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Número 44
set 2014 - abr 2015
Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia
é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território
e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.
Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha
Escola de Serviço Social, sala 33
22290-240 Rio de Janeiro, RJ
EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento, Alexandre Fabiano Mendes, Barbara Szaniecki, Bruno Cava,
Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Clarissa Naback, Fabricio Toledo, Giuseppe Cocco,
Leonora Corsini, Marcelo Castañeda, Priscila Pedrosa Prisco, Silvio Pedrosa e Talita
Tibola.
DESIGN
Barbara Szaniecki
CONSELHO EDITORIAL
Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Gerardo Silva,
Rodrigo Bertame, Sindia Santos e Vladimir Santafé.
Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa
Maria, Desirée Tibola – Porto Alegre, Homero Santiago – São Paulo, Márcio Taschetto
– Passo Fundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa –
Curitiba, Marco Ribeiro – Porto Alegre, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Rita Veloso –
Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus, Joviano Mayer – Belo Horizonte, Fabricio
Ramos – Salvador, Sérgio Prado Pecci – São Paulo, Sandra Mara Ortegosa – São Paulo,
Salvador Schavelzon – São Paulo, Mario Joaquim Neto - Salvador.
Outros países: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Ariel Pennisi – Argentina,
Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça,
Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Espanha, Matteo
Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega
Camacho – Bolívia, Raúl Sánchez Cedillo – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália,
Santiago Arcos – Chile, Alain Bertho – França, Ariel Pennisi – Argentina, Thierry
Badouin – França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França.
Quadrimestral
Irregular (2002/2007)
ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
SUMÁRIO
UNIVERSIDADE NÔMADE
NAVEGAÇÕES
RESENHAS
3
Universidade Nômade
O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau?
Bruno Cava
A construção do nacional-popular
Hegemonia e contra-hegemonia
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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?
insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MAS
conseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas
sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado
histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde
ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do
século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do
próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o
pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente,
a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras
identidades políticas como sujeitos ativos do processo.
O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da
Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci,
Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a
partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em
sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante
vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada
conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou
o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de
restauração aos moldes da revolução passiva.
O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo
na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto
implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da
sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela
repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de
Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova
universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto
significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa
consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado
e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.
A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus
líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças
de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder
descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma
Bruno Cava
A crítica ao populismo
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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?
Multidão x hegemonia
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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?
“evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos
cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e
reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos,
inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.
No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de
um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo
coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício
daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de
comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a
circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O
máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos
desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de
um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à
maquinaria da telenovela e do futebol.
Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”,
mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o
jogo no Galvão, por exemplo).
O Podemos na berlinda?
1
Artigo a seguir, nesta edição.
Bruno Cava
termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-
popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.
O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que
o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento
progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de
disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-
presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando
com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de
táticas.
De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento
pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele
parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter
medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?
O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-
laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das
táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)?
Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida
não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e
prescreve a própria experiência?
De onde vejo, essa questão está em aberto.
Referências
BEASLEY-MURRAY. La clave del cambio social no es la ideología, sino los
cuerpos, los afectos y los hábitos. Eldiário.es, 2015.
<http://www.eldiario.es/interferencias/Podemos-hegemonia-
afectos_6_358774144.html>
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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?
ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS
en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012.
Salvador Schavelzon
1
Original em espanhol, em http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/01/podemos-sudamerica-y-la-
republica.html Tradutor: Bruno Cava.
PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
perde uma oportunidade única para construir formas novas num momento em que os
contornos das instituições modernas estão se esfacelando, cada vez com menos
legitimidade.
Para coletivos urbanos, imigrantes, mulheres, precários desconectados sem
documentos, ou povos soberanos que, como indígenas e movimentos horizontais latino-
americanos, não concebem a participação política enquanto sociedades de indivíduos e
cidadãos da nação delegando ao estado e ao partido o vetor político de mudança, o
Podemos renunciou rápido demais em explorar todo o alcance de seu voo. Enquanto
isso, o fechamento sem fissuras ao redor de um comando político blindado, e a pátria
espanhola como referência identitária — ainda que justificada como estratégia, tal qual
no progressismo latino-americano, para alguns é parecido demais com o que se deveria
transformar antes de qualquer coisa.
Numa Europa que conheceu os problemas do nacionalismo e vê recrudescer
atualmente os conflitos étnicos e civilizacionais, se entende o lugar de uma esquerda
laica, moderna e republicana que busque distanciar-se de movimentos que considera
desvios da política social e defesa do estado de bem estar, concebidos como prioritários.
A partir de uma Europa das diferenças, apesar disso, os limites da república e do que
representa a Europa, com sua social-democracia totalmente cooptada pelo capital, o
projeto iluminista fracassado como companhia inseparável da violência colonialista, e
uma modernidade que em seus extremos mostra seu lado mais obscurantista, estão tão à
vista quanto a continuidade republicana do colonialismo nos Andes sul-americanos.
É nesse sentido que, desde uma proposta espanholista e social, ainda que seja
republicana, plurinacional e antimonárquica, pareça haver muito pouco do sentido
comum nascido nas praças ocupadas em 2011. Voltando à América Latina, se remete
menos às lutas indígenas e populares contra o neoliberalismo, do que ao seu termidor
desenvolvimentista multicultural. É esta a aprendizagem dos fundadores de Podemos na
América Latina, como projeto social que absorveu a plurinacionalidade e a alterou ao
modo do liberalismo que reduz diferença e autonomia a relativismo cultural, e um
nacionalismo que concebe o estado como instrumento central para organizar a vida e a
comunidade.
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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
constitucionais para uma mudança que, no entanto, não romperia com Espanha, a União
Europeia e o Euro, não proporia uma saida da OTAN.
Devemos notar que o diálogo elogiável que Podemos em sua fase ascendente
entabula com a política latino-americana nem sempre leva em conta os becos sem saída,
encontrados por processos que se desdobraram em pactos excessivos com o passado, na
aceitação de setores da velha política que nunca se foram e na tolerância com lastros
inesperados que impuseram distância a movimentos e antigos aliados. Uma debilidade
congênita para atacar privilégios e injustiças antes denunciadas se mostraria estrutural,
nos governos sustentados com acordos de governabilidade expostos como necessários, e
consensos conservadores no manejo da exploração de recursos e na expansão capitalista
no campo, com graves consequências ecológicas e de preservação dos territórios.
Na contramão do sentido comum da esquerda libertária contemporânea e de
imaginários pós-68, e talvez por isso um contraponto que funciona nas tertúlias
televisivas contra a direita conservadora e o regime pós-franquista de 1978, Podemos
buscará reconstruir e disputar uma identidade homogênea de um povo unitário.
Cidadãos que apoiam a partir das suas casas e encontram novos representantes para
substituir os desgastados, aparecem assim como a contraface de assembleias e redes
sem centro, ao que somente certa leitura despistada qualifica de ineficazes e sem efeitos,
como se o cenário atual não se devesse à magnitude daquele fenômeno.
Como diz Juan Carlos Monedero, os processos latino-americanos ajudaram o
Podemos a aprender e não repetir erros, e menciona que o Que se vayan todos de 2001,
assim como outras revoltas, os alertou de que é necessário uma alternativa com
capacidade de fazer governo e não somente impugnar [1]. Movimentos de protesto,
assembleias e ocupações do espaço público se reconhecem meramente como
antecedente primitivo e mitologizado que necessariamente deverá dar lugar a uma
institucionalização em que todos participem, mas apenas em consultas feitas por meio
dos telefones celulares, enquanto “os mais preparados”, como propõe Iglesias, sejam
convocados pelo partido para governar.
É o estado pra onde se devem dirigir necessariamente todos os esforços, nesta
visão, como catalisador de impulsos imaturos de um momento de protesto que
doravante se decreta encerrado. Disparando um deja vu ainda antes de aceder a algum
governo, vemos essa discussão quando Podemos opõe “ganhar” a “protestar”, na
proposta que, em janeiro de 2015, a Carolina Bescansa fez como parte de um debate
numa eleição interna do partido em Madrid, mas que na América do Sul já levou à
Salvador Schavelzon
prisão ativistas e líderes indígenas no Brasil e Equador, somente por protestar contra os
governos de que antes eram aliados. O mesmo juízo se adivinha na frase que “se não
estão gostando, montem um partido e ganhem as eleições”, com o que agora governos
progressistas também desafiam mobilizações contra medidas que afetam o bolso ou
formas de vida nos territórios.
A condução do Podemos, que busca fazer exatamente o que líderes como Lula
da Silva ou Rafael Correa propõem a seus críticos — formar um partido e ganhar —
pensa parecido quando enfrenta “eficácia” de frente às eleições, frente à democracia
interna e o pluralismo que a própria força política convocou inicialmente. Nesse sentido,
o debate que acompanhou a Assembleia Cidadã de Vista Alegre, quando se formava a
organização, teve Pablo Iglesias anunciando que sairia da organização caso sua proposta
não obtivesse a maioria, mas que se ganhasse queria listas completas e fechadas com
seus afins em todos os postos de autoridade partidária, como medida que considerava
necessária para ganhar. Ainda, além disso, buscaria integrar com sua gente os
Conselhos Cidadãos das comunidades, exceto onde as listas rivais tivessem chances de
rivalizar, onde ele sim estaria disposto a integrar com outros a condução do partido.
É mérito do Podemos mencionar os processos latino-americanos como
inspiração distante, ainda que não modelo, rompendo com a geopolítica colonial do
conhecimento, em que costuma ser mais usual que os países do sul sejam
contraexemplo e os da Europa modelo a imitar, justificativa para qualquer medida ou
reforma. A presença de muitos hoje quadros de Podemos na América Latina e noutros
lugares, apesar disso, é muitas vezes explicada por eles mesmos menos como
intercâmbio produtivo e vital, e mais como necessidade de sair do país obrigada pela
crise devido à falta de oportunidades. Em várias apresentações a que assistimos entre os
que correram para postular algum dos cargos do novo partido, se trata de heróis que
saíram por causa da crise e voltaram pela pátria, entidade sempre útil e lembrada
quando se busca aceder ao governo, mandar à guerra ou trabalhar.
A América do Sul oferece à Europa, sem dúvida, um rico repertório de
negociações soberanas de dívidas ilegítimas e políticas pontuais, mas também um
problema político irresolvido quanto à tolerância com o desflorestamento ilegal da
Amazônia, o extrativismo contaminador nos Andes e o avanço predatório da fronteira
agrícola para monoculturas transgênicas rentáveis, com suas consequências
irreversíveis, já causadoras de secas e inundações, resultado do uso descontrolado dos
recursos tidos como fundamentais para sustentar políticas sociais e manter o
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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
crescimento e o consumo em alta. Esses temas não podem ser abordados como abusos
corrigíveis, nalguma possível versão melhorada, se trata antes disso de componentes
inseparáveis de modelos econômicos e projetos políticos, ao que Podemos parece
integrar-se, a julgar por posicionamentos passados de seus fundadores e propostas atuais
nos novos debates.
Como todo deja vu que devolve um passado sempre ubíquo e incompleto, o
lugar a partir de onde ler Podemos na América do Sul é disputado e instável. Um
primeiro impulso leva aos anos 90, com o auge e a queda de presidentes neoliberais,
bem como a líderes campesinos como Evo Morales, ou populares como Chávez, ou
cidadãos próximos da gente, como Chacho Álvarez, que impulsionaram seus partidos
com destinos diferentes mas inimigos similares. Embora os governos progressistas que
se consolidaram nos anos 2000 mantém viabilidade eleitoral até o presente; na América
do Sul também se evoca o Podemos em distintas iniciativas na busca de criar uma nova
força política, no momento em que retornam os protestos e o neoliberalismo denota
continuar.
Assiste-se na América Latina a um novo ciclo de mobilizações pela vida, o
comum e o território, na metrópole e comunidades, com movimentos sociais ou de
participação eleitoral, mas por caminhos políticos em que o objetivo não é a construção
de uma hegemonia que conduza a um novo estado, ou a acumulação de força eleitoral
para a remoção de partidos antipopulares, apesar de essas lutas não se oporem a isso. A
partir deste lugar, que não é o de nostalgia por mobilizações passadas nem de um
anarquismo que impugnaria qualquer institucionalização, a irrupção do Podemos parece
tão alheia quanto poderia ser para todo aquele que não considere terminadas as formas
coletivas que reverberaram no 15-M, ou na busca da mudança social com
autodeterminação.
O significante vazio confunde o soberanismo catalão que qualifica Podemos de
novo cavalo de Troia madrilenho do espanholismo, mas também como a melhor
interlocução possível na cabeça do estado espanhol. A ambiguidade também aparece no
novo partido que tanto é produto do 15-M, quanto a sua traição e antagonista. Se, com
efeito, a posição de sujeito em afinidade com os governos sul-americanos se constitui
como próximo governo espanhol, muitas dúvidas seriam rapidamente dissipadas. Como
tem acontecido, sem embargo, a capacidade de representar uma esperança — polarizar
com o neoliberalismo, mas governar com ele, — poderá manter-se. De qualquer modo,
Salvador Schavelzon
as inquietações das ruas e movimentos já podem ser enunciadas, como faz Uli Brand
sobre a Syriza e a Europa em geral:
Nos comentários, se repete uma ou outra vez a cantilena pálida do
‘crescimento’ necessário. Mas, o que significa isso concretamente?
Concretamente, que tipo de empregos serão gerados ou conservados?
Estamos falando de empregos na indústria bélica, ou numa indústria
produtiva o mais sustentável possível? Do trabalho de peões mal
remunerados, na agroindústria? Ou de trabalhadores com emprego digno na
produção ecológica de alimentos? E quem decide sobre as inversões que
devem nos levar ao crescimento? Fundos privados de alto risco em busca do
maior rendimento possível, ou empresários responsáveis, ou inclusive a
população, mediante mecanismos e procedimentos de democracia
econômica? [2].
Podemos e a plurinacionalidade
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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
desencantados dos partidos espanhóis, bem como entre novos votantes não
entusiasmados com a luta pela autodeterminação nacional. Trata-se de encontrar uma
saída ao desafio catalão que permita dispersar um nacionalismo que, desde a perspectiva
de esquerda ou social, não é julgado como autêntico ou essencial. Em lugar de
confrontar o soberanismo, se propõe um modelo de estado que o contemple, sem no
entanto perder o comando estatal requerido para efetuar mudanças sociais.
Depois que a Catalunha foi a comunidade com os piores resultados para o
Podemos na eleição para o parlamento europeu, em 2014, o partido parece ter
encontrado a forma de usar a mobilização soberanista a seu favor, tanto no impulso de
um processo constituinte mais amplo, como no desvio do descontentamento catalão
para outro tipo de saída. Íñigo Errejón definiu que “Para nós, a Espanha é um país
plurinacional, em que a cola deve ser o acordo livre e a sedução” [3]. Seduzir significa
conseguir que os catalães fiquem, atraindo um número suficiente de seguidores para
cimentar mudanças no estado espanhol.
As pesquisas dizem duas coisas interessantes para Podemos. Uma é que seu
avanço na Catalunha coincide com o retrocesso do independentismo. Na pesquisa de
dezembro de 2014, enquanto Podemos se convertia num ator de peso também para a
política catalã, se registrava pela primeira vez, desde o início das mobilizações
soberanistas, que ele não se impunha sobre o sim à independência [4].
O outro dado que seguramente foi avaliado pelo Podemos para propor uma
solução plurinacional foi que, nas medições de junho de 2014, nem o sim nem o não à
soberania plena se impunham quando se incluía uma “terceira via”, pela qual se
aumentavam as competências sem necessidade de uma ruptura secessionista [5]. Estes
votantes, cerca de um terço do eleitorado, é o que interessa a Podemos para somar
nacionalmente e impelir uma plurinacionalidade em que um bom número de catalães se
vejam refletidos, rompendo a aliança soberana popular e neoliberal, que encontra atores
muito diversos com as mesmas bandeiras da independência.
Para que esta proposta caia bem no público eleitoral, terreno preferido na análise
estratégica do Podemos, é chave que a narrativa do social chegue ao “cinturão
vermelho” de Barcelona, um dos focos de Pablo Iglesias em seu discurso de dezembro,
enquanto associava a casta espanhola com a catalã, e criticava o abraço de Artur Mas
(da CiU) com David Fernández (da CUP), símbolo do encontro conjuntural do
soberanismo popular com o da casta neoliberal. O cinturão industrial da área
metropolitana de Barcelona poderia assim ser a chave, e Podemos descobre isso quando
Salvador Schavelzon
parece substituir em seu bastião ao Partido Socialista Catalão, da onde não é casual que
também se fale em estado plurinacional como uma estratégia para o debate soberanista.
Gemma Ubasart, secretária de Plurinacionalidade do conselho estatal de Podemos, ex-
colaboradora da Tuerka [NT. Programa televisivo de debates que foi embrião
do Podemos] e que, como investigadora pós-doutora também passou pelo Equador, a
chave para o caminho da sedução. Como candidata à secretária geral da agremiação na
Catalunha, resume a sua visão se colocando bem longe do soberanismo: “Temos um
importante desafio à frente, construir um país de coesão e bem estar para todos, e livre
de corrupção” [6].
A partir de um modelo mais multicultural do que confederado e
autodeterminativo, a tendência parece ser apostar por uma consulta ao povo catalão em
que uma maioria soberanista não se imponha, canalizando desejos de soberania em uma
forma que permita manter o caráter unitário do estado, desde onde efetuar mudanças e
reformas de tipo social, tal qual assistimos em Bolívia e Equador.
Boaventura de Sousa Santos, de cuja equipe forma parte Juan Carlos Monedero,
e a quem este se refere como seu mestre, escreveu muito sobre a plurinacionalidade
latino-americana, destacando-a como parte de um novo constitucionalismo experimental
e pós-colonial que permite superar as formas modernas em países com mais de uma
nação, e que inclusive foi mencionado pelo sociólogo português como possível solução
para palestinos e judeus num novo estado secular compartilhado [7]. Esta proposta de
estrutura do estado é adotada pelo movimento indígena em Bolívia e Equador, como
caminho para aceder a uma autonomia territorial, mas se cimentou constitucionalmente
de forma aberta e indefinida.
A plurinacionalidade aparece, então, como o “significante vazio” que pode
permitir a Podemos repartir as cartas num eventual processo constituinte que o tenha
como protagonista, sem recorrer ao federalismo, proposto pelo PSOE e desacreditado
pelo provado centralismo de velho tipo desse partido, e sem definir, no entanto, quanto
se cederia em concreto de soberania e autodeterminação. O ponto de partida aberto fica
claro na entrevista com Pablo Iglesias em que o indefinido de sua proposta, claramente,
não deixa de ceder ante ao privilégio do social:
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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA
processo constituinte formal, e que possa vir um governo que se mostraria mais aberto a
negociar uma consulta, como Escócia, ou Quebec, no Canadá.
O Podemos que surge como deja vu dos processos sul-americanos da última
década é o do distanciamento de demandas descolonizadoras e de autodeterminação, na
renúncia das buscas de alternativas ao desenvolvimento, que construam uma nova
institucionalidade pós-republicana e antiliberal desde a comunidade, as ruas ou o debate
constitucional. A multiplicidade do caráter minoritário que o pluralismo iria exprimir se
reduz a um problema de assistência social para os iguais antes que diferentes, carentes
antes que singulares, numa concepção que só pode derivar em mais estado e menos
plurinacionalidade.
A plurinacionalidade na Bolívia
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Para quem, antes que pobre ou sem emprego de uma Espanha integradora se
reconhece como mulher, minoria sem estado, coletivo urbano ou imigrante sem nação,
Podemos deixará de falar a ela muito rapidamente. Se a ideia de país que busca
construir se assimila a sua ideia de partido, como parece; poderá suceder que a
plurinacionalidade se definirá contra a autonomia, como ocorreu na Bolívia e Equador,
quando o termo deixou de referir-se a nações específicas no marco de um mesmo
estado.
Embora a plurinacionalidade surja no debate em oposição ao reconhecimento
multicultural, incorporado em várias constituições latino-americanas na década de 90,
com as reformas neoliberais, o momento em que para os indígenas o conceito perde o
interesse, é o que o transforma em sinônimo de inclusão de todos nas formas políticas
anteriores, como integração do colonizado antes do que descolonização que para os
povos indígenas se refere a aceitar uma pluralidade de formas de organização,
desenvolvimento e autonomia. No lugar de autonomia e produção comunitária, a
plurinacionalidade que prevaleceria em Equador e Bolívia seria a da possibilidade que
um indígena não seja discriminado e inclusive possa ser presidente, mas sem superar o
modelo de reconhecimento do tipo liberal, reduzindo a diferença ao multiculturalismo, e
a forma republicana da democracia capitalista para a política sempre transcendente e
isolada.
A presença indígena nos processos políticos andinos, em lutas zapatistas pela
autonomia, ou frente à mineração ou avanço do agronegócio em Paraguai, Chile e
Brasil, vem permitindo a construção de novos horizontes políticos que põem em diálogo
o ancestral com o comunitário, em debates bem atuais para quem também nas cidades
sente os limites das formas modernas de representação política, em sua cumplicidade
com um capitalismo que destrói o planeta e privatiza o comum, inclusive em suas
variantes de tipo nacionalista ou social.
Quando os povos indígenas são levados em conta como identidades rígidas
reconhecidas pelo estado desde a cultura, a plurinacionalidade se desliga da
cosmopolítica indígena e da comunidade, os direitos da natureza e a inclusão dos não-
humanos, referência que se origina na socialidade e no viver bem indígena, mas que é
referência também para o ambientalismo, a política e a filosofia da ciência
contemporânea. A partir deste lugar, é possível pensar um diálogo entre lutas do estado
espanhol e latino-americanas, onde viagens políticas como dos bascos a Cuba e
Chiapas, exílios mútuos e imigrantes constroem faz tempo as bases para conversar.
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NOTAS
[1] Juan Carlos Monedero em “A Cara Lavada” da Radio Pública Argentina 29/7/14.
https://www.youtube.com/watch?v=8tRHWxmZq74
Salvador Schavelzon
[2] Uli Brand “¿Un nuevo comienzo para Europa?” Rebelión, 24/1/2015.
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=194691
[3] Errejón: “Los catalanes tienen derecho a decidir como los escoceses” 13/11/2014 El
País.
http://politica.elpais.com/politica/2014/11/13/actualidad/1415892800_413245.html
[4] “El no a la independencia de Cataluña gana al sí por primera vez desde 2012”, El
País, 19/12/2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/19/catalunya/1418984873_128596.html
“La irrupción de Podemos trastoca el plan independentista”, El País, 22/12/2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/22/catalunya/1419283809_571655.html
[5] “Más Cataluña pero dentro de España” (Àngels Piñol) El País, 25 de julio 2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/07/24/catalunya/1406230479_555975.html
[6] Gemma Ubasart: Nunca antes un partido con opciones de gobierno había defendido
el derecho a la autodeterminación. El Diario, 15/1/2015.
http://www.eldiario.es/catalunya/politica/Gemma-Ubasart-Jamas-Espanya-
autodeterminacion_0_345766548.html
[7] Ver por exemplo o livro Reinvención del Estado y Estado Plurinacional, Santa Cruz
de la Sierra, CEJIS, CENDA, CEDIB, 2007.
http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/reinvencion%20del%20estado%20y%20
estado%20plurinacional_Bolivia.pdf Sobre a proposta para a questão Palestina:
http://outraspalavras.net/posts/a-possivel-extincao-do-estado-de-israel/
[8] Entrevista com Pablo Iglesias: “En las próximas elecciones habrá dos opciones: PP y
Podemos” (Eva Saiz / Francesco Manetto) El País, 18/1/2015.
http://politica.elpais.com/politica/2015/01/17/actualidad/1421526937_154439.html
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Podemos além Podemos, um poder constituinte na Europa
Nota dos editores: O pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sánchez Cedillo e o filósofo
italiano Antonio Negri publicaram, entre fevereiro e abril de 2015, uma série de quatro
artigos sobre as coordenadas em que se inscreve a experiência do Podemos na
Espanha e da Syriza, na Grécia, cada artigo abordando o problema de um ângulo
diferente. A seguir, estão os quatro artigos traduzidos dos originais espanhóis ao
português, pela Universidade Nômade.
“Um espectro ronda a Europa”. Esse era o título da manchete de dias atrás do
jornal italiano Il manifesto, comentando as visitas aos governos europeus de Alex
Tsipras e Yanis Varoufakis, primeiro-ministro e ministro da economia da Grécia,
ambos da Syriza. Os dois estão na contramão do ônibus europeu, na iminência de um
choque, como descrito no jornal Der Spiegel, causando um verdadeiro pesadelo aos
ordoliberais alemães. Imaginem o que poderia suceder com a vitória do Podemos na
Espanha neste ano: que magnífico espectro à espreita, um monstro real gerado pelas
forças produtivas e exploradas da quarta economia europeia! Nas próximas semanas,
vários turnos eleitorais estarão acontecendo na Espanha, enquanto o mantra dos atuais
governos europeus continua o mesmo, agora com força redobrada, numa clara tentativa
de amedrontar os cidadãos espanhóis. Vamos nos preparar. Com a certeza de que a
arrogância e o mau olhado dessa propaganda serão derrotados.
O que o Podemos poderia dizer sobre a Europa? Consciente da aceleração do
tempo político que a vitória da Syriza na Grécia impôs, o discurso do Podemos sobre a
Europa é, de um lado, formado pela sincera solidariedade e alto apreço pela vitória da
Syriza, de outro lado, por uma avaliação prudente — a linha adotada por Tsipras
poderia fracassar, no curto intervalo entre as eleições na Grécia e na Espanha. Mas
prudência não é a mesma coisa do que ambiguidade. De fato, é óbvio como nada
poderia ser mais perigoso do que uma posição ambígua, a respeito não apenas das
políticas adotadas pela Troika na Europa. Qualquer ambiguidade, aqui, deve ser
eliminada, e assim tem sido na prática, se avaliarmos baseando-se nos últimos meses.
Duas Europas existem e é necessário posicionar-se numa ou noutra. A população
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri
sensata tem consciência que vencer na Europa somente é possível com uma frente, já
aberta pela Syriza, e que agora precisa expandir-se pela Europa. A política da dívida, o
tema da soberania e a questão da aliança atlântica (com os EUA) somente podem ser
tratados a partir de uma esfera europeu total.
Já se esperava que haveria grande atenção nas propostas táticas e na política da
equipe econômica e financeira da Syriza. Independente da avaliação sobre a qualidade
das propostas, elas sinalizam um plano de cooperação transnacional e o abandono da
demagogia antieuropeia típica das “velhas” esquerdas, uma demagogia que, em
qualquer caso, nunca foi forte no Podemos. Claro que a aposta da Syriza está formulada
em termos de defesa da soberania nacional (“contra a Troika”, “contra Angela Merkel”
etc), mas na prática isto implica uma aceitação razoavelmente evidente da necessidade
de uma intervenção política dentro e contra a União Europeia (UE) da maneira como é
dirigida hoje. Nesse sentido, a opção primária agora está na coalizão dos PIIGS (sigla
para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha) e forças da nova esquerda, a fim de
sobrepujar o status quo da UE. Ao mesmo tempo, esta parece ser a única opção possível
para o Podemos ganhar a eleição.
Vamos tentar avaliar as coisas com maior profundidade. Até agora, o confronto
na Europa tomou a forma entre uma Europa neoliberal, neobismarckiana e
fundamentalmente conservadora, e uma Europa democrática, constituinte e
fundamentalmente afinada com as necessidades dos trabalhadores, camadas médias
empobrecidas e precarizadas, juventude desempregada, mulheres, imigrantes e
refugiados — os excluídos, velhos ou novos. A “alternativa”, por assim dizer, porque
afinal de contas partiu da crise de 2008, a alternativa bismarckiana se impôs à força,
deixando à outra Europa apenas um espaço marginal, de protesto e, por vezes, até
mesmo gritos de desespero. Entretanto, quando a situação pareceu ficar estritamente
fechada em relação às demandas de justiça e às revoltas contra a miséria, a alternativa
real se apresentou, a começar da Grécia. Agora, a tarefa é afirmá-la, organizá-la
precisamente nas áreas onde a iniciativa reacionária se impôs — onde se tenta afogar
Hércules para além de qualquer salvação popular.
A primeira questão, a primeira dificuldade, é enfrentar a dívida. A Europa da
Troika quer forçar as multidões europeias a pagar a dívida, e a habilidade em pagar essa
dívida se torna o metro da democracia e do grau de europeísmo. Mas todos esses que se
movem no fronte democrático pensam, ao contrário, que esse metro é insultante, porque
as dívidas cobradas das pessoas hoje foram contraídas por aqueles que governaram ao
41
PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
longo dos anos. As dívidas engordaram as classes dominantes, não apenas mediante a
corrupção, sonegação ou favores fiscais, gatos militares insanos e políticas industriais
que não favorecem o trabalho, mas além disso ao submetê-la à lógica do rentismo
financeiro e impor precarização e incerteza sufocante sobre as formas de vida. Cada
homem, cada mulher, cada trabalhador teve de declarar-se culpado da dívida, da
imputação de que eles foram responsáveis.
O momento chegou para dizer em alto e bom tom que não foram os cidadãos,
mas os senhores do poder, os homens do projeto neoliberal, os políticos do “centro”, das
“grandes coalizões” — mais extremas e exclusivas a cada vez — foram eles que
geraram a dívida a partir do que vêm se apropriando para si e ante o que agora eles
exigem um reembolso indevido. Contra essa condição servil para as pessoas (não
apenas do sul da Europa, mas também do centro e de todo leste europeu), a nova
esquerda, através da Syriza, está exigindo um resgate — uma conferência europeia ao
redor da dívida, isto é, uma sede constituinte por um novo sistema de solidariedade,
pelo estabelecimento de um novo critério de medida e cooperação fiscal e para as
políticas do trabalho. Podemos pode trazer um apoio imenso a este projeto.
Todos sabemos que atrás desses tópicos reside um projeto de transformação
profunda das relações sociais. Uma vez mais, da Europa e na Europa, há um projeto de
liberdade, igualdade, solidariedade — um projeto que possamos chamar antifascista,
porque ele repete a paixão e a força das lutas da resistência. A aliança entre Podemos e
Syriza, e o impulso de fusão nesta aliança, endereça a todas as novas esquerdas
europeias, a possibilidade de construir um modelo — um modelo para uma UE
democrática e baseada na solidariedade, para além do mercado e contra ele.
Partindo desta refundação, a única política fiscal que pode ser feita está em
reduzir ou abolir a dívida, que tem sido consolidada sucessivamente até os dias de hoje
e então estabelecer e padronizar, para o futuro, critérios fiscais progressivos em toda a
Eurozona. Os temas centrais do estado de bem estar social — educação, assistência
médica, sistemas de pensão e políticas de moradia, mas também do trabalho doméstico
e no campo do cuidado [care] — podem ser desenvolvidos uniformemente no nível
europeu, acompanhando a grande inovação da renda básica de cidadania decente,
generalizada e uniforme. Tudo isso deflagra uma batalha constituinte nesses espaços em
que novos direitos de solidariedade podem ser reconhecidos, onde o comum se torna um
elemento central da organização socioeconômica.
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri
Porém, para vencer nesses temas, é preciso indicar o terreno da luta: este
somente pode ser o espaço europeu em sua totalidade. O que nos traz ao tópico central,
ao redor do que muitos desentendimentos têm se acumulado: a cessão da soberania. Já
aconteceram transferências de soberania, e essas têm sempre sido feitas em favor dos
poderes neobismarckianos do capitalismo financeiro. Demagogicamente, ao atacar as as
cessões de soberania, direitos nacionalistas têm nascido e se desenvolvido
perigosamente na Europa. E apesar disso, é estranho como essas posições podem de vez
em quando ser assumidas (ou então encaradas com postura favorável) entre membros da
Syriza, Podemos e outras forças da “nova Europa” que está se formando.
Nós devemos ser claros neste ponto: cada um dos países que entrou na União, e
ainda mais os que entraram na zona do euro, não têm mais soberania plena. E isso é
bom, porque foi por trás da soberania nacional que cada uma e todas as tragédias da
modernidade se desdobraram. Se queremos continuar falando de soberania num sentido
moderno (e clássico), quer dizer, de um poder “em última instância”, nós devemos ser
claros que a soberania está cada vez mais identificada com Frankfurt, com a torre do
Banco Central Europeu.
A nossa situação está caracterizada por uma duplicidade perigosa. Precisamos
reconhecer isto: nós precisamos de Frankfurt, de uma moeda europeia, se não quisermos
cair como presas dos poderes das finanças globais, da política dos Estados Unidos ou
outros gigantes continentais que estão se posicionando contra a Europa; mas nós
devemos também recuperar Frankfurt para a democracia, para impor-lhe a razão dos
povos — e Frankfurt deveria ser assaltada pela Europa: primeiro pelos movimentos e,
então, gradualmente, pela maioria das democracias europeias e por um Parlamento
Europeu transformado em assembleia constituinte. Com a globalização, a centralidade
da governança monetária de zonas continentais foi imposta em todo lugar — e a Europa
é uma dessas zonas continentais. É impossível imaginar uma batalha política mais
essencial do que aquela levando ao controle democrático da moeda europeia. Esta é a
tomada da bastilha hoje.
Além disso, está claro que meramente levantar o assunto do controle sobre o
vértice político e monetário da Europa, e insistir na dissolução das velhas soberanias
monocráticas, poderiam abrir, de um modo produtivo, o tópico do federalismo, que é
outro passo essencial para a construção de uma nova Europa. Federalismo: não apenas
alguém quer que as nações europeias recomponham-se num diálogo constituinte, mas
também, e acima de tudo, uma articulação entre todas as nações, todas as populações e
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
Mas agora a Europa está cercada de guerras. Todo o Mediterrâneo está cruzado
por uma única linha de guerra, por fascismos e ditaduras, que se alastram por toda a
Europa em movimentos imigratórios, tensões críticas causadas pela política energética e
trocas comerciais. É uma linha que se estende por todo o caminho até o Oriente Médio,
fazendo da Europa um ator perigosamente exposto a movimentos armados com
importância e liderança globais.
Além disso, na fronteira oriental da Europa, uma guerra sem sentido está se
desenvolvendo entre populações falantes do russo, com responsabilidades que deveriam
ser colocadas num âmbito global de controle, pois a guerra contradiz os interesses das
populações europeias como um todo. Desta perspectiva, a soberania da Europa — não
mais a soberania imaginada de cada país, mas a soberania real da União que está sendo
construída — é projetada na OTAN e usurpada por ela. Isto é uma cessão verdadeira de
soberania nascida das populações europeias!
Quando Tsipras coloca, de maneira simbólica, a necessidade de lidar com o
problema, o premiê grego toca numa costura fundamental das estruturas europeias. Ao
fazer isso, ele introduz um problema a que nós deveríamos responder sem nos iludirmos
de que pudesse ser resolvido imediatamente, mas também sem negar a existência de seu
impacto central. Referimo-nos ao relacionamento da UE com a paz ou a guerra, com a
paz não apenas na Europa, mas também ao longo de suas fronteiras. Além disso, está
imediatamente claro que a questão atlântica não é um problema que concerne apenas
paz e guerra: é um assunto de paz e guerra traçado pelo sistema de controle e/ou
comando sobre as estruturas produtivas e financeiras da própria Europa.
De maneira a não ser hipócrita, a fim de falar claramente em imprimir um
ímpeto maior aos processos de construção de uma força política para a esquerda
europeia, nós vamos novamente colocar algumas questões na mesa que não podem ser
deixadas de lado.
O que o Podemos diz ou faz sobre a imigração, sobre os refugiados? Mas
também — repetindo-nos e tornando a nossa questão mais precisa — que diz sobre a
OTAN, sobre os conflitos regionais em curso na UE? Se tais tópicos forem
considerados “chabus” no reino eleitoral, é necessário evitá-los e/ou respondê-los com
exercícios retóricos, para sair do caminho? Não, não mesmo: é muito difícil adotar o
slogan “primeiro nós tomamos o poder, depois discutimos o programa”, neste domínio.
O tópico da paz e guerra não pode ser considerado secundário. Posicionar-se sobre eles
significa clarificar sem ambiguidade a respeito da orientação fundamental do grupo
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
liderando Podemos, não apenas a respeito de questões de paz e guerra, mas também em
assuntos que se referem à reforma e um projeto constituinte que afete toda a Europa.
A coragem e seriedade com o que Tsipras desenvolveu todo o contexto de
tópicos, que são agora importantes para a construção de uma Europa fora da Troica, são
os mesmos que podem permitir-nos de continuar traçando um dispositivo “além da
OTAN”. Os movimentos e governos de uma nova esquerda sabem que têm de tomar
esses assuntos como centrais. Sem ambiguidades, consciente de que a mesma
conjuntura global pode agora contribuir para a sua solução. De fato, o que cidadãos do
mundo estão exigindo, neste ponto, é uma Europa democrática no conjunto de uma
nova realidade global, porque a Europa é vista como uma realidade que pode renovar a
tradição democrática em longo prazo, seguindo a trilha aberta por Syriza e Podemos,
como esperança por reforma e em mover-se para além do capitalismo.
Os movimentos europeus querem ser incluídos na iniciativa política continental
que o eixo Podemos-Syriza podem criar/estão criando no espaço europeu. Essa
iniciativa constitui particularmente um ponto de atração para as novas esquerdas e a
nova radicalidade democrática em formação no sul da UE. O ritmo tanto quanto o grau
de articulação deste processo vai depender do curso presente do governo da Syriza e do
sucesso eleitoral do Podemos. Nós todos podemos organizar uma ruptura constituinte
no espaço europeu.
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
fora da organização, o mesmo lema: “primeiro tomas o poder, e depois aplicas o teu
programa”.
A “autonomia do político” pode tornar-se uma teoria perniciosa se,
sobrevalorizando a instituição e a eficácia do poder estatal, negar a gênese e a
legitimidade materiais do fundamento do político. A representação que separa os
representantes dos representados, a “vontade geral” (chame-a “povo” ou “unidade
popular”), que cria um fundamento místico e inapelável dos representantes, nada disso é
o que interessa aos movimentos. Não. O importante passa por (re)criar um fluxo de
movimento político, um sistema aberto de governança desde baixo que mantenha
unidos — mediante o debate constituinte constante e uma contínua extensão desse
debate aos cidadãos — movimento e governo. É possível construir essa ponte, esse
conjunto — se todos se rendem à necessidade que se chama “ser maioria”. Este é o
empoderamento decisivo.
de uma relação de forças que lhes era favorável. Razão pela qual os estados se
endividaram em troca de paz social.
Agora, na crise, a casta patronal e política europeia pede, exige e impõe aos
trabalhadores o ressarcimento desse gasto, chamando-o “dívida”. E assim a dominação
se reapresenta sob a figura da dívida. Na crise, se repetem as origens do capitalismo. A
origem remete à acumulação desenfreada e ao monopólio da distribuição social da
riqueza e da moeda. Dessa maneira, nascem a sociedade e o poder da burguesia, que
constitucionalizam seus interesses e baseiam a sua própria identidade na exploração de
todo esse trabalho social. Assim, pois, o problema não é exatamente a dívida, senão
como ela se formou; não a sua quantidade, mas seu aspecto qualitativo, o modo como
determina a vida de todos.
Com a mudança das relações de força, a dívida se converteu numa condenação,
não para quem a contraiu (i.e., os patrões, com o objetivo de manter a paz social), senão
dos trabalhadores, que de boa fé haviam aderido a essa paz que renovava a sua
subordinação. Há que se romper essa relação de subordinação. Podemos — assim nos
parece — tem a possibilidade de começar a acabar com esse escândalo na Espanha e na
Europa. Por quê? Porque a Espanha é a quarta economia da Europa, porque sua
consistência demográfica e econômica a coloca a salvo de chantagens e manobras
excludentes, porque uma iniciativa democrática que parta de Espanha — com a revisão
da dívida pública, a compensação e novo impulso de crescimento na forma de créditos e
as ajudas estruturais — não poderá ser tratada com arrogância pela emperiquetada
diplomacia de Bruxelas, ao contrário, poderá somar-se ao interesse e ao despertar
político e constituinte de outras forças democráticas na Europa.
Agora, certo, uma política econômica de renovação somente pode partir da
eliminação da injustiça fiscal. Exige, por conseguinte, a imposição de critérios
fortemente progressivos em matéria de impostos, um controle lúcido das atividades
bancárias, uma taxa sobre as transações financeiras — tudo isso vinculado a uma
política de destruição de paraísos fiscais e rentismo financeiro. A nossa é uma firme
chamada ao intervencionismo fiscal. Sabemos muito bem até que ponto o
intervencionismo poderia resultar contraproducente e restabelecer as piores versões do
jacobinismo, quando se juntam ao sacrossanto sentido de justiça outras tantas doses de
sectarismo plebeu: mas no que tange à questão fiscal, isso hoje é necessário. Porém,
além de seus excessos, se trata neste caso de uma representação do sentimento de
igualdade que a democracia produz, bem como de um aspecto fundamental para uma
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
imigrantes, mulheres e homens: se trata de um povo explorado pelo capital global, uma
multidão social de quem se extrai difusamente o mais-valor.
O capital financeiro extrai valor da sociedade em sua totalidade, em todos os
tempos e espaços. Diante disso, o sujeito que atua nessas condições chega ao
conhecimento da violência e das dimensões da dominação capitalista, assim como da
forma que ela se exerce, para desprender-se da austeridade e eventualmente da miséria,
para subtrair-se aos mecanismos de exploração. O que combatemos (e aqui não se trata
de desdobrar questões ideológicas) não é apenas o egoísmo e a avidez de dinheiro e
poder, nem tampouco o individualismo moral que trazem consigo: é mais do que isso,
se não levarmos o discurso de radicalidade democrática ao plano da produção
econômica e da vida de todos os dias, nos arriscamos a deixar a nossa ação
completamente insuficiente. Então, a nossa tarefa consiste em mover-se para construir,
no comum, formas de redistribuição de riqueza e desenvolver um trabalho de libertação
da produção social.
O Welfare ou políticas de bem estar são apenas o primeiro terreno da batalha. A
renda básica garantida e digna para viver a nossa própria viva é um elemento
fundamental para um novo welfare, de modo a exercermos a nossa própria cidadania
como iguais e livres, a salvo de chantagens e privilégios, das empresas e da corrupção
das máfias de toda espécie. A renda básica deve ser desenvolvida, portanto, como um
dos elementos principais do programa econômico. A partir de uma renda básica
garantida e digna para todos, podem se desenvolver políticas de gestão e empresariado
cooperativo, para abrir-se a novos “serviços humanos para o ser humano”: hospitais,
escolas, moradias, transformação ecológica da produção, dos transportes e das cidades,
produções baseadas no software e hardware livres (o que os companheiros equatorianos
e espanhóis chamaram de FLOK Society). Algo fundamentalmente distinto do
neoextrativismo em sua versão espanhola, que consiste em devastação ecológica e
social de territórios submetidos a economias de exploração e precariedade desenfreadas.
Sim, mas também — apenas para sublinhar momentos com uma importância
excepcional — medidas imediatas que tirem os pobres da miséria e uma grande política
que propicie às mulheres sentirem-se finalmente cidadãs inter pares, que contribua para
que as mulheres se emancipem não apenas do patriarcado e da família, mas ao mesmo
tempo lhes dê respaldo para as peripécias de sua libertação; que conceda aos cidadãos
migrantes a plena cidadania do trabalho que lhes corresponde in primis, porque a
ninguém escapa que os imigrantes têm sido, nos últimos vinte anos, a base humana do
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
muitos países europeus já surgiram terceiras vias, que se apresentaram no campo das
eleições, e que desbarataram o esquema dual. Sobre isso, seria preciso perguntar se a
nova estrutura constitucional da União Europeia não começou a construir-se,
precisamente, a partir da previsão de uma crise no modelo constitucional pós-guerra —
e, de todo modo, a partir da percepção de uma incontinência já presente no modelo
democrático clássico. Aquela estrutura havia se apresentado como garantia para a
manutenção de um modelo capitalista de desenvolvimento, frente à decadência de suas
formas nacionais estatais. De outro lado, tanto a esquerda quanto a direita já tinham
deslizado em direção ao “centro”, construindo formas artificiais de representação e
governo, destinadas a um equilíbrio que deveria garantir a estabilidade para o futuro,
eliminando assim qualquer dialética entre reforma e transformação.
Em consequência, hoje a situação está mudando rápido. A crise grega começa a
colocar a nu que aquela homogeneidade do poder de mando (composta de “direita” e
“esquerda”) exerce uma função sempre num sentido conservador e, não poucas vezes,
manifestamente reacionária. Por um lado, a direita considera a Europa um butim
próprio. O modo em que atuaram e continuam atuando as direitas até agora majoritárias
na Europa mostra que a querem como seu produto exclusivo — uma verdadeira
reificação. Por outro lado, se observarmos os governos socialistas, enrolados no bloco
centrista que lhes permite administrar interesses parciais, se vê que eles renunciaram a
qualquer esperança de renovação. Sirvam de amostra para o fenômeno o penoso
haraquiri do ex-premiê Zapatero, do PSOE, em maio de 2010 e a autodestruição do
partido socialista grego, o PASOK.
A União Europeia, tal e qual se formou e como se apresenta hoje, governada por
um “centro” político, — capaz de levar a cabo ações extremistas e devastadoras em
defesa dos equilíbrios capitalistas — está submetida à chantagem e talvez destinada a
despedaçar-se. Quanto mais as multidões europeias compreendem que, num mundo
globalizado, somente uma organização continental pode permitir a satisfação das
necessidades vitais das populações, menos as classes políticas europeias estão dispostas
a aceder a uma União política — a menos que seja criada para satisfazer direta e
exclusivamente os seus próprios interesses.
Precisamos nos afastar dessa descida e voltar a colocar em jogo a democracia
para a construção do projeto europeu. Isso é necessário para que a Grécia sobreviva,
para que as forças democráticas espanholas se afirmem e possam ganhar, e para que
todos os europeus se reconheçam na Europa e saiam de uma crise e uma austeridade que
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri
não só já tornam difícil a subsistência, como também nos impedem de ser livres. Eles
podem jogar em ambos os terrenos: no da Europa existente e no de velhos
nacionalismos agressivos. Nós, em contrapartida, não.
Resulta particularmente doloroso o fato que, para falar a favor da Europa, para
trabalhar na fundação de um poder constituinte que imponha seu caráter social e sua
caracterização democrática com uma perspectiva federalista, hoje seja preciso avançar a
polêmica contra boa parte das esquerdas na Europa. Está claro que elas venderam o seu
direito de primogenitura. Já em 2005, momento do referendo sobre a Constituição
europeia, a cegueira das esquerdas europeias se colocou claramente. O fato é que os
socialistas europeus não veem outra possibilidade de fazer política e gerir o poder que
não seja no âmbito do estado nação. Essa cegueira sectária nacionalista renasceu (depois
de um longo eclipse) e chegou ao auge com a atual crise europeia. Em vez de aliar-se
aos movimentos de luta para mudar a realidade da União Europeia, as esquerdas
europeias têm se declarado, com frequência, não somente a favor das políticas de
austeridade, mas também contra a própria Europa (como, por exemplo, está
acontecendo agora na França). As esquerdas estão movidas por um egoísmo
corporativo, que está despojando a palavra “esquerda” do pouco esplendor que ainda
sobrava. Tanto é assim que esse egoísmo se confunde facilmente com o ódio das forças
fascistas contra a União Europeia. Dizem as esquerdas oficiais que a Europa não pode
funcionar porque, desde o começo, a um governo político no nascente processo,
preferiram-se as burocracias jurídicas: e isso está certo. Dizem também que, numa
segunda fase, tentaram-se compassar politicamente economias que tinham um ritmo
distinto e às vezes contraditório; porém, sem introduzir, naquele momento, motivos
eficazes de unidade programática nos planos fiscal e cultural: e isso está certo. Logo,
debaixo dos fogos da crise, não poderiam deixar de fracassar todos os mecanismos de
compensação, o que está conduzindo a União e o Euro — precisamente na ausência de
qualquer contraforça política — à beira da dissolução, em desdém ante a grande maioria
das populações do sul da Europa: e isso está certo.
Mas por que os partidos de esquerda querem nos dar lições quando foi
precisamente a visão exclusivamente estatal deles, isto é, o corporativismo dos
sindicatos e a traição a qualquer esperança internacionalista, o que nos levou a esta
situação em primeiro lugar? A ninguém escapa o fato que a unidade política da Europa
constitui o elemento fundamental de seu êxito econômico e civil, dentro de um marco
global. Trata-se de uma política cuja promoção corresponderia à esquerda — mas esta
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA
Toni Negri, filósofo, é autor de muitos livros e artigos sobre as lutas nas últimas cinco
décadas, e participa da rede EuroNômade (Itália).
Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua1
E isto: cada sobrevivente e cada medo fundava uma hipótese de cidade, uma
metrópole transitória e frágil, mas todas o são.
Gonçalo Tavares
1
Artigo para a disciplina de Antropologia Visual e da Imagem. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
2
Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=OjW2Fls0qAM
61
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
anos que nos separam das aventuras de Andre Citroen. No entanto, uma estranha
conexão parece persistir nas campanhas publicitárias da Citroen. Uma conexão que nos
remete as savanas africanas e seu espaço liso. Uma conexão que nos leva aos bancos de
areia de um deserto em preto e branco, nos povoando com paisagens fantasmagóricas.
Uma conexão com a imagem do deserto.
Porém, no incipiente século 21 a “cruzada” é outra. Não mais na África
misteriosa e profunda nos arrabaldes de culturas estranhas, mas no interior do mais
familiar e próximo. A cruzada se voltou para a cidade. No interior da metrópole mora a
nova maquinaria expedicionária. A colonização dos afetos e lugares, a colonização dos
imaginários, o mito do progresso continua apostar no espectral. Um espectro ronda o
mundo na atualidade, o espectro da cidade vazia.
Signatária dessa feérica tendência, a campanha publicitária do Citroen C4
lounge produzida no contexto da copa do mundo do Brasil/2014, teve como cenário as
ruas de Porto Alegre/RS3. Mais precisamente, as ruas desertas de Porto Alegre. No
comercial de TV um homem observa um conjunto de prédios. Papéis picados verde
amarelos caem aos milhares das janelas decoradas. Pessoas correm enroladas em
bandeiras com as cores nacionais. Ruas vazias deixam antever um clima de espera e
euforia. O jogo está para começar. Ao lado da paixão folclórica do brasileiro pelo
futebol, outra paixão vai sendo sugerida pela narrativa: a paixão de dirigir. Junto ao jogo
da seleção brasileira, o jogo da máquina e do homem está prestes a acontecer. O carro
aparece em cena exatamente quando as ruas estão desabitadas. Quando não há mais
obstáculos humanos e de outras máquinas e o fluxo da paixão homem-carro-cidade pode
desenvolver toda a sua utopia espacial.
É dada a partida.
As ruas da Porto Alegre real, conturbada, engarrafada, densa, dão lugar às ruas
de uma cidade que demoramos a reconhecer. Uma paisagem urbana que mais parece
saída das fotografias de Atget4, na Paris do começo do século passado. Enlevada pelo
imaginário de uma cidade privativa, longe das disputas territoriais cotidianas, o
personagem-motorista trafega livremente, deslizando o automóvel por uma cidade
somente sua. Uma nova mitologia do dia a dia é construída sob os auspícios de uma
cidade abandonada.
3
Disponível para visualização no site: https://www.youtube.com/watch?v=oD0-MIjUHHk
4
Eugène Atget (1857 – 1927), Fotógrafo Francês conhecido por suas imagens de cidades vazias.
Márcio Tascheto da Silva
Segundo Fuão (Fuão, 2002), esse esvaziamento do espaço público teria sido
antecipado enquanto tendência pelas reflexões propostas pelo filósofo Flusser (Flusser,
2011), no ensaio intitulado “Phanton City”.
(...) escrito para uma exposição fotográfica que percorreu algumas cidades da
Europa nos anos de 85 e 86. A exposição mostrava fotografias de vários
autores, cujo tema era a cidade sem pessoas. Este material constitui um
desdobramento da visão premonitória do papel da fotografia como imagem
técnica, e da exclusão do homem das atividades públicas da cidade. (...)
retirar a figura humana da fotografia da arquitetura é retirar a alma da cidade
e da própria arquitetura, é ver nelas somente a beleza e o caráter objetivo.
(Fuão, 2002; 1)
5
Em seu recente livro “Signos, Máquinas, Subjetividade”, lançado pela editora Sesc/N-1, 2014.
63
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
Figura 1: O Endividado
65
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
Figura 2: O Mediatizado
Só, correndo de um lado para outro para dar conta de suas dívidas, com o seu
tempo seqüestrado pela necessidade de trabalhar cada vez mais devido à perda de
direitos, aos arrochos salariais e declínio do seu poder de consumo, o sujeito endividado
torna-se bastante suscetível de uma invasão informativa, mediatizando seus afetos.
Antigamente, muitas vezes se tinha a impressão de que, em relação à mídia, a
ação política era reprimida principalmente pelo fato de que as pessoas não
tinham acesso suficiente às informações ou aos meios de comunicar e
expressar suas próprias visões. De fato, os governos repressivos atuais tentam
limitar o acesso a sites, fecham blogs e páginas do facebook, atacam
jornalistas e bloqueiam acesso às informações. Reagir a essa repressão é
certamente uma batalha importante, e muitas vezes testemunhamos como as
redes midiáticas e o acesso a elas rompem afinal e inevitavelmente todas
Márcio Tascheto da Silva
Figura 3: O Securitizado
6
Embora a análise seja situada em São Paulo, os argumentos de Caldeira podem ser relacionados com
características comuns a várias metrópoles.
67
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
7
Argumento defendido na obra mais famosa de Thomas Hobbes “Leviatã”,de 1651.
Márcio Tascheto da Silva
Figura 4: O Representado
69
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
sobre a cidade que separam o indivíduo do contato com o outro. Que o separam da vida
pública e de toda a singularidade que a rua é capaz de proporcionar.
Quando a rua é marcada pela ausência da figura humana, quando a rua é
destituída de sua potência em proporcionar encontros, que tipo de desdobramento
político acarreta? A aleatoriedade, o acaso, o encontro, a diversidade e a possibilidade
da diferença se vêem tolhidas.
Fora do mercado
8
Fruto de um exercício proposto pelas professoras Cornélia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha na
disciplina de Etnografia Visual e da Imagem, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UFRGS. Disciplina ofertada no segundo semestre de 2014.
Márcio Tascheto da Silva
9
Na oportunidade, cursávamos a disciplina de Antropologia da Imagem e Visual.
71
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
O engarrafamento de Cortázar
10
Reproduzido no vídeo intitulado “Fora do Mercado”. O vídeo resulta de exercícios com etnografia de
rua proposto na disciplina de Antropologia Visual e da Imagem PPGAS/UFRGS.
73
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
“por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia
nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para
frente”(Cortázar, 2011; 35).
Olhando exclusivamente para frente os motoristas de Cortázar dão continuidade
a uma trajetória sem a presença do outro. Os laços de pertencimento se dissolvem a
medida que a rotação do motor se intensifica. O que o engarrafamento produziu em
possibilidade de encontros se dissipa junto à nostalgia que aflige os motoristas a cada
carro que desaparece para sempre de seu convívio.
O fantástico engarrafamento de Cortázar é uma inflexão de tudo que tentamos
argumentar até agora. Uma criativa forma de confrontar o motorista Citroen e suas ruas
fantasmas com o vigor de um experimento de “olhar para o lado” que o exercício com a
vivência com etnografia de e na rua proporciona. Endividado, mediatizado, securitizado
e representado, o homem-motorista contemporâneo é uma inflexão de uma encruzilhada
de medos.
Sintoma e produção de uma prática urbana despotencializada a marcha da
publicidade da citroen é de outra natureza da democracia. Ir para a rua mesmo sem a
parada obrigatória de um engarrafamento aos moldes de Cortázar, na condição do
exercício etnográfico e tudo que é capaz de fazer pensar, tornou-se o corolário desse
experimento e a razão de continuidade de uma pesquisa que permanece sem resposta a
várias perguntas realizadas nesse texto. Sem dúvida, ainda sim, com o mesmo gosto de
perguntar o mesmo, só que em lugar diferente.
Referências
CALVINO, Ítalo. Cidades Invisíveis. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 1990.
Márcio Tascheto da Silva
FLUSSER, Vilém. Filosofia da Caixa Preta. São Paulo: Ed. Annablume, 2011.
FONSECA, Rubem. Romance Negro. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2006.
LUHMANN, Niklas. A Realidade dos Meios de Comunicação. São Paulo: Ed. Paulus,
2005.
RIO, João do. A Alma Encantadora das Ruas. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
ROCHA, Ana Luiza da e ECKERT, Cornélia. Etnografia de Rua. Porto Alegre: Ed.
UFRGS, 2013.
RUFFATO, Luiz. Eles Eram Muitos Cavalos. São Paulo: Ed. Record, 2011.
SARLO, Beatriz. La Ciudad Vista. Buenos Ayres: Ed. Siglo Veitiuno, 2010.
SONTAG, Susan. Sobre Fotografia. São Paulo: Cia das Letras, 2013.
75
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA
TAVARES, Gonçalo. A Máquina de Joseph Walser. São Paulo: Cia das Letras, 2011.
VERÍSSIMO, Érico. Noite. São Paulo: Ed. Cia das Letras, 2009.
Arte, mídia e cultura
77
O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini.
1
“Eu viajei com Deus e o diabo, veio a queda de Jango, voltei com tudo mudado e as pessoas dispersas,
desmoralizadas, tristes”, ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,
p. 35.
2
ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naif, 2006. P. 256.
3
Resume Ismail Xavier: “em seus filmes, o caráter heteróclito da enunciação no cine vem em primeiro
plano, porque soube inventar formas originais para articular faixas de som e imagem, ora incorporando
traços da cultura popular, ora do teatro moderno ou da tradição literária, sem eludir seu diálogo intenso
com o cinema de autor europeu que lhe era contemporâneo, o mesmo vale para o western dos anos 50 (...)
seu cinema é o ponto de interseção dos conflitos entre vários canais de expressão, conflitos que os
cineastas de sua geração tornaram evidentes ao questionar o imperativo de que uma única voz deve
orquestrar todo um filme”, XAVIER, Ismail. Sertão mar. Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac
Naif, 2007, p. 10.
4
ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo, op.cit. p. 274.
5
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 248.
Nicolás Fernández Muriano
6
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 187.
7
BAZIN, André. Qué es el cine? Madrid: Rialp, 2008.
8
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 367 e ss.
79
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
“Nosso Senhor Buñuel”, Glauber lhe confere, para mais além de qualquer
periodização, a dignidade eclesiástica de um patriarca, sustentando a cruz desde a pré-
história do cinema, enquanto os velhos autores modernos ficavam pra trás: “Nosso
Senhor Buñuel é um monge rebelde, surrealista, não tem nada a ver com a História do
Cinema, o seu caminho é outro, artista bárbaro.”9 Antonioni é apenas um satélite
artificial e Godard, um guerrilheiro que dinamita solitariamente a história do cinema.
Pasolini, em vez disso, aparece articulado sem um senão sequer com o exército de
cineastas subdesenvolvidos do futuro. A cruz de Nosso Senhor e a esperança que
projeta o Apóstolo Profano constituem, em bloco, a filiação latina que excede o
momento genético de Rossellini: “autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico”.
Mas a tribo ou o exército do mundo subdesenvolvido ainda está por vir, somente aí,
num futuro possível, reside a identidade tribal de O Evangelho, que subtrai a moral de
Pasolini da sua identificação natural com “os místicos financiados pela Democracia
Cristã, assim como Rossellini, Antonioni e Fellini”, dada a sua condição revolucionária
que tampouco deriva dos “velhos comunistas de sistema, como Visconti ou De Sica”,
senão, sim, do Cristo anárquico de Buñuel10. A operação crítica complementar consiste
em subtrair a consciência do cinema novo de sua filiação natural na história do cinema
brasileiro. Um ano antes de Deus e o diabo, Glauber editava a Revista crítica do cinema
brasileiro (1963), em que “demonstra” a inexistência de uma cinematografia clássica
nacional que possibilite no Brasil um “cinema moderno”, no sentido de Bazin. O ensaio
polêmico produz um tipo de bloqueio histórico antes de chegar à época contemporânea.
O capítulo seguinte, “Origens de um cinema novo”, comenta uma série de filmes
recentes que, apesar das limitações técnicas, parecem desmontar o marco histórico do
cinema nacional: Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Garrincha ou a alegria do povo
(Andrade, 1962), Vidas secas (Pereira dos Santos, 1963), entre outros, não têm
precedentes no cinema brasileiro; antes disso, eles próprios constituem as “origens” do
cinema por vir, na medida em que prolongam, para além de si próprios, uma nova
tradição nacional: “mais que o filme em si, interessa saber que o país em progresso terá
no cinema a sua expressão por excelência”. Deste modo, Glauber reformula a pergunta
pelo “cinema novo”:
Garrincha é uma definição do cinema novo? (...) Não é uma definição do
cinema novo, porque este cinema não se definirá previamente: a sua
existência é a prática dos anos vindouros, na busca inquieta e na criação
9
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 311.
10
Ibid., p. 256-257.
Nicolás Fernández Muriano
11
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naif, 2003 (1963). P. 151.
12
“O cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil:
onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e enfrentar os padrões hipócritas e policiais da
censura, ali haverá um gérmen do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou qualquer
procedência... ali haverá um gérmen do cinema novo. A definição é esta.” ROCHA, Glauber. Revolução
do cinema novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004. p. 67.
13
O século do cinema. op cit. p. 328.
81
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
Uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como
tampouco diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor
que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, não é um
amor de complacência ou de contemplação, mas sim um amor de ação e
transformação.14
A mimese sagrada
14
Revolução do cinema novo. p. 66.
15
O século do cinema. op. cit. 280.
16
DANEY, Serge. Cine, arte do presente. Buenos Aires: Santiago Arcos ed., 2004. p. 100.
17
O século do cinema. op. cit. 285.
Nicolás Fernández Muriano
18
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herético. Córdoba: Brujas ed., 2005. p. 249.
19
O século do cinema. op. cit. p. 281.
20
A Estética da fome começa assim: “Enquanto a América Latina lamenta as suas misérias gerais, o
interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria... como dado formal de seu campo de interesse...
Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam
na medida em que satisfazem a sua nostalgia de primitivismo.” Revolução do Cinema Novo, p. 63.
83
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
define como tema, um objeto de que se fala. Ela se instala na própria economia do dizer,
na própria textura das obras.”21
A Estética da fome não é um testemunho “digestivo” sobre a vida dos
esfomeados, antes disso, ela expressa uma “nova sensibilidade” além de qualquer
limitação temática: “é uma questão moral que repercutirá nos filmes, na hora de filmar
um homem ou uma casa, num detalhe a observar, na Filosofia.”22 A partir disso, cabem
distinguir dois níveis na composição de um filme, segundo o texto de Glauber: um que
corresponde ao plano de conteúdos (homem, casa, filosofia etc), e o outro ao plano da
expressão (estética da fome, cinema digestivo etc). Noutras palavras, a singularidade da
estética da fome deverá rastrear-se ali onde Pasolini finca a subjetividade do autor:
“debaixo deste filme transcorre outro– é o que o autor teria incluído, sem o pretexto da
mimese visiva de seu protagonista: um filme total e livremente de caráter expressivo-
expressionista.”23 A analogia que Pasolini faz entre o “cinema de poesia” e o “discurso
indireto livre” do romance contemporâneo, que não deixa de ser um modo de prosa
narrativa, longe de introduzir um equívoco na sua distinção inicial, facilita a
esquematização da tese principal do ensaio: se o “discurso indireto” caracteriza a voz de
um narrador em terceira pessoa e o “discurso direto” equivale a uma citação direta da
voz do personagem, se chama “indireto livre” o discurso composto de maneira
indiscernível entre os dois níveis: “consiste simplesmente na imersão do autor no
mundo de seu personagem e, portanto, a adoção, por parte do autor, não somente da
psicologia de seu personagem, como também de sua língua”, diz Pasolini.24 De maneira
análoga, se, no cine de prosa, as tomadas objetivas apresentam uma “visada indireta” ou
exterior ao conjunto narrado e as tomadas subjetivas equivalem a uma “visada direta”
desde os olhos do personagem, o cinema de poesia constitui uma “subjetividade indireta
livre”, esta que consiste numa “mimese visiva” de autor e personagem. Por exemplo:
Antonioni libertou o próprio momento mais real: pôde finalmente representar
o mundo visto por seus olhos, porque substituiu, em bloco, a visão de mundo
de uma enferma, pela sua própria visão delirante de esteticismo: substituição
em bloco justificada pela possível analogia de ambas as visões.25
21
XAVIER, Ismail. op. cit. p. 13.
22
A revolução do cinema novo. p. 67.
23
PASOLINI, op. cit. p. 225.
24
Op. cit, p. 244.
25
Op. cit., p. 251.
Nicolás Fernández Muriano
26
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 268.
27
“Rossellini se transformaria no autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico... é um místico antes
do que neorrealista... é a voz que se projeta contra a destruição do homem pelo homem... a sua câmera às
vezes gira como louca, quando o homem se encontra perdido... é uma paisagem mais além do real, sem
transigir com o real. Assim é possível definir o estilo de Rossellini como Mise-en-scène da Mística, desde
que o seu realismo é um “Por quê?”, lúcida e livre interrogação poética... Jean-Luc Godard é “Filho e
Espírito Santo do Pai”, enquanto Pasolini se faz Apóstolo Profano”, op. cit. p. 209 e ss.
28
“Trata-se do Cogito: um sujeito empírico não pode nascer no mundo sem se refletir ao mesmo tempo
num sujeito transcendental que o pensa, e no qual ele se pensa. E o Cogito da arte: não há sujeito que atue
sem outro que o veja atuar, e que o capte como atuado, tomando para si a liberdade de que o desapossa.
Daqui existem dois eus diferentes, um dos que, consciente de sua liberdade, se erige em espectador
independente de uma cena que o outro representaria em forma maquinal. Mas este desdobramento não
chega nunca ao fim. É melhor do que isso uma oscilação da pessoa entre dois pontos de vista sobre si
própria, um ir e vir do espírito, um estar-com.” DELEUZE, Gilles. La imagem-movimiento. Buenos
Aires: Paidós, 2005. p. 112.
29
Op. cit.
85
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
30
“como na literatura burguesa, onde “o indireto livre” é um pretexto: o autor se constrói um
personagem... para expressar a sua própria e particular interpretação do mundo”, PASOLINI, op. cit. p.
245 e ss.
31
“Portanto, se o cineasta se identifica com o personagem, e através dele narra os fatos ou representa o
mundo, não pode valer-se desse formidável instrumento diferenciador natural que é a língua. Sua
operação não pode ser linguística, senão estilística”, PASOLINI, loc. cit.
32
Ibid. p. 248.
33
Conforme o nosso texto “Deleuze lector de Pasolini. Acerca del estilo indireto livre en el cine”, na
revista Imagofagia, n.º 9, 2014. www.asaeca.org/imagofagia.
34
PASOLINI, op. cit. p. 254.
Nicolás Fernández Muriano
35
Ibid. p. 249.
36
Revolução do cinema novo, p. 128.
37
“O cinema do Terceiro Mundo não deve ter medo de ser primitivo. Será naif se insiste em imitar a
cultura dominadora. Também será naif se fizer-se patrioteiro. Deve ser antropofágico, fazer de maneira
que o povo colonizado pela estética comercial (Hollywood), pela estética populista/demagógica
(Moscou), pela estética burguesa/artística (Europa) possa ver e compreender a estética revolucionária
popular, que é o único objetivo a justificar a criação tricontinental. Mas, também, é necessário criar essa
estética.”, op.cit., p. 237.
38
Op. cit., p. 65.
39
Ibid, p. 250.
87
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
40
ROCHA, Glauber. O século do cinema, p. 256.
41
Revisão crítica..., op. cit., p. 36.
42
Revolução do cinema novo, op. cit. p. 104.
Nicolás Fernández Muriano
como um cu”, como costumava dizer. Rocha, desde antes de partir à Europa, milita por
uma definição positiva dos enquadramentos bárbaros, tomando como uma expressão de
forças que não se possam estabilizar numa sequência contínua, que projete no plano da
consciência tomada pelo enquadramento. É um dos mandamentos de Nosso Senhor:
“quando tudo está iluminado e o enquadramento composto, Luis se aproxima, dá um
empurrão na câmera e manda rodar”.43 A extensão dos planos está condicionada pela
irrupção de forças que exigem a repetição do momento genético, quer dizer, a
disposição instantânea da força que impõe ou sustenta um ponto de vista. A “operação
sagrada” da América Latina não se pode consolidar sobre nenhuma perspectiva moral
que justifique a duração correlativa dos dois sujeitos num plano indireto livre:
Que linguagem original usar, uma vez rechaçada a linguagem da imitação?
(...) O cinema, inserido no processo cultural, deverá ser em última instância a
linguagem de uma “civilização”. Mas qual civilização? Terra em transe, o
Brasil é um país indianista / ufanista, romântico / abolicionista, simbólico /
naturalista, realista / parnasiano, republicano / positivista, anarco /
antropofágico, nacional / popular / reformista, concretista / subdesenvolvido,
revolucionário / conformista, tropical / estruturalista etc etc. A informação
das oscilações fecundas de nossa cultura de superestrutura (porque falamos
de uma arte produzida por elites, muito diferente da “arte popular produzida
pelo povo”), tampouco basta para saber quem somos. Quem somos? Qual
cinema é o nosso?44
89
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
46
Uma das características principais do cinema moderno, segundo Deleuze: “Precisamente porque o que
sucede a eles não lhes pertence, não lhes concerne mais do que pela metade, eles sabem descolar do
acontecimento a parte irredutível ao que acontece”, La imagem-tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2005. p.
35.
47
O século do cinema, op. cit.
Nicolás Fernández Muriano
48
Op. cit.
49
“O sortilégio bloqueia as portas da igreja. Os padres paralisados, os fiéis misteriosamente detidos. O
povo explode nas praças, a cavalaria dispara. Enquanto as massas lutam contra as forças fascistas, os
signos soam. Um bando de carneiros, mansos e servis, marcha na direção dos templos. Esta, a sequência
final de O anjo exterminador, que significa? Sugestão de que a igreja e o fascismo, principalmente nos
países latinos, andam sempre de mãos dadas? Saída que se abre para quem joga cartas com o sexo
(Viridiana), mostrando que a estrada mais consequente é a que leva às praças e não aos templos? O
anarquismo do velho espanhol estaria em crise? O homem livre de sua alienação (carneiros), precisa
disciplinar a liberdade e a violência para fins políticos?, op. cit., p. 185.
50
Op. cit.
51
Revolução do cinema novo, p. 237.
91
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
52
“Frente a sua multidão de esfomeados (como o subproletariado que seguia a Cristo, colonizado pelo
Império Romano), Buñuel preparou, na história do pensamento cinematográfico moderno, o caminho para
o novo Cristo de Pasolini. Buñuel pode ser considerado como anarquista de esquerda, é o demolidor dos
valores vigentes do mundo ocidental cristão (principalmente do submundo latino): não propõe uma nova
ordem, mas não aceita a ordem vigente.” O século do cinema, op. cit.
53
Op. cit., p. 189.
Nicolás Fernández Muriano
54
Op. cit.
55
Revolução do cinema novo, op. cit. p. 250.
56
Em caerta do mesmo ano, diz: “as velhas interpretações econômicas, sociológicas, antropológicas,
pouco valem frente ao desafio tecnológico e místico que o país nos impõe.” Cartas ao mundo, op. cit., p.
411.
93
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome que pode ser sentida não pode ser
compreendida”. Este raquitismo filosófico, sem embargo, tem o seu momento positivo:
“a fome não é somente uma realidade alarmante, mas sim o nervo positivo da América
Latina”. O que pode ser sentido é uma possibilidade de expressão. A violência de
Buñuel (que desconfigura as forças articuladas narrativamente), que intensifica Pasolini
(neutralizando a codificação dramática do que pode ser sentido) e Rocha (sobre-
expondo a película à luz mais além dos umbrais da fotogenia) desloca a continuidade
orgânica de seu objeto, assim desativando os signos da pobreza que costuram o nervo
expressivo à realidade: “nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico,
mas de um esforço titântico e autodevastador no sentido de superar a nossa
impotência... aqui reside a trágica originalidade do cinema novo”.57 A Estética do sonho
(1971) diagrama a curva genealógica que conduz desde a neutralização dramática do
“nervo expressivo” até a tentativa positiva de uma moral revolucionária, que supera a
impotência filosófica, literalmente, como outra cabeça, que funciona diferente e a partir
de outros recursos em relação à “consciência possível”:
De modo que este pobre se converte em um animal de duas cabeças. Uma é
fatalista e submissa, a razão pelo que o explora como escravo. A outra é
naturalmente mística. A revolução como possessão do homem que lança a
sua vida rumo a uma ideia é o mais alto grau de misticismo.58
“passaram mil anos antes que o povo possa ouvir algum discurso”, disse Paulo Martins
no carnaval político Terra em transe (1966). Mas nos países subdesenvolvidos, “afirma
Pasolini”, o Novo Cristo é criado, antes ou depois, em um parto a fórceps, por uma
“cabeça mística”. A operação mística é lançada em altura mediante uma ruptura da
continuidade dramática ou “horizontal”, no sentido de Eisenstein. Mas o sonho, desde a
sua altura, não se pode limitar a elaborar reflexamente as penúrias da vigília, como
ensina Buñuel em Os esquecidos (1950), quando os seus miseráveis sonham de noite a
carne que não comem de dia e o incesto que não se atrevem sequer a desejar. A moral
anarquista decodifica a cabeça “fatalista e submissa” do pobre que pensa a pobreza
abaixo do que pode sentir. A moral revolucionária elabora o plano de conteúdos da
“cabeça mística”, que sustenta a consciência estilística do autor (“porta-voz”) sem
encarná-la dramaticamente nos personagens, a não ser pelo buraco expressivo que não
traduz nenhuma afeição programática ou psicologicamente justificada (como as risadas
dos pobres típicas de seus filmes, nunca motivadas psicológica ou dramaticamente: de
que riem os esquecidos de Pasolini?). Os dois filmes de Rocha contemporâneos à
Estética do sonho são exemplares: Cabeças cortadas (1970) desmembra a violência
absurda da realidade (que filma exteriores) do plano discursivo delirante (que filma
interiores), como uma cabeça é separada do corpo, vista por dentro, enclausurada numa
interioridade sem nervo, como um fluxo ideativo separado do espaço puramente
intensivo das forças disponíveis. O leão de sete cabeças (1971) introduz uma nova
disposição que transborda da tentativa pasoliniana, mediante um princípio de
metamorfose que põe em “transe” o porta-voz das tentativas. Por isso, cada palavra do
título se diz num idioma europeu distinto, lido por uma cabeça distinta de um Novo
Evangelho:
É toda uma reversão da fé cristã que Glauber levará a sua culminação num
filme como A idade da terra, com a multiplicação de Cristo, liberado do
cristianismo (o Cristo índio, o Cristo negro, o Cristo militar e o guerrilheiro),
um Cristo investido de forças desestabilizadoras.60
O Cristo Édipo
60
Cartas ao mundo, p. 31.
95
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
escreve mais e filma menos.61 O ano de 1969 marcou o ápice de seu reconhecimento
internacional. O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) obteve o prêmio
de melhor direção no festival de Cannes. Glauber ironiza. Tive que fazer um western de
estruturas paralelas para ser distinguido na Europa enquanto um autor. O Maio Francês
tinha feito de Terra em transe uma espécie de ícone audiovisual, completando La
chinoise (Godard, 1967). Depois de Cabeças cortadas (1970) e O leão de sete cabeças
(1971), apesar disso, Glaub não consegue financiar nenhum outro projeto até 1975,
quando realiza Claro, em Roma, praticamente sem outros recursos além de uma câmera
na mão e o amor de Juliet Berto, que ele rouba da nouvelle vague, – como Rossellini
havia feito com a star Ingrid Bergman. É uma mimese visiva delirante e amorosa, sem
fio condutor técnico nem literário, a intervir performaticamente na arquitetura política
do velho mundo. A revista Nouvel Observateur critica o filme desapiedadamente.
Existem duas cartas do mesmo ano que vinculam o “ataque” da imprensa com Pasolini.
A primeira é remetida a seu crítico. Aqui o signo “Pasolini” é positivo:
Como pode você, tendo eu sido liberado, falar em narcisismo confuso e,
sobretudo, insuportável. Siclier, Le Monde, também: “...o desprezo do autor
pela língua burguesa, filho de Marx e Maldoror etc... insuportável”. Para
você eu não sou um filme perpetrado em Roma, para Siclier um imprecador –
como Pasolini e os condenados da terra.62
61
“A Itália é a maior indústria cinematográfica da Europa e concorrente de Holywood porque dispõe dos
melhores cineastas do mundo”, O século do cinema, p. 242.
62
Cartas ao mundo, op.cit. p. 546.
Nicolás Fernández Muriano
suas atrizes (Juliet Berto) e faz falar as suas novas cabeças (Carmelo Bene). Clarifica os
monumentos da mitologia política europeia, católica e burguesa, camada por camada,
operação complementar a que realiza Idade da Terra (1981) sobre a América Latina.
Isto define o segundo ato do “cinema novo” e é a razão do “profundo reacionarismo” da
crítica. 63
Pensemos na segunda carta, remetida a um colega brasileiro. Aqui o signo
Pasolini é negativo:
O último filme de PASO é o processo sobre um intelectual burguês
revolucionário que passou a sua vida explorando o cu do subproletariado e
acabou vítima de sua própria culpa, um carneiro morto. A crítica francesa
recebeu mal Claro no festival de Paris: disseram que o meu “desprezo pela
linguagem burguesa me conduzia para além do suportável”... e ainda me
chamaram, de sacanagem, de filho de Marx com Lautréamont (...) PS =
continuo pobre! 1975, novembro.64
63
“Os críticos de Paris que proclamaram Rocha gênio irão massacrá-lo. Muito típico de profundo
reacionarismo. Siclier denunciou Imprecación e você Perpetración. Filme perpetrado em Roma?
Perpetrado? Juiz, polícia, tira, moralista etc. Não dependo mais de seu diário para assegurar o sucesso de
meus filmes. Claro é o meu primeiro filme. O primeiro filme da nouvelle vague... você não sabe de
nada... o cinema novo saiu do subsolo... bem... falaremos amanhã. op. cit.
64
Op. cit. p. 539.
65
Assim intitulava-se um texto que não chega a publicar em vida, nem está fechado: “entre a cidade e o
campo, o Édipo cristão... professor, escritor, kyneazta, um intelectual profyzyonale, mas o escândalo não
é ‘a arte de Pazolyny’, o bonito é a imoralidade da vyrtude kriztyana pela sexualidade absoluta, o
sofrimento e o prazer, a extasorgiástya (cruz do Pai), falo sagrado de um pai que mata... o encurramento,
(inkukazione) de Kryzto por Deus, de Édipo por Layo, de Pier Paolo por alguns ragazzi di vita...
Krystedipo deve ser punido”, O Século do cinema, op. cit. p. 323.
97
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
66
O século do cinema, op. cit., p. 282.
67
A referência a El Grillo del hogar está em EISENSTEIN, Sergei. “Dickens, Griffith e o filme de hoje”,
Teoria e técnica cinematográficas. Madrid: Rialp, 2002.
68
O Século do cinema, op. cit., p. 282.
Nicolás Fernández Muriano
certa vez da piedade de Rossellini, o Cristo Neorrealista que morre financiado pela
Democracia Cristã e volta a nascer da Cruz de Buñuel, o Cristo do Terceiro Mundo
traído pelo Cristo Romano e que, em última instância, morrerá no espelho de Édipo,
como uma configuração ritual da frustração sexual mais inveterada do ocidente. Esta
conclusão se atinge nos textos posteriores a Saló. Mas como Saló, Il fiore... opera na
periodização de Glauber uma espécie de efeito clarificador retrospectivo: “O Evangelho
é a integração do artista ao Vaticano Comunista”. Pasolini ocupa o centro da moral do
velho mundo desde 1964. Mas Il fiore... é todavia uma última tentativa de mascarar, sob
um véu esteticista, a virada do poeta da revolução em direção à “inkukazione” edípica,
que articula sobre o plano da produção a frustração das forças anticapitalistas que se
dispõem industrialmente.69 Os efeitos ou pelo menos os ecos da industrialização do
cinema na Itália justificam histórica e geracionalmente a perversão pasoliniana:
Pasolini foi aquele que chamou o produto do milagre do Plano Marshal, na
Itália. Depois da geração de fome – os neorrealistas – o cinema italiano se
converteu numa indústria. O momento de Pasolini representa a passagem da
fome à gula e penso que o escândalo Pasolini era um “mais-valor”, um luxo
para essa Itália que queria ser desenvolvida desde o ponto de vista industrial
e moderno, desde o ponto de vista ideológico, mas que em realidade era uma
Itália desagregada, arcaica, selvagem, bárbara, anárquica. Contudo, a
selvageria, a barbárie, a anarquia pasoliniana eram dominadas pela disciplina
marxista, pelo misticismo católico, tornando-se uma barbárie maquiada.70
69
“Ele rechaçava a sociedade capitalista, mas a aceitava no sentido em que se converteu num profissional
da indústria editorial e cinematográfica. Ele passou do estatuto de cineasta marginal (realizando filmes
que não davam dinheiro) a cineasta que fazia filmes abertamente comerciais, como a Trilogia”, op. cit., p.
283.
70
Op. cit. p. 282.
99
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
O efeito retrospectivo provocado por Il fiore e por Saló está muito bem
detalhado em “O Cristo-Édipo”. A neutralização dramática do plano dos conteúdos é
tomada a partir de agora como signo geral da “perversão” maquiada, um rodeio
perverso de ponto de vista, que nada tem que ver com a disposição revolucionária das
forças:
Ele fala sempre de sexo, mas não nos excitanmos com os seus filmes. Os
personagens são frios, teóricos, a violência é programada, o sexo é sempre
“dobrado” pelo cérebro (é por isso que seus filmes são sempre dobrados), e
ele vai sempre na direção da tragédia, do sacrifício, da autopunição edipiana
e cristã.72
71
Op. cit. p. 284.
72
Op. cit. p. 284.
73
Op. cit. p. 283.
74
Op. cit. p. 285.
Nicolás Fernández Muriano
Glauber não somente é o único cineasta latino que colocou em cena o genocídio
latino-americano ao mesmo tempo em que ocorria, – e inclusive antes, quando somente
poderia ser exprimido por uma sensibilidade descarnada, sem figuras morais ou
políticas, quer dizer, sem justificações ou ilusões “liberacionistas”, – como também
elaborou positivamente nos transes de seus filmes das décadas de 1960 e 1970 as forças
fascistas da sensibilidade política de sua época, tocando o nervo expressivo mais
profundo de seus filmes: “este zero ideológico nos deixa limpos.”76 De maneira geral, a
expressão “o ritual de sangue me fascina” é a mais sincera expressão do amante do
cinema. O ritual erótico de Pasolini é um duplo complementar para o mesmo princípio
(“o ritual sexual me fascina”). Portanto, é um momento interno da reflexão do
“amateur”. Por outro lado, em 1973, o italiano reconhece antecipadamente a justeza da
crítica de Rocha:
Para um diretor como eu, que tivesse intuído que a cultura (em que se havia
formado) estava acabada, que já não representava nada, senão precisamente
(talvez) a realidade física, era consequência natural que a realidade física se
identificasse com a realidade física do mundo popular. O signo da realidade
corpórea é, com efeito, o corpo nu: é, de modo todavia mais sintético, o
sexo... se quiser continuar com filmes como O Decamerão eu já não poderia
fazê-los, porque já não encontraria na Itália – especialmente entre os jovens –
a realidade física (cujo estandarte é o sexo em sua glória) que é o conteúdo
75
Cartas ao mundo, op. cit., p. 29 e s.
76
Op. cit. p. 57.
101
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI
Pasolini vira na direção contrária e, com Salò, alcança o momento mais real de
seu estilo, seu verdadeiro personagem, uma vez que o ponto de vista já não se mimetiza
com a maquiagem dos oprimidos, senão que substitui em bloco a perspectiva dos
torturadores por sua própria visão autopunitiva num espaço de clausura:
Salò é o filme de Pasolini que prefiro, porque penso que é o melhor desde o
ponto de vista da forma: está bem enquadrado, bem montado, bem
representado, o filme se converte num corpo convincente, com uma violência
existencial, e não com a violência teórica de seus outros filmes. Porque em
Salò diz a verdade ao afirmar: “aqui está, sou pervertido, a perversão é o meu
77
PASOLINI, Pier Paolo. “Tetis” in Vittorio Boarini (ed.). Erotismo e destruição. Madrid:
Fundamentos, 1998. p. 99 e ss.
78
O século do cinema, op. cit., p. 286.
79
Cartas ao mundo, op. cit., p. 65.
Nicolás Fernández Muriano
personagem, meu herói ama aos carrascos como eu amo o meu assassino”, e
depois de seu filme ele morreu numa aventura de exploração do sexo
proletário.80
80
O Século do cinema, op. cit., p. 284.
81
DANEY, Serge, op. cit., p. 99 e s.
103
Benjamin e a percepção coletiva
Maurizio Lazzarato
1.
Antes de chegarmos às conclusões, queria repreender todas as temáticas tratadas
até agora e confrontá-las com o trabalho de Walter Benjamin, de modo particular com o
seu conceito de percepção coletiva, que poderia lançar as hipóteses aqui levantadas
sobre um terreno político. Ao contrário de Bergson, para Benjamin “o modo no qual a
percepção se elabora (o medium no qual se realiza) não é determinado somente pela
natureza humana, mas pelas circunstâncias históricas” (BENJAMIN: 1991, 143). A
intersecção destes dois pontos de vista nos leva a pensar a nossa atualidade. A
metodologia benjaminiana nos interessa porque liga de maneira direta a mecanização
do trabalho e a mecanização da percepção, a forma coletiva da produção e a forma da
recepção, o choque produzido pela rede de montagem e o choque produzido pela rede
das imagens montadas, as transformações da forma-mercadoria e a introdução das
tecnologias de reprodução da obra de arte (a qual é conectada com a crise do conceito
de arte, de obra de arte e de autor). E tudo isso sob a base do advento do cinema como
tecnologia adequada à socialização das formas de percepção introduzida pelo
capitalismo. Enfim, uma metodologia que pensa juntas a socialização da percepção e da
memória com os processos de socialização e de desenvolvimento do capitalismo. Esta
conexão é o que este trabalho tinha em mente e que geralmente falta no meio acadêmico
e que constitui a verdadeira dificuldade.
Devemos, pois nos distanciar do conceito de Benjamin sobre reprodução técnica
a respeito da obra de arte que apresenta muitas ambiguidades. Benjamin oscila entre a
reprodução automática da obra de arte, a sua produção estandardizada e serializada e a
análise das temporalidades próprias do capitalismo. Assim, ele nem sempre chegou ao
fundo da relação entre automação e o tempo, ainda que tenha examinado e criticado as
mudanças da percepção e da memória e os processos de subjetivação. Automação e
tempo andam paralelamente sem que se impliquem reciprocamente. Mas é exatamente
esta implicação que resulta decisiva hoje.
Maurizio Lazzarato
2.
Em Benjamin, a análise da percepção coletiva é entendida na relação tempo-
memória. O homem da metrópole vive, no spleen, a impossibilidade de se liberar do
fascínio que o passar vazio do tempo exercita sobre ele. O ideal baudeleriano,
interpretado por Benjamin como antecipação do tipo metropolitano, responde à perda da
experiência recorrendo à memória involuntária, depositária das imagens da vida
anterior. A poética de Baudelaire poderia assumir-se na tentativa, destinada sempre a
falência, de reinserir a imagem na recordação da memória involuntária. A destruição
desta última é obra da informação, que constringe a consciência a responder com o
intelecto aos choques, definidos por Benjamin como “a forma preponderante da
sensibilidade na época da grande indústria”. Quanto mais a consciência é levada a se
defender dos choques, mais desenvolve uma forma de memória voluntária que responde
aos estímulos através de reflexos mecanizados.
É importante entender a leitura de “Matéria e Memória” feita por Benjamin para
compreender as diferenças fundamentais com relação à nossa interpretação de Bergson.
Benjamin coloca o trabalho de Bergson dentro da oposição entre tempo da tradição
(memória involuntária) e tempo do capitalismo (memória voluntária). Bergson tenderia,
mediante o conceito de memória, a “restaurar a experiência autêntica que existe em
função da tradição”, opondo-se, assim ao modo de experiência próprio da época da
grande indústria. A nossa interpretação não relaciona a memória bergsoniana ao tempo
da tradição, mas ao tempo vazio do capitalismo, ao tempo liberado de qualquer
subordinação dos “movimentos do cosmo e da alma”, e à sua possível inversão em
tempo-criação, tempo-potência.
É precisamente o conceito bergsoniano de memória virtual que pode nos ajudar
a definir mais precisamente as dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit
(o presente messiânico ou a imagem dialética), que Benjamin, ao fim da sua vida via
como alternativa seja ao tempo vazio e homogêneo da informação, seja à restauração
(impossível) do tempo da tradição. A crítica da progressão de um tempo vazio e
homogêneo próprio do capitalismo deve converter, como vimos em Bergson, a forma
vazia do tempo em tempo-potência que cria contemporaneamente o presente e o
passado (e pode assim, como queria Benjamin, redimir este último). Bergson, como
Baudelaire, insere a imagem na recordação, descobrindo uma memória mais profunda,
uma memória ontológica que é o fundamento da memória psicológica e da memória
social.
105
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
1
Em casos excepcionais, a consciência renuncia improvisamente à atenção, à vida e rompe, assim, sua
subordinação à ação finalizada e aos esquemas senso-motores: “Imediatamente, como por encanto, o
passado torna-se presente. Nas pessoas que veem surgir a ameaça de uma morte imediata, no alpinista que
escorrega em um precipício, nos sequestrados [...] isto basta para que muitos detalhes esquecidos sejam
trazidos à mente para que a história inteira da pessoa desfile como um movimento panorâmico”
(BERGSON: 1959, p. 1387).
Maurizio Lazzarato
cria”. Esta dupla fundação do tempo, que encontramos no conceito de memória virtual
de Bergson, não parece suficientemente articulada em Benjamin. Se a oposição entre os
tempos históricos é certa, precisa, o mesmo não se pode dizer das condições
ontológicas do tempo. O presente como evento, como abertura do tempo não
cronológico leva de maneira contínua, e mesmo alternativamente, a estas duas formas
da memória virtual-ontológica e é este levar que dá um tom particular à obra de
Benjamin, presa entre o tipo do novo bárbaro que, nas condições capitalistas de
ausência de memória, não deve deixar escapar a oportunidade histórica de se liberar da
opacidade mentirosa da sua vida interior e o novo tipo religioso que, como o messias,
deve liberar e resgatar o passado de todos os oprimidos e de todos os vencidos da
história.
As dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit apresenta devem-se
à tentativa original de articular as formas históricas do tempo com as suas formas
ontológicas (ausentes em Bergson). No trabalho de Benjamin, encontramos uma
tentativa de tematização das condições histórico-sociais que anunciam e preparam a
inversão do tempo-medida em tempo-potência, que também em Bergson é quase
ausente, podendo somente ser deduzida de seu trabalho. Benjamin nos diz que a
mutação introduzida pelas tecnologias de reprodução da obra de arte determina as
condições para uma “tomada de consciência do papel político da imagem e do tempo”.
Mas a relação que Benjamin estabelece corretamente entre reprodução de massa e
reprodução das massas corre o risco de mascarar o processo de produção/reprodução
industrial do tempo, que faz as suas primeiras aparições com o cinema. O cinema
(reprodução automática da imagem) seria melhor definido como um dispositivo que
introduz o movimento e o tempo nas imagens (e não tanto como um processo de
reprodução serial da existência singular e única da obra de arte). O cinema é, dessa
forma, um dispositivo automático que cristaliza o tempo, um motor que produz e
reproduz as sínteses do tempo. Fundamentalmente, Benjamin entende a reprodução
técnica como a reprodução de uma cópia, cujo modelo pode ser comparado àquele da
imprensa; para nós, entretanto, aquilo que a técnica reproduz é o tempo.
O nosso conceito de máquinas que cristalizam o tempo quer demonstrar como o
capitalismo opera uma reprodução automática do tempo, daquele tempo que é a matéria
prima da percepção, da memória e da subjetividade. O conceito de reprodução mecânica
das obras de arte tende a fazer com que estas tecnologias sejam colocadas entre as
107
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
3.
Precisamos voltar a estes três pontos de uma maneira mais profunda e
procurarmos seguir as mutações que o capitalismo e a luta de classe determinam na
percepção coletiva, no conceito de público e na natureza do trabalho. A adequação da
realidade às massas é, para Benjamin, um fenômeno decisivo e que abrange todos os
campos. A massa é a matriz, onde se geram novas atitudes em relação à percepção, à
sensibilidade, à obra de arte. A reprodução mecânica desta última modifica a maneira
que a massa reage com relação à arte. No cinema, que é a primeira forma de percepção
adequada às massas na época da grande indústria, podem-se verificar e definir essas
novas atitudes, cuja característica principal consiste na tendência das massas a romper a
Maurizio Lazzarato
distância que normalmente a obra de arte estabelece com relação aos seus fruidores:
nesta renovada forma de percepção, o prazer emocional e do espetáculo confunde-se
intimamente com a atitude do especialista. A grande ligação entre o juízo crítico e o
prazer puro e simples é, para Benjamin, o sintoma da importância social de uma forma
de arte.
A recepção do cinema, que poderia encontrar seus antecedentes no poema épico,
diferencia-se da fruição das pinturas nas igrejas, nos monastérios e nas cortes da
Renascença pela sua forma intrinsicamente coletiva. A recepção das massas se
contrapõe, além do seu caráter coletivo, do fato que acontece na distração e no
entretenimento. Este movimento é motivado pela vontade das massas de aproximar-se
do objeto2, de torná-lo seu, de penetrar nele, de conhecê-lo, de experimentá-lo, de tirar
toda a sua aura, que como veremos, é uma aura temporal e de poder. Precisaríamos ler a
perda da aura não como um processo unilateralmente capitalista, como acontece
sempre, mas como uma manifestação da luta de classe, da intervenção ativa dos sujeitos
sociais. Deste modo, estamos mais próximos à metodologia benjaminiana que coloca na
dupla natureza da mercadoria o motor desta transformação.
A recepção na distração e no entretenimento opõe-se radicalmente à percepção
na contemplação: aquele que se coloca diante da obra de arte penetra dentro dela como
um pintor chinês que desapareceu no fundo da sua paisagem [...] a massa, entretanto,
através de sua distração, recebe a obra de arte dentro de si, transmite a ela o seu ritmo de
vida, abraça-a com os seus fluxos (BENJAMIN: 1991, 167).
A contemplação estabelece uma distância entre a obra e o seu fruidor, distância
essa que a massa não aceita, porque leva consigo uma outra temporalidade, uma outra
sensibilidade, uma outra atitude com relação ao mundo.
4.
Gostaria de comentar este parecer de Benjamin com um texto de Bakhtin, no
qual ele demonstra extraordinariamente que esta atitude com relação à distância é uma
atitude relacionada com o tempo. Este comentário nos leva de maneira surpreendente ao
problema das máquinas que cristalizam o tempo e às sínteses que as constituem.
Bakhtin lê o desenvolvimento e a luta dos gêneros literários como uma tentativa por
2
O desejo apaixonado das massas hoje: “aproximar-se” (näherzubringen) das coisas não deveria ser outra
coisa que a inversão do sentimento de alienação crescente que a vida cotidiana gera no homem, e não
somente no homem confrontado consigo mesmo, mas também confrontado com os objetos (BENJAMIN,
op. cit., p. 179).
109
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
parte dos gêneros baixos, cômicos e populares de “reorientar-se para o futuro”, como
expressão de uma sensibilidade que se sente mais próxima ao que irá acontecer do que
ao passado. Já a alta literatura se constitui pela tentativa de superar a realidade
contemporânea, o presente “baixo” fluente e transeunte, a vida sem início e sem fim
(BACHTIN: 1976, 200). O ponto central da avaliação artística e interpretativa da alta
literatura está, segundo Bakhtin, no passado absoluto, na memória, porque o presente,
no seu fluir, é privado de uma verdadeira realização e, portanto, de essência.
Esta hierarquia dos tempos é uma hierarquia que trata diretamente a hierarquia
do poder. A idealização do passado tem um caráter oficial. Todas as expressões externas
da força e das verdades dominantes são organizadas dentro da categoria do passado, da
distância, da memoria, dentro de um tempo fechado como uma roda, diz Bakhtin.
Já na criação cômica popular, o presente, a idade contemporânea, o “eu em pessoa”, os
meus contemporâneos e o “meu tempo” estão sujeitos ao riso ambivalente, alegre e
destrutivo ao mesmo tempo. O presente que aponta para o futuro se opõe ao passado
absoluto (dos deuses, semideuses e heróis). O livre contato familiar se opõe à distância
e ao afastamento; o presente ainda não realizado se opõe ao passado fechado, realizado.
É então, segundo Bakhtin, que nascem novas atitudes com relação à língua, à palavra, à
representação e também com relação ao poder e à tradição.
As intuições de Benjamin a respeito da percepção no entretenimento e na
distração (e também sobre a vontade das massas de aproximar-se do objeto), parecem
estar conectadas às atitudes carnavalescas com relação ao tempo 4 que, segundo Bakhtin,
3
Segundo o autor, o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no passado: “O que não
significa que neste passado não haja nenhum movimento. Ao contrário das categorias temporais relativas,
no seu interno, são elaborados de modo rico e sutil [...] há uma alta técnica artística da representação do
tempo. Mas todos os pontos deste tempo realizado e fechado em uma roda estão longe do tempo real e
dinâmico da idade contemporânea; na sua complexidade, não é localizado em um processo histórico real,
não é correlacionado nem com o presente, nem com o futuro e, por assim dizer, contém em si mesmo a
plenitude dos tempos” (BACHTIN: 1976, 198).
4
Mas é necessário notar que este processo de reorientação para o futuro não podia realizar-se na
“ausência de prospectiva” da sociedade antiga, onde este futuro não existia. “Pela primeira vez, esta
reorientação aconteceu no Renascimento. Nesta época, o presente se sentia não somente continuação
incompleta do passado, mas também um início novo e heroico” (BACHTIN: 1956, 221).
Maurizio Lazzarato
5
“Arlecchino, Pulcinella e Beltrame não são sub-personagens, mas “experimentum vitae” em que a
destruição do autor e de seu respectivo papel acontecem paralelamente. É a própria relação entre texto e
execução, entre real e virtual que é colocada em pauta novamente. Entre um e outro, aparece um terceiro
111
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
Nós lemos estas formidáveis páginas bakhtianas como um exemplo da luta com
relação ao tempo. As duas formas de temporalidade que fundam a “memória pura” ou
“virtual” nos trabalhos de Bergson (o passado que conserva e o presente que cria)
tornam-se, nas mãos de Bakhtin, elementos de uma forte luta entre formas existenciais,
processos de subjetivação, práticas artísticas, modos alternativos de constituição da
sociedade e das suas finalidades. E aludem, segundo a indicação de Agamben, ao
conceito de “potência” (do tempo-potência) e a duas éticas radicalmente opostas.
Benjamin reencontra estes tons nas novas atitudes que a massa exprime no
cinema e, de modo mais geral, com relação às formas de fruição da obra de arte.
Segundo a teoria literária de Bakhtin, é o romance (organicamente adaptado às
novas formas da percepção muda, isto é, da leitura) que herda e desenvolve o presente
ainda não realizado, a atualidade da época contemporânea e a subjetividade que não
coincide nunca consigo mesma. Poderíamos talvez acrescentar que esta temporalidade
encontra no cinema uma forma de representação através das próprias imagens-duração
do tempo, enquanto na televisão e nas redes digitais o presente que “se está fazendo”, o
tempo aberto ao futuro não são somente representados, mas constituem também a
matéria e o tema destes dispositivos tecnológicos.
Benjamin sabia bem que responder à industrialização da percepção e à
comercialização da obra com a reafirmação da arte não era somente reacionário no
sentido etimológico do termo, mas também, do ponto de vista político, absolutamente
ineficaz. A canonização do cinema como sétima arte é, para Benjamin, a outra face da
hollywoodização das novas condições da percepção coletiva. Ela reintroduz a distância,
o afastamento, o respeito e o medo do objeto, que não são outra coisa que a distância, o
respeito e o medo do poder. Benjamin nos adverte que a postura daquele que se
encontra diante da obra de arte pode, a qualquer momento, transformar-se em um novo
comportamento religioso, introduzir o passado absoluto e a sua ética. Comercialização e
arte são as alternativas que o poder reproduz e que os intelectuais de esquerda tomam
como problema.
A divisão social do tempo na sociedade capitalista contemporânea poderia ser
descrita do seguinte modo: o presente passa à indústria cultural (a imagem que ainda
não se realizou, essência, mas que é interpretada somente como um contínuo
desaparecimento, presente que é simplesmente repetição), enquanto o passado é
momento que é uma mistura de potência e de ato que foge à classificação da ética tradicional” (Agamben,
G; “Trafic”, Paris, n. 3, 1992, p. 5).
Maurizio Lazzarato
entregue à arte (a imagem realizada, o tempo que permanece e se conserva). São estas
as novas qualificações às quais o surgimento do tempo-potência é submisso, nas
condições do capitalismo: requalificações que atualizam a definição do tempo do poder
como nos descreveu Bakhtin.
O presente (como desdobramento do tempo), que pede uma requalificação da
postura carnavalesca com relação às tecnologias do tempo, parece encontrar uma
realização somente no grande desenvolvimento, operado pela televisão, do livre contato
familiar, da necessidade de destruir a distância e de se aproximar do objeto na distração
e no entretenimento que, de qualquer forma, as massas continuam a exprimir.
5.
O conceito de percepção coletiva benjaminiano nos dá outras sugestões que nos
levam de volta à Bergson, mas também, de maneira ainda mais produtiva, às condições
da nossa atual forma de percepção coletiva. A descontinuidade das imagens
cinematográficas, ligando-se em sucessão contínua, produz movimentos anormais para
a nossa percepção, que se iniciam no inconsciente ótico.
Para Benjamin são as transformações, as alterações, as catástrofes do mundo
visível produzidas pelas deformações da câmera cinematográfica que garantem o acesso
ao inconsciente ótico. Como vimos, é a câmera que nos leva ainda mais longe na
descoberta da percepção pura (o inconsciente bergsoniano), além do tempo e do espaço
homogêneos. “Percebe-se que a natureza que fala à câmera é diferente daquela que fala
aos olhos. Diferente principalmente no sentido que o espaço do homem que sofreu
penetração inconscientemente substitui o espaço conscientemente explorado”
(BENJAMIN, op. cit., p. 163). O cinema produz uma explosão do inconsciente e a
massa se apropria, dessa maneira, das formas de percepção do psicopático e do
sonhador. Apropria-se, assim, dos movimentos da consciência que invertem a
subordinação do tempo ao espaço. Tudo isso é, para Benjamin, sinal evidente de uma
mudança da função do dispositivo de “apercepção humana”. Mas “os encargos que são
impostos à percepção humana não podem ser resolvidos somente através da ótica, isto é,
através da contemplação. Essas tarefas são progressivamente assumidas pelo hábito”
(Idem, p. 168).
E aqui encontramos, surpreendentemente, um outro tema de Bergson. Trata-se
de uma crítica direta e sem ambiguidades ao modelo ótico. A visão não seria possível
sem as sínteses passivas constituídas do hábito. Cada dispositivo de visibilidade precisa
113
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
das suas sínteses passivas. Não é o olho (que opera fundamentalmente como o intelecto)
o primeiro objetivo das máquinas que cristalizam o tempo, mas o corpo. Primeiro o
corpo, depois todo o resto se seguirá. A recepção dos movimentos anormais se dá
através de uma recepção tátil e o efeito de choque da sucessão das imagens
cinematográficas introduz, segundo Benjamin, um elemento tátil na própria ótica. E o
homem distraído poderá habituar-se melhor que qualquer outro6, porque é através do
corpo, e não através da inteligência, que ele assimila as novas imagens e as novas
temporalidades.
Isto que é somente anunciado no cinema, é completamente desenvolvido na
tecnologia do vídeo, e sobretudo, no computador, perante o qual se se habitua através de
uma ótica que se aproxima a uma recepção tátil, como o sabem todos aqueles que são
familiarizados com este dispositivo. O recolhimento e a contemplação são atitudes que
impedem a familiarização com as novas tecnologias, porque, como sabemos, a produção
da percepção não é um fato fundamentalmente de visão, mas de ação.
Uma das funções da arte deveria ser de tornar determinadas imagens familiares a nós,
antes ainda que as finalidades perseguidas por estas imagens se tornem conscientes. Se
esta tarefa foi parcialmente assumida pelo cinema, o mesmo não se pode dizer das
imagens-vídeo.
Benjamin define a aparência e a brincadeira como os dois lados da arte, “ligadas
uma à outra como as duas membranas do germe vegetal”. O declínio da aura é lido por
Benjamin como um enfraquecimento da aparência. Quando esta última não mais se
opõe ao real, mas torna-se somente um de seus extratos (como vimos com Nietzsche),
então “o espaço mais alargado da brincadeira se instaurou no cinema. Neste momento, a
aparência fica totalmente eclipsada em favor do momento da brincadeira” (Idem, p.
189).
Enquanto as tecnologias do tempo real e suas imagens são demonizadas, a
indústria da comunicação familiariza a humanidade do amanhã com o tempo, através do
hábito e da diversão. O que está na base dos jogos eletrônicos é a repetição automática
na distração e no entretenimento. De fato, como sabemos, a automação é uma condição
para o desenvolvimento do espírito porque, segundo Bergson, libera virtualidade e
possibilidade de escolha.
6
“O motorista, cujo pensamento está bem longe, por exemplo, quando precisa consertar seu motor,
habitua-se melhor à forma moderna da garagem do que o historiador da arte, que se esforça, de fora, a
fazer um exame estilístico” (BENJAMIN, op. cit., p. 183).
Maurizio Lazzarato
6.
O choque que as imagens cinematográficas produzem pode ser relacionado com
os choques dos trabalhadores com as máquinas. Antecipando a relação godardiana entre
a rede de montagem e o dispositivo de projeção cinematográfico, Benjamin afirma:
Antes de mais nada, com relação à continuidade das imagens, devemos notar
que a sucessão de imagens (que tem um papel decisivo no processo da
produção), encontra o seu correspondente na película do filme, no processo
que a consuma. As duas coisas aparecerem quase ao mesmo tempo. Não se
pode compreender o significado social de uma independente da outra
(Ibidem, p. 175).
115
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
7.
Adorno diz concordar com Benjamin na questão de “defender o cinema kitsch
contra o cinema cultural”. Por outro lado, critica Benjamin por este não ter estabelecido
os dois extremos da produção cultural sob o mesmo tratamento dialético. “Os dois
levam as marcas do capitalismo. Os dois contêm elementos de mudança. Os dois são as
metades cortadas da liberdade, a qual é considerada como um todo, mas que de qualquer
forma não se obtém por uma simples adição” (BENJAMIN: 1991, 136).
Adorno, de forma geral, critica Benjamin por afirmar que este subestima a
técnica da arte autônoma e que superestima a técnica da arte dependente (comercial).
Sem entrar no mérito desta discussão, queria discutir a respeito da teoria política que se
desenvolve a partir desta análise. Segundo Adorno, Benjamin credita ao proletariado,
enquanto sujeito do cinema [Kinosubject], uma ação que pode-se cumprir somente a
partir de uma teoria dos intelectuais. Adorno refere-se diretamente à teoria leninista do
partido como intelectual coletivo, em oposição à fé cega que Benjamin coloca no
“processo de auto-constituição do proletariado dentro do processo histórico”. Parece-me
Maurizio Lazzarato
que Adorno tenha em mente uma concepção do intelectual como vanguarda, enquanto
Benjamin vê na produção cinematográfica uma mudança radical da figura e do papel do
intelectual. A reversibilidade das funções de autor e do público, o papel ativo deste
último etc., antecipam o processo de constituição de uma intelectualidade de massa que
o cinema tinha anunciado em sua origem e que acelera de maneira exponencial depois
de 1968, portando consigo a necessidade de se reconsiderar radicalmente as condições
do processo revolucionário, uma vez que espontaneidade, ação e consciência são
realidades que sofreram modificação após a constituição destes novos sujeitos coletivos
e da nova compenetração de percepção e trabalho.
A percepção coletiva, a percepção das massas, deve passar pela prova da
revolução. Se na publicidade a arte e a “percepção na distração” fazem suas
experiências mercantis, na revolução essas farão a experiência humana. “Se tudo se
conformasse ao capital cinematográfico, o processo pararia na alienação de si mesmo,
na alienação do artista da tela, e também na dos espectadores” (Idem, p. 158).
Toda a análise de Benjamin converge para este ponto chave: a percepção
coletiva coloca problemas que podem somente ser resolvidos de forma coletiva. A
revolução seria, deste ponto de vista, a tentativa de inervar a coletividade com os órgãos
que estas novas tecnologias de reprodução mecânica produzem. Aquilo que a arte
antecipa (“permitir as tendências sociais de se afirmarem no mundo das imagens”
(Ibidem, p. 181)), a revolução poderia realizar de forma coletiva. A qualificação deste
processo é a desintegração do proletariado enquanto “massa” e a sua constituição em
sujeito coletivo que pode estabelecer uma harmonia entre as soltas forças da tecnologia
e o homem. A tendência do indivíduo de se separar e a diferenciar-se da massa, se não
encontra sua expressão na revolução, será desfrutada, no nível das imagens, na figura da
estrela de cinema (star) e na volta das funções religiosas do cinema (o cinema cultural,
artístico). A revolução não aconteceu, e como Benjamin previu, a percepção coletiva se
realiza, então, na massa que encontra seu “olho” a partir das câmeras de Hollywood e de
Leni Rifenstahl. “Nas grandes cortes e assembleias, nas organizações guerreiras e
esportivas, que são hoje captadas pelos instrumentos de registro de vídeo, a massa se
olha nos seus próprios olhos” (Ibidem, p. 169).
8.
Depois de Auschwitz, que garantiu a total mobilização da totalidade dos meios
técnicos da época, sem colocar em discussão a “propriedade”, as tendências da
117
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
cinema, onde se celebrava o culto deste novo mundo, nos fazia prisioneiros desta ilusão.
Já no caso do fluxo, ele nos envolve, “andamos em onda” (N.T. equivale ao “estamos
no ar” em português). Não somente as transmissões televisivas “vão em onda”, mas
todo o real, inclusive nós. As imagens não nos provocam mais choques porque não são
mais externas à nossa percepção, mas somos nós mesmos que nos tornamos imagens.
Somente a televisão pode realizar a indistinção entre o atual e o virtual, entre a coisa e a
imagem, que o cinema apenas tinha anunciado.
O cinema introduziu o movimento e o tempo na ligação das imagens, mas a
televisão é o próprio movimento da matéria-tempo (fluxo) e a sua modulação. Se o
cinema tinha generalizado o “valor de exposição” da arte, conservando, porém, ainda o
lugar público do culto, a televisão desterritorializa o lugar do culto em um “espaço
qualquer” e não há mais nenhum valor de exposição. Aquilo que é exposto é a própria
indistinção do mundo e da imagem.
A televisão requalifica na base do tempo não cronológico (como dizia Bergson)
as diferenças entre espaço e tempo, entre o público e o privado, entre o individual e o
coletivo.
Depois de Auschwitz, foi a própria televisão que destruiu o público-massa.
Socialização da percepção e individualização da recepção andam de mãos dadas. As
redes digitais levam à destruição final do público massa, já que introduzem uma
reversibilidade entre autor e público, entre produção e recepção (consumo), que torna
altamente produtivas estas funções.
A recepção acontece na distração porque efetivamente não existe mais um lugar
onde se pode contemplar, ou melhor, para dizer a mesma coisa de um outro modo, a
distração tornou-se a própria forma da percepção. Assim, o que pode ser a atenção à
imagem quando esta é indistinguível do objeto que deveria descrever?
O cinema pós 1945 representou perfeitamente (e antecipou) esta nova dimensão,
nos mostrando uma imagem direta do tempo, onde não se pode mais distinguir entre o
atual e o virtual. Mas com a televisão não se trata mais de uma representação: a própria
televisão é uma imagem direta do tempo. “A tecnologia vídeo é o tempo”. O cinema é
apenas um sintoma (importante) desta nova situação. O cinema é uma aventura da
percepção, mas a televisão é uma aventura do tempo.
9.
119
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
A televisão nos faz colocar o problema em outros termos: não se trata mais de
imagens que representam o mundo, mas de imagens que são constitutivas dele. A
função representativa da imagem-vídeo nos é colocada pela televisão como dispositivo
de poder.
Dessa forma, é inútil procurar as imagens e os locais onde se podem vê-las,
porque com as imagens é necessário construir situações, eventos, formas de vida.
Insistir na visibilidade (ou melhor, na não visibilidade) das imagens-vídeo é um falso
problema que nos leva sempre ao cinema. Precisamos recuperar a aventura da
percepção, que certamente foi uma experiência importante para a humanidade, mas
inseri-la nesta nova dimensão. E inseri-la significa criar algo de novo, também para o
cinema.
A imagem-vídeo é uma imagem tátil, uma imagem sobre a qual intervir, ao invés
de somente ver. As condições coletivas da percepção-recepção nos levam, segundo
Benjamin, à experiência da arquitetura, onde somos familiarizados pelo hábito,
enquanto pela experiência da pintura, somos familiarizados pela contemplação. Assim,
a propósito da televisão, poderíamos falar de uma arquitetura temporal. Como habitar o
tempo, como nos habituar às novas temporalidades e como, a partir destes novos
hábitos, construir outras dimensões espaço-temporais?
O dispositivo vídeo não serve somente para ver (como queria sua raiz
etimológica), mas para criar situações, para intervir no acontecimento. Ele precisa de
uma resposta, requer a atividade do espectador, senão, como disse um dos nossos
artistas, nem mesmo teria começado a existir. De fato, o que existiu foi a televisão e não
a tecnologia do vídeo. A passividade à qual o dispositivo de poder da televisão nos
forçou é diretamente proporcional à atividade que a ontologia da tecnologia vídeo
suscita: a imagem que está se formando, a situação que se está criando, a subjetividade
que se está criando, ou seja, em uma palavra, o tempo não cronológico. Assim, toda
essa ontologia da tecnologia do vídeo e da atividade do espectador reaparecem com o
computador e as redes digitais: da passividade à atividade, do isolamento à
hipercomunicação de todos com todos, da separação entre produção e recepção à
integração de ambas. A visibilidade da imagem é integrada na própria operação do
computador: não se é mais apenas espectador, mas agente.
10.
Maurizio Lazzarato
7
Guattari demonstrou (através o exemplo do Concorde), a pluralidade dos componentes que entram em
jogo na realização de um dispositivo tecnológico e a importância dos componentes econômicos e
políticos.
8
Não se trata de uma substituição, mas sempre de uma dominação que integra os outros dispositivos
tecnológicos e suas virtualidades.
9
Deleuze define, com um conceito geral, a imagem do cinema entre as duas guerras como “imagem-
movimento”, “imagem-ação”.
10
Mas o cinema, como a mercadoria, apresenta um duplo caráter: “Já que é sob o controle dos
dispositivos tecnológicos que a maior parte dos habitantes da cidade, nos escritórios como nas fábricas,
devem abdicar, durante o dia de trabalho, a humanidade deles. À noite, essa mesma massa enche as salas
de cinema para assistir à vingança que o seu ator realiza, não somente afirmando sua própria humanidade
no aparelho, mas colocando este último a serviço do seu triunfo”.
121
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
11
É evidente que esta temporalidade livre define somente um novo terreno de lutas.
Maurizio Lazzarato
123
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
11.
Como reconquistar a singularidade e como sair da indistinção entre atual e
virtual, da reversibilidade pós-fordista do trabalho material e do intelectual, da
reversibilidade finalizada da acumulação capitalista do tempo de trabalho e tempo de
vida? Como tornar destrutiva/criativa esta relação?
Acompanhando aquilo que temos dito até agora, o real não desapareceu, mas
tornou-se mais temporal (mais artificial); o social não é já constituído, já dado, mas
deve cada vez cristalizar-se. O real e o social devem ser cada vez inventados e criados.
As máquinas que cristalizam o tempo têm um papel estratégico, sendo um terreno de
combate fundamental porque no interior desta indeterminação, dentro deste tempo ainda
não-realizado, são elas as condições tecnológicas da co-produção do real e da
subjetividade. O real e a subjetividade encontram nas máquinas que cristalizam o tempo
um novo poder de metamorfose, de modulação, de criação. Aqui as condições da
percepção e do trabalho coletivo, nas suas trocas e pressuposições recíprocas, são as
condições da criação do mundo.
Na época do general intellect, a oposição entre a arte e o coletivo, a qual deveria
se apropriar das novas formas da percepção-trabalho para verificá-las em um processo
de criação da subjetividade e do real, parece não acontecer fortemente. A potência, que
o circuito do atual e do virtual manifesta, deve, uma vez desconexa de sua subordinação
ao tempo-medida, determinar os processos de singularização, de reterritorialização que
a economia da informação oculta. E a força de singularização das relações estéticas, que
são sempre invenções de novos mundos, podem se tornar o paradigma sobre o qual se
pode medir a nova produção. Mas estas relações devem ser verificadas e confrontadas
com as novas condições de produção da percepção coletiva e do trabalho, com sua
indistinção-reversibilidade. Confrontá-los e verifica-los nas condições coletivas da
percepção-trabalho significa criar os dispositivos que tornam possível que as instâncias
individuais ou coletivas estejam em posição de emergir como novos territórios
existenciais. “Somente o controle das relações coletivas da produção de subjetividade
permite a invenção de relações singulares”. A necessidade benjaminiana de resolver
Maurizio Lazzarato
12
Trata-se de uma montagem de duas citações extraídas de dois relatos breves de Walter Benjamin: Der
destruktive Charakter e Erfahrung und Armut [Experiência e Pobreza].
125
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA
Referências
BACHTIN, M. Epos e romanzo. In: Problemi di teoria del romanzo. Torino: Einaudi,
1976.
Introdução
1
Na análise de Pochmann (2007), a reforma trabalhista no Brasil foi realizada via mercado.
129
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
Indo nessa direção, no mesmo ano, a Lei 9.601/982 que institui o banco de
horas, vem tanto a estender a jornada e intensificar o trabalho 3, como flexibilizar a
remuneração da força de trabalho, posteriormente aprofundada com a Lei 10.101/2000
que regulamenta a participação nos lucros ou resultados, instituída no inciso XI do
artigo 7º da Constituição Federal4, estabelecendo uma espécie de salários por tarefa,
uma vez que corresponde a uma remuneração com valor condicionado a metas a serem
cumpridas em determinado prazo, em que fator tempo e fator produção são
contabilizados no cálculo da remuneração (PINA, 2012). A vinculação do bônus a
metas e indicadores que levam em conta volume de produção, qualidade (redução do
retrabalho e do refugo de materiais) e absenteísmo, impõe, simultaneamente, aos
trabalhadores, a cobrança por não se afastar do trabalho e pela qualidade, sendo esta
colidente com o prazo (PINA, 2012). Cumpre salientar que o controle (coletivo e/ou
individual) e a redução do absenteísmo são um imperativo do atual modelo produtivo
em que os processos produtivos encontram-se externalizados e desterritorializados e as
empresas operam com um número ajustado de trabalhadores.
A flexibilização, operada pela desregulamentação do mercado de trabalho,
responde pela sua precarização que, por sua vez, como dito inicialmente, não cumpre
apenas com a função econômica de redução de custos para recuperação das taxas de
lucro, como também, e principalmente, por estabelecer os novos mecanismos de
controle e subordinação do trabalho, cuja centralidade encontra-se ancorada no imaterial
e no conhecimento, imaterialidade essa que se define pelo trabalho difuso cognitivo
realizado através da cooperação produtiva operada fora do espaço da empresa que além
de produzir objetos, produz informação, conhecimento, serviços, valores. Nesse
processo, o trabalho vivo se torna produtivo antes e fora da relação de capital (COCCO,
2012) e o controle sobre esse trabalho difuso e baseado no conhecimento que delega ao
trabalho uma crescente autonomia na organização da produção, mesmo que restrita, só é
possível se baseado na precariedade.
Como afirma Vercellone (2011), a precariedade é, em grande medida, “um
fator estrutural da regulação neoliberal do trabalho cognitivo, apesar de seus efeitos
2
A Lei estabelece que a jornada de trabalho diária pode ser ampliada em até duas horas, sem acréscimo
no salário, ou reduzida, e, as horas a mais ou a menos trabalhadas, são computadas como positivas ou
negativas no banco de horas para futura compensação, sendo que o banco de horas deve ser objeto de
acordo ou convenção coletiva de trabalho entre trabalhadores e empregadores. Em 2001, a Medida
Provisória 2.164-41 vem a estender o período para a compensação das horas de 120 dias para 1 ano.
3
Para um aprofundamento sobre “redução-reorganização” do tempo de trabalho, vide Pina (2012).
4
Anteriormente regulamentado pela Medida Provisória 794 de 29 de dezembro de 1994.
Cecília Paiva Neto Cavalcanti
131
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
conceito do “novo universalismo”, ou seja, cobertura para todos, mas não de tudo. Tais
iniciativas promovem um reordenamento do sistema de saúde dentro da lógica da
assistencialização, aqui entendida sucintamente como práticas pautadas numa
concepção restrita de proteção focalizada nos segmentos mais pobres e vulneráveis. E as
ações “educativas” dos agentes comunitários recordam as práticas higienistas do início
do século XX, que transferiam para a população a responsabilidade por sua saúde, sem
o correspondente investimento em políticas de saneamento e urbanização
(CAVALCANTI e TEIXEIRA, 2012, p. 7 e 8). Tais práticas remetem ao aprendizado
do autocuidado com a saúde, que juntamente com o aumento da escolaridade, o acesso à
renda e ao crédito, para complementar a renda (insuficiente) do trabalho (precarizado) e,
claro, saber lidar com a renda, “constituem os ativos primordiais que equalizam os
indivíduos” (VIANNA, 2008, p. 135).
Desse modo se desenha o atual padrão de proteção social minimalista
brasileiro, no qual a proteção pela assistência social ganha centralidade, num duplo
movimento em que, simultaneamente, as mudanças nas relações de trabalho e na
legislação trabalhista, acarretam na “desproteção” pelo trabalho. Empreendedorismo e
assistencialismo condicionado, via programas de transferência de renda com
condicionalidades, estas últimas como mecanismos de
empoderamento/empresariamento, constituem-se nas chamadas políticas sociais de nova
geração (VIANNA, 2008).
Dentro dessa lógica, se percebe que o enfrentamento à pobreza e ao
desemprego tem ênfase na empregabilidade, coerente com o novo tipo de trabalho -
convertido em atividades de serviço, e de trabalhador - que se torna prestador de
serviços, empreendedor da gestão da sua força de trabalho, logo, responsável pela
manutenção da sua empregabilidade.
Para além dessa noção de empregabilidade empobrecedora, acontece que a
dimensão cognitiva e comunicativa do imaterial é exatamente o conteúdo dessa
empregabilidade, o que significa que se tornar cidadão, ter acesso a bens (telefone,
computador com internet etc.) e serviços (educação, esporte, lazer, cultura etc.), é
condição para se tornar produtivo, pois é esta bagagem cultural adquirida nas diversas
atividades humanas cotidianas fora do trabalho que permite ao trabalhador desenvolver
a sua vivacidade, sua capacidade de improvisação, de criação, de cooperação, enfim,
habilidades, conhecimentos e saberes requeridos pelo novo modelo produtivo (GORZ,
2005).
133
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
5
Em português, Rede Europeia da Renda Básica.
135
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
debate sobre mínimos sociais no país que emerge com a apresentação de um projeto de
lei, em 1991, que propunha uma espécie de imposto de renda negativo, sob a forma de
renda complementar, destinada às pessoas com mais de 25 anos e com renda abaixo de
um patamar. Posteriormente, ao tomar conhecimento da BIEN e nela se integrar,
Suplicy reformula sua proposta se aproximando dessa concepção de renda passando a
incorporar a defesa de uma renda universal e incondicional e que, para garantir a sua
aprovação, foi proposta ser implementada em etapas, priorizando-se as camadas mais
necessitadas da população, aprovada em 08 de janeiro de 2004, através da Lei
10.835/2004. Ironicamente, no dia seguinte, é aprovada e instituída a Lei 10.836/2004
que cria o Programa Bolsa Família, cujo desenho de transferência de renda segue outra
perspectiva afinada com as políticas neoliberais.
Em matéria recente publicada em 17/07/2014 no Uol notícias6, o senador
Suplicy, ao retornar do 15° Congresso da BIEN, divulgou que pretende a instituição de
um grupo de trabalho interministerial para propor a evolução do Bolsa Família na
Renda Básica de Cidadania em direção ao cumprimento da Lei que a instituiu no Brasil.
Desse modo, o debate em torno da garantia de uma renda, que não é recente,
nem enquanto ideia, já presente no pensamento de Thomas More no início do século
XVI, nem enquanto experiência, cuja mais antiga e famosa que se tem notícia é a do
Sistema de abonos ou Speenhamland, que prevaleceu na Inglaterra entre 1795 a 1834,
reaparece com a crise de 1970 só que com um elemento novo,
A atual reivindicação de uma renda de existência não tem, por consequência,
muito em comum com suas formas anteriores, que reclamam uma
redistribuição socioestatal da produção de valor. A maioria de seus
defensores contemporâneos refere-se à capacidade dessa reivindicação unir
um vasto espectro de forças sociais em uma perspectiva anti-capitalista
(GORZ, 2005, p. 72, grifo nosso).
Independente do trabalho e concebida não como um agregado de bem-estar, a
luta por uma renda básica de cidadania, ou uma renda existencial ou renda social
garantida, seja o nome que for, é transgressora da ética capitalista do trabalho e é
valorizada por aqueles que reconhecem, agora mais ainda, “numa economia que gera
cada vez mais mercadorias com cada vez menos trabalho produtivo remunerado”
(GORZ, 2005, p. 72), a impossibilidade de se garantir, pela via do emprego, da
ocupação, o direito à renda, ao pleno exercício da cidadania, ao usufruto da riqueza
socialmente produzida.
6
Disponível em
file:///H:/Pesquisa/Artigo%20PBF%20deve%20se%20transformar%20em%20programa%20de%20renda
%20b%C3%A1sica.htm. Data do acesso 25/07/14.
Cecília Paiva Neto Cavalcanti
7
“O direito do comum é um novo tipo de direito: aquele que atualiza o comum como condição prévia, ou
seja, aquilo que nós conseguimos produzir, inclusive graças às nossas diferenças, para continuarmos a
produzir juntos.” (Cocco, 2012, p. 53).
137
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
Cecília Paiva Neto Cavalcanti é Graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço
Social/UFRJ, mestra em Engenharia de Produção pela Coordenação de Programas em
Engenharia de Produção (COPPE)/UFRJ e doutora em Serviço Social pela Escola de
Serviço Social/UFRJ. Atualmente é professora associada da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estudos em
Política Social na América Latina (LePSaL).
Referências
POCHMANN, Márcio. “Há uma transformação no mundo do trabalho, que veio para
ficar”. IHU On-Line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos), no 216. São Leopoldo,
23 de abril de 2007.
139
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO
VERCELLONE, Carlo. "A crise da lei do valor e o tornar-se rentista do lucro". In:
Fumagalli, Andrea e Mezzadra, Sandro (Orgs.). A crise da economia global. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.
VIANNA, Maria Lúcia T. W. “A nova política social no Brasil: uma prática acima de
qualquer suspeita teórica?”. Revista Praia Vermelha: estudos de política e teoria social,
no. 18. Rio de Janeiro: PPGSS/UFRJ, 2008.
Um, múltiplo, multiplicidade(s)1
Alain Badiou
1.
Acreditávamos que tínhamos sido claros. Mas como somos interrogados
novamente sobre este ponto, reiteramos em que consiste a importância singular, para
nós, da obra de Deleuze. Ele não contribuiu em nada ao tema hegemônico do fim da
filosofia, nem à sua versão patética que o enoda ao destino do Ser, nem ainda à sua
versão benévola que o enoda à lógica do juízo. Nem hermenêutica, nem analítica: já é
demais. Por conseguinte, ele teve a empresa de corajosamente construir uma metafísica
contemporânea, e inventou para ela uma genealogia completamente original, genealogia
na qual filosofia e história da filosofia são indiscerníveis.
Ele desenvolveu, como um “caso” inaugural de sua vontade, as produções de
pensamento mais incontestáveis de nosso tempo, e de alguns outros. Fez mostrar, assim
fazendo, um discernimento e uma acuidade sem equivalentes entre os seus
contemporâneos, particularmente no que concerne à prosa, ao cinema, a certos aspectos
da ciência, e também à experimentação política. Isso porque foi um progressista, um
rebelde aposentado, um suporte irônico dos movimentos mais radicais. É também por
essa mesma razão que ele se opôs aos “novos filósofos”, permanecendo fiel à sua visão
do marxismo, não concordando em nada com a sutil restauração da moral e do “debate
democrático”. Essas são virtudes raras.
Ele foi o primeiro que entendeu perfeitamente que uma metafísica
contemporânea é necessariamente uma teoria das multiplicidades e uma apreensão das
singularidades. Enodou essa exigência àquela de uma crítica das formas mais tortuosas
da transcendência. Viu que não se poderia acabar com o que há de sempre religioso na
interpretação do sentido que impõe a univocidade do Ser. Determinou claramente que
fazer uma verdade do ser unívoco exigiria que se pensasse o advento do acontecimento.
Esse considerável programa é também o nosso. Evidentemente, pensamos que
ele não o conduziu até o fim, que o levou a uma direção oposta àquela pela qual
1
Este artigo foi inicialmente publicado em francês, sob o título Un, multiple, multiplicité(s), na revista
Multitudes: revue politique, artistique, philosophique, em março de 2000. Agradecemos ao autor pela
gentileza com que prontamente autorizou a presente tradução, colocando-se à disposição para eventuais
dúvidas no processo de tradução e no trabalho de interpretação do texto. (N. do trad.)
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
pensamos deveria ter levado. Senão, seriamente aderiríamos aos seus conceitos e às suas
orientações de pensamento.
O litígio pode ser dito de muitas maneiras. Poder-se-ia entrar nele por questões
inéditas, por exemplo: como é possível que a política, para Deleuze, não seja um
pensamento autônomo, um lance singular no caos, diferentemente da arte, da ciência e
da filosofia? Esse ponto apenas atestaria a nossa divergência, e todo o restante viria com
ele. Contudo, o mais simples é partir do que nos separa até o ponto de nossa maior
proximidade: os requisitos de uma metafísica do múltiplo. É também aí que os nossos
críticos dão os gritos mais penetrantes. Ou antes, mais sufocantes, pois a tese de uma
quase-mística do Um permanece para eles, literamente, engasgada na garganta. Na
verdade, eles parecem ter lido os enunciados primordiais (sobre o Um, a ascese, ou a
univocidade), sem ter examinado a sua composição e a especificidade de sua colocação
à prova.
Mas eles estão realmente trabalhando com o Eterno retorno, a Relação, o
Virtual, a Dobra? Isso não é evidente. É verdade também que parecem crer, ao contrário
de seu Mestre, que se pode discutir tudo isso ignorando com soberba o pensamento de
quem eles atacam. Aí estão eles, desde logo, acuados em procedimentos de imprecisão,
tornando-se, ademais, eles mesmos superficiais e inexatos, para lembrar aquilo que os
Acadêmicos escrevem sobre as obras de Deleuze concernentes à Espinosa ou à
Nietzsche. Se nossos críticos pretendem demonstrar, como o deveriam a partir da
doutrina que herdam do discurso indireto livre, que o que dizemos sobre Deleuze é
homogênio a O ser e o acontecimento, precisaria ainda, como Deleuze pelo menos o
tenta, definir a sua especificidade. Haveria, então, um pouco mais e um pouco melhor
do que uma defesa e uma ilustração da ortodoxia textual. Aproximar-se-ia dos jogos
inerentes à tensão filosófica do final do século passado2.
Em todo caso, de nada serve argumentar contra quem quer que seja que, por
exemplo, a oposição entre o Um e o Múltiplo seja “fingida”, e opor a isso, como se se
tratasse da última verdadeira invenção da Vida, um terceiro conceito, por exemplo, o de
multiplicidades, sustentando supostamente a inconciliável “riqueza” do movimento do
pensamento, da experimentação da imanência, da qualidade do virtual ou da velocidade
infinita da intuição. Esse terrorismo vitalista, do qual Nietzsche deu a versão
2
As referências de datação ao longo do texto foram adaptadas ao momento da tradução e da publicação
da versão em português. (N. do trad.)
Alain Badiou
santificada, e Bergson, como o nota muito justamente Guy Lardreau, a variante polida
burguesa, nós o julgamos pueril.
Antes porque ele toma por consensual a norma a que se deveria examinar e
fundar: que o movimento é superior à imobilidade, a vida ao conceito, o tempo ao
espaço, a criação ao incriado, o desejo à falta, o aberto ao fechado, a afirmação à
negação, a diferença à identidade etc. Há nessas “certezas” latentes, que organizam a
estilística metafórica e peremptória das exigências vitalistas e anticategoriais, um tipo
de demagogia especulativa, que tem por motor se endereçar, em cada caso, à sua
inquietude animal, aos seus desejos embaraçados, a tudo aquilo que corre sem direção
sobre a superfície desolada do mundo.
Em seguida e sobretudo, porque nenhuma filosofia “interessante” (para adotar a
linguagem normativa de Deleuze), por mais abruptamente conceitual e antiempirista
que seja, nunca consentiu em se estabelecer no interior das oposições categoriais
herdadas, e, nesse sentido, os filósofos vitalistas não têm nenhum tipo de especificidade
a se valorar. Platão institui um processo simultâneo do devir-múltiplo (no Teeteto) e do
Um-imóvel (no Parmênides), cuja radicalidade ainda não foi superada. O motivo pelo
qual o pensamento deve se estabelecer sempre num para além das oposições categoriais,
e traçar nelas uma diagonal sem precedente, é constitutivo da filosofia mesma. Toda a
questão é de saber qual é o custo dos operadores do traço diagonal e a que espaço
desconhecido eles convocam o pensamento.
Desse ponto de vista, falar, como eu o faço com detalhes, de um dispositivo
político, que a diagonal conceitual que ele inventa, para além da oposição categorial do
Um e do Múltiplo, está a serviço de uma intuição renovada da potência do Um – como é
manifestadamente o caso dos estoicos, de Espinosa, de Nietzsche, de Bergson e de
Deleuze –, não corresponde em nada a uma “crítica” em relação a qual seria preciso
energicamente apressar-se em “refutar” a fim de preservar não sei que ortodoxia da
invenção diagonal ela mesma. Todas essas filosofias, por meio de operações de grande
complexidade, às quais importa a cada caso fazer justiça, sustentam que a intuição
efetiva do Um (a que se pode chamar o Todo, a Substância, a Vida, o corpo sem órgãos,
ou o Caos) é aquela da potência criativa imanente ou aquela do eterno retorno da
potência diferenciante como tal. O que está jogo na filosofia é, desde então, conforme a
máxima de Espinosa, pensar adequadamente o maior número de coisas singulares
possíveis (vertendo no “empirismo” de Deleuze, nas sínteses disjuntivas ou no
“pequeno circuito”), a fim de pensar adequadamente a Substância ou o Um (vertendo no
143
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
2.
O modo próprio segundo o qual a “multiplicidade” é tida para além da oposição
categorial do Um e do Múltiplo é do tipo intervalar. Queremos dizer que é o jogo em
devir de no mínimo duas figuras disjuntivas que autoriza sozinho o pensamento de uma
multiplicidade. É assim que se recusa toda transcendência, tomando experimentalmente
as coisas “pelo meio”. No entanto, vê-se facialmente que esse “meio” é, na realidade, o
meio da própria oposição categorial. Pois uma multiplicidade é, na realidade, aquilo
que, apesar de apreendido por um número, será dito conjunto e, apesar de permanecer
“aberto” à sua própria potência ou apreendido pelo Um vital, será dito multiplicidade
efetiva. Conceitualmente reconstruída, a multiplicidade está em tensão entre duas
formas do Um: aquela que enfatiza o cálculo, o número, o conjunto, e aquela que
enfatiza a vida, a criação, a diferenciação. A norma dessa tensão, que é o verdadeiro
operador conceitual, é emprestada de Bergson: a multiplicidade apreendida por um
número será dita “fechada” e apreendida pelo Um vital será dita “aberta”. Toda
multiplicidade é a efetuação conjunta do fechado e do aberto, mas seu ser-múltiplo
“verdadeiro” está do lado do aberto, igualmente como, para Bergson, o ser autêntico do
tempo está do lado da duração qualitativa ou igualmente como a essência do lance de
dados deve se buscada no único Lançar primordial, e não no resultado numérico afixado
sobre os dados imóveis.
Ora, a destinação do conjunto ao fechado e, portanto, à unidade numérica,
enfatiza um pensamento limitado de conjunto, que só permite a sua pretendida “ênfase”
pela abertura diferenciante da vida. Pois intuído, desde Cantor, como múltiplo dos
múltiplos, sem qualquer ponto de chegada senão o vazio, igualando em si mesmo o
infinito e o finito, assegurando que toda multiplicidade é imanente e homogênea, o
conjunto não saberá ser destinado nem ao número, nem ao fechado.
145
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
3
Dizemos “estranho” e não totalmente falso ou inexato. Não enfatizamos aí qualquer imprecisão,
somente uma torção estranha, um ângulo de visão impraticável, que faz com que não possamos
compreender do que se trata (contrariamente a nossos escritos sobre Deleuze, que os críticos declaram
não compreender senão muito bem, suspeitando ser essa clareza precisamente um fato tortuoso da
miraculosa e indefinida sutileza dos textos. Colocamos, com efeito, que a filosofia, certamente sob a pena
da dificuldade, deve evitar toda profundidade obscura. Pois, para quem se interdita o virtual, nada é
profundo). Assim, consideramos essa nota, na qual saudamos a evidente intenção amigável e atenta como
uma peça enigmática (existem outras, evidentemente) do dispositivo de Deleuze concernente às
multiplicidades. E nos alegramos pela ocasião que ele nos deu. Se alguém puder me esclarecer esse
fragmento, e sua relação real com O ser e o acontecimento, estarei contente. É um verdadeiro convite,
desprovido de toda ironia.
Alain Badiou
3.
147
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
é senão uma exceção. Por onde se descobre que, enquanto pensamento do ser enquanto
tal, a matemática não cessa de se afastar de seu ponto de partida, este tomado como ente
local disponível ou como efetividade contingente.
Daí resulta, em particular, que a propósito das multiplicidades “rizomáticas”, as
quais servem de caso para Deleuze (a matilha, o enxame, as raízes, os entrelaçados etc.),
o recurso à teoria dos conjuntos em configurações diversas é de uma prodigalidade e de
uma complexidade incomparável, que autoriza que se apreenda o mais distante. A
construção (por exemplo) de um subconjunto genérico de um conjunto particular
ordenado não somente supera em violência, como um caso do pensamento, qualquer
que seja o esquema empírico rizomático, mas, estabelecendo o que são as condições de
uma “neutralidade” de um múltiplo de uma só vez dispersivo e coordenado, subsume,
na realidade, a ontologia desses esquemas. É por isso que, na elaboração de uma teoria
do múltiplo, a regra (platônica: que ninguém entra aqui se não for geômetra) segue, de
início, as construções conceituais matemáticas, as quais, sabemos, excedem em toda
parte qualquer que seja o caso empírico, já que é do recurso mesmo do múltiplo que se
trata. Que zona da experiência poderia conceder, outro exemplo, uma ramificação do
conceito de infinito tão densa quanto aquela que pensa os cardeais inacessíveis,
compactos, inefáveis, mensuráveis de Malho, de Ramsey, de Rowbotton, enormes, e
assim por diante? Logo, quando se fala pobremente de um percurso do pensamento
“com velocidade infinita”, perguntar-se-á: de que infinito você fala? O que é essa
unidade suposta do infinito, lá onde aprendemos que existe não apenas uma infinidade
de infinitos diferentes, mas uma hierarquia infinitamente ramificada e complexa de tipos
de infinito?
Sabemos – e fazemos isso como um elogio – que Deleuze não tem nenhum
desprezo pelos matemáticos, e que ele utiliza, como recurso do pensamento filosófico, o
cálculo diferencial ou os espaços de Riemann. Mas esses exemplos deveriam, se não
fossem retrabalhados no contexto criptodialético do fechado e do aberto, entrar em
contradição com a doutrina vitalista das multiplicidades.
Sobre esse ponto o caso de Riemann é significativo. Ele conquista Deleuze
porque complexifica de modo genial a intuição elementar do espaço e fornece uma
máquina de guerra contra a concepção unilateralmente extensiva ou estendida de tipo
cartesiana ou ainda kantiana. Riemann fala, com efeito, de espaços “multiplicadamente
estendidos”, de variedades, e antecipa a noção moderna de espaço funcional. Ele
autoriza os desenvolvimentos de Deleuze a respeito do caráter folhado do plano de
149
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
151
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
para isso, contudo, que não podem servir as multiplicidades conjuntivas, cuja regra não
é jamais descritiva, cavilhadas que são a uma axiomática delicada. Dizemos que, desde
logo, a teoria do múltiplo é tão mais fecunda em problemas que, sem autorizar descrição
alguma, ela não pode senão servir de ideia reguladora às prescrições.
4.
Que diferença há, de direito, entre dizer que uma matilha de lobos e a rede
subterrânea de uma planta com tubérculos são casos de rizoma, e dizer que eles
participam um e outro da Ideia de rizoma? Que sentido é preciso empregar para que se
possa comparar à Cristo, assim como à Espinosa, Bartleby, o escrivão? Se a obra de
Foucault testemunha da Dobra entre o visível e o dizível, é no mesmo sentido com que
os filmes de Straub e de Marguerite Dura o fazem, nos quais a singularidade é definida
nos mesmos termos? O termo “folhado” designa a mesma propriedade nos espaços de
Riemann (que reportam a um plano de referência científico) e no plano de imanência
filosófico? Se falamos da monotonia da obra de Deleuze (o que seria, para nosso
espírito, um elogio bergsoniano: somente uma intuição motora, afinal de contas), é
igualmente por não termos posto frontalmente as questões mais grosseiras. Pois o nosso
campo de interpretação das inumeráveis analogias que povoam os estudos de caso de
Deleuze autorizaria que as relacionássemos à univocidade, como doação de sentido
uniformemente distribuída sobre a superfície das atualizações, na qual a mola, idêntica à
potência da substância espinosista, seria a determinação ontológica do Um-Vida.
Àqueles que, contrariamente, não querem uma postulação ontológica desse tipo e que
colocam ironicamente a pergunta: “Deleuze terá por objetivo intuir o Um?” (o que, no
entanto, bem poderia se ocupar um discípulo aficionado de Espinosa?), é preciso
questionar o estatuto que conferem a essas analogias, ainda mais ao que o Mestre diz,
desde sempre, proscrever.
Partilhamos com Deleuze a convicção (no meu entendimento, de caráter
política) que todo pensamento verdadeiro é pensamento de singularidades. Mas logo
que as multiplicidades atuais são sempre para Deleuze modalidades puramente formais4
4
A autocrítica de Deleuze concernente à doutrina dos simulacros toca, sem dúvida, na forma muito
imediatamente nietzschiana do antiplatonismo em Diferença e repetição. Mas o motivo profundo que
essa doutrina recobre se mantém integralmente até as últimas obras. Ele diz: a diferença dos entes atuais é
modal, somente a unidade do virtual (percorrido no “grande circuito”) é integralmente real. Há dezenas de
textos explícitos sobre esse ponto. Que essa unidade seja aquela da Relação, ou se se quiser, da Diferença,
não faz senão acentuar o alcance ontológico da tese. Para Heidegger também o ser se diz da diferença (do
ser e do ente). Mas o Esquecimento é o de pensar que apenas o ser, e não o ente, é o diferenciante dessa
153
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)
e que somente o Virtual dispensa univocamente o sentido, sustentamos que não há outro
recurso para pensar a singularidade senão classificar as diferentes maneiras pelas quais
uma singularidade tem de não ser ontologicamente singular. Sejam os diferentes modos
de atualização. Já é, enfim, a cruz do espinosismo, cuja teoria das “coisas singulares”
oscila entre um esquematismo de causalidade (uma coisa é um conjunto de modos
produzindo um efeito único) e um esquematismo de expressão (uma coisa testemunha
da infinita potência da substância). Assim como, a singularidade para Deleuze oscila
entre uma fenomenologia classificatória dos modos de atualização (e de virtualização) e
uma ontologia do virtual. Mantemos que a “ligação” entre essas duas abordagens não é
compatível com a univocidade, nem com a imanência. Entendemos que a partir dessa
incompatibilidade o texto esteja povoado por analogias, as quais determinam as Ideias
descritivas, cujas singularidades são os casos.
Que essas Ideias (a Dobra, o Rizoma, o Lance de dados...) visem às
configurações em devir, às diferenciações, aos vértices, aos rendilhados, às linhas de
fuga, não muda em nada a situação. Dizemos sempre que as singularidades deleuzianas
enfatizam a atualização ou a virtualização, e não a identidade ideal. Mas que um
esquema tenha por modelos descritivos apenas os devires concretos, isso não o impede
de forma alguma de ser uma Ideia, cujos modelos são isomorfos. O velho Parmênides,
lendário de Platão, “objetaria” a Sócrates que seria bastante preciso que existisse uma
Ideia de cabelo ou de lama. Resta que, sustentar que a singularidade exige, para ser
pensamento, a intuição do virtual, a qual, estamos convencidos disso, opera como
diferença. Da mesma maneira, a besteira filosófica é a de acreditar que são essas diferenças atuais que,
analogicamente, permitem remontar à Diferença; logo, a intuição pensante não é completa senão quando
leva o seu movimento até o ponto em que ela se identifica de modo impessoal à potência diferenciante e
imanente do Virtual. A essência do atual é a atualização, mas a essência da atualização é a Vida. Ora, não
existe essência da Vida [da Vida (refrão)]: ela é, portanto, necessariamente o Um pré-filosófico de toda
filosofia. O motivo da elevação afirmativa dos simulacros não parece, sob esse olhar e levando em conta a
continuidade desse ponto essencial, mais convincente do que as formulações posteriores, pois é mais
adequado do que aquele da univocidade, bem como do que aquele da crítica do “platonismo”. Deleuze
jamais esteve mais a vontade quando conseguiu fusionar, num ponto, Nietzsche, Bergson e Espinosa.
Esse é o caso toda vez que ele pensa a relação imanente da potência diferenciante do Um e suas
expressões modais. Admiramo-nos, de passagem, o pouco caso que fazem a maior parte dos seus
discípulos (com a exceção notável de Eric Alliez) com a genealogia filosófica construída por Deleuze.
Encontramo-os mais embaraçados do que armados com esses constantes apelos didáticos à Nietzsche, à
Bergson, à Whitehead, aos estoicos e, singularmente, à Espinosa. Sem dúvida, o que mais importa a eles é
que Deleuze seja “moderno”, no sentido em que eles o entendem, e que contenha sempre uma parte
obscura de anti-filosofia corrente. Sem dúvida, é essa também a razão pela qual eles “preferem” os livros
escritos com Guattari, nos quais alguns toques “modernos” são perceptíveis, razão que provoca
simetricamente o nosso menor interesse por esses textos. É suficiente ler o breve Foucault para constatar
com que soberana intensidade Deleuze retorna intacto às suas intuições iniciais. Lembremo-nos que, aos
nossos olhos, é uma das virtudes cardeais de Deleuze não ter, em seu nome próprio, utilizado quase nada
de toda a tralha desconstrutivista “moderna” e de ter sido, sem o menor complexo, um metafísico (e,
ainda, um físico, no sentido pré-socrático do termo).
Alain Badiou
transcendência (ou como lugar das Ideias descritivas), não pode senão dar ocasião, no
interior de uma virtuosidade sem cessar revisitada, a uma visão analógica e
classificatória dessa singularidade. É a razão pela qual tanto importa se mantiver firme
no múltiplo enquanto tal, composição inconsistente do múltiplo-sem-um, que identifica
a singularidade do interior, em sua estrita atualidade, tendendo o pensamento para o
ponto onde não há nenhuma diferença entre a diferença e a identidade. E onde, por
conseguinte, há a singularidade dos que são indiferentes em relação a ele, a diferença e
a identidade.
Resumamos. A tentativa de subversão da transcendência “vertical” do Um pelo
jogo do fechado e do aberto, o qual distribui a multiplicidade no intervalo móvel de um
conjunto (inerte) e de uma multiplicidade efetiva (linha de fuga), produz uma
transcendência virtual “horizontal”, que desconhece o recurso intrínseco do múltiplo,
supõe a potência caótica do Um e relaciona analogicamente os modos de atualização lá
onde seria preciso apreender a singularidade. O resultado disso é o que chamaremos de
mística natural. Para acabar com a transcendência, é preciso manter o fio do múltiplo-
sem-um, insensível a todo jogo do aberto e do fechado, anulando todo abismo entre o
finito e o infinito, puramente atual, assombrado pelo excesso interior de suas partes e no
qual a singularidade unívoca é ontologicamente nomeável apenas por um gráfico
subtraído da poetização da linguagem natural. A única potência que pode concordar
com aquela do ser é a potência da letra. Pode-se, então, esperar resolver o problema
próprio da filosofia contemporânea: o que é, de direito, uma singularidade universal?
155
Implementação do Conselho da Igualdade Racial em Teófilo Otoni-MG/BR: uma
luta também do serviço social
1. Introdução
157
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
159
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
Bahiminas.1 Nosso objetivo foi compreender se havia em Teófilo Otoni uma estrutura
de mobilização passível de ser nomeada como Movimento Negro e, caso esta ainda não
existisse, se o Conselho poderia ter algum impacto na formação deste.
De início devemos ressaltar que os entrevistados apontam não haver um
Movimento Negro na cidade, no entanto, todos apostam na possibilidade de criação
deste.
Quanto a um possível impacto do Conselho na formação do Movimento Negro
de Teófilo Otoni, os entrevistados são otimistas e todos indicam que esta relação seria
possível. Porém destacam que não será um processo fácil: “A criação e atuação dos
Conselheiros do Conselho da Igualdade Racial poderá ser um dos caminhos para
fortalecer laços e para iniciar um possível movimento negro mais articulado... Mesmo
que com muita dificuldade” (Representante da Bahiminas).
No que diz respeito aos mecanismos que impossibilitaram, ou continuam
impossibilitando a formação de um Movimento Negro na cidade, todos alegam que para
a formação deste é preciso haver inicialmente uma identificação maior da população
negra local com a própria noção de negritude, ou seja, é preciso que se dissemine um
sentimento de pertencimento, de identificação com a luta pela igualdade racial. Uma das
representantes da sociedade civil destaca: “No Brasil ser negro é tornar-se negro, o
conhecimento e o pertencimento dessa questão nos ajuda a superar e na cidade de
Teófilo Otoni falta isso ao negro”.
Os entrevistados, ao serem questionados sobre a relação do Estado com o
Movimento Negro, apontaram:
Na verdade não existem espaços dados a nenhum movimento, seja ele negro
ou não, na verdade, o movimento negro e ativistas intelectuais conquistaram
espaços no governo. E como o último governo se mostrou mais sensível e
mais aberto a dialogar, o movimento negro conseguiu concretizar pontos de
reivindicações, embora muitos ainda em curso (Representante da Bahiminas).
1
Associação composta por ex-funcionários que trabalhavam na linha férrea que ligava Bahia a Minas
Gerais. Criada em 1997 com o intuito atender as necessidades das famílias vinculadas a ferrovia, além
buscar preservar a memória da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas. Conforme relatou a presidente da
associação.
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão
161
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
2 Neste artigo, entendemos por movimento social: "[...] ações sociopolíticas construídas por atores
coletivos de diferentes classes sociais, numa conjuntura específica de relações de força na sociedade civil
(GROSS, 2004, apud, GOHN, 1997, p.78)". Segundo a autora, as ações se desenvolvem em um processo
de criação de identidades em espaços coletivos não institucionalizados, gerando transformações na
sociedade, seja de caráter conservador ou progressista.
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão
163
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
Considerações finais
165
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
No que tange aos agentes sociais entrevistados, constata-se que estes trabalham
com a perspectiva de criar o Conselho da Igualdade Racial na cidade de Teófilo Otoni,
mesmo com desafios e impedimentos colocados pelo poder político local.
Por fim, faz-se necessário esboçar algumas considerações sobre o Serviço
Social e sua relação com as questões raciais, pois ainda são restritos os estudos
realizados acerca dessa temática no interior dos cursos de Serviço Social, conforme
pode ser observado nos planos de ensino de algumas instituições federais.3 Este dado
inviabiliza a realização de um diálogo aprofundado com as categorias analíticas
defendidas pelo Projeto Ético-Político-Pedagógico da profissão, em especial no que se
refere às políticas de ação afirmativa e à assessoria aos movimentos sociais negros e
quilombolas.
Seria fundamental a realização de pesquisas sobre questão racial e movimento
negro no âmbito da formação em Serviço Social. Uma vez que, estudos nessa temática
se relacionam com as atribuições privativas do assistente social, podendo auxiliar, entre
outros elementos, na elaboração de políticas públicas conectadas com as demandas
deste segmento que se encontra sobrerrepresentado entre a parcela mais vulnerabilizada
da população nacional.
Conforme podemos observar na Lei 8.662, que regulamenta o exercício
profissional do assistente social, em seu artigo 4º afirma que é competência deste
profissional: elaborar, implementar, executar e avaliar projetos, programas e políticas
sociais; orientar e encaminhar providências a indivíduos; prestar assessoria aos
movimentos sociais entre outras tantas coisas. Ressalto tais atribuições para dar ênfase à
relevância de estudos que retratem o problema do negro no interior da formação em
Serviço Social.
As políticas sociais constituem o alicerce da profissão do assistente social,
sendo assim ressalta-se que as diversas expressões da questão social se manifestam nas
cidades e também no campo, como é o caso das comunidades remanescentes de
quilombo, das mulheres negras, da população negra em geral. Exatamente por isso, são
necessárias investigações que se aprofundem nesta realidade e insiram no cotidiano
profissional do assistente social a necessidade de pesquisar, elaborar projetos e
programas sobre grupos étnico-raciais, que desmistifique a falsa noção de que somos
3
Para a realização dessa consideração foi feito um levantamento via internet do plano de ensino de
algumas instituições federais, como a UFVJM, UFRB, UFF e UFES. No interior dos cursos de Serviço
Social oferecidos por essas instituições não há nenhuma disciplina obrigatória que discuta a questão racial
e seus rebatimentos no contexto social como um dos reflexos da questão social.
167
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR
um Brasil sem preconceito, sem exclusão racial. Esta inserção contribuiria com a
reivindicação de direitos e para o processo de formação política emancipadora, justa e
igualitária.
Destaco, por fim, que o próprio Projeto Ético Político do Serviço Social tem
como princípio o reconhecimento da liberdade como valor central da profissão,
buscando eliminar qualquer forma de preconceito e de discriminação, de forma a
ampliar e consolidar a cidadania e a democracia. Esses princípios vão de encontro com
a questão racial, assim como com as diversas mazelas sociais expressas no interior das
comunidades rurais negras, reafirmando a importância e a necessidade de ações
interventivas do assistente social junto aos reflexos da questão social no espaço
socioeconômico rural.
Referências
ANDREWS, George Reid. Negros e brancos em São Paulo (1888-1988). Bauru (SP):
EDUSC, 1998.
SILVA, Eva Aparecida da. Professora negra e prática docente com a questão étnico-
racial: a “visão” de ex-alunos. Campinas (SP): Universidade Estadual de Campinas.
Faculdade de Educação. Tese de Doutorado, 2008.
169
Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma
democracia por vir1
171
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO
também pelas “passagens ao ato” com a (tentativa de) expulsão violenta de militantes de
partidos políticos e a destruição de suas bandeiras (sejam os agentes dessa violência
“cidadãos revoltados” ou policiais infiltrados). Obviamente, nem todos os que
compartilham de uma postura “antipolítica” e até mesmo de certo nacionalismo estão
implicados em posturas fascistas e/ou de violência. Pelo contrário: a recusa genérica à
política e a aceitação genérica (e ainda assim perigosa) do nacionalismo vem muitas
vezes acompanhada de uma igualmente genérica repulsa a “toda forma de violência” –
subentende-se: nas manifestações, nas partes mais ricas e no centro das cidades; “todas
as formas de violência” não sistêmica e não normalizada (e por isso invisível), contra
negras, pobres, presidiários, etc.
Não por acaso, foi mais ou menos nesse mesmo momento que a mídia
empresarial(-militar) passou de uma mera criminalização das manifestações para um
apoio seletivo, construído a partir da distinção entre “manifestantes pacíficos” e
“vândalos”. No mesmo movimento, a mídia tentou pautar ou, ao menos, sequestrar a
pauta do movimento, diluindo-a em reivindicações genéricas e/ou reacionárias – o que
não equivale à afirmação de que foi ela a causa da ocupação das ruas por esse tipo de
pauta; foi, antes, a ocupação mesma das ruas que parece condicionar a mudança de
estratégia da mídia.
Tanto quanto posso ver, nesses dois primeiros momentos teríamos no máximo
uma espécie de sintoma negativo da “crise da representação”, que joga fora o bebê (a
política) junto com a água do banho (o sistema representativo e, sobretudo, os
representantes que o personificam) e não parece capaz de propor alternativas – isso se
não considerarmos uma alternativa a mera ocupação “espontânea” das ruas ou a
considerarmos no máximo uma alternativa condicionada ao(s) sentido(s) (não fascistas,
não nacionalistas) dessa ocupação. Ao concentrar-se no negativo ou, ao menos, na “má”
negatividade, na negatividade “passiva” do “não tem jeito, sempre foi assim, etc.”, essa
postura acaba por reforçar o caldo de descrédito da política que tem sido cozido e
recozido pela opinião pública, isto é, pela opinião hegemonicamente empresarial(-
militar), ao menos desde a ditadura – o que tende a levar a mais desmobilização popular
e a entraves no aprofundamento da democracia. Todxs sabemos para quem vão os
dividendos da venda desse caldo.
Bem entendido, isso não significa, por outro lado, que a mera mobilização seria
o caminho para o aprofundamento da democracia: pois, como já foi sublinhado mais de
uma vez, sabemos pela história o perigo que se corre se tal mobilização se dá em
Germano Nogueira Prado
3 Cf., entre outros, o testemunho de Bruno Cava no seu livro A multidão foi ao deserto.
4 Diferenciação interna, intensidade de laço, contágio, cauda longa, limiar de participação, liderança
distribuída, direção imanente, direcionalidade. Cf. http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3036
173
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO
5 Cf. SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome, p. 34 ss, p 67 ss
6 Cf. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
Germano Nogueira Prado
decorrente). É sintomático que, mal ou bem (ou mal ou mal), isso apareça em várias
organizações tradicionais de esquerda: subtraído o cálculo eleitoral, mais de uma
declaração de membros de partidos de esquerda e mais de uma campanha tem como
eixo a leitura de que as jornadas clamam por democracia direta e participação popular7;
mesmo o PT no governo fez, ou vem tentando fazer, um movimento nesse sentido, com
o decreto que implementa a Política Nacional de Participação Social, amplamente
criticado por setores mais à direita – e por mais que isso seja uma piada ruim (ou de
mau gosto), é no mínimo curioso (ou irônico) que um governo, mesmo de esquerda,
tente instaurar a participação social através de um decreto...
Brincadeiras à parte, o fato é que essas atitudes testemunham a tentativa por
parte do Estado e dos partidos de se apropriar de e/ou de responder às demandas e
desejos que emergiram nas ruas de junho. Resta saber se as estruturas hierarquizadas e
ainda bastante ligadas à direção por lideranças pessoais, à noção de vanguarda e de
“quadros” específicos que tomariam a frente do processo político e revolucionário; resta
saber, enfim, se o Estado e a forma-partido, se o horizonte da política representativa
pode ir ao encontro dessas demandas e desejos e das formas de subjetividade e vida que
aparecem aí e manterem algo do horizonte da representação – ou se ir ao encontro de
verdade dessas formas, ao tentar realmente atender a essas demandas e desejos eles não
estariam fadados a uma autossabotagem e, no limite, à autodissolução.
Nesse sentido, mais sintomático (e mais emblemático) do modo como a “crise da
representação” emergiu nas ruas de junho de 2013 – como reinscrição e criação de
mecanismos de participação e democracia diretas à margem do Estado, mas em luta
com e contra ele pela ampliação de direitos (entre eles o direito mesmo à manifestação e
à participação política) –, mais sintomático e mais emblemático, digo, é o fato de que o
princípio das jornadas está ligado ao Movimento Passe Livre, que surge como: “...um
movimento social de transportes autônomo, horizontal e apartidário, cujos coletivos
locais, federados, não se submetem a qualquer organização central. Sua política é
deliberada de baixo, por todos, em espaços que não possuem dirigentes, nem respondem
a qualquer instância externa superior.”8
7 A bem dizer, Safatle, hoje no PSOL, já havia apontado para algo do gênero antes das manifestações
quando, em A esquerda que não teme dizer seu nome, de 2012, coloca entre os princípios inegociáveis do
“tipo” de esquerda que comparece no título do livro a “soberania popular” e argumenta que esta soberania
se exerce propriamente com a construção de mecanismos de participação direta de todxs nas decisões
políticas (p. 38 ss.)
8 Cidades rebeldes.
175
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO
9 Para o mesmo argumento que aparece em seguida, mas introduzido desde outra perspectiva, cf. os
artigos “Democracia, diálogo, violência: notas de uma política da singularidade” (publicado em:
http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3044) e “Notas de uma pedagogia da singularidade” (no
prelo).
Germano Nogueira Prado
ainda a luta por direitos sociais e pela justiça social, que visa à inclusão daqueles que
estão separados dos que são “mais iguais que os outros” por outras barreiras de
diferenciação – a desigualdade social (a essa altura, à identidade de “homem branco,
etc.”, deveríamos acrescentar algo como “capitalista” ou “de classe média” ou
“burguês” ou...).
Assim, algo fundamental vem à tona nessas lutas: o fato de que aquele “todos”
da democracia é composto por inúmeras diferenças e desigualdades. E se, por um lado,
é desejável que estas, as desigualdades, sejam eliminadas, sejam elas de direitos ou
desigualdades socioeconômicas – é verdade que, por outro lado, a eliminação das
desigualdades está a serviço justamente da promoção das ou, ao menos, do dar espaço
àquelas diferenças (de sexo, de cor, de gênero, de orientação sexual, de culto, de
cultura). Assim, se a democracia é mesmo o governo de todos, são esses os “todos” que,
igualmente, mas em sua (possível) diferença10, tem que ter voz no diálogo que ela é.
Mais, ainda: se é verdade que a (auto-)afirmação dos diferentes enquanto
diferentes é estruturada como contra-identidade, e mesmo que este tipo de afirmação
seja estrategicamente fundamental para a luta contra uma identidade hegemônica, talvez
seja preciso cumprir mais um passo para além da lógica de identidade e diferença (ao
menos no que se refere à diferença que se define por uma identidade constituída). E esse
passo é justo o de uma “política da singularidade”, isto é: a ideia de que, radicalmente
compreendida e exercida, a democracia “serve para” criar o âmbito ou os âmbitos em
que a vida de todos e de cada um possa se realizar livremente em sua singularidade. Em
sua singularidade, isto é: em suas múltiplas e sempre imprevisíveis (e em última
instância incompreensíveis) possibilidades. A tais possibilidades, a tal singularidade são
possíveis, claro, múltiplas identidades e diferenças – mas ela(s) não se reduz(em) a
estas. A singularidade se define justamente por ser o que escapa à definição e, assim, é
puro possível. O seu signo talvez seja justo o poder de surpreender – o que é também a
possibilidade de não surpreender (o que, dependendo do que se espera, pode ser ainda
mais surpreendente...).
O tratamento da singularidade aqui só pode ser sumário. A singularidade é o
fundamento da democracia justamente porque aquilo em que todos (nós) nos
encontramos é justamente a singularidade – é nela que se pode encontrar, nesse sentido,
uma universalidade (concreta). Todos e cada um de nós é singular ou, antes, vive
177
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO
11 Cf.; http://www.viomundo.com.br/politica/lincoln-secco-e-o-risco-da-democracia-racionada.html
12 Os exemplos são abundantes: a recusa da presença de emblemas de partidos nas manifestações de
2013; o surgimento e a expansão, no bojo destas, dos mais diversos coletivos e assembleias horizontais e
autogestionários; a greve dos garis e dos rodoviários no Rio de Janeiro, construídas à revelia dos
sindicatos e contra a peleguice destes; a enorme abstenção nas eleições europeias de 2014, etc. E em tudo
isso, a incapacidade da política partidária de produzir um emblema que “represente” as ruas, que
“canalize” as suas demandas.
Germano Nogueira Prado
179
Resenhas
Murilo Duarte Costa Corrêa
181
ELOGIO DO INTEMPESTIVO
lugar tão obscuro quanto para sempre das novas formas de imaginação social
aberto, penetrado de perigos e de e política para além do Estado e dos
promessas, sem operar reversões na modos de vida para o trabalho, o
própria ontologia; é preciso “pensar a espetáculo, a especulação. O
negação com a mesma dignidade endividado, o midiatizado, o
ontológica reservada à afirmação” securitizado e o representado encarnam
(Matos 2014 : 69), deslocando o as formações subjetivas efeitos da
referencial aristotélico da concepção de reprodução em bloco dos referenciais
potência. Ponto luminoso em que a políticos, sociais, econômicos e
potência de não, de Agamben, encontra ideológicos operados pela nova
um Marx antidialético e um Debord temporalidade que o espetáculo
ontólogo, assume e rasura as ilusões do implicaria, segundo a chave ontológico-
tempo-de-agora, rejeita as “razões da política segundo a qual Andityas relê as
crise” e suas medidas opressoras principais teses de Debord.
travestidas pela necessidade, exerce O que nos impede de
uma função contraideológica e, a um só compreender adequadamente as ilusões
tempo, capaz de gerar anticampos: esses que emanam dos centros difusos de
“lugares físicos e reais” que reúnem “os poder? Nada como um puro efeito
não-lugares da impossibilidade”, os ideológico, nem uma falsa consciência
excessos de sentido que convocam a geral, mas os efeitos políticos de uma
outros mundos monstruosos e possíveis ontologia curto-circuitados com os
suturados pelos modos de vida para a efeitos ônticos de uma política; isto é, o
servidão e o capital. O anticampo é uma fato de nos encontrarmos presos ao
geografia da revolta traçada em “circuito que unifica repartição social,
oposição ao capital, mas também trabalho e violência” (Matos 2014 :
voltada contra as armadilhas do 122), na medida em que permanecemos
marxismo progressista, incapaz de expostos à temporalidade do espetáculo
pensar a revolução exceto sob o tecido contínuo, permanente e irreflexivo. Não
cerrado das teleologias histórico- se trata de um tempo circular ou linear,
dialéticas – unificação conservadora mas progressivo, sem início ou fim,
superior que a Filosofia Radical rejeita cujo desenrolar permanece
por princípio. integralmente condicionado pelo poder
É no seio dos anticampos que se do capital, que dispõe de uma infinita
avaliam os potenciais de transformação capacidade de reconfigurar e modular o
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ELOGIO DO INTEMPESTIVO
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ELOGIO DO INTEMPESTIVO
Korpobraz; por uma política dos vincula sua trajetória à adesão das
corpos.
massas conscientes de sua missão
Giuseppe Cocco.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. histórica. O pobre aí não passa de
matéria bruta que, no seio do trabalho de
A terceira estética de Glauber Rocha
base, ganha contornos de classe para
Bruno Cava
empreender a luta contra a burguesia.
O pensamento de
Pobreza e subdesenvolvimento Giuseppe/Glauber não separa a pobreza
da questão do subdesenvolvimento. O
Sob um olhar paternalista, os pobre é, imediatamente, o
pobres são tratados como oprimidos que subdesenvolvido. Nisso, seguem a trilha
dependem de uma instância externa para de Oswald de Andrade, cuja
se organizar e lutar por direitos. Uma antropofagia significava, antes de
versão à esquerda desse paternalismo qualquer coisa, reconhecer a dimensão
consiste em rebaixar os pobres na mesma positiva do pobre. Em vez dos modelos
medida em que os elogia. Trata-se de europeístas do desenvolvimento, é sair
uma postura ambígua que, se de um lado do subdesenvolvimento pela via do
festeja a massa alegre e cheia de vida, de próprio subdesenvolvimento, sua
outra a confina num mundo simplório. riqueza, sua positividade.
Para Giuseppe, na esteira de Existe uma estranha afinidade de
Glauber Rocha, é preciso romper com fundo entre quem, à esquerda, enfrenta o
essa concepção redutora do pobre e subdesenvolvimento com as várias
resgatá-lo como sujeito político. Para pedagogias da conscientização, e quem
eles, o pobre não é povão. Os pobres não atribui cabalmente ao pobre o caráter de
constituem uma categoria sociológica, vergonha nacional. A mente colonizada
em oposição às elites e sob a tenta expulsar o subdesenvolvimento
intermediação de interesses por uma pela porta, mas ele retorna pela janela e,
classe média inexoravelmente uma vez infiltrado na má consciência,
inautêntica. leva o subdesenvolvido a cobiçar os
É preciso romper com a tradição limites inferiores da cultura do
que, de Gramsci às esquerdas da colonizador, em papel de coadjuvância
América Latina, fomenta uma — que é o máximo que ele vai ter em
consciência nacional-popular com termos de reconhecimento pelos
pretensões de galgar o poder, mas que senhores que escolheu para si.
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A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER
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A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER
maravilhoso cinema do terceiro mundo, Rosselini, mas Buñuel; não mais Brecht,
Glauber escolherá o último. A razão que mas Artaud. E novamente Oswald.
conhecemos é burguesa e ela fala mais
alto no estado. A saída da segunda A terceira estética: eztetyka do êxodo
estética é o inconsciente. O conteúdo
procura assim a energia subversiva, a No último capítulo de
afirmação do Outro em relação à KorpoBraz, Giuseppe revolve os escritos
racionalidade moderna. de Glauber perto da morte do cineasta,
Fanon é deixado de lado. O em 1981, para assinalar uma terceira
escritor antilhano repudiava o lado estética ou “terceyro modelo”, “terceira
místico da África por considerar que força: imagens e sons do povo”, nas
danças e rituais desperdiçavam palavras do diretor. A longa ressaca da
importantes energias revolucionárias. Já década de 1970 implodiu o imaginário
o baiano, ao contrário, prefere a revolucionário e a reestruturação do pós-
macumba ao panfleto e vê a razão de fordismo parece empurrar o horizonte de
esquerda herdeira da razão das lutas até o inefável.
revoluções burguesas. De volta ao Brasil, Glauber
É por isso que Glauber, ao parece exilado em seu próprio país. Por
conhecer a Teologia da Libertação, não um lado, apartado de condições materiais
vai interpretá-la como uma conversão de de produção, por outro, execrado pelas
uma fração do cristianismo ao marxismo, esquerdas sobreviventes como maldito
mas uma sincretização mística do irresponsável.
próprio marxismo. A TL significa antes É nessa situação de total
uma potenciação dos socialistas graças à precariedade quando emerge Idade da
matriz afro-índio-brasílica do Terra (1980), o último filme. Próximo do
cristianismo, do que dos cristãos pela via muralismo, num encadeamento veloz de
do socialismo. temas, Idade da Terra encerra um brutal
A estética revolucionária, esforço de metabolização.
portanto, só pode ser antirrealista, “Síntese”, sobretudo, da máxima
inclusive antineorrealismo e o nacional- contradição entre a gradiosidade de um
popular à italiana. Tal nova atitude de projeto, repleto de amplas panorâmicas
ruptura transborda nos filmes Leão de em Cinemascope, e a dissonância de sua
sete cabeças e Cabeças cortadas (ambos execução precária. O que aliás
de 1970). A referência não é mais acompanhou toda a cinematografia de
Bruno Cava
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RESUMOS
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