizada por Uexküll, é que «Umwelt» significa o ambiente percebido de cada sujeito, enquanto
que «Umgebung» implica tudo aquilo que rodeia o sujeito, independentemente de o afectar ou não.
Alberto Candeias traduziu «Umwelt» por «mundo-próprio», o que é uma expressão feliz. Poderia
haver confusão com outras expressões de Uexküll («Merkwelt», ou «espaço da percepção», mas como
não a utilizaremos aqui não há lugar para ambiguidade. Finalmente, o «Funktionskreis», traduzido
por Candeias como «ciclo-de-função», parece-me ser mais bem traduzido por «ciclo funcional».

21
contudo, caracterizá-los e de forma absolutamente objectiva. Ao fazê-lo
temos de compreender como um determinado aspecto do ambiente afecta
um determinado animal e, para isso, temos de mostrar que aspecto é selecci-
onado e que tipo de resposta lhe está acoplado.

O ciclo funcional segundo Uexküll

A esta relação ambientepercepçãorespostaambiente chamou Uexküll


o «ciclo funcional». Cada organismo teria ciclos funcionais que o ligariam a
aspectos diferentes do ambiente e que funcionariam como ligações a aspec-
tos relevantes desse ambiente. O ciclo funcional baseia-se na detecção de
sinais do ambiente. É disso exemplo a carraça adulta, que detecta mamíferos
apenas a partir do ácido butírico que todos emitem, e que tem, de entre a
enorme diversidade de sinais possíveis, apenas essa representação dos mamí-
feros. Mas essa representação, limitada embora, indica-nos qual o significado
que o mamífero tem para a carraça: o ácido butírico é o único traço que
identifica todos os mamíferos e todos os mamíferos têm o sangue quente de
que a carraça necessita para se alimentar. À carraça em nada interessa a mul-
tiplicidade dos mamíferos, porque o seu significado para a carraça é apenas o
de alimento, e nesse sentido todos os mamíferos são equivalentes.
A maior parte dos organismos possui vários ciclos-funcionais, que podem
agir independentemente uns dos outros ou em sequência (por exemplo, na
carraça há vários ciclos funcionais encadeados de maneira a permitir-lhe
subir para um ramo, soltar-se quando por baixo passa um mamífero, encon-
trar uma zona descoberta de pelos, inserir o seu aparelho bucal na pele e
sugar o sangue do mamífero). É o conjunto destes ciclos funcionais que
define o mundo-próprio de um organismo. Este pode ser simples ou com-

22
plexo, mas é através dele que o animal se relaciona com o seu ambiente
(«Umgebung»).
Essa relação entre o estímulo, o organismo e a resposta seria um processo
hermenêutico: o meio é interpretado em termos do significado que o orga-
nismo lhe detecta perceptivamente e lhe imprime accionalmente. Mesmo
que possamos não apreciar o uso do termo «significado», que me parece uma
projecção da interpretação do observador, é forçoso admitir que o processo
comportamental é, fundamentalmente, um processo de interpretação de
uma «coisa em si» para os interesses de sobrevivência de um organismo.
O projecto de investigação de Uexküll consiste, pois, na tentativa de elu-
cidação dos ciclos funcionais dos vários organismos. Esta elucidação condu-
zir-nos-ia a um dos pontos mais discutíveis da teoria de Uexküll: a ideia de
que há um «plano-mestre», de origem divina, em que todos os organismos se
situam e inter-relacionam. Esse aspecto foi nocivo à reputação de Uexküll,
mas, como justamente o notou Lorenz (1958) o projecto científico uexkülli-
ano em nada reflecte as suas preocupações finalistas. Pode-se especular,
como Lorenz o faz, nas razões contextuais que levaram Uexküll a enfatizar
uma posição anti-materialista que em nada se revela no seu trabalho (nome-
adamente o atomismo da fisiologia mecanicista sua contemporânea).2 Mas
interessar-nos-á, aqui, um outro aspecto.
Referimo-nos ao facto, já mencionado, de a constatação da perfeição de
relojoeiro com que os animais, sobretudo os invertebrados, se encontram
articulados com o seu ambiente ser, indiferentemente, um argumento dos
criacionistas ou dos híper-seleccionistas (que vêm a selecção natural como
um fabricante infalível de adaptações ao meio): em qualquer dos casos a pre-
visão é a mesma porque quer o relojoeiro divino quer a selecção natural pro-
duziriam adaptações perfeitas (Gould, 1980, 4.). Ora a unificação paradigmá-
tica que a teoria da selecção natural acabou por realizar na Biologia (sendo o
trabalho de Dobzahnski, Ayala, Stebbins e Valentine, 1977, normalmente
considerado como o marco dessa unificação) resolveu o problema que
Uexküll identificou, ao esclarecer a razão de ser dos determinismos funcio-
nais (isto é, o plano de Uexküll) que perpassam toda a natureza.
A teoria evolutiva fornece-nos, pois, a possibilidade de formular as per-
guntas já não apenas em termos de «comos» mas na forma, talvez mais fasci-
nante, dos «porquês». Mas enquanto que para Uexküll este porquê último
tinha de ser identificado com um criador incognoscível, para Lorenz passou
a ser simplesmente o processo de selecção natural.

2
Para Uexküll uma explicação evolutiva não era uma explicação mas apenas uma sequência. Ele
necessitava de causas mais fortes, e escolheu as causas formais, identificando-se com uma posição
morfogenética. É essa, pelo menos na aparência, a razão de ser da rejeição do darwinismo.

23
Lorenz e Tinbergen

Há dois momentos diferentes nas teorias dos fundadores da Etologia. O


primeiro corresponde a um esforço conjunto de Lorenz e Tinbergen, sob o
impulso principalmente teórico do austríaco e sob a sistematização e recolha
de dados empíricos sólidos do holandês. E um segundo momento, principal-
mente teórico, protagonizado por Lorenz e em que se verifica a expansão da
Etologia para uma teoria geral do conhecimento. Distingui-los-emos aqui
por clareza.

A Etologia objectivista
O ponto de partida de Lorenz foi diferente do de Uexküll, mas acabou
por se dirigir para o mesmo tipo de problemática, se bem que de forma bas-
tante diferente. Como antes dele Craig e Heinroth, Lorenz cedo se deu
conta de que certos comportamentos eram típicos da espécie da mesma
maneira que as características morfológicas o são. Assim, o comportamento
podia ser usado como um critério de classificação taxonómica dos organis-
mos. O comportamento era conceptualizado em termos de actos motores, que
tinham o mesmo estatuto que os elementos morfológicos. Heinroth cha-
mava-lhes «actos instintivos», e presumia-se que eram os elementos consti-
tuintes do instinto. A lista de todos os actos motores de um organismo seria
o seu «etograma», correspondendo estreitamente ao elenco dos vários órgãos
anatómicos. A analogia vai mais longe, porque um acto motor compõe-se
de vários elementos comportamentais, tal como um órgão, por exemplo, se
compõe de vários tecidos. Tinbergen (1942, 1951) levou mais longe a analo-
gia dos elementos motores como elementos morfológicos e apresentou «pla-
nos de estrutura» comportamentais, em que vários conjuntos de comporta-
mentos se organizavam de forma a cumprir funções amplas de ligação com o
ambiente, como, por exemplo, o acasalamento, a luta, a escolha de habitat, a
defesa de território, a construção do ninho, os cuidados parentais, e assim
por diante. De modo que, assim como, por exemplo, há vários ossos que se
integram de maneira a formar mãos, antebraços, braços e cintura escapular,
que, no conjunto, formam o membro anterior, por seu turno ligado à
coluna vertebral, também vários elementos comportamentais se organiza-
riam de maneira a desempenhar funções cada vez mais amplas. Seguindo a
analogia, ao conseguir identificar as várias ligações de todos os ossos uns
com os outros, obtém-se um plano de estrutura; se se identificar todas as
ligações dos comportamentos, ter-se-á o etograma e as funções que os vários
comportamentos desempenham. Tinbergen falava, já mais tarde (1969) da
importância que atribuía a essas «unidades causais-funcionais», e, até hoje, a
noção não é contestada.

24
Os actos motores, inicialmente concebidos por Lorenz como cadeias de
reflexos, foram subsequentemente compreendidos, sob a influência de Erich
von Holst, como unidades motivacionais (ver Lorenz, 1978). Assim, teriam
uma energia motivacional própria que os fazia «procurar» ser desencadeados
(noção de «comportamento apetitivo», de Craig, explorado em Lorenz, 1935
e 1937) e um «desencadeador» próprio, uma determinada parte do ambiente
a que reagiriam com uma resposta específica (o já referido «acto motor» ou,
como veio a ser conhecido, «padrão-fixo-de-acção»). Estes comportamentos,
dependentes de uma estimulação e de uma energia motivacional específicas,
são claramente herdados de Uexküll, e receberam inicialmente o nome de
das angeborene auslösende Schema: o «esquema inato desencadeador»; mas por
influência de Tinbergen, o nome porque foram conhecidos foi Innate relea-
sing mechanism, ou «mecanismos inatos desencadeadores». Haveria, assim,
uma hierarquia (Tinbergen, 1942) de mecanismos desencadeadores (Uexküll,
1921/ Lorenz, 1935), dotados de energia específica (Lorenz e Tinbergen,
1938), que assegurariam as coordenações sociais dos organismos (Lorenz,
1931, 1935) e as suas relações com o ambiente (Lorenz, 1937).
Como se vê, a influência de Uexküll é precoce e bastante forte: nos pri-
meiros textos de Lorenz, sobre a vida social dos corvídeos (1931, 1935) as
noções de ciclo funcional e de mundo-próprio encontram-se claramente
presentes a ponto de figurarem no título da sua obra mais importante deste
período: «O companheiro no mundo próprio das aves»;3 Lorenz mantinha,
aliás, boas relações com Uexküll, aparecendo referido nas obras do estoniano
como «um amigo zoólogo».
As diferenças principais entre Lorenz e Uexküll é que o primeiro elaborou
uma teoria da motivação (as energias motivacionais) que explicava as varia-
ções de limiar de activação dos mecanismos inatos desencadeadores e que
recusava a noção mística de «plano», que substituía pela «organização dos
instintos» que seria consequência da selecção natural. De modo que
enquanto a teoria de Uexküll foi sempre marginal, a de Lorenz e Tinbergen,
ao demarcar-se do vitalismo, cedo se tornou um paradigma para o estudo do
comportamento animal.
A teoria de Lorenz-Tinbergen explicava claramente muitos fenómenos
do comportamento animal (Huntingford, 1984), mas os conceitos que usava
eram inferidos do comportamento e não identificados no plano neuro-fisio-
lógico. Por exemplo, não foi senão muito mais tarde, com a neuro-etologia,
que se chegou a mostrar que os mecanismos desencadeadores existem, efec-
tivamente, como unidades anátomo-fisiológicas (ver revisão em Young,
1989, por exemplo).
3
«Der Kumpan im Umwelt des Vogels».

25
O facto de os conceitos serem, quase todos, hipotéticos foi criticado com
veemência (ver, por exemplo, Hinde, 1970), o que levou a uma tentativa de
os fundar cada vez mais na neurobiologia e na biologia evolutiva. De modo
que, progressivamente, a investigação etológica foi-se confundindo por um
lado com a investigação neurobiológica e, por outro, com a ecologia do
comportamento (a tentativa de identificação de funções que o comporta-
mento desempenhava em meios particulares). A especificidade da perspec-
tiva etológica foi-se mantendo, contudo, na abordagem do comportamento
humano.

A extensão ao humano e as informações para o comportamento


adaptado

A extensão do referencial etológico ao comportamento humano ocorre já


em Lorenz (1950). Aí apresenta algumas características humanas que lhe
pareciam poder ser associadas aos comportamentos determinados biologica-
mente. Além do seu famoso «esquema infantil», tece considerações sobre os
fenómenos de massas e a sua função evolutiva na defesa dos grupos, sobre as
bases biológicas da ética e sobre uma sua preocupação estranhamente nietzs-
chiana: a domesticação do homem.
Não nos interessará seguir o percurso de Lorenz em detalhe, tanto mais
que muitos dos seus artigos desta fase são mais ensaios do que propostas
científicas claras. Encontrar-se-á uma boa selecção dos seus escritos sobre
este tema em Lorenz (1978b).
As ideias de Lorenz influenciaram poderosamente Irenäus Eibl-Ebesfeldt
(ver Eibl-Eibesfeldt e Lorenz, 1974, in Lorenz, 1978b) que propôs um plano
de estudos que consistia em tentar encontrar, comparativamente, universais
de comportamento humano. Esse trabalho continua até ao presente (Eibl-
-Eibesfeldt, 1989, Eibl-Eibesfeldt e Salter, coords., 2001) e assenta, funda-
mentalmente, na comparação de semelhanças em várias culturas diferentes.
Se é verdade que em muitos casos, nomeadamente o estudo das expressões
faciais e das posturas corporais, o estudo parece metodologicamente inatacá-
vel, algumas das semelhanças em comportamentos mais variáveis podem
parecer criticáveis (ver Sá-Nogueira Saraiva no prelo a. e Berry, Poortinga,
Segall e Dasen, 1992).
Contudo, interessar-nos-á particularmente uma ideia de Lorenz que data
desta segunda fase da Etologia. Na sequência das críticas que lhe foram diri-
gidas por Lehrman (1953), Lorenz foi forçado a reconceptualizar a sua dis-
tinção entre comportamento inato e adquirido (expressa, por exemplo, em

26
Lorenz, 1937). O problema foi empolado por questões pessoais e políticas e
teve menos importância propriamente científica do que sociológica, como
mostraremos em capítulos posteriores; mas forçou Lorenz (1961 e 1965) a
uma redefinição conceptual que teve consequências importantes. Nomeada-
mente, Lorenz teve de reformular o problema do inato em termos da origem
da informação para o comportamento adaptado. Essa origem só pode ser de dois
tipos: genética ou ambiental; assim, Lorenz pretendeu estudar como as ins-
truções genéticas processavam a informação do ambiente. Este projecto con-
duziu-o naturalmente a perspectivar o comportamento como resultado de
instruções, podendo compreender sub-rotinas de auto-programação. Nesse
sentido, encontra-se esboçado o projecto, eminentemente uexkülliano, de
estabelecer uma epistemologia comparada e evolutiva (Campbell, 1974).
Esse trabalho encontra-se esboçado em 1961/ 1965, fortemente ampliado em
1973 e resumido em 1978a.
Contudo, Lorenz deu-se conta de que, na nossa espécie, havia uma outra
fonte de informação (1966, 1967 in 1983b). Naturalmente que se trata da cul-
tura, que Lorenz concebeu como uma forma de pseudo-especiação (na
sequência de E. Erikson) e como um complemento biológico obrigatório do
programa humano. As várias transmissões da cultura funcionariam como
extensões do fenótipo humano e como especializações muito mais rápidas
do que as possibilitadas pela evolução orgânica.
Lorenz compreendeu, também, que a evolução cultural pode entrar em
conflito com as nossas disposições filogeneticamente seleccionadas (trata-se
de um dos grandes temas de Lorenz; ver, por exemplo, a famosa Agressão, de
1963).4
Todas estas considerações levaram Lorenz a propor uma gnoseologia eto-
lógica, uma tentativa de identificação dos vários processos de conhecimento
que se encontram nos animais e no homem. A obra mais relevante neste
contexto é Por detrás do Espelho (1973), em que Lorenz tenta, explicitamente,
uma história natural do conhecimento, incluindo uma tipologia dos ganhos
de informação, dos animais mais simples à nossa espécie. O projecto é apre-
sentado de forma explícita como uma tentativa de dar à doutrina kantiana
uma fundamentação científica, em que os a priori seriam determinados pelo
conhecimento adquirido durante a evolução. Assim, o idealismo de Kant é
transposto para o plano material da ciência e os projectos de Uexküll e
Lorenz voltam a encontrar-se, na construção de uma epistemologia
4
O original tem um título diferente, que os editores das traduções retiraram sem dúvida por espí-
rito comercial: Das sogenannte Böse, «Aquilo a que se chama o mal». A diferença é subtil, porque
Lorenz pretende mostrar neste livro que a agressão é adaptativa (dada a competição e consequente
reprodução diferencial teria de sê-lo sempre) mas corre o risco de se descontrolar na nossa espécie
graças à evolução cultural que alterou a funcionalidade dos processos etológicos.

27
pan-específica de tipo neo-kantiano. O projecto de Lorenz é semelhante ao
de Uexküll, mas mais vasto, mais detalhado e não assenta na excêntrica teo-
ria pré-formista do autor estoniano mas na teoria da selecção natural.

Conclusões sobre Uexküll e a Etologia

Verifica-se então que a aplicação de um referencial neo-kantiano aos pro-


blemas do comportamento permite a tentativa de constituição de uma epis-
temologia biológica5 em que se tenta caracterizar o que cada organismo
«sabe» do mundo em que vive. Esta empresa é interessante em mais do que
um aspecto. Permite, em primeiro lugar, compreender o Homem como um
conhecedor entre outros, com semelhanças e diferenças.
De facto, ao tentar definir uma epistemologia evolutiva Lorenz pretendia
compreender, unificadamente, os processos conducentes à adaptação ao
ambiente nos vários mamíferos. Esta adaptação baseia-se, como em Kant e
em Uexküll, em a priori de conhecimento que estruturam a experiência de
forma a garantir a sobrevivência. Todas as funções cognitivas podem, assim,
ser compreendidas como adaptações evolutivas que reflectem o ambiente,
como qualquer estrutura morfológica. Como Uexküll afirmava, glosando
Goethe:

Se nos olhos não houvesse qualquer coisa de Sol,


Nunca eles poderiam vê-lo
(Goethe)

Mas, por outro lado,

Se no Sol não houvesse qualquer coisa de olho,


Em nenhum céu ele brilharia
(Uexküll, s/d)

Lorenz, por seu turno, afirmava:

[...] uma criatura [...] deve as suas qualidades e funções, incluindo [os]
poderes cognitivos mais elevados, à evolução, esse longuíssimo processo de
5
Esta epistemologia biológica tem evidentes semelhanças com a teoria de Piaget. Note-se que o
suíço o reconheceu explicitamente (por exemplo, 1967), embora os seus esforços explícitos no campo
da epistemologia biológica sejam, evidentemente, anteriores aos de Lorenz. O próprio Lorenz, numa
entrevista, reconheceu a semelhança entre as duas posições, que se deve considerar uma convergência,
dado que nenhum dos dois autores estava particularmente bem informado das actividades do outro.

28
génese no curso do qual todos os organismos têm de se defrontar com a rea-
lidade exterior e, como dizemos, «adaptar-se» a ela. Este processo é de
conhecimento, porque qualquer adaptação a uma circunstância particular da
realidade externa pressupõe que alguma informação sobre essa circunstância
tenha já sido absorvida.
Da mesma forma, o desenvolvimento anatómico, [isto é] a morfogénese,
produz no sistema orgânico imagens efectivas do mundo exterior. O movi-
mento do peixe e a forma das suas barbatanas reflecte as propriedades hidro-
dinâmicas da água, que possui essas propriedades independentemente de
haver barbatanas ou não.
(Lorenz, 1973, 6)

As duas posições são próximas (embora não iguais, dado que Uexküll
favorece uma harmonia universal em que o sol e o olho se encontram unidos
superiormente, enquanto que Lorenz admite a precedência do Sol e a subse-
quente adaptação do olho às suas propriedades) e geram projectos de investi-
gação iguais: o estudo dos processos de relação com o ambiente encarados
do ponto de vista das instruções que dirigem essa relação.

O ESTUDO DOS PROCESSOS DE RELAÇÃO


COM O AMBIENTE E A PSICOLOGIA

É esta ênfase na importância do estudo dos processos de relação com o


ambiente e no facto de essa adequação implicar conhecimento a priori sobre
o meio que é fundamentalmente heurística. De facto, leva à tentativa de
decifração dessas formas de conhecimento nos vários organismos que se pre-
tendam estudar e, nesse sentido, leva, directamente, a uma Psicologia com-
parada e evolutiva, bastante diferente das tradições norte-americanas com o
mesmo nome (Maier e Schneirla, 1935 e Buss, 1999). Como já defendi nou-
tro local (Sá-Nogueira Saraiva, 1995), o programa Uexküll-Lorenz desem-
boca, directamente, na tentativa de caracterizar as imagens do mundo que os
vários organismos possuem, pelo que esta perspectiva pode conduzir a uma
infra-estrutura conceptual integrada da Psicologia, se admitirmos que a Psi-
cologia pretende compreender as funções que caracterizam o conhecimento
e a acção.
Essas várias funções são desempenhadas por processos fisiológicos muito
diferentes entre si, e pode estabelecer-se uma tipologia funcional bastante
complexa. Mas ao caracterizar essa diversidade, poderemos ter uma repre-
sentação integrada da forma como o mundo vivo se relaciona com a coisa

29
em si. É, pois, para uma Psicologia neo-kantiana e evolutiva que Uexküll
sempre defendeu e que Lorenz acabou por promover, que nos dirigimos.

As características principais da proposta

Apresentarei aqui as linhas gerais que caracterizam a proposta que


defendo.

Objectivos conceptuais e empíricos

Os objectivos conceptuais encontram-se implícitos na discussão anterior,


mas explicitá-los-emos, ainda que sinteticamente, aqui.
O objectivo principal consiste em analisar o comportamento e os proces-
sos com ele associados como forma de ligação com o ambiente. Essa ligação
depende, naturalmente, da espécie e do ambiente. Assim, o comportamento
tem de ser descrito em termos dos elementos comportamentais observados e
das funções que desempenha relativamente a um ambiente específico. Essa
fase implica a descrição cuidada do comportamento ocorrendo em contex-
tos naturais. Assim compreende-se a organização do comportamento e a sua
relação com a especificidade de determinado ambiente. Em muitos casos,
esta identificação da relação entre o comportamento e o ambiente é evidente
– a função dos ninhos das aves, a predação, o acasalamento.6 Mas já não são
tão evidentes, nem se conseguem estudar apenas por observação naturalista,
as instruções perceptivas, accionais, e respectivas flutuações motivacionais
que estão na origem desse tipo de relação com o ambiente. Para isso há que
trabalhar experimentalmente.
Encontrar-se-ão vários exemplos deste tipo de empreendimento nos capí-
tulos subsequentes, pelo que me permito não dar exemplos concretos neste
capítulo. Bastará agora dizer que há, necessariamente, selectividade percep-
tiva, fenómenos que conduzem a determinado tipo de estímulos («procura»
e fenómenos associados), respostas específicas a esses estímulos e, em muitos
casos, detecção de sinais provenientes do resultado do comportamento sobre
determinado aspecto do ambiente e nova resposta a esses sinais, pelo que o
comportamento se pode organizar em cadeias de programas bastante exten-

6
Sublinhe-se que a função geral é evidente, mas que a organização específica dos vários elementos
comportamentais não o é, como o demonstram amplamente os estudos da Ecologia do comporta-
mento. Mas esse aspecto não é agora relevante para a presente discussão.

30
sas. A investigação destas instruções tem de ser feita experimentalmente,
usando estímulos que variam nos aspectos relevantes à reacção do animal.
Em muitos casos, e particularmente nos vertebrados, há instruções especí-
ficas de ganho de informação. Já foi salientado por Lorenz o truísmo de que
para que o animal aprenda tem de ter regras que especifiquem essa aprendi-
zagem. É, então, necessário desvendar essas regras e esclarecer a forma como
se relacionam com o resto do conjunto de instruções para o comportamento
adaptado. Os métodos do condicionamento são particularmente úteis neste
contexto, como se verá adiante.
Além de regras de ganho de informação encontram-se vários casos de
programas que se reescrevem a si próprios em conformidade com o tipo de
informação recolhida do ambiente. Também aqui temos de tentar compre-
ender o programa e a sua lógica e a forma como se relaciona com outras ins-
truções. A metodologia é semelhante às anteriores.
Como se depreende destes vários casos, poder-se-ia esperar a existência de
grupos de instruções que caracterizassem diferentes taxa e variassem com a
complexidade do sistema nervoso dos diferentes organismos. Efectivamente
assim parece ocorrer e o estudo deste tipo de relações é o segundo grande
objectivo desta perspectiva: estabelecer tipologias de instruções e tentar
relacioná-las com grandes grupos evolutivos. Apresentarei uma primeira
tentativa, ainda grosseira, de estabelecer tal tipo de relação neste trabalho.
Assim, e embora não pretenda antecipar a discussão, há grandes diferenças
no tipo de instruções particularmente no que diz respeito à construção de
uma imagem do ambiente. Há imagens do ambiente que, como nas plantas,
são quase completamente mecânicas, outras que são mediadas por sinais,
outras ainda por símbolos. A nossa espécie apresenta, precisamente, a especi-
ficidade de estabelecer um mapa de relações meramente simbólicas que
duplica, efectivamente, grandes sectores do ambiente (como já o notou Dea-
con, 1997). Trataremos dessa questão a seguir.

As instruções para o comportamento adaptado nos humanos

É, precisamente, esta ênfase nas instruções para o comportamento adap-


tado que nos permitirá compreender de forma integrada o comportamento
de humanos e animais. De facto, se pretendemos decifrar os programas de
comportamento, teremos de compreender que o homem apresenta um novo
sistema de instruções. Este sistema é a cultura, como os antropólogos sempre
afirmaram, e temos de compreender de que forma se integra com o sistema
de instruções etológicas. Nomeadamente, é necessário compreender como é

31
que as instruções biológicas codificam o aparecimento das instruções cultu-
rais e de que forma se relacionam os dois conjuntos de instruções. Este pro-
blema, que está na fonte da maior parte da confusão e dos conflitos entre
antropólogos e etólogos (Sahlins, 1976, Eibl-Eibesfeldt, 1989), que se acusam
mutuamente de incompreensão da especificidade humana, deixa de existir
se se compreender que instruções presidem ao plano humano. Embora o
assunto seja tratado com detalhe nos últimos capítulos do livro, por uma
questão de clareza pode ser vantajoso apresentar aqui um esquema da rela-
ção entre instruções etológicas e culturais.
Como vimos, na nossa espécie confrontam-se dois conjuntos diferentes
de instruções para o comportamento adaptado. Um deles corresponde ao
sistema etológico e é semelhante, pelo menos em natureza, ao dos outros
mamíferos. O outro corresponde às soluções encontradas pela cultura no
confronto das sociedades com o meio.
Ora ocorre que os dois conjuntos de instruções, etológico e cultural, têm
funções e processos de selecção diferentes. O conjunto etológico segue uma
lógica darwiniana, de selecção individual. Significa isto que a selecção se faz
no nível do indivíduo e que os traços etológicos que ele apresenta lhe trazem
vantagem adaptativa directa. O conjunto cultural tem uma forma de selec-
ção diferente, já que os traços culturais são seleccionados independente-
mente dos indivíduos. De facto, um traço cultural não se manifesta num
indivíduo mas numa população; de resto, estes «memes» (Dawkins, 1976)
não são, geralmente, compreendidos integralmente por cada indivíduo e a
sua funcionalidade só existe no contexto de uma sociedade. Desse modo, a
selecção cultural ocorre acima do nível do indivíduo. Assim, cada cultura testa
«memes» no confronto com os meios em que se encontra; esses memes são
apenas instruções de comportamento, como estruturas sociais ou crenças
religiosas particulares. Mas sofrem uma selecção, diferente é certo da natu-
ral, em confronto com o ambiente (Mundinger, 1981) de tal forma que cada
cultura tende a apresentar soluções adequadas ao meio em que se encontra
(Moran, 2000). E a maioria, quase a totalidade, das soluções apresentadas
pela cultura radicam no comportamento cooperativo, como desde Durk-
heim foi compreendido.
Nesse sentido, as instruções da cultura trazem aos indivíduos vantagens
na medida em que se integrem no grupo cooperativo. Esse processo impli-
cou mudanças muito complexas do ponto de vista psicológico no sentido de
o sujeito ser facilmente reprogramável pela cultura. De facto, como as cultu-
ras trazem aos indivíduos que nelas se integram vantagens superiores às des-
vantagens, esperar-se-ia uma forte tendência para aceitar as propostas sociais

32
como absolutos. Grande parte da investigação em Antropologia e em Psico-
logia social corrobora esse facto (ver revisão nos capítulos seguintes).
Contudo, mesmo que os indivíduos sofram pressões selectivas que insti-
tuem instruções de reprogramação cultural, subsiste sempre uma vantagem
selectiva para os comportamentos puramente egoístas que escapem ao con-
trolo social. Dado que a cultura funciona precisamente na medida em que é
cooperativa, estabelece-se uma clivagem fundamental na nossa espécie entre
os dois conjuntos de instruções. Assim sendo, há um conflito intrínseco
entre o Homem etológico e o Homem cultural. É nesta zona que se vão
activar as dinâmicas de significado postas em evidência pela Psicologia nar-
rativa e a que farei referência mais explícita nos capítulos finais.

Algumas vantagens da perspectiva aqui defendida

Esta posição tem várias características que a recomendam. São elas a supe-
ração de uma dicotomia mente-corpo; a recusa quer de uma centração nos
processos internos sem qualquer validade ecológica quer das perspectivas
radicalmente externalistas; e, finalmente, a solução do problema da escolha
de critérios para as nossas categorias científicas. Trataremos os vários pontos
a seguir.
A perspectiva aqui defendida centra-se nas relações estabelecidas entre o
organismo e o ambiente a que esse organismo se encontra adaptado evoluti-
vamente. Nesse sentido, pretende estudar a organização do comporta-
mento, concebido como um um conjunto de relações que ligam meio e
organismo. Trata-se, pois, de uma perspectiva comportamental e não menta-
lista. Contudo, a centração no comportamento não conduz a qualquer
forma de behaviorismo, dado que, ao caracterizar as instruções para o com-
portamento, identificamos, ao mesmo tempo, o tipo de funções que ocorre
dentro do organismo: assim, ao estudar a relação com o ambiente estuda-se,
necessariamente, a representação que o organismo tem desse ambiente.
Contudo, essa representação não é necessariamente concebida como
«mental», «psicológica» ou, sequer, «cognitiva», na medida em que muitos
dos sistemas de ligação do organismo ao ambiente não implicam qualquer
actividade representacional consciente. Nomeadamente, e como como
vimos já e trataremos com detalhe adiante, há representações do ambiente
totalmente comportamentais. No limite, pode-se falar de «representação do
ambiente» numa planta, na medida que as suas estruturas físicas e organiza-
ções fisiológicas antecipam factores do ambiente: por exemplo, a clorofila
das plantas antecipa, ou pressupõe, a existência de luz; as raízes e o seu tipo

33
de crescimento antecipam ou pressupõem a existência de minerais dissolvi-
dos. Nesse sentido, há uma «representação», no sentido de que um orga-
nismo é sempre uma interpretação do seu ambiente, perspectivado do ponto
de vista da reprodução e diferenciação.
As interpretações, podem então ser estritamente fisiológicas, como nas
plantas, comportamentais como em algumas plantas e a maior parte dos ani-
mais, propriamente representacionais, quando, como em vários animais
(aves e mamíferos), implicam uma duplicação do ambiente num «mapa»
interior, ou reificada quando, como na nossa espécie, há uma duplicação do
ambiente em termos de conceitos reificados (geralmente de tipo linguístico).
Portanto, o problema «mente-corpo», ou «psicologia-biologia» não se
coloca: todas as «representações» do ambiente são dependentes do corpo e
do seu conhecimento sobre o ambiente; este conhecimento pode ou não tra-
duzir-se em imagens mentais, mas essas imagens são meras funções corpo-
rais, não havendo qualquer dissociação entre os dois domínios.
Em consequência, esta perspectiva leva-nos a evitar a arbitrariedade de
centrar o estudo dos processos que controlam o comportamento no plano
exclusivamente interno. De facto, dado que o comportamento e as funções
psicológicas que lhe são concomitantes têm uma função de relação com o
ambiente, é necessário referir esse comportamento e esses processos psicoló-
gicos aos ambientes concretos em que cada espécie evoluiu. Nesse sentido,
evita-se a falta de validade ecológica de tantos estudos da Psicologia (ver Sá-
-Nogueira Saraiva e Fiadeiro, 1989, e referências aí citadas). É neste aspecto
que a noção de «comportamento naturalmente ocorrente é mais relevante»:
não significa que se estudem apenas animais em condições naturais, mas
implica que os comportamentos que se estudam tenham validade ecológica,
quer na nossa espécie quer nas outras. Isto é, os comportamentos estudados
são os comportamentos que asseguram a relação com o ambiente.
É este aspecto que sugere solução para o problema das «classes naturais»
(Marler, 1982). Este problema consiste na dificuldade em fazer coincidir os
recortes que fazemos da realidade com agrupamentos significativos nessa
mesma realidade. Se nos não colocarmos no ponto de vista construcionista
radical e admitirmos o realismo hipotético, isto é, a plausibilidade de exis-
tência de uma realidade exterior, no pressuposto da qual assenta a ciência, é
necessário saber quão adequados à realidade são os nossos conceitos. A Psi-
cologia animal, historicamente, debruçou-se sobre temas de pequena rele-
vância para os vários organismos estudados e de grande relevância para as
visões do homem dos investigadores. Assim, as noções de número, de tempo
e mesmo de aprendizagem são extremamente relevantes do ponto de vista
do investigador, mas podem não ter qualquer relevância nos organismos

34
estudados. Sublinho que não pretendo condenar esses estudos que são, evi-
dentemente, legítimos e interessantes do ponto de vista comparativo. Pre-
tendo apenas ressalvar que, por exemplo, investigar a aprendizagem em pro-
tozoários é relevante do ponto de vista do conhecimento que podemos
adquirir da aprendizagem mas não o é do ponto de vista da caracterização
do plano de relações com o ambiente dos próprios protozoários (ver capítu-
los subsequentes). Na mesma linha de argumentação, pode-se defender que
o conceito de «aprendizagem», definido operativamente em termos do que
se passa dentro de uma caixa de Skinner, não tem propriamente significado a
não ser que saibamos interpretar esses dados relativamente às condições
ambientais em que podem ter evoluído (como veremos em detalhe). É nesse
sentido que foi possível mostrar que o condicionamento «operante» que se
demonstrou, durante décadas, em pombos, era apenas condicionamento
clássico; e que as diferenças entre condicionamento clássico e operante são
muito ténues (ver Moore, 1973). Da mesma maneira, o conceito de «com-
portamento exploratório» (Berlyne, 1960), é confuso porque definido a par-
tir de funções que se lhe atribuem sem se ter observado se correspondia a
qualquer realidade dos animais nos seus ambientes de evolução. Mas, ao
centrarmos a análise nos comportamentos que, depois de observação, sabe-
mos, efectivamente, ter funções de relação com o ambiente, podemos cons-
truir conceitos com contrapartida nas funções biológicas.
Ou seja, delimitamos os comportamentos em termos das funções adapta-
tivas que eles desempenham e, do mesmo modo, usamos a evolução, res-
ponsável em última análise pela estrutura do comportamento, como guia
para descrever essa estrutura. Isto é, temos como guia para a delimitação dos
conceitos comportamentais e psicológicos a acção dos factores que estão na
origem evolutiva do comportamento e da psicologia. Isto evita arbitrarieda-
des e fornece uma base segura para a análise. Fazemos, assim, uma delimita-
ção funcional dos problemas que pretendemos estudar, delimitação essa que
é guiada pelos factores responsáveis pelas funções e estrutura do objecto de
estudo.

O tipo de conceitos explicativos

É ainda necessário definir o tipo de explicação que aqui se propõe. Efecti-


vamente, na Etologia clássica nunca foi muito claro qual era o nível explica-
tivo procurado. O famoso artigo de Tinbergen (1963) sobre os objectivos e
métodos da Etologia é particularmente responsável pela extrema confusão
conceptual que se gerou. Necessário é dizer que uma famosa conferência de

35
Lorenz (1963) sobre o seu credo científico também nada faz para desvanecer
essa confusão.7 Não me deterei aqui nas várias formas de explicação do com-
portamento de que dispõe a Biologia. Isso será tratado adiante e, em qual-
quer caso, não é agora relevante. É suficiente dizer que tradicionalmente se
consideram quatro planos de explicação do comportamento: o plano causal
próximo, que tem que ver com as causas neuro-fisiológicas do comporta-
mento; a perspectiva adaptativa, em que se pretende pôr em evidência as
pressões selectivas responsáveis pelo comportamento; a perspectiva do
desenvolvimento, em que nos preocupamos com a ontogénese do compor-
tamento; e a perspectiva filogenética, em que nos interessamos pela evolu-
ção do comportamento.
A ambiguidade surge porque em nenhum momento se considera como
explicação a perspectiva propriamente etológica de desvendar o conjunto de
instruções para o comportamento adaptado e o seu resultado psico-compor-
tamental. A razão disso vem, sem dúvida, da crença na hierarquia das ciên-
cias, de que se notam resquícios em Lorenz (1963), apesar de o austríaco ter
compreendido que o comportamento tem propriedades que não são redutí-
veis às propriedades das estruturas nervosas que o subtendem.
Assim, foi sempre pouco claro o que constitui uma explicação na Etolo-
gia: a tentação da redução neuro-fisiológica foi sempre tão forte que, pre-
sentemente, e como já foi referido acima, a Etologia causal se foi, progressi-
vamente, confundindo com a neuro-etologia.
Mas tomaremos uma posição muito diferente. Defenderemos, como Bae-
rends (1970, 1976), que o objectivo da Etologia é a caracterização da organi-
zação do comportamento (incluindo percepção, processamento e respostas):

... o etólogo pode usar o conhecimento comum de que a caixa preta con-
tém receptores e efectores, mas, no resto, deveria refrear qualquer tentação
de ser guiado na sua análise pelo conhecimento que tem dos mecanismos
fisiológicos ...
Baerends, 1970

Claro que as teorias podem ser formuladas de forma que possam ser utili-
zadas depois pelos fisiologistas na busca dos mecanismos que suportam a
organização do comportamento, mas o objectivo é a identificação de regras
– as instruções – e não a investigação do seu suporte neuro-fisiológico.
Esta posição é central à presente proposta e pede uma justificação. De
facto, e como vimos, a grande novidade conceptual da Etologia consiste em

7
Eu próprio segui acriticamente a perspectiva de Tinbergen, embora pretendendo completá-la,
num artigo de 1987 sobre a perspectivação biológica do comportamento.

36
ter sido capaz de mostrar como os vários comportamentos se articulam em
todos funcionais que asseguram a ligação harmónica do organismo com o
seu meio. Ora, para conseguir explicar essa ligação, o etólogo necessita de
caracterizar a organização dos vários comportamentos, a sua forma especí-
fica de relação com o ambiente e com os outros comportamentos, a probabi-
lidade de, depois de ser activado determinado comportamento, ser activado
um outro (probabilidade essa que não é sempre igual uma vez que depende
de qual motivação se encontra activada num determinado momento), e
assim por diante. Claro que, no espírito dos fundadores da Etologia, encon-
trava-se presente a ideia de que «explicação» implica redução ao nível imedi-
atamente inferior. Mas, mesmo aceitando essa ideia (o que não é necessário:
ver, por exemplo, as formulações da teoria geral dos sistemas, de Ludwig
von Bertalanffy, 1973), deve-se ressalvar o seguinte.
Aquilo que um etólogo explica não é um comportamento (por exemplo,
o acto motor de mastigar) mas, como Uexküll o compreendeu melhor do
que ninguém, a relação adaptada do organismo ao meio através do comportamento.
Ora, para explicar essa adaptação, é necessário especificar claramente as ins-
truções para o comportamento que resulta nessa adaptação e que liga o orga-
nismo a um ambiente específico. São essas instruções as responsáveis pelo
fenómeno que inicialmente chamou a atenção dos etólogos. Nesse sentido,
o organismo deve ser concebido como um robot que é programado de
determinada forma, e o etólogo tem de identificar o programa. Claro que
depois pode-se estudar a implementação estrutural desse programa, mas é
preciso tornar bem claro que esse é outro problema, efectivamente da alçada da
neuro-etologia e da psico-fisiologia.
Portanto, e em conclusão, o que pretenderemos mostrar neste trabalho
são os diferentes sistemas de instruções, independentemente do seu suporte fisi-
ológico.

CONCLUSÃO

A referência que fizemos à existência de dois códigos de instruções para o


comportamento, um etológico e outro cultural (pag. 31 et seq.) tipifica as
vantagens da perspectiva etológica que vemos agora transcender a visão
reducionista das «curiosidades do mundo maravilhoso» dos programas de
vida selvagem. Precisamente ao fazer-nos olhar para as características das
instruções de relação com o meio, força-nos a compreender que não são
apenas as instruções etológicas que existem na nossa espécie. Ou seja, para-
doxalmente, é a utilização da perspectiva etológica que nos leva a compre-

37
ender que o Homem é uma espécie etológica e cultural, e que os dois mun-
dos entram, frequentemente, em conflito.
Enquanto que a maior parte das teorias funciona em circuito-fechado, no
mundo limitado do seu paradigma, não é pequeno o mérito do referencial
etológico em chamar a atenção para factores não-biológicos e sugerir o
estudo de regras de relação cultural com o ambiente.
Neste sentido, e retomando a problemática do início deste capítulo, con-
clui-se que o mérito da perspectiva etológica é permitir transcender-se a si
própria. De facto, o debate Biologia/ Cultura encontra na Etologia uma res-
posta não etologizante: há instruções genéticas que levam a mecanismos psi-
cológicos que determinam que o controlo do comportamento seja parcial-
mente passado para a cultura, o que tem implicações para as questões funda-
mentais do conflito entre o indivíduo e a sociedade (com os problemas asso-
ciados da liberdade individual e dos conflitos éticos).
A perspectiva etológica apresenta-se, pois, como uma perspectiva sinté-
tica de pensar sobre o comportamento que implica a união das áreas da Eto-
logia propriamente dita, da Psicologia (social, da moral, psicoterapias) e da
Antropologia cultural. É certo que se poderá dizer que praticamente con-
fundo a teoria etológica com um referencial neo-kantiano à la Cassirer. Não
enjeito essa interpretação. Mas foi esse, desde o início, o objectivo de Jakob
von Uexküll. Cassirer (1960/ 1995) compreendeu-o bem, começando o seu
Ensaio sobre o Homem com uma referência explícita a Uexküll. E, como
vimos, Lorenz acabou por conduzir a sua Etologia na mesma direcção.
É, pois, este, o sentido deste livro: apresentar uma visão englobante e
estruturada do comportamento, centrando-se na análise das instruções para
o comportamento adaptado.
Vê-lo-emos no corpo dos conteúdos apresentados a seguir.

38
CAPÍTULO 2: PROCESSOS PRÉ-HUMANOS E
EVOLUÇÃO DA LINGUAGEM
Vivemos num mundo de símbolos, mesmo quando esses símbolos são
completamente prosaicos: as marcas de roupa, ou de telemóvel, ou de com-
putador, ou de automóvel são frivolidades que só são possíveis numa espécie
como a nossa. Os computadores da moda (telemóveis, polos, etc.) não valem
o dinheiro que se dá por eles mas as pessoas compram-nos pela «mais valia»
de prestígio que têm.
Esta característica só se compreende em toda a sua extensão quando se
considera a nossa espécie em termos comparativos. É também apenas
quando se considera o simbolismo em termos comparativos que podemos
compreender até que ponto somos diferentes das outras espécies. Final-
mente, apenas a perspectiva comparada permite compreender as origens de
uma característica tão estranha no campo biológico.
A tendência para a atribuição de significado é uma motivação e deriva de
um grupo motivacional relativamente recente em termos evolutivos – apa-
rece com os mamíferos e algumas aves. Tentarei a seguir apresentar uma
série de conceitos e de dados que permitem compreender como foi que apa-
receu, nos hominídios e especificamente na nossa espécie, uma característica
tão diferente da dos outros animais.

O ESPAÇO DE REPRESENTAÇÃO (ER)

Todos os seres vivos interpretam, de uma maneira ou de outra, o ambi-


ente, no sentido de que seleccionam certa parte do ambiente e usam a ener-
gia dele proveniente para determinados fins. As plantas interpretam, assim, a
luz, em termos de função clorofilina; a maior parte dos animais móveis usa a
luz para saber o que se passa à sua volta (a luz reflectida no ambiente mas
também outras formas de luz, como a posição do sol ou a luz polarizada,
que não nos interessarão agora). O termo «interpretação» não é antropomór-
fico: trata-se apenas da codificação de certos parâmetros do ambiente em
termos de outros parâmetros do organismo – uma transdução, como se diz na
Psicologia dos Sentidos.
Há detectores que influenciam o comportamento subsequente em todos
os seres vivos. Quando a informação extraída do ambiente se mantém em
memória (mesmo que durante muito pouco tempo) e interage com a infor-
mação proveniente dos sentidos passa a haver um Espaço de Representação
(referido, daqui em diante, como ER). Isso sucede em todos os casos em que
há aprendizagem baseada nos condicionamentos. Recordo que no condicio-
namento tem de haver uma ligação de uma memória (o estímulo condicio-
nal) com um reforço percebido (o estímulo incondicional). Essa interacção
só pode ter lugar se houver um espaço de memória, ainda que a muito curto
prazo, em que podem coexistir as duas representações. É a esse espaço de
memória que chamo Espaço de Representação. Esse ER ocorre necessaria-
mente «dentro» do organismo: ele representa estados internos e o que acon-
tece fora do organismo. Nesse sentido trata-se de um espaço extremamente
auto-centrado. Por outro lado, esse espaço não tem de ter consciência de si
próprio: o espaço de representação representa coisas, acontecimentos, estí-
mulos, reforços, motivações, mas sem qualquer consciência de si próprio. É
como a nossa visão: vemos coisas mas não temos consciência dos olhos.
A informação do ambiente liga-se, como disse no primeiro capítulo com
os ciclos funcionais. Em muitos casos, esses ciclos funcionais pouco mais são
do que reflexos sem que haja qualquer «consciência»: a um estímulo segue-se
uma resposta, sem que tenha de haver qualquer representação do estímulo
em memória. Há variantes muito complexas deste fenómeno nos vários ani-
mais que foram estudados, e alguns deles são incrivelmente complexos –
mais do que em nós. Mas não tratarei disso aqui, senão para referir que na
maior parte dos casos não há manutenção de um estímulo em memória.8
Referirei apenas que, mesmo em animais tão próximos de nós como os
répteis, não parece nunca haver qualquer representação de que um estímulo
anuncia um acontecimento. Há formas de aprendizagem, mas que não pare-
cem ser redutíveis à aprendizagem associativa descrita pelas teorias empiris-
tas, mas antes por processos de transferência de resposta, que apresentarei
abaixo.
Nos mamíferos as coisas alteram-se. Além dos ciclos funcionais que exis-
tem em todos os animais (um estímulo sinal desencadeia um comporta-
mento), verifica-se que aparece uma motivação nova: os estímulos neutros –
que não são desencadeadores e que, portanto, não faziam parte de ciclos
funcionais nos animais menos encefalizados – passam, eles próprios, a ser
investigados. Concretamente, aparece com os mamíferos e algumas aves
uma motivação nova, a que nós damos o nome de «curiosidade». A curiosi-
dade corresponde não à procura de um desencadeador (quando procuramos
alimento no frigorífico, por exemplo) mas à investigação de uma coisa que
não se conhece. Todos temos experiência desse tipo de fenómeno: um filme
ou um livro novo tornam-nos curiosos e queremos conhecê-los.
Esta motivação de «neofilia» (neo=novo, filia=gostar de) parece ter que ver
com a quantidade de informação que está presente num estímulo ou num
8
Mundos Animais, Universos Humanos, Gulbenkian, 2003).

40
ambiente. É por isso que uma música que seja constituída por um som (o
mesmo som) durante dez minutos nos aborrece de morte, enquanto que
havendo vários sons poderemos ficar interessados. É por isso que há quem
diga que os filmes de, por exemplo, Manuel de Oliveira ou Wim Wenders
são aborrecidos. Aborrecem-nos porque a estimulação não é alterada com
uma frequência suficiente. Contudo, demasiada informação torna-se insu-
portável porque não conseguimos apreendê-la e parece-nos apenas «ruído».
É isso que acontece quando tentamos compreender construções muito com-
plexas (por exemplo, uma peça de Stockhausen): muito depressa a maior
parte das pessoas se desorienta com tanta informação. Não reconhecendo
nada do que nos é apresentado, a informação não faz sentido, torna-se-nos
incompreensível, improcessável e, portanto, ruído maçador. Ou seja, para
que a informação nova seja reforçante tem de ser compreendida.
Daqui se conclui que a quantidade de informação contida num determi-
nado objecto ou acontecimento depende do que nós já sabemos: a capaci-
dade de reconhecer o que nos é apresentado depende disso; e a capacidade
de reconhecer o que nos é apresentado como diferente do que já conhece-
mos depende do mesmo.
Afirmar que a exploração depende do que nós sabemos implica que haja
uma representação do mundo e que reagimos à discrepância entre aquilo que
está representado e aquilo que percepcionamos. Dando um exemplo extre-
mamente simples, se virmos o noticiário das 8 e depois virmos o das 10, é
natural que achemos o segundo bastante mais aborrecido porque já vimos as
notícias. Se virmos o mesmo filme várias vezes de seguida acabaremos por
nos fartar por mais que gostemos dele. Ou seja, a exploração é determinada
pela discrepância e pela novidade. Os animais que exploram têm, portanto,
uma representação que comparam com aquilo que vêem. A natureza dessa
representação é variável.
Independentemente dos conteúdos representados no Espaço de Represen-
tação – conteúdos esses que variam consoante as características perceptivas e
mesmo de capacidade de memória das várias espécies – o que me parece
variar mais nas representações do mundo é a maneira relacional ou não rela-
cional com que os acontecimentos do mundo exterior são representados.
Vou ser mais concreto.
A nossa representação das coisas é extremamente relacional. O desporto
mais popular da Europa, o futebol, baseia-se nas relações que os jogadores
têm entre si, quer real quer virtualmente (as «jogadas»); todos os participan-
tes estão organizados num objectivo comum: uma relação complexa entre
funções entre jogadores que enfatiza a natureza relacional das nossas mentes.
Da mesma maneira, a maior parte das coisas que nos rodeiam são compostas

41
de vários elementos relacionados de maneira a desempenhar uma função
(uma cadeira ou uma mesa, por exemplo, que têm pernas, assentos ou tam-
pos, costas ou gaveta, etc.). Finalmente, toda a nossa vida social se baseia em
relações entre papéis, relações essa que são especificadas em função de um
objectivo. Todos estes casos são exemplos da natureza relacional da nossa
mente (um outro termo é natureza «referencial» da mente; usa-se, por vezes,
embora tenha sido definida num contexto diferente, a noção de «memória
episódica» para nos referirmos a esta característica). Nesta característica
somos únicos no reino animal: seria extremamente errado pensar que isso
acontece com os outros animais. Para que esta referência constante ocorra é
necessário que haja regras de relação entre as várias coisas que representamos
no ER. É disso que agora vou tratar com a maior simplicidade que conse-
guir.

REGRAS DE RELAÇÃO NO ER

Imaginemos uma experiência simples de condicionamento clássico. Nessa


situação apresenta-se um estímulo neutro seguido de um estímulo desenca-
deador; o que se observa é que, progressivamente, o estímulo neutro
adquire as propriedades do desencadeador. O que é que se passa, em termos
psicológicos? Em vários casos há apenas transferência de resposta, quer dizer, o
estímulo neutro passa a desencadeador. Por outras palavras, o animal não
aprende que o estímulo neutro prevê a ocorrência de um desencadeador, mas
apenas aprende a emitir um comportamento inato a um estímulo que foi
associado com o desencadeador biológico desse comportamento – o animal
passa a comer, fazer a corte, beber o estímulo neutro e já não apenas os
reforços (comida, água, uma fêmea receptiva) que se associaram a esse estí-
mulo (isto foi estudado por Moore, com pombos, mas verifica-se em muitos
animais). Nos mamíferos, e que eu saiba não na maior parte das aves estuda-
das, não em tartarugas, em peixes e em anfíbios, pode ocorrer que o estí-
mulo neutro seja armazenado em memória independentemente da sua asso-
ciação a um reforço: o animal vê o estímulo, investiga-o e armazena a infor-
mação assim obtida. Há um método seguro de testar isto e vou explicá-lo
fazendo do leitor sujeito experimental. Imagine que tem de carregar numa
tecla para obter um reforço alimentar (se o leitor for sujeito experimental
numa caixa de Skinner estará também cheio de fome, porque o seu peso terá
sido previamente reduzido a 80% do normal). O leitor sabe quando pode
carregar na tecla porque ela se ilumina. Quanto o experimentador achar que
o leitor já atingiu a assímptota de aprendizagem (quando já não melhora o

42
seu desempenho significativamente de uma sessão para a outra) a situação
modifica-se: o leitor vê que a luz se acende, mas se carregar na tecla, a luz
apaga-se e não receberá nenhum alimento; progressivamente deixará de car-
regar na tecla quando a luz se acende. O que se passa é que agora, para rece-
ber alimento, tem de não carregar na tecla quando ela se acende. Se for sensí-
vel à relação «Se luz e não carregar então alimento E se luz e carregar então
não alimento», deixará de responder. Os ratos conseguem resolver esta
tarefa; mas os pombos não: assim que recebem alimento por não ter carre-
gado na tecla passam a carregar mais na tecla. Isto passou-se porque os ani-
mais, na verdade, não fizeram qualquer associação entre a luz e o alimento:
limitaram-se a transferir a resposta alimentar à própria luz. Ou seja, o pombo
não compreendeu a relação entre luz : não-luz e o acontecimento subse-
quente (reforço : não-reforço): apenas «come» a luz. Isso mesmo foi mos-
trado, como já disse, por Moore.
Há bastante mais dados que mostram que esta interpretação está correcta
e expu-los extensamente em Mundos Animais, Universos Humanos. O que se
pode concluir é que parece que apenas os mamíferos compreendem relações
entre estímulos; os outros organismos adaptam-se às modificações do ambi-
ente assimilando estímulos neutros a sistemas motivacionais: comem a tecla,
como já disse.
Que consequências é que isto tem para a teorização do Espaço de Repre-
sentação? O ER é um «espaço» hipotético que é necessário postular se se
aceitar que há condicionamentos. Para que haja um condicionamento, o
estímulo neutro tem de ser representado ao mesmo tempo que é representado
estímulo desencadeador. Ora em situações de condicionamento a apresenta-
ção dos dois estímulos não é simultânea mas sucessiva; assim, tem de se
admitir que o estímulo neutro fica em memória algum tempo (nas situações
de condicionamento, entre meio e um ou dois segundos) para que se possa
associar ao desencadeador. Essa associação faz-se, nos peixes, batráquios e
répteis, aparentemente por assimilação do ES ao estímulo desencadeador
(por um processo que caracterizei já noutro local). Mas nos mamíferos, apa-
rentemente, há mais do que transferência de resposta: para que um rato
deixe de responder à luz carregando na tecla para obter alimento, ele tem de
conhecer a relação entre a luz e o comportamento de carregar na tecla e as
suas consequências. Enquanto que nos casos de transferência de resposta
seria apenas necessário que o estímulo neutro fosse assimilado a um desenca-
deador, nos mamíferos o estímulo é conhecido relacionalmente: aquele estí-
mulo «significa» que o animal tem de carregar ou não carregar na tecla. Ou
seja, o que o animal faz na tecla está relacionada com outro acontecimento
que o animal não vê mas que está presente no seu ER. Para que isto acon-

43
teça, a situação experimental tem de ser representada no ER. Ou seja, o ani-
mal tem de «saber» que o «carregar no botão» está associado a «obter ali-
mento» ou a «não obter alimento» consoante a situação experimental.
Enquanto que, num pombo ou numa tartaruga, o animal não «sabe» nada,
apenas ocorre que a vista do botão o faz tentar comê-lo. É – sem exagero –
como se nós, num restaurante, tentássemos comer o prato (ou o empregado
que nos serve) porque associamos o prato (ou o empregado) ao alimento.
O processo que caracteriza os mamíferos pode ser encontrado até na nossa
vida quotidiana. Há muitos exemplos de conhecimento não episódico (quer
dizer, não mediado pela linguagem): ouvimos uma música que quase tínha-
mos esquecido mas que ouvimos muito na nossa juventude ou infância e
lembramo-nos de uma experiência que tivémos quando ouvíamos essa
música – sem pensar, apenas por imagens mentais. Não o posso garantir,
evidentemente, mas penso que será um processo deste género que estará
presente nos mamíferos em situação de condicionamento: há imagens,
recordações, que estão associadas na memória e que podem ser recordadas.
No exemplo, a memória do alimento está associada a carregar ou não carre-
gar no botão, tal e qual como quando nós nos lembramos do primeiro beijo
quando ouvimos a música ao som da qual ele ocorreu. O processo, român-
tico no caso humano e prosaico no caso do rato, é o mesmo.
O que é importante compreender é a natureza da relação entre as duas
imagens no ER: trata-se apenas de uma associação. Quando activamos uma
recordação ocorre outra porque as duas estão ligadas na memória. Recordar
uma música lembra-nos uma coisa que ocorreu ao som dessa música.
Na maior parte dos casos estudados, a memória a longo prazo dos mamí-
feros não é mais complexa do que isto: há episódios ligados uns aos outros e
a ligação é uma simples associação.9
Contudo, nos primatas aparece uma forma mais complexa de representa-
ção do ambiente. Os macacos verdes, por exemplo, associam os vários ele-
mentos do grupo em termos de relações específicas. Assim, parecem repre-
sentar conjuntamente as crias e as mães dessas crias, de tal modo que se uma
cria gritar a pedir ajuda os vários macacos olham para a mãe dessa cria mais
do que para outros animais; o mesmo ocorre quando um animal aparente-
mente pede ajuda: os outros macacos olham para o recipiendário anterior da
ajuda do animal aparentemente atacado: diríamos que esperam que o animal
9
Estou a simplificar um processo muito complexo: as associações nos mamíferos dependem
de muito mais coisas do que da simples associação. Por exemplo, é difícil associar estímulos ou
comportamentos que pertençam a motivações diferentes. Na discussão apresentada no corpo do
texto estou a referir-me à situação mais simples de todas: um estímulo realmente neutro e um
reforço alimentar numa espécie de comportamento muito plástico como o rato. Com gatos ou
cães a situação não seria tão simples e muito menos com cavalos ou vacas.

44
antes ajudado retribua agora a ajuda recebida (estudos da equipa de Dorothy
Chenney).10
Nos chimpanzés as coisas são ainda mais complexas. Embora haja muita
discussão em torno desta questão – como sempre há quem pretenda que os
chimpanzés são quase humanos enquanto que há quem defenda que eles são
pouco diferentes dos outros animais – parece-me seguro fazer algumas afir-
mações. Nomeadamente, os chimpanzés conseguem «ler» um campo social
de forma muito mais complexa do que a maior parte dos outros mamíferos
terrestres. Um chimpanzé parece saber das associações existentes entre os
outros animais. Por exemplo, um chimpanzé macho candidato ao posto de
alfa sabe quem são os seus aliados e quem são os seus inimigos e parece gerir
esta informação de maneira a impedir que se formem alianças entre os ini-
migos e a fomentar as alianças com os seus amigos.11 Além disso, os chim-
panzés parecem guardar uma boa memória dos favores que fizeram e dos
que receberam.
Quais as implicações de tudo isto para o significado e o ER?
O que o conjunto de dados sobre chimpanzés e macacos verdes significa é
que, na memória, há uma espécie de gramática de relações na representação dos
vários animais que compõem a colónia. Assim, um animal não é represen-
tado apenas como associado a um determinado acontecimento, mas como
uma malha num conjunto de outros animais, malha essa composta de signi-
ficados mais específicos do que a mera associação: um chimpanzé «sabe» que
o animal x tem uma relação de cooperação ou de oposição com o animal y.
Pode não parecer muito, mas estamos perante um ER com uma gramática
de representações sociais, em que cada elemento é representado em relação
com outros elementos.
10
Observei um comportamento interessante num cão (um perdigueiro) que mostra uma com-
preensão relacional do ambiente. O perdigueiro pediu-me festas e eu agachei-me para lhas fazer.
Ele tentou subir para o meu colo, mas no processo desequilibrou-me e eu daí, ficando sentado.
Prontamente ele saltou para o meu colo. Aí lhe fiz festas. Como os cães são extremamente ciu-
mentos, chamei outro cão (um Serra da Estrela). É neste momento que o acontecimento rele-
vante para a discussão ocorre: quando disse o nome do Serra da Estrela o perdigueiro olhou para
ele e anichou-se mais no meu colo. Repeti o nome do Serra da Estrela e obtive exactamente o
mesmo resultado no perdigueiro. Isso só se pode compreender se o perdigueiro tiver represen-
tado a associação entre chamar o Serra, e o Serra vir ter com o dono; e vindo ter com o dono,
retirar-lhe o monopólio das festas. Trata-se, portanto, de uma representação relacional do
mundo social exterior ao cão.
11
Apesar de ser um livro discutível, ver Chimpanzee Politics, de Franz de Waal. Mesmo que
nem tudo o que o autor afirme seja indiscutível, será sempre uma boa leitura e a nossa má von-
tade contra os políticos profissionais e contra as pessoas que gostam de subir nas instituições será
reforçada: os jogos de política de chimpanzés, contados por Waal, não diferem muito do com-
portamento dos políticos profissionais que se pavoneiam –ou deveríamos dizer «chim-
panzeiam»?– na televisão.

45
Este ER dinâmico parece restrito ao campo social. Os chimpanzés (e os
gorilas e orantogangos)12 parecem incapazes de uma representação do
mundo físico remotamente parecida com a nossa. De novo trata-se de um
campo em que há muita discussão, mas os dados experimentais sugerem que
os chimpanzés não compreendem relações entre objectos inanimados senão
em termos de contacto.

Na figura acima há duas imagens. Se o leitor quisesse a banana, por qual


dos ganchos puxaria: pelo da esquerda ou pelo da direita? A resposta é óbvia
e até as crianças pequenas a sabem resolver. Contudo os chimpanzés não
compreendem a diferença entre as duas situações (os animais aprendem a
fazer a distinção com o reforço, mas nunca conseguem generalizar a noção
de «gancho» ou de «enganchar»; é como se fossem cegos a este tipo de rela-
ção física, e há outros exemplos do mesmo tipo).
Nós, pelo contrário temos uma representação muito clara das ligações
entre as coisas físicas. As crianças aprendem a empilhar blocos (coisa que os
chimpanzés fazem com dificuldade, apesar de muitas vezes se ler o contrá-
rio, porque não têm qualquer noção da gravidade e do equilíbrio entre sóli-
dos sobrepostos, de maneira que quando empilham coisas não as colocam
segundo os centros de gravidade de modo que as pilhas são instáveis e geral-
mente caem), a brincar com lego, em suma, aprendem sem nenhuma neces-
sidade de muito treino relações como «ligar», «equilibrar», «enganchar»,
«pendurar» e assim por diante. De resto, as culturas humanas dependem
todas elas desta capacidade: se examinar o que está à sua volta verificará que
quase tudo é composto de mais do que uma coisa: caracteres que se organi-
12
Há pelo menos duas espécies de chimpanzés, duas espécies de gorila e pensa-se agora que
duas espécie de orangotango.

46
zam em palavras e frases impressas numa folha de papel ligada a outras para
fazer um livro; dois pedaços de vidro graduado encaixadas em metal, sendo
essa estrutura ligada, por dobradiças, a duas outras hastes (um par de óculos),
conjuntos de fibras vegetais torcidas de forma a fazer um fio que são depois
atadas umas às outras para fazer uma superfície (um tapete), canudos de
madeira com um cilindro estreito de grafite no meio (um lápis) – e poderia
continar sem parar: se o leitor olhar para aquilo que está à sua volta é prová-
vel que não encontre uma só coisa que não seja composta de várias partes.
Até uma faca de metal feita numa só peça, tem pelo menos três partes: a
lâmina, dividida em «partes de cima e de baixo» e o cabo; e até a mais simples
bengala tem uma diferenciação entre cabo e haste. Nestes exemplos feitos de
uma só peça há várias partes que correspondem a elementos que a mente
juntou num conjunto.
Os chimpanzés são os nossos parentes mais próximos. Como foi que, em
cerca de 5 milhões de anos (o que é realmente muito pouco em termos de
tempo evolutivo) se tenham dado modificações tão enormes?

EVOLUÇÃO DAS REGRAS DE REPRESENTAÇÃO NO


ER

É extremamente difícil saber como se passou do nível pongídeo, que


caracteriza o comportamento dos chimpanzés, para o actual. Contudo, há
dados da arqueologia que podem ser analisados e que sugerem quais podem
ter sido as áreas de mudança mais relevantes. Mesmo sendo difícil, este
estudo deve ser feito, porque chama a atenção para as alterações evolutivas
que nos tornaram seres «mentais», por oposição aos seres comportamentais
que são todas as outras espécies.
Tentarei apresentar, brevemente, as principais conclusões que tirei depois
de um estudo bastante detalhado da arqueologia e da paleontologia de
Homo.
Cabe aqui dizer que há algumas diferenças fundamentais entre a nossa
espécie e todas as outras. É necessário fazer hipóteses sobre como essas dife-
renças podem ter evoluído e depois procurar, nos dados arqueológicos, con-
firmação ou infirmação das hipóteses que fizemos (na realidade, o processo é
muito mais complexo: é necessário saber o que o registo fóssil nos diz e,
paralelamente, fazer hipóteses sobre o que se teria passado. Mas não quero
assoberbar o leitor com um trabalho que me demorou 5 anos a fazer, de
modo que apresento apenas as conclusões principais).
As diferenças podem ser resumidas nos seguintes pontos

47
a) aparecimento da linguagem
b) capacidade de relacionar vários objectos no ER
c) imposição das imagens do ER à realidade
d) compreensão de que os outros têm estados mentais e emocionais
Estes aspectos relacionam-se uns com os outros e há muitos dados que não
vou aqui apresentar. Referirei apenas os necessários para se ter uma noção
do que pode ter acontecido.

A questão da linguagem

Há muita gente que acha que a linguagem é a maior diferença entre o


comportamento humano e o animal. A linguagem encontra-se relacionada
com a arquitectura da memória e mesmo com toda a representação mais ou
menos consciente da realidade, de maneira que não se pode separá-la do
resto do funcionamento cognitivo humano. Em primeiro lugar é impor-
tante apresentar aqui uma ideia, a da referencialidade do espaço de represen-
tação. Depois disso consideraremos brevemente a aquisição de linguagem
pelos chimpanzés para compreendermos melhor o que é necessário para que
a representação do mundo seja linguística.

Referencialidade

A linguagem funciona como um código de auto-referência: se eu puder


referir-me, no ER, a dois conceitos – por exemplo, parede e janela – poderei
comunicar, com os outros ou comigo próprio, sobre a organização de coisas
que não acontecem a não ser na minha mente. Assim, posso pensar que certa
parede precisa de uma janela; e posso imaginar, sobretudo se desenhar,
como ficaria a parede com uma ou duas janelas e que tamanho deveriam ter
as janelas. Da mesma maneira, posso fazer combinações de peças na minha
mente para formar uma combinação de peças que tenha uma nova função.
Posso também, na minha mente, imaginar o que aconteceria entre duas pes-
soa se uma delas tivesse um determinado comportamento. Isto é, posso usar
a mente para me referir a alternativas ao que acontece, representando cada
coisa e cada acontecimento numa frase ou numa palavra. Imaginemos que
conhecemos duas pessoas, Estefânia e Teotónio. Que faria Teotónio se Este-
fânia (com quem namora) o enganasse? A pergunta é um pouco diferente de
perguntar como ficaria o meu quarto se em vez de uma janela tivesse duas,

48
mas ambas as perguntas implicam que manipulemos, no nosso espaço men-
tal, coisas que representamos no ER.
Para que isto seja possível é necessário que haja uma regra que obrigue a
que todas as coisas tenham um nome. Ou seja, que cada coisa seja represen-
tada na minha mente com uma etiqueta específica. Assim, a Estefânia é
representada pelo seu nome na linguagem mas, no nosso espaço de represen-
tação, é representada como um corpo com disposições mentais que conhe-
cemos melhor ou pior. A janela é representada na linguagem pela palavra
mas no meu espírito por um protótipo de janela – provavelmente uma aber-
tura numa parede que deixa entrar a luz. Enquanto eu pensar na janela como
coisa, não necessito particularmente de palavras: posso ter a ideia mental
dela; mas assim que pretender colocá-la numa situação mais complexa a lin-
guagem torna-se indispensável. Se eu quiser pensar numa casa não posso
pensar em cada janela individualmente, mas apenas naquilo que é mais fun-
damental na janela. Assim, posso falar de janelas, de portas, de paredes, sem
especificar de que janelas, portas e paredes em particular estou a falar. Desta
forma, posso resumir a um esquema mental a quantidade de informação
perceptiva presente na frase: uma sala que tem duas janelas pequenas a
poente uma porta a norte e uma porta-janela a sul. Da mesma maneira, para
lidar com uma situação social mais ou menos complexa, os nomes são muito
úteis. Sei que Teotónio foi enganado por Estefânia, mas com quem? Com
Firmino, que é belo, ou com Efaísto, que é brilhante? Sei que Estefânia pas-
sou muito tempo com Efaísto e que admirava a beleza de Firmino, e sei que
contou a Afromósia, a mulher de Deodato que andava triste com Teotónio.
E o próprio Deodato disse-me que Efaísto achava Estefânia bela e desejável.
Mas sei que Firmino tem sempre muito sucesso com mulheres. Posso, assim,
apenas com os nomes, representar as realidades perceptivas (e as histórias
pessoais) de várias personagens ao mesmo tempo e posso comunicá-las aos
outros. Posso até dizer ao leitor que Estefânia traiu Teotónio com Acúrsio, e
não com nenhuma das outras personagens da história...
Ou seja, a linguagem permite tornar nítida, quase concreta e palpável,
uma imagem que sem ela seria mais nebulosa e pode relacionar essas imagens
umas com as outras. O que é que é necessário em termos evolutivos para que
isto ocorra?
A maior parte dos dados vem dos estudos em que se pretendeu ensinar a
chimpanzés uma linguagem. Surpreendentemente, os chimpanzés parecem
aprender a comunicar linguísticamente (usando uma linguagem sem pala-
vras) com os experimentadores. Para que isso suceda há que forçar os ani-
mais a «dar atenção» ao seu próprio espaço de representação. Apresentarei a

49
seguir uma análise dos estudos da equipa de Duane Rumbaugh e Sue
Savage-Rumbaugh.

Pongídeos que falam

O caso dos chimpanzés de Savage Rumbaugh é interessante na medida em


que eles parecem funcionar simbolicamente dado um conjunto de treinos
específicos. Sigo aqui a revisão de Rumbaugh et al (2003 in Masterpieri).
Sem aprendizagens dirigidas à aquisição de uma linguagem, os chimpan-
zés, como os outros mamíferos, tendem a fazer associações entre estímulos
representados em memória. Contudo, é diferente ver o estímulo a e saber
que vai acontecer o estímulo b e saber que b é indicado por a. Quer dizer: o
facto de um animal saber que depois da apresentação de uma imagem –o
estímulo a– se segue que lhe seja dado um alimento –o estímulo b– não sig-
nifica que, ao querer o alimento, o animal saiba pedir a. Em termos operati-
vos, depois de cada alimento ter sido associado a uma imagem –um lexi-
grama, na terminologia da equipa de Rumbaugh– os chimpanzés não
sabiam nomear a imagem que precedia cada um dos alimentos. Esta capaci-
dade teve de ser especificamente reforçada: quando o animal respondia cor-
rectamente era-lhe dada uma pequena porção do alimento em questão e um
reforço com um alimento não relacionado com o par alimento-lexigrama
que se pretendia reforçar.
O que estes dados mostram é que, no ER, o facto de haver uma associação
estímulo-reforço não implica que haja a simétrica – reforço-estímulo. Essa
relação teve de ser associada através de condicionamento (enquanto que con-
nosco parece espontânea).
Depois disso, os animais foram treinados a classificar os lexigramas conhe-
cidos em duas categorias: objectos e alimento. O treino foi muito longo e
difícil, sobretudo com os objectos. Quando os animais estavam perfeita-
mente treinados, foi-lhes pedido para classificarem lexigramas já conhecidos
mas não usados no treino precedente. Os animais mostraram proficiência:
acertaram todas as classificações (menos uma, que era potencialmente con-
fusa).
O que estes dados mostram é que os animais tinham formado duas classes
mentais que agrupavam lexigramas de dois grandes grupos. Ou seja, os
experimentadores conseguiram introduzir uma ordem no ER dos animais,
procedendo a duas ligações: criação das correspondências lexigrama⇔ali-
mento e fazendo que essas correspondências fossem agrupadas em classes.
Este procedimento é completamente normal em nós, que consideramos a

50
palavra e o seu referente como aproximadamente equivalentes, mas é muito
diferente do que se passa nos outros animais, em que no espaço de represen-
tação se forma uma ligação Estímulo⇒Reforço, mas não Estímulo⇔Re-
forço. Ou seja, nas expriências com os chimpanzés criou-se uma relação de
biunivocidade entre os dois termos, ou seja, entre a representação do
Reforço e do Estímulo que o prevê. Dessa maneira passa a ser possível mani-
pular os estímulos (os lexigramas) entre si, no ER, coisa impossível antes do
estabelecimento da biunivocidade. Esta é uma das capacidades que vai per-
mitir a linguagem.
Há um caso interessante –os estudos mais famosos de Sue Savage-Rum-
baugh– em que um bonobo13 chamado Kanzi aprendeu, sem treino, a biuni-
vocidade. Este animal acompanhava a sua mãe nas sessões de treino quando
pequeno. Na interpretação de Rumbaugh et al in Mesterpieri a cria teria
aprendido a usar os lexigramas quer para pedir quer para identificar os ali-
mentos e as ferramentas porque todos os acontecimentos relevantes para ela
eram anunciados por modificações no computador (no écrã ou no teclado
que eram usados para a comunicação entre animais e experimentadores).
Assim, o bonobo teria aprendido as regras de interacção com o ambiente
apenas com base na relação com o computador. Se bem que isto implique
grandes capacidades imitativas e detecção de regularidades no ambiente,
capacidades essas que os trabalhos mais experimentais não sugerem, não
parece ser possível que o animal tenha aprendido de outra maneira.
Se isto for verdade, parece que teria havido uma associação sistemática
entre cada acontecimento relevante para o animal e um acontecimento no
computador e a aprendizagem de que para conseguir o reforço o animal
teria de emitir o comportamento de indicação do estímulo que lhe corres-
ponde, isto é, teria de ter aprendido a biunivocidade de estímulo⇔re-
forço.14
Deve registar-se, na sequência de Rumbaugh et al., que Irene Pepperberg
conseguiu que um papagaio «falasse» exactamente da mesma maneira: não
havia computador mas duas pessoas falavam de assuntos que interessavam ao
papagaio. Foi com base nessa interacção que o animal começou a pedir coi-
sas.
Em ambos os casos, parece-me que os animais são colocados numa situa-
13
Há pelo menos duas espécies de chimpanzés: Pan troglodytes e Pan paniscus. O bonobo é P.
paniscus e é comportamentalmente bastante diferente do chimpanzé comum.
14
Pode-se pensar que o bonobo fez associações de tipo clássico (pré-condicionamento senso-
rial) entre os vários acontecimentos – na verdade, nem pode ter sido de outra maneira, porque
nós próprios é assim que funcionamos. Mas tem de ter havido também detecção de regras, um
tipo de condicionamento de ordem superior, pelo menos para o tipo de comportamento exibido
mais tarde pelo bonobo.

51
ção em que, para receber reforços, têm de dar atenção aos estímulos neutros
que antecedem os acontecimentos reforçantes. Para pedir os reforços o ani-
mal tem de compreender a biunivocidade. Estando essas representações
«simbólicas» disponíveis no ER (o que tem de acontecer por condiciona-
mento clássico), passa a poder haver uma manipulação limitada dos símbolos
em memória, gerando um comportamento aparentemente linguístico.
Assim, a regra que os animais têm de compreender é que cada aconteci-
mento de importância para o animal tem de corresponder a um sinal especí-
fico, funcionando esse sinal como o «nome» do acontecimento; tem também
de aprender a biunivocidade entre estímulo e e representação no ER desse
estímulo mesmo quando ele está fisicamente ausente. É desta forma que se
forma o simbolismo necessário à linguagem (ver uma perspectiva diferente
em Deacon, Reff ). Com essa possibilidade, o animal passa a poder nomear o
reforço que quer em termos do sinal que o representa. Está assim criado o
comportamento simbólico.15

Primórdios da linguagem

Se animais tão pouco «mentais» como chimpanzés podem aprender a


manipular, ainda que limitadamente, acontecimentos exteriores relevantes
(comida e objectos, no caso, mas presumo que quaisquer outros aconteci-
mentos relevantes), pode-se pensar que a evolução da linguagem, no sentido
de representação biunívoca de imagens mentais e acontecimentos no exte-
rior possa ter ocorrido relativamente cedo na evolução.
Contudo, o processo,
nos chimpanzés e nos bo-
nobos não parece ser es-
pontâneo. Para que esse
processo se torne espontâ-
neo é necessário que o ER

15
Talvez isto não seja fundamentalmente diferente daquilo que os animais domésticos fazem
espontaneamente: chamar os donos, indicar onde está a trela ou o brinquedo. Também neste
caso, o animal manipula no ER as representações que tem dos acontecimentos relevantes. Entre
essas representações está o comportamento dos donos e o comportamento que têm de emitir
para comunicar com eles. É ainda interessante recordar que Helen Keller, nascida surda e cega,
aprendeu a linguagem: disse ela mais tarde que para a aprender foi primeiro necessário compre-
ender que todas as coisas tinham, obrigatoriamente, um nome. Depois de compreender isso,
aprendeu muito depressa. Também nas crianças ocorre uma fase em que elas perguntam o nome
de tudo e adquirem depressa uma grande quantidade de vocabulário.

52
se torne mais forte, no sentido de ter preeminência sobre o mundo real. Há
dados que sugerem precisamente isto na arqueologia de Homo.16 Há cerca de
800Ka17 aparece uma forma de fazer ferramentas que revela uma imposição
de uma forma mental sobre a matéria. Os hominíneos dessa época fazem
ferramentas ovais, mais ou menos tri-radialmente simétricas, os chamados
«machados» ou, mais genericamente, «bífaces».
Estes machados –na imagem é apresentado um particularmente bem
feito– implicam, entre várias outras coisas, a existência de um imagem men-
tal muito clara que pode ser imposta ao ambiente. Estes machados eram fei-
tos em todas as dimensões e não parecem ter tido uma função específica. Na
verdade, não parece haver qualquer vantagem especial em usar estas ferra-
mentas e não outras de outra forma. De resto, há vários machados muito
mais funcionais e com a imposição de forma muito menos clara.
Creio que se pode interpretar o aparecimento destes bífaces como revela-
dor da existência de uma clareza das imagens mentais que permitia uma biu-
nivocidade entre a representação em memória de um estímulo e a sua per-
cepção. Havendo esta biunivocidade pode ter havido uma forma primitiva
de linguagem. Não se trata de uma linguagem complexa como a nossa, com
futuro, passado, condicional, passivas, etc. Refiro-me apenas a uma lingua-
gem que permitisse a representação de acções e de coisas importantes para a
vida dos humanos deste tempo.
Esta ideia parece-me ser mais provável no contexto do que sabemos do
comportamento dos homens do
Paleolítico inferior (é sempre dessa
fase que estamos a falar: antes dos
neandertais e dos modernos, por-
tanto entre há 800 e 500 Ka). Sabe-
mos que faziam lanças ou estacas e
isso implica um raciocínio bastante
desenvolvido, em que é necessário
que se faça uma representação mental
de vários objectivos e das acções
necessárias para atingir esses objecti-
vos. Assim, para fazer uma estaca
com uma das pontas afiada é necessário «ver» num tronco a futura estaca,
cortá-lo, arrancar os ramos, tirar a casca e os ramos laterais, afiar a ponta e,
16
Para os leitores não biólogos, Homo é o género a que pertencemos. Mas a nossa espécie é
Homo sapiens. Os dados arqueológicos que refiro são anteriores ao aparecimento de sapiens e
referem-se a outras espécies, menos encefalizadas do que as nossas e fisicamente algo diferentes.
Os dados sobre o acheulense referem-se a Homo erectus e/ou a H. heidelbergensis.
17
Ka: Kilo-ano, como Km= Kilo-metro; um Ka são mil anos.

53
talvez –os dados não são unânimes– endurecer a ponta ao fogo. Sem uma
representação de acções e efeitos no ER não é possível fazer nada disto.
Escusado será dizer que não faço qualquer hipótese sobre se a linguagem era
gestual ou linguística (tem-se publicado sobre a questão –ver Corballis– mas
a meu ver nunca se poderá responder a isso e nem sequer me parece que a
linguagem seja apenas uma dessas duas alternativas: a nossa própria comuni-
cação linguística é fortemente modulada por gestos. É para imitar esses ges-
tos que se usa a pontuação –!?– e actualmente, nas comunicações por e-mail,
os emoticons: as palavras, só por si, não fazem a linguagem).
Contudo, quando falamos de imposição da forma antes da nossa espécie
não devemos exagerar. É verdade que há bífaces mais ou menos simétricos,
mas não o é menos que a maior parte das ferramentas era muito tosca em
termos de forma imposta. A imagem acima mostra-o de maneira clara: tra-
ta-se de um bíface, também, e não dos mais mal formados. Mas é –pelos
nossos padrões, pelo menos– muito mal feito.
Significa isto que a imposição da forma não era obrigatória. Que se pode
concluir desta afirmação em termos mentais?
Na mente moderna –no nosso comportamento– qualquer coisa que seja
vista e reconhecida tem uma
forma típica, a que na filosofia
e na psicologia se chama um
«protótipo» de uma classe. Há
vários trabalhos sobre isso
mas a meu ver o mais suges-
tivo é antigo. Consideremos a
imagem a seguir.
Trata-se de uma súmula
dos resultados de uma experi-
ência antiga, de Carmichael,
Hogan e Ref, Reff. Mostra-
va-se aos sujeitos a imagem
central e pedia-se que o sujei-
to a reproduzisse de memó-
ria. Havia duas condições,
dando-se em cada uma delas
um nome diferente ao estí-
mulo que deveria ser repro-
duzido. Os nomes encon-
tram-se à direita e à esquerda
do estímulo a ser representa-

54
do; mais à esquerda e mais à direita dos nomes aparece uma resposta típica
dos sujeitos. Verifica-se que a percepção original foi modificada pela classe
em que essa percepção foi incluída. Todos nós temos recordações parecidas.
Se pedir ao leitor para recordar os móveis de casa de uma pessoa que conhe-
ça bem, certamente recordará se são grandes, se são escuros ou claros. Mas, a
não ser que se interesse especialmente por móveis, o mais provável é que não
se lembre de como são em pormenor. Isto acontece porque os codificou em
classes: sabe que à volta da mesa há cadeiras, mas provavelmente não sabe
como são a mesa e as cadeiras. De forma mais terminologicamente ortodo-
xa, significa que nós codificamos a informação no nível do género e não da
espécie, quer dizer, lembramo-nos de que vimos uma cadeira, mas não como
era a cadeira. Quando nos tentamos lembrar, colocamos no vazio da nossa
memória o nosso protótipo de cadeira – aquilo que, para nós, melhor repre-
senta uma cadeira e que é variável de pessoa para pessoa. (Reff, Reff, Reff –
capítulo das classes em Mauh).
O que isto significa é que nós pensamos em classes que se relacionam
umas com as outras e que essas classes são representadas por protótipos e não
por especímenes específicos: «cadeiras», e não «cadeiras como as que eu vi na
sala de jantar do Vasco», «aves» e não «piscos de peito ruivo», «carros» e não
«o Triumph Spitfire do João», etc. Mesmo que tenhamos uma representação
clara dos vários tipos de cadeira (ou de automóvel, etc.) quando temos de
relacionar a classe das cadeiras com a das mesas, usamos abstracções, protóti-
pos que não correspondem necessariamente a uma cadeira ou mesa particu-
lar. Isto faz sentido, como se tem dito desde há muito: é uma maneira de um
sistema de processamento de informação limitado conseguir relacionar mui-
tas coisas sem ficar sem espaço de memória. Esse espaço de memória seria
depressa atingido se tentássemos recordar a especificidade das várias cadeiras
em torno da mesa. Com este processo («heurística») podemos pensar em
mais coisas e fazer complexos de coisas: cadeiras à volta de uma mesa num
quarto com uma cristaleira, um aparador e uma janela. Para que isto possa
funcionar é necessário que quando pensamos nas relações entre coisas use-
mos protótipos e não recordações sensíveis (memórias detalhadas) das coisas
que vimos e em que estamos a pensar.
Na mesma ordem de ideias, quando pensamos numa coisa, ela tem de cor-
responder a um protótipo. É precisamente isso que se verifica nas várias cul-
turas da nossa espécie: uma espada, por exemplo, tem de ter um gume cor-
tante e um cabo; mas há maneiras específicas de fazer espadas e uma espada
medieval, uma espada de Samurai, uma espada árabe do Séc. xıı são comple-
tamente diferentes. Quando queremos fazer uma espada diferente damos-
-lhe um nome diferente – de onde «sabre», «florete», «espadim», «baioneta»,

55
etc. Se o leitor olhar à sua volta verá que tudo aquilo que é feito pelo
homem tem uma forma convencional e que, em grande parte dos casos, não
é totalmente determinada pela função.
Nas culturas dos primeiros homens modernos – Homo sapiens sapiens, por
vezes identificado (erradamente) com o Crô-Magnon18 – não há instrumen-
tos intermédios: todos pertencem claramente a uma categoria específica. Em
Homo erectus não era assim, e não era assim também em Homo neanderthalensis.
Isto significa que a nossa espécie processa informação de maneira significati-
vamente diferente da dos nossos antepassados ou colaterais evolutivos: tudo
parece ter de pertencer a uma classe.
Ou seja, e voltando à ideia de que o ER se torna mais «forte» e de que tem
de haver, para a evolução da linguagem, biunivocidade entre o estímulo per-
cepcionado e o estímulo representado, verifica-se que, na nossa espécie, a
representação mental é mais importante do que o próprio estímulo, na medida
em que a classe (a representação mental) se substitui ao estímulo (como
vimos na experiência de Carmichael e Hogan).

18
Erradamente porque Crô-Magnon é um homem europeu e o homem moderno apareceu
em África. O primeiro fóssil moderno é africano e tem cerca de 200 Ka (o homem do Vale de
Omo).

56
A REIFICAÇÃO E AS CLASSES

INTRODUÇÃO

Vimos, no capítulo anterior, que a nossa espécie representa os acon-


tecimentos incorporando-os em classes; as características dessas classes
ganham precedência sobre as características dos próprios fenómenos, de
forma que as visões do real são reificadas segundo essas classes. Referimos,
também, que essas classes eram fornecidas pela cultura. Veremos agora o
problema das classes e da reificação com mais detalhe. Consideraremos, em
primeiro lugar, o problema das categorias e como elas determinam os recor-
tes do mundo típicos de cada cultura. Depois mostraremos que as categorias
podem ser de vários tipos, desde as claramente descritíveis até às mais subtis.

O QUE SÃO AS CLASSES?

As classes foram estudadas em vários domínios, desde a Antropologia


(Berlin, 1992) à Psicologia (por Eleanor Rosch; ver, por exemplo, Rosh,
Simpson e Miller, 1976 e Mervis e Rosch, 1981) e em termos das novas teo-
rias construcionistas ( Johnson, 1987, Lakoff e Johnson, 1980 e Lakoff, 1987).
Referir-nos-emos em primeiro lugar à obra de Johnson. Este autor chama
a atenção para o facto de que o significado, longe de ser capturado por cate-
gorias linguísticas bem definidas, é vertido em estruturas cognitivas muito
gerais – os esquemas cinestésicos de imagem. Estes esquemas são extrema-
mente próximos dos que pudemos inferir a partir do uso de ferramentas:
esquemas recipiente-contentor, parte-todo, origem-caminho-meta, ligação,
centro-periferia. Estes conceitos seriam «incorporados» («embodied»), no sen-
tido de que dependem da nossa relação com o ambiente. Lakoff (1987)
amplia esta visão para dar conta de vários tipos de categorias, por exemplo,
as radiais (centro-periferia),19 as hierárquicas (parte-todo) e as de relação
(ligação). O que o autor defende é então que estas estruturas – esquemas –
funcionam como uma armação do espaço conceptual, definindo classes cul-
turalmente estabelecidas. Neste sentido, a presente análise é notavelmente
convergente com o pensamento de Johnson e Lakoff.
19
As estruturas radiais são categorias compostas em que existe uma subcategoria central que se
encontra ligada, de forma culturalmente convencional, a várias outras subcategorias. Estas subca-
tegorias não têm de ter nenhuma relação lógica com a central: é apenas necessário que essa
relação seja estabelecida por uma cultura, de tal forma que o conhecimento das propriedades da
subcategoria central não permite prever quais as subcategorias associadas.
A ideia é concretizada por Lakoff e Jonhson (1980) que pretendem que
esses esquemas, originados na nossa experiência de relação com o ambiente,
seriam a base de metáforas que estruturariam as nossas representações. Essas
metáforas seriam muito variadas («o amor é uma construção co-participada»,
por exemplo) e típicas da cultura. Embora os autores não explicam de onde
vem a capacidade de representar através destes esquemas e apesar de uma
ênfase demasiado grande na formulação linguística das metáforas, é inegável
a semelhança com a noção de que há estruturadores praxianafóricos que
permitem uma apreensão de muitos fenómenos.
O trabalho de Eleanor Rosch mostra, igualmente, que as categorias,
mesmo as linguísticas, são influenciadas por elementos não-linguísticos, no
caso, perceptivos. Rosch defende que as categorias têm uma representação
central, prototípica, que corresponde a uma imagem média dos melhores
exemplos dessa categoria. Por exemplo, um pardal ou um melro são melho-
res exemplos de «ave» que um avestruz ou um pinguim. Esse protótipo tanto
pode ser um elemento real, existente, como a referida média dos melhores
exemplos. Assim, o conceito de «cadeira» não corresponde, provavelmente,
a nenhuma cadeira específica que conheçamos, mas a uma abstracção dos
elementos fundamentais dos membros mais típicos de uma cadeira: um
assento, quatro pernas mais ou menos perpendiculares ao plano do assento e
umas costas em ângulo obtuso com o plano do assento.
É este o nível em que tendemos a categorizar a informação. Assim, Rosch,
Simpson e Miller (1976) mostraram que os sujeitos conseguem listar mais
facilmente os atributos de nível mais central – mais próximos do protótipo –
do que os de nível mais marginal e que esse nível central é o nível de descri-
ção espontaneamente usado pelos adultos, sendo ainda adquirido pelas cri-
anças em primeiro lugar.

As categorias (classes) como deformadores cognitivos

A noção de que a representação dos conceitos se faz pelo nível mais cen-
tral – mais próximo do protótipo – ajuda a compreender que os conceitos
podem ter uma influência deformadora na percepção de tal modo que mos-
tra que quando se reduz um fenómeno a uma classe, o fenómeno ganha as
características dessa classe.
Isto foi claramente mostrado pela experiência, referida no capítulo ante-
rior, de Carmichael, Hogan e Walter (1923, apud Hartley, 1995) que apresen-
taram aos sujeitos figuras esquemáticas ambíguas. Essas figuras eram identifi-

58
cadas como uma de duas coisas compatíveis com o desenho (por exemplo,
dois círculos unidos por um traço podiam ser apresentados como «óculos»
ou como «alteres»). Ao desenhar de memória as imagens, os sujeitos mostra-
ram uma contaminação da semântica sobre a percepção: os desenhos eram
modificações das figuras que as tornavam mais próximas dos referentes dos
conceitos verbais a que foram identificados.
Refira-se ainda o «efeito Kulechov». Rothbarth e Birrell (1977 e ver Wal-
bott 1988) mostraram aos sujeitos experimentais uma fotografia de uma cara
neutra mas de tipo germânico e com um nome alemão. A alguns era dito
que se tratava de um criminoso de guerra nazi e a outros que era um comba-
tente anti-nazi que tinha salvo milhares de judeus. Com esses dois contex-
tos, pedia-se aos sujeitos para descreverem a expressão facial da fotografia: os
resultados foram quase inteiramente determinados pela categoria em que o
sujeito tinha sido previamente colocado: expressão malévola, boca dura e
olhos cruéis ou ar sereno e carinhoso.
Os conceitos linguísticos têm, pois, um potencial de estruturação da per-
cepção. O efeito não é tão extremo como a hipótese de Whorff (ver discus-
são em Hartley, 1995 e uma apresentação interessante em Devlin, 1997, por
exemplo) pretendia, no sentido de que culturas diferentes não têm percep-
ções completamente diferentes. Mas a assimilação de um dado percepto a
uma classe linguística determina a sua reprodução. 20

20
Este tipo de fenómenos tem repercussões profundas na representação que se faz do mundo.
Um exemplo particularmente nítido da importância dos factores cognitivos sobre a percepção
vem do famoso falsificador Van Megeren que, na primeira metade deste século, forjou vários
Vermeers (Ungaretti e Bianconi, 1967). Vendo agora esses «falsos» fica-se espantado com a disse-
melhança entre os Vermeers verdadeiros e os Van Megerens. Contudo, na época, aquilo que se
procurava (e, incrivelmente, o que se encontrava) em Vermeer era aquilo que Van Megeren
dava; o facto de actualmente os acharmos completamente diferentes apenas mostra que pen-
samos que Vermeer é uma coisa, e que os nossos avós pensavam que era outra: temos expecta-
tivas diferentes sobre o que é «um Vermeer». Há muitos mais exemplos de casos em que as
cópias são «melhores» do que os originais, principalmente nos pastiches do sec. XIX. Entre nós,
um exemplo óbvio é o palácio da Pena.

59
FIGURA 1: Os resultados de Carmichael e Hogan

Retenha-se, então, a importante conclusão de que a inclusão de um ele-


mento numa categoria faz que esse elemento perca a sua individualidade
para ganhar as características da categoria.

TIPOS DE CATEGORIAS (CLASSES)

Há muitos tipos de categorias. Algumas são extremamente claras, como as


que têm um rótulo verbal. As mais evidentes são as «teorias partilhadas»
numa determinada cultura ou num determinado grupo. Outras são muito
menos evidentes mas nem por isso são menos determinantes.

Recortes do real

Os conceitos diferem de cultura para cultura, tornando a comunicação

60
inter-cultural extremamente difícil. Há, no Japão, um conceito que exprime
o prazer da dependência relativamente a um superior, que não tem qualquer
correspondência entre nós (Doi, 1973). Lutz (1988) refere o termo Ifaluk
(Micronésia) fago que agrupa compaixão, amor e tristeza sentidas em con-
textos de dependência e assimetria hierárquica (filho-mãe, por exemplo). Na
Grécia arcaica e clássica, hybris descrevia a arrogância e insolência irresponsá-
veis do homem que não se considera inferior aos deuses (por exemplo, Sófo-
cles, Ájax, 770). Todos estes casos nos fornecem agrupamentos de significa-
dos distintos dos que nós usamos. O exemplo mais célebre é o dos famosos
conceitos Dyirbal bayi, balan, balam e bala (Lakoff, 1987). Dada a complexi-
dade do sistema, apenas podemos referir que as quatro categorias são mutua-
mente exclusivas, que têm centros opostos entre si e vários princípios de
ligação entre elas. Uma das categorias, bala, é aquela que recebe os casos que
não cabem nas anteriores.
Por mais arbitrários que sejam os recortes do real das várias culturas, os
conceitos permitem relacionar grandes grupos de significados uns com os
outros. Sem dispor de palavras, esse relacionamento é muito mais difícil. Por
exemplo, é fácil relacionar o termo alemão Schadenfreude (alegria pelo infor-
túnio alheio) com o conceito de «mesquinhez», mas na ausência da palavra
portuguesa correspondente a Schadenfreude, o processo é mais difícil. De
facto, a palavra vai funcionar como um «objecto» com determinados atribu-
tos (os atributos prototípicos da classe que simboliza), objecto esse que pode
ser relacionado com outros «objectos» linguísticos. Assim, a categorização
semântica, ao permitir agrupar, debaixo de um nome, uma série de elemen-
tos psíquicos diferentes, permite manipulações muito vastas de conceitos.
Por exemplo, pode-se relacionar o conceito abstracto de átê (a loucura
divina, que os gregos invocavam para explicar os comportamentos incom-
preensíveis; ver Dodds, 1988) e o de hybris, como ocorre em várias tragédias
(no Ájax, de Sófocles, à hybris sucedeu-se a átê). A grande vantagem desse
processo consiste em poder relacionar grandes conjuntos de significados em
termos dos seus protótipos de significado. Ao fazer-se isso, estrutura-se o
ambiente em recortes conceptuais particulares, normalmente típicos de uma
cultura ou de uma teoria (por exemplo, quando um freudiano usa o con-
ceito de «sexualidade» está a usar um conjunto de referentes bastante dife-
rente do que o que está por debaixo do conceito de «sexualidade» de um
etólogo). Mas o facto importante é que esses grandes conjuntos podem ser
relacionados com outros, igualmente vastos («dominância», em etologia, ou
«neurose», no freudismo).
Assim, os processos de categorização e reificação permitem criar conjun-
tos polilíticos de significado extremamente vastos e que não se restringem

61
aos elementos particulares integrados em cada categoria. Trata-se, portanto,
de um processamento de informação num nível mais alto do que o dos
exempla que implica, naturalmente, um obscurecimento do detalhe mas que
permite, em compensação, o relacionamento de grandes grupos de dignifi-
cado.
Pode-se dar um exemplo tirado do trabalho de Godfrey Lienhadt (1961)
que mostra – tanto quanto é possível as palavras conseguirem explicá-lo –
como esta relação entre grandes classes de significado funciona.

Classes de experiência e reificação entre os Dinka,


segundo Lienhardt

Segundo Lienhardt, os Dinka não têm noção de que os pensamentos e


sentimentos ocorrem num espaço psíquico. Para eles, trata-se de forças exte-
riores que determinam quer a experiência quer os acontecimentos. Isto é, e
na terminologia usada neste livro, a experiência cognitiva e emocional é
directamente reificada numa entidade exterior ao sujeito. Um exemplo inte-
ressante disto é a noção de Mathiang Gok, correspondente à nossa consciên-
cia moral. Nos Dinka, Mathiang Gok é um feitiço – um objecto21 – que
outras pessoas podem usar de forma a criar no sujeito sentimentos de culpa.
Note-se a concrecção imediata de um sentimento cognitivo e emocional
interno num objecto externo – uma típica reificação num objecto con-
creto.22
No mesmo espírito, segundo Lienhardt, toda a experiência é referida a
entidades externas, a «imagens» sintéticas que condensam campos muito
extensos de experiência. Tratar-se-ia de

[...] representações (ou, como prefiro chamar-lhes, ‘imagens’) evocadas


por certas configurações de experiência contingentes à reacção dos Dinka aos
seus meios físicos e sociais específicos [...]23

21
É frequente em Português encontrarmos a expressão francesa «fétiche»; mas a sua utilização
é mero pretenciosismo e ignorância, visto que «fétiche» é uma corruptela do Português «feitiço».
22
Ana Isabel Rodrigues de Sá Saraiva (trabalho em preparação) divide o conceito de reificação
em dois momentos distintos: a apreensão do conceito, que passa a substituir o sentimento ou
ideia (a que a autora chamou doxificação, do grego δόξα, conceito) e um momento de concreti-
zação num suporte físico concreto. A este segundo momento chamou, como no presente livro,
concrecção.
23
«[...] representations (or as I here prefer to call them, ‘images’) evoked by certain configurations of
experience contingent upon the Dinkas’ reaction to their particular physical and social environment [...]
(pag. 147).

62
Essas representações encontram-se condensadas em «Poderes» com nomes,
que são ao mesmo tempo conglomerados de sentimentos e de experiências,
formando aquilo a que aqui se refere como classes ou categorias interactuan-
tes.
Se interpreto o autor correctamente, há, principalmente, quatro grandes
grupos de experiência, reificados em termos de «Poderes». Três deles encon-
tram-se juntos de forma explícita (derivando uns dos outros) e opõem-se ao
restante. Este último é Macardit, a que corresponde a cor negra e todos os
aspectos negativos da vida Dinka. Encontra-se particularmente associado
com a esterilidade e com o infortúnio sem remédio. Macardit é poderoso e
temido, mas não é respeitado – é necessário fazer-lhe oferendas para aplacar
a sua maldade, mas são os membros menos importantes das famílias os res-
ponsáveis por essa actividade. Mesmo o altar a Macardit encontra-se na resi-
dência da última consorte, mas separado da casa propriamente dita. Talvez o
núcleo de significado deste poder seja a esterilidade e a morte.
No oposto, estão três poderes, como vimos. Trata-se de Deng, Garang e
Abuk. Deng é o poder mais próximo da divindade una – os Dinka são filhos
de Deng. Opõe-se, directamente, a Macardit: é associado com a fertilidade e
com as chuvas. As chuvas põem termo à dura e perigosa estação da seca e
fazem renascer as pastagens, as árvores e é sinal de que as pessoas podem
procriar (durante o cume da estação seca o sexo é condenado). Encontra-se
igualmente associada ao relâmpago e ao trovão, que são considerados como
a expressão visível do poder da divindade – as árvores derrubadas por um
raio são os altares de Deng e um homem que seja morto por um raio não é
chorado; foi «escolhido por Deng». As suas cores são o preto e branco, apa-
rentemente por semelhança com o relâmpago que estria as nuvens negras.
Está estreitamente relacionado com Abuk, de quem pode ser filho ou
marido – consoante as vsersões – e com Garang, de quem é pai ou filho.
Garang é um deus mais especificamente masculino. Trata-se de um poder,
mas Garang é também o nome do primeiro homem criado. Parece ser um
senhor do Sol – responsável quer pelo calor excessivo quer pela frescura que
alivia; no final da estação seca sacrifica-se a Garang (e não a Deng) para que
ele termine a estação seca. Pode possuir os homens, que ficam, em con-
sequência, «homens de Garang», com poderes de cura. Está particularmente
relacionado com os juramentos, que se fazem sobre as «cinzas de Garang» –
os restos dos fogos erigidos a Garang pelos homens de Garang mais respeita-
dos. Pensa-se que uma jura falsa feita sobre as cinzas de Garang trará a morte
ao culpado. As suas cores são o vermelho e branco, ou o ocre e o branco.
Abuk é o espírito feminino correspondente a Garang. Representa a

63
mulher e a mãe arquetípicas – de resto Abuk é também o nome da primeira
mulher criada. É mulher de Deng e mãe de Garang (há outras versões, mas
os três encontram-se sempre aparentados por casamentos e filiação). Encon-
tra-se estreitamente associada às actividades femininas e às colheitas.
Estes poderes estariam relacionados de formas específicas, ainda que
inconscientes:

Como já referi, [os Poderes] incluem numa unidade orgânica experi-


ências que nós consideraríamos separadamente como físicas e morais.24
Assim, por exemplo, chuva-frescura-pastagens-gado-leite-procria-
ção-abundância-vida-luz e também chuva-nuvens-trovão-relâm-
pago-morte súbita, não nesta ou em qualquer ordem sucessiva, são,
todos eles, representados por DENG. Além disso, temos a associação
de DENG com ABUK, como filho e marido, e a associação de
ABUK com a vegetação e, particularmente, as colheitas. E também,
considerando apenas um dos elementos da experiência imagética da
relação de DENG e ABUK, as associações de DENG com a chuva
sugerem ainda as túmidas pastagens que os Dinka querem para o seu
gado e as ricas colheitas que servirão às mulheres para fazer papa e cer-
veja. O gado é um assunto masculino – homens e filhos – e DENG é
uma divindade masculina e um filho e um pai. Os jardins, apesar de
serem parcialmente trabalhados pelos homens, pertencem primordial-
mente às mulheres que, em qualquer caso, são as responsáveis por
transformar os produtos em alimento. De forma semelhante, ABUK é
uma divindade feminina que preside aos assuntos das mulheres e ela e
DENG são juntamente invocadas, muitas vezes como mãe e filho,
para trazer aos Dinka a fertilidade e a prosperidade – a «vida» – a que
os trabalhos conjuntos dos homens e das mulheres darão origem entre o
gado e as colheitas e em condições adequadas de chuva e sol.
GARANG, associado, entre outras coisas, ao Sol, faz parte desta
família trinitária. Através da associação estabelecida entre
GARANG, poder, e Garang, primeiro homem, entre ABUK e
Abuk, a primeira mulher e entre DENG e Deng, o filho deles ou o
marido de ABUK, o conjunto da configuração de experiências que
projectam conjuntamente numa imagem é enriquecido pela sua inclu-
são na paternidade, maternidade e filialidade originais. Na nossa des-
crição anterior fomos forçados a considerar a riqueza imagética dos
poderes um por um; mas é da representação de configurações extrema-

24
Por «morais», deve compreender-se «psicológicas»; trata-se de um uso já inabitual do
termo – ao «físico» opõe-se o «moral».

64
mente complexas de experiência física e moral, cujos elementos não se
encontram separados uns nos outros mas como que impregnados em
extensas metáforas, que os Poderes tiram a sua força.25

Vemos, portanto, que conceitos muito amplos e polissémicos estruturam


a mundivisão de um povo, formando aglomerados de significado inter-rela-
cionados poliliticamente. Assim se compreende como a base praxianafórica
lida com conceitos que são, eles próprios, polílitos que interagem – como
totalidades – com outros polílitos.

As teorias partilhadas

Todas as culturas têm teorias sobre os fenómenos. Em certo sentido, uma


cultura é, precisamente, um conjunto de teorias sobre o mundo. Essas teo-
rias são transmitidas aos indivíduos, que são enculturados e que passam a ver
o mundo de acordo com elas. A História da Ciência dá-nos um bom con-
ceito para exemplificar este tipo de processo: o de «paradigma» (Kuhn, 1970).
Um paradigma é um conjunto de estruturações do mundo que fazem que as
pessoas possam comunicar usando referenciais comuns. Esse processo
implica que os recortes (os conceitos) sejam partilhados, que os problemas

25
As I have said, they include what we should distinguish as physical and moral experience in an
organic unity. Thus, for example, rain-coolness-pastures-cattle-milk-procreation-abundance-life-light
and also rain-clouds-thunder-lightning-sudden death, not in that or any sort of successive order, are all
represented by DENG. In addition, there is the association of DENG with ABUK, as son or husband,
and the association of ABUK with the vegetation and particularly the crops. Again, taking only one of
the elements of the experience imaged by DENG and ABUK in relationship, the rain-associations of
DENG suggest equally the lush pastures which the Dinka want for their cattle, and the rich harvests
from which their women will prepare porridge and beer. The cattle are the affair of men--of husbands
and sons-and DENG is a male divinity, and a husband or a son. The gardens, though partly worked by
men, belong primarily to the women, who in any case do the work of turning their produce into food.
ABUK similarly is a female divinity and presides over women's affairs, and she and DENG are called
upon together, often as mother and son, to bring the Dinka the fertility and prosperity-the 'life'-which the
joint labours of men and women among the cattle and the crops in suitable conditions of rain and sun
will bring. GARANG, associated with the sun among other things, is part of this family of three. By the
association often made between GARANG the Power and Garang the first man, between ABUK and
Abuk the first woman, and between DENG and Deng, their son or ABUK'S husband, the whole config-
uration of experiences they image together is further enriched by the inclusion in it of an original father-
hood, motherhood, and sonship. In our earlier description we could only proceed by considering the
'imagery' of the Powers seriatirm; but it is in the representation of extremely complex configurations of
moral and physical experience, the elements in which are not distinct from each other but are embedded,
as it were, in extensive metaphors, that the Powers have their force. Pag. 160-161).

65
considerados relevantes sejam aceites por todos os membros do mesmo
paradigma e que os métodos para os resolver sejam, igualmente, aceites e
partilhados. Seria difícil encontrar um melhor exemplo na Etnografia, cujos
dados repetem, sistematicamente, este tipo de processo: cada cultura é um
paradigma, um conjunto de recortes do mundo ligado a um consenso sobre
os tipos de explicação que os problemas devem receber. Essas explicações
podem ser tecnológicas, metafísicas e rituais, ou, como no Ocidente univer-
sitário, tecnológicas, meta-teóricas e metodológicas.
Isso acontece porque até o tipo de relações praxianafóricas toleradas em
cada paradigma é especificado. Por exemplo, na nossa cultura académica,
com raras excepções, as relações para-lógicas e as explicações mágicas não
são toleradas, o que contrasta com a maior parte das culturas ágrafas ou
mesmo às culturas ocidentais pouco influenciadas pelo espírito das luzes (a
persistência de parapsicólogos e outros especialistas do oculto, mesmo em
níveis sócio-económicos e hierárquicos elevados testemunha-o veemente-
mente).
Rappaport (1971) dá um interessantíssimo exemplo de como se pode fazer
coincidir uma explicação mitológica com uma explicação ecológica (ociden-
tal) sobre o controlo de recursos do ambiente, entre os Tsembaga. Uma cos-
mologia extremamente complexa faz que haja um controlo do número de
porcos de forma que o ambiente nunca é sobre-explorado e que a carne é
distribuída pelas populações de forma equitativa.
O aspecto psicologicamente mais interessante da influência destes para-
digmas é a extrema dificuldade que temos em pô-los em causa. Kuhn já refe-
rira que a comunicação inter-paradigmática é difícil. Isso é tanto mais ver-
dade quanto é certo que é através dessas teorias que conseguimos que o
mundo faça sentido; ora é difícil por em questão os meios de ver e perceber:
as categorias e as teorias partilhadas não são sentidas como categorias ou teo-
rias mas como o próprio recorte do real.26
Um exemplo da resistência que existe a alterar uma teoria bem estabele-
cida é-nos dada por Anderson, Lepper e Ross (1980). Estes autores transmiti-
ram um conjunto de dados que sugeriam uma teoria particular. Os sujeitos
tinham de explicar esses dados e verificar essa teoria construindo pessoal-
mente as ligações entre os dados e a teoria (no caso: homens que correm ris-
cos são melhores bombeiros do que homens prudentes). A partir do
momento em que a teoria se encontra estabelecida vai enviesar completa-
mente a interpretação de outros dados subsequentemente apresentados:

26
Já encontrámos este problema quando referimos que o Eu-sujeito não tem consciência de si
próprio, funcionando apenas como um espaço de consciência mas fundamentalmente auto-
-inconsciente.

66
ainda que eles vão contra a teoria, ela não será afectada e os sujeitos interpre-
tam sempre os dados como corroborações dessa teoria.

Redes de significado

Os exemplos anteriores são particularmente claros. Contudo, há casos em


que a influência das categorias transmitidas pela cultura é muito menos clara.
Como vimos, Lakoff e Jonhson (1980) sugerem que as metáforas implíci-
tas estruturam as nossas mundivisões. Essas metáforas têm um potencial de
organização narrativa muito grande. Nomeadamente, vão permitir estrutu-
rar a experiência, que flui para essas metáforas da mesma forma que uma
configuração se encaixa num mecanismo desencadeador ou da mesma
maneira que a água vertida num copo adquire a forma desse copo. Dessa
forma, tornam a experiência inteligível, dão-lhe sentido, e relacionam-na
com outras experiências. Segundo Lakoff e Jonhson, são as metáforas que
dão o significado à nossa espécie.
Antes de prosseguir na análise das metáforas, deve referir-se um trabalho
já antigo mas muito interessante. Freedman e Fraser (1966) pediram a pessoas
que habitavam em vivendas em jardins bem arranjados que aceitassem usar
um pregador que dizia «Seja um condutor prudente». Duas semanas mais
tarde, outros experimentadores, aparentemente sem ter nenhuma relação
com os primeiros, pediram às mesmas pessoas autorização para instalar no
jardim um enorme e feio cartaz dizendo «Guie com cuidado». A probabili-
dade de aceitação é muito maior do que a das pessoas que não usaram o pre-
gador (76% contra 17%). Aparentemente, não é necessário que a primeira
tomada pública de posição seja específico à condução cuidadosa: outros
comprometimentos com o «bem público» (no caso, assinar uma petição para
manter o distrito bonito) têm efeito significativo, embora menor. O que
teria sucedido é que a auto-imagem da pessoa se alterou, tendo passado de
cidadão anónimo a cidadão interessado no bem público.
Penso que este dado se deve aproximar da formulação teórica de Lakoff e
Jonhson. O efeito da manipulação de Freedman e Fraser seria o de activar
uma representação social: de «indivíduo anónimo», o sujeito passaria a «cida-
dão interessado pelo bem público» porque o acto de assinar uma petição
pelo bem público é indício de que o sujeito pertence a essa categoria de cida-
dãos. Assim, o «eu» seria sentido pelo sujeito como um todo integrado,
devendo haver congruência entre os seus actos. O funcionamento deste tipo
de integração em padrões prévios deve ser bastante semelhante à exploração

67
psicoterapêutica de determinada metáfora (por exemplo, Gonçalves, 1990,
1994, 1995). O processo seria o descrito abaixo.
Um padrão conhecido gera uma série de comportamentos específicos a
esse padrão (por exemplo, «um homem honesto não trai a mulher e diz,
geralmente, a verdade»); esses comportamentos serão generalizados quer
especificamente (se o homem é honesto, não trai a mulher) quer de forma
mais subtil (por exemplo, não mentir  gostar das coisas bem definidas 
preferir a nitidez no discurso e nas artes plásticas). Este processo seria acti-
vado pela motivação de congruência implicada já no módulo «intérprete» de
Gazzaniga (1985, ver adiante) e frequentemente atestado no funcionamento
psicológico (ver Cialdini, 1993, Sá-Nogueira Saraiva, 1997, e ver adiante).
Nesse sentido, há que expandir o significado das «metáforas» de Lakoff e
Jonhson, que funcionariam mais como «redes de significado activadores de
preferências e de comportamentos» do que apenas como metáforas. Assim,
enquanto que as metáforas enfatizam o conhecimento (ver, por exemplo,
Lakoff e Jonhson, cap. 22), nesta expansão dessa teoria, passamos também a
dar atenção aos comportamentos que parecem ser implicados por esse
conhecimento.
Algumas dessas organizações culturais de significado são importantes para
determinada pessoa, no sentido de lhe estruturarem o conhecimento e o
comportamento, enquanto que para outras não. No limite, uma pessoa
muito criativa poderá criar as suas próprias redes de significado. Mas o que é
importante compreender é que, dependendo da rede de significado particu-
lar que cada pessoa usa, as afirmações que faz ou que ouve podem ser inter-
pretadas de forma diferente. No limite, uma dada afirmação pode, indepen-
dentemente de ser acreditada ou não, ser «irreconhecível» pelas redes que
estruturam o significado profundo do sujeito. Contudo, as afirmações
«interpretáveis» pelas redes de significado são reconhecidas e podem afectar
o seu comportamento.
Claro que se o sujeito disser uma coisa que pense ser falsa, essa coisa em
nada afectará as redes de significado/acção; como vimos no parágrafo ante-
rior, se disser uma coisa que pensa ser verdade mas que não tem uma relação
óbvia com os as suas redes de significado profundo, essa afirmação pode per-
manecer «inerte», e em nada afectar o comportamento do sujeito. Mas se
fizer uma afirmação pertinente para esses estruturadores profundos, ela terá
efeito, combinar-se-á com esses estruturadores e poderá vir a afectar o com-
portamento e a vida psíquica do sujeito. Essas afirmações que activam a rede
profunda de significado, se forem acreditadas, «alastrarão» e modificarão a
própria rede se estiverem em contradição com ela. Teria sido isso que ocor-
reu na experiência Freedman e Fraser (1966): o uso público do pregador acti-

68
vou uma rede de «bom cidadão» que se encontrava «adormecida»; subse-
quentemente, o comportamento tendeu a ser congruente com essa rede.
Essas redes não são, na maior parte dos casos, conscientes, como Lakoff e
Jonhson compreenderam e a experiência de Freedman e Fraser (1966) mos-
tra. Hipotetizo que também não têm de ser verbais, no sentido de que não
têm de ter uma representação de todos os passos lógicos verbalizados.
Parece-me mais provável que uma estrutura profunda de «probidade», por
exemplo, afecte globalmente o comportamento no sentido de moderar os
«excessos»; provavelmente também haverá estruturadores «clásticos», «trans-
gressores», «rebeldes», etc., que afectarão o comportamento de forma ampla
e eficaz, embora pouco claramente compreendida. Nesse sentido, certos
estruturadores profundos chegam a funcionar como «estéticas de vida» que
determinam a globalidade do comportamento da pessoa.
Deve, ainda, chamar-se a atenção para a congruência desta visão com os
conceitos de «cultura dionisíaca/cultura apolínea» de Ruth Benedict (1934),
com a noção de ethos de G. Bateson (1958), com a ideia de «regímenes do
imaginário» de Gilbert Durand (1969), e, finalmente, com a noção de «for-
mas de vida» de E. Spranger (1935/1961). Em todos estes casos se procura
uma caracterização de nível hierárquico muito elevado para descrever a
existência de grupos homogéneos de funcionamento numa sociedade (cor-
respondendo, mais ou menos, à noção clássica de «personalidade»). Sugiro
aqui que estamos em presença de estruturadores imagético-semânticos
gerais, como os referidos por Lienhardt (1961), e que são transmitidos aos
indivíduos de acordo com os processos que descrevi noutro local (Saraiva,
1999; ver, também, Saraiva, 1998) e graças à actividade ritual (ver Turner,
1969, e Rappaport 1999).

COMO SE TRANSMITE A CULTURA

Vimos, na secção anterior, como podem as categorias da cultura influen-


ciar poderosamente o comportamento humano, criando novas e complexas
instruções de comportamento. Veremos agora como ocorre esse processo de
transmissão social. Este tema ser-nos-á de grande utilidade no próximo capí-
tulo, sobre reificações e cooperação na nossa espécie.

A procura de razões

O homem parece precisar de explicações ainda que elas em nada o eluci-

69
dem. Já Comte referia a vacuidade do processo de tentar explicar um fenó-
meno com uma propriedade postulada a partir da observação desse fenó-
meno (as plantas cresceriam por «propriedade ‘crescitiva’»). Os trabalhos da
Psicologia humana mostraram, efectivamente, que a nossa espécie precisa de
perguntar sempre porquê, mas se contenta com quase qualquer explicação.
Assim, desde que num pedido apareça a palavra «porque», mesmo que a jus-
tificação seja o próprio pedido, as pessoas têm maior tendência para aceitar o
pedido (Langer, Blank e Chanovitz, 1978, Langer, 1989): numa bicha de
fotocópias, o pedido «Desculpe, tenho cinco/vinte fotocópias para fazer;
posso usar a fotocopiadora porque tenho de fazer as fotocópias?» tem tanto
sucesso quanto o que se justifica por «estar cheio de pressa», e ambos são
muito mais bem sucedidos do que o pedido sem justificação.
Há, na literatura psicológica, muitos exemplos de casos em que as explica-
ções para o comportamento são dadas depois do comportamento e de forma
totalmente inventada. Por exemplo, se se der a uma pessoa uma sugestão
post-hipnótica (executar um acto qualquer) que ela cumpre e, depois, se lhe
perguntar porque realizou esse acto, obteremos, em vez do esperado «não
faço ideia», uma explicação consistente (Freud, 1953/1976, secção iv).
Um caso célebre é o de Charles Darwin que, na sua autobiografia, cons-
truiu a sua vida científica sugerindo que a leitura de Malthus lhe tinha
aberto os olhos para o mecanismo de selecção natural e que a visita aos Galá-
pagos lhe tinha chamado atenção para o problema da especiação. Contudo,
os seus cadernos de notas contemporâneos refutam totalmente essa interpre-
tação: foi Darwin que, depois dos acontecimentos, atribuiu a esses factos
significados especiais, contando, inconscientemente, a história de forma
muito diferente (ver Gould, 1980, 51 ensaio). Ou seja, como qualquer pes-
soa, Darwin tentou dar um sentido coerente à sua vida: trata-se de uma ten-
dência para a auto-congruência biográfica que implica a reestruturação das
relações entre os vários acontecimentos. Mais uma vez se verifica a tendên-
cia para moldar os acontecimentos de acordo com uma teoria partilhada. O
empirismo britânico do sec. XIX pretendia que só se pode chegar ao conhe-
cimento através da acumulação de observações empíricas. Reorganizando,
involuntariamente, as suas memórias para se conformarem à teoria empirista
Darwin, na maior das boas-fés, conseguiu dar sentido à sua vida nos moldes
da sua cultura.
Um caso menos célebre de outra figura célebre é-nos dado por Piaget
(1964, cap 7, nota 3; ver também Bringuier, 1977): uma das suas mais nítidas
memórias de infância (um rapto) foi uma construção feita por ele próprio
(inconscientemente) sobre uma história totalmente falsa inventada pela ama
(um «rapto» da criança no seu berço, com intervenção de um polícia, de que

70
Piaget se «recordava» distintamente; muito mais tarde, a ama, que tinha sido
bem recompensada pela família, fez questão de confessar a sua mentira, e
assim Piaget soube que tinha inventado toda a recordação).
As histórias inventadas por nós dão, pois, sentido ao real. Uma das conse-
quências deste facto é que, havendo histórias bastante fortes ou estruturadas,
há tendência para forçar o real a integrar-se nessas histórias. O caso de
Darwin volta aqui a servir-nos de exemplo: a forma escolhida para a narra-
tiva autobiográfica está de acordo com a filosofia empirista da época, ainda
que os seus cadernos de notas contemporâneos da elaboração da teoria da
selecção natural e das observações anteriores contem uma história completa-
mente diferente.
Este processo de invenção de explicações não está bem estudado em ter-
mos psicológicos. Paradoxalmente, está bem identificado em termos neu-
ropsicológicos. Em algumas afecções médicas, secciona-se o corpo caloso
dos pacientes, impedindo a transferência da informação entre os dois hemis-
férios cerebrais. Se se apresentar a um destes pacientes uma imagem dife-
rente a cada um dos hemisférios cerebrais e se se lhe pedir para seleccionar,
de uma série de cartões disponíveis, aqueles que têm relações com a imagem
que ele tem consciência de ver (a imagem apresentada ao hemisfério
esquerdo), o sujeito apontará para dois cartões, cada um relacionado com
cada uma das imagens apresentadas aos hemisférios. Até aqui, os resultados
apenas traduzem o facto de que o sujeito se limita a reagir às duas imagens
que, na ausência do corpo caloso, não foram integradas. A parte mais inte-
ressante ocorre quando se lhe pergunta a razão de ser das escolhas. Recorde-
mos que o sujeito apenas tem consciência de ter visto o estímulo apresen-
tado ao hemisfério esquerdo, no caso, uma galinha. Mas tem, também,
consciência de ter apontado para duas figuras, no caso, uma pata de galinha e
uma pá. Note-se que o sujeito não sabe porque é que apontou para a pá (na
realidade porque a pá corresponde à imagem apresentado ao hemisfério
direito). A sua resposta é instrutiva: em vez de dizer que não sabe porque o
fez, dá uma resposta imediata – escolheu a pata da galinha e uma pá para
limpar o galinheiro (Gazzaniga e Le Doux, 1978, e Gazzaniga, 1985, 1992;
ver mais exemplos nestes três trabalhos).

Estamos perante uma das funções mais importantes da linguagem: a de gerar sen-
tidos que possam ser cognitivamente trabalhados. Que esses sentidos possam não
ter qualquer relação com a realidade é um fenómeno perturbante, mas nem
por isso deixa de ser real (ver revisão deste assunto e referências adicionais
em Saraiva, 1997).

71
FIGURA 2: A tarefa do
comissurectomizado (modificado de
Gazzaniga)
O que tudo isto significa é que temos um mecanismo neural que obriga à
congruência e que o faz construindo explicações, ainda que completamente
dissociadas das causas reais do fenómeno. Gazzaniga chamou a este meca-
nismo o «módulo intérprete». Tal como as categorias seleccionam e agrupam
em termos culturais uma ou mais características de um universo possível
muito maior, a explicação classifica um acontecimento em termos de cate-
gorias de relações causais disponíveis culturalmente. Em qualquer dos casos,
estamos perante uma estruturação do significado que é biologicamente de-
terminada (há uma necessidade de dar nome ou de encontrar explicação)
mas que é preenchida com conteúdos culturais.
Da mesma forma, se se provocar movimentos da cabeça através de estimu-
lação directa do córtex motor e se perguntar aos sujeitos a razão de ser do
movimento, imediatamente surge uma explicação do comportamento, que
o sujeito considera como voluntariamente determinado (Pines, 1973).
Na Psicologia foram descobertos vários fenómenos que corroboram esta
ideia: o nosso juízo sobre o real e mesmo sobre nós próprios parece por
vezes ser um simples comentário ao nosso próprio comportamento. Por
exemplo, achamos menos graça a anedotas quando os músculos que contro-
lam o sorriso estão impossibilitados de funcionar, mas em nenhum caso atri-
buímos a nossa apreciação a esse efeito (Strack, Martin e Stepper, 1988, Step-
per e Strack, 1993). Além disso, é sabido que as pessoas tendem a relatar o

72
seu comportamento em épocas passadas de forma congruente com as cren-
ças e valores actuais (Markus, 1986). As pessoas tentam assim dar uma uni-
dade (muitas vezes falsa) ao seu comportamento. No mesmo sentido, consi-
dere-se a teoria da dissonância cognitiva e os dados que a apoiam, que mos-
tram que os humanos têm tendência para manter a congruência entre justifi-
cações verbais e o comportamento (por exemplo, Cialdini, 1993, cap. 3).
Em todos os casos até aqui apresentados, as razões que damos para o nosso
comportamento são totalmente inventadas e podem ser completamente fal-
sas. Tudo isto indica então que construímos explicações a posteriori para o
nosso comportamento e que essas explicações têm como única restrição
assegurar a coerência psicológica do nosso comportamento, independente-
mente de serem verdadeiras ou não e de estarem de acordo com as teorias
propostas pela cultura. Ver Gazzaniga (1985) para uma conclusão seme-
lhante.
Contudo, há uma precisão importante a fazer. Enquanto que nas experi-
ências de Gazzaniga é fácil encontrar uma resposta para o inexplicável, há
casos em que as respostas não são óbvias. Como se desenrola o processo
quando a resposta está além das capacidades de imaginação do sujeito? Não
há estudos sobre esse aspecto específico. Em contrapartida, há alguns indí-
cios de resposta provenientes do estudo de um fenómeno próximo, a criação
de atitudes.

As razões são socialmente dadas

Já vimos que a cultura fornece aos indivíduos os recortes do real. Vejamos


agora como isso se processa.
Há uma grande quantidade de dados que mostram que, quando não
temos uma atitude forte perante determinado assunto, tendemos a criar essa
atitude por inferência a partir do nosso próprio comportamento. Isso acon-
tece sobretudo se acharmos que o nosso comportamento não foi forçado
pelo exterior (por exemplo, Klaas, 1978). Ora ocorre que temos tendência
para nos comportar de forma a não ir contra as expectativas dos outros, e
portanto de forma congruente com o esperado; por conseguinte, assumi-
mos comportamentos determinados por outrem mas sem ter a impressão de
que são impostos. Desse modo, agimos «voluntariamente» de acordo com o
grupo, e, em consequência, vamos inferir atitudes do nosso comportamento
que é, ele próprio, semelhante ao comportamento dos outros. É, pelo menos
em parte, assim que os nossos valores se tornam integrados. Há um exemplo
expressivo deste fenómeno (Higgins e Rholes, 1978, Higgins e McCann,

73
1984). Pede-se a sujeitos que leiam a descrição da personalidade de uma pes-
soa desconhecida. Depois pede-se-lhes que sumariem verbalmente essa des-
crição a outra pessoa, em duas condições diferentes: essa outra pessoa gosta
ou não gosta da pessoa cuja personalidade é sumariada. Verifica-se que os
resumos são favoráveis ou desfavoráveis consoante a pessoa a quem esses
resumos são apresentados gosta do sumariado ou não. Se, depois disso, se
pedir aos sujeitos que relembrem as características da personalidade sumari-
ada, verifica-se que se lembram de aspectos positivos ou negativos, conso-
ante tiverem sumariado positiva ou negativamente essa personalidade.
Como essa direcção foi determinada pela vontade de ser congruente com a
expectativa da pessoa a quem os sumários foram feitos, pode afirmar se que
as opiniões são em parte determinadas pelas expectativas dos outros.
Em geral, sempre que não se tem uma atitude forte perante um determi-
nado assunto, o facto de se aceitar tomar uma posição pública sobre ele faz
que as atitudes se alterem. Mesmo quando a tomada de opinião é feita a
pedido de outrem, a atitude muda, desde que o sujeito tenha de fazer uma
estruturação pessoal, como escrever um texto ou apresentar um resumo da
posição contrária à sua (Cialdini, 1993). No geral, e dada a grande tendência
para o conformismo social, o nosso comportamento tende a ser semelhante
ao dos outros (é difícil escolher uma referência particular para esse facto, que
tem sido demonstrado sistematicamente, mas talvez o exemplo mais antigo
seja o mais interessante: a ilusão autocinética que converge num valor que é
a média das ilusões dos vários participantes na experiência, demonstrado por
Sherif (1935), seguido do estudo de Jacob e Campbell (1961) que demonstra a
existência de tradições de erro na avaliação autocinética).27
Deste modo, pode supor-se que o comportamento tende a ser homogé-
neo relativamente ao dos outros indivíduos, e as explicações encontradas
depois. É precisamente isto que Nisbett e Wilson (1977) propuseram: não
sabemos porque fazemos as coisas e damos a posteriori razões de ser do nosso
comportamento que são apenas teorias sociais partilhadas. Mesmo que não
seja sempre assim, o conjunto de dados em que os sujeitos dão uma explica-
ção disponível para um comportamento seu de que não sabem a causa
sugere, fortemente, que esse é um processo importante.

27
A «ilusão autocinética» consiste no seguinte: num quarto completamente escuro, o sujeito
vê um ponto de luz, perfeitamente imóvel. Passa-se que os sujeitos têm tendência para ver esse
ponto mover-se, e cada pessoa tem um valor estável de ilusão autocinética. Na experiência rela-
tada, colocam-se juntas duas pessoas com valores muito diferentes de movimento ilusório, que
comunicam entre si sobre a extensão do movimento. Verifica-se que os valores de cada sujeito se
deslocam para uma média entre os dois – um efeito de conformismo na direcção do outro
sujeito. Se, depois, cada sujeito for testado sozinho, apresentará os novos valores e já não os ini-
ciais.

74
E uma vez estabelecida uma teoria, ela tende a confirmar-se, como já
vimos mais acima.
Assim, temos os seguintes passos na formação das crenças e das atitudes:
1) tendemos a comportar-nos de forma congruente com as expectativas dos
outros; 2) o comportamento assim assumido vai determinar os nossos valo-
res e crenças; 3) se esses valores e crenças forem teorizados a posteriori tende-
mos a confirmá-los sistematicamente, independentemente da informação
que nos chega.

Importância das pressões sociais

Por outro lado, as pressões sociais para a conformidade são enormes,


como todos já sentimos. Um caso muito interessante ocorre com a inversão
da experiência de Solomon Asch sobre a pressão social na avaliação do tama-
nho de rectas (ver resumo em Sabini, 1995). Na situação normal há 7 pessoas
industriadas e um sujeito experimental; o que o sujeito tem de fazer é ava-
liar a semelhança de tamanho entre uma recta padrão e três alternativas, o
que é perceptivamente facílimo e não ambíguo; depois dos primeiros
ensaios, em que tudo se passa normalmente, os 7 industriados começam a
avaliar a recta de forma errada. Verifica-se então que o sujeito se mostra per-
turbado, podendo conformar-se à tendência geral. No total de sujeitos,
cerca de 3/4 conforma-se à opinião dos outros, ainda que seja apenas uma
vez. Na situação invertida há apenas uma pessoa industriada, e as restantes 7
são sujeitos experimentais. O que ocorre aqui é que os sujeitos experimen-
tais riem-se e escarnecem do sujeito diferente; quando metade dos sujeitos é
industriada, os verdadeiros sujeitos já não riem, e ficam tensos. Significa isto
que uma opinião divergente é extraordinariamente difícil de manter, e que
uma posição consensual, ainda que patentemente falsa, é fácil de impor.
A influência social pode ser extraordinariamente subtil: Phillips (1974,
1980; apud Cialdini, 1993) mostrou que os suicídios publicitados provocam
uma onda de mortes de pessoas da mesma idade do suicida; da mesma forma
(Phillips, 1983, apud Cialdini, 1993) os homicídios muito noticiados produ-
zem homicídios semelhantes e os combates de boxe provocam agressões em
pessoas semelhantes ao perdedor. Todos estes processos funcionam de
acordo com o princípio da prova social: quando a atitude não é muito explí-
cita, copia-se o comportamento dos outros (revisão em Latané e Nida, 1981
e em Cialdini, 1993).
Há ainda outra forma pela qual a necessidade de congruência determina o

75
nosso conformismo social: depois de nos comprometermos publicamente
com algo é muito mais difícil agir de forma contraditória com esse compro-
misso. Este processo parece agir de forma muito poderosa quando o com-
prometimento é público e, em menor grau, quando é privado mas visível
(escrever para si próprio; Deutsch e Gerard, 1955). Cialdini (1993) apresenta
vários casos de exploração da necessidade de congruência pelos vendedores.
O processo funciona de forma particularmente forte porque, como vimos,
temos tendência a modelar o nosso comportamento pelos outros; a partir
daí, as afirmações que fazemos e que são semelhantes às dos outros vão-nos
obrigando a manter-nos fiéis a essas afirmações.28
Finalmente, deve referir-se que os ritos de passagem (Van Gennep, 1909/
1969/ 1981; ver também Elkin 1977/1994), quando implicam esforço e sofri-
mento, aumentam o sentimento de pertença social (Aronson e Mills, 1959;
Young, 1965 apud Cialdini, 1993).
Há mecanismos psicológicos que promovem o conformismo social de
forma ainda mais directa. Cummings (1998) verifica que há dois tipos de juí-
zos sobre o real. Distingue entre raciocínio indicativo (avaliar a veracidade
de uma afirmação) e raciocínio deontológico (avaliar o cumprimento de
uma regra). No raciocínio indicativo sabe-se (a tendência confirmatória) que
se procura confirmar a afirmação (como se viu acima, no estudo de Lepper e
Ross). Mas quando a afirmação que se avalia incide sobre regras (por exem-
plo, «é proibido fumar neste recinto»), a tendência é infirmatória, isto é, pro-
curam-se os violadores da prescrição. Cummings integra este dado numa
teoria sobre a importância da hierarquia na nossa espécie, mas é interessante
verificar que se trata de uma forma extremamente poderosa de reduzir o
inconformismo.

28
O processo desenrola-se de forma bastante estandardizada. Por exemplo, pergunta-se a uma
pessoa se as férias são importantes para ela – ao que quase toda a gente responde que sim. Depois
pergunta-se se gostariam de passar as férias em estâncias em voga – de novo a maior parte das
pessoas diz que sim; pergunta-se se as pessoas gostariam de poupar dinheiro nas férias – o que
toda a gente gostaria. E em seguida apresenta-se à pessoa um «pacote» comercial de viagens que
lhe permite fazer duas viagens por ano a um custo inferior ao normal. Note-se que a pessoa pode
gostar de férias em estâncias da moda e poupar dinheiro; mas não faria necessariamente duas via-
gens por ano a uma dessas estâncias. Mas, apanhada na armadilha da congruência – se afirmou
gostar do que lhe é oferecido, como pode a pessoa recusar sem parecer ilógica? – , quase toda a
gente aceita o negócio. Para o leitor que pretenda sentir a força de uma tal estratégia, recomendo
que aceite o convite para uma dessas sessões – normalmente afirma-se que ganhou um telemóvel,
uma viagem, etc., mas que tem de responder a umas perguntas. Se o fizer na absoluta prévia
garantia de que vai recusar, sentirá a pressão brutal para ser congruente e aceitar. Conheço pes-
soas avisadas sobre o processo que, apesar disso, não foram capazes de dizer que não e fizeram
um negócio que não queriam apenas para manter, perante o vendedor (que sabe bem o que está
a fazer) a aparência de coerência.

76
Dados todos estes processos, é quase fatal que se chegue a uma conformi-
dade de opinião e de atitude.
Em resumo deste ponto pode-se afirmar que há sensações de dúvida difu-
sas, que geram a busca do significado; nos casos mais complexos, o indiví-
duo procura esse significado nos outros, e a cultura, geralmente, já deu qual-
quer resposta a essa questão. O indivíduo é, pois, tranquilizado e aculturado
ao mesmo tempo.

CONCLUSÃO SOBRE AS REIFICAÇÕES

Pode-se então concluir que a reificação corresponde ao facto de o protó-


tipo, seja ele verbalizado ou não, contar mais do que o próprio elemento
que se integra numa categoria, e é este processo a causa das inúmeras distor-
ções que aplicamos à realidade. Essas categorias podem ser cognitivas (a teo-
ria de que homens que correm riscos fazem bons bombeiros, teóricas (os
paradigmas científicos), perceptivas (a reprodução de sinais depende da classe
em que eles são integrados, como na experiência de Carmichael e no efeito
«Kulechov»), sociais (a criação de deuses, como se verá abaixo) e estéticas (o
exemplo do falsário Van Megeren). Essas categorias são os óculos pelos quais
se vê, sente e compreende a realidade e são geralmente inconscientes. São,
geralmente, determinadas pela cultura e dão explicações, justificações e sig-
nificados ao que nos rodeia.
Vimos ainda que há poderosos processos que forçam os indivíduos a acei-
tar essas reificações. No próximo capítulo veremos porquê.

77
OBJECTOS, CLASSES E RELAÇOES
A coisa mais importante de se compreender quando se fala do ER é que se
trata, como já disse, de um espaço que representa o exterior. Mesmo na
nossa espécie, em que podemos ter consciência desse ER, ele é o lugar onde
representamos todos os acontecimentos fora de nós. Não esqueçamos que
esse espaço é difícil de conhecer, como já Descartes e Kant acentuaram
(tendo John Watson questionado sequer a sua existência). Na verdade, esse
ER tem de representar o que se passa fora de nós em termos da lógica sujeito
(nós) e objecto (o que se passa lá fora). Para compreender a lógica desta
representação é necessário compreender como se definem objectos e como o
ER os codifica e representa.
A resposta tem de começar por explicar o que é um objecto. Assumirei
aqui a definição mais geral – a definição da psicologia Gestalt. Um objecto é
um conjunto de perceptos que sobressaem de um fundo; se forem movidos,
mever-se-ão coordenadamente. Quero com isto dizer que, ao pegarmos
numa formiga pelo abdómen e o tórax, se as patas e a cabeça não vierem
agarrados, o conjunto não será concebido como um objecto.
Um objecto pode ser singular (ou uno) ou composto, caso em que tem
partes que se integram para formar o objecto. Vários objectos relacionados
integram-se num polílito (Reynolds Reff ), quer dizer, um conjunto de várias
partes. Há assim objectos unos, objectos compostos e polílitos. Um exemplo
de objecto simples é uma pedra; de um objecto composto um par de óculos;
de um polílito, o conjunto do arco, das flechas e da aljava que as contém.
Há objectos de dois tipos: inanimados e animados. Os objectos inanima-
dos são qualquer coisa que não tenha movimento próprio: uma enchada,
uma caneta, uma camisa, uma folha de árvore caída no chão, uma pedra. Os
animados têm movimentos autónomos – um coelho que salta, uma árvore
que cresce e também uma pessoa. Defenderei que usamos duas maneiras
completamente diferentes de relacionar entre si objectos inanimados e ani-
mados. Chamaremos a este tipo de esquemas inteligência eidoloanafórica, do
grego είδωλον, eidolon – imagem e ἀναφορά, anaforá – relação ou referência
de uma coisa a outra.29 Defenderei aqui que essa inteligência eidoloanafórica
se exerce de duas maneiras, consoante tratamos de relações entre objectos ou
entre agentes.
29
Às instruções para lidar com objectos relacionados uns com os outros chamei, em publica-
ções anteriores, inteligência eidoloanafórica (ver abaixo); mas gostaria de modificar a nomencla-
tura e de lhe chamar inteligência eidoloanafórica, do Grego eidolon, que significa imagem ou
mesmo reflexo, e anaforá, que significa relação. Deste modo pretendo enfatizar a capacidade de
construir, no ER, relações entre representações das coisas.
Inteligência eidoloanafórica

Como vimos acima, pode dizer-se que a evolução humana repousa na


capacidade de pôr em relação no ER objectos ou polílitos diferentes para construir todos
novos, que não se encontram na soma das partes. Isto parece ser verdade quer
consideremos as indústrias líticas quer a coesão social. Como disse, estas
relações fazem-se no ER: duas imagens podem ser associadas no ER
segundo determinado tipo de relações. Essas relações transcendem a associa-
ção que se encontra nos condicionamentos: dois objectos podem não estar
apenas associados mas serem relacionados no ER pelo esquema «articulação»
–dois objectos articulados– «contenção» –um objecto contém outro– e mui-
tas outras formas (ver quadro das relações eidoloanafóricas). Dois agentes
podem estar relacionados por esquemas de «amizade» ou de «inimizade»,
entre outros. Além disso, dois objectos podem ser «diferentes» ou mesmo
«inversos» – ver abaixo.
Para que isto seja possível, é necessário possuir esquemas mentais que pos-
sibilitem o planeamento e a representação de vários tipos de relação. Essas
relações implicam a própria acção do indivíduo e as suas consequências
sobre os objectos e nas suas relações; esses objectos têm propriedades especí-
ficas – material, forma, dureza, tipo de fractura, etc – e propriedades de rela-
ção – há objectos que interagindo com outros lhes causam determinadas
transformações (tipo de fractura, por exemplo) ou que podem apresentar
relações específicas (por exemplo, certo objecto pode encaixar-se noutro).
Refiro-me aqui especificamente aos processos implicados na tecnologia
revelada pela Arqueologia, mas deve dizer-se que o mesmo tipo de raciocí-
nio é válido para as organizações sociais. Sem pretender ser exaustivo, duas
pessoas podem estar ligadas cooperativamente, podem ter relações agonísti-
cas; uma pessoa pode pertencer a um grupo, caracterizado por determina-
dos atributos; uma pessoa pode saber qualquer coisa àcerca de outra.
É necessário sublinhar aqui a ideia de que este tipo de compreensão do
mundo só é possível se houver estruturas de apreensão do real que a possibi-
litem: tal como para que a água tome a forma de um recipiente é necessário
que exista esse recipiente, também no conhecimento para que haja represen-
tação de qualquer coisa tem de haver representadores, ou, se preferirmos,
«esquemas» ou «modelos», dessa coisa.30
30
Quero deixar claro que não estou a afirmar que estes esquemas são dados aos humanos abo-
riginalmente – isto é, que são independentes da aprendizagem. Tal como nos vários casos refe-
ridos nos capítulos anteriores, deve haver uma predisposição genética que lança um processo que
acaba por se concretizar em esquemas de apreensão do real que devem depender da interacção
com o ambiente. Os estudos de Piaget chamam, precisamente, a atenção para esse fenómeno.
Mas não nos interessará aqui o desenvolvimento desses esquemas mas a sua evolução. Podem ser

80
A inteligência eidoloanafórica corresponde, portanto, à capacidade de
relacionar vários objectos entre si e com o sujeito da acção. As relações
podem ser provocadas pelo sujeito (bate-se com uma pedra numa outra,
transformando-as) ou não (um outro agente faz que um objecto modifique
outro). Este tipo de representação implica não só um conhecimento das pro-
priedades intrínsecas (dureza, forma, etc.) e relacionais dos materiais e con-
sequências das próprias acções sobre o material.
As unidades de representação podem ser acções, relações, transformações,
objectos, substâncias e espaços como já vimos.

Representação de polílitos no ER

Quer se trate de conjuntos de objectos, quer de agentes, quer de agentes e


objectos, detectamos relações entre eles.

Espaços, objectos, substâncias, relações e transformações

Consideremos inicialmente o facto de os mamíferos apresentarem uma


clara capacidade de representar objectos. Isto implica, por seu turno, como a
Psicologia Gestalt há muito reconheceu (ver, por exemplo, Köhler, 1925 e
Hoffman, 1998 para uma visão mais recente) que se faça a distinção entre um
objecto e um fundo. Cada estímulo tem uma série de características que podem
ser representadas (as já referidas dureza, forma, cor, peso, etc.). Além disso,
há entidades (a água, por exemplo) que não são propriamente objectos mas
substâncias também com características específicas. Diferem das anteriores na
medida em que se trata de coisas sem um limite definido (ver, por exemplo,
McNeil, 1992, Lidell, 2000, e Lakoff e Johnson, 1980).
As características dos objectos e das substâncias não são apenas físicas,
como nos exemplos que apresentámos antes. Têm também valências motiva-
cionais. Por exemplo, um objecto pode ter uma valência desencadeadora
(um fruto para quem tem fome), ou podem ser valorizados culturalmente (a
cruz na nossa cultura); pode assim ser desejado, evitado, temido, etc.
Tais objectos e substâncias podem ser então codificados em termos percep-
tivos (forma, cor, textura, movimento, som, etc.), da acção que se lhe pode
impor (pode-se quebrá-lo, fazê-lo rebolar, atirá-lo), das comparações que se
podem estabelecer entre ele e outro objecto (podem ser iguais, diferentes,

considerados inatos no sentido de que são típicos da espécie e que todos os humanos normais os
possuem.

81
opostos – quando há diferença numa característica seleccionada e valorizada
– ou similares, quando partilham características comuns valorizadas). Além
disso, é necessário representar as modificações de um objecto ou substância:
têm o seu começo (quando entram no espaço-tempo do sujeito), podem cres-
cer, diminuir, assimilar-se a outros, anular ou ser anulados por outro, transformar-
-se em outro objecto ou substância, subdividir-se, condensar-se em outros
objectos ou substâncias, etc. Pode, ainda, haver uma grande diversidade de
relações: um objecto ou uma substância podem conter outro objecto ou outra
substância, podem unir-se ou separar-se, podem penetrar-se ou incorporar-se.
Dois objectos podem ter comportamentos paralelos, convergentes, divergentes
ou um objecto ou uma substância podem modificar outros transformando-
-os. Finalmente, há relações espaciais entre objectos (à frente, atrás), temporais
(antes, depois, ao mesmo tempo), condicionais e de probabilidade. Para maior
clareza, apresentarei um quadro que condensa estes esquemas de representa-
ção.

1) Atributos denotativos
a) Características físicas (cor, forma, etc.), movimento (ascendente/
descendente, previsível/imprevisível, curvo/recto, etc.)
2) Atributos conotativos
a) Atribuição de um significado motivacional ou de um valor
3) Transformações
a) Início e fim
b) Crescimento/ decrescimento
c) Metamorfose
d) Multiplicação
e) Condensação
f ) Dessoramento
4) Relações
a) Contenção
b) União
c) Separação
d) Penetração e incorporação
e) Relações espaciais activas e passivas
f ) Dependência/ independência
g) Oposição
h) Paralelismo
i) Convergência
j) Substituição e aniquilamento
k) Fusão

82
l) Relações condicionais
m) Relações de probabilidade
5) Comparações
a) Identidade
b) Diferença
c) Inversão (diferença numa propriedade valorizada e bipolar)

Qualquer fenómeno que representemos passa a obedecer a uma lógica de


objectos, substâncias, relações e transformações, isto é, cada problema torna-se um
polílito mental representado eidolonaforicamente. Isto sucede porque os
estruturadores mentais da nossa espécie são as operações eidoloanafóricas.

As relações entre agentes

Um agente é qualquer objecto que se mova independentemente das forças


que se exercem sobre ele: um agente é, pois, um objecto animado, ou um
objecto vivo. Os agentes são sempre representados em termos da teoria da
mente (Premack e Woodruff ). Possuir uma teoria da mente significa que pre-
vemos o comportamento dos outros seres vivos através de uma mudança de
ponto de vista: colocamo-nos no ponto de vista físico e contextual do outro
(isto é, na sua posição física e no problema que ele enfrenta) e prevemos o
comportamento do outro em termos do que nós próprios faríamos. Vere-
mos adiante que é possível ser-se menos auto-centrado, mas esta é a forma
típica de proceder na nossa espécie.

A dinâmica da acção

Qualquer combinação de objectos, intencionais ou não intencionais é


visto como um conjunto. Para que isso ocorra, sobretudo quando se consi-
deram agentes, é necessário saber o que faz o quê a quê e qual é o centro da
atenção do sujeito.

O que faz o quê a quê?—Se considerarmos uma relação polilítica (Reynolds,


1993) de tipo estável, por exemplo [Ax(ByC)] – sendo as maiúsculas objectos
e as minúsculas as relações – apenas é necessário conhecer os objectos e rela-
ções; no exemplo, poderíamos ter que um objecto A contém o composto de
B colado a C. Mas assim que as relações de tornam dinâmicas, como ocorre
sempre na acção e, portanto, na inteligência eidoloanafórica, são necessários

83
mais esquemas. Para representar o facto de que A quebra B não é suficiente
codificar os dois objectos e a relação, porque nesse caso não se saberia quem
parte e quem é partido. É, portanto, necessário ter esquemas que possibili-
tem distinguir o agente activo e o passivo. A questão foi amplamente discutida
pelos linguistas – os «specifiers» da linguística generativa – e não penetrarei
nesse território senão para afirmar que a distinção é, certamente, pré-verbal
na medida em que o uso de ferramentas para fabricar polílitos compostos o
implica: como já referi na primeira parte deste capítulo, é necessário saber
sequenciar as acções de forma que um objecto ou um conjunto de objectos
aja sobre outro, ou sobre um conjunto de outros. Por outro lado, as relações
sociais implicam sempre a distinção entre agente e objecto e, quando o
sujeito toma parte nelas, entre sujeito e objecto.
O sujeito não tem necessariamente de ser o agente activo ou passivo: pode
representar relações fora dele e atribuir qualquer desses atributos a entidades
externas, sociais ou não.

Sobre que agente se centra a nossa atenção?—A atenção, como a definimos


aqui, tem que ver com o centro de interesse do observador (cf as noções de
atenção focal e periférica). Um exemplo clarificará melhor a questão. Refe-
rindo-nos ao mesmo acontecimento podemos deslocar o nosso centro de
interesse:
A rapariga colheu a rosa
A rosa foi colhida pela rapariga
O colher da rosa pela rapariga
No primeiro caso, centramos a nossa atenção na rapariga como agente; no
segundo sobre a rosa; no terceiro sobre o acto de colher. Sublinhemos que o
problema da atenção é diferente de distinguir acção, agente e objecto, por-
que, no presente exemplo, o agente e o objecto da acção não se alteram; é
apenas a nossa atenção que selecciona qual a parte do processo que nos inte-
ressa mais. O exemplo dado é verbal apenas para facilitar a compreensão.
Embora não o saibamos, é provável que a tecnologia dos chimpanzés e dos
primeiros Homo fosse inteiramente não verbal, embora implicasse, para que
pudesse haver imitação (o que parece necessário, dado que havia culturas)
teria de haver estas distinções. De resto, nos animais, a pseudo-imitação
(geralmente ocorrendo por acentuação local e, como vimos, nos primatas,
por imitação ao nível do programa –Byrne e Byrne) implicam e existência
destas distinções no ER quer de mamíferos quer de aves muito menos ence-
falizados do que os primatas.

A lógica das relações e a linguagem


Esboçada assim a lógica das relações, são evidentes as relações com as gra-

84
máticas de tipo chomskyano (Chomsky, 1986, por exemplo). Mas sublinhe-
mos claramente a diferença. Enquanto que Chomsky procurou as regras de
construção de frases do discurso, o presente objectivo é diferente: trata-se de
reconstruir as regras que permitem, antes da linguagem, a representação das
relações com o ambiente que transparecem dos vestígios arqueológicos dos
hominídeos fósseis. O facto de a teoria x barra de Chomsky capturar vários
elementos aqui apresentados deriva de que a própria linguagem se constrói
sobre a inteligência eidoloanafórica.

Importância das classes no ER

A reificação implica, pois, a tendência para a substituição das característi-


cas do indivíduo pelas características da classe em que foi classificado.
Implica assim que as acções, os objectos, as substâncias, as relações sejam
representados em termos de uma categoria e que essa categoria tenha mais
importância do que o próprio fenómeno classificado. Corresponde, pois, à
duplicação da realidade num plano virtual ou mental, em que as coisas são inseridas em
classes que se relacionam entre si. Nesse plano virtual as coisas são representadas em
termos das classes em que foram inseridas.
Para que qualquer fenómeno possa ser formulado em termos de objectos,
substâncias, relações e transformações é necessária uma grande flexibilidade
na formação das classes. Exemplifiquemos por clareza. Se se considera um
grupo como um polílito, deve-se atribuir cada indivíduo a uma classe deter-
minada; por exemplo, «marido», «mãe», «filha», «irmã», «guerreiro», «chefe».
Cada uma dessas classes é especificada por atributos – um guerreiro defende,
é corajoso, um chefe comanda e possui influência, uma irmã tem códigos de
conduta específicos relativamente aos seus irmãos e irmãs, e considera-se
alguém nossa irmã por um código que se pode definir de forma mais ou
menos arbirária.
Em consequência, e este aspecto é central, os atributos de cada classe são variá-
veis e quase arbitrários. De facto, sem este carácter de arbitrariedade a gramá-
tica eidoloanafórica nunca se poderia ter emancipado do concreto: ligadas
ao concreto, as classes permaneceriam accionais, perceptivas e funcionais,
dado que os seus atributos seriam determinados de maneira muito rígida
pela própria situação. É, pois, a formação de classes arbitrárias que deter-
mina que a existência humana se desenvolva num espaço totalmente simbó-
lico em que cada conteúdo do ER se relaciona com outros conteúdos que
podem ser nele representados; é a isto que chamo a «força» do ER, referida
no início deste capítulo.

85
A passagem de um plano de biunivocidade entre referência motora ou
perceptiva (o estímulo ou a resposta) e as representações no ER para um
plano em que há uma necessidade de classificar qualquer acontecimento
importante em termos de uma etiqueta com um atributo no ER implica,
pois, que os elementos do ambiente devam ser classificados e compreendidos
em termos das suas relações com as outras classes. É a passagem para o espaço
virtual, que implica a duplicação mental da realidade em forma de classes, o
que corresponde ao que se chama, de forma vaga «simbolismo humano».
Esse espaço é o espaço da significação humana, quer dizer, é aí que o sujeito toma
consciência do que se passa, podendo, virtualmente, manipular várias classes
e relacioná-las umas com as outras da forma mais variável. Temos, assim,
dois significados muito diferentes de simbolismo: aquele que se detecta nos
pongídeos treinados a falar e aquele que ocorre na nossa espécie. Podemos
designá-los respectivamente por simbolismo restrito e por simbolismo
generalizado. O primeiro depende da biunivocidade estímulo/ representa-
ção e o segundo depende de um ER em que há várias etiquetas que podem
ser relacionadas umas com as outras: é, pois, o espaço de referência simbólica
que Noble e Davidson correctamente consideram ser a verdadeira marca de
Homo sapiens.
De notar que, como Cassirer (1972) o compreendeu de forma clara, nós
estabelecemos uma diferença entre a representação do mundo e o mundo
propriamente dito; toda a filosofia (pelo menos depois de Platão e, moder-
namente, de Kant), toda a ciência e toda a hermenêutica se baseiam nessa
distinção. Mas para a maior parte das sociedades humanas estudadas, o real é
a sua representação. O espaço reificado é, pois, a realidade humana.

Inteligência das relações sociais

Já disse que possuímos dois conjuntos de instruções que servem de


modelo quando observamos objectos intencionais e não intencionais. Con-
sideremos agora os objectos intencionais. Há uma diferença fundamental na
maneira como interpretamos um campo social consoante sejamos um dos
actores ou apenas um espectador. Considerarei em primeiro lugar a inteli-
gência social em geral e depois especificarei a diferença.

Inteligência social

A nossa inteligência social excede, em muito, o que se encontra em outros

86
animais. Contudo, há vários precursores, ao contrário da inteligência eido-
loanafórica, nos mamíferos.
O campo social é, quase por definição, um campo misto de rivalidade e
cooperação. Por isso, é necessário que animais sociais e pessoas tentem des-
codificar, da parte dos outros, se podem esperar uma ou outra. As experes-
sões faciais, o tom de voz (menos estudado) a posição de corpo são, todas
elas, bons indicadores de cooperação ou rivalidade e isso já se encontra em
todos os animais sociais, que se regem por estímulos desencadeadores: uma
determinada posição indica que o outro animal vai atacar, outra que se vai
submeter, outra ainda que está disponível para o acasalamento. É nesse con-
texto extremamente simples que devemos compreender as nossas expressões
faciais. Pretendeu-se (Ekman) que as expressões faciais correspondiam às
emoções primárias, mas não há nada que justifique que não haja outras emo-
lões promárias que não tenham qualquer expressão facial. A curiosidade ou
a dor por se ter sido traído não têm expressões faciais bem definidas, mas
nem por isso deixam de ser bons candidatos a emoções fundamentais. As
expressões faciais são expressas apenas porque transmitem informação a
outras pessoas; de resto, a investigação mostra que quando estamos sozinhos
usamos muito poucas expressões faciais, mas ao telefone, mesmo quando a
outra pessoa não nos vê, a nossa cara funciona como um ilustrador das nos-
sas emoções. Quero com isto dizer que as expressões faciais parecem ter
evoluído ao serviço da comunicação. São, pois, semelhantes (e em alguns
casos homólogas –no sentido que se podem encontrar em outras espécies–
como ARAM van Hooff demonstrou relativamente ao riso, que é, nos
outros animais –e talvez também na nossa–, uma forma de agressão) aos
padrões fixos de acção que guiam o comportamento de outras espécies.
Esta homologia é interessante porque, por um lado, nos permite compre-
ender como é que os estímulos sinais funcionam. Quando alguém nos ri
temos tendência a rir de volta (o que faz sentido dado que o sorriso é uma
forma de garantir as nossas intenções de cooperação); se virmos alguém zan-
gado temos o cuidado de não entrarmos em interacção com essa pessoa; se
virmos alguém triste teremos vontade de ajudar, sentiremos vontade de pro-
tecção ou ternura e poderemos ficar tristes também (mas não necessaria-
mente). Se virmos alguém ficar surpreendido com uma coisa olharemos para
o lugar para onde a pessoa surpreendida estava a olhar. E assim por diante
para todas as emoções que são transmitidas pela expressão facial e que parece
não serem apenas a alegria, a tristeza, a raiva, a surpresa, o nojo, o medo. A
arrogância e o desprezo (Eibl-Eibesfeldt) parecem-me fazer parte desta lista.
A primeira vê-se frequentemente na iconografia e nas peças de teatro de cul-
turas muito diferentes da nossa, e expressa de maneira que compreendemos

87
inter-culturalmente. O interesse sexual também se manifesta –abertura
pupilar– e da mesma forma qualquer atracção não sexual, mesmo com pes-
soas do mesmo sexo.
Ainda num plano muito arcaico, há mais formas de dar sentido ao mundo
que nos rodeia e, particularmente, de compreender relações com outros. Por
exemplo, a paixão ou o amor pelos filhos fazem parte desses mecanismos:
encontram-se em outros animais de formas muito parecidas com as nossas.
O gostar/não gostar é também uma forma pouco «inteligente» de nos orien-
tarmos no mundo social, dado que raramente sabemos porque gostamos. Os
dados da Psicologia social são aqui muito relevantes, porque mostram que
gostamos de pessoas parecidas connosco e, independentemente de sermos
bonitos, gostamos de pessoas bonitas e «abertas». Há muitos dados psicológi-
cos sobre este fenómeno mas não os apresentarei aqui. Interessa-me passar a
uma forma menos automática e especificamente humana de compreender o
que se passa em torno de nós nas outras pessoas.

A «teoria da mente»

Este tema é extremamente discutido, quer em primatologia quer na psi-


cologia. Imaginemos que encontramos um objecto que desconhecemos.
Nos felinos, depois de muita aproximação e afastamento, o animal que
explora o objecto dá-lhe uma patada rápida. Se o animal se mover então,
aparentemente (para nós) de motu propriu, o felino dá um grande salto para
trás ou, se o objecto começar a fugir depressa, persegue-o e morde-o na
nuca. Connosco passa-se alguma coisa de semelhante. Se estivermos a exa-
minar uma máquina que não conhecemos e se a colocarmos a funcionar
daremos o mesmo salto, embora mais controlado, que o gato dá. Mas fica-
ríamos extremamente espantados e com medo se os movimentos da
máquina sugerissem que ela se movia aparentemente não pela força da gravi-
dade e por acção da força dos movimentos que lhe imprimimos, mas que
parecesse «ganhar vida» e começar a mover-se em direcções aparentemente
escolhidas por ela.
Se virmos uma coisa mover-se tenderemos (nós, não, que saibamos, os
outros animais) a atribuir-lhe intenções e conhecimentos. Por exemplo, se
estivermos a ver um animal mover-se num recinto, perguntamos, sem nos
questionarmos epistemologicamente, «o que é que ele quer?»; ou se o vir-
mos a cheirar as caixas de alimento diremos, imediatamente, «ele quer
comer». Ao fazermos esta pergunta estamos a presumir que o animal «sabe»
que ali costuma haver comida e que ele «quer» alguma coisa. Claro que não

88
o sabemos porque não temos acesso à mente do animal –nem à das outras
pessoas, mas lá chegaremos– de modo que o que fazemos é presumir que um
objecto que se mova de forma independente das forças exteriores tem uma mente autó-
noma. É a isto que se chama «teoria da mente» (Premack e Woodruff crisma-
ram o termo para se referir a antropóides, mas tem-se verificado, mais recen-
temente, que os antropóides não possuem uma teoria da mente).
Esta «teoria da mente» divide-se em mais do que um aspecto. Em primeiro
lugar, o que é que se entendemos por «mente» neste contexto? Há quem
defenda que se trata de uma forma de descentração do eu, mas não penso
assim. Trata-se, parece-me, de nos substituirmos ao animal ou à pessoa que
estamos a observar, não com os sentimentos dele (que não conhecemos) mas
com os nossos. Ou seja, pomo-nos a nós na posição física do outro, com as
nossas crenças, as nossas vontades, o nosso conhecimento, e isso é o contrá-
rio de descentração: repito, parece-me que apenas nos colocamos na situa-
ção do outro. Daí que atribuamos ao animal ou à pessoa intenções, vontades
e sentimentos que sabemos que nós temos. É a isso que se chama, quando se
trabalha com animais, antropomorfismo: vêmo-los como se fossem iguais,
mentalmente, a nós.
Colocarmo-nos na «posição do outro» implica que nos colocamos na posi-
ção física e no contexto presente do outro, isto é, em acção: dado o que ele
vê e o que nós pensamos que ele sabe, esperamos que ele aja como nós agi-
ríamos. A teoria da mente não implica que nos coloquemos dentro do cen-
tro de valores do outro, que procuremos compreender os seus modos de
funcionamento mental. É a isso que eu chamo descentração –a compreensão
da mente dos outros– e isso é árduo, difícil e raro de encontrar, mesmo em
psicólogos que foram treinados precisamente para o fazer.31
A teoria da mente é, portanto, uma tendência para colocarmos o nosso eu
activo, agente, volitivo, sensitivo, afectivo e conhecente no lugar do objecto
intencional que estamos a observar. Vamos detalhar rapidamente estes
vários aspectos. Volição – esperamos que os outros queiram o mesmo que nós
quereríamos e não compreendemos que se queira uma coisa diferente. Senti-
mento, afecto, sensações – esperamos que os outros sintam o que nós sentiría-

31
Lembro-me de uma estagiária de psicologia que, sabendo que o seu paciente apenas conse-
guia ter satisfação sexual quando causava dor ao parceiro, lhe disse «vá-se tratar»! Era ela quem
deveria «tratá-lo», mas achou tão impossível que alguém sentisse isso que o considerou um caso
impensável e portanto fora da sua capacidade de entendimento. Como as pessoas apequenam o
que não compreendem, considerou que o paciente não tinha direito de lhe pedir ajuda num caso
tão anormal. Dou este exemplo para mostrar que uma rapariga que era perfeitamente normal e
capaz de compreender as relações sociais à sua volta era completamente incapaz de compreender
um espírito que não funcionasse como o dela. É por isso que não compreendemos quase nunca a
diferença no outro.

89
mos e temos dificuldade em compreender que os outros sentem de maneira
diferente. Conhecimento – esperamos que os outros saibam, pelo menos
sobre o mundo físico, o mesmo que nós saberíamos se estivéssemos no local
físico do outro.
Estou a referir-me à forma mínima de teoria da mente. Como veremos, há
pessoas que conseguem descentrar-se muito mais e conseguem prever mais
exactamente o que se passa com as outras. Mas o facto de a teoria da mente
ser possível mesmo em pessoas muitíssimo auto-centradas mostra que não
depende da capacidade de uma pessoa compreender a mente de outra:
implica apenas uma reposição do nosso eu no lugar físico e na identidade
social (nome, com quem se é casado, etc.) do outro. Um exemplo de auto-
-centração com teoria da mente é dado em muitas culturas primitivas e em
muitas pessoas da nossa sociedade, quando se detecta uma qualquer inten-
ção, tem-se tendência a considerar que ela nos é dirigida. Por exemplo, os
deuses criaram o mundo todo, mas todos sabemos de casos em que se pede
aos deuses intervenção pelo nosso caso particular. Recordo-me de uma rapa-
riga pouco complexa que um dia me disse que não tinha medo de feitiçaria
porque não tinha a certeza de que a feitiçaria tivesse efeito; e se tivesse de
facto efeito, se houvesse forças sobrenaturais, ela tinha uma feitiçaria mais
poderosa, que era o deus cristão. Usar Deus contra os outros não é, por-
tanto, nada raro embora esteja em contradição com a ideia de que Deus quer
o bem de todos e não só de alguns (o que é a ideia de base do cristianismo
paulista). A teoria da mente não é, portanto, uma forma de descentração.

A identificação das emoções nos outros

Segue-se, do que eu disse acima, que não sentimos a mesma emoção que
vemos nos outros. Isto é evidente: podemos compreender a tragédia de uma
pessoa a quem aconteceu algo de horrível, mas ainda que essa pessoa nos seja
bastante próxima nunca sentiremos o que ela sente. Podemos ficar muito
tristes, mas quando alguém nos conta uma desgraça não começamos a cho-
rar. Identificamos –a partir do comportamento dessa pessoa– essa emoção e
reagimos-lhe. Essa reacção pode ser de pena, de contentamento (inclusiva-
mente de contentamento com a desgraça de outra pessoa), e de mais emo-
ções, mas o mais importante é que a expressão das emoções perante as emo-
ções alheias é codificada socialmente. Por exemplo, em muitos países, há
carpideiras; mesmo connosco ocorre que quando vamos a um funeral sinta-
mos que nos devemos mostrar tristes. Mas há outras culturas em que a tris-
teza perante um funeral se exprime de maneira completamente diferente –

90
com alegria, em alguns casos e, num relato árabe de um enterro víquingue,
mostra-se que com comportamento sexual.
As emoções que se identifica nos outros são as emoções primárias –não
apenas as que correspondem a padrões fixos de acção (como mostrado por
Ekman e Friesen) mas todas as emoções a que damos nome. Isso depende,
evidentemente, da cultura e da pessoa. E por isso temos de fazer aqui uma
referência à variabilidade pessoal na interpretação dos outros

Auto-centração e compreensão do outro


O que nós sabemos do outro é apenas aquilo que o comportamento e as
palavras nos revelam. As palavras são potencialmente fáceis de falsificar –
todas as pessoas mentem– enquanto que o comportamento é potencial-
mente mais difícil de modificar. Contudo, sabemos interpretar automatica-
mente apenas as emoções ditas primárias –alegria, tristeza, raiva, surpresa,
nojo, desprezo (e talvez interesse, arrogância, e mais outras mal estudadas)–
e os gestos convencionalizados. Os gestos convencionalizados funcionam
como palavras (ver o trabalho de McNeil e de Kendon sobre este tema); por
exemplo, há sinais de OK, fechando a mão e pondo o polegar para cima,
sinais de ofensa, sinais de dúvida e até o sim e o não são codificados de
maneira ligeiramente diferente em diferentes culturas.32 Mesmo sinais muito
etológicos podem ser fortemente exagerados. Por exemplo, nas culturas ori-
entais é frequente que o respeito seja mostrado através de uma vénia pro-
funda, que entre nós já não existe ou se resume a uma ligeiríssima inclinação
da cabeça. Além das expressões da cara há expressões do corpo, que têm sido
estudadas no Laboratório de Etologia Urbana, de Eibl-Eibesfeldt e de
Voland. Os dados mais estabelecidos estão disponíveis na Internet.
Há contudo, muitas emoções e, além de emoções, estilos de comunicação

32
Assim, na cultura balcânica, o não exprime-se com uma elevação da cabeça, que é projectada
para trás e os olhos são fechados. Isso pode ser acompanhado de uma elevação da mão ao nível
da cabeça, perto da orelha, com a palma aberta para a pessoa com quem se fala e por um estalido
da língua (o fenómeno está descrito em Stoianovitch, A study in balcanic civilization e em Eibl-
-Eibesfeldt, Human Ethology. Tive ocasião de o observar na Grécia. Do que vi, concluí que a
expressão existe nas culturas latinas da Europa, incluindo a França e a Bélgica do sul, mas geral-
mente acompanhada por palavras de descrença: «não me lixes», «vai-te lixar», ou semelhantes.
Na Europa ocidental não tem a noção de Não, mas sim de descrédito do que o outro diz. Como
na Grécia e nos países balcânicos as relações entre as pessoas são fortemente agonistas (o que é
conhecido desde os tempos homéricos) pode-se pensar que o Não balcânico comporta um ele-
mento de desprezo pelo que é dito, não correspondendo a uma negação denotativa do conteúdo
da mensagem mas sim denotativa; isto é, não se afirma que o que é dito não é verdadeiro, mas
que se despreza o que é dito ou quem o diz. O não com rotação de cabeça ou outra qualquer
rejeição do interlocutor têm, de resto, a mesma origem. O sim, com abaixamento da cabeça, sig-
nifica aprovação nas culturas estudadas.

91
e mesmo de Ser que não estão estudados mas que há quem consiga descodi-
ficar. Não quero entrar numa zona totalmente ignota e na qual tenho algu-
mas ideias, mas difíceis de transmitir por escrito. Direi apenas o seguinte. A
maneira como uma pessoa vive o tempo varia individualmente. Há quem
viva o tempo como um fluir mais ou menos contínuo, com transições suaves
de acontecimento para acontecimento; há quem viva o tempo de maneira
mais abrupta, com transições violentas. Da mesma maneira há quem prefira
uma maior pregnância nas ideias e há quem prefira uma certa dose de indefi-
nição. Há ainda quem prefira as coisas expressas com força, e quem prefira as
coisas expressas com subtileza. Estas características detectam-se, geralmente,
no tom de voz da pessoa, em parte nos seus gestos, nos seus filmes, músicas e
romances preferidos. Nesse sentido, no passado, tentei caracterizar esta ideia
como «estéticas de vida», mas sem nunca ter conseguido suficiente clareza na
escrita para publicar as ideias. Usei exemplos musicais que definiam estilos
de representação preferidos. Há mais tempo, Gilbert Durand, num livro
difícil de ler porque muito pouco claro, discutiu mais ou menos a mesma
questão –Les structures anthropologiques de l’immaginaire– e afirmou que havia
três grandes grupos de representações do tempo: o tempo cíclico, das cultu-
ras agrárias, baseado na ideia de morte e ressurreição; o tempo diairético, em
que se separa violentamente o bem do mal –a representação heróica do
mundo; e o tempo místico, em que se procura a dissolução do eu no não ser.
É uma tipologia que, independentemente da maneira como foi exposta,
deveria merecer mais atenção da Psicologia. Há outros tipos de tipologia
deste género. Jung distinguiu introvertidos e extrovertidos e as funções
dominantes –pensamento, sentimento, sensação e intuição. Independente-
mente da dificuldade de validar este tipo de tipologia, é interessante
conhecê-las porque nos ajudam a pensar. Não é, contudo, neste livro o lugar
para discutir o que são tipologias da representação que dependem da perso-
nalidade, mas é importante compreender que conhecê-las ajuda imenso a
perceber os outros. Um exercício que todos podemos fazer é pedir a amigos
que nos digam de que música, filme, romance, ou simplesmente de que
automóvel, roupa, etc., gostam e tentar compreender o que é que significa,
naquela pessoa, gostar daquilo. A experiência é mais rica se nós próprios não
gostarmos do que o nosso amigo gosta. A tarefa não é muito diferente da
actividade de crítico de arte (de onde a minha referência às «estéticas de
vida») porque temos de tentar encontrar constantes. O exercício pode
seguir-se fazendo previsões: se ele/ela gosta disto e disto, deve também gos-
tar daquilo, porque nos parece ter a mesma característica. Por exemplo,
dando um exemplo da música e da pintura antigas, é natural que quem goste
de Beethoven (força, expressividade, contrastes violentos) goste também de

92
Tragédias gregas e de Rubens, eventualmente também de Miguelângelo,33
mas provavelmente menos de van Eyck ou de Vermeer.
Em qualquer caso, para nos ser possível colocarmo-nos como que na
mente de outra pessoa é necessário compreender esse aspecto –a qualidade
da representação– mas também mais coisas. Nomeadamente, é necessário
compreender o sistema de valores dessa pessoa. Há pessoas para quem o
dever é o valor dominante; outras para quem o prazer é o valor dominante;
outras ainda para quem o dar significado e compreender o que está à volta é
o valor dominante (Spranger distinguiu vários tipos de pessoa também base-
ado no valor dominante: intelecto, ganho, afecto, etc.). Conseguindo repre-
sentar a «estética» dominante da representação e os valores da pessoa conse-
gue-se compreender muito sobre ela. Para prever o comportamento é ainda
necessário compreender como são as stratégias dessa pessoa para atingir os
seus objectivos.
Nada disto está estudado. A única forma de o fazer seria com estudos qua-
litativos e de observação que permitissem definir os conceitos necessários
para recolher dados. E, pouco a pouco, tentar compreender como testar as
nossas representações dos outros relativamente às preferências das pessoas.
Os poucos estudos que fiz sobre isto foram encorajadores, mas apenas com
pessoas que conheço muito bem.

A leitura do campo social

Recorde-se de que eu disse que havia uma diferença entre ler o campo
social enquanto espectador ou enquanto actor. Em primeiro lugar apresen-
tarei a leitura como espectador.

Enquanto espectadores
Quando lemos um campo social e quando não somos actores, impomos
uma estrutura de significado ao que se passa à nossa frente. Essa estrutura
está mal estudada –melhor, não está estudada, quase– mas penso que se pode
traçar um plano ainda que simples de algumas das coisas que impomos ao
campo social que observamos.
Em primeiro lugar, esperamos que haja um sentido, uma direcção da
comunicação que estamos a observar. É preciso notar que este sentido não
33
Miguelângelo era considerado um artista de sobrolho franzido e grandes tragédias interi-
ores: um artista sombrio. Quando se restaurou o tecto da Capela Sixtina viu-se que as cores som-
brias de Miguelângelo se deviam à sujidade das velas. Depois de restauradas, as pinturas reve-
laram cores violentíssimas e, para o espírito romântico (sombrio, melancólico, força escura)
quase histéricas.

93
está necessariamente presente na comunicação que efectivamente ocorre
(veja a teoria da origem da linguagem como substituto do grooming, de
Robin Dunbar, por exemplo). Se nos dermos ao trabalho de ouvir uma con-
versa que ocorra num café, ou num jantar, veremos claramente que não há
qualquer objectivo, que a conversa não parte de um problema que se quer
resolver. É, talvez, por isso que muitos de nós acham insuportável a «con-
versa de café», a que os americanos chamam small talk, isto é, falar de nada. A
teleonomia da comunicação pode ser dos mais diversos tipos: uma história
de amor, em que se esperam acções e reacções congruentes com a consuma-
ção do amor; uma luta política (de poder) em que se identifica quem quer o
poder e quem luta por ele e como se organizam as estratégias para o atingir;
um uma coisa muito mais simples, como quem ganha uma discussão sobre
se um partido ou um clube de futebol são melhores um do que o outro. O
importante é detectarmos uma teleonomia, um «guião», se preferir.
Contudo, quando observamos uma interacção interessa-nos saber sobre
que é ou tendemos a desinteressar-nos. Quando se detecta uma teleonomia
da comunicação tendemos a identificar os participantes e a decidir de qual
gostamos mais: tomamos partido. Identificamos as intenções dos outros nos
termos que apresentei acima. Registamos subgrupos nas pessoas que comu-
nicam; por exemplo, quem é contra e quem é a favor de uma determinada
solução ao problema que encontrámos e que está a ser discutido. Podemos
antusiasmar-nos com o que se passa: esperar veementemente que o desfecho
da comunicação a que assistimos seja um e não outro; podemos comover-
-nos com o que se passa com quem observamos e zangar-nos com um ou
mais dos protagonistas; podemos achar que se tomaram decisões estúpidas,
etc. O que fazemos, em geral, é preferir, no nosso ER, uma solução para o
problema encontrado e gostar das pessoas que identificamos como querendo
chegar a esse desfecho e a tomar partido contra as outras.
Apesar de tomarmos partido e de esperarmos que a comunicação tenha
um desenlace particular, não intervimos. As coisas são muito diferentes
quando somos participantes.

Como actores
Quando estamos imersos na corrente de comunicação as coisas são bas-
tante diferentes. Isto ocorre, em primeiro lugar, porque todas as participa-
ções num sistema de comunicação são participações num jogo de poder.
Havendo dois participantes há duas identidades a proteger (ver adiante,
quando considerarmos as motivações de sadismo e crueldade), de modo que
estamos sempre muito vigilantes a insultos ou a coisas que nos apequenam.
Digamos que, como participantes, estamos particularmente alertados para a
dominância e para mostrarmos uma persona –um eu social– de que goste-

94
mos. Se a comunicação tiver como objectivo a conquista de uma pessoa,
estaremos especialmente atentos a agradar ao outro. Em todo o processo há
sempre uma tentativa de protecção do eu e de exibir uma persona adequada.
Nos capítulos sobre agressão e sobre sexualidade veremos que tipo de moti-
vações procuraremos encontrar nos outros. Mas para já gostaria de referir a
tendência para reciprocar favores e esperar a sua reciprocação, o estabeleci-
mento da dominância, a compreensão de que estamos perante um aliado
(amigo) ou um rival (inimigo).

Reconstruir os objectivos dos outros – a inteligência maquiavélica

Outra possibilidade que temos é de interpretar as emoções e as acções dos


outros com base num plano: se admitirmos que uma pessoa quer determi-
nada coisa, pensaremos no que essa pessoa fará para a atingir e interpretare-
mos as suas representações mentais (em termos dos comportamentos que ela
irá ter). Este tipo de antecipação e previsão é corrente nas nossas vidas e tem
a sua expressão máxima nas relações entre pessoas que têm um objectivo
importante: a luta política consiste praticamente apenas nisto e daí chamar-
-se a esta forma de inteligência «maquiavélica» (de Maquiavel, que escreveu,
no Renascimento, Il Principe, um livro sobre como um príncipe deveria rei-
nar e que está cheio de receitas sobre as maneiras de se atingirem os objecti-
vos políticos manipulando as opiniões dos outros). Contudo, esta inteligên-
cia está patente em todas as nossas acções que impliquem outros: pensamos
sempre no efeito que as nossas acções e palavras vão causar nos outros e nas
consequências que isso vai ter.
Esta capacidade depende de duas novidades evolutivas de Homo: a pri-
meira é a capacidade de sequenciar acontecimentos em termos de causas e
consequências – em termos de «planos», se preferirmos. A segunda é a capa-
cidade de inferir o que o outro sabe a partir dos seus comportamentos.

Funcionamento conjunto das duas inteligências

Tanto a ipa (inteligência eidoloanafórica) quanto a irs (inteligência das


relações sociais) participam conjuntamente na nossa representação do
mundo. Na verdade é raro –em termos de espécie, não na nossa cultura–
que o mundo, mesmo material, seja representado predominantemente em
termos de relação apenas eidoloanafóricas. Na maior parte dos casos,

95
quando valoramos uma coisa qualquer, atribuímos-lhe uma força, como
vimos. Essa força é, sempre, uma força sobrenatural.
Podemos ilustrar isso com o que dizemos, noutra parte deste livro, sobre a
religião e sobre os cristais. Mas a verdade é que o fenómeno é muito mais
espalhado.

Religião e estrutura social

Tendemos a considerar, na nossa cultura, a religião e a estrutura política e


social como independentes: a estrutura política de um país é determinada
pela Constituição e essa constituição pode ou não fazer referência à religião
(a nossa, por exemplo, não o faz). Os estados europeus orgulham-se de ter
estados laicos, governados por um conjunto de princípios –direitos huma-
nos, por exemplo– independentes da religião.
Contudo, nós somos excepção. Sem entrar aqui no que define um estado,
há um elemento importante que tem de ser referido: as instituições, quer
estabelecidas de facto quer de jure (quer dizer: mesmo nas sociedades ágrafas
há o equivalente das nossas instituições). Da mesma maneira há várias práti-
cas que governam a sociedade: quem pode casar com quem, quem manda,
como se divide a sociedade em termos de funções, o que é que não se pode
fazer e como se pune quem prevarica. Essas instituições e práticas baseiam-
-se, em grande medida, na tradição, mas também em decisões que as culturas
vão tomando. O que dá solidez a essas instituições e práticas é, em todos os
casos, o facto de terem sido fundadas pelos deuses. Assim, quando se diz, de
um coisa, que é boa, diz-se geralmente que é boa porque foi assim fundada
pelos deuses (ver Eliade, para uma discussão aprofundada do conceito de
Cosmos –o mundo organizado pelos deuses– e Cáos –o mundo fora da
alçada dos deuses). Durkheim levou esta ideia mais longe e afirmou que a
religião é a forma que a sociedade tem de se adorar a si própria. Significa isto
que os deuses (e a religião) são formas de exaltar e proteger a própria socie-
dade.
Em consequência, o funcionamento da sociedade, que pode ser conside-
rado um polílito organizado em termos de inteligência eidoloanafórica (e é
assim que os sociólogos analisam as sociedades e a sua organização), deriva,
em muitos casos, de escolhas feitas em termos de irs. Que essa organização
social seja depois seleccionada em termos da sua viabilidade –isto é, que haja
uma selecção natural dos traços em que assenta a sociedade– nada retira do
que eu disse antes: as pessoas vêm a sociedade como uma concretização de
uma vontade sagrada. As teocracias são todas exemplo disso; e no ocidente,

96
em que, por uma razão estranha (e que tem que ver com as invasões bárba-
ras) a religião e o poder não coincidem (o imperador e o papa não são a
mesma pessoa) houve sempre guerras entre os dois poderes. Além disso, os
reis e mesmo o imperador sempre quiseram ser validados pelo papa.34
Na definição de bem e de mal –do que se deve e não deve fazer– entra um
outro elemento da irs: como disse quando tratei dela, uma das coisas que a
leitura de um campo social implica é a tomada de posição, a declaração de
quem tem razão e quem não tem e de que lado estamos nós (o que é óbvio
mesmo em coisas que não são nada importantes, como o futebol).
Assim, a estrutura social talvez dependa sempre das duas inteligências:
mesmo nas culturas mais libertadas da igreja e dos valores, como as demo-
cracias ocidentais ou os comunismos que permanecem do antigo império
soviético, há uma fundamentação ética –a liberdade, ou a igualdade– que é
sempre uma tomada de posição de bem e de mal, que, em última análise, me
parece ser proviente da irs.

A tensão no ER

Que o ER consegue relacionar coisas parece evidente. Porque é que as


coisas têm de ser relacionadas? Inspirar-me-ei aqui do modelo de Kurt
Lewin, a que já me referi antes. Já vimos que há, no nosso ER, mais do que
uma coisa representada e que tendemos a representar relações entre coisas,
coisas essas que são definidas em termos de nomes ou categorias. Mas por-
que é que queremos relacionar as coisas? Não tenho uma resposta além da
afirmação do facto: perante uma situação social, de um problema teórico, da
resolução de uma questão prática, sentimo-nos, desde que a situação, o pro-
blema ou a questão nos interesse, incomodados enquanto não o resolvemos.
É assim que as pessoas querem saber da vida dos outros e saber a quem atri-
buir as culpas; assim que o teórico quer compreender um fenómeno em ter-
mos de uma lei subjecente; que um obsessivo não descansa enquanto não
tiver tudo em ordem, cada coisa em seu lugar.
Recorde-se de que os homens do acheulense – os Homo erectus – já procu-
ravam impôr uma forma nas suas ferramentas. A esse dado é interessante
juntar o facto de se ter encontrado, em pelo menos um caso não discutido e
em mais do que um mais duvidoso, cristais de quartzo que esses homens
guardaram. Os cristais de quartzo não têm nenhuma função, de modo que
34
Falar de «Imperador» no contexto europeu pode fazer confusão a quem não saiba que a
Europa central –França, Alemanha e Itália– se definiu como herdeira do Império Romano.
Chamou-se Sacro Império Romano-Germânico e Portugal chegou a fazer parte dele, durante a
dinastia filipina.

97
devem ter sido guardados porque impressionaram este homem ainda tão
primitivo.35 Porque é que os cristais impressionam? Em grande parte pela sua
perfeição e pela impressão que nos causam de terem sido feitos por alguém.
Sabemos actualmente que os cristais existem por causa da estrutura da pró-
pria matéria, mas quem não sabe isso nunca deixará de pensar na maravilha
que é existir, sem se saber quem o fez, uma coisa tão perfeita como um cris-
tal. Talvez por isso os cristais andem tão associados à magia. Porque é que os
cristais impressionaram o homem promitivo? A pergunta divide-se em duas:
como é que eles acharam que era perfeito? E ser perfeito significava o quê?
Não nos interessará aqui responder à segunda pergunta mas apenas à pri-
meira: porque é que os cristais são considerados perfeitos? Descartes disse
que era Deus que nos dava a noção de perfeição, que se tratava de um
conhecimento inato. Actualmente as respostas não se alteraram: disse-se que
há formas geométricas puras a priori (Gestalt) e além disso não sabemos nada.
Há, contudo, um dado interessante, que não explica nada mas que nos faz
pensar que a noção de «perfeito» surge, por ela própria, nas crianças com
cerca de 2 anos (Reff ). Antes disso, uma criança não distingue brinquedos
perfeitos de brinquedos estragados; entre os 2 e os 3 anos passa a rejeitar os
brinquedos estragados e a preferir os intactos. Refiro este dado apenas para
marcar que se trata de uma capacidade que emerge, aparentemente de
maneira autónoma. Gostaria de poder escrever que a capacidade se deve à
maturação de uma estrutura interna inata, mas não sei se isso é verdade. O
que sei ser verdade é que somos, aparentemente, a única espécie a gostar de
coisas simétricas e de regularidades.
Isto implica qu haja uma forma preferencial de representação no ER: os
gestaltistas diziam que nós introduzimos ordem no mundo representado e
os dados dão-lhes razão. Excepto nas obras de arte mais experimentais e
conceptuais –isto é, as obras de arte que não pretendem necessariamente ser
equilibradas– há sempre equilíbrio.
Da mesma maneira, um conto, ou um romance, têm de acabar de forma a
satisfazer as tensões que levantaram através do comportamento das persona-
gens. George Bernard Shaw escreveu uma peça de teatro, chamada Pigma-
leão.36 Com base no nome da peça, esperar-se-ia que houvesse uma «fabrica-
ção» de uma mulher por um homem e que o produto dessa «fabricação»
35
Os cristais aparecem numa escavação acheulense na Índia: 6 cristais de quartzo em Singi
Talav (d’Errico, Gaillard, and Misra 1989).
36
Refere-se ao mito de Pigmaleão e Galateia: Pigmaleão não gostava de nenhuma mulher e
fez uma estátua que representava a mulher perfeita: Galateia. Apaixonou-se pela estátua e não
por uma mulher. O tema foi muitas vezes repetido e corresponde a um problema de que Jung
falou: a incapacidade de aceitar as mulheres como são e a necessidade de as criar segundo as
regras da mente masculina.

98
fosse, depois casada com o homem. A primeira parte (a «fabricação») veri-
fica-se, mas Shaw era um homem cínico e fez que a peça acabasse precisa-
mente de maneira contrária: o leitor fica na dúvida sobre o que vai, de facto
suceder entre o criador e a criatura. Como muitas pessoas lhe perguntavam
qual era o fim «verdadeiro», isto é, como é que a peça acabava, Shaw escre-
veu um texto longo a explicar que o fim era diferente do que toda a gente
esperava (toda a gente espera que Pigmalião case com Galateia) e desencanta
uma personagem menor para a casar com a heroína. Paul Cassirer demons-
trou, creio que de forma absolutamente convincente, que o próprio texto de
Shaw não comporta tal final.37
Porque refiro eu isto? Porque nos dá perfeitamente a ideia de que repre-
sentamos conjuntos em termos de uma regra que dê sentido ao que aconteceu
antes. Ninguém espera que o final de um conto ou de um romance não acabe
de maneira congruente com o que é dito antes: esperamos coesão narrativa.
O mundo não é assim, mas mesmo no mundo tentamos dar ao que se passa
coesão. Por exemplo, ao recordar as nossas vidas tendemos a dar-lhes um
significado que não tiveram de facto. Por exemplo, Darwin, na sua autobio-
grafia, afirma que a sua teoria se estabeleceu com base nas observações feitas
nas ilhas Galápagos e depois da leitura de Malthus. Mas a análise dos seus
cadernos de notas mostra que não foi isso que se passou: Darwin introduziu
uma lógica empírica e racional que não existiu na evolução do seu pensa-
mento. Há mais dados que mostram o mesmo: as pessoas, quando recordam
a sua vida, detectam congruências que são ilusórias, podendo ir contra o que
de facto aconteceu (e presume-se que o fazem inconscientemente); Markus
trabalhou bastante sobre este tema.
Da mesma maneira, uma das melhores formas de recordar um número de
telefone é fazendo que a ordem dos números determine o resultado dos
números 96 9055146, por exemplo, é 96 (tmn) e depois começa com o
mesmo algarismo que o indicativo tmn, que é o máximo de 0-9 e depois vai
ao mínimo; seguem-se dois algarismos do meio, um 1, que subtraído do
precedende dá 4 e que somado dá 6. Ou seja, introduzimos uma ordem na
desordem.
Precisamos sempre de uma justificação das coisas. Um dos exemplos mais
impressionantes desta necessidade vem da interpretação do ritual religioso
dado por um teórico medieval. Na nota inscrevo o texto scannerizado de
uma edição em Inglês das pags. 16 e 17 do livro l’Art religieux du XIIIe siècle
en France.38 Neste texto vê-se que tudo tem de ter significado e que esse signi-
37
Na verdade, a peça tem três finais diferentes conforme a edição.

38
The commentaries of Gulielmus Durandus accompanying the account of any of the great
Christian festivals —such for example as Easter Eve— show how each ceremony performed on

99
ficado é sempre remetido para a ideia católica da morte e ressurreição (trata-
-se de uma cerimónia pascal).
Da mesma maneira nós, quando queremos compreender uma qualquer
situação, fazemos uma hipótese e depois procuramos verificá-la (ou pelo
menos fazem assim as pessoas mais instruídas e mais honestas; muita gente
faz uma hipótese e procura vonfirmá-la). Há dados mais experimentais tam-
bém claros sobre este ponto. Um exemplo da resistência que existe a alterar
uma teoria bem estabelecida é-nos dada por Anderson, Lepper e Ross
(1980). Estes autores transmitiram um conjunto de dados que sugeriam uma
teoria particular. Os sujeitos tinham de explicar esses dados e verificar essa

that day is full of meaning.


The day begins with the extinction of all the lamps in the church to show how the Ancient
Law which has hitherto given light to the world is now discarded. The celebrant then blesses the
new fire, type of the New Law. This fire must be struck from a flint in remembrance that Christ,
as St. Paul says, is the world’s cornerstone. Then the bishop, the deacon and the people move
towards the choir and stop in front of the paschal candle. This candle, Gulielmus Durandus tea-
ches, is a threefold symbol. When extinguished it typifies at once the pillar of cloud which led the
Children of Israel by day, the Ancient Lawl and the body of the Lord; when lighted it signifies
the pillar of fire which was Israel’s guide by night, the New Law, and the glorious body of the
risen ChristThe deacon alludes to this threefold symbolism when singing the Exultet before the
candle, but insists in particular upon the likeliness of the candle and the body of the Saviour. He
calls to mind that the pure wax was produced by the bee which, like the Virgin who gave birth to
the Saviour, is at once chaste and fruitful. To give visible form to the similitude of the wax to the
sacred body, he drives five grains of incense into the candle as a reminder both of the five
wounds of Christ and of the spices brought by the holy women for His burial. Finally he lights
the candle with the new fire, and the lamps are re-lighted throughout the church in token of the
iliumination of the world by the New Law.
The first part of the ceremony ends here. The second is devoted to the baptism of the
neophytes, which the Church ordained should take place on that day because, says Durandus,
she saw mystie affinities between the death of Jesus and the symbolic death of the new
Christian : who in baptism dies to the world to rise again with the Saviour. But before being led
to the baptismal fonts the catechumens listen to twelve passages from the Bible dealing with the
sacrament they are about to receive. These are, to give examples, the story of the Deluge whose
water purified the world, the passage of the Red Sea by the Children of Israel (a figure of bap-
tism), and the verse in Isaiah which speaks of those who thirst for the water of life. The reading
ended, the bishop blesses the water. He first makes the sign of the cross above it, then dividing it
into four he sprinkles it towards the four cardinal points in memory of the four rivers of the ter-
restrial Paradise. He next dips the paschal candle, type of Christ, into the water to remind thern
that jesus was baptized in jordan, and by his baptism sanctified all the waters of the world. He
dips the candle into he font three times in remembrance of the three days passed by the Rede-
emer in the tomb. The baptism then begins, and the neophytes in heir turn are dipped three
times into the font that they may know that with Christ they die to the world, with Him are
buried, and with rise to the life eternal.
It is evident that in such a ceremony no detail is without symbolic value.

100
teoria construindo pessoalmente as ligações entre os dados e a teoria (no
caso: homens que correm riscos são melhores bombeiros do que homens
prudentes). A partir do momento em que a teoria se encontra estabelecida
vai enviesar completamente a interpretação de outros dados subsequente-
mente apresentados: ainda que eles vão contra a teoria, ela não será afectada
e os sujeitos interpretam sempre os dados como corroborações dessa teoria.
Apenas para terminar este ponto, direi que a nossa apreciação da música,
da mais complexa à mais simples, parece basear-se no estabelecimento de
uma estrutura harmónica e rítmica e depois de uma perturbação dessa estru-
tura até que se chegue, de novo, ao ponto de equilíbrio inicial.
Aparentemente, o ER procura a resolução de tensões (sendo que tensão
significa «não perceber») e se tranquiliza quando as resolve. Isso ocorre, apa-
rentemente, em todos os campos em que o ER está implicado.
Falar de «resolução de tensões no espaço de representação» tem um ar
muito «estrutural», muito pouco concreto e, por isso, talvez muito «inato».
Contudo, se é verdade que me parece que esta característica seja comum a
toda a humanidade e que, portanto, o mecanismo de dar significado e de
tentar resolver as incongruências –a motivação para isso– sejam provavel-
mente inatas, os conteúdos da resolução são ou pelo menos podem ser cul-
turais. Há convenções sociais sobre o que é um «final feliz», há até conven-
ções sociais sobre como uma narrativa deve terminar. Por exemplo, no
género trágico, o final deve ser conclusivamente mau, isto é, sofrem todos os
interessados. Numa comédia, tem de haver um final feliz. Por outras pala-
vras, a maneira como uma sequência de acontecimentos decorre é certa-
mente determinada por influências culturais, mas é sempre precisa uma con-
clusão.
A tensão é resolvida por recurso às duas formas de inteligência que referi
anteriormente. Mas em qualquer caso há sempre uma expectativa de estru-
tura daquilo que se observa que é imposto à realidade. Esta característica é
ajudada pela nossa tendência a verificar se uma coisa «é como deve ser».
Recorde-se de que as crianças sabem quando uma coisa está estragada e ligue
isso aos dados que mostram que, quando avaliamos uma regra (por contra-
posição a uma hipótese) tentamos encontrar quem não se confirma à regra.
Veremos esse aspecto em parte quando considerarmos a agressão, mas todos
nós fazemos avaliações do comportamento dos outros, de formas de arte ou
simplesmente de locais onde vamos: é como esperávamos ou não? Quer
dizer: é conforme às nossas expectativas prévias ou não? Essas expectativas
prévias são, na quase totalidade, determinadas socialmente: é raríssima a pes-
soa que é suficientemente criativa para ter os seus códigos próprios de avalia-
ção. Para dar um exemplo simples, há muita gente que se diz «de esquerda»

101
ou «conservadora», mas teriam os esquerdistas ou os conservadores sido
capazes sozinhos de criar os bocadinhos de ideologia esquerdista ou conser-
vadora que defendem?
Assim herdamos culturalmente várias grelhas de imposição ao nosso
mundo exterior. Há grelhas estéticas, morais, ou simplesmente sobre o que
é aceitável ou não (por exemplo, é inaceitável que um espírito formado em
regras de pensamento formal aceite a astrologia porque ela é demonstravel-
mente falsa; ou é inaceitável que um cientista explique a atracção dos graves
em termos de vontade divina). A cultura arma-nos, assim, para entender o
mundo, para impôr as suas categorias ao mundo, e nós vemos o mundo
sempre por categorias feitas por outros. Se o mecanismo de imposição de
categorias é provavelmente inato (no sentido de comum a qualquer pessoa
normal pertencente à espécie Homo sapiens), o conteúdo dessas categorias é
completamente arbitrário. Há uma excelente discussão do tema das catego-
rias no livro Women, fire and dangerous things, de George Lakoff.

A imposição de categorias e os cânones

Um cânon é uma coisa pela qual se avaliam as outras. Como vimos, her-
damos cânones de imensas coisas. Mas interessa-me aqui salientar um
aspecto mais específico. É que, ao olharmos para uma coisa, desde que nos
interesse, lhe impomos necessariamente um juízo de valor: é bom, bonito
ou justo ou mau, feio e injusto. Desenvolvi esta questão num artigo já
antigo e não tornarei aqui a essas questões em detalhe.39 O que pretendo sali-
entar é que sempre que fazemos um juízo de valor sobre qualquer coisa esta-
mos a medi-la com um cânone. Que determinado comportamento seja
injusto pressupõe que esperamos que o mundo seja justo; que uma coisa seja
feia supõe que as haja bonitas; que uma afirmação seja falsa que as haja ver-
dadeiras. E, sobretudo, que se possa dicotomizar as coisas em justo/ injusto,
feio/ bonito e verdadeiro/ falso. Dicotomizar assim as coisas implica que
faços um postulado ontológico sobre o mundo: quer dizer, que afirmemos que
uma coisa possa ser intrinsecamente classificada numa de duas categorias
(desejável/ indesejável). Ora as coisas e os comportamentos são o que são,
independentemente do que achamos deles: uma pedra não pode ser bonita
na ausência de um observador que a ache bonita; não existe comportamento
injusto se não houver um avaliador; e nada é falso nem verdadeiro a não ser
que se definam critérios de verdade. Ou seja, a justiça, a beleza, a verdade,

39
«Ecce Homo sapiens: da condição humana vista por um etólogo». Psicologia, teoria, investi-
gação e prática, 1998.

102
são critérios do nosso ER: são juízos puramente mentais e não intrínsecos às
coisas.
Sei que não é muito fácil viver com esta afirmação: significa, em outros
termos, que tudo é arbitrário e que todos os valores são puras construções da
mente e não são obrigatórios per se. Mais, sabendo que as coisas não têm
valor intrínseco e que esse valor é apenas uma construção da nossa mente
complica-nos a existência porque todos fomos educados num conjunto de
regras que se tornaram quase segunda natureza em nós (quem é que iria
agora defender o direito à pedofilia? Contudo há culturas que a praticam e a
acham necessária). Ora ninguém gosta de seguir regras que lhe parecem
arbitrárias. Como veremos no capítulo sobre a condição humana, isso cria
uma grande tensão nas pessoas mais viradas para a introspecção e análise dos
motivos do seu próprio comportamento.

O mundo do invisível

A existência de um ER em que entidades se relacionam umas com as


outras cria um mundo mental, um mundo de entidades representadas e que
podemos modificar por imaginação. Em grande parte terá sido esse o maior
benefício evolutivo do ER: como tenho vindo a mostrar, permite a duplica-
ção do real num espaço virtual em que se podem conceber hipóteses – «e se
ele agora se zangasse», ou «e se eu colocar a pirâmide em cima do cubo?»
As imagens mentais tornam o invisível mais claro, porque, como vimos,
individuam um conceito como uma identidade que se pode relacionar com
outras entidades; a imagem mental faz também falta para mostrar aos outros
e comunicar sobre as coisas que se pensa. É precisamente por isso que,
quando pensamos numa cadeira, numa flor, num objecto qualquer nos
ocorre à mente uma imagem. Não é assim para todos os conceitos, e não
sabemos bem como são representados conceitos como a «justiça», por exem-
plo. Talvez com uma palavra ligada ao sentimento de simetria entre ganhos
e perdas.
A palavra desempenha uma função semelhante às imagens mentais na
medida em que também identifica uma coisa no ER – como vimos é essa a
função das palavras: da biunivocidade entre palavra e coisa representada pas-
sámos a usar apenas as palavras no espaço de representação e é isso que per-
mite que a nossa vida se passe, toda ela, no espaço simbólico. É assim que
podemos relacionar, por exemplo, sexualidade e neurose, como na psicaná-
lise, ou a ideia de a priori de conhecimento com a aprendizagem.

103
As forças e as energias e variantes do conceito de mana

O ER representa. A representação é de coisas sensíveis e de relações prove-


nientes da própria mente e que se identificam nas coisas. Nesse sentido o
mental não é abstracto: é apenas mental a não ser que seja transposto para
uma imagem ou para a palavra e assim tornado público. Por ser mental ape-
nas significa que só o vê a pessoa que o pensa, mas nem por isso deixa de ser
sensível e cognitivo ao mesmo tempo: as representações no ER são sempre,
necessariamente, um resultado do que vem do exterior e dos processos de
organização que vêm de dentro, do próprio espírito, gerado pelo sistema
nervoso.
Uma das manifestações mais precoces do ER ocorre ainda no Acheulense,
com Homo erectus: nota-se que esses hominíneos procuravam ocre vermelho.
Esse ocre, a ser utilizado no adorno corporal e como imposição sobre objec-
tos importantes, sugere uma marcação de um dado objecto ou corpo, no
intuito de lhe impôr o estatuto de singularidade. Trata-se, mais uma vez, da
imposição de uma dimensão do ER sobre a matéria, tal como o são a impo-
sição da forma e a escolha dos cristais. Significa que se pretendeu apôr ao
objecto considerado importante uma marca que o distinga.40
Essa marcação pode estar relacionada com o reconhecimento de um
«poder» àquilo que se marcava. O que este termo significa é pouco claro,
mas eu diria que quando uma coisa tem poder tem a capacidade de modifi-
car o ambiente. Assim, um vulcão tem poder porque tem capacidade de des-
truição e porque nada lhe resiste. Essa capacidade de modificação pode-se
referir como força, no sentido de «alta energia». Na maioria dos povos primi-
tivos e também entre nós tudo aquilo que é potente e maravilhoso tem
poder. Esse fenómeno foi em primeiro lugar teorizado por Desmarret, que
lhe chamou mana. O conceito aplica-se em todas as culturas que eu conheço
(na América do Norte chama-se-lhe «orenda» ou «wakanda», mas «manitu»
tem a mesma origem; entre nós pode-se dizer «sagrado», «milagroso», ou
«mágico», consoante é magia boa ou magia negra). Têm poder os raios, o sol,
e ainda tudo aquilo que não é esperado ou é inexplicável (os cristais, que já
referi), ou simplesmente aquilo de que temos medo – basta fazer a experiên-
cia psicológica de pensar, nós próprios, se uma doença grave tem mais ou
menos poder do que uma doença benigna.
Esta noção de poder, em níveis de abstracção muito baixos, como é norma
nas sociedades humanas pré-científicas (ver o copioso trabalho de Hallpike,
The foundations of primitive Thought, Oxford, 1979) o poder é referido a nós

40
O facto de ser vermelho deve-se, provavelmente, ao facto de se tratar da cor que melhor
vemos; nos neandertais, nossos primos mais afastados, havia aplicação de preto e de vermelho.

104
próprios: é poderoso porque me pode afectar. É por isso que os poderes são
vistos, normalmente, como intenções dirigidas à própria pessoa ou ao seu clã,
família, grupo. Uma intenção pressupõe um agente, como vimos da análise
da intencionalidade apresentada acima. Cria-se então um agente, especiali-
zado num mal específico: os vários espíritos mal-fazejos são responsáveis
por males particulares (e os espíritos bem-fazejos têm também, cada um
deles, a sua especialidade: S. António ajuda a descobrir coisas, por exemplo,
Santa Luzia –Luzia/Luz– ajuda em problemas de vista, S. Ovídeo em pro-
blemas de ... ouvidos).
A literatura antropológica está repleta de exemplos –que poderíamos
replicar na nossa própria sociedade– de forças invisíveis que lutam entre pre-
judicar-nos e ajudar-nos. A forma de conceber a ajuda é vista em termos
absolutamente típicos da nossa inteligência social: paga-se um favor com
outro. É assim que floresce uma indústria completamente lúgubre e inespe-
rada numa sociedade moderna: a das partes de corpo em cera, que as pessoas
compram para oferecer ao santo que lhes curou a parte em questão em agra-
decimento da cura.
As agências podem ser mais «subtis»: ainda hoje há um número surpreen-
dente de pessoas que acredita na astrologia. A ideia é que uma determinada
combinação de astros determina o nosso futuro. A ser assim, as pessoas que
nascem no mesmo lugar e ao mesmo tempo deveriam ter futuros iguais; isto
nunca se verifica, mas há sempre pessoas que acreditam no poder dos astros.
É uma forma de auto-centração primária que a maior parte das pessoas civi-
lizadas deveria compreender que é tola, mas é impressionante o número de
pessoas nominalmente instruídas que acredita nos astros. Há mais exemplos:
o poder das pedras, a leitura da sina na palma da mão, etc.
Todos estes casos presumem que há, algures no espaço invisível, forças
que se preocupam especificamente com a pessoa em questão. Estas forças são
invisíveis mas são materiais, tal como a electricidade. De resto, nos movi-
mentos new age fala-se imenso em forças, energias e outras coisas desse
género: são forças concretas mas invisíveis e que existem no mundo material
(não as confundir, portanto, com forças ou entidades abstractas, fruto do
nosso pensamento). Um aspecto interessante dessas forças é que são sempre
representadas como tendo um suporte material. Um dos melhores exemplos
que conheço é dado por Eliade, em Le chamanisme: em grandes complexos
culturais de índios norte-americanos existe uma técnica de retirar o mal do
corpo do doente através da sucção (ver, a este respeito, Hultkrantz, North
American medicine men). O processo consiste, em muitos casos, no seguinte.
O chamã tem, na boca, um objecto absorvente (muitas vezes uma pena). Vai
sugando o mal até quase fazer sangue no doente e chegado ao ponto em que

105
acha que já o sugou, morde a língua, faz correr sangue e retira da boca a
pena ensanguentada. Mostra-a aos espectadores (as curas chamânicas são
públicas), dizendo que ali está o mal de que o doente padecia. Nós temos
tendência a achar que o chamã está, conscientemente, a enganar as pessoas (e
sem dúvida isso acontece: ver Lévi-Strauss, «Le sorcier et sa magie»), mas o
facto é que quando se interroga um espectador, se verifica que ele sabe que
se trata de uma pena. Mas, dir-nos-á ele, a pena serve para carregar o mal. Se
não houvesse pena, onde era que o mal se agrarrava para sair do corpo do
doente? Da mesma maneira, os feiticeiros usavam bolas de cristal, varinhas
mágicas, os hipnotizadores charlatães usam truques de mãos e nos filmes
sobre magia –as recriações de Tolkien no cinema, por exemplo– os feiticei-
ros dirigem a sua «força» através quer de gestos direccionados quer através de
bastões. Na Austrália há uma forma de assassínio que consiste em usar um
osso e apontá-lo, a grande distância (fora da linha de visão, muitas vezes a
vários quilómetros) à vítima. O assassino concentra toda a sua força durante
bastante tempo e depois diz «morre». O acto é considerado menos eficaz do
que quando é feito sem o osso, apenas apontando as mãos (Elkin, The Aus-
tralian Aborigenes).
Conclui-se assim que o mundo do invisível está povoado de forças, quase
sempre interpretadas em termos da inteligência social.41

Os mortos e os espíritos

O mundo do invisível estende-se para lá das forças de feitiços. Uma das


forças mais temidas é a dos mortos. Há muitas razões para o culto dos mor-
tos, mas uma das mais importantes é garantir que o espírito do morto (ver
adiante) não aja sobre os vivos e exerça represálias. Este aspecto é interes-
sante porque se diria –nós diríamos– que depois da morte um corpo deixa
de ter intenções. Contudo isso é não compreender a representação da pessoa
na maior parte das culturas estudadas: como uma entidade dual, composta
de corpo e de espírito, em que o espírito anima o corpo. Refiro o dualismo,
mas é interessante que, para a maior parte das culturas, o que é mais impor-
tante é a alma. A alma distingue-se em vários tipos, como veremos adiante,
mas é a alma agente, a alma que determina a acção do sujeito (ver Mundos
Animais, Universos Humanos) de que se tem medo.
41
As forças da física moderna não são evidentemente baseadas na inteligência social. Mas nem
sempre foi assim. Por exemplo, dizia-se que «a natureza odeia o vácuo» para explicar que um
contentor em que se fazia o vácuo era esmagado. Como se sabe, isso ocorre por causa da pressão
atmosférica; mas pensava-se que era uma intenção, uma emoção da natureza.

106
O que isso revela é que se sabe que o corpo morre mas que não se sabe que
a agência morre. Pode ser porque a intenção não se vê e se teme –há inúme-
ros casos de culturas primitivas que acreditam que a morte ocorre sempre
por feitiçaria, provocada pelas más intenções de alguém (as pessoas muito
auto-centradas pensam sempre que tudo é feito em relação a elas). Ora
morre o corpo mas não se sabe se morrem as intenções. Por isso há cuidados
para garantir que o espírito segue o seu caminho. Há uma boa ilustração
desse processo, centrada nos ritos de morte dos Berawan, em Metcalf e Har-
rington, Celebrations of Death; the anthropology of mortuary ritual, 2 nd ed., Cam-
bridge UP, 1991, pp. 85 e seguintes; para um tratamento mais de fundo ver
Thomas, Les chairs de la mort, Institut d’Edition Sanofi-Synthelabo.

A imortalidade da alma
Há vários tipos de alma e o conceito é bastante variável consoante as cul-
turas. Os Inuit (Holm, 1888, apud Jakobsen, 1999, pp. 80) pensam que a alma
é semelhante ao corpo mas muito pequena, com o tamanho de um dedo ou
de uma mão. Ainda segundo Holm, que recolheu a informação directa-
mente de um Ammasalimiut,

uma pessoa tem muitas almas. A maior está na laringe, do lado esquerdo do
corpo, e parece-se com uma pessoa muito pequena, do tamanho de um pardal;
as outras almas encontram-se nos outros membros da pessoa (sic: «in all the
person’s other limbs») e têm o tamanho da articulação de um dedo».

Esta crença na multiplicidade das almas era frequente na América do


Norte. Hultkrantz (1952/1997) descreve aí vários tipos de alma. Apesar da
variedade, encontram-se, sempre, pelo menos duas almas: a alma do corpo,
responsável pela vida, e a alma livre, concebida como consciência e que se
pode afastar do corpo (recordemos que as culturas ameríndias são xamanis-
tas e que as viagens místicas fora do corpo são frequentes; ver, sobre o
xamanismo, Eliade, 1951/1968). Verifica-se que a alma que sobrevive à morte
é a alma livre, isto é, a consciência (pp. 202, 205, 207). Este resultado é con-
cordante com a teoria aqui apresentada (na realidade, apenas tive acesso ao
trabalho de Hultkranz depois de a desenvolver). Para compreender como,
consideremos uma frase e duas perguntas que se formulam por vezes.
1. «Antes de nascer o que é que eu era?»
2. «Depois de morrer para onde vou?»
3. «Quem me dera nunca ter nascido»
Essas frases correspondem, de resto, à experiência que todos sentimos ao
ler sobre as brutalidades da história humana: «que sorte não ter vivido

107
naquela altura!» ou à pergunta, sempre intrigante: «se os meus pais não se
tivessem conhecido o que seria eu?».
Todas estas frases correspondem à pergunta:
Se eu não existisse, onde estaria
Quer dizer:
Se «Eu não existo» então «Eu=?»
Quer dizer, pergunta-se o que seria o «eu» no caso da sua não-existência.
Ora isto é logicamente impossível: uma coisa não pode logicamente ser e
não ser.
Noutras frases, o ilogismo da situação é mais nítido:
Se o João e a Maria não tivessem filhos, como se chamariam os filhos deles? Ou, tal-
vez ainda mais óbvio, O João e a Maria não têm filhos; como se chamam os filhos
deles?
Contudo, e apesar de as frases referidas inicialmente serem ilógicas, não as
sentimos como tal, e correspondem a problemas que todas as culturas (e a
maior parte dos adolescentes e dos adultos conscienciosos) se colocam num
momento ou outro, fornecendo-lhes respostas.
O aparente paradoxo explica-se, contudo, facilmente, recorrendo aos
esquemas praxianafóricos. Já referimos acima que quando nos concentramos
num problema o transformamos num conjunto de objectos e de relações
entre objectos. Particularmente, aquilo que se encontra no centro da nossa
atenção é formulado como um objecto ou numa substância, no sentido de
que se transforma numa coisa com propriedades intrínsecas, de relação e de
transformação. Quando nos representamos a nós próprios representamo-
-nos, necessariamente, como objectos, como entidades com contornos e
propriedades definidas que podem entrar em relação com outros objectos e
outras substâncias. Mas ao representarmo-nos como objectos, temos a cons-
ciência clara de que, como sujeitos, ou agentes da acção, contemplamos uma
realidade que é o objecto dessa contemplação. Ou seja, reflectir sobre si pró-
prio corresponde a transformar o eu em objecto contemplado pelo sujeito.
Quando afirmamos «Quem me dera não ter nascido» isso implica que «eu-
-sujeito gostaria que eu-objecto não existisse». Assim, o aparente ilogismo
da afirmação simultânea de Eu e não-Eu desaparece, porque se afirma Eu-
-sujeito e não-Eu-objecto.
Na medida em que esse Eu-sujeito emite juízos sobre o Eu-objecto, as
duas entidades são, forçosamente distinguidas. A razão de ser dessa distinção
é que o «espaço de atenção» que corresponde ao Eu-sujeito tem uma existên-
cia activa e cognitiva – trata-se do Cogito cartesiano – mas não tem, necessa-
riamente, consciência de si próprio: quando nos concentramos sobre qual-
quer assunto, temos tendência a «esquecer-nos de nós próprios» (Benson,

108
1993) para nos concentrarmos exclusivamente sobre o problema que se
transforma, assim, num objecto. Esse Eu-sujeito é, pois, um espaço de repre-
sentação mas não é necessariamente representado.42
A universalidade da dualidade do eu e da sobrevivência da alma é, pois,
uma consequência directa da lógica sujeito-objecto: o sujeito compreende
os objectos como distintos de si próprio; quando esse esquema sujeito-
-objecto se aplica à análise do eu resulta necessariamente um dualismo.
Podemos resumir tudo isto em termos mais formais:
1) Quando nos debruçamos sobre nós próprios somos forçados a fazê-
-lo através da lógica sujeito-objecto;
2) Em consequência, concebemo-nos como um objecto (visto que
somos uma entidade com limites e não uma substância), 43 com as suas
propriedades típicas (nascimento, morte, etc);
3) Permanece um resíduo, o Cogito, que representa o Eu-sujeito;
4) Quando esse Eu-sujeito contempla o Eu-objecto, a estrutura
sujeito-objecto introduz uma dualidade no Eu;
5) A parte que conhece (o Eu-sujeito) não é limitada temporal e espa-
cialmente (dado que não é um objecto) enquanto que a parte conhe-
cida o é;
6) Neste sentido, poderíamos esperar que as concepções do eu imortal
apresentassem, na maior parte das culturas, as características do eu-
-sujeito. É precisamente esse o resultado da análise de Hultkranz. 44

Refiramos que a análise precedente poderia ser aplicada a outros casos em


que o sujeito psicológico se separa do objecto. Consideremos, por exemplo,
os fenómenos de possessão e êxtase, que se encontram em todos os conti-
nentes (ver as revisões de Lévi-Bruhl, 1927, Eliade, 1951-1968, Métraux,
1957, Schott-Billman, 1977, Leiris, 1996 (pag. 921-1061) e Thomas, 2000). Em
todos esses casos, a disponibilidade do corpo para ser possuído (ou «caval-
gado», segundo uma metáfora frequente) por um espírito implica uma visão
dualista em que o centro de consciência se transfere do objecto que é o

42
O mesmo se passa com a consciência das categorias com que representamos o mundo.
Como veremos, os paradigmas culturais nunca estão conscientes no espírito das pessoas.
43
Na sequência de McNeil (1992), distingo objectos e substâncias principalmente por uma
substância se espraiar sem limites bem definidos, como, por exemplo, a água, o ar, a relva, etc., e
por um objecto ser uma entidade com limites precisos. O corpo tem limites bem definidos
sendo, portanto, um objecto. Não é raro, aliás, que o corpo seja explicitamente concebido com
um polílito: ver Lévi-Bruhl (1924) para numerosos exemplos.
44
Não quero deixar de referir o interessante estudo de Damásio (2000), que distingue entre
proto-si, si nuclear e si auto-biográfico. O eu-sujeito de que aqui falamos corresponde ao proto-
-si de Damásio; os eu objectos são o si nuclear e, sobretudo, o si auto-biográfico.

109
corpo e o eu social. Mais exactamente, a ideia subjacente às várias formas de
possessão parece ser que o eu se desliga do corpo, que passa a ser a sede de
um outro espírito. Enquanto dura a possessão o sujeito não tem qualquer
consciência do que o seu corpo faz – trata-se, pois, de um caso em que o eu-
-objecto foi possuído por um outro sujeito.
Note-se que não afirmo que a lógica eidoloanafórica seja a única causa
responsável por essa visão dualista. Refiramos as teorias clássicas da impor-
tância dos sonhos, dos reflexos, da sombra e do eco. Sem dúvida que a ideia
de uma manifestação imaterial de uma realidade material reforça, no sentido
de que concretiza, a noção dualista. Mas, se o dualismo tivesse apenas essa
origem, não seria sempre a alma correspondente ao Eu-sujeito que sobrevi-
veria.

A lógica do espaço reificado: a sintaxe do imaginário


O sistema descrito baseia-se na reificação sistemática das nossas experiên-
cias e na transformação de qualquer problema num conjunto polilítico. Mas
é, bem entendido, impossível que cada pessoa invente, sem ajuda, aplicações
de esquemas praxianafóricos à totalidade da sua experiência. As pessoas
encontram, contudo, na cultura, um grande arquivo de modelos praxianafó-
ricos para a maior parte das coisas de que terão necessidade. Esses arquivos
propostos por cada cultura encontram-se adaptados às suas exigências ambi-
entais específicas. E, na realidade, uma cultura pode ser compreendida como
uma série de instruções, uma rica panóplia de modelos praxianafóricos que
são as bases dos problemas apresentados por cada ambiente. Esses esquemas
podem ser tecnológicos, rituais, metafísicos ou teóricos, mas são os «óculos»
que permitem a cada indivíduo conceptualizar o mundo à sua volta.
O processo implica que a cada problema apresentado pelo ambiente
(obtenção de alimentos, reprodução, cooperação e competição) seja dada
uma resposta adequada (exploração económica, organização social, definição
do acasalamento, ritualização da guerra, construção de máquinas adaptadas
aos problemas, e assim por diante). Esses memes, para utilizar a expressão
feliz de Dawkins (1976) são, assim, instruções comportamentais que adaptam
o grupo ao ambiente (mesmo que sejam frequentemente justificadas em ter-
mos religiosos e que não sejam compreendidas como instruções para a adap-
tação mas como ritos; ver Rapaport, 1971, 1999).

As consequências da reificação
Esta solução do problema da adaptação ao ambiente, única no reino ani-
mal, tem uma consequência inesperada do ponto de vista estritamente evo-
lutivo. De facto, ainda que as explicações evolutivas da reificação sejam a

110
necessidade de poder tratar conjuntos de informações num plano abstracto e
independente dos suportes, permitindo assim a previsão e o planeamento da
acção sobre objectos e pessoas, o funcionamento do mecanismo implica que
a lógica eidoloanafórica seja imposta a qualquer problema com que o indiví-
duo se defronte. Tudo é, pois, representado em termos de objectos ou subs-
tâncias, relações e transformações.
Esta aplicação sistemática da inteligência eidoloanafórica à curiosidade
humana produz o mito, a filosofia, a ciência e a religião, conjuntos polilíti-
cos em que as classes funcionam como objectos que se relacionam entre si. E
produz também as lógicas a que obedece a estruturação das sociedades – há
«membros» de um «corpo social», organizado de forma a produzir uma
estrutura cooperativa.

O eu

Farei uma curta referência a este conceito, usado na secção anterior, que
será mais desenvolvido quando considerarmos a agressão. Aqui pretendo
dizer apenas o seguinte. A origem do eu é, provavelmente, o ponto de refe-
rência interno que todos os animais móveis possuem. O ponto de referência
é uma forma de um animal se localizar no espaço. Não há estudos que eu
conheça sobre este aspecto mas é importante dizer que o ponto de referência
não parece ser o corpo todo. Por exemplo, as ratazanas, quando fazem
ninho num local onde não há materiais de ninho, transportam a própria
cauda, tratando-a como material de ninho (Eibl-Eibsfeldt e observações pes-
soais); os gatos perseguem a própria cauda como se fosse uma presa; os cães,
quando têm uma dor forte e súbita na zona caudal, procuram o agressor
nessa zona e não o encontrando podem morder as próprias patas (Anne
Rasa). Ou seja, o centro de referência é interno mas não é o corpo.
Com vários primatas (ver, por exemplo, Byrne, The Thinking Ape) há
identificação do próprio corpo com uma imagem num espelho, no sentido
de que se se pintar, sob anestesia, uma mancha na cabeça de um chimpanzé
ou de um orangotango habituados a espelhos, os animais, vendo a sua pró-
pria imagem, levam a mão à zona pintada. Contrariamente ao que quem
primeiro referiu este fenómeno (Gallup) conlcuiu, não me parece que isto
signifique o animal tenha um eu. Significa apenas que tem um esquema cor-
poral que identifica com uma imagem que ocorre sincronicamente com os
seus movimentos –o que não é pouco, mas não é um eu. Na nossa espécie o
eu existe como categoria linguística: chama-se-lhe «capacidade de auto-
-enunciação». Significa isto que nós tendemos a anunciar o que vamos fazer

111
ou o que queremos ou pensamos em termos de uma palavra que se refere à
nossa identidade. Há uma enorme quantidade de estudos sobre o eu, a
começar talvez por Kant, e actualmente tem muita influência a posição de
Merleau-Ponti, que defende que o eu se define por contraposição com os
outros. Mas defenderei uma posição muito menos teórica: o eu é a noção,
no tempo, do que fizémos, do que queremos fazer, e de como nos sentimos.
Eu sou quem fez a, b, c, que se sente d, e, f, e que vai fazer g, h, i. Posso
também dizer o meu nome, a minha profissão, falar da minha família ou da
minha casa, dos meus interesses e até do que penso de mim próprio. Mas
parece-me que a intuição do eu não tem que ver com os outros, que é pri-
mária demais para isso. Esta ideia, que apresento aqui sem mais reflecção, é
consonante com a ideia de que o eu tem como origem o ponto de referência
interno nos outros animais. Para mim, o eu é a sensação básica de ser, de
existir, de pensar, de sentir e de fazer. Ou, para ser mais congruente com o
que tenho vindo a defender, o eu é o ER que tem consciência de existir.

As geografias da alma

O eu corresponde, pois, apenas a uma experiência fenomenológica básica.


Contudo pode querer-se conhecer melhor o nosso próprio eu. Embora con-
corde com Kant de que o eu é basicamente incognoscível porque apenas
temos consciência do momento em que estamos conscientes –passe a redun-
dância– parece-me possível distinguir graus de consciência do eu.
Talvez o ponto mais correcto para começar seja uma observação do filó-
sofo Petrus hispanus –o único papa português– autor de uma muito influ-
ente teoria da alma. Diz ele que a alma tem desejo de conhecimento, mas
primeiro das coisas que se passam fora dela; só depois disso se pode querer
conhecer a si própria. Significa isto que o ER evoluiu para monitorizar o
exterior e não para pensarmos em nós próprios, para introspeccionarmos.
Apesar disso, Pedro Hispano apresentou uma teoria do funcionamento da
alma. Embora seja claramente herdeira da ideia cristã de que o livre arbítrio
está na escolha do bem, trata-se de uma teoria muito detalhada que distin-
gue os processos do querer e do escolher. Com a separação entre Res cogni-
tans e Res extensa Descartes iniciou um período em que pensar sobre a mente
se tornou mais ou menos impossível: se não se poderia medir, seria impossí-
vel capturá-la. Faço notar que Pedro Hispano tinha apresentado uma teoria
das funções da alma (ou mente) e que Descartes apenas disse que não era pos-
sível ter acesso à observação da mente porque nela não se distinguiam objec-
tos.

112
Esta confusão entre caracterização por identificação de elementos contá-
veis e mensuráveis e a caracterização por funções dura, parece-me, até hoje.
Já no Séc xvııı Kant apresentou uma teoria complexa sobre as regras neces-
sárias ao conhecimento (a teoria dos a priori da sensibilidade e do entendi-
mento) mas não a considerou Psicologia porque não se baseava na introspec-
ção. Embora concorde que não é, nesse sentido, uma psicologia, por essa
ordem de ideias a Psicologia cognitiva actual não o seria também. A verdade
é que podemos pensar e depois tentar testar as previsões do que pensámos
sobre o funcionamento da mente da mesmíssima maneira em que fazemos
um modelo matemático de uma coisa e depois o testamos.
Não há muitas geografias funcionais da mente, contudo: faltam teorias
integrativas sobre isso. Nos períodos mais recentes, talvez só Freud tenha
apresentado uma teoria –penso que fundamentalmente errada no dina-
mismo e fundamentalmente certa na tópica (quer dizer: não acredito que os
dois motivos principais sejam o sexo e a morte, mas acho útil a separação de
Ego, Id e Superego. Seja como for, Freud tem cada vez menos importância
na compreensão do homem.
Resta-me afirmar que este texto tem pretensões de apresentar uma pro-
posta, ainda que bastante inicial, de geografia funcional da mente. A maior
parte dessa tentativa encontrar-se-á na secão sobre a agressão. Para já, pren-
tendo apenas chamar a atenção para uma distinção fundamental a que já fiz
mais do que uma referência: o ideia de eu, espaço de representação e o eu
que observa esse espaço de representação.
A diferença é simples de compreender. Quando pensamos, fazemos qual-
quer coisa, ou sentimos uma emoção estamos em pleno espaço de represen-
tação. Dir-se-ia então que, na medida em que o ER está sempre preenchido
com qualquer coisas, não haveria possibilidade de observar esse espaço de
representação (porque ele está sempre preenchido com o que estamos a fazer
num determinado momento). Contudo, isso é falso: temos memória, pode-
mos então tentar recordar-nos do que pensaámos, sentimos e fizémos. Se
nos treinarmos suficientemente em pensar no que fizémos, sentimos e pen-
sámos conseguimos olhar para o nosso ER passado com base no nosso ER
presente. Os budistas afirmam que há duas localizações da mente: na parte
da frente da cabeça ou mais atrás. Creio que isto corresponde à distinção que
eu faço entre representar o mundo (o ER normal) e pensar sobre o que se
passou no ER. Com treino suficiente, consegue-se, em todos os momentos,
analisar o nosso eu volitivo, activo, emocional. Trata-se do tal Eu cartesiano,
que ele formulou como Cogito.
Este eu cartesiano está presente em quem quer que fale: quando se diz «eu
fiz» ou «eu vou fazer» está-se precisamente a enunciar esse eu cartesiano; o

113
que ocorre é que a maior parte das pessoas não desenvolveu esse eu observa-
dor do eu activo e volitivo –o eu de trás que observa o eu da frente– e, em
consequência, vive na acção e no sentimento e não na observação de si pró-
prio. Como vimos, é a consciência confusa de que, depois da morte, perma-
nece um resíduo que está, pelo menos em parte, na origem da noção da
imortalidade da alma. Para quem tem esse eu sujeito, esse eu cartesiano, esse
eu de trás, muito desenvolvido é mais difícil pensar que ele vai morrer e,
sobretudo, mais problemático. Vergílio Ferreira tratou desse assunto várias
vezes, mas especialmente na Aparição, na Invocação ao meu corpo e em Pensar.
Nenhum é um livro fácil, mas recomendo-os como necessários a quem quer
que pretenda ser psicólogo ou compreender-se a si próprio. A minha posi-
ção perante Vergílio Ferreira encontra-se num curto ensaio –Ars vivendi, Ler
o Jornal– que se encontra na internet. Repetindo rapidamente o que ali digo,
é esse eu cartesiano que nos permite pormo-nos em dúvida, pensar sobre o
que somos e decidir o que queremos de facto ser. É, na verdade, a única
fonte de liberdade que temos. Mas acompanha-se por uma maldição: ao
descentrarmo-nos completamente de nós próprios, sentimos que perdemos
completamente a importância e neste processo vai-se o egoísmo necessário
para vivermos num mundo competitivo. Mais do que isso, se pusermos
efectivamente tudo em causa, se perguntarmos sistematicamente «porquê» a
todas as coisas que a nossa aculturação nos habituou, perderemos a força de
convicções que caracteriza quem pensa pouco.
A liberdade é uma espada de dois gumes: os animais não são livres mas
vivem plenamente; nós podemos ser mais livres, mas num espaço de ausên-
cia de significado que pode –não é necessariamente– ser muito angustiante.

A trídade d-e-r/c

Expliquei que, na nossa espécie, quando um fenómeno chama a atenção,


ele é inserido numa classe. Se essa classe não existir, verifica-se o fenómeno
«ascendente» da doxificação, em que se procura caracterizar a «essência» do
fenómeno observado. Essa «essência» corresponde, geralmente, a uma cate-
goria que tem um núcleo prototípico muito claro. Nos casos em que se trata
de um fenómeno novo, a classe e o protótipo correspondem, evidente-
mente.
Dada a existência de uma classe que captura a essência, isto é, os traços mais
evidentes e mais típicos do fenómeno observado – traços esses que podem
estar presentes no fenómeno ou na sua interpretação – forma-se uma poten-
cial imagem ou um esquema sintético. Esse esquema sintético – o protótipo

114
– pode, potencialmente, ser representado em termos de imagens, de símbo-
los ou de rituais (trata-se de imagens ou símbolos encenados, mas o princípio
é o mesmo).
A tríade pode, pois, ser representada por um esquema que se desenrola em
4 passos distintos, como ilustrado na figura que se apresenta.
Já vimos que este processo é válido para a compreensão quer do mundo
físico quer do mundo social: os vários protótipos são ligados através da
lógica eidoloanafórica, exercida agora no plano mental sobre os próprios
protótipos das classes.
Em complemento deste texto recomendo a leitura do capítulo 13, A reifi-
cação e as classes, de Mundos Animais Universos Humanos. Há que ter em aten-
ção que aquilo a que eu aí chamo Reificação deve ser entendido como a
redução da experiências às classes e teorias que são tratadas no ER.

ESPÉCIE BIO-PSICO-SOCIAL

É nesta mistura de condicionantes inatas, culturais e mentais que temos de


compreender a natureza da motivação humana. Temos instruções biológicas
iguais às dos outros animais, mas além disso temos instruções culturais de
cuja arbitrariedade não temos consciência. Além disso, se o treinarmos, tere-

115
mos a capacidade de raciocionar –eu cartesiano– sobre aquilo que nos
motiva e sobre a aceitabilidade desses motivos.
Disse acima que aceitava a tópica de Freud –Id, Ego e Superego– mas não
o seu dinamismo. Não acredito nas especulações intestáveis da sexualidade
infantil, não gosto do estilo de explicação a posteriori em que tudo se reduz,
por contorcionismos verbais, à sexualidade e à morte, mas aceito que há
efectivamente três níveis de funcionamento que influem no comportamento
humano. Passo a explicar esta afirmação.
Vimos que há, em termos motivacionais, várias instruções biológicas que
são muito semelhantes às dos outros mamíferos. Mas por outro lado, há
também motivações que têm origem social –a necessidade de declarar se
uma coisa é boa ou má, por exemplo, e as expressões permitidas socialmente
das motivações primárias.
Esta integração faz-se no ER por regras que apontei. Esta situação faz que
sejamos sempre criaturas multi-determinadas, o que não se faz sem conflitos.
Veremos, agora, dois grandes conjuntos de motivações/emoções que são,
inquestionavelmente, biológicas, as suas manifestações culturais e os meca-
nismos psicológicos que tornam a sua expressão possível. Além disso temos
a possibilidade de questionar os nossos próprios motivos, as nossas próprias
emoções e sentimentos. Assim, temos que o conjunto de instruções biológi-
cas poderia corresponder grosseiramente ao Id; o conjunto de instruções
culturais ao Superego; e o eu cartesiano à noção freudiana de «força do Eu».
Se o leitor gostar da ideia, pode considerar esta perspectiva uma espécie de
restauração, com materias mais modernos e cientificamente mais correctos e
com uma disciplina mental maior (não cair em especulações delirantes), da
tópica (não da dinâmica) de Freud. Ou, se preferir, trata-se de uma integra-
ção da Etologia e da Psicanálise. Finalmente, se quiser uma formulação mais
filosófica, trata-se de uma visão neo-kantiana que integra dados da Etologia
clássica e da Psicologia animal e humana e vários dados da Antropologia
cultural numa síntese dinâmica que pretende explicar o homem como um
organismo bio-psico-social, tal como Freud o pretendeu.
A ideia dos dois próximos capítulos é apresentar a espécie «em acção»,
quer dizer, mostrar como tudo o que se disse até agora funciona em con-
junto.

116
ORIGEM FILOGENÉTICA DO EU

INTRODUÇÃO

Este texto pretende mostrar que os conceitos usados para explicar o com-
portamento animal esclarecem a formação do Eu e podem servir de guia
para o estudo deste campo vasto e difícil. A explicação é estritamente funci-
onal – não recorre a qualquer conceito fisiológico – na linha da «Etologia
funcional» defendida por SáNogueira-Saraiva (2006). A estrutura deste texto
consiste numa introdução aos conceitos mais importantes, na análise das
modificações que ocorreram durante a hominização e na exploração das
alterações que essa hominização causou na estrutura das representações no
meio.

O CICLO FUNCIONAL

O sistema nervoso e, especialmente, o cérebro, têm duas funções específi-


cas: 1) decifrar, do ambiente exterior ou do interior do organismo, sinais
que são importantes para a sobrevivência desse organismo; 2) gerar respostas
a essas informações que promovam a sobrevivência. Esta geração de respos-
tas depende da activação de um módulo comportamental que responde a
sinais específicos e gera respostas a esses sinais.
Desde Uexküll (1923, Uexküll & Kriszat, 1934) chama-se a esta relação
entre ambiente e organismo, através da percepção e da acção, ciclo funcional. É
importante compreender que, nesta formulação, o mundo de cada espécie é
formado, construído de acordo com os a priori dessa espécie. Esses a priori são
típicos da espécie e nesse sentido chama-se-lhes inatos, embora sejam sujeitos
a um processo de desenvolvimento em que há interacção com o ambiente
(SáNogueira-Saraiva, 2006).
Os ciclos funcionais dependem da percepção e propriocepção (do que se
passa fora e dentro do organismo). São a percepção e a propriocepção que
vão determinar a activação de um dos vários centros de acção (agressão,
sexo, construção de ninho, etc.), em resposta a estímulos quer internos quer
externos (concentração iónica, por exemplo, sentida como «sede» e que leva
à procura de água, ou uma invasão territorial por um conspecífico, sentida
como «intrusão» e que leva ao comportamento de ataque).
Quando um desses centros é activado os outros, em geral, são inibidos
(Tinbergen, 1951, Baerends, 1970, 1976). A activação desses centros deter-
mina aquilo que o animal vai ver e como vai reagir ao que vai ver. Por
exemplo, quando têm filhos, várias espécies reagem à configuração «peque-
no» com comportamentos de protecção; essas mesmas configurações, quan-
do o módulo «comportamento parental» não está activado, podem ou ser
completamente ignoradas ou desencadear outros módulos (por exemplo,
comportamento predatório). Assim, é a activação motivacional, isto é, a activa-
ção de cada centro de percepção/ acção, que determina o que o animal sente
do ambiente e como sente.
Para que seja possível esta alternância de centros motivacionais, tem de se
supor que, quando activado cada um deles, o sujeito que é cada animal se
altera: consoante o centro activado o animal percepciona coisas diferentes e
reage com comportamentos diferentes quando está perante o mesmo estí-
mulo. Pode, portanto, dizer-se que o mundo do animal e o próprio animal
se alteram consoante o estado motivacional.
O que proponho é que é este sistema de ciclos funcionais que está na ori-
gem do Eu.

O ponto de referência interno

O sistema nervoso gera um «local» central onde cada animal «sente» e gere
os estímulos do ambiente. Não há estudos sobre a localização desse local,
mas parece-me provável que ele se encontre em parte no nível dos recepto-
res do ambiente.45 De facto, o cérebro resulta da diferenciação de tecidos
receptores de energia (os receptores sensoriais) na parte anterior do animal (a
parte que «vai à frente»). Esses tecidos receptores evoluíram «à frente» por-
que é importante para os organismos móveis saber o que se passa no local
onde vão estar pouco tempo depois. Como é útil poder cruzar as diferentes
informações provenientes dos diferentes receptores (a luz [visão], a concen-
tração de substâncias químicas [olfacto], vibrações [audição], etc.), passou a

45
Contrariamente ao que se poderia pensar, a imagem do corpo não está na origem do eu.
Sabe-se que os animais não processam o seu corpo enquanto «parte de si». Assim, um cão que
sinta uma dor na cauda agredirá o agressor da parte posterior do corpo; mas se não houver
agressor, o cão morderá a própria cauda ou as patas traseiras, causando assim mais dor e maior
agressão (Rasa, 1987). Da mesma maneira, um rato que não tenha material de ninho transportará
a própria cauda na boca até ao local escolhido para fazer ninho, deporá a cauda, e irá procurar
«mais material», abocanhando de novo a cauda longe do ninho (Eibl-Eibesfeldt, 1963, observa-
ções pessoais).

118
haver conexões entre os tecidos nervosos que asseguram a transdução e a
análise dessa informação. Essas conexões são o cérebro ( Jerison, 1973). Sendo
o cérebro o ponto de confluência da maior parte das informações provenien-
tes do ambiente e tendo a boca funções de alimentação e de manipulação de
objectos em quase todos os animais, parece-me provável que o sentimento
subjectivo da percepção e da acção se concentrem na zona da cabeça: é aí
que se centra a percepção e parte da acção dirigida a objectos e outros agen-
tes.
A esse centro subjectivo do animal chamarei ponto de referência interno, ou
pri. Esse ponto subjectivo corresponde também a um ponto de localização.
Embora nos humanos possamos deslocar esse pri do nosso corpo, de
momento consideremos que o ponto da subjectividade e a localização no
espaço correspondem ao mesmo local no organismo.
Assim se cria um espaço nos animais com movimentos dirigidos: um
espaço de percepção/acção à frente do organismo, espaço esse que é definido
pelos receptores e pela acção do animal; e um ponto localizado no próprio
animal e que serve para a orientação, talvez definido na zona da cabeça.
Cada característica do ambiente que desencadeia um ciclo funcional é o
pólo-objecto e o pri, alterado motivacionalmente para ser reactivo a essa
característica, é o pólo sujeito.
Se definirmos o pri como o centro perceptivo e accional do animal, parece
necessário aceitar que esse centro se altera de acordo com a motivação que
está activada (as motivações alteram-se continuamente de acordo quer com
estímulos externos quer estímulos internos). Ou seja, o «centro subjectivo»,
a posição no espaço, não tem uma continuidade qualitativa: num momento
o animal pode ser predominantemente sensível a estímulos alimentares e
noutro a estímulos de acasalamento. Antropomorficamente, é como se no
pri houvesse identidades diferentes consoante a motivação activada. Este
efeito é tão grande que o mesmo estímulo pode ser alvo de respostas antagó-
nicas consoante o estado motivacional, como já disse.
O estado qualitativo do pri é, pois, definido pela motivação dominante.
Essa motivação determina o «significado» dos acontecimentos do ambiente
(operacionalizado em termos dos comportamentos que o animal vai emitir).
O pri é também a zona de confluência da representação do ambiente e das
necessidades internas do organismo: é aí que são representadas as necessida-
des – motivações – do organismo, que definem aspectos do ambiente que o
animal vai procurar (alimento, parceiros sexuais, etc.) ou a que é sensível
(como disse, os animais são sensíveis a diferentes aspectos do ambiente con-
soante o seu estado interno). É neste pri que o animal detecta os estímulos
desencadeadores de padrões comportamentais (a relação estímulo-orga-

119
nismo-ambiente, isto é, o ciclo funcional). A «apetência» por certas catego-
rias de estímulos (por exemplo, estímulos alimentares quando o animal tem
fome, ou estímulos que sirvam para construir o ninho quando essa motiva-
ção está activada) também tem de afectar o pri, resultando na selectividade
na atenção e mesmo na percepção, como já vimos. O pri é, pois, um cons-
truto teórico necessário para compreender toda a organização das relações
comportamentais entre meio e organismo.
O pri é então um constructo que pretende capturar a noção de que há um
interface entre as necessidades internas do animal e aquilo que ocorre no
exterior do animal. Há assim um pri em que são representados o estado
interno do animal e o ambiente percepcionado.46

Memória e o pri

Em muitos casos o pri funciona apenas como uma estação de informações.


Mas noutros está relacionado com outras funções. Nos animais que são
capazes de aprendizagem (transferência de resposta de um estímulo para
outro ou associação de um estado interno e uma informação externa) é
necessário que o animal guarde um traço mnésico do primeiro aconteci-
mento e que depois associe esse traço mnésico com o acontecimento que
está no pri. Assim, se se apresentar um estímulo A (uma luz que se acende,
por exemplo) e depois um reforço (alimento, por exemplo), vários animais
transferirão a resposta (alimentar, neste caso) ao estímulo A. Mas para que
isto aconteça é necessário que, quando o alimento é apresentado, ainda
esteja activada, e acessível ao pri do animal, informação sobre o estímulo A.47
Substituição de estímulo e transferência de resposta — Nos vertebrados com
capacidades de aprendizagem é necessário postular um espaço de memória aco-
plado ao pri. As formas mais simples de condicionamento ocorrem por assi-
milação de um estímulo neutro a um desencadeador inato. Assim, verifica-se em
várias espécies que um estímulo neutro apresentado imediatamente antes de
um desencadeador vai passar, ele próprio, a ser um desencadeador das mes-
mas respostas do desencadeador inato com que foi associado. Por exemplo,

46
Uso «representação», «representado» não no sentido forte do termo, que significa «de novo
presentes». Uma representação, no sentido em que uso o termo, é apenas uma referência a um
objecto, a um estado interno, a uma memória. Essa referência é a uma coisa específica – um
estado interno, uma percepção, uma recordação – e nesse sentido parece-me que não é proble-
mático chamar-lhe «representação».
47
Há outras forma de memória, especialmente nos insectos, de que não tratarei aqui por me
parecer que não têm relação com os processos que ocorrem nos vertebrados. Tratei deles com
detalhe em SáNogueira-Saraiva (2003).

120
se uma tecla se acender pouco antes do fornecimento de alimento e num
local não muito distante de onde o alimento é fornecido, verifica-se que a
tecla passa a ser «comida»; se o reforço for água, a tecla será «bebida»; se o
reforço for uma fêmea (e o sujeito experimental um macho) a tecla será cor-
tejada (Moore, 1973).
Para que esta transferência de resposta ou assimilação de um estímulo neutro a um
mecanismo desencadeador ocorram, é necessário que haja um espaço de memó-
ria em que ocorra, ao mesmo tempo, a recordação da tecla e a percepção do ali-
mento; ambas as representações têm de ser interpretadas pela mesma motiva-
ção (que é determinada pelo reforço). Assim, o pri do animal tem de ter
acesso simultâneo a um espaço perceptivo e a um espaço de memória. Cha-
marei a ambos, como veremos, Espaço de Representação, Er, e postularei que
uma das bases da vida mental é a relação pri-Er, em que o pri, activado moti-
vacionalmente, interpreta e estrutura os conteúdos do Er.48 Há, pois, associ-
ados ao pri, processos de memória e de reprogramação da vertente percep-
tiva dos mecanismos motivacionais do organismo, reprogramação essa que
vai alterar a receptividade do pri; no exemplo, a tecla torna-se um desenca-
deador alimentar, de comportamento de beber, ou de comportamento de
corte.
Associação verdadeira: o Espaço Mental — Nos mamíferos existem capacida-
des de memória que permitem que haja relações entre as evocações dos estí-
mulos na memória, ainda que esses estímulos não estejam presentes no
espaço perceptivo do animal. Assim, o estímulo A, quando apresentado,
pode fazer evocar o estímulo B (tecnicamente, diz-se que há capacidade de
condicionamento clássico estímulo-estímulo; ver Sá-Saraiva, 2003, Cap. 8,
para uma análise detalhada).
Nos animais com capacidades de condicionamento entre estímulos ocorre
uma novidade evolutiva. Por um lado, os estímulos presentes são mantidos
em memória (Er), tal como no caso anterior; por outro lado, essas memória
são guardadas ainda que não venha um desencadeador para que haja transfe-
rência, e não deitadas fora como no grupo dos animais descritos na secção
anterior (ditos animais “modulares” por haver aprendizagem apenas por
assimilação de um estímulo neutro a um Mecanismo Desencadeador, sendo
o MD um “módulo”). A atenção a esses estímulos é também diferente da
que ocorre nos animais caracterizados por transferência de estímulos, na
48
Simplifiquei o processo de aprendizagem por transferência de resposta e substituição de
estímulo. Há vários casos em que os desencadeadores activam, processos de procura, quer no
espaço de percepção quer na memória, de determinado tipo de estímulos (por exemplo, nos
melros quando ouvem o grito de alarme, no peixe sol quando sofre qualquer forma ainda que
moderada de destruição tissular, e mesmo no rato nas mesmas condições, procura de uma confi-
guração aviana, de uma configuração pisciforme, ou de uma configuração tetrápode).

121
medida em que um estímulo novo vai activar um sistema comportamental de
investigação. Não se sabe que informação é ganha durante a investigação:
nomeadamente, não sabemos a que parâmetros é o estímulo novo reduzido.
Posto em termos de pri-Er, um estímulo presente no pri e que não encontra
referência interna (na memória do organismo – os mecanismos desencadea-
dores) vai ser analisado e codificado em memória, mas não sabemos quais os
conteúdos de memória que codificam esse estímulo.
Esta capacidade de representação de coisas que não estão presentes define
um espaço interno estável do sujeito, ainda que seja incipiente.49

O espaço de representação

A esse espaço interno do sujeito pode-se chamar Espaço de Representação


(Er). Trata-se de um contruto, próximo do de memória de trabalho, que
pretende capturar a ideia de que há um espaço em que o pri pode percepcio-
nar, em memória, um objecto ou uma relação de objectos. É, pois, uma
réplica interna e virtual do Espaço de Percepção (Ep): representa-se, em memó-
ria, o mundo que rodeia o animal (mais rigorosamente, uma versão simplifi-
cada das percepções e motivações que o animal sentiu no passado). Assim se
define uma relação que vai ser importante para a evolução do Eu: é a relação
pri-Er. O que afirmo é que o pri pode ser ocupado por informação proveni-
ente do ambiente ou por informação proveniente da memória. Quando o
animal observa o ambiente fala-se de percepção; proponho que se fale de
«evocação», tal como nos estudos sobre memória humana, quando o pri do
animal é preenchido com uma recordação. A metáfora aqui usada é que o Er
pode ser concebido como uma «tela» onde são presentes as evocações, e que
o pri é o sujeito que observa essas evocações. As aprendizagens de tipo asso-
ciativo verdadeiro (associação entre estímulos) fazem-se por justaposição de
uma evocação e de um percepto (Pearce, 2008). O «espaço» em que essa jus-
taposição ocorre é o Er. O Er seria assim um «espaço» virtual em que seria
possível evocar uma memória e compará-la ou ligá-la com um percepto. Na
nossa espécie, corresponde ao que normalmente designados como «imagina-
ção», «memória de trabalho», arco fonológico ou bloco-notas vísuo-espacial
(Baddeley, 2007, Baddeley et al., 2009).
Já referi que nos mamíferos há a possibilidade, embora limitada, de associ-
49
Na mesma linha de pensamento, poder-se-ia dizer que o aparecimento de «mapas internos
do ambiente» («mapas cognitivos», Olton e Samuelson, 1976), revelaria a mesma capacidade.
Mas, dado que há mapas igualmente complexos em outros grupos, defendeu-se que o processa-
mento espacial é uma capacidade independente das outras (O’Keefe e Nadel, 1978 SáNoguei-
ra-Saraiva, 2003, sobre mapas espaciais).

122
ação entre evocações de dois estímulos, ou de dois sinais (estados internos
associados com acontecimentos relevantes para os animais); ver Staddon
(1985) e Shettleworth (2010). Essa capacidade de associar sinais nunca foi
demonstrada em vertebrados inferiores (McPhail, 1982; Pearce, 2008).
Essas associações dependem da evocação de ciclos funcionais anteriores. É
a partir desta capacidade de evocação de ciclos funcionais anteriores que nos
animais mais encefalizados vai aparecer, provavelmente por associação entre
o estado motivacional presente do pri e as recordações de estados anteriores
do pri, a noção de continuidade do Eu (como Hume defendia).

Resumindo

Nos animais sem memória, o ciclo funcional funciona sem espaço de


representação em memória: apenas reage aos estímulos presentes do espaço
de percepção. O pri é, então inteiramente determinado pelos estímulos
externos e pela procura de estímulos, procura essa que é determinada pela
activação motivacional. O pri é mutável, tendo filtros perceptivos diferentes
consoante a activação emocional.
Nos animais em que há transferência de resposta tem de haver uma
memória perceptiva que retenha um estímulo neutro até que o desencadea-
dor surja. Quando o desencadeador surge, liga-se à memória que está no Er.
Esta ligação tem regras: não é qualquer memória que é associada, depen-
dendo do sistema motivacional que foi activado. A memória no Er, depois
de adquirida, vai funcionar como desencadeador aprendido, o que implica
que há um armazenamento central tal que o pri vai passar a ter essa configu-
ração como filtro da análise que faz do ambiente.
Na maior parte dos mamíferos excepto o género Homo, o espaço interno
do sujeito não parece ser um espaço de relações complexas: a única relação
que ocorre nesse espaço interno na maior parte dos mamíferos é a associa-
ção: a percepção de A traz à memória a recordação de B.

Conclusão sobre os dados da Etologia Animal

Em conclusão desta secção afirmo que há, nos animais capazes de aprendi-
zagem e sobretudo nos mamíferos,50 um ponto de referência interno que

50
Há dados sobre corvídeos e psitacídeos que revelam uma potencial inteligência das relações
nas aves. Contudo, todos esses dados são irrelevantes do ponto de vista da evolução do Eu, na
medida em que a inteligência das aves evoluíu independentemente da dos mamíferos.

123
define estados (motivações, predisposições perceptivas e accionais) que cau-
sam os ciclos funcionais. Esse pri representa quer propriocepções quer per-
cepções quer, ainda que num grau ténue, objectos não presentes e estados
anteriores do pri (evocações de ciclos funcionais), havendo assim um
embrião de continuidade subjectiva desse pri. A evocação ocorre no Er,
onde é possível representar objectos ou relações não presentes no espaço
perceptivo. É o início evolutivo da existência de um espaço de representação do
não visível –um espaço mental– que pode ser representado virtualmente pelo
sujeito dos ciclos funcionais. É deste sujeito e deste Er que vai emergir, jun-
tamente com o pri, a noção humana de Eu.51
Há, pois, regras de identificação e de conotação de estímulos. Quando o
pri se aplica quer ao Ep quer ao Er não codifica passivamente a informação:
estrutura-a de acordo com os a priori da própria espécie. Esses a priori não são
apenas sensoriais: determinam as relações entre os elementos representados no Er.
Este ponto terá uma importância fundamental no futuro do género Homo e,
especificamente, na nossa própria espécie.

AS NOVIDADES EVOLUTIVAS EM HOMO

Os primatas apresentam, com modificações importantes, o mesmo tipo de


relação pri-Ep/Er dos outros mamíferos, mas com algumas excepções (ver
resumo e discussão em Tomasello & Call, 1997; Penn et al., 2008; e Call &
Tomasello, 2008). As excepções conhecidas ocorrem em, pelo menos, alguns
primatas: os animais sabem codificar relações entre outros agentes e conse-
guem inferir do comportamento dos outros (sem contudo possuirem uma
teoria da mente semelhante à nossa). Assim, os animais podem saber que, se
uma cria gritar, é certa fêmea –a mãe dessa cria– que terá maior probabili-
dade de se dirigir para a cria; e sabem que se um macho que ajudou outro
macho gritar (pedido de ajuda), quem tem maior probabilidade de acorrer
em auxílio é um macho que tenha recebido ajuda do que está agora a pedi-
-la. Fora estas relações entre agentes, mesmo chimpanzés, gorilas e orango-

51
Como defenderei mais tarde que a cultura humana consiste na reprogramação dos ciclos
funcionais, é importante afirmar que, embora na apresentação acima me tenha concentrado em
ciclos funcionais inatos, a norma, nos vertebrados, é que os ciclos funcionais sejam modificados
por aprendizagem, sendo das regras dessa aprendizagem inatas (ver Sá-Nogueira Saraiva, 2003,
2005). Para não perturbar o fluir das ideias, basta referir aqui que um ciclo funcional é qualquer
troca entre o ambiente e o organismo, independentemente de essa forma ser codificada biológica
ou culturalmente: assim, na nossa espécie, até a reprodução é reprogramada culturalmente, mas
continua a ser um ciclo funcional; a diferença é que a fonte da informação para esse ciclo funci-
onal é em grande parte proveniente da cultura.

124
tangos parecem não codificar informação relacional entre estímulos físicos
para além da associação e da proximidade e eventualmente do contacto.
Assim, tarefas que nos parecem óbvias não são possíveis para espécies tão
próximas de nós quanto os chimpanzés.52
Com a hominização verificam-se grandes modificações no plano animal.
Pode-se encontrar uma discussão dessas alterações em SáNogueira-Saraiva e
Sá-Saraiva (submetido); é nesse trabalho que se podem encontrar as referên-
cias relevantes a este ponto. Resumindo muito o argumento verifica-se, ao
longo da hominização, mas particularmente a partir do Acheulense tardio
(desde há 500 mil anos, com Homo heidelbergensis), uma série de modificações
que passo a elencar resumidamente.
Verifica-se o aparecimento de uma memória episódica, com sequenciação
de actividades planeadas com antecipação (também desde há 500 Ka).
Um aumento da memória de trabalho permite a existência de um plano
mental autónomo que, além de reagir ao ambiente, lhe impõe formas prove-
nientes da mente (no registo fóssil os dados que o comprovam são as ferra-
mentas com formas arbitrárias cuidadas, que aparecem há pelo menos 500
Ka).
Além da imposição de forma, há escolha segundo critérios mentais, aparente
quer nas indústrias da pedra e da madeira quer na imposição de ocre – certas
coisas são escolhidas e marcadas para significar a sua importância. Há, pois,
conotação simbólica e não apenas utilitária.
Há indícios, relativamente ténues, de teoria da mente (considerar os
outros agentes como entidades mentais, com estados psicológicos) desde há
cerca de 300 Ka (há utilização de ocre, o que significa que se marca uma
coisa para os outros verem e interpretarem essa marca).
Portanto, antes da nossa espécie verifica-se um aumento de memória de
tal forma que se cria um verdadeiro espaço mental (Er). As imagens retidas
nesse espaço mental podem ser impostas ao ambiente físico e permitem a
imaginação de ferramentas complexas. As regras com que o pri analisa os
conteúdos do Er alteram-se relativamente aos animais: há capacidade de
analisar conjuntos em elementos e em termos das relações entre esses ele-
mentos. Essas relações são físicas (causa, encaixe, etc.) e subordinam-se a um
plano de conjunto.
Além disso, há juízos valorativos do ambiente, juízos esses que não
dependem apenas do reforço (como nos casos em que um animal consegue
52
Por exemplo, se se treinar os animais a puxar objectos distantes com uma bengala em que a
parte curva se engancha no objecto, os animais nunca chegam a generalizar a competência: não
compreendem a relação «enganchar». Aparentemente, a única relação de que estes animais
dependem para relacionar objectos entre eles é a de contacto, de modo que tanto tentam apanhar
o objecto com o gancho quanto com a parte direita. Mais exemplos em Povinelli, (2000).

125
obter um reforço usando uma ferramenta) mas de uma escolha interna, de
uma valoração de determinados aspectos do ambiente. Essa valoração é
mostrada aos outros, de modo que se pode inferir que há, a partir do Acheu-
lense tardio, a capacidade de representar os outros como mentes.

A nossa espécie: redução de toda a experiência a categorias

Com a nossa espécie (há pelo menos 100 Ka), aparece a prototipização
obrigatória da experiência. Isto significa que tudo tem de ter uma forma,
isto é, a forma das coisas não é determinada apenas por considerações funci-
onais, mas por uma forma canónica a que obedece a construção das ferra-
mentas: uma faca tem uma determinada forma, um machado uma outra
forma.
É esta tendência para a prototipização de toda a experiência que permite a
linguagem como a conhecemos hoje: tudo tem de ter um nome, e a um
nome corresponde um cânon; um roadster, uma carrinha e um todo o ter-
reno não podem ser parecidos. Esses nomes correspondem a protótipos
(sensu Rosch, 1978, 1981; e Lakoff, 1987) que podem ser manipulados no
espaço da memória de trabalho, e combinados de maneira a produzir as
modificações que se quiser (é possível, embora estranho, combinar um
roadster com uma carrinha).
Esta capacidade de ligar os protótipos na mente requer uma gramática de
relações. Chamei a essa gramática de relações inteligência praxianafórica, do
grego práxis, acção, e anaforá, relação. Mais recentemente, Sá-Saraiva e Sá-
-Saraiva (submetido) defenderam a existência de uma lógica de relações psi-
cológicas a que chamaram inteligência psiqueanafórica.53
Essas duas lógicas assentam numa lógica comum, em que se verifica a dis-
tinção de uma figura contra um fundo. A figura está no centro da atenção,
contra o fundo. Essa figura pode ser uma substância (como a água), um
objecto ou um agente. A diferença entre um objecto e um agente é que o
agente se move de maneira independente das forças que se exercem sobre
ele. Quando uma figura é interpretada como objecto aplica-se-lhe a inteli-
gência praxianafórica; quando é interpretada como um agente aplica-se-lhe
a inteligência psiqueanafórica.54
53
As duas inteligências anafóricas correspondem às operações necessárias à detecção de rela-
ções entre objectos (por exemplo, entrar, conter, dividir, ligar, separar) ou entre agentes (inten-
ções, representações, crenças). Estas duas lógicas são unidas num plano mais elevado, por regras
mais gerais, relativas ao espaço, ao tempo, à causalidade, como Kant pretendia e Pinker (2008)
recentemente defendeu.
54
São relevantes aqui as várias categorias da linguística, desde os qualificadores aos casos. Na

126
Memória episódica

Uma das alterações mais significativas da nossa espécie é o aparecimento


da memória episódica (Tulving, 2002). O que este conceito significa é que há,
entre o pri e o Er, uma gramática anafórica que sequencia acontecimentos
em termos de uma história, de episódios ligados entre si. Assim, em vez de
me recordar de associações entre estímulos, como ocorre na maioria doa
animais, recordo-me de sequências de acontecimentos com significado. Um
bom exemplo da necessidade que se sente desse significado é dado pela lei-
tura de Alice in Wonderland, de Lewis Carroll: a ausência de significado entre
as várias transições de acontecimentos pode ser sentida como angustiante,
tal como nos delírios febris, em que antecedentes e consequentes não se
ligam entre si. Essas relações entre antecedentes e consequentes são dados
pelas gramáticas anafóricas.
A memória episódica implica que haja, entre o pri e o Er, uma «distância»,
quer dizer, que o pri «contemple» os vários fenómenos representados no Er
e que os estruture. A esta estruturação de vários acontecimentos em sequên-
cias chamarei apercepção anafórica: o pri perspectiva vários elementos do Er ou
do Ep em termos de permutações de relações. Fá-lo-á em termos das gramá-
ticas anafóricas mas também em termos de teorias partilhadas pela cultura
correspondendo aproximadamente ao sentido das «metáforas» de Lakoff e
Johnson (1980). (Como exemplo dessas teorias partilhadas consideremos a
ideia positivista de que a história da humanidade é um progresso dirigido, a
ideia cristã de que o bem será recompensado, ou o pressuposto de que uma
pessoa honesta não trai o cônjuge; para mais exemplos, ver SáNogueira-
-Saraiva, 1999).
Além disso, a memória episódica, que é temporal por excelência (os episó-
dios implicam o tempo) não se limita à consideração do presente: é o espaço
de experimentação mental, o espaço do «e se fosse não assim mas de outro
modo?». Veremos que esta característica da memória humana tem con-
sequências particularmente importantes para o Eu quando considerarmos a
teoria da mente e a ideia de imortalidade do Eu.

verdade, a consideração da lista dos casos gramaticais dá-nos uma ideia bastante clara da natureza
das gramáticas anafóricas, sobretudo das gramáticas praxianafóricas. Ver Pinker (1992 e 2007)
para uma discussão tangencial a este ponto.

127
O PRI COMO ORIGEM DO EU

Pri – sintaxe – Er

Gramáticas anafóricas

Vimos que o que distingue Homo fóssil dos outros mamíferos é a capaci-
dade de relacionar entidades entre si. Esta representação depende da capaci-
dade de o pri fazer ciclos funcionais relacionais no ambiente e na memória
(no espaço de percepção e no espaço de representação – Ep/Er). Assim, os
objectos A e B não são apenas associados em termos de associação inespecí-
fica, mas ligados de maneira precisa: no tempo (um antecede o outro), em
termos de conexão (A pode estar ligado a B), em termos de parte/todo (A
pode ser parte de B), em termos de génese (B pode provir da divisão de A
em B e C, ou A pode resultar da ligação de B e C) e de várias relações físicas
(A pode ser o suporte de B, A pode ser contido em B, etc). A esta gramática
chamei praxianafórica.
Além disso, a nossa espécie parece lidar com os seres vivos de outra
maneira: como objectos intencionais (ver Dennett, 1996). Nesse caso, os movi-
mentos de A são determinados por uma intenção, baseados num conheci-
mento sobre o mundo e em emoções e motivações (por exemplo, um cão
que nos persiga «quer-nos morder» e «é mau», ou «está zangado»). A esta gra-
mática chamámos (Sá-Saraiva e Sá-Saraiva, submetido) psiqueanafórica. Esta
gramática é independente da anterior mas as duas podem-se combinar.
Assim, os agentes A e B acham que C os odeia e lhes quer fazer mal, e
unem-se para o impedir de fazer esse mal – «achar», «odiar», são domínios
psiquenafóricos e «unir» é do domínio praxianafórico. Tanto a inteligência
praxi quanto a psiqueanafórica assentam numa capacidade anterior: a de
organizar cadeias de relações («ele quer-me mal porque sabe que eu não gosto
dele»; «o cabo do machado tem de ter uma fenda para que se encaixe a
lâmina»). É da combinação das gramáticas anafóricas e da capacidade de
organizar cadeias de relações em todos com sentido novo que pode emergir
a linguagem, que evolui a partir de pré-adaptações que se revelam nas inteli-
gências necessárias às indústrias líticas (Vieira, 2010).
Embora tenha evoluído principalmente no confronto com objectos e
agentes concretos, (ver Sá-Saraiva e Sá-Saraiva, submetido: não há indícios

128
arqueológicos da emancipação das relações num espaço mental antes do apa-
recimento da nossa espécie), na nossa espécie essas gramáticas podem apli-
car-se independentemente do Ep: funcionam no próprio Er, através da
manipulação de imagens e de etiquetas verbais que permitem representar, de
forma económica (Collins & Quillian, 1969) objectos ou agentes em interac-
ção.
Temos assim que os ciclos funcionais são qualitativamente alterados na
nossa espécie. Além dos ciclos funcionais que dependem da activação de
motivações como o sexo, a alimentação, a caça, a agressividade, temos ciclos
funcionais conectivos, que fazem que o que está no Ep/Er seja compreendido
como um todo em relação causal. É esta a grande invovação do género
Homo e, especialmente, de Homo sapiens.

O eu e a linguagem

Como vimos antes, o pri é sempre o sujeito dos ciclos funcionais e está em
relação com o Ep ou, nos mamíferos e em algumas aves, com um Er (capaci-
dade de associação entre memórias de estímulos ou de comportamentos). O
Ep/Er são, sempre, zonas de objectuação, quer dizer, correspondem ao pólo
objecto do ciclo funcional: é do objecto que vem informação para o pri-
-sujeito, que activa uma resposta sobre esse objecto.
Na nossa espécie esta estrutura mantém-se inalterada mas, como vimos,
com ciclos funcionais propriamente mentais (imaginação). Nisso é ajudado
pela linguagem, que permite formular ciclos funcionais que ainda não acon-
teceram (espaço virtual do pensamento). Defenderei que o pri tem um equi-
valente linguístico preciso. Trata-se da primeira pessoa dos verbos e, nas lín-
guas que têm pronomes, nos pronomes pessoais (nas outras línguas são os
verbos a serem declinados de maneira a darem o mesmo sentido). Assim, em
Português, a noção de pri seria dada pela forma Verbo na primeira pessoa, em
que o verbo pode ser qualquer acção, sentimento, consideração, emoção.
Isto ocorre, também, noutras linguagens fleccionada, como o Polaco,55 mas
não ocorre nas línguas em que o sujeito do verbo não é dado pela morfolo-
gia desse verbo (o Inglês, por exemplo, ou, em termos auditivos pelo menos,
o Francês), sendo nesses casos necessária a inclusão do pronome. Portanto, a
forma, nesse caso, corresponde a EuVerbo.
Também pode ocorrer a forma «a mim», quando não somos o sujeito da
55
Assim, «Vejo» diz-se, em Polaco, Widzę, e não Ja widzę, tradução literal de Eu Vejo; mas
em Inglês seria impossível dizer See, por I see, e em Francês Vois é o imperativo (Je vois, tu vois,
il voit, soam todos da mesma maneira); daí ser necessário o pronome pessoal, o que não acon-
tece em Polaco ou em Português.

129
frase; da mesma forma, pode-se dizer que certa coisa me pertence: «é
minha» (genitivo) ou eu sou objecto da acção de outro «Ele olha para mim»
(acusativo), «ele deu-me um livro» (dativo). Todos estes casos correspondem
à formulação VerboEu.
A fórmula EuVerbo (daqui para a frente, EuV) e as formas VerboEu (VEu)
corresponde exactamente à noção de pri num ciclo funcional: no caso EuV
o pri inicia a acção e no outro sofre uma acção. Temos, pois, os dois braços
dos ciclos funcionais: do organismo para o estímulo e do estímulo para o
organismo.
Dada a linguagem e as gramáticas anafóricas é possível que os ciclos funci-
onais sejam grandemente alargados relativamente aos outros animais. Por
um lado, a nossa capacidade de memória episódica (Tulving, 2002) e por
outro a capacidade de manipular palavras e não perceptos e emoções permi-
tem-nos estruturar sequencias de acontecimentos em nexos causais do pas-
sado para o presente e do presente para o futuro, como acontecimentos num
espaço (ver Pinker, 2007, para a discussão da relação do tempo e do espaço
na linguagem).

A descentração do pri

Esta capacidade de pensar em termos de passado e futuro implica uma


deslocação do centro da atenção, como se o pri estivesse noutro tempo:
assim, podemos pensar no que deveríamos ter feito numa determinada con-
dição, ou no que faremos no futuro dadas as condições que prevemos. Neste
processo recentramos o nosso pri num contexto diferente. Podemos fazer o
mesmo exercício descentrando o pri do nosso próprio corpo para o recentrar
na posição de outro corpo: «se estivesse no seu lugar/ na sua pele» é uma
frase que se encontra em todas as línguas em que a procurei.56 Em várias cul-
turas arcaicas surge a ideia da capacidade do pri de uma pessoa (normal mas
não necessariamente um feiticeiro) de «mudar de corpo» e tornar-se, por
exemplo, leopardo, lobo, ou uma outra pessoa, ou ainda de viajar para outro
mundo permanecendo o corpo no mundo normal (ver, por exemplo, Lévi-
-Bruhl, 1927/1963; Eliade, 1951/1968; Métraux, 1957; Hallpike, 1979).
Esta descentração do pri ocorre, pois, quer no tempo quer no espaço. É
então essa capacidade que nos permite antecipar, recordar e pôr-nos no
lugar de outra pessoa.
Esta questão de nos pormos no lugar de outra pessoa corresponde àquilo a
que, um tanto confusamente (Gärdenfors, 2003), se chama «teoria da mente»
56
Português, Francês, Italiano, Romeno, Inglês, Alemão e Polaco.

130
(Premack & Woodruff, 1978). Mas tratarei desse assunto depois de tratar da
apercepção da mente.

A apercepção do Eu

O pri, quando corresponde à sua forma natural, corresponde ao binómio


EuV e VEu. É, como vimos, o ciclo funcional. Permanece o facto, contudo,
de que quando não estamos implicados num ciclo funcional continuamos a
sentir que existimos, como Avicena o ilustrou com o brilhante exemplo do
«Homem Voador»: se imaginarmos uma pessoa recém-criada, suspensa no
espaço, e sem qualquer estímulo sensorial, achará essa pessoa que existe? A
resposta só pode ser sim: a pessoa sente-se existir. É exactamente o mesmo o
raciocínio de Descartes (antecipado por Plotino, por Santo Agostinho e por
Pedro Hispano, citando o filósofo português o exemplo de Avicena; Sorabji,
2006).
Como Descartes mais do que uma vez fez notar, essa sensação de existir
nada tem de objectual: eu existo independentemente de qualquer objecto,
independentemente de qualquer tempo e de qualquer espaço.57 É, tanto
quanto os dados até agora coligidos mo permitem dizer, acessível a adoles-
centes e certamente a jovens universitários de 18 anos. Na verdade, se os ani-
mais pudessem falar, não há nenhuma razão para que não relatassem esse
sentimento de existir, se, como penso, esse sentimento de existir for causado
pelo «ruído interno» do organismo.
Contudo, todos temos representações objectuais de nós: a pessoa que
somos, o nosso nome, aparência física, nacionalidade, filiação, ocupação, etc.
Também sabemos que pensamos. Além da sensação básica de existir, sabe-
mos que somos uma entidade psicológica e nesse sentido temos uma teoria
mínima de nós próprios (por exemplo, sabemos se somos intro ou extrover-
tidos). Em alguns casos, essa teoria pode complexificar-se bastante, sempre
no plano objectual: as teorias da mente, desde Platão a Pedro Hispano, de
Kant a Pinker, de Schopenhauer e Nietzsche a Freud, são concebidas com
base em observações de nós próprios que são depois formuladas em termos
de uma linguagem específica de maneira a constituir uma «arquitectura da
mente». Em termos mais concretos, podemos perguntar-nos porque é que
(por exemplo) gostamos de modelos hierárquicos, tendemos a ver as coisas
em termos de equilíbrio, gostamos de certa cor ou de certa música. Nesse
sentido, o nosso pri contrói, no Er, um conjunto de relações que pretende

57
Segundo Descartes imaginamos objectos na extensão. Sendo a alma inextensa é pois impos-
sível ser imaginada. Traité des Passions de l’Âme, Artigos 20 e 91.

131
capturar o funcionamento da nossa mente (o mesmo se passa com as teorias
dos autores que referi acima).
Na medida em que estamos conscientes dessa diferença entre o pri e o
modelo no Er do funcionamento da mente, teremos uma consciência da
mente enquanto processo. Esse processo é um objecto. Se tivermos consci-
ência de que a nossa sensação de existir não é o mesmo que esse objecto que
pretende representar o funcionamento da mente, teremos aquilo a que eu
chamo a apercepção da mente. O termos é pedido de empréstimo de Kant
(quando fala, na Crítica da Razão Pura, da unidade transcendental da apercepção), e
pretende capturar a consciência de que somos representadores e de que o
nosso Eu não são, necessariamente, os ciclos funcionais, mas corresponde à
fundamental sensação de existir que apenas conhecemos por introversão.
Não a podemos conhecer em ninguém mais, porque só temos acesso subjec-
tivo à nossa subjectividade.
A apercepção do eu não é um processo de tudo ou nada. Os dados preli-
minares que recolhemos sugerem haver variações individuais bastante mar-
cadas nesta capacidade. Mas o tema merece mais estudo e mais reflexão.
Retomemos agora a noção da descentração do pri. Num nível zero de
apercepção da mente, colocarmo-nos no ponto de vista do outro é apenas
colocarmos o nosso pri com todas as suas características valorativas no lugar
de outra pessoa. É assim que se ouve frequentemente dizer que não se com-
preende como é que outra pessoa não pode achar bonita uma coisa que nós
assim achamos. Mas, na medida em que há progressivamente mais apercep-
ção do eu, damo-nos conta de que o Eu corresponde ao sentimento de exis-
tir mas não necessariamente aos nossos ciclos funcionais mentais. Num
estado intermédio haverá aceitação de que os outros podem ter ciclos funci-
onais diferentes dos nossos. Num grau mais elevado, tentaremos compreen-
der os próprios ciclos funcionais mentais dos outros. É na compreensão de
ciclos funcionais mentais diferentes dos nossos que consiste a compreensão
de uma cultura diferente, de uma época diferente, ou de outra pessoa.58
Misticismo — Uma outra consciência directa da apercepção da mente é a
compreensão de que o mundo como o vemos é uma interpretação. Além do
relativismo que isto implica (todas as valorações são apenas nossas e todas as

58
Esse conhecimento é manifestamente difícil a avaliar pelos pastiches de determinada época.
Um dos casos mais interessantes entre nós será o palácio da Pena; um caso que mereceria estudo
aprofundado seria o do falsário Van Megeren, que fazia Vermeers que na época eram conside-
rados perfeitos e que agora se vê, num simples olhar, que são falsos (ver Ungaretti e Biancotti,
1967). O que na época de Van Megeren se via nos quadros de Vermeer era, certamente, diferente
do que nós vemos. Provavelmente não haverá duas subjectividades iguais e será sempre impos-
sível compreender o mundo de um ponto de vista diferente do nosso. Pode-se ser tolerante, mas
não omnisciente.

132
categorias são arbitrárias), pode-nos levar a uma espécie de solipcismo. Na
medida em que o sentimento de existir não tem objecto, podemos procurar
a «mente pura» através da desobjectuação integral da experiência. Isso ocorre
de duas formas opostas: ou nos fundimos com a experiência de modo que
não haja qualquer diferença entre sujeito e objecto, ou nos centramos na
pura sensação de existir, recusando qualquer categoria ou qualquer valora-
ção. É a esta última variante que se costuma chamar misticismo, e tomarei
brevemente Eckhart como exemplo (Eckhart/Blakney, 1941). Para Eckhart,
a alma tem de livrar-se do que chama para fora e do que vem de fora: das
vaidades, das ideia que recebemos de Deus segundo os homens – ideias
humanas e limitadas do que é ilimitado. É no abandono de tudo isso que
temos uma visão de Deus e do absoluto. Chama a isso a Abgeschiedenheit, iso-
lamento. Neste estado, a alma não vê nada do que vem de fora nem faz nada
para fora. Isto é, nega-se a qualquer ciclo funcional e mantém-se apenas a
sentir-se existir. Ou seja, procura-se activamente ser sujeito sem objecto, pri
sem Ep/Er.
Pode ocorrer que o sujeito queira deixar de ter a diferenciação entre pri e
Ep/Er de outra forma: na fusão completa com a acção. Nos estados de
enthousiasmos é precisamente isso que ocorre. Remeto para a leitura de Ben-
son (1993).

A pessoa social

A persona como objecto do pri

Como vimos o pri corresponde à sensação de existir, ao eu sujeito que


representa, no Er, conjuntos de fenómenos interligados de maneira coerente
com as gramáticas anafóricas. Ocorre, durante a nossa vida, ensinarem-nos
quem somos: o nosso nome, os nossos pais, a nossa família, a nossa posição
social, aquilo que fizémos e aquilo que devemos fazer, aquilo que alguém na
nossa posição não pode fazer. Conhecemos também (pelo menos nas socie-
dades ocidentais ou ocidentalizadas) a nossa imagem física. Esse conjunto de
representações vai ser ligado, de acordo com um papel determinado, pela
pessoa.
A esse conjunto de representações chamamos «a pessoa» (cf. Durkheim &
Mauss, 1901/1902, e todos os desenvolvimentos que dele se seguiram; con-
sultar, para uma revisão e discussão profundas, A. I. R. Sá Saraiva, 2004).

133
Essa pessoa, que é definida socialmente, não corresponde ao pri. É antes um
objecto do pri, objecto esse que o pri «vê» no Er. Sendo um objecto da aten-
ção do pri, não pode ser o próprio pri; de resto, as pessoas conseguem,
melhor ou pior, distinguir as duas entidades (dados em análise).
Contudo, a palavra que se refere ao pri e à imagem que o pri tem da pes-
soa é a mesma: Eu. Na medida em que dizemos (por exemplo) «Eu (pri) sou
um homem de cabelo escuro e barba branca (persona)» estamos a afirmar que
eu=pri=persona. Como veremos adiante, é dessa ambiguidade fundamental
que provém grande parte das crenças na alma imortal.
Contudo, as coisas que cada um acha que é são, na maior parte, constru-
ções e valorações sociais independentes do pri.

Contrução social da persona

A persona é uma personagem, uma máscara (como se sabe pelo menos


desde Jung), mas, principalmente, um papel que usamos para exprimir as
motivações e emoções dos nossos ciclos funcionais. Esses papeis são determi-
nantes na construção de um grupo cooperativo (ver SáNogueira Saraiva,
2003) e, por isso, não podem assentar nas mesmas motivações e emoções que
as que asseguram o comportamento dos outros animais. O que, na nossa
espécie, ocorre, é uma reprogramação dos vários grupos motivacionais de
ligação ao ambiente: assim, a sexualidade é alterada (SáNogueira Saraiva,
2002), o comportamento agressivo também (como espero mostrar em breve)
e, em geral, sofremos um processo de reprogramação que nos dá explicações
(muitas vezes falsas) para o que fazemos e que nos dão a sensação de compre-
ender o mundo ao mesmo tempo que as nossas motivações são canalizadas
para expressões úteis ao grupo (cf. a noção freudiana de «sublimação»).
Este processo de aculturação (Ver Valsiner, 2000) assenta, penso, em dois
processos relativamente simples. Passo a referi-los.
Reforços diferenciais — Procuramos, desde a infância, a aprovação dos
outros. Há várias coisas que, desde cedo, não nos dão reforços (todas as
manifestações de comportamento que não correspondem ao papel que nos é
atribuído) enquanto que o conformismo ao papel no-los dá. Assim, pres-
cinde-se da agressividade ou da brincadeira mas em troca tem-se o estatuto
de «bom aluno». Sem querer deter-me neste processo, que penso ocorrer
sobretudo quando se é mais jovem, creio que será aqui, neste processo de
reforços diferenciais que tem como base a aprovação ou a desaprovação dos
pais e das figuras influentes, que se devem procurar as primeiras fases da
«sublimação». Contudo, trata-se de um processo de condicionamento ope-

134
rante, que, por si só, não poderia chegar a criar seres que interiorizaram uma
ética. Para isso são necessários outros processos.
Modelos internos — Progressivamente, talvez por condicionamento, cada
um de nós cria uma imagem ideal de si próprio (Adler e Freud, o ideal do
Ego, e Jung e os arquétipos do Eu, nomeadamente a Persona, o par Anima-
-Animus e a Sombra) que define o que queremos ser. Este «modelo do Eu» é
uma representação que difere consoante as pessoas, não só em grau mas
mesmo em natureza. Há quem tenha uma representação de si mais compor-
tamental, mais baseada em regras e em deveres, e e quem tenha uma repre-
sentação mais baseada na psicologia intuitiva, na forma de funcionamento
mental de si próprio. Seria a estes últimos casos que eu referiria primordial-
mente o termos de «apercepção do Eu», ou «da mente», sendo essa apercep-
ção uma representação minimamente teorizada do modo de funcionamento
mental, distinto do pri (a partir do qual esse funcionamento mental é teori-
zado) e da persona social: a mente (ou Eu apercepcionado) seria vista como
um conjunto de tendências emocionais, intelectuais, valorativas que caracte-
rizam a nossa relação mental com as coisas.
Sem pretender agora explorar este tema complexo (mas ver SáNo-
gueira-Saraiva, em submissão), direi apenas que qualquer das representações
do Eu (mais persona comportamental ou mais mente) é necessária para a
sobrevivência da nossa espécie que é, como já o afirmei noutro local (SáNo-
gueira-Saraiva, 2002, 2003), uma espécie quasi-eussocial em que a adaptação
se faz mais pela competição entre grupos do que pela competição inter-indi-
vidual.
Na medida em que o comportamento cooperativo tem de ser mantido na
ausência de reforços externos, é necessário que haja uma motivação interna
de coerência entre o comportamento e a representação do Eu ideal (sendo
daqui que derivam os estádios 4 e posteriores da moralidade de Kohlberg,
1981, 1984).
Conflito — Como já disse em outras publicações, existe, potencialmente,
um conflito entre as necessidades não aculturadas do Eu –as motivações
egoístas dos ciclos funcionais partilhados com outros mamíferos, como a
dominância, o sexo, a posse de recursos– e a expressão que socialmente nos é
fornecida. Na medida em que o papel que seguimos for bem sucedido, não
nos ocorrerá pôr em dúvida esse papel. Mas quando, como em tempos de
mudança acentuada como os presentes, todos os papéis são postos em
dúvida, os papéis deixam de ser eficazes ou de ser inquestionáveis, instala-se
a dúvida e tem de ser, como o dizia Freud, a força do Eu a estabelecer um
curso de acção. Os indivíduos da nossa espécie não foram, contudo, progra-
mados para escolher rumos de acção e para fazer escolhas fundamentais que

135
implicam decisões filosóficas. Isso é geralmente deixado à cultura, que
remete essas decisões para o campo do sagrado ou da tradição.
Assim, quando as personagens se desmoronam os indivíduos não têm
recursos para escolher um rumo. Daí o sucesso dos «psis» actuais, que
desempenham a tarefa de encontrar o rumo para as pessoas perdidas.

ONTOLOGIA E ESCATOLOGIA DO EU

Em consequência do que se apresentou anteriormente, pode-se tentar


compreender qual é a natureza do sentimento de ser, da sensação de ser
sujeito. Como vimos, o sentimento de si corresponde à consciência do pri.
O pri é, por seu lado, o pólo sujeito do ciclo funcional. Como tal é predo-
minantemente agência e emoção: o sujeito denota, conota, reage, procura,
deseja e tudo isso o liga ao ambiente. O sentimento de ser é, pois, um senti-
mento de estar ligado ao mundo, uma intencionalidade e uma reactividade
que age sobre esse mundo. Esse mundo representado – o Er/Ep – forma
ciclos funcionais que o sujeito sente como a sua existência. Como na nossa
espécie há memória episódica, os ciclos funcionais formam histórias mais ou
menos articuladas que definem o que o sujeito fez, o que é, o que vai ser.
Nesse sentido, a sensação de ser não é nem corporal, como pretendia Lee-
nhart (1947), nem mental, como se pode pretender numa visão neo-plató-
nica ou neo-cartesiana. A sensação de ser é a própria vida dos sujeitos, é
aquilo que eles são, e qualquer tentativa de classificar essa experiência como
mental por oposição a material, abstracta por oposição a concreta, é uma
imposição de categorias do pensamento ocidental que erram o alvo, como o
compreendeu com clareza Lucien Lévi-Bruhl (1927/1963), que não foi
depois seguido pela escola francesa (o já referido Leenhart, 1947; e entre nós
José Gil, 1980 e mesmo Vergílio Ferreira, 1969, que cita Leenhardt sem o cri-
ticar). O sentimento de ser, o «Eu existo» é anterior a qualquer distinção
analítica da ontologia. É apenas viver, da mesma maneira que vivem os
outros animais, mas com a consciência integrativa das memórias das acções
passadas e a valoração axiológica intrínseca à nossa espécie.
Sendo assim, a experiência de ser não corresponde ao corpo nem corres-
ponde à alma: corresponde à representação da acção e reacção no mundo.
Essa representação não é nem mental nem material: é existencial. O existir é
mental e material ao mesmo tempo, invisível (emoções, intenções) e visível
(comportamentos, estímulos desencadeadores). Esta característica é muito
importante e tem implicações grandes para a escatologia. Se a experiência de
ser não é nem material nem mental, se é um sentimento íntimo de existir, a

136
consciência da morte do corpo não tem a implicação fenomenológica de nos
convencer de que o sentimento de existir cessa. Pelo contrário, e como
vimos, o pri – e portanto a sensação de ser que lhe corresponde – pode ima-
ginar-se em corpos diferentes (como já vimos) ou, no limite, sem corpo.
Quando me dizem que eu vou morrer, o que eu sei é que o meu corpo vai
morrer. Mas isso não implica que a minha intencionalidade, a minha repre-
sentação dos ciclos funcionais futuros, termine. Implica apenas que deixo de
ter corpo para levar essa intencionalidade a cabo. Era, aparentemente, isso
que os judeus achavam ser o destino do morto (Cooper, 1989). Noutras reli-
giões, a agência fica prejudicada se o corpo não se mantiver (o caso mais
famoso é o do Egipto, mas ocorre em várias outras religiões, incluindo o
cristianismo). O corpo é mais ou menos importante consoante há uma dis-
tinção mais ou menos claraentre mente/alma e corpo/soma. É por isso que a
noção platónica de alma é necessária para que o corpo seja considerado
como sem importância. (Ver, para revisões, Obayashi, 1992; e Martin & Bar-
resi, 2006).
Em termos da terminologia do eu-sujeito/ eu-objecto,59 o que ocorre é
que sei que o corpo, que posso representar facilmente como eu objecto,
morre; mas nada sei sobre o eu sujeito, que sinto como transcendendo
potencialmente esse corpo (como ocorre na imaginação: «se eu fosse invisí-
vel», «se eu fosse um leopardo»).
Para que a morte do corpo tenha como consequência a certeza da morte
do meu ser sujeito é necessário que se tenha uma ontologia materialista, que
postula que a mente é um produto da actividade da fisiologia. Mas como a
maior parte das culturas não tem tal ontologia – na verdade só o ocidente
científico e materialista a tem – a morte do corpo não corresponde necessa-
riamente à morte do ser.
Nos casos em que há apercepção da mente a sensação de que a mente con-
tinua pode ser mais forte ainda do que nos casos em que há um sincretismo
mente/corpo. Nestes últimos casos, o que sobrevive é a pessoa, ainda que de
forma invisível, com intenções, representações, ciclos funcionais e agência

59
É talvez relevante esclarecer que cheguei à distinção entre eu-sujeito e eu-objecto indepen-
dentemente de James (1890), Mead (1934), Ricoeur (1990) ou Ferreira (1969) e seguindo não
um método instrospectivo mas uma tentativa de caracterizar as linguagens que aplicamos para
descrever a realidade (a primeira apresentação da distinção pode encontrar-se em SáNogueira-
-Saraiva, 2003). É também relevante dizer que Vergílio Ferreira não refere nenhum dos três
autores anteriores e que considera a sua Aparição isto é, a consciência da separação entre Eu
sujeito e Eu objecto, como um elemento filosófico original. Refiro estas cinco (e provavelmente
haverá muitas mais) ocorrências independentes da distinção eu-sujeito e eu-objecto porque sugere
tratar-se esta distinção de um fenómeno muito robusto e poder ser aceite como um dado empí-
rico.

137
(daí o universal humano dos cuidados cadáver– cf, por exemplo, Metcalf &
Huntington,, 1991). Havendo uma apercepção da mente enquanto represen-
tador, enquanto entidade consciente e tão real quanto o visível, a convicção
provável é de que a alma continue depois da morte do corpo, como em Pla-
tão.
A consciência do pri não determina que se acredite imediatamente na
alma imortal: apenas torna subjectivamente evidente que a morte do corpo
pode não implicar a morte do representador (porque há uma diferença fun-
damental de qualidade sentida: o sentimento de ser que acompanha a activi-
dade do pri é a consciência de existir e de representar, enquanto que o corpo
é, ele próprio representado: tem, pois, as características do Objecto). Em
condições normais, é a fricção entre uma semi-consciência do pri e a evidên-
cia de que o corpo –objecto empírico– vai morrer que determina a existên-
cia do conceito de alma como distinto do conceito de corpo (ver SáNo-
gueira-Saraiva, 2003, Pereira & al, em preparação, Sá-Saraiva et al, em
prep).60 Quando o pri se torna evidente (como em Eckhart) é que se com-
preende a separação completa entre um e outro. Como o pri não existe no
tempo (porque não tem caraterísticas de objecto) passa a ser concebido como
intemporal e, por conseguinte, imortal.
No Laboratório de Etologia temos investigado este aspecto. Efectiva-
mente, não só ocorre que a maior parte das pessoas consegue separar a sensa-
ção de ser e a pessoa como a sensação de ser é menos afectada do que a per-
sona pela imaginação da destruição do corpo. Além disso, mesmo as pessoas
que se declaram materialistas e não acreditar na vida depois da morte do
corpo parecem ter a experiência subjectiva de continuar a ser depois da
morte do corpo (Pereira & al., em preparação).

CONCLUSÃO

Vimos que o eu deriva provavelmente do pri dos mamíferos. Esse eu


existe no espaço e é o pólo sujeito dos ciclos funcionais que ligam o orga-
nismo ao meio. Cria-se assim, na nossa espécie, um eu-sujeito que se define
pela acção-reacção ao meio e consiste em percepções, propriocepções e
60
A ideia de que a alma surge da semi-consciência de uma dualidade do ser encontra reforço
na discussão que Lévi-Bruhl faz do conceito de alma nos primitivos. Cada pessoa sente, vaga-
mente, que há algo a distinguir, mas quando se lhes fazem perguntas mais específicas deixam de
saber responder. Defendo que exactamente o mesmo se passa na nossa cultura: sentimos uma
dualidade vaga mas não a sabemos definir, tanto mais que usamos a mesma palavra para o eu-
-sujeito e o eu-objecto.

138
acções. Durante a evolução passámos a ser capazes de representar entidades
complexas em memória (Er), criando assim a mente. Como o pri nunca se
consegue representar como objecto (porque é puro sujeito, não objectuável
ou substanciável) as representações de nós próprios são não do pri mas de
um objecto, de um conjunto de características de um corpo que vive em
sociedade e tem propriedades agentes e mentais. Chamámos a esse eu «eu-
-objecto» por oposição ao «eu-sujeito» que é o pri. É também nesse Er que
«vemos» as memórias das percepções, propriocepções e acções que ocorre-
ram no pri e também no Er que ocorre o planeamento de acções futuras,
graças à possibilidade de o pri se colocar em outros contextos imaginários.
Mostrámos que o eu sujeito se pode separar, em imaginação, do corpo e
colocar-se quer no lugar de outra pessoa (teoria da mente), no futuro ou no
passado (pensamento e narrativas) e que o facto de termos consciência, ainda
que limitada, de que eu sujeito e eu objecto não coincidem pode estar na
origem da crença generalizada na imortalidade da alma e do misticismo que
nega os ciclos funcionais.
Finalizando numa nota meta-teórica e epistemológica, penso ter defen-
dido a possibilidade de pensar a psicologia humana na continuidade dos pro-
cessos animais e, ao mesmo tempo, ter mostrado a heuristicidade do método
de pensamento da Etologia funcional.

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AGRESSÃO HUMANA
Começarei por explicar a agressão porque é, talvez, mais fácil introduzir
as noções de selecção natural –necessária para se compreender a agressão–
neste contexto.

AS RAÍZES DA AGRESSÃO: A
COMPETIÇÃO POR RECURSOS

A agressão ocorre em quase todos os organismos que tenham de disputar


um recurso a outros indivíduos. Isto é verdade quer em animais quer em
plantas. Por exemplo, em torno de uma faia (Fagus sylvaticus), nada cresce: se
passearmos por uma floresta de caducifólias, verificaremos que, por debaixo
das faias grandes, há uma alteração, bastante brusca, do sub-bosque: há uma
sombra intensa, em que a pouca luz provém das folhas da copa da árvore,
intensamente verdes; é como uma clareira com um grosso tronco cinzento
no meio, e, no alto, uma enorme copa arredondada. O que se passa é que a
copa da faia não deixa passar o sol, impossibilitando assim o crescimento de
outras plantas, que entrariam em competição alimentar com ela.
Este exemplo é paradigmático: em termos de selecção natural, se um
organismo impedir que os outros compitam com ele por recursos, terá mais
recursos. Traduzindo isto para o nosso exemplo, a faia compete pelos recur-
sos – os sais da terra que, misturados com água, lhe permitem viver e crescer
– impedindo que outras plantas se aproveitem deles; fá-lo impedindo a luz
de chegar ao chão, o que torna inviável a fotossíntese e, portanto, a vida, de
outras plantas.
Neste caso falamos de competição directa, porque a faia interfere, directa-
mente, com a sobrevivência das outras plantas. É o que ocorre, na nossa
espécie, com saldos particularmente concorridos ou às portas dos metropoli-
tanos em horas de ponta: as pessoas tentam passar à frente das outras para
chegar aos artigos cobiçados ou para arranjar lugar.
Noutros casos, a competição é indirecta; por exemplo, para chegarem à
Universidade, os alunos tentaram ter as melhores notas possíveis, de forma a
chegarem antes dos outros aos cursos que desejam, mas aqui não houve
qualquer interferência directa nos outros. Também com os animais tal
ocorre; por exemplo, várias espécies nocturnas e diurnas competem pelas
mesmas fontes de alimento, umas espécies durante o dia, as outras durante a
noite. Quanto mais gastar a espécie, por exemplo, nocturna, tanto menos
restará para a espécie diurna e reciprocamente. É como se houvesse apenas
lugar para um certo número de animais: se os da noite ficarem com muitos
desses lugares, restarão poucos para os outros.
Do ponto de vista do comportamento e das suas causas próximas – moti-
vações – os casos de competição directa são bastante mais interessantes do
que os de competição indirecta, porque, na competição directa, surgem con-
frontos activos entre os animais. Usando a analogia dos exames e do metro,
os alunos apenas podem estudar o mais e o melhor que podem; mas os pas-
sageiros de metro podem desenvolver várias estratégias de interacção com os
outros passageiros. Note-se que essas estratégias podem ir desde brutalidade
e ameaça a simplesmente maior rapidez ou mesmo a comportamentos de
simpatia. Do ponto de vista do observador as estratégias da «hora de ponta»
são mais interessantes, porque mais evidentemente tradutíveis em compor-
tamentos: as pessoas podem empurrar-se, fazer ar de poucos amigos, fingir
que nem vêm os outros, ou, pelo contrário, podem pedir desculpa, podem
tentar passar sem que se dê conta disso, e algumas pessoas conseguem
mesmo arranjar estratagemas para prever onde as portas se vão abrir e situar-
-se estrategicamente nesse locais, de forma a entrar primeiro. Neste caso há
muito mais comportamento que observar do que no caso da selecção para as
universidades. Aí também se pode tentar compreender as estratégias que
permitem aos alunos ser os escolhidos, mas, do ponto de vista do comporta-
mento, não é tão interessante (poucas coisas haverá mais desinteressantes do
que observar uma pessoa a estudar horas de seguida – até o sono é mais inte-
ressante).
As nossas lutas e, até certo ponto, as nossas guerras são então a consequên-
cia directa da selecção natural. Há vários exemplos de guerras por recursos.
Toda a expansão colonial é exemplo disso: as culturas tecnologicamente
mais fracas foram ou submetidas ou simplesmente aniquiladadas pelos inva-
sores – veja-se o caso dos índios da América do Norte e do Sul. 61 (Como
veremos, as guerras na nossa espécie podem ter causas bem diferentes: consi-
dere-se o caso das cruzadas ou da actual guerra contra a Al-Qaeda que,
embora inicialmente tenham tido uma origem territorial, depressa passaram
a ser questões de fé e não apenas de recursos).
Nesse sentido, temos de compreender o fenómeno da agressão como irre-

61
Os protestos portugueses contra esta tendência foram precoces: o P e António Vieira con-
denou, inúmeras vezes, o tratamento dado aos Índios, que considerava indigno de cristãos. Mas
a veemência de tais protestos apenas nos mostra ter havido abusos. Nos Estados Unidos da
América a questão foi, provavelmente, ainda mais grave, podendo, efectivamente, falar-se em
genocídio premeditado. Entre outras coisas, os chefes militares americanos chegaram a concluir
negociações de paz presenteando os chefes índios com cobertores infectados de varíola – a que os
índios, sem defesas biológicas, eram particularmente vulneráveis –, e os tratados de paz foram,
quase sempre, quebrados com intenção de aumentar as terras dos imigrados.

148
dutível. Os horrores da violência são a face para nós visível do inexorável
efeito da selecção natural.
A competição directa tem, pois, como correspondente psicológico e eto-
lógico a competição inter-individual, e dá origem a motivações de agressão,
de competição, e muitas outras como iremos ver.

Lutas e ritualização

Antes de inciar esta exposição, compreendamos o que é a ritualização. O


que parece passar-se é que, se determinada posição corporal (por exemplo,
nas aves, a manifestação da preparação de levantar voo) transmitir informa-
ção importante a outros animais, através da selecção natural esse traço será
amplificado e tornado mais explícito. No caso da agressão compreende-se
facilmente que os comportamentos preparatórios de ataque tenham sido
ritualizados. De facto, quando um animal se encontra prestes a entrar num
combate, são activadas duas motivações diferentes: a motivação agressiva
propriamente dita, e o medo; o conflito entre essas duas motivações leva a
posições intermédias (por exemplo, abrir a boca como para morder, mas
fazê-lo ainda longe do adversário) e a posições de conflito (por exemplo,
levantar os pelos). Dado que é importante transmitir ao adversário a infor-
mação de que o animal se encontra pronto para entrar em combate, esses
traços terão sido amplificados. A ritualização foi especialmente estudada
com patos, onde se encontram muitas formas transicionais entre a expressão
motivacional simples de uma «intenção» comportamental e a ritualização
completa de um comportamento.
Voltemos, então, à agressão. As lutas só ocorrem quando dois animais
precisam do mesmo recurso em circunstâncias semelhantes – por exemplo,
dois grupos de predadores pretendem a mesma presa, como ocorre entre
leões e hienas na savana africana. Nesse caso, é necessário que um dos grupos
afaste o outro, recorrendo para isso à ameaça e à agressão. Na nossa espécie
passa-se o mesmo, como vimos no exemplo das guerras com os índios: tanto
os imigrantes quanto os autóctones precisavam da terra e dos seus recursos
(ainda que fossem aproveitados de forma diferente).
Contudo, e ainda que haja efectiva competição por um recurso, a agressão
é, em geral, evitada – trata-e de um último recurso – porque as consequên-
cias de uma luta podem ser graves. O primeiro perigo é o de ferimentos que
enfraquecem ou podem mesmo levar à morte dos contendores – ainda que
tenham ganho a luta. Além dos ferimentos há perda de tempo (um bem
sempre precioso a outras actividades importantes) e falta de atenção a preda-

149
dores (dois animais ou dois humanos à luta têm toda a atenção centrada no
adversário).
Não é, portanto, de estranhar que as lutas sejam soluções extremas, que os
animais usam apenas em casos limite. Em termos gerais, pode dizer-se que
os animais lutam apenas quando os custos dessa luta são menores do que os
ganhos. Assim, um animal muito mais pequeno do que outro não entrará,
normalmente, em luta com o outro que, sendo maior, terá mais possibilida-
des de ganhar o combate. Da mesma maneira, os animais só lutam até à
morte quando o recurso porque estão a lutar é absolutamente necessário
para a sua sobrevivência imediata ou para a sua reprodução (no caso de ela
apenas ocorrer uma vez – semelparidade). Um exemplo interessante é dado
por um insecto (Idarnia) que se reproduz dentro dos figos. Estes animais re-
produzem-se apenas uma vez; acoplam dentro de figos, que proporcionam
protecção e alimento à descendência. Assim, é frequente encontrar grande
número destes insectos dentro dos figos. Dado que os animais apenas se
reproduzem uma vez, se falharem a única tentativa, não deixarão descen-
dência. De modo que não é estranha a seguinte observação: Hamilton con-
tou, dentro de um figo, 15 fêmeas, e 54 machos; desses, 42 estavam mortos
ou a morrer em consequência de combates pelas fêmeas. Há, certamente,
manifestações dessa tendência nas nossas mentes. Imagine o leitor que está
há dois dias sem comer e que encontra a única fonte de alimentação num
raio de cinco dias de marcha. Se, quando chegar a essa fonte de alimento, aí
vir outra pessoa a alimentar-se e se essa pessoa se recusar a partilhar, que
outra alternativa tem senão tentar roubar-lhe a comida, independentemente
do perigo do combate? Pode morrer no combate, mas se não tentar ganhá-lo
morrerá certamente, de fome. De maneira que não tem escolha. Compare
esta situação com a de uma pessoa que pede garoupa num restaurante e ouve
que acabaram de servir a última dose. Acha o leitor que se atiraria ao afortu-
nado comensal? Claro que não, limitar-se-ia a ficar invejoso e a pedir outra
coisa. Se estiver com uma pessoa sua convidada que também pediu o mesmo
prato, insistirá em que seja ela a ser servida (se for bem educado, claro,
embora o faça apenas por educação e não por generosidade).
Passemos das boas maneiras à mesa para as lutas dos animais. Quando
lutam, os animais têm de resolver um problema: ao atacarem o outro ani-
mal, estão a expor-se, por seu turno, aos seus ataques. No caso de animais da
mesma espécie, o facto de levar as armas ao contacto com o outro animal faz
que o atacante esteja potencial ou realmente ao alcance das armas do adver-
sário. Esta situação pode, facilmente, observar-se em desportos como o boxe
ou, talvez ainda de forma mais nítida, na esgrima: ao colocar-nos em posi-
ção de atingir o oponente, e admitindo que ele tem braços tão compridos

150
quanto os nossos, estamos, simultaneamente, ao alcance dele. É por isso que,
na esgrima, se regista como ponto o golpe ocorrido primeiro (imagine a
esgrima quando os floretes tinham pontas reais e matavam de facto!). No
boxe observa-se o mesmo efeito e com uma característica mais. As catego-
rias de combatentes mais leves golpeiam-se muito mais vezes do que nas
categorias mais pesadas. Isto ocorre porque o efeito de um golpe nas catego-
rias mais ligeiras é menor do que nas categorias mais pesadas; assim, as con-
sequências de um golpe são maiores nas categorias mais pesadas. É por isso
que os combates são, correspondentemente, mais «afastados» do que nos
peso-pluma. Regra geral, quanto mais fortes são as armas, maior será a relu-
tância em entrar em conflito.
É por isso que a maior parte dos conflitos – animais e humanos – se
resolve sem que chegue a haver combate. Por exemplo, os animais podem
ameaçar-se de forma a transmitir ao opositor a informação de que estão mais
bem preparados e de que o opositor tem vantagem em abandonar a luta.
Essa informação consiste, geralmente, em «ameaças». No boxe americano os
lutadores referem-se, por vezes, aos adversários como «presas fáceis» ou
qualquer outra tentativa de os diminuir e atemorizar. Mas o fenómeno
nota-se mais em lutas reais: antes da luta propriamente dita há, na maior
parte dos casos, insultos e exibições que fazem que um dos intervenientes –
o mais pequeno ou o menos agressivo – abandone a luta, por avaliar que não
tem hipótese contra o outro (o que se traduz simplesmente pelo vernáculo
«ter medo do outro»). Contudo, em caso de animais igualmente fortes, pode
ocorrer uma «escalada de agressão», permanecendo cada um dos interveni-
entes confiante na vitória – em termos psicológicos, vencendo a tendência
para agredir a tendência para fugir.
Consideremos um exemplo. Nos veados (Cervus elaphus) os opositores
começam por bramir; como há uma correlação entre o tamanho do animal e
a altura do bramido (os animais maiores emitem sons mais graves) os comba-
tes tendem a terminar aí. Se os animais estiverem relativamente equilibrados
o conflito pode passar para outra fase: a marcha paralela, em que os animais
têm, provavelmente, possibilidade de examinar melhor o adversário. Só se a
diferença entre os dois animais não for muito grande se passará então ao
combate propriamente dito, com entrecruzamento das hastes. Contraria-
mente ao que, por vezes, se diz, estes combates são perigosos para os dois
animais, havendo uma proporção importante de ferimentos graves em con-
sequência das lutas.

151
Refutação do «bem da espécie»

Ainda assim, e apesar disso, verificam-se, por vezes – como regra rara e
não como excepção – ferimentos graves no decurso de combates entre
rivais. Este facto está em desacordo com uma interpretação muito espalhada
da ritualização (estereotipização do comportamento típica da espécie e inata,
que parece ter como função tornar os combates o mais inofensivos possível)
dos combates. Essa interpretação pretende que os animais lutam seguindo
regras de não agressão por esse comportamento ser benéfico para a preserva-
ção da espécie. Contudo, a evolução ocorre no seio de populações por com-
petição entre indivíduos, de modo que um indivíduo que, sendo agressivo e
entrando em lutas de morte, deixasse mais descendência do que os outros,
teria vantagem adaptativa e a população passaria a ser constituída por indiví-
duos mais agressivos.
Podemos dar um exemplo corriqueiro disto. Imaginemos dois grupos de
pessoas, digamos, de alunos que preparam um exame. Um desses grupos é
fortemente cooperativo, facultando-se os membros uns aos outros os seus
apontamentos e os frutos das pesquisas bibliográficas e qualquer conheci-
mento que possam usar. Este comportamento terá vantagens evidentes para
todos os membros do grupo. O outro grupo é composto apenas de indiví-
duos egoístas que nada revelam uns aos outros e que, podendo, se causam
prejuízos mutuamente. Este grupo terá, evidentemente, resultados piores
do que o primeiro. Poderíamos então pensar que os indivíduos do primeiro
grupo funcionam cooperaivamente para «bem do grupo», enquanto que os
outros funcionam «para bem do indivíduo». Contudo, não é necessaria-
mente assim. O facto é que os membros do primeiro grupo têm vantagens
individuais em ser cooperativos, isto é, cada um ganha com o conhecimento
dos outros. Mas imaginemos agora uma situação um pouco diferente. Um
dos elementos do primeiro grupo muda de estratégia e passa a beneficiar da
cooperação de todos os membros sem dar nada em troca e causando,
mesmo, prejuízo aos seus colegas. Terá, naturalmente, melhores notas do
que os colegas porque beneficiará da informação que eles recolheram e da
que ele recolheu sem partilhar; além de que prejudicou outros colegas (por
exemplo, pedir apontamentos emprestados e depois dizer que os perdeu).
Fornecendo notas mais altas, a estratégia deste aluno poderia ser copiada por
outros alunos. Estes alunos terão, por seu turno, melhores notas. Notem
que as notas do conjunto dos alunos tenderão a baixar à medida que haja menos
cooperação. Mas se houver apenas estas duas estratégias – ser sempre coope-
rante e ser egoísta e mau colega – não há qualquer maneira de os alunos que
cooperam vencerem os que são egoístas: os seus apontamentos serão sempre

152
lidos por um dos egoístas e depois «perdidos» e as notas baixarão. Com o
tempo, haverá apenas egoístas. Claro que este exemplo pede uma contradi-
ção imediata: «bastava que os egoístas fossem punidos». Isso é verdade. Mas
se transformarmos os alunos em animais, as estratégias em estratégias genéti-
cas e as boas notas em reprodução, veremos que só mediante uma mutação
que «exercesse represálias» seria possível vencer os egoístas.
Onde nos leva tudo isto? À conclusão evidente que o bem do grupo é evoluti-
vamente impossível, porque aquilo que é seleccionado são os indivíduos (e as
cópias dos genes que deixam atrás de si) e não os grupos: recordem-se que o
grupo egoísta, no seu conjunto, funciona pior do que o grupo altruísta; mas
que se um egoísta penetra no grupo altruísta acabam todos os sujeitos por
ser egoístas; isto é, a selecção faz-se pelos indivíduos e não pelos grupos.
Ora a evolução faz-se por selecção não de grupos mas de indivíduos (são
eles os portadores dos genes e não os grupos, e a reprodução diferencial em
que assenta a evolução faz-se por selecção diferencial de indivíduos e não de gru-
pos).
Deste modo, a teoria do bem da espécie é incongruente com o que se sabe
da selecção e evolução, porque um indivíduo um indivíduo que se dedique
ao bem do grupo deixará menos cópias de si próprio do que indivíduos que
se dediquem ao bem deles próprios.62 É, pois, necessário procurar as razões
do refreamento de agressividade nos combates no interesse que tem para os
indivíduos esse refreamento. Dado o que foi dito acima, a explicação parece
evidente: os animais não entram facilmente em combates de morte porque
poderiam eles próprios ser mortos. A ritualização dos combates vem, prova-
velmente, dessa mesma razão.
Esta interpretação é particularmente evidente em vários animais, particu-
larmente o rato do bambu (Tryonomys swindlerianus). Este animal, que possui
dentes extremamente cortantes, luta empurrando o adversário com a ponta
do focinho de forma que os dois oponentes se empurram mutuamente sem
estarem ao alcance dos dentes um do outro; uma qualquer violação da regra
implicaria uma luta com os dentes que seria, provavelmente, fatal aos dois –
os dentes do rato do bambu cortam, efectivamente bambu, que é mais duro
do que rato! Por exemplo, as cobras cascavel podem enfrentar-se apenas
fazendo uma espécie de braço-de-ferro com os seus corpos e não se mordem
com os dentes de veneno. E a maioria dos artiodáctilos (os herbívoros com
cascos fendidos em dois – veados, antílopes, cabras, etc. – possuidores de

62
Dito de outro modo, a unidade de selecção é o indivíduo e a unidade de evolução é a popu-
lação, enquanto a espécie é um resultado dos processos de selecção e evolução.

153
armas aparentemente temíveis, usam-nas apenas no contexto da luta rituali-
zada, em que os danos inflingidos (e o risco de os receber) é menor.63
Vejamos agora mais formalmente como poderiam os animais ter vanta-
gem em efectivamente refrear a agressão.

A teoria dos jogos e a agressão

Estes casos, difíceis de compreender dado que um animal que rompesse as


regras de não agressão pareceria ter vantagem, são explicáveis no contexto
da teoria dos jogos (Maynard-Smith, 1976). Imaginemos que uma espécie é
composta, em proporções iguais, por dois tipos de animais: um é sempre
agressivo e assim que entra em conflito com outro ataca e leva a luta até à
agressão não ritualizada; o outro apenas luta seguindo as regras e foge assim
que é atacado não ritualizadamente. Chamemos-lhes animais «agressivos» e
«ritualistas». Suponhamos que o custo de uma luta não ritualizada seja, para
o perdedor, 100 pontos; que o ganho de uma luta valha 50 pontos; e que o
preço de uma luta ritualizada seja 10. Suponhamos que estes pontos corres-
pondem à descendência deixada, de tal forma que um animal que ganha
muitos pontos deixa mais descendentes do que um que ganha menos.
Assim, chega-se à seguinte tabela de ganhos e perdas:

Atacante/Opositor
Agresssivo Ritualista Ganhos médios
Agressivo ½(50)+½(-100) = -25 +50 25
Ritualista 0 ½(50-10)+½(-10) = 15
15

Se dois animais agressivos lutarem, um deles ganha e o outro será ferido64;


portanto, o agressor tem ½ de possibilidades de ganhar 50 pontos e ½ de
perder 100; quando um agressivo luta contra um ritualizador, ganha sempre
50 pontos; se um ritualizador lutar com um agressivo perde sempre: não
ganha nenhum ponto, mas também não perde nenhum, porque foge assim
que é atacado; finalmente, se dois ritualizadores lutarem, o atacante tem ½
de probabilidade de ganhar 40 pontos (porque pode ganhar o combate – 50
pontos – , mas perdeu 10 pontos porque esse é o custo do combate rituali-

63
Uma excepção a esta regra são os bovídeos, que atacam com os cornos todos os inimigos e
não apenas os rivais.
64
Note-se que este exemplo é simplificado: em situações de luta sem quartel, como por vezes
ocorrem entre animais, a possibilidade de ambos serem feridos é real.

154
zado) e ½ de probabilidade de perder 10 pontos (se perder o combate limita-
-se a não ganhar nada e perder ainda o tempo do combate ritualizado).
Os animais agressivos ganham mais pontos do que os ritualizadores, mas
como há tantos ritualizadores quanto agressivos, também perdem mais, em
média, nos combates. Se a população fosse inteiramente constituída por
ritualizadores, um agressivo ganharia muitos pontos muito depressa porque
ganharia todos os combates; mas, à medida que fosse havendo mais agressi-
vos na população (não esqueçamos que os pontos correspondem a descen-
dência deixada), os seus ganhos seriam menores. Da mesma maneira, se hou-
vesse uma proporção muito mais elevada de agressivos do que de ritualiza-
dores, estes últimos teriam também vantagem: embora fugisse quase sempre
e portanto ganhasse poucos pontos, sempre ganharia mais do que um agres-
sivo, que perderia em média perto de 25 pontos em cada encontro.
Ou seja, os ganhos de cada estratégia são dependentes da frequência rela-
tiva das estratégias em presença. Nesta situação em que encontramos apenas
duas estratégias, chega-se a um estado de equilíbrio quando tiverem ganhos
iguais. Ora, os ganhos de cada estratégia, nesta matriz de ganhos e perdas são
calculados multiplicando a frequência (em número de animais) de cada estra-
tégia pelos ganhos/custos associados a um encontro com um indivíduo dessa
estratégia. Se a frequência dos agressivos for a e a dos ritualizadores for r=1-a
(como estamos a falar de frequências, a+r=1), os ganhos dos ritualizadores
seriam dados por
R=0a+15(1-a)
isto é, os ganhos associados a um confronto com um agressivo multipli-
cado pela frequência de agressivos mais os ganhos associados a um confronto
com um ritualizador multiplicado pela frequência de ritualizadores.
Da mesma forma, os ganhos dos agressivos seriam dados por
A=-25a+50(1-a)
Se os ganhos forem iguais em média para os ritualizadores teremos que
0a+15(1-a)= -25a+50(1-a)
Resolvendo a equação, tem-se que a=7/12 ; e, em consequência, r=1-7/12,
ou seja, 5/12. Isto é, haveria 58% de agressivos e 42% de ritualizadores.65
Assim, esperar-se-ia que houvesse uma maior frequência de animais agres-
sivos do que de ritualizadores. Contudo, e este é o aspecto principal neste
contexto, imagine-se que os custos por ferimento grave eram muito mais
65
Resolvamos a equação para quem está esquecido da álgebra:
-25a+50(1-a)=0a+15(1-a)
-25a-50a+50=15-15a
-75a+15a=15-50
-60a=-35
a=35/60=0,5833

155
elevados. Nesse caso teríamos uma matriz diferente. Por exemplo, se os cus-
tos fossem não de 100 mas de 500 pontos em virtude de ferimento grave,
teríamos a seguinte matriz:

AtacanteOpositor
Agressivo Ritualista
Agressivo ½(50)+½(-500) = -225 +50
Ritualista 0 ½(50-10)+½(-10) = 15

o que daria um valor muito diferente:


A=-225a+50(1-a)
enquanto que para os ritualizadores os valores se manteriam os mesmos.
Teríamos assim que as duas estratégias atingiriam o seguinte ponto de equi-
líbrio:
0a+15(1-a)= -225a+50(1-a)
o que significa que haveria 13% de agressivos e 87% de ritualizadores.
Imaginemos agora os casos em que perder ou ganhar uma luta decide o
sucesso ou insucesso reprodutivo do animal. Nesse caso, perder e ganhar
teria o mesmo valor, mas com sinais opostos. Ponhamos o valor como ±100.
Teríamos então a seguinte matriz de ganhos e perdas:

AtacanteOpositor, com semelparidade


Agressivo Ritualista Custos médios
Agressivo ½(100)+½(-100) = 0 +50 50
Ritualista 0 ½(100)+½(-100) = 0 0

Neste caso, esperar-se-ia que todos os animais fossem sempre agressivos e


nunca ritualistas. De facto, sempre que os recursos são muitíssimo impor-
tantes, como nos casos de semelparidade ou quando uma espécie está adap-
tada a ambientes de escassíssimos recursos, é isso que se encontra. Já referi-
mos o caso de Idarnia.
Se a luta conduzisse necessariamente à morte ou a feridas de morte aos
dois contendores, os valores teriam de ser muito diferentes. Por exemplo, o
animal que perde é penalizado em -100 pontos e o que ganha perde, ainda
assim, com -80 pontos. Nesse caso teríamos a seguinte tabela:

AtacanteOpositor com armas mortais


Agressivo Ritualista Custos médios

156
Agressivo ½(-80)+½(-100) = -90 +50 -40
Ritualista 0 ½(100)+½(-100) = 15 15

Nesta situação verifica-se que há apenas ritualistas (a=-2/17). É provavel-


mente esse o caso da maior parte dos animais que se reproduzem mais do
que uma vez e que possuem armas muito eficazes. Nesse caso, o sucesso
reprodutivo dos agressivos seria nulo, e portanto esperar-se-ia que a estraté-
gia de ritualizadores fosse exclusiva. Diga-se de passagem que muito se pode
especular neste campo sobre a guerra num contexto nuclear. Durante a
guerra fria qualquer guerra na Eurásia e na América do Norte levaria a uma
destruição total dos adversários. Quando o Império soviético se desmoro-
nou as guerras começaram: os custos não eram já tão altos.
Contudo, e exceptuando os casos de vida ou de morte, a maior parte dos
animais luta ritualizadamente enquanto o adversário o fizer. Trata-se, por-
tanto, de uma estratégia condicional. Uma das experiências mais impressionan-
tes que se pode ter é ver um animal isolado atacar partes do corpo que foram
magoadas (por exemplo, um pequeno carnívoro pode prender a cauda na
gaiola e magoar-se até ao sangue); nessas circunstâncias, o animal ataca o
«agressor» que, estando isolado, interpreta como a própria cauda (cf. infra,
sobre o aumento da agressividade nos animais isolados), com um compor-
tamento não ritualizado; quanto mais ataca maior é a dor (isto é, menos
ritualizado é o «ataque» do «adversário»); os animais chegam assim a mutilar-
-se horrivelmente (ver sobre este ponto a exposição de Anne Rasa).66

Submissão

Uma forma diferente de controlar a agressão é a submissão. Há vários


comportamentos que têm como efeito controlar a agressão. São muito vari-
ados de espécie para espécie, mas têm uma característica comum: o compor-
tamento exibido é o «contrário» do comportamento de ataque67. Isto pode
ser claramente ilustrado pelo comportamento de hámsters da Europa central
(Cricetus cricetus, diferentes dos hámsters dourados, Mesocricetus auratus, que
66
Isto ocorre porque, contrariamente ao que se poderia pensar, a maior parte dos animais não
tem qualquer concepção do seu próprio corpo. É assim que vários mamíferos bastante inteli-
gentes podem perseguir partes do corpo e que os ratos, na ausência de materiais de construção
do ninho, transportam a própria cauda. A noção de corpo aparece em antropóides muito encefa-
lizados: tanto o chimpanzé quanto o orangotango a mostram mas, curiosamente, o mesmo não
parece passar-se com os gorilas (Ref. Eibesfeldt, H. Box, eu).
67
Já Darwin, no seu The expression of emotions in animals and Man tinha chamado a atenção
para este efeito.

157
habitualmente se encontram nas lojas de animais). Estes animais têm, no
peito, duas manchas pretas, por altura das patas anteriores; a ameaça consiste
numa postura erecta e na extensão das patas anteriores e é potenciada pelas
duas manchas pretas. Quando o hámster está a ser vencido, pode, com as
patas anteriores, tapar essas duas manchas. Mas muitas vezes o comporta-
mento é mais simples: na iguana marinha, o comportamento de ameaça
consiste em o animal elevar-se nas patas; o comportamento de submissão
consiste em o animal deflectir completamente as patas e baixar um pouco a
cabeça. Pode também acontecer que os animais tomem posições semelhantes
às das crias. Isto ocorre, por exemplo, no lobo, que se deita de costas e urina,
o que provoca no agressor comportamento de limpeza (como se de uma cria
se tratasse). Em muitos casos, o comportamento de submissão corresponde
apenas à indicação de que o animal está preparado para fugir, podendo haver
ritualização desses comportamentos.
Numa análise descritiva minuciosa do comportamento de contra-agres-
são, Ewer conclui que o apaziguamento consiste em dois processos funda-
mentais: esconder os sinais de agressão (dentes, posições agressivas), em ele-
mentos do esquema infantil (no gnu, nos canídeos, nos primatas, na zebra de
Burchell) e comportamento sexual –o macho mimetiza a fêmea (nos prima-
tas, nos canídeos e em outros grupos). No primeiro caso (não mostrar agres-
são) sinaliza-se que não se vai combater; no segundo e terceiro (comporta-
mento sexual, comportamento infantil), apresenta-se ao atacante estímulos
que o manipulam motivacionalmente, de maneira que haja uma competição
motivacional entre a agressão e motivações que com ela são incompatíveis: o
sexo e o comportamento relativamente às crias. Este aspecto será particular-
mente importante quando considerarmos os problemas da vida social.
No comportamento humano as coisas não são diferentes. Todos reconhe-
ceremos o homem (digo homem porque a dominância é mais visível nos
homens do que nas mulheres) dominante: porte erecto, voz colocada grave,
descontracção dos músculos e distensão geral da postura: o homem domi-
nante ocupa espaço. Em contraposição o homem subordinado tem a voz
colocada mais alto, anda mais dobrado, parece encolhido e contraído.
Quando da guerra do Golfo, as estações de televisão mostraram uma
tomada de trincheira por parte dos americanos. Os iraquianos que não fugi-
ram agachavam-se. Fazendo quase uma bola, andando mesmo em posição
semi-fetal, pediam perdão com vozes agudas e lamurientas. Uma das ima-
gens foi fascinante: o soldado americano, querendo significar que não lhe
faria mal e, sem dúvida, debaixo da acção dos estímulos-sinais emitidos pelo
iraquiano, fez-lhe uma espécie de afago na cabeça. Claro que isto não funci-
ona sempre assim. Mais recentemente vimos imagens dos talibãs prisioneiros

158
da aliança do Norte. Em conformidade com a sua fama, não mostravam
comportamentos de subordinação, sofrendo as agressões com o corpo tanto
quanto possível direito. E há casos em que os estímulos-sinais não funcio-
nam, quando os nossos rivais se transformam em nossos inimigos: já os refe-
rimos, relativamente aos polícias racistas. Explicaremos esses casos mais à
frente. Mas façamos notar que o comportamento de submissão humano é
explicável com base nos princípios apresentados por Ewer: não mostrar
sinais de agressão e mimetizar comportamentos infantis. Acrescente-se que
um comportamento de dominância que ocorre nos primatas é o montar. Em
vários grupos humanos, os rituais de iniciação de um noviço incluem o
mesmo processo (o noviço é montado e copulado por um macho mais
velho), podendo pensar-se que há relação com o que se passa nos outros ani-
mais (assunção de comportamento sexual feminino por parte do subordi-
nado). Para mais informação propriamente etológica ver os trabalhos de
Eibl-Eibesfeldt.

Quando se esperam lutas de morte?

Nos mamíferos e nas aves as lutas de morte são raras. Mas é evidente que,
se um organismo necessitar de um recurso necessário à sua sobrevivência
naquele momento não tem outra escolha. É por isso que os animais que apenas
acasalam uma vez tendem a lutar até à morte. Mas mesmo em mamíferos
isso ocorre. Os musaranhos (insectívoros) são animais de metabolismo
excepcionalmente elevado para mamíferos. Por isso são solitários e defen-
dem as suas áreas vitais de qualquer conspecífico, de maneira a poder extrair
todo o alimento possível – os musaranhos passam a vida à procura de ali-
mento: é quase como uma automóvel que tivesse um depósito tão pequeno
que mal dá para chegar à próxima bomba. Quando dois musaranhos se
encontram, ameaçam-se de forma progressivamente mais intensa. Geral-
mente, um deles vai-se embora durante o processo. Mas foi verificado que
um animal luta mais ferozmente quanto mais fome tem. Mutatis mutandis o
mesmo se pode dizer provavelmente da nossa espécie. Na nossa espécie veri-
fica-se que as guerras de poder em altos níveis (ser o chefe de uma nação, ou
de uma corporação) são extraordinariamente brutais. Suetónio refere os
tempos do Império Romano e a facilidade com que se mandava matar
adversários; as guerras de sucessão dinástica – por exemplo em Inglaterra,
onde ficaram bem conhecidas pelas tragédias de Shakespeare – são igual-
mente sem quartel; e todos conhecemos os horríveis morticínios de Stalin,
Hitler, Mao Tse Tung, Pol Pot, Idi Amin e, actualmente, de Julius Nierere.

159
Quando o que está em jogo é o poder máximo – ou aquilo que as pessoas
concebem ser o poder máximo – as guerras são sem quartel.
Rivais e inimigos e a escalada da agressão – É importante conceptualizarmos o
que antes foi dito em termos de diferentes funções da agressão. Vimos que a
agressão se baseia, evolutivamente, na necessidade de defender um determi-
nado recurso. Nesse sentido, compreenda-se que esteja associada à defesa
dos alimentos e, como vimos o capítulo anterior, à defesa de conjuntos de
indivíduos que formam os haréns. Vimos também que há vantagem em que
a agressão seja limitada a formas ritualizadas a que os organismos se atêm,
sem ultrapassar limites rigorosos. Significa isto que esses limites nunca são
ultrapassados? Não. Esses limites podem, efectivamente, ser ultrapassados.
Refiramos um exemplo apresentado por Anne Rasa, sobre os cães. Normal-
mente, quando dois cães se encontram e um deles está no seu território, ros-
nam-se, numa postura muito erecta e a cauda para cima, com as orelhas para
a frente e a testa enrugada. Podem marcar o território com urina, mas,
geralmente, o animal que não é detentor de território abandona a luta nessa
fase, ainda com «dignidade» – isto é, em postura erecta. Se o intruso estiver
muito seguro de si pode fazer o mesmo e a agressão pode «escalar», isto é,
pode subir a parada: os animais podem, efectivamente, lutar, mordendo-se
predominantemente na região do pescoço, onde a pele é dura e há, geral-
mente, bastante pelo. É raro que estes combates façam vítimas, porque
quando um dos animais «compreende» que perdeu abandona a luta e foge.
Em certas situações o animal não pode fugir. Imaginemos que o animal ter-
ritorial está acorrentado, e que a corrente lhe perturbou os movimentos a
ponto de o fazer perder o combate. Mesmo que o animal queira, não pode
fugir. Nessa fase entra em acção a «coragem do desespero», isto é, a agressão
baseada no medo: o animal não tem nada a perder e por isso ataca sem respei-
tar as regras do combate ritualizado. O agressor pode fugir nesta fase; mas
ocorre frequentemente que retalie abandonando a agressão ritualizada.
Neste caso a luta pode ter um desfecho mortal. É por isso que é tão perigoso
encurralar um animal: nada tendo a perder o animal defende-se com agres-
são absolutamente descontrolada. Nos países anglo-saxónicos existe a
expressão «to fight like a cornered rat» – lutar como um rato encurralado,
mas isto aplica-se a qualquer animal. As mães que defendem ninhos podem
mostrar o mesmo comportamento. Recordo-me particularmente de uma
gata – a matriarca de uma colónia numerosa – que atacou um cão que amea-
çava as suas crias. Nada pude fazer para os separar, porque estava demasiado
longe, e a gata pagou com a vida a «coragem do desespero»; também assisti a
casos inversos, em que as mães gatas conseguiram afastar cães.
Estas situações, que qualquer etólogo presenciou, em diversas espécies

160
várias vezes, são relativamente raras em condições naturais: é relativamente
raro que um agressor persista em matar o agredido depois de ele sinalizar
que perdeu a luta e que se vai embora, ou que aceita um estatuto inferior.
Contudo, na nossa espécie, há numerosas excepções a esse caso. Talvez o lei-
tor se recorde de um caso, quando polícias brancos racistas da África do Sul
batiam em angolanos negros que mostravam todos os estímulos de subordi-
nação e abandono da luta. Da mesma forma, os vários casos de morte por
ódio racial (por exemplo, quando se mata uma pessoa apenas por ser de
determinada etnia, como ocorreu no século passado com as monstruosida-
des nazis e ainda recentemente na ex-Jugoslávia) ocorrem independente-
mente de as vítimas sinalizarem que não combaterão mais ou mesmo que
não se defenderão. Nestes casos, a vítima passa de «rival» a «inimigo».
Suponhamos que o leitor tem uma relação de rivalidade com determinada
pessoa. Inicialmente, e se admitir francamente os seus sentimentos, sentirá
raiva e frustração (o melhor caminho para a agressão, como veremos). Mas
se vencer, sistematicamente, essa pessoa, deixa de ter sentimentos agressivos
e pode, perfeitamente, passar a sentir condescendência pela pessoa vencida.
Quer dizer que o seu opositor passou de rival a subordinado hierárquico e,
como nos outros animais, não há qualquer vantagem em persistir no ataque,
visto que o assunto «está resolvido». Mas imagine que o seu rival inicial sim-
bolizava um valor odiado – por exemplo, a pedofilia, a violação ou o assassí-
nio. Nesse caso, não basta vencer: é necessário exterminar, porque só assim
conseguirá vencer o princípio que essa pessoa simboliza. A nossa espécie tem
a capacidade de fazer, facilmente, dos «rivais» «inimigos», sobretudo se os
rivais forem de uma etnia, crença religiosa ou simplesmente cor diferente.
Assim, para os nazis, os judeus, conceptualizados como «rivais», transforma-
ram-se no «inimigo» a destruir. Para os talibãs, os americanos são o inimigo;
em países da Europa do Norte assisti a manifestações racistas inconcebíveis
sobre árabes, com agressão sem a menor provocação (polícias que, passando
por um norte-africano, lhe davam um encontrão e que lhe batiam por se
dizer agredidos – não assisti a isto, mas foi-me contado por um amigo mar-
roquino, justificando porque é que não queria passar por uma rua onde eu
passava quotidianamente). Tudo isto exige uma explicação mais cuidada,
que daremos em capítulos subsequentes deste trabalho.

Conclusões

Vemos então que os animais lutam em consequência da escassez de recur-


sos face à quantidade de jovens que nascem. Como nem todos os animais

161
podem sobreviver, as características que foram determinantes para a sobrevi-
vência tendem a ficar mais representadas na população. Uma dessas caracte-
rísticas é, sempre, uma forma qualquer de excluir outros animais do acesso a
um recurso. Em grande parte dos casos, está-se perante fenómenos de agres-
são, que tem, pois, como principal função afastar um concorrente directo
pelo mesmo recurso. Contudo, e como vimos, isto não deve levar a pensar
que a agressão, per se, é seleccionada sem limite. Como vimos também,
numa população constituída principalmente por animais muitíssimo agressi-
vos, os animais menos agressivos passariam, de facto, a ter mais ganhos do que
os muito agressivos porque, ainda que não ganhassem nada, também nada
perdiam. De facto, ao fugir sistematicamente dos agressivos incorreriam em
menos danos do que os agressivos, que se confrontariam frequentemente
com custos muito graves (feridas e mesmo morte). Nessa situação, os ani-
mais muitíssimo agressivos teriam custos imensos em cada luta, enquanto
que os animais que fugissem não teriam ganhos, mas também não teriam
custos. Por isso muitas espécies (sobretudo as mais sociais), têm formas de
evitar o conflito ou de o atenuar (ritualizações da agressão).
Tem-se, assim, um quadro bastante simples da agressão: serve para afastar
os rivais que competem por um recurso, mas não deve ser tão forte que
acarrete mais custos do que ganhos ao animal agressor.

A MOTIVAÇÃO PARA A AGRESSÃO

Até aqui falámos em agressão e subordinação em termos predominante-


mente de «instruções» de comportamento e de «estratégias». Mas, claro, tem
de se ter sempre presente que uma estratégia comportamental de um deter-
minado organismo implica que esse organismo sinta «vontade» de se com-
portar de acordo com esta estratégia. Ou seja, implica que estejamos a falar
de motivações para a agressão e a subordinação. Já fizémos algumas referências
ao medo. Tratemos agora mais sistematicamente o tema das motivações para
a agressão, um tema sobre o qual correu muita tinta.
Na secção anterior vimos como se coloca o problema da competição
directa para os animais. Resta agora saber de que forma cada espécie resolve
efectivamente esse problema, em termos dos seus repertórios comporta-
mentais (perceptivos, motivacionais, etc.). Como disse antes, considerarei
com mais detalhe a nossa espécie; contudo, é necessário, para isso, ter pre-
sentes os princípios revelados pela Etologia animal.

162
Dados da Etologia

Na nossa espécie, a agressão parece-nos, quase sempre, grande demais. É


uma realidade amplamente comentada que se considera o homem como um
animal extraordinariamente agressivo. Em parte isto pode derivar de um
efeito de maior publicidade dada aos actos «fora do comum». Mas, por outro
lado, há, efectivamente fenómenos que não se encontram em outros ani-
mais: refiro-me, por exemplo, à extraordinária crueldade revelada na II
Guerra Mundial, ou aos incompreensíveis extermínios de populações intei-
ras, não compreensíveis à luz dos princípios da Etologia animal. Nesta sec-
ção, tentaremos mostrar que a agressão humana obedece aos mesmos princí-
pios que a agressão em muitas outras espécies. Mas também que há elemen-
tos diferentes, que exigem outro tipo de explicação.

Autonomia da motivação de agressão

Um dos temas que mais fizeram correr tinta na segunda metade do séc.
xx, foi a antiga questão da natureza agressiva ou pacífica da nossa espécie.
Este problema sempre nos fascinou: os teorizadores políticos do Sec. XVIII
opunham-se entre Hobbesianos, que pretendiam que o homem era natural-
mente mau (Homo homini lupus, isto é: «o homem é um lobo para o próprio
homem»), e os Rousseauianos, que pretendiam que o homem só era mau
devido à influência da cultura (as teorias do bom selvagem). Em 1963, Konrad
Lorenz, um dos fundadores da Etologia, publicou um livro, conhecido em
Portugal como A Agressão,68 sobre esse assunto delicado. Nesse livro, defen-
dia que a agressão era uma tendência inata, impossível de suprimir. Essa ten-
dência acumular-se-ia no organismo, de tal forma que a agressão se expres-
saria, ainda que na quase ausência de estímulos desencadeadores de agressão.
Em consequência, a educação não poderia inibir a agressão. Mais, a utiliza-
ção de armas de longo alcance e a actual tecnologia de destruição à distância
teriam tornado a agressão menos controlável, dado que o ataque já não
poderia ser parado pelos inibidores etológicos da agressão (posições, expres-
sões faciais e manifestações vocais de submissão, que referimos no exemplo
do ataque americano ao Iraque). Apesar de defender que a agressão era
impossível de suprimir, Lorenz procurava maneiras de encontrar «escapes»
(catarses) socialmente não destrutivos para ela. Esta posição foi acalentada-
mente atacada. Pretendeu-se que defender que a agressão era inata implicava

68
Publicado inicialmente pela extinta Morais Editores, e republicada, em cópia fac-similada,
pela Relógio de Água, em 1993.

163
a sua justificação ética – um exemplo da conhecida «falácia naturalista», que
pretende que se um comportamento é inato deve ser seguido como princí-
pio ético. Assim, e nesta perspectiva, a posição de Lorenz legitimaria e reco-
mendaria a agressão o que, como vimos, não podia estar mais longe da posi-
ção defendida pelo austríaco.
Actualmente, e a quem quer que leia o livro de Lorenz, a interpretação
que dele foi feita parecerá estranha e mais ou menos incompreensível. Mas a
ciência e o debate académico são incompreensíveis se não se tomar em conta
o ambiente intelectual da época. Nos anos sessenta e setenta, a intelectuali-
dade, no rescaldo da guerra mundial e das atrocidades do nazismo, estava
totalmente dominada por ideais humanitários, que tinham a igualdade social
como objectivo último e potencialmente atingível. Embora não seja intelec-
tualmente necessário considerar que uma sociedade igualitária seja desti-
tuída de conflitos, é certo que é mais simples e, sobretudo, mais securi-
zante,69 considerar que a agressão manifestada na exploração do homem
pelo homem é produto de condições culturais e económicas e não da pró-
pria natureza do homem. Por outro lado, admitir que as mostruosidades
nazis são consequência da nossa biologia, que não pode ser negada, e não da
«maldade» que, essa, pode ser censurada e regulamentada, é admitir, de
alguma forma, que o nazismo é um fenómeno «natural» e não uma expres-
são pura do «mal». Nesse sentido, era difícil aceitar a tese de Lorenz.
Além disso, dado que a agressão se encontra estreitamente ligada à forma-
ção de hierarquias de dominância (isto é, a desigualdades sociais), qualquer
teoria que afirmasse que a agressividade é impossível de suprimir, era poten-
cialmente considerada ameaçadora da igualdade social que se afirmava ser o
objectivo a atingir.
Acresce a tudo isto que uma visão que enfatiza o carácter inato da agres-
são, se contrapõe naturalmente a uma concepção empirista do homem. O
leitor recordará que os inícios da Psicologia e da Antropologia americanas
enfatizavam – quase ao absurdo – a importância dos factores do ambiente.
Nomeadamente, John Watson e Margaret Mead apresentaram visões do
Homem em que o meio era todo-poderoso. Esta maior importância do
meio era ligada, quer em Watson quer em Mead, à possibilidade de mudança
e, portanto, de libertação relativamente às imposições da cultura: se o homem
e a mulher eram produtos de um meio, cada escolha era, potencialmente
arbitrária, podendo o nosso livre-arbítrio exercer-se continuamente.
Assim, os autores americanos – as estrelas da ciência – ligaram sempre
liberdade e ambientalismo. Por exemplo, Ashley Montagu, um antropólogo
influente nos Estados Unidos, afirmava que o homem era uma espécie desti-
69
Trata-se de um típico «erro fundamental de atribuição», que será discutido mais abaixo.

164
tuída de instintos; a mesma ideia está por detrás de várias concepções empi-
ristas do comportamento – Watson e Skinner, por exemplo – e recente-
mente, Marshall Sahlins afirmou que qualquer explicação biológica do com-
portamento humano está condenada ao fracasso).70 Por conseguinte, tam-
bém aí a mensagem de Lorenz encontrou oposição violenta.
Neste contexto, é compreensível que uma grande parte dos académicos
tenha considerado como projecto importante mostrar que a agressão era
dependente da aprendizagem. Claro que a demonstração de efeitos de
aprendizagem não refuta, de nenhuma maneira, a mensagem de Lorenz: ele
próprio procurava maneiras de, através da educação, recanalizar a agressão
para actividades mais produtivas. Mas é igualmente típico dos debates inte-
lectuais modificar muito consideravelmente a posição dos adversários, tor-
nando-a mais simples e até caricatural.
Assim, grande parte do debate sobre a questão da agressividade humana
passou pela demonstração de efeitos inatos e de efeitos de aprendizagem –
isso mostraria que a agressão é aprendida e não inata.
Pode prontamente questionar-se como se pode aprender a fazer uma coisa
para a qual não se tem qualquer disposição biológica. Por mais motivados
que estejamos para o fazer – no caso de afogamento, por exemplo – nunca
poderemos aprender a respirar debaixo de água, porque isso não está, sim-
plesmente, no plano do nosso organismo. Enquanto que podemos, facil-
mente, aprender a andar mais depressa ou mais devagar, porque se trata de
modulações do ambiente sobre programas genéticos que fazem parte do nosso
plano comportamental. De modo que a ideia de refutar o carácter inato da
agressão através de experiências que mostram que existem factores de apren-
dizagem é ingénua, maniqueísta e reveladora de um pensamento bipolar
simplificado: por essa ordem de ideias, o facto de podermos aprender a dis-
tinguir novas formas implicaria que a visão é aprendida.
Mas, ingénuo embora, o tema de saber se a nossa espécie é intrinsecamente
boa ou má, independentemente de não ter resposta científica, merece ser
aqui tratado. Procuraremos não «classificá-la» mas apenas mostrar como fun-
ciona. Se o leitor quiser fazer juízos de valor poderá fazê-lo em termos mais
informados.

70
Veremos adiante, e já vimos no capítulo anterior, que partilhamos essa convicção: é impos-
sível explicar o comportamento humano apenas em termos biológicos. Mas isso não significa
que devamos cair no maniqueísmo de negar, cega e estupidamente, a importância dos factores
biológicos no nosso comportamento. Enquanto deixarmos que aquilo que pretendemos que
ocorra –«wishful thinking»– determine a nossa visão da natureza humana, nada faremos para nos
confrontar com o que somos, de facto. A nossa espécie é capaz da maior atrocidade e do maior
altruísmo. Temos de compreender como e não limitar-nos, puerilmente, a negar o que não que-
remos ver.

165
Por causa do debate sobre a agressão «inata-aprendida» dispomos actual-
mente de muitos dados sobre esses dois temas. O que o conjunto das inves-
tigações mostrou é que a agressão parece, efectivamente, uma propriedade
universal do comportamento humano, mas que pode, até certo ponto, ser
modificada pelo ambiente. Daremos atenção a alguns estudos represen-
tativos.

Os «animais»

O carácter endógeno da agressão

Falar de «animais» em contraposição com o homem não faz qualquer sen-


tido, dado que a diferença entre, por exemplo, um ouriço do mar e um cão é
muito maior do que a existente entre um cão e um humano. Por isso é
impossível dizer o que se passa «nos animais». Contudo, em muitos casos, a
agressão parece efectivamente ser auto-motivada. São frequentes os casos
em que os animais aprendem tarefas complicadas tendo como único reforço
a oportunidade de mostrar comportamento de ataque. Há inúmeros
exemplos. Com peixes é frequente que os animais aprendam tarefas compli-
cadas (por exemplo, morder uma vara, ou carregar num disco com a cabeça,
o que se passa com Gasterosteus aculeatus; ou percorrer um labirinto, o que se
passa com Microspathodon chrisurus) para terem acesso a um compartimento
de onde podem ameaçar um conspecífico; exactamente o mesmo efeito se
obtém com murganhos. Por exemplo, se colocarmos dois murganhos num
compartimento dividido por um separador transparente (um vidro), os mur-
ganhos passarão a maior parte do tempo a tentar chegar ao outro lado. Isto
ocorre ainda que se introduzam objectos novos no compartimento, normal-
mente polarizadores da atenção. Da mesma forma, os murganhos aprendem
muito depressa em que sítio podem encontrar outros murganhos para os ir
combater. O mesmo se passa em certas aves, que procuram o seu reflexo em
espelhos para ir fazer exibições agressivas.71
Mesmo a afirmação de Lorenz, de que a agressividade vai aumentado por
acumulação interna parece verificar-se em vários casos, embora se refute
noutros. Por exemplo, os murganhos ficam efectivamente mais agressivos

71
O reconhecimento nos espelhos ocorre em muito poucos animais, e, aparentemente, apenas
nos mais encefalizados.

166
quando em isolamento, chegando a atacar objectos completamente inade-
quados. No já referido Microspathodon chrysurus, os animais aprendem espon-
taneamente a levar fragmentos de alimento para a superfície, atacando-os
enquanto se afundam na coluna de água (o que não fará se não estiver iso-
lado); o esgana-gata (Gasterosteus aculeatus) reage, quando isolado, a qualquer
apresentação de estímulos vermelhos (por exemplo, uma camioneta verme-
lha avistada a partir da janela, um fragmento de cera vermelha), mas em con-
dições naturais é mais selectivo. Refira-se ainda que em várias espécies, os
animais em cativeiro atacam partes do seu próprio corpo (sobretudo a
cauda); isto ocorre com mamíferos e galináceos. Contudo, com outras espé-
cies (os ciclídeos (peixes tropicais) Haplochromis burtoni e Pelmatochromis kri-
bensis, por exemplo), a agressividade decai durante o isolamento, dado que é
primordialmente provocada por hormonas provenientes de conspecíficos.
Ou seja, em alguns casos há acumulação interna e em outros não.72
Estes exemplos, que poderiam ser multiplicados, ilustram claramente que
vários animais têm uma apetência por situações em que podem exibir com-
portamento agressivo.73 Além de auto-motivada, a agressão parece ser endó-
gena e independente da aprendizagem em muitos casos, dado que, sem
qualquer experiência de agressão, o animal a exibe espontaneamente. Isso
verifica-se em mamíferos criados em total isolamento relativamente a cons-
pecíficos (por exemplo, cães, gatos, manguços) e na nossa espécie (estudos de

72
O que se passa é que os sistemas motivacionais funcionam de forma diferente. Lorenz
defendia que a motivação funcionava sempre por acumulação interna, mas isso não é efectiva-
mente assim: em alguns casos sim, e noutros não. Isto ocorre porque há sistemas motivacionais
de muitos tipos. Aos alunos mais interessados, chamo a atenção para o facto de o termos «moti-
vação» ser um conceito muito geral, em que cabem todos os sistemas internos que causam flutu-
ações na desencadeabilidade de comportamentos, e que, portanto, não é de estranhar que a
palavra «motivação» recubra casos muito diferentes. Referindo-me mais especificamente às dife-
renças entre os peixes referidos, tem de se compreender que Microspathodon, um pomacentrídeo
fortemente territorial, tem necessidade de defender o seu territótio de quase todos os agressores,
pelo que é sempre agressivo e faz sentido evolutivo que tenha uma forte apetência pela agressão.
Já os ciclídeos tendem a apenas ser territoriais e agressivos na altura do acasalamento, o que faz
que o processo agressivo apenas esteja activado em determinadas alturas do ano. Nomeada-
mente, o nível hormonal tem de crescer progressivamente e, ao que parece, é desencadeado pela
presença de outros ciclídeos nas proximidades.
73
O leitor crítico não deixará de pensar que nenhum animal aprende tarefas complicadas
tendo como reforço uma luta em que é agredido por outro. Isso é efectivamente verdade: o
animal aprende, pelo contrário, a fugir do local em que será agredido nessas condições. O efeito
só se verifica se o animal ganhar a luta, ou se, em qualquer caso, não for magoado. Quando é
magoado o que acontece é que se verifica uma sobreposição entre a tendência para procurar a
luta e o medo de ser magoado; se o animal ganhar sempre, procura a luta sem qualquer hesi-
tação; se perder sempre, foge sem qualquer hesitação. Trata-se, pois, de duas motivações dife-
rentes.

167
Eibl-Eibesfeldt com surdos mudos). Além disso, os padrões de agressão são
típicos da espécie: a cada espécie corresponde um conjunto de desencadea-
dores e de padrões de acção agressivos, com pequeníssimas diferenças inter-
-individuais (trata-se dos mesmos padrões motores, que correspondem, pro-
vavelmente, a circuitos neurais típicos da espécie). Particularmente na nossa
espécie, reconhecemos, espontaneamente (e em todas as culturas estudadas)
a raiva – se se preferir a tendência para a agressão.
Embora, que eu saiba, não haja estudos sobre a arrogância parece-me tra-
tar-se de um desencadeador de agressão também. A arrogância é uma forma
não verbal de fazer passar a ideia de que se é mais importante do que a outra
pessoa; pode ser acompanhado de expressões faciais particulares (olhar de
cima e de lado, comissuras dos lábios baixadas) e com inflexões verbais espe-
cíficas, também.
Refira-se ainda a existência de desencadeadores particulares do compor-
tamento agressivo. Um dos mais importantes é a dor, que corresponde,
geralmente, a uma agressão; outro, nos animais territoriais, é a intrusão no
território, o que se verifica em inúmeras espécies estudadas; mais geral-
mente, e como já foi dito, os casos de competição por recursos importantes
(durante a estação reprodutiva, por exemplo) conduzem à agressão; também
os comportamentos de ameaça podem desencadear agressão.
Pode, portanto, afirmar-se com segurança que a agressão corresponde a
uma motivação autónoma, inata (no sentido de que se manifesta em todos
os animais estudados independentemente de aprendizagem) e que se traduz
por comportamentos típicos da espécie.

A nossa espécie

Consideremos agora, com mais detalhe, a nossa espécie. Afirmámos não


ser possível compreender o nosso comportamento agressivo apenas em ter-
mos biológicos. Consideremos mais detalhadamente a questão.

A agressão como constituinte biológico

A agressão é causada internamente: há sistemas neurais responsáveis pelo


controlo da agressão (entre outros, o córtex lateral, a amígdala e o hipotá-
lamo) como se pode verificar por estimulação directa dessas zonas, e há,
também, comportamentos particulares relacionados com a agressão. Todas
as culturas mostram formas semelhantes de agressão (mais do que uma

168
expressão facial, posições corporais, pilo-erecção, tons de voz, talvez exibi-
ção fálica). Tal como em outras espécies, há desencadeadores de agressão
(por exemplo, as expressões referidas antes), entre as quais a dor (refira-se a
famosa experiência de Berkowitz, em que se mostra que um grupo de sujei-
tos que tiveram uma mão em água fria se sente mais irritado do que outro
que a teve em água tépida), os insultos (vários exemplos, entre os quais os
trabalhos de Hokanson, referidos abaixo), e também a invasão territorial.74
Parece, então, poder-se concluir que a agressão na nossa espécie apresenta
muitas semelhanças com o que ocorre em outras espécies. E quanto à hipó-
tese da acumulação endógena (Lorenz)? Dada a dificuldade em isolar pes-
soas, não é fácil saber se a agressão cresce em isolamento, e mesmo a nossa
experiência pessoal raramente nos pode ajudar, dado que é raríssimo encon-
trarmo-nos em isolamento completo durante muito tempo. Contudo, a
hipótese de que a motivação agressiva se atenua depois da agressão parece
ser verdadeira. Por exemplo, Hokanson, numa série de trabalhos realizados
nos anos 60, provocou irritação em sujeitos experimentais quer através de
choques eléctricos quer através de insultos e posições agressivas em geral.
Verificou que na sequência dos choques ou dos insultos a pressão sanguínea
dos sujeitos aumentava. Verificou, depois, que se os sujeitos estivessem con-
vencidos de que davam choques eléctricos ao experimentador, a sua pressão
sanguínea diminuía rapidamente.75
Por vezes, na literatura desta área, encontram-se refutações da ideia de que
a manifestação da agressão diminui a motivação agressiva (por exemplo,
Myers, 1993)76 baseadas no facto de se saber que os espectadores de combates
desportivos ou simplesmente futebol americano ou hóquei no gelo ficam
mais agressivos depois do jogo do que antes. Mas isto implica esquecer duas
coisas: que num espectáculo desse género há efeitos de multidão e que é
diferente assistir a agressões e participar nelas. A questão pode simplesmente
ser reformulada em termos de comportamento sexual. Depois de fazer sexo
os homens têm tendência para procurar menos fêmeas. Mas depois de assis-

74
Há vários trabalhos que mostram esta relação (ver revisões em, por exemplo, Eibl-Eibes-
feldt), mas não resisto a contar uma ocorrência em particular: enquanto jovem, Napoleão, estu-
dante na Academia Militar, construiu uma paliçada em torno de um espaço que lhe estava desti-
nado; um dia alguém entrou nesse espaço sem lhe pedir licença, e o futuro tirano escorraçou o
intruso à sachada.
75
Há, contudo, uma diferença importante entre machos e fêmeas: enquanto que se os machos
tiverem de reforçar o experimentador que os insultou a sua pressão sanguínea não desce, a das
fêmeas desce, de facto; também nas fêmeas a pressão sanguínea desce menos que a dos machos
depois da retaliação com choques eléctricos. Os dados foram obtidos nos Estados Unidos, mas
mereceriam ser replicados em outros países.
76
Social Psychology, 4th edition, Mcgraw-Hill.

169
tirem a exibições de comportamento sexual, a sua tendência para procurar
relações sexuais aumenta.
Por conseguinte, e em conclusão, pode afirmar-se que a agressão humana
corresponde, de facto, a uma motivação autónoma e típica da espécie, e que
não tem de ser aprendida.
Até que ponto é que pode ser alterada? Dado que a punição, em princípio,
provoca mais agressão, disporemos de meios para minorar a agressão?

Efeitos de aprendizagem – A formação das hierarquias de dominância


assenta num efeito de aprendizagem: como já foi dito, os animais que ven-
cem um confronto têm mais tendência para o reiniciar do que os animais
que o perderam, que tendem a evitá-lo. Por conseguinte, a funcionalidade
da agressão implica a existência de processos de aprendizagem; por exem-
plo, numa disputa territorial, um macho que vença outro passa a ter pouca
probabilidade de ser confrontado pelo vencido, porque este sabe que será
derrotado e evitará, em consequência, o confronto.
Assim, não deixa de ser irónico que os críticos de uma concepção bioló-
gica da agressão tenham afirmado (implícita ou explicitamente) que a
demonstração de efeitos de aprendizagem mostraria que a agressão não é
inata; como já deve ser evidente para o leitor, o facto de o conhecimento a
priori ser completado e mesmo modificado por informação do ambiente não
faz que o conhecimento a priori não exista, tanto mais que as regras de
aprendizagem são, elas próprias, formas de conhecimento a priori77. Con-
tudo, apesar de a demonstração de ajustamentos da agressão pela aprendiza-
gem e em geral por efeitos do ambiente não demonstrar que a agressão é um
fenómeno cultural, é muito importante no sentido de que nos pode ajudar a
controlar a agressividade através da educação.
Os estudos de Bandura sobre a modelagem da agressividade em crianças
são suficientemente conhecidos para que eu os possa referir aqui com muita
brevidade: é suficiente dizer que crianças que tiveram modelos de interacção
agressiva com bonecos têm, numa situação de frustração, muito maior pro-
babilidade de interagir agressivamente com bonecos; além disso, utilizam o
mesmo tipo de comportamentos e de linguagem que os modelos. Este fenó-
meno não se limita ao laboratório: por exemplo, os filhos de pais que lhes
batiam têm quatro vezes mais probabilidade de bater nos filhos do que os
filhos de pais que não o faziam (Kaufman e Zigler, 1987). Por outro lado, e
77
Imagine o leitor uma analogia com um computador: ele só «aprenderá» se for programado
para aprender determinadas tarefas; se não tiver sido para isso programado, nada aprenderá. Da
mesma forma, os organismos só aprenderão se para isso tiverem sido «programados», e essa
«programação», na enorme maioria dos casos, ocorreu durante a evolução. Isso ocorre mesmo
na nossa espécie.

170
como já referimos, assistir a desportos violentos (boxe ou hóquei no gelo,
por exemplo) parece aumentar a agressividade. Os resultados sobre os com-
bates de boxe são particularmente reveladores. A seguir a um combate bas-
tante divulgado entre dois boxeurs com cores de pele diferentes verifica-se
um aumento de agressividade nas ruas significativo contra indivíduos seme-
lhantes ao perdedor (ver muitos mais exemplos em Cialdini).
Este tipo de fenómenos leva a perguntar se os media não influenciarão o
comportamento dos seus consumidores. Há muitos estudos sobre o assunto,
e os resultados são relativamente pouco claros: geralmente indicam que
existe um efeito facilitador da agressão, muito claro em laboratório mas
muito mais ténue em condições reais. Certamente que a própria influência
correctora da sociedade real introduzirá reajustamentos: uma pessoa pode
tender a copiar modelos televisivos, mas há que contar com o facto de haver,
também, modelos da vida real, e correcções sociais ao comportamento
agressivo (geralmente mal visto). Ou seja, este tipo de estudos é difícil de
conduzir, porque há sempre grande número de variáveis em jogo e, particu-
larmente, há demasiados modelos sociais reais que não podemos controlar.
De modo que, em certa medida, dados grosseiros como o aumento de vio-
lência subsequente ao aparecimento da televisão devem ser vistos com cau-
tela. Em muitos casos se nota essa relação; mas a causa pode ser não a mode-
lagem da agressão mas outra (por exemplo, o aumento de expectativas eco-
nómicas criado pela apresentação sistemática de figuras de identificação soci-
almente favorecidas).
Apesar de existirem efeitos de modelagem na agressão, é provável que a
principal causa do actual aumento de agressividade nas grandes cidades seja
mais sócio-ecológica do que a influência de modelos. A superpopulação,
com o aumento de conflitos entre as pessoas, o aumento das cidades que
torna impossível o reconhecimento individual e aumenta o cansaço e o
enervamento, a acumulação de populações de muito magros recursos ao
lado de populações socialmente favorecidas nas grandes cidades, tudo isso
me parece ter maior importância do que a televisão ou os jornais.78

78
Isto não quer dizer que a influência da televisão não seja, geralmente má, mas apenas que os
seus males não são só a violência. Basta que os alunos pensem na quantidade de tempo que se
perde a ver maus programas na televisão e na dinâmica de não-comunicação que ela cria para
compreenderem o que digo. Aproveito para citar uma experiência feita há alguns anos na então
República Federal da Alemanha: uma família aceitou prescindir da televisão durante um mês. No
início, os membros não sabiam bem o que fazer; depois geraram-se situações de carência, que
levaram a grande agressividade intra-familiar.

171
A agressão humana

O que vimos até aqui sugere que a agressão animal e humana não são fun-
damentalmente diferentes. Os efeitos da modelagem e da influência de assis-
tir a violência têm contrapartidas em outros animais (numa colónia de ratos
ou de chimpanzés, por exemplo, o comportamento agressivo de um mem-
bro pode desencadear «vagas de agressão» generalizadas, por efeito de activa-
ção motivacional). O que é que difere então?
O que pretenderei mostrar é que há factores psicológicos que alteram de
forma significativa a agressão que, embora permaneça um grupo motivacio-
nal fundamentalmente semelhante ao dos outros mamíferos, apresenta dife-
renças bastante grandes na medida em que os seus desencadeadores e sobre-
tudo os seus alvos podem ser muito modulados em termos culturais.
Um primeiro aspecto a considerar tem que ver com estudos de atribuição.
Alguns trabalhos demonstraram que a agressividade é fortemente modulada
por efeitos puramente cognitivos. Assim, Geen, Pigg e Ragosnik (1972) fize-
ram que os seus sujeitos experimentais lessem uma história sexualmente
excitante e, ao mesmo tempo, recebessem choques eléctricos. Formaram-se
dois grupos: a um era feito crer que sentiam «excitação sexual» e ao outro
«excitação agressiva». Avaliando a tendência para administrar choques eléc-
tricos a outras pessoas, verificou-se que o grupo convencido de estar «agres-
sivamente excitado» dava choques mais altos do que o convencido de estar
«sexualmente excitado».79
Estes resultados chamam a atenção para a potencial alteração da funciona-
lidade de uma resposta através da introdução de factores «psicológicos».80
Esta alteração da funcionalidade da resposta agressiva pode ser considerada
responsável pela existência dos fenómenos mais específicos da agressão na
nossa espécie. Refiro-me à guerra e à xenofobia e ao genocídio.

79
O que provavelmente ocorre é que, depois de se ter dado o estímulo desencadeador, o expe-
rimentador, ao dizer ao sujeito qual das motivações foi activada, chama a atenção do sujeito para
as recordações que são congruentes com essa chamada de atenção. Van Dillen e Koole, 2007,
reviram casos que mostram que quando se ocupa a memória com uma tarefa distractora depois
de mostrar fotografias emocionalmente estimulantes, o efeito emocional, medido numa rating
scale, diminui significativamente. Ver revisão em Eysenk & Keane, 7ª edição.
80
Note-se que esta afirmação não deve ser confundida com a afirmação de que o comporta-
mento humano tem mais «liberdade» ou «autonomia» do que o dos animais. Tudo quanto aqui
se mostra é que há formas de manipulação comportamental que são inexistentes nos outros ani-
mais. Usando uma linguagem freudiana, o que aqui parece estar implicado é uma forma de
influência verbal inconsciente; precisamente por ser inconsciente, nada tem que ver com «liber-
dade».

172
Guerra, xenofobia e genocídio: Paralelos animais

Contrariamente ao que se poderia pensar, fenómenos semelhantes à


guerra e à xenofobia ocorrem de facto em animais. «Xenofobia» quer sim-
plesmente dizer medo de estranhos e em vários animais ocorrem fenómenos
semelhantes. Por exemplo, muitos animais sociais (por exemplo, ratazanas)
reagem com agressão intensa à intrusão de outros animais na sua colónia; se
o intruso não fugir será agredido até à morte. Um fenómeno que tem sido
associado a este é a rejeição de animais «diferentes» (ver os vários trabalhos
de Eibl-Eibesfeldt sobre o assunto, com especial referência aos primatas,
embora o efeito se encontre em outras espécies). Sabe-se que vários animais
reagem com medo e agressividade a conspecíficos com modificações na apa-
rência. Por exemplo, Jane Goodall verificou, entre os chimpanzés, que os
animais semi-paralisados (seqüelas graves da poliomielite) evocam primeiro
medo e evitamento; mais tarde passam a ser tolerados, mas não há interac-
ção social com eles. Contudo, está-se aqui perante uma situação diferente da
anterior: os animais dirigem a sua agressão a membros atípicos do próprio
grupo, enquanto que na verdadeira xenofobia a agressão é dirigida a mem-
bros de fora do grupo – por exemplo, entre os Bosquímanos !Kung «estran-
geiro» e «mau» exprimem-se pela mesma palavra («dole»). Estes dados sobre
os chimpamzés evocam mais a marginalização que, na nossa espécie, se veri-
fica a mambros com comportamento ou aspecto físico muito desviante (o
leitor pode recordar a condenação de homossexuais ou, mais próximo ainda,
a tendência para apresentar «monstros», em que se baseiam os vários filmes
sobre o «homem-elefante» victoriano).
A guerra, enquanto movimento de um grupo contra outro, não é com-
pletamente desconhecida nos animais. Por exemplo, entre colónias de ratos
que, por qualquer razão, deixem de estar separados, pode ocorrer agressão
forte; está-se aqui perante um fenómeno de agressão de grupo, e não pro-
priamente de um movimento organizado como na nossa espécie. Bastante
mais semelhante é o que se passa nos chimpanzés, que podem fazer expedi-
ções contra outros grupos. E os insectos sociais podem apresentar agressão
que seríamos tentados a equiparar com a guerra: em África há verdadeiros
«raids» de formigas guerreiras contra colónias de térmitas, ou outras formi-
gas, que têm simplesmente a função de aumentar os recursos, quer por ali-
mentação directa das colónias atacadas, quer por aniquilação de competido-
res pelos mesmos recursos – certas formigas são agressivas relativamente a
tudo o que mexe no seu espaço vital.
Mais, e agora na nossa espécie, em muitos dos casos em que existem con-
flitos organizados, há uma relação clara entre a agressão e a competição por

173
um recurso, ainda que os responsáveis pela guerra não tenham disso consci-
ência. Um exemplo muito interessante deste fenómeno é dado pelos índios
Mundurucu, do Brasil (ver análise dos custos e ganhos da guerra nos Mun-
durucu em Durham, 1991). Estes índios são caçadores de cabeças, e dão
como justificação dos seus ataques o facto de que aqueles que matam são ini-
migos; o guerreiro com maior número de mortos é considerado sagrado e
goza de um enorme prestígio (embora de nenhum poder). É importante
compreender que os próprios Mundurucu bão referem que a guerra tenha
qualquer função na obtenção dos recursos: a guerra e a valentia são um
valor intrínseco nesta antiga sociedade amazónica, extremamente violenta e
aguerrida. Os guerreiros que trazem cabeças dos adverdsários recebem um
título aparentemente estranho: mãe do pecari. Ora o pecari é um mamífero,
que os Mundurucu caçam e de que dependem em forte medida para obten-
ção da carne. Ocorre que não são apenas os Mundurucu a caçar o pecari,
mas outras tribus igualmente. Na medida em que conseguirem derrotar
mais tribos e obrigá-las à sujeição, ficam, naturalmente, mais recursos para
os Mundurucu. Significa isto que, mesmo sem o conhecimento explícito de
que a guerra se faz para obtenção de recursos, os Mundurucu compreendem
que essa é uma das suas consequências: ao matar membros do outro grupo
diminuíam a competição pelos pecaris. Estes exemplos podem ser repetidos,
mesmo modernamente. Por exemplo, a guerra entre os Estados Unidos e o
Iraque – a «Guerra do Golfo» – foi, sobretudo, uma guerra por recursos,
neste caso o petróleo do Barhain. No presente, a guerra do Iraque foi um
exemplo de guerra por recursos, embora camuflada ideologicamente.
Em muitos outros casos, as guerras funcionam como extensão do território.
Como vimos mais acima e no capítulo anterior, os territórios são necessários
para que os animais possam recolher uma certa quantidade de alimento de
um determinado espaço. Além disso, tem a função, para os machos, de
garantir um oferecimento de recursos às fêmeas e às crias, de modo que eles
têm vantagem em os aumentar. Mas, e como sempre na Etologia, os animais
não têm qualquer noção dessa função, e o mecanismo etológico que pro-
move esta tendência para aumentar o território é apenas uma motivação
intrínseca. Por exemplo, se colocarmos dois ou três murganhos num espaço
aberto muito grande verificaremos que eles dividem o espaço entre si, recla-
mando territórios muito extensos, mesmo que haja muito alimento disponí-
vel. Mas, à medida em que se vão acrescentando murganhos, os territórios
vão ficando mais pequenos. Chega-se a uma altura em que o sistema territo-
rial se «quebra» e que passamos a observar apenas hierarquias de dominância.
Mas qualquer animal que possa encontrar um espaço que consiga reclamar
só para si – isto é, que consiga eficazmente defender – fá-lo-á. Ou seja, há

174
uma motivação de acrescentamento do território intrínseca, que é perse-
guida independentemente da necessidade ou não de recursos.
Em todos estes casos, encontramos claramente precursores animais do
comportamento agressivo humano: ataque a estranhos, guerras por recur-
sos, agressão por extensão do território.

Especificidade humana

Outras guerras e manifestações de agressão são mais estranhas do ponto de


vista estritamente etológico. Considere-se a recente guerra na ex-Iugoslá-
via. Já antes da explosão de violência causada pelo vazio de autoridade cri-
ado com a crise do bloco de Leste, os vários grupos se odiavam mutua-
mente. E, aparentemente, não houve particulares causas «materiais» para a
guerra (pelo menos não para uma guerra tão sangrenta). Em parte o mesmo
se passou com a Segunda Guerra Mundial, em que um «povo eleito» chaci-
nou outro; e várias das guerras de religião (passadas e recentes, como o caso
do ataque às Torres Gémeas e ao Pentágono) não têm necessariamente como
determinantes principais questões de competição. Essas questões podem
estar presentes, e contribuir para o fenómeno – na realidade é sempre possí-
vel fazer uma leitura principalmente sócio-económica da actual guerra con-
tra o terrorismo; mas não parecem ser a razão principal, pelo menos como
motivadores dos seus intervenientes. Tomando ainda como exemplo o ter-
rorismo, do ponto de vista animal seria impossível encontrar genes de suicí-
dio contra estranhos em favor dos semelhantes. Como vimos, isso corres-
ponderia a um pensamento de «selecção de grupo» que, pura e simples-
mente, não se encontra presente no processo de selecção natural.
Para tentar compreender o que se passa, é necessário considerar mecanis-
mos psicológicos, e particularmente a xenofobia, bem estudados pela Psico-
logia Social.

Os dados da Psicologia Social


Formação espontânea de grupos e agressão – Independentemente de haver pro-
cessos semelhantes nos outros animais, uma das experiências mais pertur-
bantes da Psicologia mostra que desde que se forme um qualquer grupo que
divida as pessoas, os membros de dentro do grupo tendem a considerar-se
como diferentes do outro grupo.
Recordemos aqui, brevemente, um dos resultados mais perturbantes da
Psicologia. Aparentemente, desde que se forme um qualquer grupo que
divida as pessoas, os membros de dentro do grupo tendem a considerar-se
como diferentes do outro grupo. Por exemplo, Tajfel (ver 1981, 1982, para

175
uma revisão destes estudos), depois de mostrar um quadro de Klee e outro
de Kandinsky a finalistas do liceu e a primeiranistas universitários, pedia-
-lhes que exprimissem a sua preferência. Como os sujeitos não conheciam
nenhum dos quadros nem, presumivalmente, os estilos dos dois pintores, a
cada jovem era afirmado, ao acaso, que pertencia a um de dois grupos:
grupo Klee ou grupo Kandinsky. Esta comunicação era feita em privado de
forma que cada sujeito experimental nunca chegava a saber dos restantes
sujeitos quem pertencia a que grupo. Pedia-se-lhes depois que distribuissem
uma certa quantidade de dinheiro pelos membros de cada grupo (que,
repita-se, os jovens não sabiam quem eram).
Verificou-se que, mesmo com base num critérios tão abstruso, os adoles-
centes tendiam a dar mais dinheiro aos membros do seu próprio grupo (em
15 pontos possíveis, tendiam a dar 9 ou 10 ao seu grupo e 5 ou 6 ao outro).
Ainda que os grupos fossem determinados apenas por um processo ostensi-
vamente aleatório (os indivíduos eram atribuídos a um ou a outro grupo
pelo lançamento de uma moeda) se verificavam efeitos de discriminação
entre grupos, embora mais ténues. A formação de grupos é, portanto,
espontânea. Consideremos agora outro estudo impressionante.
Sherif et al. (1966) realizou um estudo com 44 adolescentes que não se
conheciam previamente e seguiam para o mesmo campo de férias em dois
autocarros diferentes, cada um com 22 rapazes. Os seus barracões ficavam
distantes um do outro cerca de 1km. Durante a primeira semana, os dois
grupos não sabiam da existência do outro. Durante este período cada grupo
estabeleceu uma identidade própria bem marcada, assumindo cada grupo
um nome e uma bandeira. No fim da primeira semana, os dois grupos
encontraram-se, «por acaso», no campo de basebol que cada grupo julgava
ser exclusivamente seu: imediatamente houve reacções de exclusão («o que é
que eles estão a fazer no nosso campo?»). A gestão do acampamento propôs a
realização de um torneio composto por vários jogos. O grupo vencedor do
conjunto dos jogos ganhava todos os prémios. Progressiva mas rapidamente
os dois grupos tornaram-se inimigos: começaram por se insultar mutua-
mente durante as competições; passou-se depois para conflitos mais violen-
tos (assalto às cabanas do outro grupo com destruição de mobílias, queima
dos símbolos do outro grupo, e presença visível de ódio). Cada grupo se
descrevia de forma elogiosa e depreciava brutalmente o outro. Até aqui o
leitor recordará fatalmente o Lord of the Flies, de William Golding. Os expe-
rimentadores intervieram neste ponto: foi necessária a cooperação dos dois
grupos para que se consertasse a bomba que tirava água da mina, tiveram de
juntar dinheiro para alugar um filme e finalmente puxaram juntos um
camião atolado. Os grupos, progressivamente, juntaram-se, desenvolveram-

176
-se amizades inter-grupo, e acabaram por decidir viajar para casa num só
autocarro; os lugares aí espontaneamente ocupados não revelavam qualquer
separação entre grupos, e o grupo que tinha dinheiro (o que tinha ganho o
torneio) preferiu comprar ovomaltine para todos os rapazes do que comprar
coisas melhores apenas para os seus membros.
O processo descrito é decomponível em várias partes. Primeiro que tudo
verifica-se a criação de um grupo identitário, com nome e símbolo. Segue-
-se a distinção clara entre grupo e não-grupo e um fenómeno etológico, a
agressão à invasão territorial: ambos os grupos estavam convencidos de que
o campo de basebol era «seu»; ao encontrarem o outro grupo nesse campo
verificou-se imedatamente reacções agressivas. Mas a evolução subsequente
do conflito mistura princípios puramente humanos e princípios etológicos.
Vejamos quais foram. Um primeiro fenómeno tem que ver com o facto de o
fortalecimento da auto-estima de um grupo estar relacionada com a tendên-
cia para desvalorizar os outros grupos; como vimos, ambos os grupos desen-
volveram uma identidade forte. Um segundo aspecto tem que ver com a
criação de uma situação de rivalidade (o torneio), implicando insultos
(depois de se insultar alguém, ou de efectivamente lhe causar dor, tende-se a
desvalorizar os objectos da nossa agressão81); além disso, criou-se uma situa-
ção de frustração para um dos grupos (ter perdido o torneio); sabe-se que a
desvalorização de grupos (tal como a agressão) é potenciada pela frustração
(Miller e Bugelski, 1948 mostraram que, em americanos, os estereótipos
contra japoneses e mexicanos aumentam com uma frustração não com eles
relacionada). A partir daí, a espiral de agressão continua, em circuito
fechado.
Note-se que os processos de reconciliação só foram possíveis porque havia
recursos reais, que impediam que o pano de fundo fosse de frustração e que
fomentavam a cooperação (havia dinheiro, mas apenas se os dois grupos se
juntassem para alugar o filme, foi possível fazer funcionar o poço através da
cooperação e o esforço conjunto de desbloquear a camioneta resultou; se as
coisa não se tivessem passado assim, o resultado teria sido outro).
Começa, pois, aqui a entrever-se uma explicação para as guerras pura-
mente «étnicas». Para se compreenderem, é necessário juntar mais informa-
ções.

81
Isto mesmo se verificou nas famosas experiências de Milgram sobre a obediência, que mos-
traram que desde que uma ordem que pode ter consequências fatais em outras pessoas vier de
uma fonte de autoridade respeitada ela será cumprida (ver Milgram 1963, e uma boa revisão em
Sabini, 1995); em geral, quanto mais agressivos somos relativamente a alguém mais tendemos a
desumanizar esse alguém. Eibl-Eibesfeldt (1989) afirma que esse tipo de fenómeno se encontra
em todas as culturas por ele estudadas.

177
Criação de estereótipos e simplificação do mundo cognitivo – Tendemos a simpli-
ficar o mundo para o podermos compreender: depois de termos formado
grupos, tendemos a homogeneizá-lo artificialmente (quem não ouviu já
falar de «estrangeiros» como se fossem um grupo homogéneo?). Usamos este
tipo de generalizações sobretudo quando estamos cansados ou com pouco
tempo para pensar, como nas situações de excitação, frequentemente encon-
tradas quando se formam grupos de muitas pessoas. Por outro lado, essas
generalizações não são geralmente correctas. Imagine-se a seguinte experi-
ência (Rothbart et al., 1978): mostra-se a dois grupos fotografias de 50
homens, sendo assinalada a sua altura; as fotografias são iguais, excepto em
10 dessas fotografias. Num dos grupos, essas dez fotografias representam
homens com ligeiramente mais do que 1,8m; no outro, representam homens
de bastante mais de 1,8m. Pergunta-se aos sujeitos quantos homens tinham
mais de 1,8m. Embora se pudesse esperar que ambos os grupos respon-
dessem de forma equivalente, o grupo que viu as fotografias que assinalavam
10 homens com muito mais de 1,8m, estimavam um número maior; o
mesmo ocorre relativamente a número de crimes: os grupos a que eram
apresentados grupos de pessoas que tinham cometido crimes violentos esti-
mavam um maior número de criminosos. Daqui se tira que nos lembramos
mais dos casos extremos, e que a nossa generalização é dominada por eles.82

Erro fundamental de atribuição – É, também, sabido que atribuímos o com-


portamento de pessoas que conhecemos mal não a factores situacionais mas
a disposições internas (quer dizer: quando nós ou uma pessoa nossa amiga
fazemos coisas criticáveis, tendemos a achar que esse acto foi o resultado de
pressões externas; mas se for uma pessoa que não conhecemos ou conhece-
mos mal, tendemos a dizer que o seu comportamento criticável resulta do
seu mau carácter).
De modo que tudo se conjura para que os membros dos outros grupos se
tornem em inimigos: tendemos a formar grupos, ainda que arbitrários, sim-
82
Um fenómeno relacionado com este é as chamadas «correlações ilusórias», particularmente
estudado por Hamilton. A experiência de base (Hamilton e Gifford, 1976) foi organizada da
seguinte maneira. Apresentava-se aos sujeitos fotografias de pessoas que se afirmava pertencerem
ao «grupo A» ou ao «grupo B»; havia o dobro dos sujeitos do grupo A do que do grupo B; cada
fotografia era acompanhada por uma declaração, do género «o Manuel, membro do grupo B,
visitou um amigo doente no hospital» ou «Joaquim, membro do grupo B, deitou uma lata de
coca-cola para o chão». Por cada nove declarações positivas, havia quatro declarações negativas,
para ambos os grupos. O que ocorre é que os sujeitos associam o grupo B aos actos negativos. O
que se conclui, independentemente da razão de ser do processo, é que as pessoas tendem a asso-
ciar dois fenómenos apenas na base da sua baixa frequência (e portanto maior distintividade).
Ou seja, generalizam-se características raras a grupos minoritários (ou com representação cogni-
tiva mais fraca).

178
plificamos as suas especificidades, atribuímos-lhes comportamentos salientes
(muitas vezes negativas), e consideramos esse comportamento proveniente
de mau carácter. Quando as situações do ambiente determinam uma situa-
ção de competição por um recurso real, denegrimos o outro grupo e dirigi-
mos para ele as nossas frustrações.

Diminuição da auto-consciência e anonimato – Falta ainda considerar uma


questão suplementar. Refiro-me aos efeitos de grupo. Os efeitos de grupo são
vários, mas interessa-nos aqui, fundamentalmente, um aspecto com que
muita gente está familiarizada. Muitas vezes, quando se assiste a entrevistas a
horríveis assassinos eles parecem sinceramente arrependidos dos crimes que
cometeram. Pessoalmente, recordo sempre um antigo carcereiro de Aus-
chwitz que parecia não conseguir explicar o que se tinha passado e o que
tinha feito. Aparentemente, tratva-se de um homem cordato e simpático,
carregando uma enorme culpa do que tinha feito sem chegar a saber como.
Da mesma forma, a maior parte dos «hooligans» ingleses, que se distinguem
pela sua particular brutalidade e barbarismo, levam vidas normais e perfeita-
mente integradas. No caso dos «hooligans» as explicações geralmente dadas
têm que ver com o abuso de álcool, mas todos sabemos que beber sozinhos
não nos faz sair para rua e ser violentos (em alguns casos, em parte relaciona-
dos com a epilepsia, isso pode efectivamente acontecer). A razão de ser des-
tes fenómenos tem que ver, entre outras, com a questão dos efeitos de
grupo.83
Consideremos um exemplo que redundou em tragédia. Nos anos 60, num
campus universitário americano, um rapaz ameaçou suicidar-se, pendu-
rando-se numa janela; outros estudantes, cá de baixo, gritaram-lhe «Salta!
Salta!). O rapaz saltou efectivamente, e morreu. Parece ao leitor provável
que, se houvesse um só espectador, este tivesse gritado «Salta»? Tomemos
outro exemplo, mais familiar. Imagine o leitor que está, em casa, a ouvir
«dance music», bastante alto. Pode dar-lhe vontade de dançar, e é provável que
acompanhe o ritmo com movimentos do corpo. Mas acha que tomaria as
posições que são correntes nas discotecas que todas as noites se enchem de
gente que, noutros contextos, funciona de maneira completamente normal?
Ou um espectador televisivo solitário de um desafio de futebol teria os com-
portamentos que tem no estádio? Todas as respostas são, evidentemente,
negativas. O que se passará em situação social que não se passa quando as
pessoas se encontram sozinhas?
O efeito é menos bem conhecido do que por vezes se pretende, mas há

83
Um outro efeito importante para explicar o comportamento do carcereiro nazi tem que ver
com a obediência que será tratada noutra secção.

179
bastantes dados que mostram que a «desindividuação» é um factor muitís-
simo importante. Uma das experiências mais impressionantes é de Zim-
bardo. Criou dois grupos de raparigas estudantes universitárias, que se dis-
tinguiam pelo grau de anonimato: o primeiro grupo estava escondido por
uma máscara que cobria o corpo todo e tornava a identificação impossível; o
outro grupo tinha um grande letreiro pendurado ao pescoço, com o nome
em letras bem legíveis. Pedia-se aos membros destes dois grupos para «cor-
rigir» o desempenho de uma rapariga (uma estudante), mediante a adminis-
tração de choques eléctricos (na realidade os sujeitos pensavam que estavam
a dar choques, mas evidentemente que eles não eram administrados). O
grupo encapuçado carregava no botão o dobro do tempo do grupo identifi-
cado. Mais. Quando a rapariga «aprendiz» era evidentemente muito desagra-
dável, o grupo identificado carregava no botão durante mais tempo do que
quando era simpática; mas o grupo disfarçado não mostrou qualquer dife-
rença: a agressão tornou-se indiferenciada.
Há dados do mundo real que confirmam esta ideia: por exemplo, nos
casos de ameaça de suicídio, ocorrem mais «encorajamentos» (do género
«salta») quando o grupo de mirones é grande, quando está mais escuro, e
quando a distância para o suicida é maior.
Mas o anonimato, per se, não explica tudo. Há efeitos sociais de diminui-
ção da auto-consciência, que se processam pela simples presença dos outros
(a presença de outros aumenta o nosso desempenho em tarefas fáceis, mas
diminui-o em tarefas difíceis, aparentemente porque as tarefas difíceis preci-
sam de maior auto-consciência do que as simples, que são quase automáti-
cas). Além de estar com outros, as estimulações fisiológicas intensas (como
música muito ritmada e em volumes muito elevados) criam excitação, que
diminui ainda mais a auto-consciência e torna o organismo mais receptivo a
motivações simples e primitivas, ou simplesmente às solicitações do ambi-
ente. Com a diminuição da auto-consciência vem a diminuição da auto-
-censura; juntamente com o anonimato, vem a falta de censura social. De
modo que os grupos podem chegar a cometer atrocidades perfeitamente
inesperadas.84
Temos, pois, no fundamental, explicada a psicologia individual que está
por detrás das guerras étnicas e religiosas.

84
O leitor pode fazer uma experiência consigo próprio: da próxima vez que estiver excitadís-
simo num jogo de futebol ou numa discoteca, tente olhar para si como se estivesse sozinho, e
tende perceber o que pensaria de si próprio em contexto solitário ou simplesmente de menos
gente e de menos barulho.

180
O controlo da agressão por critérios arbitrários

Considerado deste ponto de vista, a agressão pode ser considerada adapta-


tiva: situações de competição têm, muitas vezes, de ser resolvidas por recur-
so à agressão, como ocorre nos outros animais. Contudo, repita-se que há
elementos do comportamento humano que são totalmente diferentes do
que aquilo que se conhece dos animais. Em primeiro lugar, os estranhos
casos em que se consegue delimitar grupos em termos da pertença a grupos
de preferência estética: embora a tendência para formar grupos possa ser
homóloga85 da que se encontra em muitos outras espécies, os critérios para
formar grupos não têm qualquer correspondência com os dos outros ani-
mais (um grupo animal é, sempre, definido em termos de conhecimento dos
outros membros, enquanto que aqui apenas se dá a informação de que há
dois grupo baseados num critério que, do ponto de vista biológico, é com-
pletamente arbitrário). Ou seja, há tendência para formação de grupos
(comportamento que tem, muito provavelmente, base etológica) e adopção
de quaisquer critérios (por mais abstrusos que sejam e com menos possibili-
dade de ter base biológica que tenham), sendo esses critérios processados
«psicologicamente». Para corroborar esta ideia, vejamos brevemente um
estudo de Zimbardo, que provavelmente os alunos já conhecem. Muito bre-
vemente, simulou-se uma prisão e foi atribuída (ao acaso) a jovens (rapazes)
uma de duas funções: guardas ou prisioneiros. Verificou-se que os guardas
mostraram agressão e os prisioneiros submissão ou contra-ataque; mas
sobretudo, e nas palavras de Zimbardo, foi necessário interromper a experi-
ência ao fim de 6 dias porque

«o que vimos metia medo. Já não era evidente para nós ou para a maior
parte dos sujeitos onde eles acabavam e o papel que desempenhavam começava.
A maioria tinha-se, de facto, transformado em «prisioneiros» ou «guardas»,
e já não conseguiam distinguir claramente a pessoa do papel. (...) Ficámos
horrorizados porque vimos alguns rapazes («guardas») tratar outros rapazes
como se fossem animais absolutamente desprezíveis e ter prazer na crueldade,
enquanto que outros rapazes («prisioneiros») se tornaram servis, «robots»
desumanizados pensando apenas em fugir, na sua sobrevivência individual e
no seu ódio crescente pelos guardas».

Os sujeitos mostraram comportamento de agressão e de submissão (ou


85
Diz-se que dois comportamentos, motivações, etc., são homólogos quando são herdadas de
antepassados comuns; por exemplo, as asas das aves e os nossos braços são homólogos. Diz-se
que são análogos quando as semelhanças não se devem a antepassados comuns, mas a mera adap-
tação convergente; as barbatanas das baleias e dos peixes são, pois, análogas mas não homólogas.

181
contra-ataque), que é semelhante ao de outros animais; o que aqui é dife-
rente das outras espécies é, mais uma vez, o critério usado pelos sujeitos para
estabelecer as diferenças de estatuto («prisioneiro/guarda»): esses critérios
foram, tal como nos estudos de Tajfel, completamente arbitrários. De modo
que estes dois resultados parecem sugerir que as motivações que controlam
o comportamento humano são muito semelhantes às de outros mamíferos,
mas as condições em que se verificam são arbitrariamente estabelecidas. Ou
seja, a «racionalidade» humana exerce um controlo incompleto no compor-
tamento filogeneticamente herdado.86 Mesmo os sujeitos não têm clara-
mente consciência das razões de ser do seu comportamento, dado que as
explicações que tipicamente dão neste tipo de situação é «construído» ad hoc
– nada mais é do que uma justificação a posteriori do comportamento ante-
rior (ver Sá-Nogueira Saraiva, 1998).87

A passagem de controlo das motivações biológicas para a cultura

Concluamos finalmente. O que parece ocorrer, neste caso, é, como


vimos, que a «engenharia» do comportamento agressivo humano não se
altera significativamente em relação aos outros mamíferos: há desencadea-
dores de agressão, como a invasão territorial, a defesa de recursos, a dor, a
frustração, as expressões faciais e corporais da agressão que temos em
comum com a maior parte dos outros mamíferos sociais. O que se parece
passar é que esse mecanismo se encontra no controlo não simplesmente dos
desencadeadores habituais nos animais, mas de classes semânticas definidas
pela cultura. Vimo-lo no estudo de Geen et al. sobre a «excitação sexual» e a
«excitação agressiva»: o indivíduo activa o sistema comportamental nos con-
textos em que lhe foi ensinado serem os adequados. Da mesma forma, um
sujeito pode dirigir a agressão a membros de outro grupo não enquanto
86
Uma situação muito parecida com a criada por Zimbardo é a simulação da guerra que ter-
mina a recruta de muitas forças armadas. Alguns dos recrutas são instruídos a atacar um grupo e
tomar-lhe a posição; os outros devem defender a sua posição. Durante o processo, criam-se sen-
sações de ódio e de agressão que, fora da hierarquia rígida da instituição militar seriam difíceis de
controlar; note-se que todos sabem que não há qualquer guerra (há armas, mas as balas são de
borracha ou inexistentes), e muito menos razões para ela, e que o «grupo» que estão a atacar é
composto por colegas; e contudo, a dinâmica é de profunda agressão.
87
Há a referir que Zimbardo, num livro recente (The Lucifer Effect) se recusa a uma explicação
em termos de características psicológicas: embora os dados as sugiram, ele afirma apenas que as
pessoas se comportam segundo as situações, independentemente de traços individuais. A con-
clusão geral do livro é, parece-me, politicamente correcta e injustificada pelos dados que o pró-
prio Zimbardo apresenta, mas deve ser lido porque apresenta em detalhe a experiência da prisão
e analisa os dados de prisões reais, nomeadamente Abu Dabi.

182
meros rivais por um recurso mas como inimigos mortais, seres a destruir.
Também aqui a motivação agressiva – e das mais intensas – é canalizada para
um alvo independentemente da presença de desencadeadores etológicos: o
nazi anti-semita odiava os judeus assim como o americano do sec. xıx odi-
ava os índios não porque cada judeu ou cada índio tivessem os traços desen-
cadeadores de agressão, mas porque reagia à «etiqueta» judeu e índio da
mesma forma (mas em mais intenso) que os sujeitos de Geen et al. reagem às
etiquetas «excitação agressiva» e «excitação sexual». Teremos, no curso deste
trabalho, ocasião de explicar mais profundamente este processo. Para isso é
necessário apresentar primeiro alguns elementos sobre a evolução da mente
moderna.
Por agora, concluamos retomando a distinção que apresentámos na pág.
160 sobre rivais e inimigos. A principal diferença humana parece ser que não
nos limitamos a agir agressivamente contra rivais: reificâmo-los como inimi-
gos, e é essa a causa da desmedida agressividade da nossa espécie.

A AGRESSÃO E O ESPAÇO DE REPRESENTAÇÃO

A grande alteração que ocorre na nossa espécie é que passamos a ver o


mundo não em termos dos seus estímulos mas em termos das construções
que fazemos desses estímulos. Em parte isto tem que ver com a formação de
estereótipos mas a questão é mais complexa: tem que ver com o próprio
modo de funcionamento da nossa mente. Enquanto que nos outros animais
os ciclos funcionais consistem na detecção de uma configuração e na res-
posta a essa configuração, na nossa espécie representamos o mundo em clas-
ses de significado. Essas classes, representadas por palavras, substituem-se ao
que vemos (experiência de Charmichael). Isso faz parte de um processo
complexo em que passamos toda a experiência para a representação mental.
Assim, as coisas são representadas num Espaço de Representação autónomo
– na mente – que passa a significar o espaço do indivíduo. O nosso espaço de
existência é mental, contrariamente ao que as teorias mais concretistas nos
querem fazer crer, ainda que a mente represente as coisas que nos cercam,
isto é, ainda que represente coisas materiais (ver o capítulo sobre o visível e o
invisível).
Estamos aqui num plano que é de muito difícil acesso: trata-se do nível
fenomenológico que referi no primeiro capítulo deste trabalho. A única
maneira de lá chegar é misturar a nossa introspecção com o que sabemos do
comportamento dos outros e tentar compreender como funciona a dinâ-
mica desse espaço. Tentarei agora mostrar como esse Espaço de Representa-

183
ção modifica a agressão na nossa espécie. Esta secção é apresentada com
alguma modéstia da minha parte: é ainda apenas o princípio de uma reflexão
sobre o assunto e não assenta em dados experimentais. O leitor deve, por-
tanto, considerá-la com alguma tolerância. Em minha defesa direi apenas
que um conceito vago é melhor do que conceito nenhum.

Motivação de Sadismo

As pessoas precisam de espaço psicológico. Esse espaço é a zona em que a


pessoa não se sente invadida e não se sente ameaçada. Esse espaço depende
do que se espera dos outros. Se os outros não nos atacarem e não nos contra-
riarem, sentiremos o espaço como maior: os outros são dominados nesse
espaço psicológico e não os tememos. Pode ocorrer que haja apenas confi-
ança dentro de um conjunto de regras: sabemos que não seremos ameaçados
enquanto procedermos de determinado modo; creio que a isso chamaríamos
cumprir as maneiras de um determinado contexto. É para isso que serve,
precisamente, a cerimónia: delimitar um conjunto de coisas que não se faz e
não se diz.
Esse espaço é visto como um espaço de vontade, um espaço em que pode-
mos impôr a nossa vontade sem contradição. Poder-se-ia pensar que esse
espaço o temos todos enquanto estamos sozinhos. Mas o nosso espaço demi-
mita-se em função dos outros. O nosso espaço psicológico é sempre um
espaço social, de modo que só existe quando existem outros. De modo que
sempre que há espaço há potencial territorialidade entre os dois detentores
desse espaço: duas pessoas delimitam um espaço em que se gera uma relação
de poder. Essa relação de poder dirime-se em termos das afirmações que se
podem fazer, dos movimentos que se pode ter e das decisões que se podem
tomar sem ser contrariado.
Tal como com qualquer outra função importante, todos temos uma moti-
vação inata para assegurar que ocupamos esse espaço; as formas para a asse-
gurar são aprendidas. O reforço específico é senti-nos superiores aos outros.
Por isso, duas pessoas que se encontram dirão mal de um terceiro, fazendo
um grupo momentâneo que se encontra acima dos outros que são referidos.
Quando possível, se o inimigo não mostrar qualquer resistência, poderemos
fruir de todo o nosso gosto pelo domínio espezinhando-o metafórica ou
realmente. Acredito firmemente que isto dá prazer às pessoas.
Exemplos disto há imensos. O mais simples é, talvez, o gosto que senti-
mos em mostrar que outro está errado: «ganhar uma discussão» não tem
qualquer função a não ser garantir que o outro tem medo de entrar noutra

184
discussão connosco, mas dá-nos intenso prazer. Nos homens públicos, a
ideia de que se espezinha um adversário é o objectivo principal (na política,
por exemplo). Ganhar uma discussão consiste apenas em impôr a nossa visão
do mundo (que pode ser uma coisa tão simples como que o Benfica é melhor
do que o Sporting) ao espaço definido pelos outros. Uma continuação deste
exemplo é o frequente «eu não te tinha dito?», que é sempre uma forma de
mostrar que tínhamos razão e que o outro não tinha. Outro exemplo ainda
é a mania da correcção: vendo uma cena, encontramos sempre alguma coisa
para criticar; podemos não dizer, de uma pessoa que nos desagrada, que ela
não tem razão: diremos mais radicalmente «já viste isto?» ou «que idiota».
Sempre que há um ponto de discordância sentimo-nos agressivos e com
vontade de corrigir. Muitas vezes não conseguimos corrigir e, inclusiva-
mente, não conseguimos ganhar a discussão mas convencêmo-nos de que
temos razão – podemos usar como justificação (absurda) o facto de «não nos
lembrarmos dos argumentos»; mas sentiremos sempre a questão mais como
uma afirmação do ego do que como duas pessoas a procurar uma solução. As
acusações ad hominem são excelentes exemplos disto mesmo (ad hominem sig-
nifica usar argumentos contra a pessoa do nosso opositor e não contra os
seus argumentos).
Na maior parte dos casos, a vontade de poder é controlada por duas fontes
de origem diferente. Uma são os códigos de conduta; a outra é o medo da
pessoa com que nos confrontamos. O medo é muito bem testemunhado
pela experiência das rectas de Asch quando é invertida e o fulano que faz os
erros é o experimentador: todos os outros riem e fazem troça dele; na con-
dição inversa, o sujeito experimental isolado sente medo e pode chegar a
conformar-se. As pessoas em minoria são, quase sempre gozadas; nas crian-
ças (e talvez mesmo nos adultos) há a tendência, havendo três pessoas, de
duas se voltarem contra uma; frequentemente, os grupos de dois alternam
(este fenómeno foi empiricamente investigado).
Quando o medo não está presente, o agressor pode abusar do seu poder.
Isto acontece em situações em que as inibições culturais estão ausentes, ou
por falta de interiorização dessas inibições ou porque se criou um espaço
«diferente», no sentido de isolado de todas as convenções. Isso encontra-se
especificamente nos campos de concentração. Vários guardas nazis afirmam,
para justificar o seu comportamento nos campos de concentração, que não
podemos ajuizar o que se passou à luz dos nossos olhos: era uma época dife-
rente, a realidade não tinha nada que ver com a actual. Nesses casos, a satis-
fação por se ser obedecido e por se impôr a vontade aos outros actua como
um reforço tão poderoso que poucas pessoas conseguem fugir-lhe.
Penso que haverá diferenças individuais muito marcadas nesta motivação.

185
Há pessoas que vivem para isso; outras para quem isso é menos importante.
Há motivações que entram em competição com esta. Nomeadamente, a ter-
nura e a compaixão (são provavelmente a mesma coisa). Além disso, há
dados que mostram que, se não perdermos nada com isso, gostamos de aju-
dar; além disso, gostamos que gostem de nós, o que inibe também a motiva-
ção de sadismo.
Se isto for verdade, teremos que as motivações de dominância, agressivi-
dade, inibição da agressividade, passam a domínio do espaço psicológico e
compaixão.

Motivação de posse e controlo

Há relação entre gostar de mandar nos outros e de os humilhar e a moti-


vação de ter, de possuir as coisas.
Há duas principais motivações para ter. Uma delas é simplesmente dizer
aos outros que se tem. A outra é dizer, para mim próprio, que «é meu». Não
vou considerar agora a primeira, que tem apenas que ver com o gosto que
temos em impressionar o outro e humilhá-lo mostrando-lhe que temos mais
do que ele. Vou concentrar-me apenas no gosto de afirmar, relativamente a
uma coisa, que é minha.
Penso que a semelhança entre as duas coisas é o controlo que se tem, a cer-
teza de que é a nossa vontade que determina o que acontece e não a vontade
dos outros. Quando exercemos controlo sobre uma pessoa, conseguimos
que o seu comportamento seja exactamente aquele que nós queremos que
seja; quando temos a posse de uma coisa, sabemos exactamente o que pode-
mos fazer com ela. É essa a diferença entre usufruto e posso. Se eu tiver o
usufruto de uma coisa nunca a poderei ter completamente à minha disposi-
ção porque tenho, quando morrer, de a entregar mais ou menos intacta;
sendo minha posso estragá-la completamente à minha vontade, ainda que
não queira fazê-lo.
A palavra «controlo» captura bem esta ideia, mas é preciso explicar o que
é: controlo é domínio sobre o futuro, é domínio sobre o ambiente.
Como o controlo do ambiente corresponde a ampliar o domínio do eu
sobre o exterior (é um espaço ou um objecto que eu domino e que mais nin-
guém domina) essa motivação está intimamente ligada ao eu: quanto maior
o número de coisas ou pessoas que eu domino, que eu «tenho», maior é o
meu espaço de influência e maior será o meu eu. Compreende-se então que
os Franciscanos tenham sublinhado a necessidade de anular o eu, de não man-
dar em ninguém e de não possuir nada: trata-se, nos três casos (afirmar o eu,

186
mandar em alguém ou possuir uma coisa) do mesmo fenómeno: afirmar o
tamanho do eu.
Em todos estes casos, o eu é medido em termos das suas repercussões
materiais, isto é, é avaliado por uma medida concreta, um índice material.
Isto implica que o eu é avaliado, por nós, em termos da sua repercussão no
mundo material.

Exemplos

Pessoas que compram coisas de que gostam mas que mal as usam. É o pra-
zer de dizer «é meu, está aqui se eu quiser ver ou usar». Conheço casos de
pessoas, sobretudo coleccionadores, que não compram coisas para mostrar
aos outros, mas realmente para terem a sensação de que as possuem, de que
as controlam e de que essas coisas não lhes podem fugir.
Outro exemplo interessante é dado por uma rapariga autoritária que eu
conheci e que afirmava que lhe estavam a estragar a rua: tinham feito obras
de que ela não gostava (deitaram abaixo uma casa bonita e fizeram um pré-
dio) e ela disse-me, meio a brincar, mas claramente a exprimir o que sentia:
«não deviam poder fazer isto: é que é a minha rua».
Outro exemplo passa-se comigo: entre contemplar uma árvore ou tê-la
para o poder contemplar, prefiro tê-la: é minha, ninguém a pode deitar
abaixo ou podá-la de maneira que eu não quero. Sou eu quem trata dela,
ainda que possa tratá-la pior do que uma pessoa que sabe mais de árvores do
que eu.

Contra-exemplo
Se se disser a uma pessoa que uma determinada coisa é dela mas que não
tem nem o usufruto nem a possibilidade de controlar quem a usa ou o que
lhe acontece, ninguém considerará ter realmente essa coisa. «Está em meu
nome mas anda por aí» não corresponde a possuir. Para que seja meu eu
tenho de aprovar o que lhe acontece, tenho de ter alguma autoridade no que
lhe vai acontecer ou, pelo menos, tenho de excluir a autoridade dos outros
sobre essa coisa: de outra forma não há sensação de posse e, portanto tam-
bém não há o prazer de ter.

Prazer de ter

Esta motivação pode ser explorada da maneira mais básica: vendem-se


estrelas. Presumo que a ideia é que a estrela é minha, que a posso mostrar e

187
que ninguém lhe vai fazer nada. Ou seja, não tenho real controlo, mas posso
estender o meu eu para o mais distante que é possível. Não tenho controlo,
mas ninguém mais tem, de modo que se trata apenas da extensão visível do
meu eu.

Prazer da autoria

É interessante verificar que o mesmo se passa com as as coisas que se


fazem. Um autor detestará que lhe modifiquem a obra. No caso dos arqui-
tectos as coisas vão ao ponto de ser necessária a autorização do autor do pro-
jecto para se fazerem alterações numa obra vendida e entregue, usada por
outros. Claro que se compreende, mas também se compreende que o dono
da obra possa perguntar «afinal de quem é a obra??».

Possuir uma pessoa

O amor por uma pessoa, salvo em situações como On human bondage, do


Sommerset Maugham,88 que corresponde a paixão, é sempre condicional aos
actos dessa pessoa. Amamos quem aprovamos, o que significa que amamos
quem controlamos. Dizer de alguém que partilha os nossos valores significa
dizer que essa pessoa não fará coisas que fogem à nossa censura, isto é, que
há um simulacro de controlo, ainda que não seja imposto por nós.
O caso mais claro desse controlo do comportamento da pessoa é precisa-
mente a fidelidade: queremos a pessoa toda para nós. Quando reparamos
que a pessoa que amamos parece gostar particularmente da companhia de
alguém, quando nos sentimos excluídos do mundo ou da vida mental dessa
pessoa, quando essa pessoa faz muitas coisas que não compreendemos ou de
que não gostamos e que a aproximem de outras pessoas em detrimento de
nós, ocorrerá, provavelmente, ciúme. Isto é verdade até em situações não
amorosas: podemos ter ciúmes de um amigo, num contexto completamente
não sexual. Mas é na situação sexual que é mais clara, e talvez não seja por
acaso que, pelo menos para os homens, se diz que ter sexo com uma mulher
é possuí-la. Deve ser no campo relacional em que há mais intimidade – inti-
midade significa sobreposição dos dois eus – que uma infidelidade será mais
dolorosa: na maior parte dos casos isso verifica-se no campo sexual.
Um dos problemas relacionais maiores deriva do que disse agora: a inti-

88
Traduzido em português como Servidão Humana. Leitura obrigatória para um aprendiz de
psicólogo.

188
midade implica uma fusão parcial dos dois eus. Enquanto as duas pessoas
estão predominantemente juntas (a fase da paixão) isso não coloca proble-
mas; é a seguir, quando os dois membros do casal têm de se afirmar perante
o exterior como duas entidades autónomas, que se torna difícil manter uma
relação de fusão porque cada um dos membros tem de afirmar mais clara-
mente o seu eu. Na medida em que o fazem dentro do casamento, passa a
haver delimitação do espaço psicológico, ou seja, vontade de controlo e de
autoridade.
Esta tendência verifica-se muito claramente na relação das pessoas com os
animais. Quase todas as pessoas preferem cães a gatos precisamente porque
os gatos não são tão exclusivos, enquanto que um cão nos pertence comple-
tamente porque se nos entrega – diz-se com frequência que «os gatos são
muito independentes», o que significa, precisamente, que não nos perten-
cem inteiramente; da mesma maneira, gostamos mais de cães porque eles são
mais obedientes – porque nos pertencem mais completamente. O mesmo se
passa relativamente às crianças: gostamos delas enquanto podemos controlar
o seu comportamento. Quando se tornam independentes gera-se um pro-
blema de posse: se é a criança que determina o que vai fazer deixa de nos
pertencer. É, em parte, por isso que há tantos problemas na adolescência.
Claro que, na maior parte dos casos, o amor dos ais pelos filhos é do tipo da
cunhagem (imprinting) de maneira que nunca se deixa realmente de gostar da
pessoa.

Exemplo
Um dos melhores exemplos que conheço disto ocorreu com uma rapariga
extremamente autoritária que assistiu a um comportamento vergonhoso
por parte do pai: depois de uma mastectomia dupla, o pai deixou a mãe, foi
viver com uma rapariga mais nova e tentou ficar com a propriedade que
tinha com a mãe. A filha reagiu a este comportamento com muita raiva – o
que se compreende – mas, sobretudo, com um corte total do afecto. O pai
tentou rever a filha, mas ela recusou-se sempre a isso, mesmo em situações
em que o pai foi humilhado em público (visitou uma família com quem a
rapariga vivia mas ela recusou-se a vê-lo).
Há mais do que um factor aqui, mas dir-se-ia que o afecto que a rapariga
sentia pelos pais estava concentrado na mãe: o pai apenas merecia afecto
enquanto se comportasse de determinada maneira. Ou seja, havia aprovação
mas não amor?
Há outra possibilidade de compreender isto. A raiva de ser desobedecida
pelo pai (isto é, de o pai se ter comportado de maneira contrária à expectati-
vas da filha) ultrapassou o amor que ela sentia por ele. Desta maneira, todo o

189
investimento afectivo passou para a zanga pelo facto de o pai ter escapado ao
controlo.
Penso que este exemplo é típico da maior parte dos casamentos e da maior
parte das famílias. Há um problema fundamental neste tipo de funciona-
mento. É que, ao pedir e obter obediência, perde-se necessariamente o res-
peito pela pessoa, que passa a ser considerada apenas como uma coisa que
podemos manipular à vontade. O cônjuge ou familiar que obedece é consi-
derado apenas um objecto, uma extensão do eu e não é reconhecido como
uma personalidade autónoma. Como é essa diferenciação do outro em per-
sonalidade existente que permite que se goste de outra pessoa pelo que ela é,
é sempre mau ser completamente obediente, ainda que a relação possa ter-
minar, porque quem se faz obedecer deixa de gostar realmente do outro
para gostar apenas de si próprio e das suas obras – o efeito Pigmaleão.89
Mas resta afirmar que há pessoas que apenas gostam das outras se as conse-
guirem ter e que nunca conseguem gostar de outra pessoa pelo que ela é.
Isto ocorre porque se trata de pessoas completamente centradas em si e que
não conseguem gostar realmente de ninguém: apenas gostam do controlo
que têm nos outros. O facto de se poderem comover com os outros, quando
eles se revelam em momentos de fraqueza, mostra precisamente que só con-
seguem gostar dos outros quando lhes não fazem rivalidade em termos de
dominância e, portanto, de presença no campo psicológico.

Post- scriptum sobre o Hau Kwakiutl

Hau quer dizer o espírito da coisa. Esse espírito anima a coisa que é dada
mas está, ao mesmo tempo, presente no seu possuidor. Quando se dá, dá-se
também o hau, que inclui parte do espírito do dador. O donatário tem de com-
pensar o doador por essa parte do doador (o hau) que é suportada pela coisa.
Tem, assim, de haver compensação específica do hau do doador. Sahlins,
Stone Age Economics, mas o hau foi estudado pelo Marcel Mauss, no Essai sur
le Don.
Evidentemente relevante: ter uma coisa é estender o eu sobre ela.
E também: o gesto de dizer «é meu» é semelhante ao do «eu»: no «é meu»
aproxima-se a coisa que queremos do peito; no «eu» aponta-se para o peito.
89
Pigmaleão não gostava das mulheres que conhecia e fez uma estátua, Galateia, pela qual se
apaixonou. Fala-se de efeito Pigmaleão nas relações amorosas quando um dos membros do casal
reprograma completamente o outro porque não consegue viver com a realidade mas apenas com
os seus ideais. Geralmente fala-se do efeito considerando o homem o construtor de mulheres
inexistentes (Pigmaleão, de G. Bernard Shaw, também o filme Sherry 2000), mas o efeito contrário
também existe.

190
Ainda: aproximar a ideia de que a posse faz parte do Eu material de Wil-
liam James à ideia do Hau. Relacionar com a ideia d’«o relógio do avô».

Eu e espaço de representação,
espaço físico, agêngia e posse

Como vimos o campo do eu sujeito são os ciclos funcionais, que nos


ligam ao ambiente. Um dos conjuntos de ciclos funcionais mais arcaicos,
porque mais necessários à sobrevivência individual, é a territorialidade
(Lorenz, apesar dos erros teóricos e Wilson, e toda a corrente etológica e
evolutiva). Os territórios são necessários quando os recursos necessários à
sobrevivência e à reprodução não são tão abundantes que permitam a manu-
tenção indefinida de uma densidade populacional elevada (Crook, Plocei-
nae, Reff ). Uma grande parte dos animais (e mesmo das plantas) defende,
por isso, territórios.
Na nossa espécie esta questão tem sido debatida ideologicamente: pre-
tende-se que sendo o homem infinitamente plástico ou intrinsecamente
bom não tem motivações inatas (Montagu, Reff para um caso extremo).
Mas a verdade é que a análise objectiva da realidade nega esta afirmação
(Pinker, Reff ). Temos espaços pessoais e gostamos de possuir certas coisas.
Deixemos de lado o pântano da ideologia a tentativa de justificação do que
gostaríamos que fosse verdade e concentremo-nos apenas na explicação dos
fenómenos. Recordamos que Reiss (Reff ), no seu influente estudo sobre
motivação, descreve 16 factores, dois dos quais são a procura de estatuto e a
de poder (estão de resto mais correlacionados –cerca de .5– do que os outros
factores –que têm uma correlação baixa, de .2). Também Schwartz (Reff ),
num modelo sociológico influente, admite a existência de motivações
intrínsecas de poder.
O que defenderei é que a posse de uma coisa é uma extensão do Eu a essa
coisa. Isto ocorre explicitamente numa enorme quantidade de culturas
arcaicas, que dizem que as coisas têm uma parte da pessoa que as detém. Para
nós a questão não é posta geralmente assim, mas podemos pensar num
exemplo: imaginemos que o nosso avô ou a nossa avó nos deixou um reló-
gio ou um colar. Suponhamos que perdemos esse relógio/colar. Teríamos
pena. Satisfazer-nos-íamos com um modelo exactamente igual? Não, por-
que não foi do nosso avô. Não o dizemos, mas está implícito que há alguma
coisa do avô ou da avó no relógio ou no colar. Chamamos a isso valor afec-
tivo, mas na verdade estamos a afirmar que há qualquer coisa da pessoa no
objecto que dela temos. Esta transferência da substância da pessoa para um

191
objecto que lhe pertenceu não é diferente daquilo que se passa na magia sim-
pática estudada por Frazer (The Golden Bough).
Se alguma coisa passou do avô ao relógio, até que ponto é que passa de
nós ao que consideramos nosso? Os nossos netos pensarão que sim, mas até
que ponto é que nós o sentimos? Não conheço estudos empíricos sobre este
tema. Mas parece-me que determinadas coisas – a primeira caneta, uma
árvore plantada por nós em jovens, «as minhas coisas» – são parte do nosso
mundo mental, tal como o nosso corpo faz parte de nós. Não são partes cen-
trais – posso perder o relógio e sobreviver, e, mais grave, posso perder uma
perna e manter-me eu (na verdade posso sentir-me eu imaginando-me sem
corpo: confirmação empírica em Sá-Saraiva et al., em preparação e em
Pereira e Sá-Saraiva, em preparação); mas são ainda assim partes do eu. Por
outro lado, parece-me que aquilo que estruturámos no mundo, a marca que
deixamos, a sentimos como uma marca de nós próprios, da nossa agência, do
nosso eu-sujeito. Em níveis mais simples, aquilo que eu comprei posso senti-
-lo como «meu» no sentido de que essa coisa faz parte de mim. James (Reff )
defendia precisamente que as posses de uma pessoa fazem parte do seu eu.90
Em que sentido é que essas coisas são partes do eu? Uma resposta possível
é que se trata de extensões dos nossos ciclos funcionais, tal como os territó-
rios animais ou as marcas que deixámos de nós. Como vimos, os ciclos fun-
cionais projectam-nos para fora do nosso corpo, projectam-nos na acção e
no mundo. Assim, dizer de uma coisa que é nossa significa marcá-la com a
minha identidade, como pertença ao meu ser, ao controlo do meu eu-sujeito.
Por outro lado, podemos aumentar o nosso eu-objecto com a posse de
coisas.91 Nisto não somos diferentes dos outros animais que se fazem grandes
90
Este tema foi tratado por Lévi-Bruhl, em L’Âme Primitive, sob o nome de appartenances,
pertences. Lévi-Bruhl considera que os pertences (cabelo, unhas, imagens, coisas que foram
posuídas, até comida que não foi terminada) são parte do eu, que é difuso e não bem delimitado
como ocorreria em nós. Ele distingue os casos como o descrito –o relógio do avô– dos que ele
descreve porque os primitivos achariam que o relógio é o avô. O próprio Lévy-Bruhl (Carnets)
reviu parcialmente as suas posições. Num outro texto tratarei deste assunto («O Eu e o Mana»).
Quero chamar a atenção aqui para um caso real que me foi descrito e para uma hipótese de
trabalho empírico. O caso real é o seguinte. Uma rapariga muito nova vai, pela primeira vez, ao
cabeleireiro. Tem um cabelo muito longo e cortam-lhe mechas de mais de 10 cm. O cabelo cai
para o chão. No fim, a rapariga olha para o cabelo e vê uma pessoa varrê-lo, sem cerimónias. A
rapariga fica muito ofendida com o que se faz com o cabelo dela.
A hipótese de operacionalização da noção de pertença é simples. Imaginemos que uma pessoa
dá uma caneta à pessoa amada e com quem está acasalada. A pessoa amada usa essa caneta para
escrever uma carta de amor a outra pessoa. Sentir-se-ia a pessoa amada a fazer uma traição por
usar essa caneta? Preferiria a pessoa que deu a caneta que a carta fosse escrita com outra caneta?
91
Esta ideia assenta no pressuposto de que os outros nos assustam. Esta afirmação é parcial-
mente corroborada por estudos de psicologia que mostram que estamos em maior stress quando
estamos com outros (Reff); foi desenvolvida na psicanálise quer por Freud quer, sobretudo, por

192
para afugentar rivais (o processo está disseminado no reino animal; por
exemplo a pilo-erecção e a expansão corporais que nos chimpanzés acompa-
nha as exibições de dominância não difere morfologicamente da nossa (Eibl-
-Eibesfeldt, Argyle, Reff ). Assim, ao mostrar posse mostro poder de possuir
e no processo estendo os meus ciclos funcionais (e portanto o meu eu-
-sujeito) ao espaço dos outros, que se apercebem de mim como um eu-
-objecto poderoso. O domínio do espaço ou de coisas desejadas por outros é
a forma mais directa de competição pela afirmação do eu sujeito: esse domí-
nio passa a ter uma expressão física, funcionando assim como uma concre-
ção do espaço mental que se sente ter.
Finalmente há uma consequência do facto de se ter representações men-
tais que se impõem ao exterior (como nas ferramentas): tal como impomos
forma às ferramentas tentaremos impôr os nossos valores e as nossas visões
do mundo aos outros. Um exemplo simples disso é o hábito de contradizer
ou de corrigir o que os outros dizem, ainda que não haja nenhuma con-
sequência dessa contradição ou correcção (por exemplo, se discute de um
clube de futebol se é melhor do que outro). Quando corrigimos outra pes-
soa sentimo-nos bem, com o espaço do eu maior: dominamos essa pessoa se
a corrigirmos sempre e se forçarmos o comportamento dela a obedecer às
regras de comportamento que temos interiorizadas. É aqui, evidentemente,
que se deve procurar a raíz do autoritarismo.
Temos assim que a expressão do eu-sujeito como eu-objecto a ser com-
preendido pelos outros é, provavelmente, uma tendência básica da nossa
espécie, tal como o domínio dos outros o é nas outras espécies.

DADOS DA PSICOLOGIA SOBRE


A MOTIVAÇÃO DE AGRESSÃO

Como vimos, os psicólogos têm tido dificuldade em admitir que há uma


motivação autónoma de agressão, de domínio e de posse. Sem dúvida que
isso tem que ver com o espírito politicamente correcto da psicologia, por-
que a quantidade de dados que sugere a existência de uma tal motivação é
grande.

Adler; tem manifestação sistemática nas culturas arcaicas em que a agência dos outros é temida
(Frazer, Lévy-Bruhl; por exemplo, considerar o culto dos mortos – além dos anteriores poder-se-
-a referir o trabalho de Metcalf) e faz sentido evolutivo, porque um conspecífico é sempre um
rival potencial por recursos ou por dominância (Reff dominância, Eibesfeldt). Num grupo pan-
míctico, todos os indivíduos, a não ser que sejam muito aparentados (como nas espécies eusso-
ciais, como abelhas, formigas, térmites ou ratos nus), entram em competição directa. Faz então
sentido que tenhamos ciclos funcionais para nos defender da potencial competição dos outros.

193
Já em 1953, McClelland et al. defendiam haver uma motivação para o
«achievement», definida como uma tendência para o «success in competition
with a standard of excellence». A chave para compreender a relevância des-
tes dados é a ideia de competição com um padrão. Na medida em que os padrões
que servem de competição são ou os outros ou o comportamento dos
outros, compreende-se que se trata de uma motivação de competição. A
competição é mental –comparamo-nos com um padrão ou com a imagem
de outra pessoa– mas nem por isso deixa de ser aproximável das competições
por dominância dos outros animais. Veremos, noutro capítulo, que a chave
da cooperação é precisamente a competição por ser bem sucedido na imita-
ção de um padrão. A competição está, portanto, como em quaisquer outros
organismos, na base do nosso comportamento.
Winter e Stewart (1978) definem o desejo de poder como querer que os
mundos material e social se conformem à imagem que temos desses mundos
ou aos nossos planos para esses mundos. Esta tendência para procurar poder
encontra-se distribuída pelas pessoas de forma mais ou menos desigual: há
pessoas que sentem essa motivação com mais força do que outras. As que a
sentem com mais força são as pessoas mais competitivas. McClelland et al
(1972) mostram que se trata de pessoas que tendem a correr mais riscos, a
usar linguagem e movimentos corporais mais agressivos, tendem mais para o
consumo de drogas e de álcool, e para guiar depressa.
O poder inclui (Ref in HM) tendência para procurar a chefia, agressivi-
dade, procura de influência, prestígio e posses; procura-se visibilidade
pública, faz-se amigos entre as pessoas que não têm essas características (sinal
de competição). As pessoas que procuram poder são geralmente más em
relações pessoais e têm pouca tendência para a intimidade.
Relacionado com o poder está a estima de si, comummente traduzida por
auto-estima. As pessoas com estima de si elevada ficam mais violentas
perante o insucesso do que as que têm auto-estima média (Heatherton &
Vohs, 2000). A elevada estima de si conduz a comportamento arrogante com
os outros, à centração em si e à promoção de si (interromper, falar e não
ouvir). As pessoas muito afirmadas e narcísicas não têm, contrariamente à
ideia comum de a agressividade vir de um complexo de inferioridade: pelo
contrário, é a auto-estima elevada que leva à agressividade (Dawes, 1994,
1998).
Em maior ou menor grau, todos temos tendência para a rivalidade e para
procurar sermos os melhores: Abraham Tesser (1988) mostrou que os irmãos
de pessoas com sucesso e bom desempenho tendem a relatar mais fricções
com esses irmãos do que as pessoas com irmãos que não lhes são superiores
em apreciação pública.

194
De modo que se tem progressivamente chegado à conclusão de que a pro-
moção da auto-estima não é necessariamente uma boa coisa, na medida em
que causa agressão, arrogância, auto-centração e conflitualidade. Ter auto-
-estima elevada corresponde a desprezar os outros. Na medida em que nos
comparamos sempre com os outros, só podemos ter uma elevada auto-
-estima se nos considerarmos melhores do que eles. Como há muitos estu-
dos que demonstram que tendemos a agir arrogantemente contra pessoas e
grupos que consideramos inferiores a nós, o culto da auto-estima leva à
agressão e à conflitualidade. É essa a nossa natureza.
A agressão humana foi mais recentemente revista por Anderson e Bush-
man (Annual Reviews). Confirma-se a ideia de que a auto-estima elevada
covaria com a hostilidade inter-pessoal, que os machos são mais agressivos
do que as fêmeas e de que o são de maneira mais física; a agressão não provo-
cada nos machos é mais intensa do que nas fêmeas, mas a agressão provocada
é igual (Bettencourt e Miller, 1996). Os desencadeadores da agressão são a
provocação, a frustração, a dor e a rivalidade relativamente a outra pessoa
que quer o mesmo recurso que nós. Talvez seja possível afirmar que a agres-
são tem dois grandes desencadeadores: resposta a provocações ou a dor (Ber-
kowitz, 1993, Geen, 2001) e resposta a quem nos impede de aceder a um
recurso cobiçado (Dill e Anderson, 1995).
A nossa espécie não poderia ser excepção relativamente às outras: temos
uma motivação intrínseca de ataque e de posse. Se é verdade que há factores
psicológicos e situacionais que afectam essa agressividade, o mesmo se pode
dizer relativamente a outros animais.

195
A AGRESSÃO E O ESPAÇO DE
REPRESENTAÇÃO
A grande alteração que ocorre na nossa espécie é que passamos a ver o
mundo não em termos dos seus estímulos mas em termos das construções
que fazemos desses estímulos. Em parte isto tem que ver com a formação de
estereótipos mas a questão é mais complexa: tem que ver com o próprio
modo de funcionamento da nossa mente. Enquanto que nos outros animais
os ciclos funcionais consistem na detecção de uma configuração e na res-
posta a essa configuração, na nossa espécie representamos o mundo em clas-
ses de significado. Essas classes, representadas por palavras, substituem-se ao
que vemos (experiência de Charmichael). Isso faz parte de um processo
complexo em que passamos toda a experiência para a representação mental.
Assim, as coisas são representadas num Espaço de Representação autónomo
– na mente – que passa a significar o espaço do indivíduo. O nosso espaço de
existência é mental, contrariamente ao que as teorias mais concretistas nos
querem fazer crer, ainda que a mente represente as coisas que nos cercam,
isto é, ainda que represente coisas materiais (ver o capítulo sobre o visível e o
invisível).
Estamos aqui num plano que é de muito difícil acesso: trata-se do nível
fenomenológico que referi no primeiro capítulo deste trabalho. A única
maneira de lá chegar é misturar a nossa introspecção com o que sabemos do
comportamento dos outros e tentar compreender como funciona a dinâ-
mica desse espaço. Tentarei agora mostrar como esse Espaço de Representa-
ção modifica a agressão na nossa espécie. Esta secção é apresentada com
alguma modéstia da minha parte: é ainda apenas o princípio de uma reflexão
sobre o assunto e não assenta em dados experimentais. O leitor deve, por-
tanto, considerá-la com alguma tolerância. Em minha defesa direi apenas
que um conceito vago é melhor do que conceito nenhum.

MOTIVAÇÃO DE SADISMO

As pessoas precisam de espaço psicológico. Esse espaço é a zona em que a


pessoa não se sente invadida e não se sente ameaçada. Esse espaço depende
do que se espera dos outros. Se os outros não nos atacarem e não nos contra-
riarem, sentiremos o espaço como maior: os outros são dominados nesse
espaço psicológico e não os tememos. Pode ocorrer que haja apenas confi-
ança dentro de um conjunto de regras: sabemos que não seremos ameaçados
enquanto procedermos de determinado modo; creio que a isso chamaríamos
cumprir as maneiras de um determinado contexto. É para isso que serve,
precisamente, a cerimónia: delimitar um conjunto de coisas que não se faz e
não se diz.
Esse espaço é visto como um espaço de vontade, um espaço em que pode-
mos impôr a nossa vontade sem contradição. Poder-se-ia pensar que esse
espaço o temos todos enquanto estamos sozinhos. Mas o nosso espaço demi-
mita-se em função dos outros. O nosso espaço psicológico é sempre um
espaço social, de modo que só existe quando existem outros. De modo que
sempre que há espaço há potencial territorialidade entre os dois detentores
desse espaço: duas pessoas delimitam um espaço em que se gera uma relação
de poder. Essa relação de poder dirime-se em termos das afirmações que se
podem fazer, dos movimentos que se pode ter e das decisões que se podem
tomar sem ser contrariado.
Tal como com qualquer outra função importante, todos temos uma moti-
vação inata para assegurar que ocupamos esse espaço; as formas para a asse-
gurar são aprendidas. O reforço específico é senti-nos superiores aos outros.
Por isso, duas pessoas que se encontram dirão mal de um terceiro, fazendo
um grupo momentâneo que se encontra acima dos outros que são referidos.
Quando possível, se o inimigo não mostrar qualquer resistência, poderemos
fruir de todo o nosso gosto pelo domínio espezinhando-o metafórica ou
realmente. Acredito firmemente que isto dá prazer às pessoas.
Exemplos disto há imensos. O mais simples é, talvez, o gosto que senti-
mos em mostrar que outro está errado: «ganhar uma discussão» não tem
qualquer função a não ser garantir que o outro tem medo de entrar noutra
discussão connosco, mas dá-nos intenso prazer. Nos homens públicos, a
ideia de que se espezinha um adversário é o objectivo principal (na política,
por exemplo). Ganhar uma discussão consiste apenas em impôr a nossa visão
do mundo (que pode ser uma coisa tão simples como que o Benfica é melhor
do que o Sporting) ao espaço definido pelos outros. Uma continuação deste
exemplo é o frequente «eu não te tinha dito?», que é sempre uma forma de
mostrar que tínhamos razão e que o outro não tinha. Outro exemplo ainda
é a mania da correcção: vendo uma cena, encontramos sempre alguma coisa
para criticar; podemos não dizer, de uma pessoa que nos desagrada, que ela
não tem razão: diremos mais radicalmente «já viste isto?» ou «que idiota».
Sempre que há um ponto de discordância sentimo-nos agressivos e com
vontade de corrigir. Muitas vezes não conseguimos corrigir e, inclusiva-
mente, não conseguimos ganhar a discussão mas convencêmo-nos de que
temos razão – podemos usar como justificação (absurda) o facto de «não nos
lembrarmos dos argumentos»; mas sentiremos sempre a questão mais como
uma afirmação do ego do que como duas pessoas a procurar uma solução. As

198
acusações ad hominem são excelentes exemplos disto mesmo (ad hominem sig-
nifica usar argumentos contra a pessoa do nosso opositor e não contra os
seus argumentos).
Na maior parte dos casos, a vontade de poder é controlada por duas fontes
de origem diferente. Uma são os códigos de conduta; a outra é o medo da
pessoa com que nos confrontamos. O medo é muito bem testemunhado
pela experiência das rectas de Asch quando é invertida e o fulano que faz os
erros é o experimentador: todos os outros riem e fazem troça dele; na con-
dição inversa, o sujeito experimental isolado sente medo e pode chegar a
conformar-se. As pessoas em minoria são, quase sempre gozadas; nas crian-
ças (e talvez mesmo nos adultos) há a tendência, havendo três pessoas, de
duas se voltarem contra uma; frequentemente, os grupos de dois alternam
(este fenómeno foi empiricamente investigado).
Quando o medo não está presente, o agressor pode abusar do seu poder.
Isto acontece em situações em que as inibições culturais estão ausentes, ou
por falta de interiorização dessas inibições ou porque se criou um espaço
«diferente», no sentido de isolado de todas as convenções. Isso encontra-se
especificamente nos campos de concentração. Vários guardas nazis afirmam,
para justificar o seu comportamento nos campos de concentração, que não
podemos ajuizar o que se passou à luz dos nossos olhos: era uma época dife-
rente, a realidade não tinha nada que ver com a actual. Nesses casos, a satis-
fação por se ser obedecido e por se impôr a vontade aos outros actua como
um reforço tão poderoso que poucas pessoas conseguem fugir-lhe.
Penso que haverá diferenças individuais muito marcadas nesta motivação.
Há pessoas que vivem para isso; outras para quem isso é menos importante.
Há motivações que entram em competição com esta. Nomeadamente, a ter-
nura e a compaixão (são provavelmente a mesma coisa). Além disso, há
dados que mostram que, se não perdermos nada com isso, gostamos de aju-
dar; além disso, gostamos que gostem de nós, o que inibe também a motiva-
ção de sadismo.
Se isto for verdade, teremos que as motivações de dominância, agressivi-
dade, inibição da agressividade, passam a domínio do espaço psicológico e
compaixão.

MOTIVAÇÃO DE POSSE E CONTROLO

Há relação entre gostar de mandar nos outros e de os humilhar e a moti-


vação de ter, de possuir as coisas.
Há duas principais motivações para ter. Uma delas é simplesmente dizer

199
aos outros que se tem. A outra é dizer, para mim próprio, que «é meu». Não
vou considerar agora a primeira, que tem apenas que ver com o gosto que
temos em impressionar o outro e humilhá-lo mostrando-lhe que temos mais
do que ele. Vou concentrar-me apenas no gosto de afirmar, relativamente a
uma coisa, que é minha.
Penso que a semelhança entre as duas coisas é o controlo que se tem, a cer-
teza de que é a nossa vontade que determina o que acontece e não a vontade
dos outros. Quando exercemos controlo sobre uma pessoa, conseguimos
que o seu comportamento seja exactamente aquele que nós queremos que
seja; quando temos a posse de uma coisa, sabemos exactamente o que pode-
mos fazer com ela. É essa a diferença entre usufruto e posso. Se eu tiver o
usufruto de uma coisa nunca a poderei ter completamente à minha disposi-
ção porque tenho, quando morrer, de a entregar mais ou menos intacta;
sendo minha posso estragá-la completamente à minha vontade, ainda que
não queira fazê-lo.
A palavra «controlo» captura bem esta ideia, mas é preciso explicar o que
é: controlo é domínio sobre o futuro, é domínio sobre o ambiente.
Como o controlo do ambiente corresponde a ampliar o domínio do eu
sobre o exterior (é um espaço ou um objecto que eu domino e que mais nin-
guém domina) essa motivação está intimamente ligada ao eu: quanto maior
o número de coisas ou pessoas que eu domino, que eu «tenho», maior é o
meu espaço de influência e maior será o meu eu. Compreende-se então que
os Franciscanos tenham sublinhado a necessidade de anular o eu, de não man-
dar em ninguém e de não possuir nada: trata-se, nos três casos (afirmar o eu,
mandar em alguém ou possuir uma coisa) do mesmo fenómeno: afirmar o
tamanho do eu.
Em todos estes casos, o eu é medido em termos das suas repercussões
materiais, isto é, é avaliado por uma medida concreta, um índice material.
Isto implica que o eu é avaliado, por nós, em termos da sua repercussão no
mundo material.

Exemplos

Pessoas que compram coisas de que gostam mas que mal as usam. É o pra-
zer de dizer «é meu, está aqui se eu quiser ver ou usar». Conheço casos de
pessoas, sobretudo coleccionadores, que não compram coisas para mostrar
aos outros, mas realmente para terem a sensação de que as possuem, de que
as controlam e de que essas coisas não lhes podem fugir.
Outro exemplo interessante é dado por uma rapariga autoritária que eu

200
conheci e que afirmava que lhe estavam a estragar a rua: tinham feito obras
de que ela não gostava (deitaram abaixo uma casa bonita e fizeram um pré-
dio) e ela disse-me, meio a brincar, mas claramente a exprimir o que sentia:
«não deviam poder fazer isto: é que é a minha rua».
Outro exemplo passa-se comigo: entre contemplar uma árvore ou tê-la
para a poder contemplar, prefiro tê-la: é minha, ninguém a pode deitar
abaixo ou podá-la de maneira que eu não quero. Sou eu quem trata dela,
ainda que possa tratá-la pior do que uma pessoa que sabe mais de árvores do
que eu.

Contra-exemplo

Se se disser a uma pessoa que uma determinada coisa é dela mas que não
tem nem o usufruto nem a possibilidade de controlar quem a usa ou o que
lhe acontece, ninguém considerará ter realmente essa coisa. «Está em meu
nome mas anda por aí» não corresponde a possuir. Para que seja meu eu
tenho de aprovar o que lhe acontece, tenho de ter alguma autoridade no que
lhe vai acontecer ou, pelo menos, tenho de excluir a autoridade dos outros
sobre essa coisa: de outra forma não há sensação de posse e, portanto tam-
bém não há o prazer de ter.

Prazer de ter

Esta motivação pode ser explorada da maneira mais básica: vendem-se


estrelas. Presumo que a ideia é que a estrela é minha, que a posso mostrar e
que ninguém lhe vai fazer nada. Ou seja, não tenho real controlo, mas posso
estender o meu eu para o mais distante que é possível. Não tenho controlo,
mas ninguém mais tem, de modo que se trata apenas da extensão visível do
meu eu.

201
Prazer da autoria

É interessante verificar que o mesmo se passa com as as coisas que se


fazem. Um autor detestará que lhe modifiquem a obra. No caso dos arqui-
tectos as coisas vão ao ponto de ser necessária a autorização do autor do pro-
jecto para se fazerem alterações numa obra vendida e entregue, usada por
outros. Claro que se compreende, mas também se compreende que o dono
da obra possa perguntar «afinal de quem é a obra??».

Possuir uma pessoa

O amor por uma pessoa, salvo em situações como On human bondage, do


Sommerset Maugham,92 que corresponde a paixão, é sempre condicional aos
actos dessa pessoa. Amamos quem aprovamos, o que significa que amamos
quem controlamos. Dizer de alguém que partilha os nossos valores significa
dizer que essa pessoa não fará coisas que fogem à nossa censura, isto é, que
há um simulacro de controlo, ainda que não seja imposto por nós.
O caso mais claro desse controlo do comportamento da pessoa é precisa-
mente a fidelidade: queremos a pessoa toda para nós. Quando reparamos
que a pessoa que amamos parece gostar particularmente da companhia de
alguém, quando nos sentimos excluídos do mundo ou da vida mental dessa
pessoa, quando essa pessoa faz muitas coisas que não compreendemos ou de
que não gostamos e que a aproximem de outras pessoas em detrimento de
nós, ocorrerá, provavelmente, ciúme. Isto é verdade até em situações não
amorosas: podemos ter ciúmes de um amigo, num contexto completamente
não sexual. Mas é na situação sexual que é mais clara, e talvez não seja por
acaso que, pelo menos para os homens, se diz que ter sexo com uma mulher
é possuí-la. Deve ser no campo relacional em que há mais intimidade – inti-
midade significa sobreposição dos dois eus – que uma infidelidade será mais
dolorosa: na maior parte dos casos isso verifica-se no campo sexual.
Um dos problemas relacionais maiores deriva do que disse agora: a inti-
midade implica uma fusão parcial dos dois eus. Enquanto as duas pessoas
estão predominantemente juntas (a fase da paixão) isso não coloca proble-
mas; é a seguir, quando os dois membros do casal têm de se afirmar perante
o exterior como duas entidades autónomas, que se torna difícil manter uma
relação de fusão porque cada um dos membros tem de afirmar mais clara-
mente o seu eu. Na medida em que o fazem dentro do casamento, passa a

92
Traduzido em português como Servidão Humana. Leitura obrigatória para um aprendiz de
psicólogo.

202
haver delimitação do espaço psicológico, ou seja, vontade de controlo e de
autoridade.
Esta tendência verifica-se muito claramente na relação das pessoas com os
animais. Quase todas as pessoas preferem cães a gatos precisamente porque
os gatos não são tão exclusivos, enquanto que um cão nos pertence comple-
tamente porque se nos entrega – diz-se com frequência que «os gatos são
muito independentes», o que significa, precisamente, que não nos perten-
cem inteiramente; da mesma maneira, gostamos mais de cães porque eles são
mais obedientes – porque nos pertencem mais completamente. O mesmo se
passa relativamente às crianças: gostamos delas enquanto podemos controlar
o seu comportamento. Quando se tornam independentes gera-se um pro-
blema de posse: se é a criança que determina o que vai fazer deixa de nos
pertencer. É, em parte, por isso que há tantos problemas na adolescência.
Claro que, na maior parte dos casos, o amor dos ais pelos filhos é do tipo da
cunhagem (imprinting) de maneira que nunca se deixa realmente de gostar da
pessoa.

Exemplo

Um dos melhores exemplos que conheço disto ocorreu com uma rapariga
extremamente autoritária que assistiu a um comportamento vergonhoso
por parte do pai: depois de uma mastectomia dupla, o pai deixou a mãe, foi
viver com uma rapariga mais nova e tentou ficar com a propriedade que
tinha com a mãe. A filha reagiu a este comportamento com muita raiva – o
que se compreende – mas, sobretudo, com um corte total do afecto. O pai
tentou rever a filha, mas ela recusou-se sempre a isso, mesmo em situações
em que o pai foi humilhado em público (visitou uma família com quem a
rapariga vivia mas ela recusou-se a vê-lo).
Há mais do que um factor aqui, mas dir-se-ia que o afecto que a rapariga
sentia pelos pais estava concentrado na mãe: o pai apenas merecia afecto
enquanto se comportasse de determinada maneira. Ou seja, havia aprovação
mas não amor?
Há outra possibilidade de compreender isto. A raiva de ser desobedecida
pelo pai (isto é, de o pai se ter comportado de maneira contrária à expectati-
vas da filha) ultrapassou o amor que ela sentia por ele. Desta maneira, todo o
investimento afectivo passou para a zanga pelo facto de o pai ter escapado ao
controlo.
Penso que este exemplo é típico da maior parte dos casamentos e da maior
parte das famílias. Há um problema fundamental neste tipo de funciona-

203
mento. É que, ao pedir e obter obediência, perde-se necessariamente o res-
peito pela pessoa, que passa a ser considerada apenas como uma coisa que
podemos manipular à vontade. O cônjuge ou familiar que obedece é consi-
derado apenas um objecto, uma extensão do eu e não é reconhecido como
uma personalidade autónoma. Como é essa diferenciação do outro em per-
sonalidade existente que permite que se goste de outra pessoa pelo que ela é,
é sempre mau ser completamente obediente, ainda que a relação possa ter-
minar, porque quem se faz obedecer deixa de gostar realmente do outro
para gostar apenas de si próprio e das suas obras – o efeito Pigmalião.93
Mas resta afirmar que há pessoas que apenas gostam das outras se as conse-
guirem ter e que nunca conseguem gostar de outra pessoa pelo que ela é.
Isto ocorre porque se trata de pessoas completamente centradas em si e que
não conseguem gostar realmente de ninguém: apenas gostam do controlo
que têm nos outros. O facto de se poderem comover com os outros, quando
eles se revelam em momentos de fraqueza, mostra precisamente que só con-
seguem gostar dos outros quando lhes não fazem rivalidade em termos de
dominância e, portanto, de presença no campo psicológico.

Post-scriptum sobre o Hau Kwakiutl

Hau quer dizer o espírito da coisa. Esse espírito anima a coisa que é dada
mas está, ao mesmo tempo, presente no seu possuidor. Quando se dá, dá-se
também o hau, que inclui parte do espírito do dador. O donatário tem de com-
pensar o doador por essa parte do doador (o hau) que é suportada pela coisa.
Tem, assim, de haver compensação específica do hau do doador. Sahlins,
Stone Age Economics, mas o hau foi estudado pelo Marcel Mauss, no Essai sur
le Don.
Evidentemente relevante: ter uma coisa é estender o eu sobre ela.
Articuldado das perguntas sobre a posse e o domínio de outros94
93
Pigmalião não gostava das mulheres que conhecia e fez uma estátua, Galateia, pela qual se
apaixonou. Fala-se de efeito Pigmaleão nas relações amorosas quando um dos membros do casal
reprograma completamente o outro porque não consegue viver com a realidade mas apenas com
os seus ideais. Geralmente fala-se do efeito considerando o homem o construtor de mulheres
inexistentes (Pigmalião, de G. Bernard Shaw, também o filme Sherry 2000), mas o efeito contrário
também existe.
94
Prefere ter uma coisa ou o usufruto dessa coisa? Ter a coisa implica ter de a partilhar se isso
for requerido, mas a coisa é sua. Ter o usufruto implica não ter a coisa mas poder recusar a par-
tilha.
O que é o «ter» uma coisa? O que é que faz que uma coisa seja minha? Tem alguma coisa de
meu?
Noção do hau Kwakiutl e de espaço psicológico.

204
Eu e espaço de representação,
espaço físico, agêngia e posse

Como vimos o campo do eu sujeito são os ciclos funcionais, que nos


ligam ao ambiente. Um dos conjuntos de ciclos funcionais mais arcaicos,
porque mais necessários à sobrevivência individual, é a territorialidade
(Lorenz, apesar dos erros teóricos e Wilson, e toda a corrente etológica e
evolutiva). Os territórios são necessários quando os recursos necessários à
sobrevivência e à reprodução não são tão abundantes que permitam a manu-
tenção indefinida de uma densidade populacional elevada (Crook, Plocei-
nae, Reff ). Uma grande parte dos animais (e mesmo das plantas) defende,
por isso, territórios.
Na nossa espécie esta questão tem sido debatida ideologicamente: pre-
tende-se que sendo o homem infinitamente plástico ou intrinsecamente
bom não tem motivações inatas (Montagu, Reff para um caso extremo).
Mas a verdade é que a análise objectiva da realidade nega esta afirmação
(Pinker, Reff ). Temos espaços pessoais e gostamos de possuir certas coisas.
Deixemos de lado o pântano da ideologia a tentativa de justificação do que
gostaríamos que fosse verdade e concentremo-nos apenas na explicação dos
fenómenos. Recordamos que Reiss (Reff ), no seu influente estudo sobre
motivação, descreve 16 factores, dois dos quais são a procura de estatuto e a
de poder (estão de resto mais correlacionados –cerca de .5– do que os outros
factores –que têm uma correlação baixa, de .2). Também Schwartz (Reff ),
num modelo sociológico influente, admite a existência de motivações
intrínsecas de poder.
A noção de controlo da coisa: o que é que significa «posse» senão controlo?
Os outros e o espaço psicológico: proxémia e como o comportamento dos outros afecta o
nosso próprio comportamento. (Dados da Etologia humana moderna).
O estar «à vontade», ter espaço; e o estar constrangido e não ter espaço
A angústia: angústia quer dizer esteiteza. Como é que nos sentimos quando estamos tran-
quilos: largos ou estreitos? E quando estamos angustiados?
Os outros e o medo que temos deles. Todos temos medo dos outros; a partir daí ocorre que
lhes reagimos com uma mistura de atracção e de medo; o medo gera sempre agressividade. O
controlo dos outros passa pela agressividade, por os tornar subordinados relativamente a nós
(excepção disso nas relações amorosas).
Porque é que gostamos de corrigir os outros? Quantas vezes corrigimos uma pessoa em
assuntos sobre os quais não temos o mínimo controlo (qual é o melhor clube, quem é o melhor
piloto, qual o partido que deveria governar)?
Porque é que gostamos de ganhar uma discussão mesmo que não estejamos certos de ter
razão? O que é que ganhar uma discussão nos faz sentir?
Porque é que gostamos de dizer mal de um notável mesmo quando o nosso protesto não
surte qualquer efeito? O que é que isso nos faz sentir? Schadenfreude (gosto pelo mal que acon-
tece aos outros) e o que sentimos.

205
O que defenderei é que a posse de uma coisa é uma extensão do Eu a essa
coisa. Isto ocorre explicitamente numa enorme quantidade de culturas
arcaicas, que dizem que as coisas têm uma parte da pessoa que as detém. Para
nós a questão não é posta geralmente assim, mas podemos pensar num
exemplo: imaginemos que o nosso avô ou a nossa avó nos deixou um reló-
gio ou um colar. Suponhamos que perdemos esse relógio/colar. Teríamos
pena. Satisfazer-nos-íamos com um modelo exactamente igual? Não, por-
que não foi do nosso avô. Não o dizemos, mas está implícito que há alguma
coisa do avô ou da avó no relógio ou no colar. Chamamos a isso valor afec-
tivo, mas na verdade estamos a afirmar que há qualquer coisa da pessoa no
objecto que dela temos. Esta transferência da substância da pessoa para um
objecto que lhe pertenceu não é diferente daquilo que se passa na magia sim-
pática estudada por Frazer (The Golden Bough).
Se alguma coisa passou do avô ao relógio, até que ponto é que passa de
nós ao que consideramos nosso? Os nossos netos pensarão que sim, mas até
que ponto é que nós o sentimos? Não conheço estudos empíricos sobre este
tema. Mas parece-me que determinadas coisas – a primeira caneta, uma
árvore plantada por nós em jovens, «as minhas coisas» – são parte do nosso
mundo mental, tal como o nosso corpo faz parte de nós. Não são partes cen-
trais – posso perder o relógio e sobreviver, e, mais grave, posso perder uma
perna e manter-me eu (na verdade posso sentir-me eu imaginando-me sem
corpo: confirmação empírica em Sá-Saraiva et al., em preparação e em
Pereira e Sá-Saraiva, em preparação); mas são ainda assim partes do eu. Por
outro lado, parece-me que aquilo que estruturámos no mundo, a marca que
deixamos, a sentimos como uma marca de nós próprios, da nossa agência, do
nosso eu-sujeito. Em níveis mais simples, aquilo que eu comprei posso senti-
-lo como «meu» no sentido de que essa coisa faz parte de mim. James (Reff )
defendia precisamente que as posses de uma pessoa fazem parte do seu eu.95
95
Este tema foi tratado por Lévi-Bruhl, em L’Âme Primitive, sob o nome de appartenances,
pertences. Lévi-Bruhl considera que os pertences (cabelo, unhas, imagens, coisas que foram
posuídas, até comida que não foi terminada) são parte do eu, que é difuso e não bem delimitado
como ocorreria em nós. Ele distingue os casos como o descrito –o relógio do avô– dos que ele
descreve porque os primitivos achariam que o relógio é o avô. O próprio Lévy-Bruhl (Carnets)
reviu parcialmente as suas posições. Num outro texto tratarei deste assunto («O Eu e o Mana»).
Quero chamar a atenção aqui para um caso real que me foi descrito e para uma hipótese de
trabalho empírico. O caso real é o seguinte. Uma rapariga muito nova vai, pela primeira vez, ao
cabeleireiro. Tem um cabelo muito longo e cortam-lhe mechas de mais de 10 cm. O cabelo cai
para o chão. No fim, a rapariga olha para o cabelo e vê uma pessoa varrê-lo, sem cerimónias. A
rapariga fica muito ofendida com o que se faz com o cabelo dela.
A hipótese de operacionalização da noção de pertença é simples. Imaginemos que uma pessoa
dá uma caneta à pessoa amada e com quem está acasalada. A pessoa amada usa essa caneta para
escrever uma carta de amor a outra pessoa. Sentir-se-ia a pessoa amada a fazer uma traição por

206
Em que sentido é que essas coisas são partes do eu? Uma resposta possível
é que se trata de extensões dos nossos ciclos funcionais, tal como os territó-
rios animais ou as marcas que deixámos de nós. Como vimos, os ciclos fun-
cionais projectam-nos para fora do nosso corpo, projectam-nos na acção e
no mundo. Assim, dizer de uma coisa que é nossa significa marcá-la com a
minha identidade, como pertença ao meu ser, ao controlo do meu eu-sujeito.
Por outro lado, podemos aumentar o nosso eu-objecto com a posse de
coisas.96 Nisto não somos diferentes dos outros animais que se fazem grandes
para afugentar rivais (o processo está disseminado no reino animal; por
exemplo a pilo-erecção e a expansão corporais que nos chimpanzés acompa-
nha as exibições de dominância não difere morfologicamente da nossa (Eibl-
-Eibesfeldt, Argyle, Reff ). Assim, ao mostrar posse mostro poder de possuir
e no processo estendo os meus ciclos funcionais (e portanto o meu eu-
-sujeito) ao espaço dos outros, que se apercebem de mim como um eu-
-objecto poderoso. O domínio do espaço ou de coisas desejadas por outros é
a forma mais directa de competição pela afirmação do eu sujeito: esse domí-
nio passa a ter uma expressão física, funcionando assim como uma concre-
ção do espaço mental que se sente ter.
Finalmente há uma consequência do facto de se ter representações men-
tais que se impõem ao exterior (como nas ferramentas): tal como impomos
forma às ferramentas tentaremos impôr os nossos valores e as nossas visões
do mundo aos outros. Um exemplo simples disso é o hábito de contradizer
ou de corrigir o que os outros dizem, ainda que não haja nenhuma con-
sequência dessa contradição ou correcção (por exemplo, se discute de um
clube de futebol se é melhor do que outro). Quando corrigimos outra pes-
soa sentimo-nos bem, com o espaço do eu maior: dominamos essa pessoa se
a corrigirmos sempre e se forçarmos o comportamento dela a obedecer às
regras de comportamento que temos interiorizadas. É aqui, evidentemente,
que se deve procurar a raíz do autoritarismo.
Temos assim que a expressão do eu-sujeito como eu-objecto a ser com-
usar essa caneta? Preferiria a pessoa que deu a caneta que a carta fosse escrita com outra caneta?

96
Esta ideia assenta no pressuposto de que os outros nos assustam. Esta afirmação é parcial-
mente corroborada por estudos de psicologia que mostram que estamos em maior stress quando
estamos com outros (Reff); foi desenvolvida na psicanálise quer por Freud quer, sobretudo, por
Adler; tem manifestação sistemática nas culturas arcaicas em que a agência dos outros é temida
(Frazer, Lévy-Bruhl; por exemplo, considerar o culto dos mortos – além dos anteriores poder-se-
-a referir o trabalho de Metcalf) e faz sentido evolutivo, porque um conspecífico é sempre um
rival potencial por recursos ou por dominância (Reff dominância, Eibesfeldt). Num grupo pan-
míctico, todos os indivíduos, a não ser que sejam muito aparentados (como nas espécies eusso-
ciais, como abelhas, formigas, térmites ou ratos nus), entram em competição directa. Faz então
sentido que tenhamos ciclos funcionais para nos defender da potencial competição dos outros.

207
preendido pelos outros é, provavelmente, uma tendência básica da nossa
espécie, tal como o domínio dos outros o é nas outras espécies.

Eu e espaço de representação,
espaço físico, agêngia e posse

Como vimos o campo do eu sujeito são os ciclos funcionais, que nos


ligam ao ambiente. Um dos conjuntos de ciclos funcionais mais arcaicos,
porque mais necessários à sobrevivência individual, é a territorialidade
(Lorenz, apesar dos erros teóricos e Wilson, e toda a corrente etológica e
evolutiva). Os territórios são necessários quando os recursos necessários à
sobrevivência e à reprodução não são tão abundantes que permitam a manu-
tenção indefinida de uma densidade populacional elevada (Crook, Plocei-
nae, Reff ). Uma grande parte dos animais (e mesmo das plantas) defende,
por isso, territórios.
Na nossa espécie esta questão tem sido debatida ideologicamente: pre-
tende-se que sendo o homem infinitamente plástico ou intrinsecamente
bom não tem motivações inatas (Montagu, Reff para um caso extremo).
Mas a verdade é que a análise objectiva da realidade nega esta afirmação
(Pinker, Reff ). Temos espaços pessoais e gostamos de possuir certas coisas.
Deixemos de lado o pântano da ideologia a tentativa de justificação do que
gostaríamos que fosse verdade e concentremo-nos apenas na explicação dos
fenómenos. Recordamos que Reiss (Reff ), no seu influente estudo sobre
motivação, descreve 16 factores, dois dos quais são a procura de estatuto e a
de poder (estão de resto mais correlacionados –cerca de .5– do que os outros
factores –que têm uma correlação baixa, de .2). Também Schwartz (Reff ),
num modelo sociológico influente, admite a existência de motivações
intrínsecas de poder.
O que defenderei é que a posse de uma coisa é uma extensão do Eu a essa
coisa. Isto ocorre explicitamente numa enorme quantidade de culturas
arcaicas, que dizem que as coisas têm uma parte da pessoa que as detém. Para
nós a questão não é posta geralmente assim, mas podemos pensar num
exemplo: imaginemos que o nosso avô ou a nossa avó nos deixou um reló-
gio ou um colar. Suponhamos que perdemos esse relógio/colar. Teríamos
pena. Satisfazer-nos-íamos com um modelo exactamente igual? Não, por-
que não foi do nosso avô. Não o dizemos, mas está implícito que há alguma
coisa do avô ou da avó no relógio ou no colar. Chamamos a isso valor afec-
tivo, mas na verdade estamos a afirmar que há qualquer coisa da pessoa no
objecto que dela temos. Esta transferência da substância da pessoa para um

208
objecto que lhe pertenceu não é diferente daquilo que se passa na magia sim-
pática estudada por Frazer (The Golden Bough).
Se alguma coisa passou do avô ao relógio, até que ponto é que passa de
nós ao que consideramos nosso? Os nossos netos pensarão que sim, mas até
que ponto é que nós o sentimos? Não conheço estudos empíricos sobre este
tema. Mas parece-me que determinadas coisas – a primeira caneta, uma
árvore plantada por nós em jovens, «as minhas coisas» – são parte do nosso
mundo mental, tal como o nosso corpo faz parte de nós. Não são partes cen-
trais – posso perder o relógio e sobreviver, e, mais grave, posso perder uma
perna e manter-me eu (na verdade posso sentir-me eu imaginando-me sem
corpo: confirmação empírica em Sá-Saraiva et al., em preparação e em
Pereira e Sá-Saraiva, em preparação); mas são ainda assim partes do eu. Por
outro lado, parece-me que aquilo que estruturámos no mundo, a marca que
deixamos, a sentimos como uma marca de nós próprios, da nossa agência, do
nosso eu-sujeito. Em níveis mais simples, aquilo que eu comprei posso senti-
-lo como «meu» no sentido de que essa coisa faz parte de mim. James (Reff )
defendia precisamente que as posses de uma pessoa fazem parte do seu eu.97
Em que sentido é que essas coisas são partes do eu? Uma resposta possível
é que se trata de extensões dos nossos ciclos funcionais, tal como os territó-
rios animais ou as marcas que deixámos de nós. Como vimos, os ciclos fun-
cionais projectam-nos para fora do nosso corpo, projectam-nos na acção e
no mundo. Assim, dizer de uma coisa que é nossa significa marcá-la com a
minha identidade, como pertença ao meu ser, ao controlo do meu eu-sujeito.
Por outro lado, podemos aumentar o nosso eu-objecto com a posse de
coisas.98 Nisto não somos diferentes dos outros animais que se fazem grandes
97
Este tema foi tratado por Lévi-Bruhl, em L’Âme Primitive, sob o nome de appartenances,
pertences. Lévi-Bruhl considera que os pertences (cabelo, unhas, imagens, coisas que foram
posuídas, até comida que não foi terminada) são parte do eu, que é difuso e não bem delimitado
como ocorreria em nós. Ele distingue os casos como o descrito –o relógio do avô– dos que ele
descreve porque os primitivos achariam que o relógio é o avô. O próprio Lévy-Bruhl (Carnets)
reviu parcialmente as suas posições. Num outro texto tratarei deste assunto («O Eu e o Mana»).
Quero chamar a atenção aqui para um caso real que me foi descrito e para uma hipótese de
trabalho empírico. O caso real é o seguinte. Uma rapariga muito nova vai, pela primeira vez, ao
cabeleireiro. Tem um cabelo muito longo e cortam-lhe mechas de mais de 10 cm. O cabelo cai
para o chão. No fim, a rapariga olha para o cabelo e vê uma pessoa varrê-lo, sem cerimónias. A
rapariga fica muito ofendida com o que se faz com o cabelo dela.
A hipótese de operacionalização da noção de pertença é simples. Imaginemos que uma pessoa
dá uma caneta à pessoa amada e com quem está acasalada. A pessoa amada usa essa caneta para
escrever uma carta de amor a outra pessoa. Sentir-se-ia a pessoa amada a fazer uma traição por
usar essa caneta? Preferiria a pessoa que deu a caneta que a carta fosse escrita com outra caneta?

98
Esta ideia assenta no pressuposto de que os outros nos assustam. Esta afirmação é parcial-
mente corroborada por estudos de psicologia que mostram que estamos em maior stress quando

209
para afugentar rivais (o processo está disseminado no reino animal; por
exemplo a pilo-erecção e a expansão corporais que nos chimpanzés acompa-
nha as exibições de dominância não difere morfologicamente da nossa (Eibl-
-Eibesfeldt, Argyle, Reff ). Assim, ao mostrar posse mostro poder de possuir
e no processo estendo os meus ciclos funcionais (e portanto o meu eu-
-sujeito) ao espaço dos outros, que se apercebem de mim como um eu-
-objecto poderoso. O domínio do espaço ou de coisas desejadas por outros é
a forma mais directa de competição pela afirmação do eu sujeito: esse domí-
nio passa a ter uma expressão física, funcionando assim como uma concre-
ção do espaço mental que se sente ter.
Finalmente há uma consequência do facto de se ter representações men-
tais que se impõem ao exterior (como nas ferramentas): tal como impomos
forma às ferramentas tentaremos impôr os nossos valores e as nossas visões
do mundo aos outros. Um exemplo simples disso é o hábito de contradizer
ou de corrigir o que os outros dizem, ainda que não haja nenhuma con-
sequência dessa contradição ou correcção (por exemplo, se discute de um
clube de futebol se é melhor do que outro). Quando corrigimos outra pes-
soa sentimo-nos bem, com o espaço do eu maior: dominamos essa pessoa se
a corrigirmos sempre e se forçarmos o comportamento dela a obedecer às
regras de comportamento que temos interiorizadas. É aqui, evidentemente,
que se deve procurar a raíz do autoritarismo.
Temos assim que a expressão do eu-sujeito como eu-objecto a ser com-
preendido pelos outros é, provavelmente, uma tendência básica da nossa
espécie, tal como o domínio dos outros o é nas outras espécies.

estamos com outros (Reff); foi desenvolvida na psicanálise quer por Freud quer, sobretudo, por
Adler; tem manifestação sistemática nas culturas arcaicas em que a agência dos outros é temida
(Frazer, Lévy-Bruhl; por exemplo, considerar o culto dos mortos – além dos anteriores poder-se-
-a referir o trabalho de Metcalf) e faz sentido evolutivo, porque um conspecífico é sempre um
rival potencial por recursos ou por dominância (Reff dominância, Eibesfeldt). Num grupo pan-
míctico, todos os indivíduos, a não ser que sejam muito aparentados (como nas espécies eusso-
ciais, como abelhas, formigas, térmites ou ratos nus), entram em competição directa. Faz então
sentido que tenhamos ciclos funcionais para nos defender da potencial competição dos outros.

210
ÚCIMECAPÍTULO 4: SEXUALIDADE

O PROBLEMA

Os estudos sobre o comportamento da nossa espécie parecem, actual-


mente, congregar-se em torno de dois pólos: o da Biologia, que pretende
que, no plano comportamental, a nossa espécie pouco mais é do que um
antropóide falante, e os estudos culturais, que pretendem que a nossa espécie
é diferente das outras porque quase todos os comportamentos são convenci-
onalizados e transmitidos pela cultura.
Os dados referentes à sexualidade humana mostram esta mesma dicoto-
mia. Por um lado, há uma grande quantidade de investigações que mostram,
efectivamente, que a maior parte das previsões biológicas sobre o nosso
comportamento sexual se verificam. Por outro lado, a Etnologia revela, sis-
tematicamente, excepções, por vezes espectaculares, às previsões da Biolo-
gia. Sendo a sexualidade um dos campos em que se esperaria que a Biologia
tivesse uma influência mais forte e, ao mesmo tempo, sabendo-se que é um
dos assuntos mais centrais às teorias culturais, é um dos campos mais interes-
santes para examinar a relação entre os factores biológicos e culturais no
nosso comportamento.
Neste trabalho tentarei apresentar uma visão integrada da influência dos
factores culturais e biológicos. Mostrarei que em vários casos existem oposi-
ções mas que todo o processo é o resultado inexorável do programa com-
portamental da nossa espécie. Considerarei em primeiro lugar os factores
biológicos e depois os culturais.

DETERMINANTES BIOLÓGICOS

Para considerar os determinantes biológicos é necessário fazer uma breve


introdução sobre a biologia da sexualidade. Depois disso apresentarei os
dados da Etologia humana e da Psicologia evolutiva que mostram que o
nosso programa comportamental tem muitas semelhanças com os outros
mamíferos.
Teoria subjacente

Há dois sexos. Aquilo que os define é o tamanho dos gâmetas: as fêmeas


apresentam gâmetas grandes e os machos gâmetas pequenos e móveis. Trata-
-se da anisogamia, ou diferença entre as células reprodutivas, que se pensa ter
derivado da isogamia por um processo de selecção disruptiva (Parker, Baker e
Smith, 1972). Hipotetizou-se que, de uma situação em que as células sexuais
eram iguais e em que os organismos trocavam material genético indepen-
dentemente da existência de dois sexos, houve duas pressões selectivas dife-
rentes: uma no sentido de as células serem mais ricas em termos de nutrien-
tes; outra no sentido de as células serem mais rápidas. Desde que as células
ricas o fossem suficientemente para assegurar o processo inicial da embriogé-
nese, ter-se-ia criado um nicho ecológico para células rápidas e quase – ou
mesmo – desprovidas de citoplasma.
Desde o momento em que os dois sexos se encontram definidos, cria-se
uma assimetria de investimento entre as fêmeas com gâmetas grandes e os
machos com gâmetas pequenos: é que as células grandes são muito mais
caras de fabricar em termos energéticos.
Nos mamíferos a assimetria é particularmente grande dado que os machos
são desprovidos de glândulas mamárias, o que faz que seja a fêmea a ter os
custos da alimentação das crias depois do nascimento.
Sendo assim, cria-se uma situação de diferença fundamental de interesses
entre machos e fêmeas. Na medida em que os custos da reprodução são
extremamente elevados para as fêmeas, compreende-se que ela tenda a esco-
lher criteriosamente a qualidade dos machos com que vai acasalar. De facto,
a sua descendência depende, em parte, da qualidade dos genes desse macho.
Faz, então, sentido evolutivo que o comportamento das fêmeas seja contro-
lado por genes que codificam instruções para escolher o macho que apre-
sente maior probabilidade de assegurar a sobrevivência das crias. Por outro
lado, depois de inseminada, a fêmea não tem vantagens em copular com
outros machos. Espera-se, pois, que, numa estação reprodutiva, as fêmeas
escolham cuidadosamente e que copulem com machos que mostrem boa
«qualidade». Essa qualidade pode ser de tipos muito diferentes. Pode tratar-
-se de machos que apresentam sinais de saúde, machos com as características
que as fêmeas preferem (por exemplo, ser dominante, ter território), machos
que fornecem recursos às fêmeas ou à sua descendência ou ainda machos que
dão garantias de fornecer cuidados parentais às crias.
Do ponto de vista do macho esperar-se-ia instruções de comportamento
bastante diferentes. De facto, depois de inseminar uma fêmea, todas as
cópulas subsequentes com outras fêmeas podem traduzir-se em reprodução.

212
Na medida em que os custos desse acto são baixos esperar-se-ia uma tendên-
cia para múltiplas cópulas com fêmeas diferentes. Isto ocorreria mesmo nos
casos em que o macho tem de prestar cuidados à descendência: neste caso,
haveria tendência para acasalamento estável mas também tendência para
cópulas extra-par. Dado que são as fêmeas que escolhem e que os machos
têm disponíveis várias cópulas seguidas de inseminação, eles têm de garantir
que são escolhidos várias vezes e que são os únicos inseminadores. Ora
ocorre que, na maior parte das espécies, a razão sexual entre machos e
fêmeas é 1:1 (o fenómeno foi demonstrado por Fisher em 1930, para uma
revisão recente do problema incluindo os desvios à razão 1:1 ver, por exem-
plo, Frank, 1990). Assim, se um macho inseminar, por exemplo, 6 fêmeas,
haverá 5 outros machos que não inseminam nenhuma. A consequência
directa disto é uma forte competição inter-machos, que se traduz em lutas
frequentes por fêmeas, pela formação de hierarquias de dominância em que
o macho alfa é quem mais vezes é escolhido, ou por comportamentos de
monopolização de fêmeas em haréns, como ocorre em várias espécies (e, por
vezes, na nossa).
Uma outra questão, especialmente relevante nos vertebrados superiores,
são os cuidados parentais. Nas aves, o desenvolvimento muito rápido dos
ovos e a necessidade de um dos progenitores permanecer constantemente no
ninho obriga a que tanto a fêmea quanto o macho cooperem na criação. Em
consequência disso, a maior parte das aves é monogâmica (acasalando com
um par por postura Lack, 1968). Em condições de extraordinária abundância
de alimento, pode suceder que os machos assegurem cuidados parentais a
mais do que uma fêmea (Crook, 1965), mas a tendência é a monogamia. Nos
mamíferos o problema é diferente, porque, devido à dependência das crias
do leite materno, pode ocorrer que a fêmea seja suficiente para assegurar os
cuidados parentais. Por isso, nos mamíferos, as estratégias monogâmicas são
raras, predominando os sistemas poligínicos ou em que o macho e a fêmea se
separam a seguir à cópula – o macho para tentar novos acasalamentos, a
fêmea, se inseminada, para se preparar para o parto. Toda a questão está em
saber até que ponto é que um macho tem mais a ganhar em permanecer com
a fêmea (o que fará se os cuidados parentais paternos forem necessários) ou
em investir tempo e energia em outras hipóteses de cópula (caso em que
abandonará a fêmea). Quanto à fêmea, a escolha é diferente. Se não conse-
guir um macho dominante, tem de decidir se continua a procurar ou se se
junta a outra fêmea com outro macho que tenha recursos suficientes para a
descendência (e.g. Elliot, 1975). As situações em que uma fêmea acasala com
vários machos ocorrem (e.g. Orians, 1985) mas são extremamente raras por-
que é excepcional que uma fêmea se reproduza suficientemente depressa

213
para ganhar com os presentes que os machos lhe fornecem para o acasala-
mento.
Assim, encontram-se situações em que os cuidados com a descendência
são monoparentais – o que nos vertebrados superiores implica ser a fêmea,
dada a fertilização interna – e sistemas em que há cooperação entre machos e
fêmeas. Nesse caso, pode haver monogamia, em situações de recursos escas-
sos, poliginia, quando os recursos são mais abundantes e um macho acasala
com mais do que uma fêmea, mais raramente, poliandria (uma fêmea vários
machos) e, até, poliginandria, quando várias fêmeas acasalam com vários
machos.

A Biologia do sexo humano

Com este pano de fundo em mente, tentemos compreender as previsões


sobre o comportamento da nossa espécie.

Espécie de tendência poligínica?

Como se sabe, há grande variedade cultural nas prácticas sexuais da nossa


espécie. Basta referir que, em culturas tibetanas (ver revisão em Durham,
1991), se encontram todos os sistemas de acasalamento: monogamia, poligi-
nia, poliandria, poliginandria. Existe mesmo uma cultura – os Naires do
Malabar – em que há promiscuidade (ver abaixo). Temos, assim, todos os
sistemas de acasalamento possíveis. Este dado não pode ser explicado biolo-
gicamente. De facto, pode-se prever que uma espécie seja monogâmica,
monogâmico-poligínica, ou poligínica (por exemplo, Jarman, 1974), mas
não que tenha todos os modos de acasalamento.
Apesar disso, pode-se tentar ter uma ideia das tendências da nossa espécie
fazendo uma estatística. Essa estatística não pode ser feita com base em indi-
víduos – todos sabemos que a nossa cultura impôs, activa ou passivamente,
modelos de acasalamento que nada têm que ver com os modos aboriginais
de várias culturas.
Uma forma mais fiel de responder à questão é tentar saber qual é a per-
centagem de culturas monogâmicas, poligínicas e poliândricas. Embora não
seja fácil estabelecer quantas culturas se devem considerar (por exemplo,
Portugal e Espanha são uma cultura ou duas? E os Kagaras e os Kangoros
referidos infra são uma ou duas culturas?), os dados parecem relativamente
claros. É frequentemente citado o Atlas das culturas mundiais, de George

214
Murdoch (1964) que dá os seguintes resultados: Sistemas poligínicos 83,4%;
monogâmicos 16%; poliândricos 0,47%. Há outras tentativas de caracteriza-
ção dos sistemas de acasalamento humanos (ver Ford e Beach, 1951, por
exemplo) que dão resultados bastante semelhantes. Além disso, nas culturas
estratificadas (quer as da Antiguidade quer as das Américas Central e do Sul
– Aztecas e grupos associados e Incas), Laura Betzig (1986, 1992) mostrou
que o sistema mais comum era a poliginia com haréns organizados. Parece,
pois, relativamente seguro afirmar que a nossa espécie tem tendência poligí-
nica.
Um outro argumento a favor da poliginia na nossa espécie vem do facto
de haver bimaturismo sexual, isto é, de as fêmeas maturarem significativa-
mente mais cedo do que os machos. Isto ocorreria porque os machos, tendo
de competir entre si, teriam vantagem em atingir tamanho suficiente para
defrontar os seus rivais, enquanto que as fêmeas teriam vantagem em engra-
vidar o mais cedo possível, para garantir um maior número de descendentes.
Outro argumento a favor de não sermos uma espécie monogâmica baseia-
-se no tamanho dos testículos humanos. Os gorilas são poligínicos for-
mando haréns que os machos defendem. Assim, as fêmeas de um harém são,
com bastante probabilidade, inseminadas pelo macho. Nos chimpanzés
passa-se uma caso diferente: as fêmeas acasalam com vários machos,
havendo promiscuidade (a vantagem dos machos dominantes é que geral-
mente copulam com as fêmeas durante os momentos de maior fertilidade).
Neste caso, há vantagem em que os machos copulem mais frequentemente
para garantir que é o seu esperma (e não o dos outros machos), que fica na
fêmea (chama-se a este processo «competição de esperma»). Em consequên-
cia, os testículos dos gorilas são, em proporção com o tamanho do corpo,
muito menores do que os dos chimpanzés. Os nossos testículos são menores
do que os dos chimpanzés mas maiores do que os dos gorilas. Isso sugere que
não somos monogâmicos mas que os machos têm de entrar na competição
de esperma, o que significa que a fidelidade das fêmeas não é segura e que a
espécie tem tendência para a promiscuidade.

A maior agressividade entre machos

Como dissemos, a agressividade e a dominância cumprem funções de


assegurar recursos, entre os quais um parceiro sexual. Como há mais cópulas
masculinas potencialmente seguidas de inseminação do que femininas, há
competição entre machos.
Efectivamente, os machos são sensíveis ao estatuto desde a infância e são-

215
-lhe mais sensíveis do que as mulheres durante toda a vida (ver revisões em
Buss, 1999 e em Eibl-Eibesfeldt, 1989). Os traços de dominância valorizados
por homens e mulheres são diferentes: enquanto que as mulheres parecem
valorizar a dominância pró-social, os homens valorizam a dominância inter-
-pessoal. Os homens são, aliás, desde a infância, mais agressivos do que as
raparigas num espectro largo de culturas (Weissner, 1979 apud Eibl-Eibes-
feldt, 1989), e a sua agressividade é facilmente desencadeada; os desencadea-
dores são, frequentemente, insultos verbais do seu estatuto, ou disputa entre
fêmeas: desde a Ilíada que se sabe que há guerras por mulheres, mas Chag-
non (1983) descreveu uma guerra real entre os Yanomamô (Brasil) precisa-
mente com essa origem. A agressão feminina é muitíssimo mais rara e ocorre
sobretudo através de insultos verbais (consistindo os insultos, frequente-
mente, em afirmações de falta de beleza ou de promiscuidade sexual, as duas
características mais evitadas pelos machos nas suas escolhas (Buss e Deden,
1990). Há, aliás, uma grande concordância entre 25 culturas (Williams e Best,
1982, 1990) sobre as características masculinas e femininas: os homens devem
ser aventurosos, fortes, dominantes, independentes e determinados,
enquanto que as mulheres são vistas como sentimentais, submissas, supersti-
ciosas, afectuosas, sonhadoras e sensíveis. Uma análise factorial mostrou
haver diferenças nas dimensões de «força» e «actividade». Estas diferenças,
que parecem irredutíveis à educação (Spiro, 1958, 1979), estão de acordo com
o esperado pela competição sexual.
Além disso, a agressividade entre machos é muitíssimo maior do que a
que ocorre entre fêmeas, e, numa estimativa muito conservadora, um
homem tem vinte vezes mais probabilidade de ser morto por outro homem
(excluindo os casos de guerra) do que uma mulher por outra mulher
(incluindo os casos de infanticídio). Estes dados (Betzig, 1986) e outros (Daly
e Wilson, 1988, que encontram as diferenças de agressividade entre machos e
fêmeas em todas as culturas que estudaram) sugerem claramente que os
homens são muito mais inter-agressivos do que as fêmeas. Além disso, os
homens são, desde a infância, muito mais agressivos do que as mulheres (ver
revisão em Buss, 1999, cap. 10). Outra hipótese é de que os homens se
encontrem mais bem adaptados para a caça, mas para isso não seria necessá-
rio que se interessassem sempre mais pela dominância e pelo estatuto do que
as mulheres (Spiro, op. cit.). De facto, as hierarquias de dominância desen-
volvem-se rapidissimamente entre rapazes e homens (ver Savin-Williams,
1979, 1980).
Parece, então, provável que os homens sejam mais interagressivos em con-
sequência, pelo menos parcial, de terem de lutar por fêmeas. A noção de

216
macho viril, aparentemente um universal humano, pode, pois, ser uma con-
sequência directa da selecção sexual.

Diferenças de excitabilidade

Já referimos que as culturas humanas são predominantemente poligínicas.


Contudo, poder-se-ia pensar que se trata apenas de normas culturalmente
dependentes do facto de o macho, por ser mais forte fisicamente, impor às
fêmeas um estatuto de «prisioneiras sexuais». Mas se considerarmos o que se
passa efectivamente com os indivíduos, verifica-se novamente que os
machos têm mais tendência para procurar variedade sexual do que as
fêmeas. Os estudos de Kinsey (Kinsey, Pomeroy e Martin, 1948, Kinsey,
Pomeroy, Martin e Gerhard,1953) mostram que cerca de 50% dos homens
com 40 anos teve relações extraconjugais enquanto que apenas 25% das
mulheres com a mesma idade o fizeram. Estes conjuntos de dados vão no
sentido de que o nosso comportamento sexual é semelhante ao dos outros
animais. Há um estudo interessante, feito por Symons e Ellis (1989), em que
se punha as pessoas perante uma situação de escolha hipotética:

Se tivesse oportunidade de copular com um membro anónimo do sexo oposto


que fosse fisicamente tão atraente e sexualmente competente quanto o seu côn-
juge ou namorado/a mas não mais do que ele/a e não houvesse risco de ser des-
coberto/a, de contrair uma doença ou de gravidez e não houvesse possibilidade
de se formar uma relação estável e, ainda, se essa cópula substituísse uma
cópula com o seu cônjuge e não se adicionasse a ela, copularia com essa pessoa?

Os resultados são bastante claros: as mulheres tendem claramente a res-


ponder que o não fariam enquanto que os homens consideram ou se incli-
nam para a possibilidade de o fazer.
Os machos parecem, também, mais abertos a relações com completos des-
conhecidos. Clarke e Hatfield (1989) fizeram uma experiência em que um
indivíduo bonito afirma a outro, do sexo oposto, que o acha atraente e lhes
pergunta se quereria ter relações sexuais com ele. 100% das mulheres diz que
não, mas 75% dos machos diz que sim.
Um argumento complementar vem do comportamento de homossexuais
masculinos e femininos. Dado que o comportamento sexual de machos e
fêmeas heterossexuais é alterado pelo facto de haver interacção entre duas
estratégias diferentes, poder-se-ia pensar que, na medida em que a motiva-
ção sexual não é profundamente diferente da das pessoas heterossexuais, se

217
poderia observar as diferenças de estratégia de forma mais pura. Efectiva-
mente, parece ser o que ocorre: os homossexuais masculinos são incompara-
velmente mais promíscuos do que os femininos: Schafer (1977) registou que
as lésbicas, em média, tinham tido duas parceiras sexuais, enquanto que os
homossexuais masculinos tinham tido dezasseis; por outro lado, só 1% das
mulheres mas 61% dos homens tinha tido mais do que dez parceiras sexuais.
Na medida em que a intensidade da motivação sexual dos homossexuais é
igual ao dos heterossexuais, estes dados corroboram o que se esperaria a par-
tir das previsões da Sociobiologia.
Se os machos procuram, em geral, mais variedade, faria sentido que tives-
sem um limiar de excitação sexual mais baixo do que o das fêmeas. Os dados
aqui são confusos: os resultados mais antigos (Kinsey, por exemplo), confir-
mam esta ideia; mas os resultados mais recentes, obtidos por apresentação de
material erótico ou pornográfico a voluntários, sugere que a excitabilidade é
semelhante (Mosher e Abramson, 1977). Contudo, a discrepância entre as
indústrias pornográficas ou eróticas dirigidas ao público masculino e femi-
nino sugere que há, de facto, diferenças de reactividade (mesmo a maior
parte do material pornográfico centrado no nu e nas actividades sexuais
masculinas parece dirigida a homossexuais e não a mulheres, dada que incide
em práticas homo-eróticas). Em qualquer caso, há outras diferenças no com-
portamento sexual de homens e mulheres que estão de acordo com as dife-
renças encontradas em outros animais. Nomeadamente, se considerarmos
que a masturbação reflecte a intensidade do desejo sexual, verifica-se que os
machos, tal como se esperaria, se masturbam mais do que as fêmeas (maior
frequência de machos a masturbar-se regularmente e maior frequência das
masturbações (Leitenberg, Detzer e Srebnik 1993). Há, além disso, um
estudo particularmente arguto (porque muito simples) que apoia a hipótese
proveniente dos estudos animais. Singer (1985) pediu a milhares de estudan-
tes (número igual de machos e fêmeas) para participarem num estudo sobre
comportamento sexual sob as seguintes condições: deviam manter um diá-
rio sobre os seus sentimentos de excitação sexual e abster-se de qualquer
actividade sexual durante um mês. Ofereceram-se para o estudo cerca de 300
mulheres (cerca de 10% das solicitadas), e todas concluíram o estudo. Só 15
homens se ofereceram, e desses apenas 6 concluíram o estudo.

O imaginário erótico

Independentemente da intensidade ou premência do desejo sexual, o ima-


ginário erótico feminino e masculino parecem ser diferentes (Ellis e Symons,

218
1990, Wilson, 1987). Aparentemente, os homens centram as suas fantasias em
«partes do corpo em movimento» enquanto que as mulheres situam os
encontros sexuais em contextos mais românticos. A identidade do parceiro
nas mulheres também parece mais bem definida do que nos homens. No
geral, isto parece indicar que os homens fantasiam sobre cópulas com
mulheres sem identidade enquanto que as mulheres fantasiam sobre cópulas
em contextos românticos e com parceiros mais bem caracterizados do ponto
de vista emocional.

O que os machos e as fêmeas procuram no parceiro

Como vimos, os machos e as fêmeas dos outros mamíferos diferem na sua


estratégia sexual. Simplificando a questão, pode afirmar-se que enquanto a
fêmea pode ser inseminada um número restrito de vezes numa estação
reprodutiva, o macho pode inseminar quase tantas fêmeas quantas as cópu-
las (desde que coincidam com o período reprodutivo das fêmeas). Por isso, a
fêmea deveria escolher o macho com que acasala (visto que essa escolha
determinará a qualidade génica da descendência), enquanto que o macho
tem vantagem em não perder oportunidades de cópula (visto que aumenta-
ria a quantidade da descendência).
Até que ponto essas previsões se aplicam à nossa espécie? David Buss
(1989) realizou um extenso trabalho em 37 países, Europeus, das Américas
do Norte e do Sul, de África e da Austrália em que pretendeu especifica-
mente testar as previsões sociobiológicas quanto às diferenças existentes
entre os sexos nos factores que valorizavam quando da escolha sexual.
Os seus resultados podem ser sumariados na tabela seguinte:

Previsões de Buss %a Total a % Total Total sem


(1989) favor favor contra contra diferença
Fêmeas privilegiam 97 36 3 0 1
os aspectos económicos
Machos privilegiam 92 34 8 0 3
a atracção física
Machos preferem 100 37 0 0 0
fêmeas mais novas
Machos valorizam 62 23 38 0 14
castidade do parceiro
mais do que as
fêmeas

219
Fêmeas privilegiam 78 29 8 3 5
mais do que os
machos a ambição e
a combatividade do
parceiro

Assim, pode-se concluir que os dados de Buss fornecem um apoio bas-


tante claro às previsões da teoria evolutiva: as mulheres valorizam sobre-
tudo o estatuto e a tentativa de o alcançar enquanto que os homens valori-
zam o aspecto físico e a juventude e atribuem maior importância à castidade.
Acrescente-se que, segundo o mesmo estudo, as mulheres preferem homens
um pouco mais velhos – o que faz sentido dado que o desenvolvimento
sexual é mais tardio nos homens do que nas mulheres. Outros estudos (por
exemplo, Kenrick e Keefe, 1992, Kenrick, Keefe, Gabrieldis e Cornelius,
1966) mostraram que os homens, independentemente da idade, preferem
mulheres de 25 anos; as mulheres preferem homens cerca de 3,5 anos mais
velhas do que elas. Compreende-se facilmente a preferência por mulheres
no período mais fértil. Neste estudo corrobora-se a ideia de que, em confor-
midade com a teoria, as fêmeas escolhem os machos com mais recursos e esta-
tuto. Este padrão parece muito espalhado: em 186 sociedades a correlação
entre o estatuto dos machos, o número de mulheres que têm é positiva (Bet-
zig 1986).
Assim, a noção de que a fêmea escolhe em termos da «qualidade» do
macho enquanto que o macho escolhe fêmeas na fase mais fértil e que dêm
garantias de ter filhos dele parece confirmar-se.
Greenless e McGrew (1994) realizaram um estudo interessante a este res-
peito nos Estados Unidos. Analisaram os anúncios pessoais – «senhora pro-
cura cavalheiro» – para avaliarem que tipo de carcaterísticas procuravam
homens e mulheres no parceiro. Os anúncios constituíam propostas de rela-
ção estável, e não de relações curtas. A análise dos anúncios revelou que as
mulheres procuram mais a segurança económica do que os homens, que lhe
atribuem pouca importância, que as mulheres estão conscientes da impor-
tância da sua aparência física em maior grau do que os homens e que os
homens procuram mais a aparência física do que as mulheres e estão mais
conscientes do que as mulheres da importância do oferecimento da segu-
rança económica.
Estes dados forem encontrados várias vezes. Assim, por exemplo Gram-
mer (1992), na Alemanha, analisou os registos de uma companhia de serviços
de encontros e verificou existir uma correlação significativa entre o orde-
nado dos homens e a diferença de idade relativamente às raparigas com que
saíam (as raparigas eram, evidentemente, mais novas), o que sugere, de novo,

220
que o trunfo dos homens é o estatuto enquanto o das mulheres é a juven-
tude (isto é, a fertilidade).
Neste contexto tem-se emitido a hipótese de que este estado de coisas é
natural, visto que, na maior parte das sociedades, são os homens os detento-
res do poder, indiciado pelo seu estatuto. Em qualquer caso, é difícil usar
estes dados, porque a situação etnograficamente mais comum é que os
homens se encontrem em posições de poder que, aliás, parecem procurar
mais do que as mulheres (cf. estudos dos Kibutzin, em Spiro, 1958, 1979 e
Eibl-Eibesfeldt, 1989). Assim sendo, e embora a decisão racional das mulhe-
res as pudesse levar a investir em machos dominantes ou com propriedade, é
natural que tenha havido adaptações biológicas nesse sentido, dado ser pre-
sumivelmente esse o estado de coisas na nossa espécie ao longo da evolução.
Costuma ser referido, neste contexto, um estudo de Buss, 1994, que mostra
que as mulheres ocidentalizadas com posições hierárquicas muito elevadas
tendem a escolher machos com estatuto ainda mais elevado do que o seu.
Há, aliás, culturas ágrafas em que, encontrando-se as mulheres numa posi-
ção de maior riqueza – sobretudo conseguida à custa de prostituição – as
mulheres mais ricas escolhem os seus maridos com mais exigência do que as
mais pobres – exactamente o contrário do que se esperaria se as mulheres
escolhessem maridos de alto estatuto para compensar a sua posição subordi-
nada (ver Ardener, Ardener e Warmington, 1960, apud Buss, 1999).
Mas estes dados pouco adiantam. Só se descobríssemos culturas em que as
mulheres fossem efectivamente detentoras do poder poderíamos ver se as
mulheres dominantes escolheriam machos independentemente do seu esta-
tuto. Ora, repitamo-lo, tais culturas não existem ou, quando existem, trata-
-se de situações em que as mulheres têm mais recursos graças à prostituição,
o que tende a reforçar a posição da sociobiologia e não dos culturalistas por-
que as mulheres se limitaram a usar, com particular eficácia, os argumentos
da juventude e da procura de variedade sexual dos machos.

Especificidades da escolha das fêmeas

Preferência por machos fortes — Já referimos a importância do estatuto. Rela-


cionado com ele encontra-se, provavelmente, a tendência das mulheres para
preferir machos musculosos e fortes. Faz sentido evolutivo que as fêmeas
escolham machos fortes dado que, como vimos, os machos têm de competir
entre si pelas fêmeas. Assim, uma fêmea que escolha um macho forte torna
mais provável que a sua descendência também compreenda machos fortes.
Em inúmeras sociedades há combates entre machos que definem o estatuto

221
entre eles (por exemplo, ver Eibl-Eibesfeldt, 1989), tal como em muitas
outras espécies.
Quanto à preferência directa por machos fortes, refiram-se os dados de
Ekhard Hess (1975), que mostrou que a dilatação pupilar das fêmeas ocorre
em resposta a fotografias de homens musculosos em muito maior grau do
que a homens normais, ainda que elas afirmassem não se sentir atraídas por
esse tipo de macho; como a resposta de abertura pupilar atrai os machos,
que a interpretam como «simpatia» e «abertura sexual», parece provável que
devamos considerar esses dados como mostrando que, apesar do que dizem,
as mulheres se sentem atraídas por machos musculosos, o que, como vimos,
está de acordo com as previsões biológicas.
Esta preferência por machos fortes e de alto estatuto revela-se até na pre-
ferência pelo cheiro: as fêmeas distinguem o estatuto dos machos pelo
cheiro e preferem os machos dominantes (Havlicek, Dvorakova, Bartos e
Flegr, 2005).
Uma variante da «força» é a qualidade genética. Há dados que mostram
que as mulheres preferem o cheiro dos machos que são geneticamente mais
diferentes delas; mas uma maior segurança na qualidade génica do macho é
dada pela simetria. A simetria mostra que um organismo resiste bem aos
patogéneos. Ora sabe-se que as fêmeas chegam a discriminar, pelo cheiro
apenas, os machos simétricos e assimétricos (Rikowsk e Grammer, 1999,
Thornhill e Gangestad, 1999).
Investimento nas crianças — Peggy la Cerra (apud Buss, 1999) mostrou que as
fêmeas consideravam os homens que interagiam com crianças mais atraentes
do que os que não interagiam ou mostravam desinteresse pela criança. Isto
indica que as fêmeas acham mais atraente um macho que dá indicações de
vir a ser um bom pai. Este problema coloca-se porque o macho pode assu-
mir uma estratégia que consiste apenas na inseminação de um maior número
de fêmeas, sem assegurar os ulteriores cuidados parentais. O macho garante
a descendência desde que a fêmea consiga assegurar esses cuidados parentais,
de forma que todo o custo da reprodução cai sobre a fêmea. É por isso que
se espera que as fêmeas escolham machos que dêem garantias de cuidarem da
descendência. Em concordância com esta ideia, os machos, ao estimarem a
atracção de uma fêmea, não pareciam afectados por este aspecto. Aparente-
mente, as fêmeas conseguem, apenas ao olhar para um homem, determinar
se eles gostam de crianças ou não (Buss, 2009, pag. 127).
Preferência por machos geneticamente diferentes das fêmeas — Tem-se descoberto
que as fêmeas avaliam os machos em termos do seu cheiro. Nomeadamente,
Wedekind, Seebeck, Bettens, Paepke (1995) e Wedekind e Füri (1997) mos-
traram que as mulheres escolhem, de entre váris T-shirts usadas durante 48h

222
por vários homens, aquelas que revelavam um complexo de histocompatibi-
lidade mais diferente do delas, o que significa que parecem estar a escolher
os machos mais diferentes delas em termos genéticos. Os machos não mos-
tram graus de preferência tão pronunciados.
Mais uma vez, estes dados parecem mostrar que as fêmeas escolhem os
seus parceiros com muito mais cuidado do que os machos, o que está de
acordo com a noção de que o investimento na maternidade é muito mais
importante e tem de ser muito mais bem ponderado do que o investimento
na paternidade.
Diferença entre as escolhas a curto e a longo prazo nas fêmeas — Apesar do que
foi dito, as mulheres não são monogâmicas. Por um lado, há vantagens em
copular com mais de um homem. Nos animais, as explicações deste fenó-
meno (que é muito espalhado) têm que ver com garantia de fertilidade (o
macho com que a fêmea acasalou pode não ser fértil ou não o ser muito),
variabilidade genética (ter filhos de mais de um macho garante maior dife-
rença genética e, portanto, diferenças na resistência aos patogéneos, garan-
tindo que o mesmo patogéneo tem menor possibilidade de afectar os vários
filhos) e a cópula em que a fêmea acasala com um macho de mais elevado
estatuto do que aquele com quem está acasalada.
Esta última questão foi investigada na nossa espécie, e efectivamente veri-
fica-se que as mulheres acasaladas copulam com os amantes durante o
período da ovulação; durante esse período, as fêmeas escolhem machos mas-
culinos (medida da masculinidade facial), grandes e fortes, dominantes e
inteligentes, o que garante uma boa qualidade dos filhos (ver revisão de lite-
ratura em Buss, 2009). Mais precisamente, sabe-se (Scheib, 1997) que se as
mulheres forem postas numa situação em que devem escolher entre perfis
masculinos para uma relação breve ou para um casamento, escolhem para a
relação breve os machos com características físicas de saúde e fertilidade e,
para relações estáveis, traços de personalidade indicadores de estabilidade.

Especificidades da escolha dos machos

De acordo com as previsões etológicas esperar-se-ia, e parece ser o que os


dados revelam, que os machos mostrassem preferência por sinais físicos de
fertilidade e não por estatuto ou recursos. Há numerosos dados que corro-
boram estas previsões, como referimos acima. Quanto às preferências estéti-
cas dos machos, há vários conjuntos de dados que merecem referência.
Como vimos, os machos preferem fêmeas jovens, quase independente-
mente da sua própria idade, e fêmeas consideradas belas pelos padrões da sua

223
cultura. Tem-se tentado compreender o que poderia ser considerado como
«belo» do ponto de vista das tendências de acasalamento previstas pela Soci-
obiologia.
Critérios de beleza — Apesar da grande diversidade nos padrões de beleza
nas diferentes culturas, os critérios parecem ser os mesmos. As mulheres que
aparentam juventude são sempre preferidas; as que apresentam boa pele,
cabelo longo e brilhante, características faciais femininas,99 e simetria. Buss,
pp. 147-152)
A relação cintura-anca — Devendra Singh (1993) pensou encontrar um
invariante das preferências masculinas de beleza feminina: a relação entre o
diâmetro da cintura e o da anca da mulher. Analisando as medidas das rai-
nhas de beleza do concurso Miss America e os «centerfolds» da revista Playboy
(trata-se de um desdobrável em que é apresentada a «playmate do mês», isto é,
a rapariga eleita como a mais bela em cada mês), concluíu que tem havido
uma modificação da preferência quanto ao peso (as mulheres belas são cada
vez mais magras) mas uma razoável constância na relação entre cintura e
anca: os valores andam em torno de 0,70, independentemente de serem mais
ou menos gordas. Os homens e as mulheres preferem mesmo mulheres mais
gordas mas com essa relação cintura-anca do que mulheres mais magras mas
com diâmetros de cintura mais elevados. Registe-se, contudo, que a relação
cintura-anca nas mulheres oscila entre 0,67 e 0,8, isto é, entre valores próxi-
mos de 0,7. Poderíamos aqui estar perante um efeito de médias como que o
discutiremos quando nos referirmos às faces.
Os valores normais desta relação, em mulheres antes da menopausa são
entre 0,67 e 0,80, e parecem corresponder, nas fêmeas, a uma maior presença
de estrogéneos e a uma melhor capacidade de reprodução. De modo que o
resultado de Singh parecia, finalmente, afirmar que há, de facto, padrões de
beleza relacionados com a fertilidade, tanto mais que houve muitas corrobo-
rações dos seus dados em outros países.
Mas não se pode excluir que os meios audio-visuais possam ter homoge-
neizado o nosso gosto e que, mesmo nesse aspecto, a escolha seja determi-
nada culturalmente. Para testar esta ideia, Yu e Shepard (1998) apresentaram
as imagens de Singh a uma tribo sul-americana efectivamente isolada do
contacto ocidental – os Matsiguenca. As preferências dos homens Matsi-
guenca são muito diferentes das nossas: preferiam mulheres com uma rela-
ção cintura-anca de 0,90 (o que corresponde a silhuetas de mulheres grávidas
ou ventripotentes) e afirmaram que as silhuetas de 0,70 correspondiam a

99
As caracerísticas faciais masculinas traduzem a presença de testosterona. São elas: protube-
rância do toro supraciliar, maças do rosto fortes, queixos bem desenvolvidos, narizes proemi-
nentes. As faces mais femininas não apresentam estas protuberâncias tão marcadas.

224
mulheres doentes. Os dados são interessantes porque mostram uma de duas
coisas: ou a adaptação dos índios sul-americanos é diferente da nossa (o que
parece possível, dado que a cintura das índias sul-americanas é, geralmente,
bastante mais larga do que a de outros grupos humanos) ou o resultado de
Singh traduz a influência cultural norte-americana. Se considerarmos vários
nus italianos renascentistas poderemos encontrar uma muito grande varie-
dade: Boticelli e Pisanello, por exemplo, apresentam valores de cintura-anca
respectivamente mais elevados e mais baixos do que os esperados por Sing.
Os dados mais recentes mostram que quer no Peru quer na Tanzânia as
preferências vão para relações cintura-anca mais elevadas. O dado pode ser
relacionado com a tendência para as culturas periodicamente sujeitas à fome
para preferirem mulheres mais gordas (Sugiyama, 2005).
A importância da gordura — É, ainda, necessário afirmar que, na maior parte
das culturas, o adágio «gordura é formosura» se aplica. Este facto tem razão
de ser, quer cultural quer biológica. Em primeiro lugar deve compreender-
-se que o maior problema de qualquer espécie é encontrar alimento. Tam-
bém na maior parte das culturas, mesmo de hoje em dia, o maior problema
do quotidiano é obter comida. É, pois, natural que se tenha desenvolvido
um traço cultural que valorize positivamente a gordura – uma forma eficaz
de armazenar alimento – tanto mais que ela é bastante rara. Nas culturas su-
per-alimentadas do ocidente perdemos isso de vista, mas ainda no sec. XIX
a gordura era considerada como um atributo de beleza e a ideia da «gordura
é formosura» encontra-se em várias outras culturas – por exemplo, nas ilhas
Fidji (Becker, 1994). Por outro lado, e do ponto de vista biológico, a gordura
das mulheres favorece o sucesso reprodutivo (ver discussão e referências em
Badcock 2000). Nesse sentido, devemos considerar o caso particular das cul-
turas ocidentais actuais como aberrante, e não como norma. Nesse sentido, a
refutação das expectativas de Singh não nos deve espantar.
A face — A beleza subjectiva da face é, talvez, ainda mais variável do que a
apreciação do corpo. Por exemplo, Tolstoi, na Ressurreição, apresenta um
ligeiro estrabismo como um factor de atracção sexual, o que não creio que
corresponda a uma preferência dos meus leitores. Da mesma maneira, os dis-
cos labiais usados em muitas culturas africanas tornam as mulheres desatra-
entes para nós, mas são colocados para as fazer mais belas. Buss (1999) refere
a importância da pele, que deve ser lisa, verificada em várias culturas. Eibl-
-Eibesfeldt (1989), na sequência de Lorenz, refere-se ao esquema infantil
(forma geral arredondada, olhos grandes, lábios carnudos, nariz pequeno)
como um factor de atracção. Também aqui me parece haver variedade: mui-
tos dos sex-symbols contemporêneos têm um ar bastante agressivo e nada
reminiscente do esquema infantil. Sem dúvida de que a «mulher-criança» é

225
loira, rosada, tem olhos grandes e claros e a boca entreaberta na inocência
completa do que se vai passar. Mas a bíblica «prostituta vermelha da Babiló-
nia» tem outras características, talvez mais próximas da La lussuria, de Pisa-
nello (sec. XV), dos extraordinários nus deitados de Modigliani ou dos per-
turbantes corpos de Egon Schiele. Se aceitarmos que os homens têm expec-
tativas diferentes em relação às mulheres com que se casam e àquelas que
lhes despertam o desejo sexual – o que talvez seja verdade, como referimos
noutro local deste texto – estas considerações podem fazer sentido. De
resto, estes dados estão de acordo com a diferença encontrada nas preferên-
cias pelos acasalamentos a curto e a longo prazo, tratados a partir da pag. 14,
em que se parece notar, por parte dos homens, uma clara cisão entre a
mulher sponsa e a mulher fácil. Mas, em suma, é o próprio conceito de
beleza que é pouco claro ou mal definido.
Seguindo uma tradição que vem de Galton – que, na sua obcessão de tudo
medir, sobrepôs fotografias de caras de maneira a obter médias e reparou que
o resultado era mais agradável à vista do que os seus componentes – con-
cluiu-se que a média das faces era mais agradável do que as faces particulares.
O efeito poderá vir do facto de que todas as irregularidades e assimetrias –
um sinal de má resistência aos parasitas e patogénios – são apagadas, mas
apenas isso é insuficiente explicação. Tem sido apresentada a idéia de que
poderíamos preferir a média por ela ser o sinal da adaptação de uma dada
população ao ambiente em que nos encontramos. Outra ideia, mais recente,
é mais simples: preferiríamos faces mais médias apenas porque o processa-
mento dessas faces exige menos esforço cognitivo (Rhodes, 2006). Esta
explicação não tem um significado evolutivo claro. Não é, de resto, impossí-
vel que o fenómeno não tenha funcionalidade na selecção sexual – há imen-
sas características biológicas que não a têm. Sobre o assunto, ver Thornhill e
Gangestad (1993, 1994) e Langlois e Roggman (1990).

Diferenças no ciúme

A teoria evolutiva prevê que os homens devem preocupar-se mais com as


cópulas extra-conjugais dos cônjuges do que as mulheres. Isto ocorre, evi-
dentemente, porque se uma fêmea fizer uma cópula extra-conjugal, o
macho poderá vir a ter cuidados parentais com um filho que não é seu; deve,
pois, ter cuidado em assegurar-se de que os filhos são, efectivamente seus,
como ocorre em vários animais. Por exemplo, leões, murganhos e alguns
primatas, matam as crias das fêmeas que fazem parte dos haréns que con-
quistam porque como as crias são de outros machos, eles não têm nenhuma

226
vantagem – pelo contrário – em cuidar delas. Desse modo asseguram que as
crias do grupo lhes pertencem efectivamente.
Na nossa espécie não se verifica nada de tão drástico, mas ainda assim, há
dados que sugerem que os machos têm um ciúme mais centrado na cópula e
as fêmeas um ciúme mais centrado no afecto, o que faz sentido, porque, na
medida em que a fêmea depende do macho, tem de o ter preso a ela e não a
outra fêmea.
Há particularmente uma investigação (Buss, Larsen, Western e Semmel-
roth, 1992) que parece mostrá-lo claramente. Usaram-se 60 sujeitos, metade
de cada sexo. Foram colocados eléctrodos no músculo corrugator, responsável
pelo franzir de sobrancelhas quando se está zangado, foi medida a resposta
electrodérmica (transpiração) no anelar e no indicador e mediu-se a pressão
sanguínea (polegar). Pedia-se aos sujeitos que imaginassem o seu par a fazer
sexo com outra pessoa ou que imaginassem o seu parceiro a apaixonar-se
por outra pessoa. Em ambos os casos se pedia que os sujeitos se concentras-
sem claramente nos sentimentos e nas imagens. Quando tinham as imagens
e os sentimentos bem presentes, os sujeitos deveriam carregar num botão e
as medidas eram tomadas durante vinte segundos. Os resultados são claros:
os homens reagiam particularmente à infidelidade física, aumentando a ten-
são em quase 5 batidas por minuto; a condutância da pele aumentou em 1,5
unidade com a infidelidade física mas quase não deixou a linha de base na
infidelidade sentimental; a resposta de franzir o sobrolho aumentou em 7,75
unidades perante a infidelidade sexual e em 1,16 na infidelidade romântica.
As mulheres mostraram padrão oposto: o franzir mostrava um aumento
de 8,12 microvolts perante a infidelidade sentimental e 3,03 mV na infideli-
dade física.
Fez-se uma análise comparada, utilizando questionários, na Alemanha, na
Holanda, nos Estados Unidos, na Coreia e no Japão ( Buunk, Angleitner,
Oubaid e Buss, 1996 e revisão em Buss, 1999). A diferença sexual ocorre em
todas as amostras, embora o grau de perturbação varie com a cultura.
Estas diferenças, que parecem bem estabelecidas, revelam-se sob fMRI
(Takahashi et al, 2006): nos homens a representação da infidelidade causa
activação da agmígdala e do hipotálamo, ligados com sexualidade e agres-
são, enquanto que na mulher a área activada é sulco posterior superior, rela-
cionado com a teoria da mente (ler intenções e emoções nos outros), o que
concorda com os relatos psicológicos e com a invetigação anterior. §

227
Infidelidades

Os dados apresentados até aqui referem-se a escolhas relativas a relações


estáveis. Em relação às infidelidades que ocorrem no contexto de uma rela-
ção estável, também se esperariam diferenças entre machos e fêmeas. As
mulheres podem ter vantagem (em termos de descendência) em copular
com machos dominantes, enquanto que os homens terão vantagem em
aproveitar mais ocasiões de forma mais indiscriminada. Os dados corrobo-
ram estas previsões (ver revisão em Buss, 1999): os homens têm mais apetên-
cia por relações breves e, como já vimos, são mais sensíveis à variabilidade
sexual e parecem procurar o sexo anónimo. Por outro lado, as fêmeas apro-
veitam, efectivamente, a possibilidade de copular com machos de elevado
estatuto hierárquico e, se puderem, trocam o parceiro por outro de estatuto
mais elevado. O número de parceiros desejados é, também muito maior nos
machos do que nas fêmeas e estão mais receptivos a relações sexuais pouco
tempo depois de conhecer uma mulher (Buss e Schmitt, 1993).
Isto não significa, contudo, que as mulheres tendam para estratégias
monogâmicas e os homens para estratégias poligínicas. O que se passa é que
os homens e as mulheres procuram coisas diferentes nas relações extra-con-
jugais. As mulheres parecem enganar os maridos apenas quando estão des-
contentes com a relação, fazem-no no período fértil (Baker e Bellis, 1995,
Perusse, 1993), com machos bastante atraentes, talvez com muitos recursos e,
aparentemente, procuram que a relação seja emocionalmente rica. Os
machos procuram relações sem significado afectivo e baixam extremamente
os padrões de aceitação, que são muito diferentes daqueles que se encontram
para as prospectivas cônjuges. Nomeadamente, parece notar-se o efeito
senhora-prostituta a que já fizémos referência.
No geral, os resultados compreendem-se no plano adaptativo. Se os
machos tiverem uma maior apetência pela diversidade sexual, compreende-
-se que procurem relações fáceis e sem comprometimento. Nas mulheres a
questão é diferente dado que uma cópula pode ser seguida de gravidez; faz,
pois, sentido, que escolham «bons machos» – bonitos, isto é, aqueles que são
escolhidos pelas outras, ricos e que dão sinais de serem bons «genes». A pro-
cura de consolo emocional tem de se compreender na perspectiva de uma
prospectiva mudança de parceiro.

As armas de cada sexo e a organização social correspondente

Pode-se concluir então que a melhor arma evolutiva da mulher é a beleza

228
e a dos homens a dominância. Esta afirmação consubstancia-se num estudo
sociológico já antigo que revela as mulheres consideradas mais belas casaram
com homens mais ricos (Elder, 1969). O que isto significa é qhe há competi-
ção entre machos e competição entre fêmeas. Não sugere minimamente que
haja uma organização social de tipo poligínico ou promíscuo. O que sugere,
explicitamente, é que quer machos quer fêmeas escolhem os parceiros. É
verdade que as fêmeas nos mamíferos têm muito mais custos na reprodução
do que os machos e que isso as torna mais relutantes em entrar numa relação
sexual (Buss e Schmitt, 1993 mostraram que fêmeas e machos, em média,
diferem no intervalo desejado/tolerado entre conhecerem o parceiro e terem
sexo com ele).
De resto, os machos emparelhados e, ainda mais, os que têm filhos,
sofrem uma redução de testosterona (Burnham et al, 2003) o que sugere que,
do ponto de vista dos machos, há adaptações para relações monogâmicas
(uma relação monogâmica pode não ser «para sempre»; como já disse, actual-
mente verifica-se a tendência para acasalamentos monogâmicos sucessivos).
§

Conclusões sobre a perspectiva biológica

A Sociobiologia e a Psicologia evolutiva parecem ter apresentado um


bom conjunto de argumentos a favor do determinismo biológico do com-
portamento sexual humano. Aparentemente, machos e fêmeas comportam-
-se de acordo com as previsões da teoria da selecção natural. Resumindo, a
Sociobiologia não põe em causa a existência de família – porque as crias
humanas precisam de cuidados parentais particularmente assíduos – mas
esperaria que o sistema de acasalamento humano tendesse para a poliginia –
ainda que moderada. Não se esperaria comportamentos de fidelidade abso-
luta nem do macho nem da fêmea; contudo, os machos têm mais a ganhar
na infidelidade pouco discriminada enquanto que as fêmeas seriam infieis
com machos que garantissem boa qualidade génica. Como vimos há um
corpo de dados bastante importante que parece corroborar, genericamente,
estas previsões.
Consideraremos a seguir o que se sabe do acasalamento humano a partir
dos estudos etnológicos. Depois disso apresentaremos a nossa conclusão.

229
OS DADOS DA ANTROPOLOGIA

O acasalamento humano foi estudado pelos etnólogos centrando-se na


instituição que lhe corresponde: o casamento. Tratá-lo-emos nessa perspec-
tiva.
As relações de casamento podem ser definidas das maneiras mais díspares:
enquanto que na nossa cultura o casamento tem, como corolário lógico, a
descendência, entre outros povos não se passa necessariamente isso; por
exemplo, nos Tchuktchis siberianos ocorrem casamentos entre raparigas em
idade reprodutiva e um rapaz de dois ou três anos, sendo a descendência
assegurada por um amante reconhecido, e em várias partes de África uma
mulher de alta linhagem pode casar-se com outras mulheres e fazer dos des-
cendentes delas (e de amantes não reconhecidos), seus herdeiros (Lévi-
-Strauss, 1969). O que se verifica é que a «família» (um universal humano) é
redefinida das formas mais variáveis.
Há vários outros casos que vão, claramente, contra a Biologia. Por exem-
plo, entre os Samo, poligínicos, (Alto Volta, actual Burquina Faso, estuda-
dos por Héritier, e.g., 1996) e em outras culturas da África ocidental uma
rapariga pode ser prometida muito cedo em casamento a um homem. Mas
antes de ser entregue ao marido, deve tomar um amante, escolhido entre os
grupos onde poderia ter escolhido marido mas não do grupo do marido.
Apenas se juntará ao marido depois de ter tido um filho desse amante (ou,
no caso de o casamento ser estéril, 3 anos depois). Esse filho é considerado
filho do marido e não do amante.
Um outro exemplo vem da Nova-Guiné. Os Sambia (estudados por
Herdt, 1981, 1984a,b) pensam que a criança masculina nasce sem capacidade
para produzir esperma. O esperma é precioso e é arriscadíssimo perdê-lo
com mulheres de fora da linhagem. Para que a criança ganhe esperma e para
que o esperma dos machos adultos não se perca, é necessário introduzi-lo na
criança. Assim, a partir dos 7 anos, a criança faz felatio aos tios maternos e aos
rapazes e adolescentes não casados. O processo nada tem de amoroso: trata-
-se de uma necessidade de não perder esperma e de o transferir para os
jovens que ainda o não possuem, sem que haja elementos emocionais impli-
cados no processo. De resto, quando o rapaz se casa, espera-se que termine
qualquer actividade homossexual (excepto relativamente aos filhos da irmã,
aos quais tem o dever de fornecer esperma) e que se dedique exclusivamente
a moldar o filho – depois de inseminada, a mãe deve ser repetidamente
copulada para que o sémen molde a criança. Este caso é interessante porque
as cópulas são desperdiçadas, o que não se esperaria em termos biológicos.
Pelo contrário, o comportamento tem a função – de resto consciente em

230
alguns membros – de manter a ordem social por fazer que os machos jovens
não procurem mulheres casadas para se satisfazer. Note-se que a razão por-
que os machos fazem felatio é apenas porque é necessário fortalecer os jovens
para os contactos posteriores com as mulheres, estimados muitíssimo peri-
gosos.
O exemplo mais extremo do triunfo do determinismo cultural sobre a
Biologia vem dos Dema, Marings da Nova Guiné (V. Baal, 1966), que cons-
tituem uma acentuação da situação dos Sambia. As relações entre os sexos
são muito tensas, de forma que a homossexualidade é a norma. Por isso têm
muito poucos filhos. Para perpetuar as linhagens têm de atacar outros gru-
pos e raptar crianças para poderem adquirir filhos. A questão das linhagens
é, de resto, extremamente importante. Em África é frequente que um morto
continue a ter filhos, sendo a sua viúva acasalada com outros homens.
De tudo isto poder-se-ia concluir que o casamento e a descendência são
fenómenos sobretudo culturais, e que a biologia não desempenha qualquer
factor no comportamento da nossa espécie. É, geralmente, essa a posição dos
Etnólogos.
Mas estes exemplos, são, apesar de tudo, bastante extremos e em caso
nenhum podem ser considerados típicos da espécie. Trata-se de desvios
extremamente acentuados ao que se poderia esperar biologicamente. Essa
possibilidade de desvio, que não se encontra em nenhuma outra espécie, é
importante e considerá-la-emos mais abaixo.
Mas tem-se defendido que a biologia seria suficientemente forte para
influenciar a própria natureza do casamento. Nomeadamente e como
vimos, o facto de haver muitíssimo mais culturas poligínicas do que mono-
gâmicas e de o número das poliândricas ser quase residual (consideraremos
esses casos abaixo) tem sido interpretado como revelando que as previsões da
sociobiologia se confirmam. Contudo, e antes de aceitar estas conclusões,
devemos compreender duas coisas diferentes: primeiro, o que é o casamento na
maior parte das sociedades; segundo, em que medida os dados que se encon-
tram são mais bem previstos pela teoria sociobiológica ou pela «razão cultu-
ral» (Sahlins, 1976), a inteligência colectiva que dirige as acções da sociedade.

O que é o casamento?

Associamos o casamento a «amor» e a «filhos». Na maior parte das culturas


o predomínio está na segunda palavra e deve-se acrescentar-lhe mais outra:
«alianças». A questão do amor tem sido muito debatida. Chegou a sugerir-se
que o amor romântico era uma invenção ocidental – o amor cavaleiresco e

231
desinteressado dos medievais (Rougemont 1956) ou mesmo um fenómeno
muito mais tardio (Shorter, 1992) – mas há casos de paixão em numerosas
etnografias das culturas mais diferentes. É certo que, na determinação dos
casamentos tendo com objectivo a obtenção de alianças, o amor é necessari-
amente sacrificado. Para compreender o fenómeno, consideremos as princi-
pais funções do casamento que a etnologia tem desvendado (ver, por exem-
plo, Mair,1971).

Os casamentos são combinados pelos homens fortes de


cada cultura

O casamento pretende dar um enquadramento ao acto sexual e reprodu-


tivo que, de outra forma, seria origem de contínuas lutas entre machos
como acontece com os outros animais. Regulamentar o casamento é, pois,
um pré-requisito essencial para que um grupo possa cooperar. Essa regula-
mentação é feita de duas formas: define-se com quem cada indivíduo se
pode casar e dá-se a um responsável a autoridade para determinar os casais.
É sobremaneira importante saber quem é filho de quem dado que a nossa
espécie se define em termos linhagísticos. De facto, e como é opinião cor-
rente na Antropologia (e.g. Lévi-Strauss, 1949, Fox 1967, Leach, 1961, For-
tes, 1959), as estruturas de parentesco são os aspectos mais relevantes na
determinação da estrutura social e da cooperação entre grupos aparentados.
O parentesco define quem descende de quem e que grupos de descenden-
tes podem casar com outros descendentes. Por exemplo, um filho não pode
casar com a sua mãe biológica mas, em várias sociedades, deve casar com a
sua prima cruzada, a filha do irmão da mãe, enquanto que não poderá casar
com a sua prima paralela, a filha da irmã da mãe. Noutros casos, o grupo é
concebido como descendente de um determinado antepassado, sendo os
indivíduos de uma mesma geração considerados como irmãos (é, por exem-
plo, muito frequente que todos os irmãos, e primos nos vários graus, desde
que tenham um número de antepassados comuns igual sejam indiferente-
mente considerados «irmãos»); neste caso, e como o casamento entre irmãos
é considerado incestuoso e, portanto, tabu, o indivíduo tem de casar fora do
grupo.

Exogamia

Fala-se em exogamia quando o indivíduo tem de casar fora do grupo.

232
Nestes casos o casamento constitui, quase sempre, uma forma particular-
mente eficaz de gerar cooperação – ou pelo menos de atenuar a competição
– entre grupos diferentes, através da criação de laços de solidariedade entre
linhagens diferentes. Assim, é possível que um homem – ou uma linhagem –
que pretenda assegurar boas relações com outro homem – ou outra linha-
gem – ofereça em casamento as filhas que uma determinada mulher vai ter.
Muitos outros casamentos são combinados com base em considerações pura-
mente económicas e, nas sociedades patrilineares, é corrente que a noiva seja
comprada à família, mediante um alambamento – o equivalente masculino do
dote, também conhecido como «preço da noiva» – pago ao pai da noiva.
Nestas situações compreende-se que o amor romântico ou qualquer forma
biológica de atracção tenha pouca relevância no resultado final das escolhas.
Aliás, sendo os homens a decidir do futuro das mulheres e preocupando-se
principalmente com o sucesso da sua linhagem esperar-se-ia que as vontades
das raparigas não fossem geralmente levadas em consideração. Os factores
determinantes da escolha são os benefícios para as linhagens ou para o clã ou
o grupo e os membros que os dominam – sempre os homens. De modo que
se poderia esperar que as políticas de casamento revelassem o bem do clã visto
do ponto de vista dos machos com maior influência nesse clã. De nenhuma maneira se
poderia esperar que, pelo menos directamente, reflectissem o que quer que
fosse das tendências biológicas dos noivos, meros joguetes dos seus responsá-
veis.

Endogamia

Noutros casos, pelo contrário, quando se pretende, por uma variedade de


razões (manter a propriedade em família, manter a pureza dos sentimentos
religiosos ou do «sangue») reforçar a coesão interna do grupo, os casamentos
devem ser feitos no interior do clã, ao que se chama endogamia. Estes casos
são menos frequentes mas as razões que determinam as escolhas de novo
pouco têm que ver com as preferências expressas pelos noivos. Além de que
podem estar destinados a casar desde tenra idade, a sua vontade não se pode
opor ao valor mais importante: o da manutenção de uma coesão máxima do clã. E
de novo aqui volta a encontrar-se a importância dos primos cruzados: o
sujeito (a que se chama ego na terminologia do parentesco) deve casar entre
os filhos do irmão da mãe ou da irmã do pai (os primos paralelos – filhos das
irmãs da mãe e dos irmãos do pai – são considerados irmãos e, portanto,
tabus). Pretende-se, assim, explicitamente, reforçar as alianças dentro do
grupo. Parece ser raro que o casamento endogâmico seja bem aceite, mas,

233
forçado ou não, ele é aceite, havendo penalidades fortes para quem o não
respeita (ver revisão em Durham, 1991).
Como vemos, quer na endogamia quer na exogamia, os destinos dos
nubentes estão traçados, muitas vezes com vinte anos de antecedência. E,
mais importante do ponto de vista que agora nos interessa, os casamentos
são determinados pela visão que os homens com poder têm do bem das suas
linhagens e dos grupos. Ou seja, e com pouquíssimas excepções, as tendên-
cias para o casamento são determinadas por homens que não tomam parti-
cularmente em consideração os sentimentos dos intervenientes.

Irrelevância das escolhas do ponto de vista etológico

Neste sentido é extremamente ingénuo pretender que os padrões de casa-


mento revelam outra coisa além da política imposta pelos machos – domi-
nantes em todas as culturas – independentemente de esses machos frequen-
temente terem o «sentido de estado» que promove o bem do grupo.
Ora, como o ponto de vista dos machos de cada cultura é aumentar a des-
cendência e o prestígio do seu clã, esperar-se-ia que se impusesse às fêmeas
um papel de procriadoras exclusivas do novo macho que delas toma posse: o
objectivo principal é aumentar a descendência, os recursos e a influência do
seu clã.
Na medida em que isso é facilitado pela poliginia (e na medida que o
macho tenha recursos para pagar o preços das várias mulheres) esperar-se-ia
precisamente esta estratégia dos machos indo assim as previsões da Sociobio-
logia e da Etnologia na mesma direcção. Mas também pode acontecer que
haja vantagem para os machos na poliandria, como veremos, e essa estratégia
vai contra as previsões sociobiológicas.
A política de alianças obtidas por exogamia é mais difícil de compreender
em termos puramente biológicos. Só se se aceitar que o grupo procura a sua
própria segurança – uma impossibilidade biológica na maior parte dos casos
(ver Hamilton, 1964, e adiante, pag. 28) – se compreende esta tendência. De
modo que um dos traços mais relevantes do acasalamento humano fica por
explicar com base na Sociobiologia; voltaremos ao tema na secção Conflito
de instruções, na pag. 26. Permita-se-nos ainda sublinhar que a exogamia não
é codificada culturalmente enquanto tal nas várias culturas: resulta, apenas da
aplicação rigorosa do tabu do incesto que, como vimos, torna irmãos os
pares biologicamente prováveis dentro do mesmo grupo e força, assim, a
procura de casamentos fora do grupo. De modo que a exogamia tem de ser
considerada como uma consequência de um princípio cultural – a extensão

234
do tabu do incesto a membros que, de facto, não são próximos genetica-
mente – e não como uma manifestação genética directa.
Mas, e como já referimos, a própria poliginia, uma das previsões directas
da biologia evolutiva, pode ser compreendida não em termos de motivação
sexual pura (isto é, em termos de determinantes biológicos) mas em termos
de política de alianças: na medida em que casa com mulheres de diversos
grupos, um chefe pode assim garantir uma rede de cooperação e espalhar a
sua influência e os benefícios para a sua linhagem ou para o seu clã. Mesmo
não se tratando de um chefe, um homem pode ter vantagem em ter mais
mulheres e mais filhos no sentido de que isso lhe permite organizar o traba-
lho de forma a gerar mais riqueza – o trabalho da mulher tem um valor eco-
nómico grande, de modo que quanto mais mulheres um homem puder
pagar maior será o seu lucro. Isto ocorre, frequentemente, em África (Lévi-
-Strauss, 1969, Mair, 1971, Evans-Pritchard, 1951/60).
De modo que as previsões da Sociobiologia só aparentemente prevêm o
que se poderia esperar se os homens apenas pretendessem, conscientemente,
maximizar a sua influência e riqueza – os aspectos psicológicos e sociais das
motivações biológicas. Dito isso, é verdade que a maximização da influência
e da riqueza são previstas pela teoria evolutiva, na medida em que permi-
tem, precisamente, gerar mais filhos e, em todas as culturas, os filhos (pelo
menos os legítimos, mas em várias culturas também os ilegítimos) são moti-
vos de orgulho. A haver determinismo biológico da estrutura social a partir
das estratégias sexuais, este seria bastante indirecto. Na verdade, a estratégia
da alianças chama a atenção para uma motivação biológica diferente do
sexo: trata-se do poder, de que trato noutra secção deste livro.

A poliandria como exemplo do controlo pelos machos

Mostraremos agora que vários casos de poliandria são meramente estraté-


gias masculinas de rendibilizar os recursos, no sentido de que são, sempre, os
homens que dominam e têm interesse na partilha das mulheres. Assim, con-
sideremos vários casos.

Tibete

Os sistemas de acasalamento tibetanos foram estudados por vários auto-


res, tendo sido o assunto exaustivamente revisto por Durham (1991). A pro-
priedade é transmitida patrilinearmente e é escassa. Nesse sentido, quando

235
um homem tem irmãos, há o casamento de todos os irmãos com uma
mulher de forma que a propriedade não se divide entre os irmãos. Se, mais
tarde, enriquecerem, podem contraír mais um casamento, condição em que
se verifica a poliginandria. Mas os próprios tibetanos têm consciência de que
a estratégia tem, principalmente, como função não fragmentar a proprie-
dade a ponto de a tornar improdutiva. É, pois, conscientemente que a estra-
tégia é utilizada pelos machos que não querem dividir a sua propriedade.

Os Lele do Congo

Entre os Lele, estudados por Mary Douglas (1963), as raparigas são prome-
tidas em casamento quando crianças a homens de perto de 20 anos. Estes
têm, então, de esperar muito tempo até poderem acasalar dentro da lei.
Fazem-no, contudo, fora da lei, tentando copular com mulheres casadas o
que, evidentemente, fragiliza a unidade do grupo. Contudo, há uma «vál-
vula de escape» estatuída culturalmente. Os Lele organizam-se em grupos de
idade (havendo, geralmente dois grupos de idade por geração) e os membros
desses grupos quotizam-se para recrutar uma «mulher comum». Esta pode
ser recrutada dentro da aldeia (sendo, frequentemente, neta de outra mulher
comum) ou, preferencialmente, raptada fora da aldeia, o que dá mais prestí-
gio. A rapariga deve ser bastante nova e copula com todos os membros do
grupo etário, fazendo esses membros pagamento ao pai da rapariga. Chega
um momento em que a rapariga se institui como «mulher da aldeia» e os
membros do grupo etário constróem-lhe uma casa e contribuem para o seu
casamento. Este casamento é celebrado com 5 ou 6 membros do grupo etá-
rio, com quem ela vive maritalmente, tendo as mesmas funções que qual-
quer outra mulher casada. Longe da sua casa volta a ser «mulher da aldeia» e
pode copular com qualquer dos homens. Cada grupo etário tinha cerca de 4
mulheres. Os filhos das mulheres da aldeia são «filhos da aldeia» mas os mari-
dos da mãe têm responsabilidades especiais sobre eles. À medida que o
tempo passa, os membros do grupo etário desposam as mulheres que lhes
estavam prometidas.
Mais uma vez, notamos que a poliandria serve principalmente os interes-
ses dos machos, na medida em que lhes permitem actividade sexual «legal»
que, de outra forma, lhes estaria vedada. O pai da rapariga também ganha
com isso, na medida que os pagamentos lhe são feitos a ele. Os homens casa-
dos mono ou poliginicamente também beneficiam, na medida em que cor-
rem menor risco de ser traídos pelas mulheres. Aliás, todo o grupo beneficia,
na medida em que, ao reduzir-se as fricções entre os machos, se garante uma

236
maior cooperação. Finalmente, a rapariga também não perde com a situação
dado não ser, aparentemente, mal vista. Mas parece estar-se, de novo, numa
situação em que o controlo é masculino e nada terem que ver com a escolha
feminina (porque a «mulher da aldeia» foi, geralmente, raptada para o
efeito), limitando-se a «mulher da aldeia» a escolher aqueles que vão ser os
seus maridos oficiais.

Kadaras e Kangoros da Nigéria

Neste caso, estudado por M.C. Smith (1953), verifica-se o casamento


sucessivo de uma mulher com dois homens. O primeiro homem é da aldeia
e o segundo de fora da aldeia. Em ambos os casos, o marido tem de pagar
regularmente um tributo ao pai da rapariga, além do alambamento. O
segundo marido é, teoricamente, escolhido pela mulher mas, entre os Kan-
goros, o segundo casamento pode ser integralmente combinado pelo pai da
mulher. Entre os Kadaras há mais escolha, no sentido de que a mulher foge,
inicialmente, com um segundo marido, sendo a situação oficializada depois.
O marido apenas paga o tributo ao pai da mulher durante a vigência do seu
casamento, isto é, enquanto tem posse efectiva da mulher. Mas, mesmo
depois de «trocado», permanece «marido» e, se a mulher quiser, pode passar
longo tempo (6-12 meses) com ele, mediante uma compensação ao segundo
marido.
Embora esta situação sugira mais escolha do que as anteriores, deve ressal-
var-se o papel activo do pai da mulher na escolha do segundo marido, que
lhe traz vantagens económicas. Mais uma vez a situação beneficia pelo
menos tanto os machos quanto as fêmeas. Além disso, sendo o segundo
casamento realizado fora do grupo, promove alianças, o que vai no sentido
do bem do grupo.

Os Guaiaqui do Amazonas

Estudados por Clastres (1972, 1974), os Guaiaqui são, também, em certos


casos específicos, poliândricos. Isto passa-se devido à existência, em certos
grupos, de uma relação sexual de 2:1, com excesso de machos. O problema
não tem solução no mundo cultural Guaiaqui – um «solteiro» é considerado
um perigo para a aldeia. Assim, resta a possibilidade de as mulheres tomarem
um marido secundário. Os homens da aldeia reconhecem que esta é a
melhor solução, embora prefiram não ter de partilhar a mulher, e pode

237
ocorrer que, quando a mulher se envolve inicialmente com um outro
macho, o primeiro dê mostras de agressividade. Mas o bem do grupo está
em primeiro lugar e os machos conformam-se, embora de má vontade. A
interpretação de Clastres, que, noutros pontos do texto, alguns poderão
achar demasiado «florida» e típica do delírio interpretativo posto em moda
por Claude Lévi-Strauss, é, neste caso, relativamente sóbria: como o acto
sexual tem de estar enquadrado socialmente, os machos são obrigados a acei-
tar partilhar as suas mulheres, ou cai-se no caos. Nesse sentido, a adopção da
poliginia seria uma forma de aceitação da «razão de Estado».
Neste caso não se pode afirmar claramente que haja uma grande vantagem
do ponto de vista dos homens. O que se encontra é que o «bem do grupo»
determina uma escolha que repugna aos homens, mas que mantém a socie-
dade. Na medida em que o bem do grupo é decidido pelos homens, são eles
próprios que sancionam a poliandria, indo isto claramente contra as instru-
ções biológicas individuais e a favor da unidade social.

O empréstimo de mulheres

Apresentemos ainda, brevemente, um hábito frequentemente referido na


literatura. Trata-se do empréstimo das mulheres por parte de um homem a
outro homem, conhecido principalmente nos Inuit (e.g. Gessain, 1969). Este
empréstimo faz-se em várias situações. É, principalmente, um dever de hos-
pitalidade a um indivíduo que se quer honrar. Além disso, um homem que
queira assegurar um aliado pode emprestar-lhe a mulher durante um
período mais ou menos longo. As mulheres consideram estas «infidelidades»
não como «escapadelas» mas como deveres de promoção de alianças.
O empréstimo de mulheres é frequente, sobretudo entre irmãos (cf. o caso
Tibetano) ou entre os vários elementos da tribo com quem se tem boas rela-
ções ou, ainda, a uma pessoa que se pretende honrar.
Também aqui a conclusão é absolutamente clara: trata-se de um caso em
que a mulher é manipulada pelo homem (ainda que concordando) no sen-
tido de ele fomentar as suas alianças. Tem, igualmente, um valor positivo
para o grupo, na medida em que cimenta alianças com grupos estrangeiros.

Conclusões sobre a poliandria

Em conclusão, de todos estes casos pode dizer-se que a poliandria, que


vai, pelo menos em termos directos, contra as instruções biológicas dos

238
machos, mostra apenas que é a própria razão social, determinada ou sancio-
nada pelos machos, detentores de poder, a determinar as regras de acasala-
mento, ainda que vá contra as tendências biológicas dos seus promotores.
Aquilo que os machos parecem procurar, em todos os casos, é o poder e o
aumento do seu prestígio e linhagem. Na medida em que essa tendência os
leva, em consequência, a ter mais fêmeas, pode-se considerar que a Biologia
ainda determina directamente o nosso comportamento. Mas o determi-
nismo biológico não é tão directo quanto a Sociobiologia parece fazer crer.
Consideremos agora um caso em que as previsões biológicas se verificam
efectivamente.

O caso particular dos Naires do Malabar

O caso dos Naires, estudados por Gough (e.g., 1955, 1959) é diferente de
todos os anteriores no sentido de que não chega – trata-se de um caso único
– a haver propriamente família. A unidade social é a mulher e os seus filhos.
Estes filhos são atribuídos a determinado amante da mãe e herdam a sua
posição social.
Não há casamento, mas apenas uma cerimónia (táli) em que a rapariga,
imediatamente antes da puberdade, é entregue por três dias a um homem da
casta certa com quem pode ter relações sexuais mas que não é considerado
seu marido e com quem pode não ter mais contactos. A partir de então ela
pode ter os amantes que pretender, desde que sejam da mesma casta que ela
ou de casta superior (hipergamia). Os filhos que nascem são, aparentemente,
atribuídos a um determinado homem, que manifesta a sua concordância
pagando o trabalho da parteira. Mas os filhos são sustentados pelos irmãos da
mãe, e não pelos pais; aliás, chamam a todos os amantes da mãe «senhor»,
indistintamente, embora a sua casta fosse determinada pela casta do homem
que pagou o trabalho de parto, sendo assim tacitamente reconhecido como
pai. A mulher, apesar de receber prendas dos amantes enquanto mantém
relações com eles, é, também, sustentada pelos irmãos.
Este caso é extremamente interessante porque aqui não se verifica a impo-
sição de uma ordem por parte dos machos. Isto ocorre porque os Naires
eram guerreiros, passando a maior parte do tempo longe de casa. Nesta situ-
ação, a possibilidade de exercer controlo é muito baixa, de modo que se
encontram as estratégias de acasalamento típicas da espécie e previstas pela
biologia.
De facto, os homens Naires podiam copular com qualquer mulher, inde-
pendentemente da casta; as mulheres Naires podiam copular com qualquer

239
homem de casta igual ou equivalente, recebendo prendas por isso. Ou seja,
verifica-se a estratégia tipicamente hipergâmica (acasalar acima do seu esta-
tuto) nas fêmeas e a estratégia tipicamente promíscua dos machos.
É, pois, neste último caso que nos encontramos, talvez, em presença de
uma estratégia menos contaminada pela cultura, na medida que a instituição
«família» não interfere nas inclinações sexuais das mulheres.

As rupturas do social pelas motivações biológicas

Ainda que o controlo da sociedade seja exercido pelos homens, não é


líquido que a lei esteja de acordo com os seus interesses egoístas e determi-
nados biologicamente. Na realidade, não é isso o que se passa na maior parte
das sociedades.
O casamento, como vimos, tem, principalmente, como função estruturar
a sociedade, dar-lhe filhos, fomentar cooperação reduzindo as hipóteses de
conflitos entre os machos. Para que isto ocorra tem de ser orientado exclusi-
vamente pela «razão social», ou «bem do grupo». Contudo, há muitíssimos
casos em que os indivíduos conseguem fugir a esses constrangimentos soci-
ais. Refiramos três casos, brevemente, todos eles «batotas» sociais.

A fuga aos casamentos combinados e a infracção de tabus

É frequente que dois indivíduos que se encontram prometidos a outros se


apaixonem. Nesse caso terão de fugir juntos. A situação é severamente
punida. Por vezes, se conseguirem reproduzir-se, podem ser reabsorvidos na
sociedade. Mas se as coisas correrem mal, se acabarem por não se entender,
não terão o apoio dos seus familiares. Um dos exemplos mais interessantes é
dado pelos Kurnai, da Austrália. Entre este povo, as restrições que tornam
uma união tabu são tantas que se torna quase impossível a formação de um
casal. O processo é iludido por recurso ao rapto; o par é perseguido e, se for
encontrado, são os dois mortos, a não ser que se escondam numa determi-
nada ilha; se aí permanecerem até que lhes nasça um filho, são depois aceites
como um casal; os próprios homens que se casaram desta forma perseguem
depois os pares que se formaram da mesma maneira (Benedict, 1934).
Este caso mostra que tendências efectivamente biológicas – a necessidade
de se reproduzir – são, quando contrariadas, suficientemente fortes para
fazer o par enfrentar a morte e um período de isolamento prolongado e

240
eivado de dificuldades. Temos, pois, um bom exemplo, da maneira directa
como a Biologia se «revolta» contra a cultura quando esta impõe baias
incompatíveis com a reprodução.

A rejeição da espera

Como vimos, os casamentos podem ser combinados com anos de antece-


dência. Nomeadamente, o pai da noiva espera por que o noivo consiga jun-
tar os bens suficientes para o seu preço – o já referido alambamento – até
entregar a sua filha. Assim, os esponsais podem ser sucessivamente adiados.
Nestas situações pode ocorrer (ver revisão em Mair, 1971) que os noivos
fujam juntos. O pai da noiva manda-os perseguir e o pai do noivo pode
também fazê-lo (porque fica mal visto por ter sido mesquinho e não ter
dado ao filho os meios para ele se casar) mas, se nasce uma criança, é impera-
tivo para todas as partes que se chegue a um acordo, de modo a poder ser
integrada nas linhagens e a não manchar a honra da linhagem da noiva.
Assim, o noivo pode prometer pagar o alambamento num determinado
prazo – ou pode simplesmente dizer que o pagará o que, em qualquer caso,
era a situação de dívida inicial, com a diferença que ele tem a noiva sem a ter
pago.
Tanto do ponto de vista do macho quanto da fêmea, esta estratégia faz
perfeito sentido em termos biológicos. Por um lado, quanto mais cedo a
rapariga se reproduzir maior será a probabilidade de ter descendência.
Quanto ao homem, além da descendência, que poderia, eventualmente,
arranjar de forma ilegítima, garante a sua riqueza e linhagem. Portanto, quer
do ponto de vista da fêmea quer do do macho, esta estratégia tem sentido
evolutivo, ainda que se oponha à razão cultural.

As infidelidades

As infidelidades são, normalmente, controladas. Há algumas revisões


sobre este assunto (ver, por exemplo, a revisão de Fisher, 1992 ou a de
Broude, 1980), e há penas quer para os homens quer para as mulheres. O que
nunca é perdoado ao homem é copular com a mulher de outro homem do
grupo. Da mulher, na maior parte das sociedades, espera-se que seja fiel.
Claro que o fenómeno do controlo social das infidelidades faz sentido do
ponto de vista social e biológico: assegura a paz social e garante a paterni-
dade ao macho. É a própria existência de infidelidade que é interessante, na

241
medida que revela a manifestação dos factores biológicos por sobre as nor-
mas culturais que procuram o bem geral. Como vimos antes, quer o macho
quer a fêmea têm vantagens evolutivas em ser infieis. A Biologia rasga,
assim, a apertada teia da razão social. De resto, os dados apresentados na pri-
meira parte deste trabalho, recolhidos sobretudo na cultura ocidental, mos-
tram claramente que as infidelidades parecem conformar-se às expectativas
do acasalamento «biológico», constitiuindo brechas no social provocadas
pelas fortes motivações que a sociedade não conseguiu debelar completa-
mente.

O amor- paixão

O amor-paixão, como facto biológico, parece ser um universal, embora


possa ser combatido culturalmente. O amor-paixão verifica-se mesmo em
culturas em que não é sequer reconhecido. Fisher, (1992) refere casos entre
os Mangai, da Polinésia, dos Bem-bem, das montanhas da Nova Guiné e dos
Tiv em África. Em todas estas culturas, que não têm a categoria linguística
de amor, se verificam sinais inambíguos de paixão. Nos Mangai verificam-se
suicídios por amor; entre os Bem-bem, há fuga de amantes (que foram pre-
viamente combinados em casamento com outros membros) e nos Tiv a pai-
xão é considerada «loucura». Aliás, Jankowiak e Fisher (1992) fizeram um
estudo em que, revendo as etnografias de 168 culturas, documentaram o
amor romântico em 87% delas.

CONFLITO DE INSTRUÇÕES

Podemos, neste momento, tirar uma conclusão geral sobre o que vimos
serem as instruções humanas para o acasalamento. Assim, por um lado,
encontramos instruções biológicas semelhantes às dos outros mamíferos.
Trata-se de instruções que visam o «bem do indivíduo» ou, melhor ainda, o
«bem do gene». Essas instruções mostram-se activas nas escolhas individuais
das pessoas, sobretudo patentes nos desvios à norma social, ou quando,
como no caso dos Naires, a cultura não estatui a existência de uma família.
Mas, por outro lado, temos instruções que vão no sentido do bem do grupo,
sendo esse «bem» assegurado pelo conjunto de indivíduos – machos – que
detém o poder. Os machos não parecem contudo impor as estratégias egoís-
tas esperadas pela biologia mas, em vez disso, privilegiam o bem do grupo e
das linhagens. Só assim se compreende que a própria poliandria, uma estra-

242
tégia que não é prevista, na nossa espécie, pela Biologia, faça o seu apareci-
mento com a concordância dos machos.
Em consequência, talvez o resultado mais próximo das previsões simplis-
tas da Sociobiologia seja a cultura dos Naires – uma aberração cultural em
que, por motivos específicos, não se pode falar de família. Mas, em condi-
ções normais, as instruções culturais parecem ter mais importância na deter-
minação do comportamento dos indivíduos do que os impulsos biológicos
discutidos pelos sociobiólogos, embora esses mesmos impulsos possam
irromper através da malha de imposições culturais. Vejamos agora mais de
perto as relações entre os dois conjuntos de instruções, culturais e biológi-
cos. Para o compreender teremos de nos debruçar sobre algumas caracterís-
ticas da cultura e, particularmente, sobre o problema da cooperação.

O problema do bem do grupo

A cultura funciona como uma «inteligência anónima», um conjunto de


instruções para o comportamento e para a relação com o ambiente (Sahlins,
1976, Geertz, 1973). Essas instruções tendem a assegurar a cooperação entre
os vários indivíduos que compõem um grupo, como se sabe desde
Durkheim (1912/ 1921, Durkheim e Mauss, 1901-1902). Os sistemas coopera-
tivos são mais eficazes do que os sistemas baseados apenas nos esforços indi-
viduais porque os ganhos para cada um dos membros do grupo cooperativo
é maior do que os ganhos que teria em grupos não cooperativos.
Para que o grupo funcione
cooperativamente há toda a van-
tagem em que haja divisão de
tarefas. Os melhores exemplos
desse fenómeno vêm dos corpos:
um corpo mais não é do que um
conjunto de células que se especi-
alizam em funções diferentes,
todas subordinadas à função
maior e mais importante que é a
Figura 1: O bolor viscoso reprodução.
Para o compreender tomemos um exemplo real, da dispersão de um
fungo, Dictyostelium discoideum, (Bonner, 1970, ver fig. 1). O fungo transmite-
-se por esporos que, ao encontrar um ambiente adequado, se reproduzem
rapidamente, formando um bolor sobre a zona que contém o alimento.
Quando os nutrientes acabam, o micetazoário mostra um comportamento

243
muito fascinante. Agrupa-se formando cilindróides que se movem e se dife-
renciam num pedúnculo e numa estrutura piriforme composta de esporos
que o vento transportará para longe, onde se reproduzirão se encontrarem
alimento, recomeçando então o ciclo. Este processo implica uma cooperação
entre as várias células (o que implica proximidade genética entre elas) que
subordinam os seus papéis para chegar a uma função comum: do alto dos
pedúnculos os esporos podem ser transportados para muito mais longe. Essa
divisão de tarefas faz-se como se pode ver na fig. 2.

Figura 2: A separação de tarefas no bolor viscoso

Este exemplo pré-figura claramente os organismos multicelulares, cujos


corpos se baseiam precisamente nesta complementaridade de funções.
Até que ponto se poderia esperar que os corpos, por seu turno, se organi-
zassem em sociedades complexas com repartição de tarefas? Para que isso
sucedesse seria necessário que todos os organismos beneficiassem com isso e
que nenhum deles perdesse – tratar-se-ia de casos de mutualismo, como os
que temos com as bactérias da flora intestinal, por exemplo. Mas não esque-
çamos aqui que, no caso do fungo, há células que deixam de se reproduzir
para que outras o façam. Isso é difícil de suceder evolutivamente.

Os organismos eussociais

Esse tipo de processo ocorre num número relativamente pequeno de


espécies. Trata-se das espécies eussociais – por exemplo, as formigas – que
apresentam uma característica interessante: em geral os vários indivíduos
que compõem a colónia cooperativa são extremamente aparentados uns
com os outros, o que lhes permite reproduzirem-se «por intermédio» de
outros. Isto ocorre porque, havendo uma grande proximidade genética
entre os vários membros de um grupo, as tendências genéticas para os com-
portamentos cooperativos podem facilmente ser retidas na população – um
fenómeno conhecido por selecção de parentesco (Trivers, 1971). Desta forma
criam-se grupos cooperativos extremamente coesos.
O processo baseia-se no seguinte. Se os filhos da rainha forem mais apa-
rentados com o sujeito do que a eventual descendência desse sujeito, um

244
gene que codifique a abstenção da reprodução em detrimento da ajuda à
reprodução da rainha pode manter-se na população por selecção de paren-
tesco (ver uma apresentação do problema em Sá-Nogueira Saraiva, no prelo b
e submetido a publicação). Verifica-se, nesses casos, que há castas especializadas
– guerreiras, operárias e reprodutora – todas trabalhando de forma concer-
tada para garantir a sobrevivência da colónia e da sua contínua reprodução
através da rainha. Neste sentido, o parentesco muito elevado faz que os ani-
mais pareçam, efectivamente, trabalhar «para bem da colónia». Em condições
de parentesco menos constantemente forte os animais ganham geralmente
mais reproduzindo-se directamente – deixa de ser fácil reproduzirem-se
«através da mãe». Nessas condições, cada animal tende, embora haja excep-
ções, a reproduzir-se directamente.
Mais recentemente, tem-se demonstrado que a eussocialidade não se
baseia apenas na consanguinidade. Além disso, tem de haver custos de dis-
persão muito elevados (quer dizer: sair da colónia para se reproduzir inde-
pendentemente da rainha tem uma probabilidade de insucesso muito ele-
vada) e, o que está associado, a colónia deve proporcionar recursos que não
se encontram fora dela (protecção contra predadores, alimento). Nestas con-
dições a eussocialidade pode desenvolver-se. Retenhamos o que é dito neste
parágrafo: terá importância quando considerarmos a nossa espécie.
Quando cada organismo se reproduz directamente gera-se a já referida
competição entre os vários indivíduos que pretendem acasalar: cada macho
tem de arranjar fêmeas e cada fêmea tem de escolher cuidadosamente um
macho, com toda a competição que daí decorre. Já referimos esse fenómeno
no início deste texto.
Isso significa que a cooperação seria impossível quando os animais, parti-
cularmente os machos, lutam continuamente pela posse do maior número
de fêmeas. Assim, a cooperação em grupos com divisão de tarefas seria
extremamente improvável num grupo em que os membros não fossem
muito proximamente aparentados, como é o caso da nossa espécie (recorde-
mos as nossas tendências exogâmicas).
Pareceria, então, impossível, em termos de instruções genéticas, que a
nossa espécie fosse tão cooperativa como de facto é. Na verdade, na nossa
espécie verificam-se algumas das condições da eussocialidade: custos eleva-
dos de dispersão (na medida em que um par que acasale sozinho terá poucas
probabilidades de sobrevivência, dado que não terá o apoio dos outros e os
benefícios materiais fornecidos pela cultura) e modificação do ambiente pelo
grupo de tal forma que a defesa é assegurada e que outros recursos (ali-
mento, aquecimento) estão presentes em muito maior grau dentro da coló-
nia humana (o grupo cultural) do que fora dela. Contudo, não temos uma

245
das características determinantes da eussocialidade: não somos, dentro de
uma dada cultura, suficientemente aparentados uns com os outros (apesar
das afirmações racistas de que isso acontece) para que seja possível que os
indivíduos cooperem em larga escala assegurando a reprodução através de
um par escolhido. De modo que tem de se encontrar a explicação do com-
portamento cooperativo humano de outra forma.
Afirmar que a cooperação se deve à cultura é apenas pretender explicar as
coisas através de um asylum ignorantum, dado que não se compreende como,
biologicamente, se origina a cultura. Tratei deste assunto com detalhe em
outros locais (Sá-Nogueira Saraiva no prelo a e b e submetido a publicação).
Apresentarei aqui esquematicamente as conclusões apresentadas nesses tra-
balhos.

O plano virtual dos humanos

A nossa espécie apresenta, relativamente às outras, uma novidade evolu-


tiva de consequências enormes. Trata-se da tendência para possuirmos, além
das representações puramente percectivo-motivo-accionais que se encon-
tram nos outros animais, uma representação em termos de classes mentais – o
problema das essências que vem intrigando os filósofos desde Platão. Essas
classes recebem uma etiqueta linguística, mas os seus conteúdos são quer
accionais, quer perceptivos, quer ainda atitudinais e emocionais. Essas classes
são representadas num plano virtual – um espaço de memória e de represen-
tação em que se podem ensaiar as relações entre as várias classes e os seus
vários membros; e é esse o espaço considerado a realidade humana, em vez da
realidade objectivamente comportamental dos outros animais. Por exemplo,
o ritual – o espaço virtual por excelência – é considerado o espaço em que se
age sobre a realidade em praticamente todas as culturas (na nossa, a tecnolo-
gia substituíu progressivamente o ritual, mas trata-se, também, de um
espaço virtual); ver, sobre o assunto, Rappaport (1999).
Uma das consequências deste espaço virtual é que possibilita a redefinição
de classes perceptivas ou biológicas de acordo com critérios mais ou menos
arbitrários. Um desses casos, e com especial importância no contexto da
cooperação e do acasalamento, é o parentesco.

A redefinição dos grupos de parentesco

Como vimos acima (pag 17 et seq.) redefine-se o parentesco biológico em

246
termos de teorias do parentesco. Nomeadamente, é muito frequente que os
primos paralelos (os filhos de um irmão de um dos progenitores que tenha o
mesmo sexo que ele – o irmão do pai, a irmã da mãe) sejam considerados
irmãos, sendo o casamento proibido entre eles e a cooperação seja a mesma
que se esperaria relativamente a irmãos biológicos (o sistema de apelações
corresponde ao sistema de atitudes; Lévi-Strauss, 1949). Há outros casos em
que a maior parte dos indivíduos da aldeia com a mesma idade do sujeito são
considerados irmãos, promovendo assim uma forte coesão grupal. Assim, na
medida em que os vários parentes de determinada linhagem se devem obri-
gações mútuas, temos que, independentemente do parentesco biológico, a nossa
espécie redefiniu um parentesco cultural que determina uma forte coopera-
ção dentro dos grupos linhagísticos. Ou seja, ao redefinirmos indivíduos
pouco aparentados connosco como nossos irmãos e obrigando-nos a agir
para com esses indivíduos como irmãos verdadeiros mimetizamos, até certo
ponto, a situação dos organismos sociais.
Na medida em que os grupos assim formados são coesos (e a formação de
grupos é uma das mais básicas tendências humanas – ver Tajfel, 1981, 1982)
os grupos passam a ser a unidade de adaptação ao ambiente. Há, pois, e
como há muito o compreendeu Durkheim (op. cit.) uma efectiva subordina-
ção do indivíduo ao grupo. Esse fenómeno é uma consequência directa da
existência de um espaço virtual que redefine as classes em termos cognitivos.
Remeto o leitor para a análise cuidada da possível filogénese deste processo
em Sá-Nogueira Saraiva (no prelo a e submetido a publicação). Aqui basta com-
preender que esta capacidade de redefinição das classes em termos culturais
vai permitir a cooperação.

Vantagens em seguir as estratégias do grupo e


conformismo social

Além de possibilitar redefinir o parentesco, as classes culturalmente trans-


mitidas possibilitam que seja transmitidas aos membros de determinada cul-
tura uma grande quantidade de instruções de comportamento que, em prin-
cípio, se encontram adequadas ao ambiente em que esse grupo vive. De
facto, mesmo que tenham o aspecto de instruções religiosas ou rituais, as
instruções têm, frequentemente, um claro valor de sobrevivência (Rappa-
port, 1971). Assim, o fundo de instruções da cultura ultrapassa em muito a
capacidade de cada indivíduo. Nesse sentido, a unidade de adaptação ao
ambiente é, como já referi, o grupo cultural e não o indivíduo.
No problema que agora nos interessa, isso é particularmente visível nos

247
casos de poliandria: mesmo que os machos não gostem de partilhar as
fêmeas (como é particularmente evidente nos Guaiaqui estudados por Clas-
tres), existem pressões sociais muito fortes para que aceitem esse sistema de
acasalamento. Existem regras que obrigam os sujeitos a aceitar esse processo
– uma recusa pode levar à expulsão do grupo, o que corresponde a uma sen-
tença de morte. Mas, na maior parte dos casos, e como podemos testemu-
nhar na nossa própria cultura, as imposições sociais são mais ou menos bem
aceites: os processos de enculturação que ocorrem durante o desenvolvi-
mento (Valsiner, 2000) garantem que o indivíduo humano é aculturado com
relativa facilidade de forma a apropriar-se das instruções que a cultura lhe
propõe. Tem particular relevância neste processo a nossa tendência para o
conformismo social, demonstrada repetidas vezes pela Psicologia social. Ou
seja, parece haver uma predisposição biológica para nos comportarmos
como os outros e, no processo, para justificar, a posteriori, os nossos actos
com as explicações que a cultura fornece (ver, para uma discussão desta
questão, Sá-Nogueira Saraiva, 1999 e submetido a publicação).
Esta tendência para a reprogramação cultural é um universal da nossa
espécie e faz, sem dúvida, parte do nosso programa genético. Assim, os
mecanismos genéticos terão seleccionado os indivíduos que eram reprogra-
máveis pela cultura, que lhes fornece classes de significado, explicações para
os comportamentos e, mais ainda, instruções de comportamento.
Esperar-se-ia então que a nossa espécie fosse ilimitadamente plástica, plas-
mando-se cada indivíduo na sociedade em que nasce? É isso que uma leitura
superficial dos dados recolhidos pelos etnólogos pode sugerir. Contudo,
nesse caso, como explicar a aparente convergência com as instruções bioló-
gicas que governam o comportamento dos outros mamíferos e que foram
discutidas na primeira parte deste trabalho?
Para o compreender teremos de considerar, de novo, o facto básico de que
os grupos humanos não são muito aparentados.

Vantagens em prosseguir estratégias individuais

Nas espécies eussociais em geral nenhum dos membros tem vantagem em


prosseguir estratégias individuais, na medida em que os eventuais filhos de
uma obreira seriam geneticamente mais diferentes dela do que as suas irmãs
filhas da rainha. Assim, os genes que fazem que a obreira se reproduza por
intermédio da rainha têm vantagem reprodutiva sobre os genes que fazem a
obreira reproduzir-se directamente. Mas na nossa espécie não é assim.
Como vimos, e em parte graças às nossas tendências exogâmicas e à tendên-

248
cia para evitar a reprodução com indivíduos que foram criados juntos (ver
Durham, 1991, Eibl-Eibesfeldt, 1989), os grupos humanos são pouco homo-
géneos do ponto de vista genético. Isto quer dizer que um gene que faça que
um indivíduo deixe de se reproduzir para ajudar os outros membros do
grupo se extingirá (o que não acontece com as espécies verdadeiramente
eussociais porque a proximidade genética entre os vários membros é tão
grande que um comportamento altruísta desse tipo irá favorecer o portador
de um genótipo muito semelhante e, portanto, muito provavelmente porta-
dor desse gene). De modo que, embora tenhamos vantagem em ser repro-
gramados culturalmente no sentido da cooperação, temos, ao mesmo tempo,
vantagens para perseguir estratégias individuais. Concretizemos esta afirma-
ção no concernente ao comportamento sexual.
Vimos que a cultura impõe restrições no sentido de que haja casamento e
que as infidelidades tendem a ser punidas, sobretudo quando ocorrem no
seio de um grupo. Esta tendência tem perfeita razão de ser na medida em
que diminui os conflitos entre os machos que, de outra forma, entrariam nos
conflitos sistemáticos e impeditivos de uma verdadeira cooperação que se
encontram nos outros mamíferos. Na medida em que ao seguirmos essas
estratégias cooperativas teremos óbvias vantagens reprodutivas, dado que o
grupo cooperativo, em conjunto, tende a dar a cada membro mais recursos
do que aqueles que, individualmente, esse mesmo membro poderia conse-
guir. Esperaríamos, assim, uma grande facilidade de reprogramação cultural
e de formação de grupos cooperativos com identidades bem definidas (que é
o que de facto a Psicologia social tem mostrado acontecer).
Mas, por outro lado, o indivíduo tem toda a vantagem em seguir estraté-
gias individuais – semelhantes às dos outros mamíferos – se conseguir não
ser punido pelas normas sociais. De facto, uma fêmea acasalada com um
macho subordinado tem, em princípio, vantagens genéticas em ter filhos
dos machos dominantes. E, da mesma forma, um macho tem vantagens
genéticas se conseguir inseminar mais fêmeas do que as que lhe são devidas
culturalmente. Em ambos os casos aumentam a sua descendência e os genes
«egoístas» e não cooperativos aumentam nas gerações seguintes.
Assim, temos pressões selectivas para sermos reprogramados por culturas
cooperativas e para, apesar disso, seguirmos estratégias egoístas. Num caso,
tendemos para a aculturação em estratégias de acasalamento que vão, geral-
mente, no sentido da diminuição da competição. Essa aculturação dá-nos,
além disso, uma justificação ética para esse comportamento que nós quase
sempre aceitamos. Mas, por outro lado, as instruções que nos fazem seguir
os comportamentos dos outros mamíferos também se encontram presentes e

249
fazem sentir a sua força em termos já não éticos mas motivacionais e de
desejo.
Neste sentido, somos levados a ter uma consciência formatada cultural-
mente no sentido da cooperação e estratégias que se fazem sentir mais surda-
mente que nos levam a perseguir estratégias exclusivamente egoístas.
Temos, pois, como qualquer pessoa sabe, uma consciência cooperativa e
social e motivações egoístas e potencialmente associais. Ambas as tendências
são produto da nossa história evolutiva. Nesse sentido estamos condenados,
ad eternum, ao conflito e ao sofrimento psicológico.

A reprogramação dos ciclos funcionais humanos

Ainda assim para que o comportamento humano deixe de ser determi-


nado apenas pelo interesse próprio, há que aceitar uma nova organização do
controlo dos nossos impulsos.
Vimos no início deste livro que os animais são governados por uma estru-
tura motivacional que se reflecte no ponto de referência interno, pri. Na nossa
espécie sucede o mesmo mas com uma diferença importante: conseguimos,
no espaço de representação, ER, vermo-nos como agentes (Teoria da Mente).
Ao vermo-nos como agentes conotamos o que vemos de acordo com valores
que retirámos da cultura; essa conotação corresponde ao conceito de habitus
proposto inicialmente por Norbert Elias e depois muito usado por Pierre
Bourdieu: o habitus é uma série de comportamentos e de avaliações que
fazemos do mundo, incluindo classificações e julgamentos de valor, que
fazemos do mundo fora de nós. Na medida em que conseguimos ver-nos a
nós próprios no ER como objectos (a nossa imagem de nós, ou persona,
como diria Jung) o nosso comportamento é submetido a dois tipos de pres-
são: o juízo que os outros farão de nós e o juízo que nós próprios fazemos de
nós.
Se admitirmos que temos modelos de comportamento que seguimos (que-
remos ser como as pessoas e os modelos de conduta que admiramos) que se
traduzem em conotações sistemáticas da nossa própria imagem, teremos
então que o nosso comportamento é modelado de dentro.
Na medida em que seguimos os modelos que têm mais sucesso (os mode-
los que não têm sucesso, como o do falhado ou do invejoso não são seguidos
a não ser em condições especiais) teremos então que imitaremos o modelo
que, numa sociedade cooperativa, tem mais vantagens. Ora esse modelo é,
repito, nas sociedades cooperativas e funcionais, um modelo cooperativo
(nas sociedades em mudança ou em crise, pode haver modelos não coopera-

250
tivos; mas a existência desses modelos indicia o fim de uma cultura, porque
acabará por ter um número de batoteiros demasiado elevado para que os
ganhos, em média, sejam altos; nesse caso, outras culturas ou outros mode-
los passarão a ocupar o lugar da cultura em crise e dos modelos não coopera-
tivos). Assim, nas sociedades cooperativas e funcionais, os modelos imitados
serão, eles próprios, modelos cooperativos.
Esses modelos cooperativos incluem coisas que se sabem fazer (profissões,
no caso da nossa cultura) e que não são fáceis de aprender, e a inibição das
tendências puramente egoístas que se encontram nos outros animais. Assim
se explica que consigamos controlar a agressividade relativamente aos nossos
rivais e que acasalemos segundo regras específicas (regras que estão a mudar
actualmente: da monogamia está a passar-se à poligamia sucessiva).
Significa isto que, psicologicamente, gostamos de inibir as tendência bási-
cas dos mamíferos? A literatura quer psicológica quer etológica não o
sugere: continuamos a ter tendência para desejar acasalamentos muito mais
variados do que aqueles que temos de facto (variabilidade e mulheres no
pico reprodutivo nos homens, hipergamia quer de recursos quer de estatuto
nas mulheres). Ou seja, mentalmente, continuams a ser os mesmos organis-
mos competitivos que os outros animais não eussociais também são.
O que permite esta modificação então? Creio que se deve explicar este
fenómeno a partir da nossa especificade mental: competimos com os outros
mentalmente, quer dizer, comparamo-nos com eles no ER. Essa competição,
nas sociedades mais cooperativas, será pelos lugares mais bem conotados (os
modelos cooperativos) de modo que, paradoxalmente, competimos uns com
os outros em ser mais cooperativos.
Este mecanismo acompanha-se de várias outras tendências motivacionais.
Assim, gostamos de ser «bem vistos» (a teoria da mente permite que saiba-
mos o que os outros pensam de nós) e gostamos de que os outros gostem de
nós (chama-se a isto, na psicologia da motivação, «tendência para a
afiliação», mas confesso não gostar do termo: prefiro dizer apenas que temos
tendência para procurar quem gosta de nós e que gostamos de quem gosta
de nós; e que gostamos de gostar dos outros procuramos assim a tal «afilia-
ção» que leva à cooperação). E é bem conhecida a tendência para o sucesso
(«achievement», definido por McClelland et al, 1953, como ter sucesso na
competição por um padrão de qualidade.100 Neste caso, o padrão de quali-
dade é o próprio modelo que, nas culturas mais eficazes, é um modelo coo-
perativo.
Temos assim explicado como é que a nossa espécie é cooperativa e quase

100
«Success in competition with a standard of excellence».

251
eussocial embora os indivíduos continuem a ser programados para a procura
de ganhos individuais maiores do que os dos outros.
Claro que isto significa que podem surgir, se não houver o policiamento
necessário dos comportamentos puramente egoístas, modelos de comporta-
mento não cooperativos (há imensos exemplos disso na história, mas talvez
o comportamento dos financeiros «neo-liberais» da actualidade seja o que os
leitores mais facilmente identificarão). Mas, como já disse, esse processo leva
a uma destruição da cultura que codifica esses modelos e à sua substituição
por modelos diferentes ou, em casos mais graves, por outra cultura que ani-
quila a cultura não cooperativa.

CONCLUSÃO

Podemos então concluir que o comportamento sexual nos fornece uma


excelente janela para os problemas fundamentais da nossa espécie. Dividida
entre tendências egoístas que nos impelem a maximizar a nossa reprodução
e a identificação do grupo cooperativo e as suas normas éticas, somos uma
espécie em perpétuo conflito psicológico. O drama corneilleano da razão
versus paixão não é, pois, apenas um topos cultural do barroco ocidental: é
uma característica fundamental da nossa espécie.

252
A ORIGEM DOS DEUSES E DO SAGRADO

OBJECTIVO

Pretendo, neste texto, explicar como a tríade doxificação-eidolonização-


-reificação/concrecção permite explicar a religião em Homo sapiens, nomea-
damente, a formação dos deuses, o sentimento do mundo místico e misté-
rico e os rituais.

A TRÍDADE D-E-R/C

Expliquei, em textos anteriores, que, na nossa espécie, quando um fenó-


meno chama a atenção, ele é inserido numa classe. Se essa classe não existir,
verifica-se o fenómeno «ascendente» da doxificação, em que se procura
caracterizar a «essência» do fenómeno observado. Essa «essência» corres-
ponde, geralmente, a uma categoria que tem um núcleo prototípico muito
claro. Nos casos em que se trata de um fenómeno novo, a classe e o protó-
tipo correspondem, evidentemente.
Dada a existência de uma classe que captura a essência, isto é, os traços mais
evidentes e mais típicos do fenómeno observado – traços esses que podem
estar presentes no fenómeno ou na sua interpretação – forma-se uma poten-
cial imagem ou um esquema sintético. Esse esquema sintético – o protótipo
– pode, potencialmente, ser representado em termos de imagens, de símbo-
los ou de rituais (trata-se de imagens ou símbolos encenados, mas o princípio
é o mesmo).
A tríade pode, pois, ser representada por um esquema que se desenrola em
4 passos distintos, como ilustrado na figura que se apresenta na pág.
seguinte.
Já vimos que este processo é válido para a compreensão quer do mundo
físico quer do mundo social: os vários protótipos são ligados através da
lógica praxianafórica, exercida agora no plano mental sobre os próprios pro-
tótipos das classes. Contudo, isto não é suficiente para explicar a formação
dos deuses e dos fenómenos geralmente considerados religiosos. Para isso
temos de introduzir um conceito que já tocámos quando referimos as capa-
cidades cognitivas dos primatas: o pressuposto de intenção, mais comummente
conhecido pelo termo, a meu ver bastante infeliz, de teoria da mente.
O PRESSUPOSTO DE INTENÇÃO

Fala-se em teoria da mente quando se pretende dizer que um organismo


consegue representar as intenções ou «estados de espírito» dos outros. A
ideia é que o organismo tem a teoria de que o outro tem uma mente. Con-
tudo, considero mais económico limitar o conceito: o que o organismo
parece possuir é o pressuposto de que o outro age intencionalmente; isto é,
tem um pressuposto de intenção. Como vimos, os dados são pouco claros no
que diz respeito aos primatas: conhecem-se casos em que os animais pare-
cem claramente possuir esse pressuposto, mas não se consegue claramente
compreender em que indícios comportamentais se baseiam para inferir essas
intenções.
Contudo, se o panorama nos primatas é pouco claro, na nossa espécie o
fenómeno é claríssimo, como todos temos experiência. Não nos interessará
aqui se podemos saber se os outros têm mentes como as nossas ou se inferi-
mos correctamente as intenções e emoções dos outros. Apenas nos interessa
compreender que esse é um dos fenómenos mais típicos da nossa espécie e
que as relações humanas assentam, em muito grande medida, nele. Na reali-
dade, seria difícil imaginar a nossa vida social sem essa instrução.

254
o que se passa no pressuposto de intenção?

Para compreender o pressuposto de intenção é necessário fazer um ligeiro


recuo relativamente a organismos cognitivamente mais simples do que nós.
Refiro-me especificamente a um comportamento que se encontra durante
o comportamento exploratório e que me parece ser um precursor claro dos
processos que depois aparecem. Refiro-me à distinção entre vivo-não vivo.

A distinção entre vivo e não vivo

Um dos comportamentos típicos da exploração em vários mamíferos,


mas talvez particularmente evidente em felinos, tem que ver com aquilo a
que se poderia chamar «teste de reactividade». Quando um felino encontra
um estímulo desconhecido aproxima-se dele com cautela e em estado de
alerta; depois de chegar próximo do estímulo, um dos primeiros comporta-
mentos pode ser uma patada sem muita força, dada lateralmente; se o estí-
mulo reagir, isto é, mostrar movimento, o animal afasta-se geralmente com
um salto para trás e a exploração prossegue com muito mais cuidado; se não
houver reacção, a exploração segue o seu curso: o animal cheira, mordisca, e
acaba por se desinteressar.
É difícil resistir à interpretação de que o animal pratica um teste de reacti-
vidade que tem a consequência de o informar se o estímulo em questão tem
possibilidade de «reagir» – no sentido de reagir relativamente ao animal – ou
não. Se o estímulo reagir torna-se muito mais importante saber sobre ele, na
medida em que pode reagir relativamente ao animal.
É este o ponto interessante do «teste de reactividade»: é que os animais
vão testar a potencial relevância da reacção do estímulo relativamente a eles
próprios. Estamos, evidentemente, longe da atribuição de intenções, mas a
função é semelhante. Mais, há mesmo aqui um elemento que vai ser recupe-
rado na formação dos deuses.

O vivo e a intenção

Mesmo na nossa espécie se encontram vestígios do esquema «vivo-não


vivo». Sabemos que uma garrafa não se moverá sozinha; sabemos que um
gato pode fazê-lo. E, o que é mais, temos a maior das dificuldades, quando
encontramos um objecto com comportamento aparentemente teleonomi-
zado (isto é, que parece fazer coisas com objectivos) em não lhe atribuir

255
intenções semelhantes às nossas. Por exemplo, quando vemos um animal
simples – um organismo unicelular, por exemplo – temos a maior das difi-
culdades em não afirmar que ele «procura», «foge», etc. Bastantes filmes fan-
tásticos baseiam-se precisamente nisso: uma entidade viva quer fazer mal a
alguém. Tentemos compreender o que se passa nestes casos.
O fenómeno essencial parece ser que, se um objecto se move de motu pro-
priu, tendemos a atribuir-lhe uma vontade. Ora, para o fazer, temos de nos
basear nas «vontades» que conhecemos, isto é, nas nossas próprias. Em con-
sequência, quando detectamos algo «vivo», vamos-lhe atribuir motivações
semelhantes às nossas. Assim, o estímulo procura, foge, tem fome, tem
medo, pode atacar, vingar-se, e assim por diante.
Tomemos, portanto, apontamento mental deste facto: quando encontra-
mos um objecto em movimento aparentemente teleonomizado tendemos a
atribuir-lhe intenções, e essas intenções são iguais às nossas.

O SAGRADO COMO CATEGORIA HUMANA

A sociedade ocidental encontra-se de tal forma laicizada que tendemos a


não considerar as motivações religiosas como básicas da nossa espécie. De
facto, é raro – ou mesmo raríssimo – encontrar, nas categorias de emoções, a
emoção do sagrado. Contudo, há, na nossa sociedade, uma clara maioria de
pessoas religiosas (que essas pessoas não sejam, na maior parte dos casos,
cientistas do comportamento não tira nada ao facto) e, em todas as culturas,
há formas de religião,101 que desempenha uma importantíssima função
social.
O que nos interessa aqui é compreender o que nos permite identificar
uma emoção como «religiosa» ou «mágica».
Há uma enorme quantidade de escritos sobre religião. Talvez os mais cla-
ros neste contexto sejam os dos grandes místicos, como São João da Cruz ou
Mestre Eckhardt. Mas trata-se de leituras difíceis para o público moderno.
Modernamente, escreveu-se bastante sobre religião (Evans-Pritchard, Boyer,
Argyle). Mas, em minha opinião, o melhor livro a tratar da questão do senti-
mento religioso é uma obra do início do sec. XX. Refiro-me a Rudolph Otto
que, na sua obra Das Heilige capturou, parece-me, melhor do que ninguém,
101
Discute-se, muitas vezes, a diferença entre «religião» e «magia». Embora reconheça que se
trata de coisas diferentes – num caso um conjunto de crenças mais ou menos articuladas e no
outro recurso a forças invisíveis com objectivos concretos – para nós a distinção não terá grande
importância. Primeiro porque, na maior parte dos casos, as duas coisas se encontram ligadas;
segundo, e principalmente, porque ambas dependem da crença do sagrado, do mistérico, que é o
que nos interessa neste contexto.

256
as características que definem um sentimento religioso. A obra encontra-se
traduzida em muitas línguas, incluindo o Português e é leitura indispensável
para compreender o fenómeno do sagrado.
Otto refere várias características do fenómeno sagrado. Mas parece-me
que, para os efeitos presentes, se pode resumir aqui o seu pensamento numa
frase sua: o sagrado é o sentimento do «totalmente outro», do enorme, do
avassalador, daquilo que nos reduz à mais ínfima pequenez. Nas suas formas
mais sublimes, o sentimento do sagrado leva-nos a procurar a anulação de
nós próprios para podermos participar, sem a conspurcação que o nosso eu
implica, na enormidade do divino. É isso que se passa na maior parte das
teorias místicas: procuramos anular o nosso ser para nos fundir com o Ser
essencial: Deus. Esse Deus não tem de ser, no caso deste tipo de religiosi-
dade tão desenvolvida, uma personalidade. Nas teorias místicas mais pro-
fundas, esse Deus é um «enorme nada», a pura existência. E é ao anular-nos
como pessoas que podemos participar nesse nada e contemplar, sem o saber,
a verdadeira natureza do divino.
Claro que estas experiências só são possíveis quando nos afastamos da vida
activa e passamos ao contemplativo. Mas há formas diferentes de experi-
mentar as mesmas emoções.

O medo e o enorme

A teoria de Otto é complexa e não pretendo resumi-la aqui em poucas


palavras. Refiramos apenas que, como Burkart (19**) também o afirma, na
origem da emoção religiosa encontra-se o terror e a sensação de que, perante
tal força e enormidade nada somos. Talvez algum dos meus leitores já tenha
tido essa experiência: perante uma paisagem esmagadora, perante uma obra
de arte que «nos esmaga» sentimos que «nada somos». É um sentimento
misto de pavor, admiração, atracção e sentimento de total impotência. A
sensação nada tem de sereno ou doce: é terrível, esmaga-nos, reduz-nos ao
completo nada. O medo é total e a submissão completa.
Esta noção corresponde, de certa forma, à noção de mana – força sagrada
– que foi descrita por Codrington e Maret. Vários povos primitivos têm
uma palavra que designa tudo aquilo que é fortissimamente poderoso e que
mete medo: mana, manitu, orenda, wakanda, são, todas elas, formas de nos
referirmos ao terror sagrado.
Há aqui vários pontos que deveríamos tentar destrinçar. São eles: a moti-
vação do medo; a objectivação do agente do medo; o aspecto misterioso do
medo. Tentarei separá-los ainda que isso não seja muito fácil.

257
A motivação do medo

Quase todos os organismos têm medo do grande, sobretudo se tiver


movimento e, por conseguinte, parecer intencional. Nós não somos excep-
ção: lembremo-nos, por exemplo, do sucesso comercial dos dinossauros,
que nos atraem porque são grandes, misteriosos e maus.
Num mundo primitivo, em que se desconhecem as causas de quase tudo,
há muitíssimas ocasiões de ter medo. O trovão e o raio; a tempestade; as
feras; as doenças; a fome e as suas causas.
Por comodidade, consideremos aqui apenas um exemplo, o raio.
Vivendo, como vivemos, em cidades compostas de prédios isolados por gai-
olas de Faraday e num clima não muito propício às tempestades, podemos
não ter uma noção clara do medo de um raio que se veja e do concomitante
estrondo (na realidade é um estralejar impressionante) do trovão. Mas ver
um raio abater-se sobre uma árvore ao pé de nós, exactamente ao mesmo
tempo que ouvimos um barulho ensurdecedor, composto de sons gravíssi-
mos e, ao mesmo tempo, muitíssimo ásperos é, de facto, uma experiência
inesquecível. Inesquecível e terrivelmente assustadora. Mais, em ocasiões
subsequentes, quando ouvimos o ruído do trovão aproximar-se de nós, sen-
timos quase que nos persegue – pelo menos que nos ameaça cada vez mais.
Num mundo sem órgãos de tubos, sem orquestras sinfónicas ou bandas de
heavy metal, é, provavelmente, o ruído mais impressionante que se pode
ouvir. E ver uma árvore enorme ser atingida por um feixe de luz que quase
nos cega é, certamente, das experiências visuais mais violentas que se pode
ter. Mais, o raio não cai às cegas: parece ter um alvo. É muito difícil ver um
raio de relativamente perto e não ter a sensação de intencionalidade.
Temos, portanto, dois elementos aqui presentes: uma força poderosíssima
e enorme e uma semelhança de intencionalidade muito clara.
De acordo com o que dissemos antes, é muito claro que vamos identificar
esta força com uma intenção; e, na medida em que nos afecta, uma força que
nos pode fazer mal ou não. Ou seja: há uma antropomorfização do raio e do
trovão segundo os princípios de que falámos acima, quando discutimos o
pressuposto de intenção.
Dado isto, o que podemos nós fazer contra o perigo do raio? Rigorosa-
mente nada. Sim, modernamente sabemos que nos devemos deitar no chão,
longe de árvores ou de estruturas verticais. Mas o homem primitivo sabê-lo-
-ia?
Qual é a reacção perante um perigo imediato, perante uma força que não
podemos vencer e que identificamos como uma identidade e uma intenção?

258
Naturalmente que é pedir-lhe clemência: «Raio, poupa-me, eu não te fiz
mal». Melhor, «Raio, poupa-me e eu honrar-te-ei».
Não é por acaso que há tantos deuses do raio. Zeus, Thor, e muitos, mui-
tos mais são, na origem, senhores do Raio, coléricos, zangados, e que preci-
sam de ser aplacados.
Esta sensação de terror, de absoluta abjecção perante uma força que não se
controla é absolutamente típica do fenómeno místico. Deus é um ser terrí-
vel, todo-poderoso, que não controlamos e apenas podemos aplacar com
pedidos e sacrifícios. Tal como faríamos com as pessoas poderosas. Como
Cialdini mostrou e é bem sabido da Sociobiologia, um presente é uma
forma poderosa de fazer amigos.
Temos, pois, aqui, a antropomorfização de um deus. O processo, como o
referimos, corresponde integralmente à alça ascendente da tríade doxifica-
ção-eidolonização-concrecção. Como se passa depois à alça descendente, à
concrecção propriamente dita?
O que vimos foi que identificámos um fenómeno que nos mete medo e
que o eidolonizámos numa intenção e, por conseguinte, numa entidade
antropomórfica. Mas, por outro lado, um Raio não tem cara, não a vemos.
Temos de supor que há uma entidade antropomorfa que o envia. É aí que se
cria o eidolon, a noção do Senhor do Raio. Mas, e discutiremos este aspecto
mais tarde, a nossa espécie, se concebe tudo em termos mentais, não o faz
geralmente em termos meramente abstractos. Sim, a cultura ocidental – ou
pelo menos as pessoas de cultura universitária e de tradição judaico-cristã –
tendem a fazê-lo. Mas nem todas; o fenómeno é explicado numa nota de
rodapé que apenas por falta de tempo não transformo em secção indepen-
dente.102 Como explico na nota, a maior parte das culturas da humanidade
102
Um dos pontos mais interessantes da História comparada das Religiões é a questão do sím-
bolo de Deus ou de um Deus. Os cristãos aceitam símbolos. Houve, na Alta Idade Média bizan-
tina, uma grande discussão, entre os defensores das representações – os iconólodos, que defendiam
os ícones, isto é, as representações concretas, e os iconoclastas, que defendiam que Deus era um
espírito e não podia ser representado pela matéria. Como certamente sabem, ganhou o movi-
mento iconódulo (de onde os ícones da Igreja dita Ortodoxa); os Cristãos ocidentais, sobretudo
os católicos, são fortemente defensores da representação pictórica dos deuses; já entre luteranos e
protestantes a questão é menos líquida. Os muçulmanos proíbem a representação dos deuses. O
mesmo sucede com os judeus. No Templo de Jerusalém, o sanctus sanctorum, o lugar mais santo,
o lugar dedicado a Deus, era uma sala vazia. Aí habitava o espírito do Deus, que não pode ser
expresso de nenhuma maneira. Temos, em todos estes casos, manifestações de pensamento não
concreto: compreende-se que a essência de Deus é ontologicamente diferente da da sua criação,
que é espírito ou verbo, isto é, vontade de criação e não matéria. Contudo, na maioria das socie-
dades primitivas (todas as de que me lembro ao escrever este texto) a ideia de invisível não corres-
ponde à ideia de imaterial. O invisível é material: é apenas invisível, o que é ainda mais amedron-
tante. Os alunos que deram atenção às aulas lembrar-se-ão dos exemplos em que o xamã que tira
a doença através de uma pena ensanguentada apenas está a usar essa pena como suporte; e que os

259
não parece sentir-se bem com uma entidade apenas eidolonizada, isto é,
puramente imaterial. Parece sentir a necessidade de lhe dar forma e con-
teúdo material. É isso que explica que a maior parte dos deuses tenham
forma. É, também, isso que explica
que a maior parte dos deuses das
culturas primitivas tenha uma
expressão assustadora. Saiu, há
pouco tempo, um livro fascinante,
sobre arte da Oceânia. Refiro este
porque o podem encontrar facil-
mente nas grandes livrarias e nem
sequer é muito caro. Se o examina-
rem com algum cuidado, verão que
todas as imagens de deuses (os
«ancestrais») ou de máscaras de inici-
ação (de novo os «ancestrais») são
medonhas. Algumas são franca-
mente aterrorizantes, mesmo para
nós, que estamos habituados ao
Alien. Dou um exemplo nesta
página. Se consultarem livros sobre
arte religiosa africana ou ameríndia encontram exactamente o mesmo
padrão: os deuses mais poderosos são, sem excepção terríveis e medonhos.
Não dou mais ilustrações aqui para não tornar o PDF muito pesado, mas
podem acreditar em mim (vejam o que diz sobre o assunto o Walter Bur-
kardt): basta visitarem qualquer museu etnográfico: o fenómeno encontra-
-se em África, nas Américas e mesmo os deuses asiáticos e europeus prévios
à cristianização tinham essa característica. Mesmo em imagens cristãs de
Deus – do Deus Pai – da Alta Idade Média (isto é, a mais antiga) encontram
esse carácter terrível.
O que isto significa é que a força, que é o atributo principal dos deuses em
questão, é emparelhada com o aterrorizador. E que esse aterrorizador é
transmitido para a sua representação material – seja símbolo, como a Igreja
pretende – seja uma concrecção ôntica, isto é, como na Austrália se pretende
(e se verá) a representação é o próprio deus.
Em resumo, referimos aqui três pontos importantes: que a experiência
mística vem, originalmente, do terror e da submissão a uma força total-

Inuit acharam que a descrição de micróbios era exactamente igual à de espíritos malignos: coisas
materiais e invisíveis que faziam mal. A distinção material-imaterial não parece ser um universal
da nossa espécie. Sobre isto ver Hallpike, The Foundations of Primitive Thought.

260
mente a que não podemos opor-nos e que nos ultrapassa completamente,
que essa força é antropomorfizada num eidolon concebido como intencio-
nal e que é necessário aplacar e que esse eidolon tem tendência a ser concre-
cionado numa representação que tem esses atributos aterrorizantes.103

O agente do medo

Há, pois um agente do medo: um Deus, uma força pessoalizada. Como a


qualquer pessoa, sobretudo uma pessoa que nos domine, temos de entrar no
sistema de pedidos de clemência e de oferendas. É isso que justifica que se
sacrifique a Deus. Mas é isso, também, que está na origem das mais belas
páginas da Bíblia (Antigo Testamento). Consideremos a seguinte Salmo
Penitencial (Alemanha, séc xvıı, em tradução relativamente livre da versã
alemã):

Porque te incendiaste em fúria contra mim?


A tua caridade e amortransformaram-se em cólera?
Já não tenho força nas pernas da aflição que sofro;
os meus olhos estão raiados de sangue e cheios de lágrimas.
A dor do desespero secou-me toda a força; estou fora de mim de
sofrimento.
Quando, de noite, só há silêncio e quietude, eu só estou acordado
e nunca fecho os olhos.

É então que me mortifico com amargura,


que penso na minha desgraça
e que tenho prazer em não combater a minha infelicidade.
O meu colchão ensopa-se então de lágrimas.

Oh, Deus, permanecerás tu para sempre irado?


A tua cara estará para sempre escondida de mim?
De dia e de noite, eu estendo os braços para ti;
mas quando mais te procuro mais tu, Senhor, me rejeitas.

103
Nota para os resistentes do relativismo. Mas as formas de conceber o terror não são dife-
rentes nas diferentes culturas? Aparentemente não. Olhos esbugalhados, dentes afiados, grande
tamanho, cor escura e combinação de branco, vermelho e preto, parecem ser constantes na repre-
sentação do perigo. Como nota interessante, refira-se que na maior parte dos outros animais
(incluindo espécies muito afastadas da nossa) a lista é muito semelhante.

261
Penduraste-me de um precipício para que eu caísse fundo, quase
no abismo.
Vibras ao meu coração golpes terríveis.
Magoas-me, fazes-me desesperar.
Porque me atormentas?
Que queres tu de mim? O que é que um homem tem para ti? O
que é que eu te posso dar?

Se é angústia que queres, estou cheio dela.


Se são lágrimas aqui as tens;
queres humildade, tu que sabes que eu tantas vezes me rojo ante
ti;
se enfim quiseres suspiros não há quem mais do que eu os tenha
para tos dar.

Meu Deus, deixa de te incendiar de fúria contra mim.


Deixa que a tua ira se transforme em caridade e amor.

O leitor notará aqui todas as características apresentadas na secção ante-


rior; outros textos semelhantes encontram-se, por exemplo, nas Lamenta-
ções de Jeremias, no Antigo Testamento, nos textos babilónicos e, com dife-
renças, nos egípcios. A ideia de que a salvação está na morte, que se pensava
ser específica a Jesus, parece ser mais antiga (Israel Knohl)104
Encontramos a pessoalização de Deus; a humilhação total perante uma
força incontrolável; e, neste caso, a oferta de si próprio, a maior possível.105
Claro que estamos a falar de um poema proveniente de culturas muito
ricas – a tradição judaico-cristã. Nos povos primitivos as preces podem não
ter este valor poético (mas há excepções). Contudo, todos os elementos da
criação dos deuses estão aqui presentes.

O mistério

Não referi antes um aspecto extremamente importante na caracterização


104
The Messiah before Jesus: the suffering servant of the Dead Sea scrolls. University of California
Press, Berkeley, 2000.
105
Alguns leitores ateus pensarão, ingenuamente, que ainda bem que não acreditam em Deus.
Mas enganam-se, em minha opinião. O texto trata de desespero. Actualmente apenas podemos
constatá-lo, senti-lo e sofrer. Não podemos pedir ajuda. Mas, para quem acredita em Deus, é
pelo menos possível pedir-lhe, implorar-lhe e esperar. Quem não acredita em Deus limita-se a
sofrer.

262
do fenómeno religioso. Referi-me ao medo. Mas esse medo pode ser do
enorme, do monstruosamente poderoso, do terrível, mas também simples-
mente do completamente inexplicável.
Vivemos numa sociedade laica, já o disse, e estes fenómenos para nós já
não têm mistério nenhum: mas, na religião Cristã que se criou durante os
séculos posteriores a Cristo106 havia vários mistérios. Um deles, dos que mais
discussões trouxe, é a famosa Trindade. Já nos habituámos a tal ponto a isso
que consideramos apenas que se trata de uma espécie de «três em um», como
os champôs. Mas o facto é que se trata da afirmação de uma impossibilidade:
três entidades não podem ser uma; ou, se preferirem, 3=1 é Falso. Durante
muito tempo especulou-se sobre este núcleo do cristianismo e houve as res-
postas mais diferentes. A mesma coisa diz respeito à natureza humana ou
divina de Cristo. Outra coisa impossível que, embora não faça parte dos
mistérios da fé nem sequer seja das primeiras tradições sobre Cristo, é ser a
sua mãe uma virgem. Claro que isto é impossível, mas foi rapidamente apro-
priado pela tradição cristã na medida em que conferia a Cristo um estatuto
mais misterioso, mais sagrado, mais miraculoso.
É muito frequente haver, no centro das religiões, um fenómeno total-
mente impossível. Trata-se ou da violação de uma regra praxianafórica ou
de um fenómeno impossível. Por exemplo, as cosmogonias todas assentam
em transformações impossíveis. Os australianos têm um nome particular-
mente feliz para se referir àquilo que ocorreu durante os tempos da criação
do mundo: chamam-lhe o tempo do sonho, o que significa, penso eu, o tempo
em que a realidade não impõe as suas leis. Esta noção captura particular-
mente bem aquilo que eu quero transmitir: no núcleo das religiões há, quase
sempre, qualquer coisa de mistérico e de impossível, que transforma e impõe
um sentimento de «outro mundo».
Falarei aqui das iniciações, particularmente reveladoras do elemento
sagrado. Numa cerimónia de iniciação revela-se ao iniciado quem ele é. As
cerimónias de iniciação são os momentos em que determinada pessoa muda
de estado. Por exemplo, na nossa sociedade, o casamento é um bom exemplo;
exemplos espontâneos são as semanas de recepção aos caloiros que, de pes-
soas «normais», passam a universitários. Nos docentes universitários, o dou-
toramento é outra cerimónia de iniciação; embora já não se notem vestígios
disso, o Doutor passa a usar vestes diferentes e, antigamente, o seu nome
106
O Cristianismo tem, na realidade, relativamente pouco a ver com Jesus: não sabemos
muito bem o que Jesus defendia e apenas temos acesso àquilo que alguns teólogos disseram
vários anos ou séculos depois da sua morte; como aquilo que os vários teólogos fazem de Cristo
é bastante diferente entre si temos de considerar o Cristianismo como um fenómeno ideológico
de acumulação de ideias e noções e não como uma mensagem de uma pessoa; em vários
aspectos, Cristo é uma concrecção antropomorfizada de uma teoria, tal como expliquei acima.

263
mudava: Se Julius Frobenius se doutorasse passava a chamar-se Doctor
Julius Frobenius, sendo Doctor parte do nome.
Mas o que importa aqui compreender é que as cerimónias de iniciação são
momentos em que se altera a identidade da pessoa iniciada. Essa iniciação é
sempre conduzida por forças mais poderosas do que as do próprio sujeito, e
tem, na maior parte dos casos, um carácter que pode ir do completamente
aterrorizador até simplesmente ao muito difícil (o doutoramento, por
exemplo!) ou mesmo, em certo sentido, não ter grandes custos (o casamento
tal como se pratica nos moldes actuais, que apenas obriga ao oferecimento
de um jantar e as algumas juras que as pessoas fazem sem qualquer convic-
ção).
Nas grandes iniciações, contudo, os momentos terríveis e o elemento
impossível estão sempre presentes. Por exemplo, é frequente o iniciado morrer
para ressuscitar depois; claro que se trata de mortes simbólicas, mas podem
implicar passar dias enterrado num túmulo. Além disso, são muito frequen-
tes as dores físicas. Por exemplo, nos Índios das Planícies, um homem, para
ser adulto, tinha de passar vários dias em busca de uma visão. Durante esses
dias jejuava, passava aos noites quase sem roupa mesmo sob climas rigorosís-
simos e o processo só terminava se o sujeito desistia ou, mais frequente-
mente, quando tivesse uma visão. Essa visão, geralmente de um animal, tor-
nava-se o seu protector, ou mesmo a sua identidade mística. Na Austrália,
onde os rituais de iniciação foram muito bem estudados, o jovem é subme-
tido a variadíssimas torturas, é aterrorizado e, por fim, é-lhe revelada a sua
verdadeira identidade. Esse processo consiste em mostrar ao iniciando o seu
antepassado mítico. O processo pode ser altamente aterrorizante (muitas das
tjuringas, as imagens do antepassado mítico, são, elas próprias, impressionan-
tes) pela simples afirmação de que se faz da assimilação ontológica do inici-
ado a um objecto sagrado. Darei um exemplo que me parece particular-
mente impressionante, tirado dos Arunta (ou Aranda, consoante quem gra-
fia o termo é francês ou inglês). De uma série de procedimentos, que
incluem torturas inacreditáveis que colocam o iniciando num estado de total
alheamento ao quotidiano e de terror, mostra-se-lhe uma pedra polida e tin-
gida de vermelho, escondida entre outras pedras. Entrega-se-lhe a pedra e
diz-se-lhe, com a maior solenidade e no maior segredo:

Eis o teu próprio corpo, do qual saíste através de um novo nasci-


mento. É o corpo verdadeiro do grande Tjenterama, chefe da
reserva de Iibalintja [...] Tu és o próprio grande chefe Tjenterama (Eliade,
Religions Australiennes, pp. 103, apud Strehlow, 1947, Aranda Traditi-
ons).

264
Consideremos a frase «Eis o teu próprio corpo, do qual saíste através de
um novo nascimento»: Verificar-se-á que é impossível em muitos aspectos.
Em primeiro lugar, trata-se de uma pedra, e a afirmação viola a lei da identi-
dade; em segundo lugar, não se pode sair do próprio corpo, ou nascer do
próprio corpo. Se analisarmos o conjunto da frase constatamos ainda outra
impossibilidade: não se pode ser um morto, ou um espírito de um morto.
Este tipo de núcleo mistérico é importantíssimo em todas as religiões. É-me
difícil dar exemplos que sejam facilmente compreensíveis das emoções que
acompanham este tipo de situação. Mas trata-se de uma sensação de impos-
sibilidade, de viver em sonho, de nos ser revelado algo que ultrapassa a nossa
compreensão. Corresponde-lhe uma sensação de arrepio na coluna, uma
espécie de vertigem cognitiva, mais ou menos semelhante àquela que se
obtém olhando para os quadros e Escher (as figuras impossíveis).
Não afirmarei estarmos perante uma emoção primária, porque há mistura
de espanto, medo, reverência e confusão cognitiva. Mas creio que estamos
perante uma emoção universal. E penso que, em muitos aspectos, corres-
ponde a uma das emoções do sagrado, ainda que não a sintamos correntemente
na nossa cultura laicizada.

PORQUE É QUE OS CRISTAIS SÃO MÁGICOS?

Quando vemos cristais temos uma sensação de impossibilidade, porque


parecem demasiado perfeitos para fazerem parte da natureza. As coisas, na natu-
reza, são desordenadas e difíceis de compreender, mas os cristais têm uma
beleza que reconhecemos mesmo que nos seja difícil de reproduzir grafica-
mente o que apreciamos. Aparentemente, há uma lógica da mente que iden-
tifica ordem onde não se esperaria encontrá-la.
Essa ordem contrasta com a desordem que nos cerca e tendemos a achá-la
intencional. Tendemos a achar que alguém foi responsável pelo que se vê:
nota-se que são produtos do espírito, que não são coisas empíricas plausí-
veis. Ocorre o mesmo com todos os fenómenos aparentemente intencionais
que são considerados sobrenaturais: é demasiado estranho para ser obra do
acaso.
Os cristais são, pois, implausíveis e aparentemente intencionais porque lá
vemos uma ordem que o nosso espírito reconhece mesmo que a não saiba
reproduzir.
É, portanto, natural que os cristais sejam sempre apreciados como poten-
cialmente mágicos: são inesperados em termos do empírico e são reconheci-

265
dos como feitos, como seguindo a ordem imposta por uma mente mais pode-
rosa do que a nossa, que não conseguiria formar estruturas tão complexas.
Como a preferência por cristais, por pedras com contendo fósseis perfei-
tos ou por elementos que se assemelham a coisas que consideramos impor-
tantes ocorrem ainda no acheulense, podemos considerar que é o reconheci-
mento do inesperado e a valorização desse reconhecimento que estão em causa.
Acessoriamente, os cristais implicam que haja uma preferência geral por for-
mas de simetria pluriradial, simetria essa que só pode ser explicada em ter-
mos de leis gestálticas que não sei se estão estudadas, mas que podem ser
associadas à detecção de formas puras que ocorre, certamente, desde o
acheulense.

Nos chimpanzés

Não sei se essa preferência por objectos de simetria multiradial se encontra


nos chimpanzés, mas o assunto poderia ser testado. É importante saber se os
fenómenos de identificação de formas puras já se encontram nos antropóides
ou não, porque essa identificação de formas puras parece-me associável quer
ao fabrico de ferramentas quer às condições necessárias ao aparecimento da
linguagem – modelos mentais e capacidade de estruturação espacial da
informação, ainda que sem experiência prévia.
A investigação dessa preferência poderia ser feita comparando animais e
crianças, sobretudo se não tiverem sido ocidentalizadas, numa tarefa de
exploração de estímulos, sendo uma das variáveis a simetria. A simetria em
si pode também ser estudada através de tarefas de matching to sample, verifi-
cando se a simetria é fácil de aprender ou não.

266
O poder das formas Raras

Na nossa espécie presumo que os cristais sejam usados em cerimónias reli-


giosas como detendo poder (ocorre em várias sociedades primitivas e entre
nós – várias referências ao «poder dos cristais» nos anúncios de mágicos). Isso
deve derivar de um processo mental mais complexo do que o que provavel-
mente estava em jogo no acheulense. A sequência é a seguinte. 1) Detecta-se
uma forma que parece impossível; 2) Conclui-se que essa forma é intencio-
nal; 3) Não se identifica o criador; 4) Presume-se que o cristal está associado
ao poder de criar o impossível; 5) Associa-se o cristal a um poder indetermi-
nado. Presumo, portanto, que os cristais possam ser usadas como forças nos
processos de cura e nos rituais em que a presença do sagrado é requerida.
O cristal ganha ‘poder’ na medida em que é intencional mas sem que se
conheça o criador: é, pois, um mistério, cheio de ‘mana’.
Se houver qualquer forma da natureza que se pareça com outra, impor-
tante para nós, esperaria que fosse considerada da mesma forma: é implausí-
vel, parece impossível que não tenha criador e não se sabe quem o criador é.
De maneira que, intrínsecamente, há uma carga de inexplicado na peça, de
mistérico.
O mistérico é sempre sagrado porque nos assusta. Daí, talvez, a ideia de
que tem poder: o que assusta tem poder. Mas estou a falar de dois processos
independentes. O que assusta tem poder porque assusta – assim, um raio
tem poder. Mas no caso dos cristais é necessário compreender que há um
criador que não se identifica, e é essa inidentificação do que deve ser inteligí-
vel que, ela própria, assusta.

Os cristais no Acheulense

Não creio que no acheulense Homo erectus fosse capaz de identificar um


agente misterioso. Ou seja, não me parece que seja possível que, com um
cérebro ainda bastante pequeno, seja possível conseguir detectar o poder de
um criador que não se vê.
O que se esperaria de um mamífero seria a investigação de um estímulo
neutro complexo: os cristais não seriam mais especiais do que qualquer
outro estímulo complexo. Num mamífero (incluindo, parece, nos chimpan-
zés e outros antropóides) a exploração consiste na variação de estimulação. É
verdade que um cristal, ne medida em que filtra o sol, etc., pode ser uma
fonte de estimulação importante.107 Dado que a exploração se deve à neces-
107
Nem de propósito: os arcos de gaz dos golfinhos, vi-os hoje.

267
sidade de mudar a estimulação – atracção pela novidade – um estímulo novo
seria explorado, mas o facto de ser um cristal, um fóssil ou qualquer outra
coisa aparentemente simbólica ou mesmo icónica não teria importância:
seria explorada até que a novidade passasse.
O facto (questionável)108 de haver vestígios de que objectos deste género
foram guardados sugere que eles foram identificados como especiais. Os cris-
tais são um caso, os fósseis outro. No caso dos cristais, é necessário acreditar
que a mente é sensível às estruturas que o cristal apresenta: como já disse, é
necessário que haja detectores de tipo gestáltico e que isso fosse valorizado
como ‘raro’. No caso dos fósseis ou de figuras (Berekhat Ram) é necessário
que se tenha visto uma semelhança entre a figura e uma coisa valorizada (um
pénis e uma figura humana). Esta valorização implica que estas representa-
ções são ‘importantes’, que estão emocionalmente conotadas – isto é, que
tenham teores motivacionais reconhecíveis. Mas também implica que haja a
capacidade de estabelecer a relação entre o valorizado e a sua representação e
valorizar essa relação. O que me parece explicar esse factor é sempre a pre-
sença de uma axiologia, ainda que simples: certas coisas são importantes. E,
além disso, a presença de um espaço mental em que as coisas possam ser rela-
cionadas.
Axiologia — Para haver axiologia tem de haver uma decisão sobre o valor
das coisas que vai para além do valor puramente utilitário. Este valor é deci-
dido ainda em termos perceptivos – pelo menos os dados que nos restam são
esses – mas o comportamento é diferente do dos chimpanzés que são pura-
mente utilitários.
Visão genesíaca do mundo — Outra possibilidade para que os cristais sejam
valorizados é o que está delineado na secção sobre o poder das formas raras.
Contudo, essa explicação assenta na necessidade que nós, sapiens, temos de
encontrar uma explicação, em termos genesíacos, de quem fez o quê. Assim,
os cristais foram feitos por não se sabe quem, etc.
Para que essa explicação genesíaca seja possível, tem de haver uma profun-
didade de memória bastante grande: todas as coisas têm um passado, e esse
passado é explicado quando se encontra um agente – basta nomeá-lo. Essa
característica implica, parece-me, um uso referencial da linguagem, a pro-
cura de uma causa: ‘Quem?’
Os dados sobre o acheulense são suficientes para nos permitir dizer que
havia alguma profundidade de memória: há cadeias operatórias relativa-
mente longas, alguns bífaces eram bastante bem feitos, há traços de constru-
ções para onde foi necessário levar pedra aí inexistentes, há quem veja cons-

108
Os cristais aparecem numa escavação acheulense na Índia: 6 cristais de quartzo em Singi
Talav (d’Errico, Gaillard, and Misra 1989).

268
truções de cabanas, e há as lanças, que implicam um processo bastante longo
de construção e uma projecção no futuro. É certo que não sabemos quem
fez tudo isso: pode ter sido erectus ou uma forma de pré-sapiens não nome-
ada (heidelbergensis?). Mas foi no acheulense e portanto indica uma precoci-
dade dessa cultura que parece compatível com a linguagem, ainda que even-
tualmente de forma simplificada (uma linguagem de imperativos, como
escrevi há dias). Havendo linguagem e identificação de causas não visíveis –
que no fundo são as intenções da teoria da mente – seria possível que houvesse
um espanto perante um cristal ou um fóssil análogo a uma coisa represen-
tada: quem fez? Não implica que haja ainda a noção de uma entidade
mágica. Isso implicaria, contudo, um processo de tratamento dos estímulos
novos semelhante ao nosso: identificar um objecto a partir da sua origem.
É evidentemente possível que os cristais fossem guardados para serem mos-
trados e assim aumentar o prestígio do possuidor/criador. Esta é outra ideia.
Em qualquer caso, os dados são muito escassos porque há muito poucos
casos deste tipo. Contudo, o facto de haver um só que seja – e na verdade há
mais, além dos cristais – para que possamos pensar que as capacidades esta-
vam presentes potencialmente durante o acheulense.

269
AS PRESSÕES SELECTIVAS PARA O ESPAÇO
DE REPRESENTAÇÃO REFERENCIAL

Nos  capítulos  anteriores  apresentámos  um  percurso  evolutivo  


provável   para   a   origem   do   ER   e   o   seu   impacto   no   comporta-­
mento  humano,  mas  apenas  sugerimos  tenuemente  quais  pode-­
riam  ter  sido  as  pressões  adaptativas  que  se  encontram  na  sua  
origem.  Pretendo  aqui  tornar  esse  aspecto  mais  claro.  
Nas   primeiras   tentativas   que   fiz   de   explicar   o   ER   usei   um  
termo  diferente:   reificação,  que  corresponde  à  substituição  dos  
dados  da  experiência  pela  sua  representação  em  forma  de  clas-­
ses   mentais.   Nesses   textos   acentuei as vantagens evolutivas da
inteligência praxianafórica reificada sobretudo no contexto do
fabrico de ferramentas. Essa escolha foi, apenas, metodológica: o
facto é que dispomos de muito material arqueológico em que pode-
mos basear empiricamente as nossas hipóteses, mas não há, pratica-
mente, informação sobre outro tipo de comportamento. Esse facto
pode ter enviesou a nossa perspectiva, porque, embora a linhagem
evolutiva dos hominídeos se encontre estreitamente relacionada com
o fabrico de ferramentas, é provável que também esteja relacionada
com um aumento da cooperação. Nos capítulos anteriores deste
livro (Motivação) apresentámos inclusivamente uma forma diferente
de inteligência que estrutura o ER: a inteligência das relações sociais.
Além  disso,  tem  sido  sistematicamente  sugerido  que  a  evolu-­
ção   humana   depende   da   cooperação   (por   exemplo,   Leakey,  
1980,  Johansen  e  Edey,  1981,  Isaac,  1978,  Whiten,  1999,  Boyd  
e  Richerson,  2004),  o  que  parece  provável  dada  a  extensão  das  
redes  de  cooperação  no  homem  moderno.  
Se  aceitarmos  essa  hipótese  poderemos  tentar  compreender  
como   a   inteligência   praxianafórica   reificada   permite   um   maior  
grau   de   cooperação.   Para   isso   teremos,   primeiro,   de   definir  
melhor  os  conceitos  e  tentar  compreender  o  problema  da  coope-­
ração  integrando-­o  na  questão  mais  geral  da  evolução  dos  com-­
portamentos  altruístas  nos  outros  animais.  O  resto  deste  capí-­
tulo  aborda  o  problema  já  esboçado  no  capítulo  sobre  a  sexuali-­
dade.  
COOPERAÇÃO E MUTUALISMO

A  cooperação  é  uma  forma  particular  de  altruísmo.  Comece-­


mos   por   compreender   que   o   altruísmo,   significando   dar   sem  
receber   em   troca,   não   existe   na   biologia.   As   trocas   fazem-­se  
sempre  na  moeda  da  evolução:  a  reprodução.  Compreendamos  
porquê.
Os  programas  de  comportamento  dos  animais  foram  testados  
durante  muitas  gerações,  e  são  continuamente  afinados.  Têm,  
sempre,  que  ver  com  as  vantagens  que  trazem  a  cada  indivíduo.  
Mesmo  nos  casos  em  que,  aparentemente,  os  animais  se  reve-­
lam   altruístas,   pode-­se   mostrar   que   esse   altruísmo   tem   como  
vantagem  a  maior  reprodução  do  genótipo  do  seu  portador.  O  
processo   é   facilmente   explicado.   Um   animal   que   baixe   a   sua  
reprodução   a  favor  de  outro  animal  (é  este  o  critério  para  falar  
de  altruísmo)  reproduz-­se  menos  do  que  esse  outro  animal  e  do  
que   outros   animais   que   não   têm   tendência   para   se   reproduzir  
menos  em  favor  de  outros.  Assim,  na  próxima  geração,  ele  dei-­
xará  menos  descendência  do  que  os  outros  e,  se  as  coisas  se  
mantiveram  sempre  assim,  o  genótipo  acabará  por  ser  excluído  
da  população.  O  altruísmo  é,  pois,  contra-­adaptativo,  visto  que  a  
adaptação  se  traduz  em  deixar  mais  descendentes.  
Houve  quem  propusesse  a  ideia  de  que,  ainda  que  o  indivíduo  baixasse  
a   sua   própria   reprodução,   beneficiaria   o   grupo   ou   a   espécie.   Mas   as  
noções   que   assentavam   na   ideia   do   «bem   da   espécie»   (Lorenz,   1963,  
Wynne-­Edwards,   1962)   não   podem   ser   sustentadas.   Suponhamos   que  
num  grupo  cooperativo,  todos  os  organismos  actuassem  altruistamente,  
de  forma  a  limitarem  a  sua  própria  descendência  para  bem  do  grupo.  Se  
um   desses   organismos   sofresse   uma   mutação   que   o   tornasse   egoísta,  
actuando   para   o   seu   próprio   bem,   ele   reproduzir-­se-­ia   mais   do   que   os  
outros  organismos,  dado  que  não  sofreria  qualquer  auto-­limitação  na  sua  
actividade  reprodutiva.  Assim,  em  pouco  tempo,  a  população  seria  com-­
posta  maioritariamente  de  organismos  egoístas,  independentemente  de  o  
grupo,  em  si,  ter,  provavelmente,  uma  pior  adaptação  ao  ambiente.  
Isto  ocorre  porque  é  seleccionada  a  capacidade  de   cada   orga-­
nismo  em  deixar  descendência  viável  e  não  a  abstracção  «espé-­
cie».  Se  todos  os  organismos  perseguirem  estratégias  egoístas  
isso  pode  ter  consequências  nocivas  para  o  grupo  no  seu  todo,  
mas   não  há  nenhum  mecanismo  genético  que  se  possa  opor  a  
essa  tendência  evolutiva,  já  que,  num  qualquer  confronto  entre  

272
animais   altruístas   e   animais   egoístas,   os   egoístas   têm   mais  
ganhos  reprodutivos.  Estas  considerações  foram  apresentadas,  
já  há  alguns  anos,  por  Hamilton  (1964),  e  foram  popularizadas  
por  Dawkins  no  seu   best-­seller  O  Gene  Egoísta  (1976).  Isto  não  
significa   que   não   haja   cooperação   nos   animais.   Ela   ocorre   de  
facto.  Vejamos  como.  

AS TEORIAS BIOLÓGICAS DO ALTRUÍSMO

Por  altruísmo,  nas  ciências  do  comportamento,  entende-­se  um  


comportamento  que  aumenta  a   fitness109  de  outros  animais  em  
detrimento  da  fitness  do  próprio.  À  primeira  vista  é  difícil  imagi-­
nar  que  um  gene  que  diminui  a  fitness  do  seu  portador  aumenta  
na  população.  Como  vimos,  dir-­se-­ia  que  um  tal  gene  desapa-­
receria   rapidamente   da   população,   da   mesma   forma   que   um  
gene  que  impedisse  um  organismo  de  se  reproduzir.  Contudo,  
há  casos  em  que  tal  não  acontece.  

O altruísmo de parentesco

A  forma  mais  simples  de  apresentar  o  problema  consiste  em  


considerar   um   caso   bastante   trivial:   os   cuidados  do  progenitor  
para  com  os  filhos.  Esse  comportamento  é  bastante  espalhado  
pela  seguinte  razão.  Ao  ajudar  as  suas  crias,  a  mãe  torna  mais  
provável  a  sobrevivência  deles.  Imaginemos  agora  que  os  cuida-­
dos  parentais  são  codificados  por  um  hipotético  gene   m.  Dado  
que  cada  cria  têm  50%  dos  genes  em  comum  com  a  mãe,  tem  
também  uma  probabilidade  de  0,5  de  ter  o  gene   m,  responsável  
pelos  cuidados  parentais.  Assim,  dados  N  filhos,  o  gene  de  cui-­
dados  parentais  aumenta  na  população  por  N×0,5;;  quer  dizer,  se  
a  mãe  tiver  5  filhos  e  se  todos  sobreviverem,  haverá  mais  2,5  
cópias  do  gene   m,  responsável  pelos  cuidados  parentais.  Note-­
-­se  que  os  filhos  que  não  têm  o  gene  também  beneficiam  desse  
aumento;;  mas,  na  medida  em  que  não  dão  cuidados  parentais  à  
própria  descendência,  reproduzem-­se   menos   do   que   os   indiví-­
duos  que  o  fazem.  Ao  longo  do  tempo,  o  gene  responsável  pelos  

109  
 Não  se  traduz   fitness  por  «aptidão»,  por  se  ter  o  primeiro  termo  generalizado  e  por  
ser  menos  ambíguo.

273
cuidados   parentais   tende   a   aumentar   em   detrimento   do   alelo  
que   não   codifica   esses   cuidados.   Compreende-­se   então   facil-­
mente  a  razão  de  ser  dos  cuidados  parentais.  Note-­se  que  eles  
não  ocorrem  «para  bem  da  espécie»:  ocorrem  apenas  porque,  
em  termos  de  selecção  natural,  tendem  a  aumentar  dado  que  a  
sua  presença  torna  a  sobrevivência  futura  mais  provável.
Com  este  pano  de  fundo,  tentemos  agora  compreender  como  
o   altruísmo   que   não   é   dirigido   aos   filhos   pode   espalhar-­se.  
Recordemos  que  o  altruísmo  implica  que  o  indivíduo   abdique  de  
uma  parte  da  sua  descendência  para   aumentar  a  descendência  
de   outro   organismo.   Por   exemplo,   ao   ajudar   outro   organismo  
pode  correr  o  risco  de  ser  ferido,  de  não  se  reproduzir  ou  mesmo  
de  morrer;;  e,  em  consequência  dessa  ajuda,  o  «ajudado»  repro-­
duzir-­se-­á   mais.   Há,   portanto,   uma   troca   de   fitness:   o   altruísta  
troca  a  sua   fitness  pela  de  outro  animal.  Imaginemos  agora  um  
gene   que   codifique   comportamentos  altruístas  relativamente  a  
parentes  próximos   e   chamemos-­lhe   al.   Imaginemos   ainda   que  
esses  parentes  têm,  em  média,  50%  dos  genes  do  indivíduo  (o  
pai   e   a   mãe   e   os   irmãos).   Nessas   condições,   se   o   indivíduo  
aumentar  a  capacidade  reprodutiva  dos  seus  parentes,  o  gene  
responsável   pelo   comportamento   altruísta   pode   aumentar   na  
população,  dado  que,  se  o  indivíduo  o  tem,  a  mãe,  o  pai  e  os  
irmãos  têm  uma  probabilidade  de  0,50  de  o  terem  também.  Isto  
acontece  porque  o  animal  altruísta  partilha  de  50%  do  genoma  
da   mãe,   do   pai,   e   de   cada   um   dos   irmãos.   Consideremos   um  
exemplo  imaginário.  Um  animal  que  viva  em  ambientes  familia-­
res  sofre  uma  mutação  que  o  faz  deixar  de  se  reproduzir  para  
ajudar  um  seu  irmão.  Suponhamos  que  essa  ajuda  aumenta  a  
descendência  das  crias  do  irmão  para  o  triplo.  Assim,  em  vez  de,  
suponhamos,   2   filhos   viáveis   por   cada   época   reprodutiva,   o  
irmão   passará   a   ter   6.   Como   a   probabilidade   de   que   o   irmão  
tenha   o   mesmo   gene   é   de   0,5   e   que   a   probabilidade   de   cada  
cria  tenha  esse  gene  partilhado  com  o  pai  é  de  0,5,  a  probabili-­
dade  de  cada  cria  ter  o  gene   al  é  de  0,25.  Assim,  6×0,25=1,56.  
Temos  então  que  o  gene  altruísta  se  faz  representar  na  geração  
seguinte   através   de   1,56   cópias   de   si   próprio.   Se   o   animal  
tivesse  um  gene  não  altruísta,  que  não  o  fizesse  ajudar  o  irmão,  
teria,   como   vimos,   uma  descendência  viável  de  2   filhos.  Dado  
que  cada  filho  partilha  metade  do  genótipo  com  o  pai,  teríamos  
que   2×0,5=1.   Ou   seja,   o   gene   não   altruísta   propaga-­se   mais  

274
devagar  do  que  o  gene  altruísta,  que  deixou  1,56  cópias  de  si  
próprio   enquanto   que   o   egoísta   deixou   apenas   uma.  Assim,   e  
sem   ter   havido   descendência   directa,   o   gene   al   deixou   mais  
cópias  de  si  próprio  do  que  os  alelos  que  se  reproduzem  directa-­
mente.   Chamou-­se   a   este   processo   selecção  pelo  parentesco  
(«kin  selection»),  e  é  esta  a  forma  provável  do  aparecimento  de  
grupos  altruístas.  Note-­se  que  é  necessário  que  o  altruísmo  seja  
dirigido   apenas   a   parentes   e   não   a   qualquer   indivíduo.   Isto  
ocorre   muitas   vezes   por   formas   indirectas   (por   exemplo,   ser  
altruísta  para  os  animais  do  grupo  que  cresceram  connosco,  ser  
altruísta  apenas  relativamente  aos  animais  do  grupo,  etc).  Mas  o  
que   nos   interessa   é   que,   mesmo   que   apareça   uma   mutação  
regressiva,  que  faça  que  o  alelo  egoísta  reapareça,  esse  alelo  
terá  sempre  menor   fitness  do  que  o  altruísta.  
Note-­se   que   o   exemplo   dado   é   voluntariamente   exagerado:  
considerámos   um   caso   de   altruísmo   «total»,   em   que   o   orga-­
nismo  deixava  de  se  reproduzir  para  se  dedicar  à  descendência  
de   um   irmão.   Uma   tal   estratégia   seria   complicada,   porque   se  
nenhum  animal  se  reproduzisse  e  ficasse  à  espera  da  descen-­
dência  dos  irmãos,  ninguém  se  reproduziria.  Mas,  em  condições  
mais  normais,  um  gene  que  perca  alguma   fitness  directa  para  
aumentar  a   fitness  de  parentes  próximos,  aumentará  na  popula-­
ção.110
É   isto   que   explica   que   o   comportamento   altruísta   genetica-­
mente  codificado  possa  aumentar  a  sua  presença  na  população.  
Estas   conclusões   foram   apresentadas   pela   primeira   vez   por  
Hamilton  (1964)  e  divulgadas  na  comunidade  etológica  e  socio-­
biológica  por  Dawkins  (1976).  

110
Isto ocorrerá desde que rb>c. Em que r é o coeficiente de parentesco, que se calcula consi-
derando a probabilidade de que o mesmo gene se encontre em dois organismos (assim, a probabi-
lidade de o leitor ter um gene em comum com o seu pai é de 0,5, porque metade do seu genó-
tipo vem do pai e a outra metade da mãe; de ter um gene em comum com o seu tio materno é de
0,25, porque a probabilidade de a sua mãe ter o mesmo gene é de 0,5, e o facto de o irmão da sua
mãe ter o mesmo gene do que ela é de 0,5; ora 0,5×0,5=0,25). A variável b é o benefício à descen-
dência do ajudado; e c corresponde ao custo para o altruísta. Ou seja, desde que o benefício vezes
o coeficiente de parentesco seja maior do que o custo, o altruísmo expandir-se-á. Isto é apenas
uma maneira formal de dizermos o que aparece no corpo do texto.

275
O altruísmo recíproco

Haveria  uma  outra  forma  de  o  altruísmo  evoluir  numa  popula-­


ção,   mesmo   que   não   fosse   muito   aparentada.   Trata-­se   do  
altruísmo  recíproco.   Trivers   (1971)   chamou   a   atenção   para   o  
facto  de  que  se  um  indivíduo  fizer  «um  favor»  a  outro  e  depois  
esse  outro  retribuir  esse  «favor»,  ambos  ganham  com  isso,  e  o  
conjunto  de  elementos  da  comunidade  tem  vantagens  reproduti-­
vas.  Para  que  essa  difusão  seja  possível,  são  necessárias  duas  
condições.   Em   primeiro   lugar,   o   «favor»   deve   ter   custos   mais  
baixos   do   que   os   «lucros»   de   quem   o   recebe.   Em   segundo  
lugar,  tem  de  haver  mecanismos  que  impeçam  a  «batota».  De  
facto,   se   um   indivíduo   receber   um   favor   e   não   o   retribuir,   terá  
toda  a  vantagem,  enquanto  que  aqueles  que  «fizeram  o  favor»  e  
nada   receberam   em   troca   terão   desvantagem.   Sucede   então  
que,  numa  comunidade  de  retribuidores,  se  aparecer  um  «bato-­
teiro»,  ele  tem,  sempre,  vantagem  relativamente  aos  retribuido-­
res,  e  os  genes  responsáveis  pelo  comportamento  «batoteiro»,  
ou   «egoísta»,   substituem   rapidamente   os   genes   «altruístas».  
Note-­se   que   isso   não   acontece   nos   casos   de   altruísmo   de  
parentesco,  em  que  o  altruísmo  é  restrito  aos  parentes  próximos  
que,  por  isso,  têm  provavelmente  o  mesmo  gene.  De  modo  que,  
no  altruísmo  de  parentesco,  não  pode  haver  batota.
Isto  sugeriria  que  o  altruísmo  em  grupos  não  consanguíneos  é  
impossível.  Contudo,  se  houver  formas  de  garantir  que  o  «bato-­
teiro»  é  punido,  de  maneira  que  não  tenha  ganhos  (ou,  em  qual-­
quer  caso,  que  tenha  menos  ganhos  do  que  os  não  batoteiros),  
o   gene   pode   manter-­se   na   população.   Para   garantir   que   o  
«batoteiro»   é   punido   é   necessário   que   o   seu   comportamento  
seja  registado  e  recordado,  e  que,  numa  próxima  interacção,  a  
estratégia  que  o  altruísta  toma  relativamente  ao  batoteiro  seja  a  
de   não   altruísmo.   Ou   seja,   é   necessário   que   o   animal   «enga-­
nado»  «tome  nota»  e  «retalie»  mais  tarde.  Uma  forma  de  proce-­
der   a   isto   seria   a   estratégia   «olho   por   olho,   dente   por   dente»,  
conhecida  pela  sua  forma  inglesa  «tit  for  tat»:  um  animal  seria  
inicialmente  cooperativo,  mas,  sendo  enganado,  lembrar-­se-­ia  e  
teria  a  mesma  atitude  não  cooperativa  relativamente  ao  animal  
que  o  «enganou».  Vimos  numerosos  casos  deste  tipo  em  prima-­
tas  em  capítulos  anteriores.
Como   então   vimos,   estas   capacidades   parecem   extrema-­

276
mente  desenvolvidas  em  primatas,  havendo,  quer  em  cercopite-­
cídeos  quer  em  pongídeos  reciprocidade  que  inclui  um  «sistema  
de  vinganças».  
Contudo,  este  tipo  de  processo  parece  ser  extremamente  raro  
nos   outros   animais   e   há,   actualmente,   apenas   um   bom   candi-­
dato   não   antropóide   ao   altruísmo   recíproco.   Paradoxalmente  
dada  a  sua  reputação,  trata-­se  do  vampiro,   Desmodus  rotundus.  
Estes   animais   saem   de   noite   em   busca   de   presas   para   lhes  
sugar  o  sangue.  Contudo,  a  probabilidade  de  não  encontrarem  
presas  é  grande  e  se  o  vampiro  não  se  alimentar  durante  quatro  
dias  seguidos,  morre.  Verificou-­se  que  os  vampiros  bem  sucedi-­
dos  regurgitam  sangue  que  oferecem  aos  que  não  encontraram  
alimento.  O  ganho  dos  morcegos  «ajudados»  é  maior  do  que  o  
custo  para  os  «altruístas»,  mas,  enquanto  todos  os  animais  se  
comportarem  assim,  todos  têm  vantagem.  Note-­se   que   os   ani-­
mais   se   ajudam   ainda   que   não   tenham   quaisquer   relações   de  
parentesco  (Wilkinson,  1990).  

O altruísmo recíproco na nossa espécie.

O  altruísmo  recíproco  é  interessante  porque  ocorre,  sistemati-­


camente,  entre  nós.  Todos  já  fizemos  favores  e  fomos  retribuí-­
dos.  Como  vária  investigação  na  área  da  Psicologia  social  tem  
mostrado,  tendemos  a  gostar  das  pessoas  que  nos  dão  coisas  e  
sentimo-­nos  obrigados  relativamente  a  essas  pessoas.  Natural-­
mente,  não  sentimos  o  mesmo  em  relação  a  quem  não  corres-­
ponde   à   nossa   generosidade.   Cialdini   (1993)   mostra,   com  
exemplos  fascinantes,  como  podemos  ser  facilmente  enganados  
por  essa  tendência.  Por  exemplo,  um  grupo  religioso  conseguiu,  
através  de  dádivas  recolhidas  na  rua,  aumentar  extraordinaria-­
mente  o  seu  capital.  A  estratégia  era  muito  simples.  Suponha-­
mos  que  as  pessoas  eram  abordadas  num  cais  de  desembarque  
de  aviões.  Uma  rapariga  aparecia  e  dava  uma  flor  a  um  passa-­
geiro  bem  vestido,  dizendo-­lhe  que  se  tratava  de  um  presente.  A  
seguir  perguntava-­lhe  se  queria  contribuir.  Segundo  Cialdini,  as  
pessoas  normalmente  ofereciam  dinheiro,  mesmo  quando  o  não  
queriam  fazer.  Era  frequente  que,  depois  de  se  sentir  obrigadas  
a  dar  dinheiro  em  troca  de  uma  flor  que  não  queriam  e  para  um  
grupo  que  nem  sequer  aprovavam,  as  pessoas  ficassem  tão  irri-­

277
tadas  que  deitavam  fora  a  flor.  Os  membros  do  grupo  religioso  
sabiam,  aparentemente,  isso,  porque  costumavam  ir  reabaste-­
cer-­se  de  flores  aos  caixotes  do  lixo  próximos...  A  estratégia  não  
é   muito   diferente   da   usada   nos   frequentes   peditórios   «falsos»  
que  todos  conhecemos:  alguém  nos  coloca  um  autocolante  na  
roupa  e,  a  seguir,  pede-­nos  dinheiro,  sem  que  compreendamos  
bem  para  quem  é;;  se  os  mecanismos  da  reciprocidade  actua-­
rem,  damos  dinheiro  quase  sem  pensar.
Da   mesma   maneira,   e   como   tem   sido   mostrado   (Deutsch   e  
Gerard,   1955;;   ver   capítulo   anterior),   quando   nos   compromete-­
mos  em  público  com  uma  qualquer  posição,  temos  muita  dificul-­
dade  em  mudá-­la  mais  tarde.  Uma  das  críticas  mais  destrutivas  
e  contundentes  que  se  pode  fazer  a  uma  pessoa  é  que  ela  não  
está  a  ser  coerente.  Como  vimos  no  capítulo  anterior  é,  mesmo,  
possível  forçar  uma  pessoa  a  fazer  o  que  não  quer  através  da  
coerência,  como  vimos  quando  referimos  as  técnicas  de  venda  
em  que  se  obriga  o  potencial  cliente  a  aceitar  o  produto  ou  admi-­
tir  que  é  inconsistente.  
Há  muitos  mais  casos  deste  género  que  o  leitor  interessado  
deverá   consultar   em   Cialdini.   Para   o   caso   presente,   importa  
compreender   que   essas   várias   formas   de   comprometimento  
parecem  ter  evoluído  ao  serviço  do  altruísmo  recíproco:  de  facto,  
se  não  houvesse  essa  tendência  para  agir  de  forma  previsível  
com  as  nossas  afirmações  e  se  não  houvesse  tendência  para  
retribuirmos  os  favores,  o  altruísmo  recíproco  seria  muito  mais  
complicado.  Claro  que  nada  disto  funcionaria  se  não  houvesse  
sempre   retaliações.   Consideremos   de   novo   o   panorama   dos  
genes:  num  ambiente  de  altruísmo  recíproco,  um  indivíduo  que  
esteja  programado  para  fazer  o  que  disse  e  para  retribuir  o  bem  
que  se  lhe  faz  é,  potencialmente,  um  bom  aliado,  mas  também  
uma   vítima   de   entidades   sem   escrúpulos.   Nesse   sentido,   não  
tem  qualquer  vantagem.  Só  se  houver  uma  sistemática  punição  
de  quem  não  retribuir  e  de  quem  faltar  ao  afirmado  é  que  os  indi-­
víduos  que  têm  tendência  para  o  fazer  terão  desvantagem.  Por-­
tanto,   essas   capacidades   implicam   um   passado   evolutivo   de  
retaliação  relativamente  aos  batoteiros.  Ora  parecemos  ter  uma  
regra  de  «detecção  de  batoteiros»  que  aparece  desde  a  infân-­
cia.  De  facto,  enquanto  que,  normalmente,  tendemos  a  testar  a  
veracidade  de  uma  afirmação  encontrando  exemplos  que  a  cor-­
roboram  (o  raciocínio  confirmatório  de  que  se  falou  no  penúltimo  

278
capítulo),  em  situações  de  cumprimento  de  regras  tendemos  a  
ser   infirmatórios,   isto   é,   a   procurar   os   prevaricadores   (Cum-­
mings,  1998).  Assim,  e  como  já  referimos  no  capítulo  anterior,  se  
numa   sala   estiver   um   sinal   que   indica   ser   proibido   fumar,   não  
procuramos   as   pessoas   que   não   fumam,   mas   as   que   fumam.  
Isso  contrasta  com  a  regra  que  seguimos  quando  queremos,  por  
exemplo,  confirmar  uma  teoria:  Popper  (1974)  foi  revolucionário  
precisamente   por   mostrar   que   essa   estratégia   não   era   a   mais  
heurística  para  avaliar  a  veracidade  de  uma  afirmação.  Esta  ten-­
dência  para  detectar  prevaricadores  também  parece  bem  adap-­
tada   ao   altruísmo   recíproco.   Finalmente,   parecemos   recordar  
melhor   os   prevaricadores   (Mealey   et   al.,   1996,   in   Cartwright,  
2000),  o  que  também  parece  uma  adaptação  no  mesmo  sentido.  
Nesse   sentido,   poderemos   mesmo   dizer   que   nos   comporta-­
mos  uma  espécie   programada  para  o  altruísmo  recíproco.  Com  
base   nesse   altruísmo   é   possível   formar   alianças,   e,   em   geral,  
quando   há   laços   entre   vários   indivíduos   (por   exemplo,   num  
grupo  de   x  elementos,  o  elemento  A  tem  relações  de  coopera-­
ção   com   todos   os   outros,   o   B   com   todos   os   outros   e   assim  
sucessivamente)  pode-­se  conseguir  grupos  extremamente  coe-­
sos.  Contudo,  o  altruísmo  recíproco  funciona  apenas  na  base  de  
díades.  Assim,  a  partir  de  certa  complexidade,  o  sistema  torna-­
-­se  instável.  Se  o  comportamento  de  A  depender  do  de  B  que  
depende   do   de   C   que   depende   do   de   D,   etc.,   basta   uma  
pequena   probabilidade   de   que   um   dos   indivíduos   faça   batota  
para  que  o  sistema  entre  em  colapso.  De  modo  que  o  altruísmo  
recíproco   tem   os   seus   limites.   Portanto,   se   admitirmos   que   as  
estratégias   são   puramente   individuais,   como   teria   de   suceder  
num   modelo   em   que   o   altruísmo  fosse  de  origem  inteiramente  
genética,   apenas   poderíamos   esperar   cooperação   que   trou-­
xesse   vantagens   a   cada   indivíduo,   o   que   limitaria   o   altruísmo  
recíproco   às   díades   cooperativas   e   portanto   a   grupos   muito  
pequenos.   Foi   precisamente   o   que   encontrámos   quando   revi-­
mos  a  literatura  sobre  o  assunto  em  primatas.  
Mas  a  construção  de  díades  cooperativas,  possibilitadas  pela  
reciprocidade  não  permite  a  existência  de  sociedades  em  que,  
como   nos   sistemas   eussociais   de   que   trataremos   adiante,   o  
comportamento   de   cada   membro   parece   dedicado   ao   próprio  
grupo,   como   num   superorganismo.   Isto   ocorre   porque   uma  
estratégia   de   «bem   do   grupo»   só   funcionaria   enquanto   fosse  

279
seguida  por  quase  todos  os  membros  desse  grupo.  Ora,  como  
vimos  acima  e  excepto  nos  casos  de  grupos  consanguíneos,  um  
batoteiro  tem  todas  as  vantagens:  enquanto  todos  os  outros  indi-­
víduos  subordinam  o  seu  comportamento  ao  bem  estar  comum,  
de   maneira   que   todos   os   indivíduos   beneficiem   em   conjunto  
dessa   situação,   um   indivíduo   que   persiga   estratégias   estrita-­
mente  individuais  que  tenham  más  consequências  para  o  grupo  
mas   boas   consequências   para   si   tem   sempre   vantagem,   e  
reproduzir-­se-­á  mais  na  população.  Chamou-­se  a  este  problema  
a  «tragedy  of  the  commons»:  se  todos  os  camponeses  tivessem  
apenas  uma  vaca  a  pastar  nos  terrenos  de  pasto  comuns,  eles  
chegariam  para  a  população  indefinidamente;;  mas  se  um  cam-­
ponês  tiver  duas  vacas,  ele  tirará  disso  proveito;;  se  for  imitado,  
inicialmente,  os  imitadores  também  tirarão  proveito,  mas,  a  mais  
longo  prazo,  os  pastos  comuns  serão  destruídos  por  excesso  de  
gado;;   Esse   problema   não   ocorreria   se   o   grupo   funcionasse  
como  uma  unidade,  para  bem  de  si  próprio.  De  facto,  se  cada  
elemento  do  grupo  subordinar  os  seus  interesses  ao  interesse  
do  grupo  no  seu  conjunto,  e  se  os  ganhos  do  grupo  forem  distri-­
buídos   pelos   seus   componentes,   cada   um   pode   ganhar   muito  
mais  do  que  ganharia  com  base  em  estratégias  de  ganhos  indi-­
viduais.  
Como   as   escolhas   que   assentam   no   «bem   do   grupo»   não  
podem,  como  Hamilton  (1964)  mostrou,  ter  viabilidade  evolutiva,  
é   impossível   que   haja   codificação  genética  de  estratégias  que  
transcendam  o  interesse  individual.  Isto  ocorre  porque  qualquer  
organismo   que   tivesse   genes   que   lhe   fizessem   preferir   o   bem  
geral   ao   bem   individual   seria   apenas   um   contribuinte   líquido  
para   a   fitness   dos   outros   membros   do   grupo,   que,   não   tendo  
esse  gene,  rapidamente  substituiriam   o   gene   com   «sentido   de  
grupo».   Contudo,   há   bastantes   vantagens   em   transformar   um  
grupo  cooperativo  não  num  conjunto  de  indivíduos  cooperantes,  
mas  numa   unidade.  

Os superorganismos sociais

Em  muitos  dos  casos  de  cooperação,  verifica-­se  que  estrutu-­


ras   diferentes   realizam   funções   complementares   em   prol   da  
reprodução   –   organismos   de   várias   espécies   podem,   assim,  

280
organizar-­se   numa   superestrutura   que   funciona   por   si,   mas  
beneficiando  a  reprodução  de  cada  um  dos  organismos  implica-­
dos.  Em  última  análise,  trata-­se  de  uma  forma  de  altruísmo  que  
um  organismo  se  «sacrifica»  por  outro  mas  em  que  beneficia  do  
sucesso  do  outro.  Bonner  (1970)  refere  vários  casos  deste  tipo  
de   processo.   Por   exemplo,   mostra   que,   num   micetozoário,   há  
diferenciação  de  células  em  células  pedunculadas  e  células  que  
formam  esporos.  As  primeiras  desempenham  apenas  um  papel  
de  suporte,  enquanto  que  as  segundas  «se  dedicam»  à  reprodu-­
ção.  
O  mesmo  tipo  de  raciocínio  aplica-­se  às  várias  células  de  um  
organismo  vivo,  que  se  organizam  em  grupos  (tecidos)  específi-­
cos  desempenhando  funções  diferentes:  essa  diferenciação  em  
sub-­objectivos  garante  que  o  organismo,  no  seu  conjunto,  traba-­
lha   para   a   função   que   é,   efectivamente,   objecto   da   selecção  
natural:  a  reprodução,  que  é  levada  a  cabo  por  processos  coo-­
perativos  de  vários  tecidos,  órgãos  e  sistemas.  Assim,  todas  as  
funções   do   organismo   se   encontram   subordinadas,   de   forma  
extremamente  integrada,  num  «projecto  comum».   Este   tipo   de  
estrutura   com   diferenciação   de   «castas»   é   mais   fácil   quando  
encontramos  uma  grande  comunidade  genética  (como  é  o  caso  
dos  exemplos  que  apresentámos),  de  tal  forma  que  a  batota  é  
impossível.  Não  nos  esqueçamos  de  que  uma  mutação  egoísta  
não   promoverá   a   sua   própria   reprodução,   pelo   que   tenderá   a  
desaparecer.  Por  isso,  todos  os  comportamentos  que,  por  meios  
ainda  extremamente  indirectos,  possam  aumentar  a  reprodução  
indirecta,   são   seleccionados.   Sobre   este   tema   ver   L.   Buss  
(1987)
Isso   é   particularmente   evidente   nos   animais   eussociais.111  
Estes  animais  apresentam  uma  divisão  social  em  reprodutores  e  
ajudantes.   A   divisão   de   funções   é   particularmente   impressio-­
nante,  e  os  grupos  parecem  funcionar  como  superorganismos  e  
não   como   conjuntos   de   indivíduos   cooperativos.   Os   exemplos  
mais  frequentemente  dados  são  as  térmites,  as  abelhas  e  as  for-­
migas,   com   as   suas   diferenciações   em   castas   de   soldados,  
obreiras  e  rainha,112  mas  há,  também  duas  espécies  de  mamífe-­
111
Chama-se animais eussociais àqueles que apresentam castas reprodutivas e castas não repro-
dutivas que trabalham para as castas reprodutivas. Há mais alguns critérios, como, por exemplo,
que haja mais do que uma geração simultânea.
112
Note-se que as diferenças entre os vários indivíduos não são genéticas, isto é, a casta das
obreiras nos himenópteros, por exemplo, não é diferente da casta da rainha. As diferenças vêm

281
ros   eussociais:   Trata-­se   de   duas   espécies   de   miomorfos,   os  
ratos-­toupeira  (Heterocephalus  glaber  e   Cryptomys  damarensis)  
em  que  existe  uma  diferenciação  entre  «rainha»  (a  única  fêmea  
que  se  reproduz),  assistida  por  dois  ou  três  machos  reproduto-­
res,   e   não   reprodutores   que   desempenham   tarefas   diferentes  
conforme  o  tamanho  (que  depende  da  idade).  
Em  todos  os  casos  de  eussocialidade,  parece  haver  uma  con-­
jugação  de  três  factores.  São  eles,  a  alta  consanguinidade,  os  
custos  elevados  da  dispersão  e  as  vantagens  na  construção  e  
defesa  conjunta  do  ninho  (ver  revisão  em  Goodenough,  McGuire  
e   Wallace,   1993).   De   facto,   a   consanguinidade   permite,   como  
vimos,  que  os  actos  altruístas  realizados  sobre  parentes  possam  
ter   uma   forte   tendência   a   fortalecer   o   altruísmo   na   população;;  
mas,  ainda  assim,  é  necessário  que  os  custos  de  um  animal  ten-­
tar  reproduzir-­se  por  si  próprio  sejam  altos  para  que  o  organismo  
tenha  mais  a  ganhar  em  ajudar  um  parente  a  reproduzir-­se  do  
que  tentando  reproduzir-­se  ele  próprio.  Esses  custos  são  dados  
pelo  risco  da  dispersão  (incerteza  de  encontrar  o  alimento,  ris-­
cos   de   predação)   e   pelos   custos   de   construção   e   defesa   do  
ninho   (quer   o   sistema   de   túneis   dos   ratos-­toupeiras   quer   os  
ninhos   de   formigas   quer   as   colmeias   das   abelhas   quer,   final-­
mente,  as  termiteiras  pedem  cooperação  para  ser  construídas).  
De  modo  que  a  eussocialidade  encontra-­se  apenas  em  situa-­
ções  particulares.  A  razão  de  os  aflorar  aqui  tem  que  ver  com  o  
facto   de   a   nossa   espécie   ter   desenvolvido   sistemas   que   apre-­
sentam  semelhanças  com  os  animais  eussociais  mas  baseados  
num  processo  completamente  diferente  –  implicando,  nomeada-­
mente,  a  tendência  para  a  reificação  e  a  inteligência  praxianafó-­
rica.  

A «pseudo-eussocialidade» humana

Consideremos   então   as   sociedades   humanas.   Há,   evidente-­


mente,  semelhanças  com  as  espécies  eussociais,  mas  acentue-­
mos  primeiro  as  diferenças.  Em  primeiro  lugar,  enquanto  que  os  
da alimentação. Contudo, o desenvolvimento é integralmente programado: a dado tipo de ali-
mento corresponde uma determinada casta; e, compreendamo-lo bem, do ponto de vista gené-
tico, cada indivíduo tem vantagem em pertencer à sua casta (exactamente que tipo de vantagem é
uma questão muito discutida; Goodenough et al, 1993, apresentam uma boa discussão do
tópico).

282
sistemas  eussociais  são  programados  para  maximizar  a  repro-­
dução   de   um   indivíduo,   isso   não   se   verifica   nas   sociedades  
humanas  onde,  tipicamente,  todos  se  reproduzem.  Ou  seja,  os  
casos  em  há  grupos  de  indivíduos  dedicados  exclusivamente  a  
aumentar   a   fitness   de   outros   indivíduos   são   excepção   e   não  
regra.113  Claro  que  isso  seria  de  esperar  porque  as  sociedades  
humanas   não   são   muito   aparentadas.   De   facto,   conhecem-­se  
bastantes  efeitos  que  indicam  a  nossa  falta  de  disposição  para  o  
acasalamento  consanguíneo  (o  efeito  Westermark;;  ver  revisão  
em   Durham,   1992;;   e   ver   dados   adicionais   em   Cartwright,  
2000).114  Como  quase  todos  os  mamíferos,  somos  uma  espécie  
bastante  exogâmica.  
Esse  facto  deveria  limitar  bastante  a  nossa  cooperação.  Como  
vimos,  as  espécies  que  mostram  graus  de  cooperação  mais  for-­
tes  e  se  agrupam  em  superorganismos  são  espécies  em  que  os  
grupos   se   compõem   de   indivíduos   muito   aparentados.   Tudo  
quanto  poderíamos  esperar,  na  nossa  espécie,  seria  uma  maior  
cooperação   entre   familiares   (que   se   encontra,   ver   D.   Buss,  
1999)  e  o  desenvolvimento  de  redes  extensas  de  altruísmo  recí-­
proco.  
Ora,  como  vimos  acima,  o  altruísmo  recíproco  apenas  permite  
que  várias  díades  se  comportem  cooperativamente,  mas  é  instá-­
vel  e  vulnerável  à  batota  com  estratégias  mais  complexas.  
Contudo,  desde  há  muito  que  se  notou  que  na  nossa  espécie  
as  leis  corrigem  as  tendências  individualistas  (Hobbes)  e  que  o  
grupo  parece  funcionar,  efectivamente,  para  a  sua  auto-­preser-­
vação  (Durkheim).  

113
Contudo, os relatos do antigo Daomé, em que os reis eram acompanhados na morte por
grande número dos seus servidores, apresentam algumas semelhanças com este tipo de organi-
zação (ver Herskovits, 1960/ 1963); o mesmo sucedia com os servidores dos primeiros faraós e,
entre nós, os padres, pelo menos em teoria, não se reproduzem a limitam-se a ajudar os outros.
Estes factos não invalidam que, na maior parte dos casos, os indivíduos tentam reproduzir-se direc-
tamente. Os casos em que o sacrifício altruísta efectivamente existe correspondem a casos
extremos de reprogramação cultural em termos do bem do grupo.
114
O efeito Westermark como alicerce do tabu do incesto tem sido contestado na Antropo-
logia, nomeadamente na sequência da pertinente observação de Lévi-Strauss de que se o evita-
mento do incesto fosse um a priori biológico não seriam necessários tabus que o assegurassem. A
observação é exacta, mas, como é bem sabido e será referido no texto mais adiante, o parentesco
humano tem pouco que ver com o parentesco biológico de modo que união considerada inces-
tuosa não corresponde, necessariamente, a uma união consanguínea – que, essa sim, tende a ser
inatamente evitada, com base na não-atracção entre pessoas criadas juntamente. O que nos inte-
ressa mostrar aqui é apenas que há, efectivamente, uma tendência exogâmica na nossa espécie.

283
Consideremos   agora   o   que   se   pode   ter   passado   em   termos  
evolutivos   e   em   que   medida   aquilo   que   propusemos   sobre   a  
evolução  da  inteligência  praxianafórica  e  a  reificação  tem  aqui  
relevância.  

A EVOLUÇÃO DA COOPERAÇÃO HUMANA E


AS PRESSÕES SELECTIVAS PARA A
REIFICAÇÃO

Vimos,  em  capítulos  anteriores,  que  é  defensável  uma  pers-­


pectiva  em  que  as  características  cognitivas  humanas  têm  ori-­
gem  na  inteligência  que  evoluiu  ao  serviço  das  relações  com  o  
ambiente  e  de  que  são  testemunhos  as  indústrias  líticas  e  a  pro-­
gressiva  encefalização  das  sucessivas  espécies  de  hominídeos.  
Vimos,   também,   como   é   possível   que   essa   inteligência,   a   que  
chamámos   praxianafórica,  tenha  passado  do  nível  concreto  para  
o  nível  virtual,  servindo  de  suporte  à  representação  do  ambiente,  
que  seria  assim   reificado  em  termos  dos  conceitos  de  substân-­
cia  e  de  objecto  sobre  um  fundo,  e  de  relações  entre  objectos  e  
de   substâncias.   Vimos   também   que,   embora   essa   inteligência  
seja  testemunhada  pelos  utensílios  líticos,  se  hipotetiza  que  tam-­
bém   teria   estado   ligada   à   cooperação:   na   medida   em   que   os  
algoritmos   praxianafóricos   não   se   encontram   rigidamente   liga-­
dos  a  um  suporte  (isto  é,  que  não  fossem  exclusivamente  utiliza-­
dos  num  campo  específico,  por  exemplo,  a  manufactura  de  fer-­
ramentas),  poderiam  ser  utilizados  em  situações  muito  variados.  
Nomeadamente,   poderia   ajudar   a   representar   relações   entre  
indivíduos,  o  que  seria  particularmente  útil  na  cooperação  para  a  
caça,   para   a   defesa,   e   mesmo,  eventualmente,  para  o  próprio  
fabrico  de  ferramentas.  
Como  vimos,  a  principal  característica  da  reificação  consiste  
em  situar  os  acontecimentos  num  espaço  de  representação,  em  
que   se   fazem   agrupamentos   desses   acontecimentos   segundo  
uma  lógica  de  classes,  relacionadas  de  forma  polilítica.  Repita-­
mos  que  o  mais  relevante  no  funcionamento  da  reificação  é  que  
os  agrupamentos  são  arbitrários.  De  modo  que,  tal  como  é  pos-­
sível  colocar  na  mesma  classe  as  coisas  mais  diversas,  é  possí-­
vel  modificar  o  conteúdo  de  classes  já  existentes.  É  essa  a  base  
da  aplicação  da  reificação  às  realidades  sociais  e  à  cooperação.

284
A extensão dos conceitos naturais

Comecemos   com   um   exemplo   bastante   interessante.   Um  


acontecimento   relativamente   frequente   entre   os   animais   é   o  
infanticídio,  em  que  o  macho  que  toma  conta  de  um  harém  de  
fêmeas  mata  todas  as  crias.  Este  comportamento,  horrível  para  
as   nossas   sensibilidades,   tem   perfeita   justificação   genética:   a  
vantagem  que  um  animal  tem  em  tomar  conta  de  um  harém  é  
inseminar  as  fêmeas  e  produzir  uma  descendência  abundante.  
Ser  detentor  de  um  harém  tem  custos  consideráveis,  na  medida  
em  que  o  animal  tem  de  lutar  para  o  obter,  tem  de  o  defender  e  
pode  morrer  a  defendê-­lo.  Mas  enquanto  o  tiver,  tem  de  se  asse-­
gurar  de  que  é  o  único  macho  a  reproduzir-­se.  Por  isso,  não  faz  
qualquer  sentido  adaptativo   o   macho   esperar   que   as   crias   do  
anterior  detentor  do  harém  se  desenvolvam:  é  muito  mais  rendí-­
vel  em  termos  biológicos  matar  as  crias;;  as  fêmeas  respondem  
a  este  acontecimento  ficando  de  novo  sexualmente  disponíveis.  
Nos  Tiwi,  da  Austrália  do  Norte,  passa-­se  um  fenómeno  estra-­
nhamente   semelhante,   mas   fundamentalmente   diferente.  
Quando   um   marido   morre   e   a   sua   mulher   volta   a   casar,   os  
nomes   dos   filhos   tornam-­se   tabu   e   o   novo   marido   renomeia  
esses  filhos.  Este  costume  não  tem,  aparentemente,  nenhuma  
função  biológica.  Contudo,  é  o   equivalente  simbólico  do  infanticí-­
dio:   o   novo   macho   não   mata   as   crias   mas   «mata»   os   nomes  
dados  pelo  pai  anterior,  e  fá-­los   renascer  sob  os  nomes  que   ele  
dá,  tornando-­os,  assim,  criações  suas  (Hart,  Pilling  e  Goodale,  
1988).  Uma  situação  semelhante  surge  quando  dois  indivíduos  
entram  numa  aliança,  fazendo-­se  «irmãos».  Os  dois  indivíduos  
não   são   geneticamente   aparentados,   mas   têm   o   dever   de   ter  
comportamento  cooperativo   como   se   fossem   irmãos.   Nestes  
dois  casos,  verifica-­se   que   as  classes  linguísticas  redefinem  a  
realidade  biológica,  de  forma  a  ajustar  o  comportamento  e  pro-­
duzir  situações  equivalentes  às  que  biologicamente  simbolizam.  

A redefinição cultural do parentesco e


da cooperação

O  mesmo  se  passa  relativamente  à  estrutura  de  parentesco.  


Já  se  notou  há  muito  que  as  estruturas  de  parentesco  definem  

285
como,   por   exemplo,   irmãos,   indivíduos   que   biologicamente   o  
não  são.  Esses  irmãos  classificatórios115  devem,  contudo,  rece-­
ber   o   tratamento   que   se   daria   a   um   irmão,   e   assim   se   fazem  
estruturas  cooperativas  independentes  das  estruturas  genéticas.  
O  exemplo  mais  claro  desta  afirmação  é  dado  pelas  estruturas  
clânicas.  Sigo  aqui,  principalmente,  Mandelbaum  (1971)  e  John-­
son  e  Earle  (2000).  
O  clã  é  o  duplo  simbólico  do  parentesco  biológico:  os  indiví-­
duos  do  mesmo  clã  sentem-­se  parentes,  ainda  que  o  parentesco  
biológico  possa  ser  extremamente  baixo.  Isso  ocorre  graças  a  
formas  de  definição  de  parentesco  muito  afastadas  da  biologia.  
Além  de  partilharem  um  antepassado  mítico  comum  (identificado  
com  o  chefe  de  linhagem,  figura  mitológica  totémica),  verificam-­
-­se  casos  em  que  as  classes  de  idade  dentro  de  um  clã  podem  
funcionar   como   substitutos   de   parentesco.   Por   exemplo,   os  
membros   de   certa   idade   relativamente   ao   sujeito   podem   ser  
todos  considerados  «irmãos»,  «pais»,  etc.  Essa  redefinição  do  
estatuto   biológico   implica   que   o   tipo   de   cooperação   existente  
entre   irmãos   reais   seja   dado   aos   parentes   classificatórios.   Os  
parentes  biológicos  que  caem  fora  do  sistema  classificatório  não  
são  reconhecidos  (subsiste,  contudo,  universalmente,  amizade  
correspondente   aos   laços   biológicos,   mas   os   consanguíneos  
verdadeiros  que  não  são  parentes  classificatórios  são  excluídos  
das  acções  cooperativas  expressas  pela  cultura).  Sendo  assim,  
o  sistema  clânico  sobrepõe-­se  e  efectivamente  anula  as  estrutu-­
ras  de  parentesco  genético,  e  assegura  uma  estrutura  de  coope-­
ração  que  substitui  o  parentesco  real  pelo  putativo.  
Isto   é   necessário,   porque   a   regra   de   acasalamento   clânica  
tende   a   ser   exogâmica.   Sendo   assim,   o   parentesco   biológico  
dentro  de  cada  clã  é  mais  baixo  do  que  o  parentesco  classifica-­
tório,  de  forma  que  as  regras  de  cooperação  se  guiam  não  pelo  
parentesco  biológico  mas  pelo  parentesco  cultural.  
Assim,  os  clãs  funcionam  como  sistemas  de  cooperação  explí-­
citos,   havendo   regras   de   entreajuda,   de   compensação   e   de  
punição   estritamente   formuladas.   Por   exemplo,   entre   os   Cree,  
havia   um   controlo   estrito   das   iniciativas   individuais.   Quando  
faziam  a  caça  aos  búfalos,  eram  nomeados  guardas  que  repri-­
115
É o nome que se usa em Antropologia cultural para referir as categorias de parentesco em
que se encaixam os indivíduos; assim, na nossa cultura, o cônjuge chama aos avós do seu con-
sorte «avós»; embora não o sejam do ponto de vista biológico, são-no do ponto de vista classifi-
catório.

286
miam   as   iniciativas   individuais   que   pudessem   fazer   perigar   o  
sucesso  colectivo  em  detrimento  da  glória  de  um  caçador.  
Os  clãs  unem-­se  em  tribos.  Uma  tribo  define-­se  em  termos  de  
laços  de  cooperação  específicos  entre  os  seus  membros.  Uma  
ocasião  clara  em  que  essa  cooperação  se  manifesta  é  em  épo-­
cas   de   guerra.  Aí   os   vários   clãs   unem-­se   na   tribo,   em   que   os  
indivíduos  se  sentem  como  «parentes»  unidos  contra  os  estra-­
nhos,   vistos,   frequentemente,   como   «não-­humanos».   É,   aliás,  
frequente,   que   o   termo   pelo   qual   uma   determinada   cultura   se  
designa  signifique  «pessoa»;;  os  estranhos  são,  frequentemente,  
«não-­humanos».  Lévi-­Strauss  (1952)  dá  vários  exemplos  desse  
fenómeno,  extremamente  espalhado.  
Estas  várias  formas  de  redefinição  de  parentesco  assentam,  
muito   frequentemente,   em   cerimónias   de   iniciação   em   que   a  
identidade  de  grupos  de  indivíduos  é  modificada.116  
O   que   é   fundamentalmente   importante   compreender   é   que,  
em  todos  estes  casos,  se  procede  à  instauração  de  um  grupo,  
que  é  reificado  como  um  grupo  de  parentesco,  e  que  tem  rela-­
ções  especificadas  com  outros  grupos  ou  indivíduos.  Trata-­se,  
pois,  de  reificações  de  classes  inter-­relacionadas  praxianaforica-­
mente.

A facilitação da cooperação pela


reificação

Podemos  então  concluir  esta  questão.  O  que  nela  mostrámos  


foi  que  o  processo  de  reificação,  ao  passar  a  representação  do  
mundo  das  acções  sobre  as  coisas  e  das  relações  entre  as  coi-­
sas  para  o  espaço  virtual  reificado,   permite  uma  redefinição  de  
116
  Esses   grupos   podem   ser   definidos   pela   idade,   pelo   parentesco   e   ainda   de   outras  
formas  mas,  sobretudo  quando  se  trata  de  grupos  de  idade,  o  seu  papel  na  coesão  social  
pode  ser  enorme,  na  medida  em  que  se  trata  de  grupos  cooperativos  que  funcionam  dentro  
de   grupos   mais   gerais.   Por   exemplo,   entre   os   Masai,   há   grupos   de   idade   que   funcionam  
complementarmente  e  que  se  influenciam  de  forma  complexa.  Trata-­se  sempre  de  grupos  
cooperativos  e  asseguram  a  divisão  de  tarefas  (os  jovens  constituem  os  guerreiros,  o  poder  
político  encontra-­se   nos   mais   velhos,   e   há   uma   coordenação   entre   grupos   que   garante   a  
sua   coesão   ao   serviço   do   grupo;;   ver   Spencer,   1988   e,   para   a   problemática   geral   dos  
grupos  de  idade,  Bernardi,  1985).  Aqui  não  encontramos  exactamente  uma  redefinição  do  
parentesco,  mas  o  aproveitamento  da  capacidade  que  a  nossa  espécie  tem  para  se  orga-­
nizar  em  termos  de  grupos  que  facilita  esta  organização  cooperativa.  Para  o  problema  das  
iniciações,  ver  van  Gennep  (1909/  1969/  1981).

287
classes  conducente  a  uma  cooperação  em  grupos  pouco  homo-­
géneos  do  ponto  de  vista  genético.  Ao  fazê-­lo,  a  reificação  torna  
possível  que  os  indivíduos  se  esforcem  no  sentido  de   bem  do  
grupo   –  sendo  o  grupo  a  entidade  reificada  –,  o  que  é  inatingível  
para   as   estratégias   puramente   genéticas.   A   chave   para   esta  
possibilidade  encontra-­se  na  redefinição  das  classes  de  paren-­
tesco  e  na  consequente  reificação  do  grupo  cooperativo.
Esta  cooperação  permite  que  cada  indivíduo  contribua  e  usu-­
frua  do  bem  comum.  Os  mecanismos  que  garantem  que  não  há  
«batota»   repousam,   principalmente,   nos   costumes   e   na   ética.  
Não   consideraremos   o   caso   aqui   com   detalhe,   mas   chamare-­
mos  a  atenção  apenas  para  alguns  exemplos  provenientes  dos  
índios   da  América   do   Sul.  Assim,   no   concernente   às   questões  
sexuais,  os  estudos  de  Clastres  (1974)  são  reveladores:  os  che-­
fes  têm  o  recurso  ilimitado  às  fêmeas,  mas  têm  de  compensar  
esse  benefício  percebido   pelos   outros   com   uma   generosidade  
integral  relativamente  a  todos  os  outros  recursos.  O  que  mostra  
que,  mesmo  quando  os  indivíduos  são  favorecidos  em  determi-­
nado  campo,  há  tendência  social  para  equilibrar  esses  ganhos  
impondo  «compensações»  noutros  campos.  
O   mesmo   tipo   de   compensação   encontra-­se   na   análise   que  
Durham   (1992)   apresentou   (independentemente   das   de   Clas-­
tres)  sobre  os  Mundurucu,  uma  tribo  guerreira  da  Amazónia.  Um  
guerreiro   bem   sucedido   goza   de   um   prestígio   quase   sagrado  
durante  mais  de  um  ano  e  é  servido  em  todos  os  aspectos,  mas  
enquanto  goza  desse  prestígio  e  desses  privilégios  não  pode  ter  
qualquer   actividade   sexual.   Aqui   encontramos   o   recíproco   do  
que  Clastres  identificou  em  outros  grupos  sul-­americanos:  o  indi-­
víduo   é   prestigiado   e   a   sua   existência   é,   em   geral,   facilitada,  
mas  não  se  pode  reproduzir.  
Da  mesma  forma,  o  ponto  de  partida  do   magnum  opus  de  Fra-­
zer   (1922/   1993)   é   a   sucessão   do   sacerdote-­rei   do   culto   de  
Diana   em   Arícia,     semelhante   aos   muito   frequentes   reinados  
temporários,  em  que  um  homem  goza  de  poder  integral  durante  
um  tempo  limitado,  depois  do  qual  é  morto  e  substituído.  Tam-­
bém  aqui  há  uma  compensação,  no  sentido  de  que  o  usufruto  
de  todos  os  benefícios  é  real,  mas  tem  de  ser  pago  com  a  pró-­
pria  vida.  
Estes  exemplos  são  extremos.  Mas,  sobretudo  nas  socieda-­
des  sem  poder  centralizado,  este  tipo  de  mecanismos  compen-­

288
satórios   é   sistemático,   e,   se   bem   que   não   haja   nunca   exacta  
igualdade   na   distribuição   da   riqueza,   há   inúmeras   estratégias  
que  impedem  o  açambarcamento.  Ver  sobre  isso,  por  exemplo,  
Johnson   e   Earle,   2000).   Mas   resta   ainda   considerar   uma   das  
características   mais   sombrias   da   nossa   espécie:   a   tendência,  
aparentemente  inerradicável,  para  a  xenofobia.

A formação de grupos e a xenofobia

Recordemos  aqui,  brevemente,  um  dos  resultados  mais  per-­


turbantes  da  Psicologia.  Aparentemente,  desde  que  se  forme  um  
qualquer  grupo  que  divida  as  pessoas,  os  membros  de  dentro  
do  grupo  tendem  a  considerar-­se  como  diferentes  das  do  outro  
grupo.   Por   exemplo,   Tajfel   (ver   1981,   1982,   para   uma   revisão  
destes  estudos),  depois  de  mostrar  um  quadro  de  Klee  e  outro  
de  Kandinsky  a  finalistas  do  liceu  e  a  primeiranistas  universitá-­
rios,   pedia-­lhes   que   exprimissem   a   sua   preferência.   Como   os  
sujeitos  não  conheciam  nenhum  dos  quadros  nem,  presumivel-­
mente,  os  estilos  dos  dois  pintores,  a  cada  jovem  era  afirmado,  
ao   acaso,   que   pertencia   a   um   de   dois   grupos:   grupo   Klee   ou  
grupo   Kandinsky.   Esta   comunicação   era   feita   em   privado   de  
forma  que  cada  sujeito  experimental  nunca  chegava  a  saber  dos  
restantes  sujeitos  quem  pertencia  a  que  grupo.  Pedia-­se  depois  
a   cada   participante   na   experiência   que   distribuísse   uma   certa  
quantidade  de  dinheiro  pelos  outros  participantes.  
Verificou-­se  que,  mesmo  com  base  num  critério  tão  imprová-­
vel,  os  adolescentes  tendiam  a  dar  mais  dinheiro  aos  membros  
do  seu  próprio  grupo  (em  15  pontos  possíveis,  tendiam  a  dar  9  
ou  10  ao  seu  grupo  e  5  ou  6  ao  outro).  Ainda  que  os  grupos  fos-­
sem  determinados  apenas  por  um  processo  ostensivamente  ale-­
atório  (os  indivíduos  eram  atribuídos  a  um  ou  a  outro  grupo  pelo  
lançamento  de  uma  moeda)  verificavam-­se  efeitos  de  discrimi-­
nação  entre  grupos,  embora  mais  ténues.  A  formação  de  grupos  
é,   portanto,   espontânea.   Consideremos   agora   outro   estudo  
impressionante.
Sherif   et  al.  (1966)  realizou  um  estudo  com  44  adolescentes  
que   não   se   conheciam   previamente   e   seguiam   para   o   mesmo  
campo  de  férias  em  dois  autocarros  diferentes,  cada  um  com  22  
rapazes.   Os   seus   barracões   ficavam   distantes   um   do   outro  

289
cerca  de  1km.  Durante  a  primeira  semana,  os  dois  grupos  não  
sabiam  da  existência  do  outro.  Durante  este  período  cada  grupo  
estabeleceu   uma   identidade   própria   bem   marcada,   assumindo  
um  nome  e  uma  bandeira.  No  fim  da  primeira  semana,  os  dois  
grupos  encontraram-­se,  «por  acaso»,  no  campo  de  basebol  que  
cada   grupo   julgava   ser   exclusivamente   seu:   imediatamente  
houve  reacções  de  exclusão  («o  que  é  que  eles  estão  a  fazer  no  
nosso  campo?»).  A  gestão  do  acampamento  propôs  a  realização  
de  um  torneio  composto  por  vários  jogos.  O  grupo  vencedor  do  
conjunto  dos  jogos  ganhava  todos  os  prémios.  Progressiva  mas  
rapidamente   os   dois   grupos   tornaram-­se  inimigos:  começaram  
por  se  insultar  mutuamente  durante  as  competições;;  passou-­se  
depois   para   conflitos   mais   violentos   (assalto   às   cabanas   do  
outro  grupo  com  destruição  de  mobílias,  queima  dos  símbolos  
do  outro  grupo,  e  presença  visível  de  ódio).  Cada  grupo  se  des-­
crevia  de  forma  elogiosa  e  depreciava  brutalmente  o  outro.  Até  
aqui  o  leitor  recordará  fatalmente  o   Lord  of  the  Flies,  de  William  
Golding.  Mas  os  experimentadores  intervieram  neste  ponto:  foi  
necessária  a  cooperação  dos  dois  grupos  para  que  se  conser-­
tasse   a   bomba   que   tirava   água   da   mina,   tiveram   de   juntar  
dinheiro  para  alugar  um  filme  e  finalmente  puxaram  juntos  um  
camião   atolado.   Os   grupos,   progressivamente,   juntaram-­se,  
desenvolveram-­se  amizades  inter-­grupo,  e  acabaram  por  decidir  
viajar   para   casa   num   só   autocarro;;   os   lugares   aí   espontanea-­
mente  ocupados  não  revelavam  qualquer  separação  entre  gru-­
pos,  e  o  grupo  que  tinha  dinheiro  (o  que  tinha  ganho  o  torneio)  
preferiu   comprar   ovomaltine   para   todos   os   rapazes   a   comprar  
coisas  melhores  apenas  para  os  seus  membros.
O   processo   descrito   é   decomponível   em   várias   partes.   Pri-­
meiro  que  tudo  verifica-­se  a  criação  de  um  grupo  identitário,  com  
nome  e  símbolo.  Segue-­se  a  distinção  clara  entre  grupo  e  não-­
-­grupo  e  um  fenómeno  etológico,  a  agressão  à  invasão  territo-­
rial:  ambos  os  grupos  estavam  convencidos  de  que  o  campo  de  
basebol  era  «seu»;;  ao  encontrarem  o  outro  grupo  nesse  campo  
verificou-­se   imediatamente   reacções   agressivas.   Mas   a   evolu-­
ção  subsequente  do  conflito  mistura  princípios  puramente  huma-­
nos  e  princípios  etológicos.  Vejamos  quais  foram.  Um  primeiro  
fenómeno  tem  que  ver  com  o  facto  de  o  fortalecimento  da  auto-­
-­estima   de   um   grupo   estar   relacionado   com   a   tendência   para  
desvalorizar   os   outros   grupos;;   como   vimos,   ambos   os   grupos  

290
desenvolveram  uma  identidade  forte.  Um  segundo  aspecto  tem  
que  ver  com  a  criação  de  uma  situação  de  rivalidade  (o  torneio),  
implicando  insultos  (depois  de  se  insultar  alguém,  ou  de  efecti-­
vamente  lhe  causar  dor,  tende-­se  a  desvalorizar  os  objectos  da  
nossa  agressão);;117  além  disso,  criou-­se  uma  situação  de  frus-­
tração  para  um  dos  grupos  (ter  perdido  o  torneio);;  sabe-­se  que  a  
desvalorização   de   grupos   (tal   como   a   agressão)   é   potenciada  
pela  frustração  (Miller  e  Bugelski,  1948  mostraram  que,  em  ame-­
ricanos,  os  estereótipos  contra  japoneses  e  mexicanos  aumen-­
tam  com  uma  frustração  não  com  eles  relacionada).  A  partir  daí,  
a  espiral  de  agressão  continua,  em  circuito  fechado.  
Note-­se  que  os  processos  de  reconciliação  só  foram  possíveis  
porque  havia  recursos  reais,  que  impediam  que  o  pano  de  fundo  
fosse   de   frustração   e   que   fomentavam   a   cooperação   (havia  
dinheiro,  mas  apenas  se  os  dois  grupos  se  juntassem  para  alu-­
gar  o  filme,  foi  possível  fazer  funcionar  o  poço  através  da  coope-­
ração  e  o  esforço  conjunto  de  desbloquear  a  camioneta  resultou;;  
se   as   coisa   não   se   tivessem   passado   assim,   o   resultado   teria  
sido  outro).
Esta   tendência   espontânea   para   formar   grupos   identitários  
pode  ter  evoluído  ao  serviço  da  cooperação.  Note-­se  que,  inde-­
pendentemente   do   critério   aqui   utilizado   (gostar   de   um   pintor  
que  os  sujeitos  não  conheciam  ou,  numa  situação  mais  «etoló-­
gica»,  dois  grupos  em  confronto),  há  uma  forte  tendência  inter-­
-­cooperativa  e  hetero-­depreciativa.  Tudo  isto  parece  ser  «auto-­
mático»,   no   sentido   de   não-­deliberado   e,   note-­se   este   ponto  
importante,   nada   tem   que   ver   com   o   parentesco.   Parecemos,  
pois,  programados  para  agir  cooperativamente  quando  inseridos  
num  grupo,  grupo  esse  que  se  define  por  oposição  a  outros.  
Ou  seja,  há  tendência  para  formação  de  grupos  e  adopção  de  
quaisquer  critérios   (por  mais  abstrusos  que  sejam  e  sem  qual-­
quer   base   genética),   que   controlam   os   programas   biológicos  
agressivos.  Para  corroborar  esta  ideia,  vejamos  brevemente  um  
estudo   de   Zimbardo   (por   exemplo,   in   Sabini,   1995   ou   Myers,  

117
Isto mesmo se verificou nas famosas experiências de Milgram sobre a obediência, que mos-
traram que desde que uma ordem que pode ter consequências fatais em outras pessoas vier de
uma fonte de autoridade respeitada ela será cumprida (ver Milgram 1963, e uma boa revisão em
Sabini, 1995); em geral, quanto mais agressivos somos relativamente a alguém mais tendemos a
desumanizar esse alguém. Eibl-Eibesfeldt (1989) afirma que esse tipo de fenómeno se encontra
em todas as culturas por ele estudadas.

291
1993),118  que  mostra  como  a  identidade  grupal  pode  ser  factor  
de  coesão  do  grupo  e  de  exclusão  dos  «fora  do  grupo».  
Em  laboratório  e  de  forma  explicitamente  encenada,  simulou-­
-­se  uma  prisão  e  foi  atribuída  (ao  acaso)  a  jovens  rapazes  uma  
de   duas   funções   a   que   correspondiam   vestuários   diferentes:  
guardas  ou  prisioneiros.  Passado  pouco  tempo,  (6  dias)  a  expe-­
riência  teve  de  ser  suspensa  porque:

o   que   vimos   metia   medo.   Já   não   era   evidente   para   nós   ou  


para  a  maior  parte  dos  sujeitos  onde  eles  acabavam  e  o  papel  
que  desempenhavam  começava.  A  maioria  tinha-­se,  de  facto,  
transformado  em  «prisioneiros»  ou  «guardas»,  e  já  não  conse-­
guiam  distinguir  claramente  a  pessoa  do  papel.  (...)  Ficámos  
horrorizados  porque  vimos  alguns  rapazes  («guardas»)  tratar  
outros  rapazes  como  se  fossem  animais  absolutamente  despre-­
zíveis  e  ter  prazer  na  crueldade,  enquanto  que  outros  rapazes  
(«prisioneiros»)   se   tornaram   servis,   ‘robots’   desumanizados  
pensando  apenas  em  fugir,  na  sua  sobrevivência  individual  e  no  
seu  ódio  crescente  pelos  guardas.119

Os  sujeitos  mostraram  comportamento  de  agressão  e  de  sub-­


missão  (ou  contra-­ataque),  que  é  semelhante  ao  de  outros  ani-­
mais;;  o  que  aqui  é  diferente  das  outras  espécies  é,  mais  uma  
vez,  o  critério  usado  pelos  sujeitos  para  estabelecer  as  diferen-­
ças  de  estatuto  («prisioneiro/  guarda»):  esses  critérios  foram,  tal  
como  nos  estudos  de  Tajfel,  completamente  arbitrários.  Ou  seja,  
constrói-­se   uma   representação   de   «aliado»   ou   «inimigo»,   que  
vai,   posteriormente,   controlar   padrões   motivacionais   arcaicos.  
Trata-­se  de  uma  espécie  de  «substituição  do  desencadeador»,  
que,  de  um  estímulo  comportamental,  como  nos  outros  animais,  
118
O estudo encontra-se descrito com bastante rigor no site de Phillip Zimbardo, na Internet
(Fevereiro de 2002).
119
At the end of only six days we had to close down our mock prison because what we saw was frighte -
ning. It was no longer apparent to us or most of the subjects where they ended and their roles began. The
majority had indeed become “prisoners” or “guards,” no longer able to clearly differentiate between role-
playing and self. There were dramatic changes in virtually every aspect of their behavior, thinking and
feeling, In less than a week, the experience of imprisonment ended (temporarily) a lifetime of learning;
human values were suspended, self-concepts were challenged, and the ugliest, most base, pathological side
of human nature surfaced. We were horrified because we saw some boys (“guards”) treat other boys as if
they were despicable animals, taking pleasure in cruelty, while other boys (“prisoners”) became servile,
dehumanized robots who thought only of escape, of their own individual survival, and of their mounting
hatred of the guards.

292
passa  a  ser  uma  categoria  representada  no  espaço  virtual  reifi-­
cado.  E  assim  temos  como  as  tendências  comportamentais  eto-­
lógicas  podem  passar  a  ser  controladas  «psicologicamente»,  por  
categorizações   que   são,   quase   sempre,   determinadas   social-­
mente.120
Como  é  evidente,  este  processo  fortalece  a  união  do  grupo  e  
ajuda-­o  na  competição  contra  outros  grupos.121  
Portanto,   e   até   aqui,   mostrámos   que,   além   de   uma   série   de  
adaptações   ao   altruísmo   recíproco,   a   nossa   espécie   tem   uma  
fortíssima  tendência,  «inata»,  como  se  diria  na  Etologia  clássica,  
para  formar  grupos  e  desenvolver  identidades  grupais  muito  for-­
tes  e  que  se  opõem  a  outros  grupos.  Esta  última  característica  
parece  depender,  fundamentalmente,  da  reificação  do  grupo  e  
do   não-­grupo,   independentemente   de   quaisquer   parentescos  
biológicos.  O  que  parece  relevante  é,  apenas,  a  oposição  «nós-­
-­eles»  e  a  reificação  de  «aliado»  e  «inimigo».

MEMES, GENES E CONFLITO

Esta   emancipação   do   nível   reificado   e   a   possibilidade   de   as  


categorias  sociais  serem  modificadas  culturalmente  em  prol  do  
bem  do  grupo  poderia  abrir  caminho  para  a  «razão  cultural»  (na  
expressão  de  Sahlins,  1976)  ou  de  um  «legislador»  tendo  racio-­
nalmente  em  vista  o  bem  do  grupo  contra  outros  grupos.  Claro  
que  isso  pode  ocorrer,  mas  na  maior  parte  dos  casos,  as  leis  e  
costumes  são  anónimos,  e  é  frequente  que  se  diga  que  foram  
fundadas  pelos  deuses  ou  pelo  par  ou  herói  fundador,  e  não  é  
necessário   que   os   vários   indivíduos   da   cultura   tenham   cons-­
ciência   da   sua   função   para   que   sejam   eficazes.   Não   é,   pois,  
relevante  pensar  no  autor  das  ideias,  tanto  mais  que  em  muitos  
casos  elas  parecem  espontâneas.  O  que  interessa  é  que   essas  
instruções  de  comportamento  podem,  elas  próprias,  ser  selecci-­
onadas.  Chama-­se  a  uma  instrução  cultural  de  comportamento  
120
Durante a elaboração destes textos saíu um livro de Zimbardo dando toda a informação
sobre o estudo da prisão: The Lucifer Effect. O livro é extremamente longo e pormenorizado e,
independentemente de afirmar sempre que a agressão e a crueldade não são características dos
indivíduos mas consequências de organizações sociais particulares –o que é um contrassenso,
porque uma situação só provoca as reacções programadas pelos indivíduos– é leitura importante.
121
Contrariamente ao que gostaríamos que fosse verdade a guerra, nas culturas ágrafas, tem
valor adaptativo evidente. Para uma discussão do assunto, ver Durham (1991).

293
um   «meme»,   amálgama   de   «mimeme»   e   «gene»   (Dawkins,  
1976),  e  tem-­se  defendido  que  se  pode  considerar  a  evolução  
cultural   como   uma   selecção   de   memes   (Dawkins,   1976,  
Durham,  1991,  Blackmore,  1999).  
Consideremos  aqui  o  caso  particular  dos  memes  codificadores  
da  cooperação  intra-­grupo.
Aquilo  que  os  memes  possibilitam  é  um  acréscimo  de  coope-­
ração,  na  medida  em  que   redefinem  classes  a  que  correspon-­
dem   comportamentos   biologicamente   determinadas.   Ou   seja,  
podemos  redefinir,  com  base  nas  estruturas  de  parentesco,  um  
parente,  de  modo  a  obrigar-­nos  a,  chamando-­lhe  irmão,  ter  com  
ele  comportamentos  de  irmãos.  Os  memes  redefinem,  assim,  o  
grupo  e  já  não  o  indivíduo,  como  a  unidade  significativa.
Essa   cooperação   permite   que   cada   indivíduo   ganhe   muito  
mais   em   termos   de   sobrevivência   enquanto   enquadrado   no  
grupo   do   que   fora   do   grupo   mas   implica   que   os   membros   do  
grupo  sigam  os  programas  definidos  memeticamente   e   não   os  
programas  estritamente  relacionados  com  a  sobrevivência  indivi-­
dual  que  se  encontram  nos  outros  animais.
Em  consequência  disso,  os  grupos  mais  bem  adaptados  são  
os  grupos  em  que  os  memes  codificam  comportamentos  de  coo-­
peração,  como  Bentham  e  Durkheim  há  muito  haviam  intuído.  
Portanto,  e  até  aqui,  o  processo  é  muito  claro:  os  memes  ten-­
dem  a  codificar  o  comportamento  que   beneficia  o  grupo   e   não  
apenas  cada  indivíduo.  É  claro  que  o  indivíduo,  em  última  aná-­
lise,  beneficia  disso,  porque  a  relação  do  grupo  cooperativo  com  
o  ambiente  é  muito  mais  eficaz  do  que  a  adaptação  individual,  
precisamente   em   virtude   de   haver   programas   guardados   na  
memória  do  grupo  e  que  o  indivíduo  não  teria  tempo  para  desco-­
brir   durante   a   sua   curta   vida.   Isso   é   verdade   nas   sociedades  
estratificadas,  em  que  mesmo  ter  um  estatuto  baixo  é  melhor  do  
que  estar  fora  do  grupo,122  e,  particularmente,  nos  bandos,  em  
que  há,  como  vimos,  mecanismos  explicitamente  compensató-­
rios  que  asseguram  que  nenhum  indivíduo  tenha  mais  do  que  os  
outros,  de  forma  que,  se  for  favorecido  num  determinado  domí-­
nio,  tem  de  oferecer  compensação  noutro.  As  sociedades  estra-­
tificadas,  na  medida  em  que  permitem  uma  especialização  dos  

122
Exactamente como em outros animais, em que um estatuto baixo numa hierarquia de
dominância com uma baixa probabilidade de reprodução é melhor do que estar fora do grupo, o
que equivale à morte e à ausência de reprodução.

294
diversos   grupos   numa   tarefa   específica,   que   é   coordenada  
numa  máquina  social  muito  potente,  trazem  vantagens  acresci-­
das  à  média  dos  indivíduos.
Em  qualquer  caso,  só  há  vantagens  em  viver  num  grupo  se  o  
que   se   recebe   dele   for   mais   do   que   aquilo   que   se   receberia  
estando   sozinho.   Por   isso,   há   regras   que   especificam   o   que  
cada   um   pode   ganhar   e   aquilo   que   tem   de   dar   em   troca.   Há,  
também,  codificação  do  custo  das  infracções,  que  é  especificado  
pelo  direito  e  a  moral,  de  que  são  exemplos  os  nossos  códigos  
penais.   Há   ainda   outro   tipo   de   memes,   que   codificam   a   culpa  
que  se  deve  sentir  em  cada  ocasião.  
Todo  este  arranjo  só  funciona  se  os  indivíduos  forem  progra-­
máveis  pelas  instruções  específicas  da  sua  cultura.  Neste  sen-­
tido,  têm  óbvia  vantagem  em  se  deixar  reprogramar  pela  cultura,  
na  medida  em  que  asseguram  a  sua  integração  numa  sociedade  
que  lhe  dá  recursos  e  lhe  assegura  a  reprodução.  É  assim  que  
se  explicam  as  várias  tendências  que  descrevemos  nos  dois  últi-­
mos  capítulos.  Havendo  uma  pressão  selectiva  para  acentuar  a  
centralidade  da  representação  virtual  reificada,  passa-­se  a  poder  
gerar  memes  identitários  e  religiosos  que  determinam  o  cosmos  
e  caos,  o  grupo  e  o  não-­grupo,  definidos  em  termos  reificados.

As raízes do conflito indivíduo-grupo

Contudo,   e   este   é   o   cerne   do   problema,   um   indivíduo   tem,  


apesar   de   todas   as   vantagens   que   aufere   de   se   integrar   num  
grupo   fortemente   cooperativo,   vantagens   genéticas   em   perse-­
guir  estratégias  meramente  individuais  desde  que  o  grupo  não  
seja  constituído  por  elementos  muito  aparentados,  como  mostrá-­
mos  acima.  Se  um  indivíduo  conseguir  iludir  as  sanções  e,  por  
exemplo,  se  reproduzir  mais  do  que  a  conta  que  lhe  está  desti-­
nada   ou   se   conseguir   obter   recursos   «a   mais»   sem   que   os  
outros   descubram   e   lhe   apliquem   as   sanções,   ele   deixará,  
necessariamente,  mais  descendentes  do  que  os  que  cumprirem  
rigorosamente   as   sanções.   Nesse   sentido,   os   genes  
«batoteiros»  ficarão  mais  representados  nas  gerações  futuras.
Claro  que  isto  sugere  que  a  «batota»  terá  sido  seleccionada  
evolutivamente,   mas   não   é   esse   o   nosso   interesse   neste  

295
momento.   O   que   pretendemos   enfatizar   é   que   há   vantagens  
evolutivas  de  dois  tipos:  
1. Ser   reprogramado   pela   cultura   e   cumprir   os   vários  
programas   dos   memes   cooperativos,   com   renúncia   a  
bens  que  terão  de  ser  reservados  para  os  outros.
2. Prosseguir  estratégias  egoístas  de  açambarcamento  
de  recursos.
Sendo  as  duas  estratégias  eficazes,  esperaríamos  encontrar  
as   duas   tendências   na   nossa   espécie.   Nesse   sentido,   somos,  
geneticamente,   conduzidos   a   sermos   reprogramados   pela   cul-­
tura  no  sentido  de  sermos  cooperativos   e  somos  geneticamente  
incitados  a  violar  as  regras  do  programa  memético.  As  duas  ins-­
truções  são,  quase  sempre,  antitéticas,  na  medida  em  que  uma  
delas   programa   a   sobrevivência   do   grupo   como   conjunto,   e   a  
outra  programa  a  reprodução  do  indivíduo  contra  os  outros  indi-­
víduos.   É   isto   que   explica   as   conclusões,   difíceis   de   aceitar  
pelos   antropólogos,   de   Colin  Turbull   (1972/   1994)   sobre   os   Ik.  
Como  ele  próprio  compreendeu,  o  comportamento  cooperativo  
não  traz  aos  Ik  qualquer  vantagem  dadas  as  condições  de  ambi-­
ente  em  que  vivem,  de  modo  que  as  tendências  meramente  indi-­
vidualistas   acabam   por   dominar.   O   comportamento   egoísta  
reina,  em  consequência,  tornando  os  Ik  uma  cultura  com  mais  
semelhanças  com  os  mamíferos  predatórios  (com  o  acrescento  
bem   humano   da   Schadenfreude)   do   que   com   a   maioria   dos  
humanos  precisamente  porque,  tal  como  nos  outros  mamíferos,  
as  alianças  se  reduzem  a  díades  e  não  constroem  nada  que  se  
pareça  com  um  superorganismo  bem  articulado.  
Mas  na  generalidade  das  culturas,  há  vantagens  evidentes  na  
cooperação   e   na   formação   de   superorganismos,   pelo   que   se  
explica   que   tenham   sido   seleccionadas   as   fortíssimas   tendên-­
cias  para  o  conformismo  grupal  e  para  a  reprogramação  cultural  
que  encontrámos  no  capítulo  anterior  e  que  fornecem  aos  indiví-­
duos  os  memes  cooperativos  de  que  o  grupo  tem  necessidade.  
Contudo,  e   sempre,   a   selecção   natural   guardou   os   genes   que  
promovem  as  estratégias  individuais  não  cooperativas.  Assim,  o  
indivíduo  é,  quase  sempre,  confrontado  com  a  escolha  entre  as  
instruções  culturais  de  cooperação  e  a  tentação  mais  imediata-­
mente  etológica  e  motivacional  da  prossecução  de  estratégias  
individuais.
Este  fenómeno  está  bem  patente  na  literatura  ocidental:  o  con-­

296
flito  entre  paixão  individual  e  obediência  encontra-­se  em  toda  a  
literatura   trágica   de   Ésquilo   a   Corneille   e   Racine,   e   envenena  
toda  a  nossa  existência.  Na  nossa  cultura  recente,  as  noções  de  
liberdade,  libertação  e  auto-­determinação  são  os  temas  que  lhe  
correspondem.  
Neste   sentido,   a   nossa   espécie   é   inevitavelmente   trágica   e  
conflitual,  dividida  entre  impulso  e  razão.

CONCLUSÃO

Mostrámos  como  a  cooperação  pode  ter  sido  uma  das  princi-­


pais  pressões  selectivas  para  o  aparecimento  do  espaço  virtual  
reificado,  característica  que  nos  distingue  dos  outros  mamíferos.  
Na   impossibilidade,   determinada   pela   baixa   consanguinidade,  
de  evolução  de  estratégias  genéticas  de  cooperação  alargada,  
criou-­se   um   processo   que   define   categorias   e   lhes   aplica   os  
comportamentos  e  motivações  etológicos  mais  arcaicos.  Trata-­
-­se  do  controlo  da  Biologia  pela  Cultura,  mas  o  controlo  é  incom-­
pleto:  dado  que  há  sempre  vantagens  em,  apesar  de  participar  
no  grupo  cooperativo,  prosseguir  estratégias  altruístas,  a  nossa  
espécie  está  condenada  ao  conflito  interno,  à  dúvida  e  à  angús-­
tia.  
Em  final,  espero  ter  mostrado  que  as  dicotomias  Cultura-­Biolo-­
gia,  que  ainda  se  encontram  tão  presentes  nos  espíritos  comuns  
e,   mesmo,   nos   meios   académicos,   podem   ser   ultrapassadas  
sem  redução  de  uma  à  outra  parte.  

297
A CONDIÇÃO HUMANA: CONSEQUÊNCIAS
PSICOLOGICAS DA REPROGRAMAÇÃO
CULTURAL E DA DETERMINAÇÃO GENÉTICA

ESTRUTURA DESTE CAPÍTULO

Decidi inserir um texto já antigo como conclusão a este texto. A razão de


ser disso é que se trata de um texto sentido e que responde às questões
humanas levantadas durante o resto do texto. Espero que sirva a sua função
e que vos faça sentido. Depois deste texto aparece um outro, mais recente,
sobre o mesmo tema. Não se trata, em nenhum dos dois casos, de textos
científicos, ao contrário dos anteriores. São textos existenciais, mas sou de
opinião que não há melhor maneira de ilustrar o drama da nossa espécie do
que textos realmente sentidos e escritos com a intenção de comunicar esse
sentido.

ESTÁTUAS DE BRONZE, MOLDES DE BARRO,


ORIGINAIS DE CERA

Introdução ao problema

Vimos, nos capítulos anteriores, que o processo evolutivo humano selec-


cionou a nossa tendência para a eidolonização sob, entre outras, a pressão
selectiva da necessidade de cooperação.
O processo parece funcionar da seguinte forma: a cultura, em si, corres-
ponde a um organismo cujos traços foram seleccionados de maneira a garan-
tir a nossa adaptação ao ambiente em que nos encontramos. Esses traços são
ou ensinados como tecnologia (como fazer um arco, como caçar certa espé-
cie) ou como um padrão de comportamento social.
No caso dos padrões de comportamento social, as instruções culturais
correspondem à ética de determinada cultura. Esta ética pode (e geralmente
é o que ocorre) ser sancionada pela religião ou apenas pelo costume. Mas,
em qualquer caso, qualquer desvio a esses padrões é punido de forma inam-
bígua. Não existem culturas sem sanções.
Também já explicámos porque é que, apesar de a nossa espécie ter vanta-
gens na cooperação, continuamos a seguir estratégias egoístas: aparente-
mente, somos programados para a reprogramação cultural – o que implica
que aceitemos traços que normalmente promovem a cooperação – mas
mantemos uma série de tendências para aumentar a nossa descendência de
forma directa, sem passar pelo bem comum que depois é redistribuído.
Neste texto gostaria de explorar uma das implicações desta dupla especifi-
cação humana: as consciências psicológicas e a possível implicação que essa
dupla especificação tem nas nossas vidas.

Consequências Psicológicas

Falarei, em primeiro lugar, dos problemas da perda da autoridade das fon-


tes de valor moral na nossa sociedade. Depois explorarei as consequências
dessa perda.

Verdades

A maior parte das coisas que aceitamos como «verdades» são-no apenas no
seio da nossa cultura. Não pretendo fazer aqui um discurso desconstrutivista
e post-moderno defendendo que «vale tudo» e que «tudo é igual a tudo». É
evidente que a nossa cultura fez, no domínio tecnológico e do conheci-
mento da natureza, avanços sem qualquer comparação com os de qualquer
outra. Podemos duvidar que uma visão estritamente racional do mundo faça
uma pessoa feliz, mas podemos agradecer a todos os racionalistas que conse-
guiram encontrar os processos naturais e, subsequentemente, a todos os
pragmáticos que encontraram meio de aplicar esses princípios ao domínio da
natureza o facto de termos uma vida material muito facilitada – a medicina,
a produção de alimento, as comunicações e todas as tecnologias em que
assenta não só o nosso bem-estar mas muitas vezes a nossa própria sobrevi-
vência são testemunho das vantagens do racionalismo sobre outro tipo de
visões da natureza.
Mas também não pretendo dizer que vivemos no melhor dos mundos e
muito menos que a nossa cultura ocidental seja, em todos os aspectos, per-
feita: o facto de a depressão ser uma das doenças mais espalhadas no mundo
ocidental ou que os ataques cardíacos sejam uma das principais causas de
morte não sugere que sejamos particularmente felizes.
Não vou especular sobre as causas desse mal-estar; de resto, penso que a

300
afirmação de que agora se vive psicologicamente pior do que em tempos
anteriores é falsa. É verdade que temos depressões e muitos sentem falta de
significado nas suas vidas; mas no passado as pessoas temiam pelas próprias
vidas a maior parte do tempo. Aquilo a que agora se chama «estar doente»
significa que em breve estaremos bem; estar «gravemente doente» significa
perigo de vida. Mas, em tempos não muito recuados, «estar doente» e «estar
em perigo de vida» eram literalmente sinónimos. Da mesma forma, apenas
uma percentagem muito pequena das pessoas do mundo ocidental sabe o
que é, efectivamente poder morrer de fome. Em tempos passados essa experi-
ência era espalhada. Para prova do que digo, sugiro que os meus leitores
consultem tabelas da evolução da esperança de vida e da mortalidade infan-
til. Ninguém pode esperar que se vivesse uma existência alegre, sem depres-
sões e sem dramas em tais condições.
Por isso, e em vez de me juntar ao coro dos críticos da sociedade ociden-
tal, limitar-me-ei a fazer algumas considerações. Esta secção começou por
uma afirmação: a de que as «verdades» da nossa cultura são, muitas vezes,
relativas. Isto é principalmente válido para as verdades não racionais e, parti-
cularmente, para as éticas e religiosas.
Cada cultura tem, como já afirmei, uma série de razões que explica ao
indivíduo como se há-de comportar. Por exemplo, um dos princípios mais
difundidos nas várias culturas é a boa-vontade relativamente aos membros
do grupo. Para que essa boa-vontade possa agir, é necessário convencer cada
pessoa a comportar-se generosamente para com as outras. Em termos gerais,
e como o mostram bem os dados sobre o desenvolvimento infantil, esta con-
quista não é muito fácil. Lawrence Köhlberg celebrizou-se por ter proposto
uma teoria de estádios sucessivos de desenvolvimento do raciocínio moral que
podemos resumir de forma muito esquemática na fórmula seguinte (um
pouco diferente da do próprio Kohlberg): há uma fase em que se evita a
punição e se aceita a troca de favores (estádios 1 e 2); há uma fase em que as
pressões sociais determinam o nosso comportamento (estádio 3), depois uma
fase em que há interiorização dos valores transmitidos pela cultura (estádio
4) e, finalmente, uma fase em que se estabelecem os próprios valores em ter-
mos do bem comum (estádios 5 e o hipotético 6). Claro que, como afirmei
em Ecce Homo sapiens, seria interessante considerar uma fase em que se com-
preendesse que a ética é apenas uma eidolonização das regras de construção
de sistemas de relações entre as pessoas, mas Kohlberg parece nunca ter tido
consciência disso.123
123
Nota de rodapé para o leitor interessado: Não trato aqui do estádio 5 de Kohlberg porque o
considero uma mera revisão do estádio 4. Qualquer pessoa inteligente nas culturas mediterrâ-
nicas compreende que uma regra é apenas uma regra, que se está errada tem de ser modificada. E
a reversibilidade de Kohlberg foi, penso, apenas um artifício para manter o seu modelo próximo

301
Contudo, não nos interessa agora criticar Kohlberg (o leitor interessado
poderá consultar a minha posição em Ecce Homo sapiens), mas verificar que há
uma progressiva passagem de um egocentrismo para um controlo exterior,
depois para uma interiorização das regras e, mais tarde e em poucos casos,
para a reformulação pessoal dessas regras.
Centremo-nos agora nos estádios 3 e 4. Considero-os profundamente
diferentes, no sentido de que no estádio 3 o indivíduo é controlado pelo
exterior e, no estádio 4 é controlado pelo interior, ainda que esse interior
corresponda à interiorização de regras que não foram pensadas pelo próprio
sujeito.
O que os dados parecem mostrar é que, pelo menos nas pessoas com
alguma instrução e socialização normal, a maioria da população encontra-se
nos estádios 3 e 4. Isto significa que aceitaram efectivamente as «propostas»
que a cultura lhes fez (escrevo propostas entre aspas por que, como todos
sabemos, a cultura têm meios brutais de incutir os seus valores às pessoas;
quanto a isso ver, por exemplo, o meu trabalho sobre os «Determinantes da
Personalidade» e o último capítulo de Mundos Animais, Universos Humanos
ou, melhor, qualquer bom manual de Psicologia Social que lide com o sis-
tema de enculturação e com as pressões sociais).
Como disse, os dois casos são diferentes, mas em qualquer deles temos
que o indivíduo é controlado, directa ou indirectamente, pelo meio (sendo
precisamente este o critério que Kohlberg usou para os juntar). Mas, tendo
bem em vista esta semelhança, isto é, que ambos correspondem ao controlo das
opiniões sociais pela pressão do grupo, consideremos as diferenças psicológicas
entre os dois casos.

Conformismo social por pressão do grupo

Em maior ou menor grau há que admitir que, uma vez ou outra, todos
agimos assim: faz-se o que se vê fazer. Mais uma vez, os dados da Psicologia
do de Piaget (manifestação de espírito de estádio 4? É o que eu penso). O estádio 5 é apenas um
conformismo revisionista. Quando falo de interiorização da regra presumo que qualquer pessoa
inteligente compreenderá que, em certos casos, ela está errada. Só uma pessoa completamente
programada pela cultura agiria de tal forma a conformar-se a qualquer regra, por «a lei ser a lei».
E, como vimos, defendo que a reprogramação integral não é possível, pelo que haverá sempre
dúvidas. O estádio 5 é apenas a coragem de aceitar de frente essas dúvidas e de propor alterna-
tivas. Quanto ao estádio 6, confesso que o acho mal definido. É uma espécie de estádio 5 mais
lírico. Não tem nada que o modifique a não ser que a reformulação da regra é dirigida para o
próprio indivíduo e não para a sociedade. Nesse sentido, é apenas uma versão introvertida do
estádio 5. O meu amigo Orlando Lourenço crucificar-me-á se ler isto (e lerá). Mas considero que
a teoria de Kohlberg não é muito rigorosa.

302
Social são muito instrutivos neste aspecto: em campos em que não temos
atitudes bem definidas, ajustamos o nosso comportamento pelo comporta-
mento que é esperado por nós e inferimos as nossas atitudes a partir do nosso
comportamento. Que o leitor medite nas seguintes informações, tiradas de um
trabalho meu anterior («Determinantes da Personalidade»).
Há uma grande quantidade de dados que mostram que, quando não se
tem uma atitude forte perante determinado assunto, tendemos a criar essa
atitude por inferência a partir do nosso próprio comportamento. Isso acon-
tece sobretudo se acharmos que o nosso comportamento não foi forçado
pelo exterior (por exemplo, Klaas, 1978). Ora ocorre que temos tendência
para nos comportar de forma a não ir contra as expectativas dos outros, e
portanto de forma congruente com o esperado; por conseguinte, assumi-
mos comportamentos determinados por outrem mas sem ter a impressão de
que sejam impostos. Desse modo, agimos «voluntariamente» de acordo com
o grupo, e, em consequência, vamos inferir atitudes do nosso comporta-
mento que é, ele próprio, semelhante ao comportamento dos outros. É, pelo
menos em parte, assim que os nossos valores se tornam integrados. Há um
exemplo expressivo deste fenómeno (Higgins e Rholes, 1978, Higgins e
McCann, 1984). Pede-se a sujeitos que leiam a descrição da personalidade de
uma pessoa desconhecida. Depois diz-se que sumariem verbalmente essa
descrição a outra pessoa, em duas condições diferentes: essa outra pessoa
gosta ou não gosta da pessoa cuja personalidade é sumariada. Verifica-se que
os resumos são favoráveis ou desfavoráveis consoante a pessoa a quem esses
resumos são apresentados gosta do sumariado ou não. Se, depois disso, se
pedir aos sujeitos que relembrem as características da personalidade sumari-
ada, verifica-se que se lembram de aspectos positivos ou negativos, conso-
ante tiverem sumariado positiva ou negativamente essa personalidade.
Como essa direcção foi determinada pela vontade de ser congruente com a
expectativa da pessoa a quem os sumários foram feitos, pode afirmar-se que
as opiniões são em parte determinadas pelas expectativas dos outros.
Em geral, sempre que não se tem uma atitude forte perante um determi-
nado assunto, o facto de se aceitar tomar uma posição pública sobre ele faz
que as atitudes se alterem. Isto ocorre mesmo com atitudes mais fortes.
Mesmo quando a tomada de opinião é feita a pedido de outrem, a atitude
muda, desde que o sujeito tenha de fazer uma estruturação pessoal, como
escrever um texto ou apresentar um resumo da posição contrária à sua
(Cialdini, 1993). No geral, e dada a grande tendência para o conformismo
social, o nosso comportamento tende a ser semelhante ao dos outros (é difí-
cil escolher uma referência particular para esse facto, que tem sido demons-
trado sistematicamente, mas talvez o exemplo mais antigo seja o mais inte-

303
ressante: a ilusão autocinética que converge num valor que é a média das
ilusões dos vários participantes na experiência, demonstrado por Sherif
(1935), seguido do estudo de Jacob e Campbell (1961) que demonstra a exis-
tência de tradições de erro na avaliação autocinética).
Deste modo, pode supor-se que o comportamento tende a ser homogé-
neo relativamente ao dos outros indivíduos, e as explicações encontradas
depois. É precisamente isto que Nisbett e Wilson (1977) propuseram: não
sabemos porque fazemos as coisas e damos razões de ser a posteriori do nosso
comportamento que são apenas teorias sociais partilhadas. Mesmo que não
seja sempre assim, o conjunto de dados em que os sujeitos dão uma explica-
ção disponível para um comportamento seu de que não sabem a causa
sugere, fortemente, que esse é um processo importante.
Uma vez estabelecida uma teoria, ela tende a confirmar-se. Por exemplo,
Anderson, Lepper e Ross (1980) demonstraram um fenómeno de criação de
crenças muito específico. Os sujeitos são confrontados com um caso em que
uma pessoa que tende a correr riscos é bom bombeiro. Pede-se-lhes que
encontrem, por escrito, uma explicação para o fenómeno. A partir daí, e
independentemente da direcção dos outros dados que se apresentam aos
sujeitos, a teoria tende a ser confirmada. De facto, tendemos a encontrar
sobretudo indícios que corroboram a impressão inicial. O «efeito Kulechov»
é um dos melhores exemplos disso (Rothbart e Birrell, 1977): consoante se
diz de uma fotografia que ela representa um criminoso de guerra ou um
herói humanitário, encontram-se traços que corroboram a informação dada
inicialmente.
Assim, temos os seguintes passos na formação das crenças e das atitudes:
tendemos a comportarmo-nos de forma congruentes com as expectativas
dos outros; o comportamento assim assumido vai determinar os nossos
valores e crenças; se esses valores e crenças forem teorizados a posteriori ten-
demos a confirmá-los sistematicamente, independentemente da informação
que nos chega.
**
Claro que, embora os dados o não tenham, que eu saiba, ainda mostrado,
é relativamente fácil, pelo menos a alguns sujeitos, modificar-lhes a opinião
de novo noutro sentido, seguindo os mesmos princípios. De outra forma, a
maior parte das pessoas seria incapaz de se adaptar a novos meios. Ora essa
adaptação é imprescindível: do ensino secundário passa-se para a Universi-
dade, da Universidade para o mercado de emprego, e em cada um desses
locais existe uma cultura própria (diferente, de resto, em cada Liceu, em
cada Universidade, em cada empresa).
Este processo é, certamente, adaptativo: se não existisse, não conseguiría-

304
mos determinar, por nós, todos os princípios que norteiam as nossas atitu-
des. É fácil, prático e, mais uma vez, favorece a integração do indivíduo no grupo,
copiar os comportamentos de quem nos cerca e adoptarmos essas atitudes.

A construção do Eu
Claro que neste contexto o Eu ganha certos contornos. Na medida em
que o Eu é um conjunto de atitudes e de crenças sobre o que se pensa, será,
evidentemente, elaborado a partir deste conjunto de pressões sociais.
Na medida em que o Eu é mais do que isso – nós não somos talvez só
aquilo em que acreditamos e que fazemos, mas também modos de funciona-
mento específico – esse eu será bastante plástico. Estaremos, em princípio,
sempre em conformidade com os códigos do grupo. Contudo, e dependendo
desses códigos, poderemos sentir em maior ou menor grau a discrepância entre
ser culturalmente concordantes e seguir as nossas estratégias egoístas. Creio
que este conflito será resolvido em termos de um cálculo simples: quão
grande é a pressão social e quão graves serão as consequências? Este resultado
dependerá de muitos factores psicológicos que não poderemos considerar
aqui com detalhe, mas que determinam o facto de se ser sensível à pressão do
grupo. Refira-se aliás que o estádio 3 de Kohlberg é, em muitos aspectos,
correspondente a uma determinada disposição caracterial para ser depen-
dente do campo, mais do que a uma orientação propriamente moral. Mas,
seguindo a noção de uma pessoa que é determinada pelas expectativas do
exterior, o conflito resolver-se-á, tendencialmente, no sentido de cumprir o
que é socialmente esperado. Contudo, se não houver consequências graves –
a lei, escrita ou não – será relativamente fácil fugir ao determinismo. Isto
passa-se porque as regras não foram suficientemente interiorizadas (ao con-
trário do estádio 4), permanecendo o controlo sobretudo no próprio grupo.

A interiorização da regra
Nos casos em que se verifica a interiorização da regra – o estádio 4 de
Kohlberg – o processo de enculturação será, em princípio, semelhante, mas
com uma diferença que considero essencial: o indivíduo deixa de ser con-
trolado pelo grupo mas a partir das normas que interiorizou e que considera
suas. Ou seja, deixamos de estar perante um indivíduo plástico para estar
perante uma pessoa que se comporta segundo princípios. Na medida em que
a cultura for bastante rígida, a consequência deste fenómeno será benéfica,
no sentido de que estas pessoas poderão funcionar como uma espécie de
consciência do grupo.
Contudo, o que nos interessa aqui é que estas pessoas terão duas hipóte-
ses: ou a interiorização da regra será tão rígida que haverá mecanismos de
defesa (do género dos descritos pela Psicanálise, como a projecção) que asse-

305
gurarão alguma coerência psicológica e pessoal ao indivíduo, caso em que
encontramos pessoas rígidas e intolerantes, ou encontraremos pessoas que
efectivamente foram reprogramadas pela cultura a ponto de quase abdicar
das suas tendências puramente etológicas.
Em qualquer caso, é aqui que se encontram as situações para um maior
sofrimento psicológico porque, na medida em que a regra foi, de facto, inte-
riorizada, ela transforma-se numa espécie de coluna vertebral do indivíduo.
Assim, e na medida em que a cultura fornecer, como geralmente ocorre,
modelos altruístas e cooperativos, estas pessoas são potencialmente explorá-
veis por outras pessoas que perseguem estratégias mais egoístas. Por outro
lado, na medida em que são prisioneiras de uma rede rígida de princípios,
estarão protegidas contra as «tentações» do egoísmo. Mas o sofrimento não
desaparecerá; se tiverem consciência das suas tendências egoístas terão sim-
plesmente de desenvolver uma vontade mais forte. Em vários aspectos creio
que é isso que significa a noção de que «sofrer nos torna mais fortes».

Estátuas de bronze, moldes de barro, originais de cera.


Deixem-me falar numa nota um pouco mais pessoal. Uma das coisas que
me impressionam quando considero as pessoas que conheci e que nasceram
numa época de certezas – a honra, a palavra dada, a dignidade, o casamento,
a família, tudo coisas que hoje em dia não se sabe bem o que significam – é a
sua impressionante força. Tratava-se de pessoas que, pelos seus ideais, pelos
moldes em que foram criados, pareciam de bronze. Podia-se sempre contar
com padrões éticos absolutamente justos de acordo com a cultura do tempo
delas; tinha-se a sua aprovação ou desaprovação – absolutamente imparciais
– de acordo se agia de acordo com essas regras ou não. Tratava-se de pessoas
fortes, honradas, absolutamente honestas. E, contudo, a minha geração –
quanto mais a vossa – ainda que admire estas pessoas não consegue ser como
elas. Ocorre-me uma analogia. Disse acima que estas pessoas me parecem de
bronze, como as estátuas que ainda hoje podemos ver nos bons museus da
antiguidade clássica. Elas sentiam-se de bronze, inatacáveis, fortes e seguras.
E nós? Passou a 2a Guerra mundial e a geração dos meus pais foi perdendo
a fé. Depois tivemos a propaganda revolucionária de esquerda, que tentou,
por todos os meios, demonstrar que a moral burguesa era hipócrita (ser-
vindo-se, entre outros, de Freud e dos desconstrutivistas como Derrida
[pronunciar DêrridÁ, com tónica no a]). Evidentemente que isso servia os
interesses revolucionários, no sentido de que destruíam os valores tidos por
sacrossantos pela burguesia, permitindo assim impor novos valores. Mas,
independente de ter havido estratégia política ou não nesse movimento, o
resultado foi que a minha geração cresceu na dúvida completa: o que são os
valores? Durante toda a minha juventude os vi criticados e mal defendidos.

306
Seguindo a metáfora, a minha geração compreendeu que, se a estátua é de
bronze, o molde da estátua é de barro. É dentro desse barro que se deita o
bronze que vai fazer a estátua. E o barro é barro, poeira amassada como se
quer. E assim perdemos os valores. Durante um tempo a esquerda impôs os
valores de solidariedade e justiça social (pelo menos no papel: actualmente
sabemos que Estaline não foi menos monstro do que Hitler); mas era apenas
isso, porque tínhamos assimilado demasiado bem a ideia de que o molde era
de barro. Misturemos a metáfora e o seu referente: qualquer pessoa com
espírito crítico pensava que se os moldes burgueses são de barro, quaisquer
moldes são de barro. Porquê a solidariedade? Porquê a justiça social? Com a
queda da esquerda, as coisas pioraram, porque a esquerda foi destruída pelo
capitalismo (o capitalismo permitiu que os proletários enriquecessem e se
aburguesassem, e, nessas condições, fizessem um manguito intelectual às
ideologias que defendiam os oprimidos que eles tinham deixado de ser). E
aí, com a consciência surda de que os moldes eram todos de barro, as pessoas
entregaram-se ao mais profundo egoísmo – é esse o princípio do neo-libera-
lismo actualmente defendido por todos os intelectuais in, ainda que tenham
defendido o estalinismo, o maoísmo e qualquer doutrina de moda.
O problema é que, para quem pensa, o egoísmo não é solução. Temos de
governar as nossas vidas, temos de estabelecer princípios para que haja um
mínimo de ordem intelectual e coerência naquilo que fazemos. Mas os mol-
des são de barro.
Deixem-me continuar a metáfora. Como se fazem – ou pelo menos como
se fizeram durante muito tempo – os moldes de barro? Fazia-se primeiro
uma matriz, o modelo da estátua que queríamos produzir em bronze. Esse
molde era feito num material plástico, que se podia moldar, modificar,
acrescentar, reduzir: a cera. Trata-se do método conhecido por «cera per-
dida»: faz-se o modelo, cobre-se com o molde, aquece-se o modelo e a cera
liquefaz-se e sai; depois podemos introduzir o bronze líquido – o tal bronze
de que eram feitos os vossos avós.
E, no fundo, é isso que nos sentimos agora: produtos de modelos de cera;
não, não podemos nem conseguimos acreditar que somos de bronze. Sabe-
mos que, na origem somos apenas cera, maleável, insubstancial, plástica e
amorfa.
Há quem brinque com isso. O post-modernismo pode ser trágico –
quando as pessoas realmente compreenderam a tragédia que é não ter quais-
quer referenciais – ou lúdico, quando pessoas oportunistas ou ingénuas des-
cobrem que podem ser o que quiserem. E aí afirmou-se a nulidade do ser e o
triunfo do niilismo. Nos meios intelectuais americanos, franceses ou lisboe-

307
tas há quem se ufane de que «nada existe». E quem diga que nem sequer o Eu
existe. Isso é estúpido, com todas as desculpas a quem acredita nisso.
O eu é uma consciência de si, uma sede de sentido, uma vontade de con-
gruência (vão ler os manuais de Psicologia Social se não me acreditam).
Agora tomámos consciência de que esse sentido não existe. Isso é bom?
Não, é uma profunda tragédia, ou pelo menos é assim que a sinto.
A verdade é que, como eu disse no artigo «Ecce Homo sapiens», a moral – o
molde – é uma eidolonização pura e simples. Sim, podemos estar biologica-
mente preparados para a aceitar, como certos dados indicam. Mas nem por
isso, aos olhos crus e secos do racionalismo, deixa de ser uma fantasia. Sim,
beneficiamos todos em seguir as regras e em acreditar nelas. Mas o problema
é este: o mundo é uma máquina, com causas e consequências. Peço a atenção
dos meus leitores para este ponto: é simples mas é contra-intuitivo e, pesso-
almente, foi-me difícil chegar lá. Se, em vez de causa, falarmos de dever ou
culpa; e se, em vez de consequência, falarmos em bem e mal, estamos a
impor um postulado ontológico sobre o mundo. O mundo não é moral nem deixa
de o ser: é uma mera sequência de efeitos físico-químicos (e, por conse-
guinte, psicológicos – a mente tem realidade fenomenológica, sem dúvida,
mas destruam um cérebro e vejam o que fica dela).124 São os nossos cérebros,
condicionados pelos nossos genes e pelos traços da cultura que fomos gene-
ticamente programados a aceitar acriticamente, que vêm o mundo como
ético.
O grande problema vem de se compreender isso. Aí compreendemos que
somos de cera. E, por mais princípios que procuremos, não temos saída: são
aqueles que nós quisermos e mesmo esses não têm nenhum valor.
**
Diz-se que Sócrates terá declarado preferir ser um Sócrates – entenda-se,
um homem inteligente mas infeliz por ser condenado pela sociedade – do
que um cão feliz – entenda-se, um homem inconsciente das razões porque
faz as coisas.
Se esta frase é de facto de Sócrates, ele mostra-se aqui bem mais próximo
do cão do que do filósofo inteligente. É que, uma vez descoberto o jogo, não há
saída possível. Sócrates diz «preferir». Mas o problema é que, quando se desco-
bre o mecanismo, já não se tem escolha nem qualquer possibilidade de «preferir» seja
o que for. Está-se condenado à danação eterna da falta de significado e da
ausência de princípios.
Onde os buscar? Não sei. Vocês querem ser psicólogos. Querem saber por-
que fazem as coisas. Nunca ninguém vos disse que não era melhor ser cão. A aven-

124
Pensem aqui na explicação que eu dou, em Mundos Animais, Universos Humanos, da ideia
da imortalidade da alma. Se a compreenderem e se a aceitarem, a implicação é inegável.

308
tura do auto-conhecimento é maravilhosa. Mas é trágica. Se compreende-
rem o que eu vos estou a dizer e se não encontrarem argumentos para me
refutar nunca mais serão os mesmos. Com que ficam?
Com as emoções e motivações primárias: o sexo, a dominância, a proprie-
dade, a obediência aos padrões culturais. E, se quiserem mesmo saber porque
fazem o que fazem, perderão a inocência.
Não, não gosto de vos dizer isto. Pensei muito tempo se devia dizer isto a
pessoas de 20 anos. Finalmente decidi que sim. Vocês são adultos: o vosso
voto vale tanto como o meu; a vossa cidadania é exactamente igual à minha.
Encontrem argumentos contra. Se me conseguirem convencer de que estou
enganado agradeço-vos.
Só uma pequena parte dos meus leitores vai importar isto para a própria
vida. Sim, eu sei que matéria de exame é para decorar e depois esquecer.
Talvez façam bem. Talvez seja bom ser cão. Mas àqueles a que eu chegar ao
fundo, àqueles que compreenderem o que digo, desejo felicidade na busca
de sentido.

A Culpa e a frustração

É este o último assunto de que quero tratar. A não ser que sejamos psico-
patas ou seres egocentricamente primários, todos já sentimos culpa ao
seguirmos estratégias egoístas. É verdade que a sociedade capitalista, feroz-
mente competitiva, tenta incutir-nos a ideia – o tal molde de barro – de que
temos de nos preocupar primeiro e quase só connosco. Há pessoas que são
tão plásticas que o aceitam sem problemas de consciência. Mas fazer mal ao
nosso semelhante, apesar de tudo, vai contra a matriz judaico-cristã da nossa
civilização e contra os princípios gerais de uma sociedade cooperativa e essa
influência, quer o queiramos quer não, faz-se sentir nas nossas mentes.
Mas, neste mundo sem regras, em que, misturando metáfora e referente,
se compreendeu que somos de cera e não de bronze, já não temos nem a
pressão social do estádio 3 nem a interiorização da regra do estádio 4 (ou 5
ou 6; ver nota de rodapé da pág. 301). E por isso oscilamos continuamente
entre considerar as estratégias egoístas e cooperativas (desde que não esteja-
mos no estádio 1 ou 2). Se cedermos às estratégias egoístas, sentiremos culpa.
Se aceitarmos as propostas cooperativas, poderemos sentir frustração.
Em qualquer dos casos sentiremos o intenso conflito entre o querer e o
dever. O pior é que, sentindo-nos pessoas de cera, podemos pensar: que
importa?
Tenho resposta? Cientificamente não. De facto: que importa? Humana-

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mente sim. A mim interessa-me não magoar as pessoas. Outros quererão
usufruir de tudo na medida em que não forem apanhados; outros ainda
acreditarão na necessidade de regra e impor-se-ão um código.

CONCLUSÃO

Mas, e é esta a questão: a escolha é vossa. E, quando forem psicoterapeutas, é


isto mesmo que têm de compreender. Não há certo e errado. Há apenas o que
vocês fazem. A questão é: sabem porque o fazem? As experiências de Gaz-
zaniga e Le Doux sugerem fortemente que não. Só as pessoas com códigos
rígidos de conduta o sabem – os tais estádios em que a ética foi internali-
zada.
De modo que têm duas escolhas: a via mais fácil, a do estádio 1, 2 ou 3
(notem que, ao sentir a pressão social, a escolha consciente de um comporta-
mento de estádio 1 ou 2 é difícil e temos de nos forçar a tomá-la). Ou
podem seguir uma regra qualquer – a do grupo, aquela em que foram edu-
cados. É a forma prevista biologicamente, apesar de todo o conflito impli-
cado.
Ou, finalmente, podem tentar construir racional e emocionalmente as
vossas próprias regras de conduta. Se 2 dos meus 140 alunos o conseguir sen-
tir-me-ei feliz em ter dado este curso.

Boa sorte. É vossa a vida e não terão outra. É vossa a escolha.

SEGUNDO TEXTO: ARS VIVENDI – LER O JORNAL

Um fragmento do Daninos (sobre a nostalgia da inocência de uma vida


toda programada: Monsieur Massenavette), a Aparição do sentir o eu, do
Vergílio Ferreira e a Madame Bovary, do Flaubert, são os três inspiradores
deste texto (incongruentes? Mas um trágico é sempre um cómico e vice-
-versa; e creio que Flaubert se riu e enterneceu ao mesmo tempo com as
Bovarys que conheceu). M. Massenavette é um pasteleiro de uma cidade de
província e o Daninos inveja a vida dele por um segundo: uma vida calma,
assente em princípios que não são postos em causa e todo entregue à sua
profissão. Na Aparição discute-se a descoberta do eu, o milagre do ser contra
o não ser. Na Bovary trata-se da necessidade de sentir e de viver intensa-
mente.

310
§
Quando eu era pequeno tinha a ideia de que os crescidos se levavam a
sério e habitavam totalmente a personagem que eu via. O protótipo disto
era a leitura do jornal: via-os ler o jornal, muito seriamente, mas não enten-
dia como era possível uma pessoa interessar-se por coisas tão desinteressantes
(porque separadas do desejo auto-centrado) como a política ou os faits-
-divers.
De tanto ver as personagens, em pequenos, acabamos por acreditar nelas.
É mais tarde, quando tentamos nós próprios entrar para as personagens
(usando o exemplo, quando tentamos achar o jornal interessante) que as coi-
sas se alteram, porque sentimos a incapacidade de sair do nosso eu simples e
auto-centrado que só se interessa pelos seus próprios caprichos e vontades.
No jornal lê-se sobre coisas que não somos nós, pelo menos no sentido de
não serem coisas que nos afectam directamente. É preciso uma pessoa sentir-
-se parte de uma sociedade, de um conjunto de normas, para compreender
em que é que as notícias políticas ou económicas a afectam. Uma criança
nunca será capaz disso, porque vive integralmente no plano dos desejos pri-
mários: aquilo a que o Freud chamaria o princípio do prazer.
A pessoa que lê o jornal com prazer sente-se, como M. Massenavette,
parte de uma comunidade, conhece o seu papel, toma partido e assume o
papel que a comunidade lhe deu. No limite, vive no papel, sem nunca
sonhar com problemas existenciais ou sequer psicológicos. Os Mm. Masse-
navettes são a matéria-prima de que se fazem as sociedades estáveis: são a
carne e o espírito que dão corpo às estruturas sociais. Cumprem, fazem
cumprir e não existem como seres questionadores. Não compreendem a
Aparição e nunca cederiam às tentações de Emma Bovary: a sua personagem
social nunca o permitiria. A Bovary, pelo contrário, não tolera a obediência
às normas do seu estatuto. Em parte porque é ambiciosa, em parte porque
não as compreende mas as despreza, em parte –e talvez sobretudo– porque
precisa de sentir. E como sentir para um espírito simples é apenas sentir os
prazeres primários, procura o sexo. Mas, como a criança de Freud, vive no
princípio do prazer. De resto, é um M. Massenavette que a Bovary rejeita: o
seu marido, contente com a sua sorte.
Emma Bovary tipifica aquilo a que chamo não acreditar na personagem
por baixo. Não conseguimos compreender os atractivos da personagem –não
conseguimos chegar a ler o jornal, e apenas podemos fingir que o fazemos–
porque o que realmente tem significado para nós são os nossos desejos ime-
diatos, aquilo que nos cerca: não conseguimos interessar-nos pela discussão
de uma lei que não nos diga respeito, não conseguimos interessar-nos pela

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