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Lugar Comum

Estudos de mídia, cultura e


democracia

Número 44
set 2014 - abr 2015
Lugar Comum – Estudos de mídia, cultura e democracia
é uma publicação vinculada a professores e pesquisadores do Laboratório Território
e Comunicação – LABTeC/UFRJ e à Rede Universidade Nômade.
Av. Pasteur, 250 – Campus da Praia Vermelha
Escola de Serviço Social, sala 33
22290-240 Rio de Janeiro, RJ

EQUIPE EDITORIAL
Alexandre do Nascimento, Alexandre Fabiano Mendes, Barbara Szaniecki, Bruno Cava,
Bruno Tarin, Clarissa Moreira, Clarissa Naback, Fabricio Toledo, Giuseppe Cocco,
Leonora Corsini, Marcelo Castañeda, Priscila Pedrosa Prisco, Silvio Pedrosa e Talita
Tibola.

DESIGN
Barbara Szaniecki

CONSELHO EDITORIAL
Rio de Janeiro, Brasil: Adriano Pilatti, Eduardo Baker, Emerson Mehry, Gerardo Silva,
Rodrigo Bertame, Sindia Santos e Vladimir Santafé.
Outras cidades, Brasil: Alessandra Giovanella – Santa Maria, Elias Maroso – Santa
Maria, Desirée Tibola – Porto Alegre, Homero Santiago – São Paulo, Márcio Taschetto
– Passo Fundo, Mariângela do Nascimento – Salvador, Murilo Duarte Corrêa –
Curitiba, Marco Ribeiro – Porto Alegre, Peter Pal Pelbart – São Paulo, Rita Veloso –
Belo Horizonte, Rogelio Casado – Manaus, Joviano Mayer – Belo Horizonte, Fabricio
Ramos – Salvador, Sérgio Prado Pecci – São Paulo, Sandra Mara Ortegosa – São Paulo,
Salvador Schavelzon – São Paulo, Mario Joaquim Neto - Salvador.
Outros países: Anna Curcio – Itália, Antonio Negri – Itália, Ariel Pennisi – Argentina,
Carlos Restrepo – Colômbia, César Altamira – Argentina, Christian Marazzi – Suíça,
Diego Sztulwark – Argentina, Gigi Roggero – Itália, Javier Toret – Espanha, Matteo
Pasquinelli – Itália, Michael Hardt – EUA, Michele Collin – França, Oscar Vega
Camacho – Bolívia, Raúl Sánchez Cedillo – Espanha, Sandro Mezzadra – Itália,
Santiago Arcos – Chile, Alain Bertho – França, Ariel Pennisi – Argentina, Thierry
Badouin – França, Veronica Gago – Argentina, Yann Moulier Boutang – França.

Lugar Comum – Estudos de Mídia, Cultura e Democracia


Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação – LABTeC/ESS/UFRJ – Vol 1, n. 1, (1997) – Rio de Janeiro:
UFRJ, n. 44 – set 2014 - abr 2015

Quadrimestral
Irregular (2002/2007)

ISSN – 1415-8604
1. Meios de Comunicação – Brasil – Periódicos. 2. Política e Cultura –
Periódicos. I Universidade Federal do Rio de Janeiro. Laboratório Território e
Comunicação. LABTeC/ESS.
CDD 302.23
306.2
SUMÁRIO

UNIVERSIDADE NÔMADE

 O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau? 5


Bruno Cava

 Podemos, América do Sul e república plurinacional 15


Salvador Schavelzon

Podemos além Podemos, um poder constituinte na Europa 40


Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

 Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua 61


Márcio Tascheto da Silva

ARTE, MÍDIA E CULTURA

 O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini 78


Nicolás Fernández Muriano

 Benjamin e a percepção coletiva 104


Maurizio Lazzarato

NAVEGAÇÕES

 Proteção social e trabalho no Brasil em tempos de capitalismo cognitivo 128


Cecília Paiva Neto Cavalcanti

 Um, múltiplo, multiplicidade (s) 141


Alain Badiou

 Implementação do Conselho de Igualdade Racial em Teófilo Otoni 156


Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

 Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma 170


democracia por vir
Germano Nogueira Prado

RESENHAS

 Elogio do intempestivo, sobre “Filosofia radical e utopia” 181


(Andytias Soares de Matias) Murilo Duarte Costa Correa

 A terceira estética de Glauber Rocha, sobre “KorpoBraz” 187


(Giuseppe Cocco) Bruno Cava

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Universidade Nômade
O Podemos, entre multidão e hegemonia: Negri ou Laclau?

Bruno Cava

A diferença do populismo para um discurso liberal clássico está em que, para o


primeiro, o povo é algo ainda a construir-se, enquanto para os liberais o povo já está
dado. No primeiro caso, a construção do povo implica a construção de uma nova
representação. No segundo, cabe à representação apenas contemplar uma sociedade que
lhe preexiste, já formada.
No populismo, a história da construção de um povo passa pela divisão entre um
“nós” e um “eles”. Denuncia-se a falsa universalidade da ordem representativa
existente, que não mais nos representa, para a seguir reclamar uma nova universalidade.
Nas revoluções burguesas, foi a luta contra o ancien régime, a partir do que seria
possível libertar-se da aristocracia parasitária para formar a nação e a cidadania
burguesa, doravante considerada universal. Nas lutas anticoloniais, se lutava contra a
metrópole e o imperialismo, em nome da unidade da libertação nacional. Com o filósofo
Antonio Gramsci, a construção do povo reúne intelectuais, operários e camponeses
numa consciência coletiva nacional-popular, que se liberta dos burgueses.
Já para os tecnocratas, mais ligados ao discurso liberal clássico, não haveria
necessidade de construir povo algum: basta escolher as pessoas certas, adotar “ideias
que funcionam” e implantar a melhor gestão para cada situação específica.

A construção do nacional-popular

No Brasil, as ideias do nacional-popular estiveram presentes na versão


desenvolvimentista, em que a modernização nacional se atrela à emancipação popular
mediante ações mobilizadoras, pedagógicas e organizativas. A conquista do poder não
poderia ocorrer, simplesmente, com a tomada do estado, devendo passar por um
laborioso alastramento cultural e ideológico de formação nacional, desde as bases. O
papel dos intelectuais subdesenvolvidos, nesse projeto, consiste em liderar o processo
de esclarecimento das massas, segundo um programa emancipador. Evita-se, dessa
maneira, cair nalgum determinismo econômico segundo o qual bastaria industrializar o
país para formar um proletariado consciente. Sem a tarefa militante de emancipação
popular, a modernização invariavelmente produzirá ainda mais dominação de classe.
PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

A teoria política mais próxima dessa promessa nacional-popular, ainda que


elaborada no contexto das sociedades industrializadas das economias centrais, é a teoria
gramsciana. Para Gramsci, escrevendo na primeira metade do século passado, o
exercício do poder no capitalismo não se sustenta somente com coerção e medo. É
preciso, sobretudo, fabricar uma legitimidade difusa que, mediante inúmeras
instituições coletivas culturais, colha continuamente o consentimento da maioria. A
esfera representativa em seu conjunto, formada por governos, partidos e sindicatos
pode, assim, operar como se representasse o “interesse geral”, preenchendo fissuras e
estancando os desvios.
A ideologia, aí, não aparece como um sistema de engodo sistemático. Como se a
ideologia fosse um véu aposto à realidade, um cortinado místico separando as pessoas
da verdade sobre as reais relações de poder. Mais do que isso, a ideologia tem um
caráter material: determina os comportamentos e se infiltra nos hábitos. O capitalismo,
em essência, não engana alguém, e são ingênuas as perspectivas de que poderia perder
força diante da denúncia de suas mistificações. As pessoas já sabem que o capitalismo é
um complexo de exploração que gera, numa ponta, luxo e desperdício e, na outra,
miséria e violência.

Hegemonia e contra-hegemonia

É isto que Gramsci chama de hegemonia: a forma normal de política em


sociedades desenvolvidas e complexas, onde vigoram democracias representativas. É
uma operação cultural de grande escala, antes que unidade forçada pelo estado,
determinando a existência de um grupo hegemônico que se coloca como portador do
“interesse geral”. Em termos de hegemonia, o xis da questão não é perguntar como o
capitalismo funciona, mas como nós próprios fazemos ele funcionar. O capitalismo tem
uma evidência e uma querência, impregnadas, em que estamos implicados ao elaborar o
nosso dia a dia, nossos planos e nós mesmos.
O confronto contra-hegemônico, portanto, passa por um enfrentamento
igualmente no terreno ideológico e cultural, com a gradual infiltração no sistema e
ocupação de posições-chave — o que o teórico marxista chamou guerra de posição. É o
esforço de rearticular as identidades políticas para romper a hegemonia e afirmar duas
posições antagônicas, nós (o povo) x eles (a burguesia). Quando bem sucedido, isto
significa construir o povo noutros termos, segundo uma consciência nacional-popular
Bruno Cava

marcada pela identidade de classe operária e camponesa, a que corresponde a


representação socialista.

Laclau e o significante vazio

Ernesto Laclau, o pós-marxista argentino, se distancia de Gramsci ao se afastar


da ideia que a contra-hegemonia configura uma luta de classe. Escrevendo no final do
século 20, para Laclau vivemos uma realidade pós-ideológica, em que a sociedade não
pode mais ser interpretada no esquema dualista das classes. A luta de classe é somente
um aspecto, entre outros. A luta de contra-hegemonia se deslocaria, assim, para os
novos movimentos que articulam identidades políticas variadas, envolvendo também
lutas raciais, étnicas, de gênero, sexualidade, imigrantes.
Em momentos de crise da representação, a estrutura vigente de sentido perde
consistência. Como se, devido à instabilidade, se abrisse uma brecha no bloco
hegemônico, o que Laclau chama de significante vazio. É um lugar estrutural, em que os
sentidos passam a flutuar ao sabor dos múltiplos atritos provocados pela contra-
hegemonia. A luta culmina seja com a colmatação das fissuras, numa reforma social e
do estado que recupera as demandas, coopta os intelectuais e restaura a ordem existente
(em termos gramscianos, a revolução passiva); seja com a ocupação do significante
vazio por um grupo capaz de afirmar uma nova universalidade, uma nova ordem do
discurso atravessada pela totalidade social até então subrepresentada.
Como o leitor vê, Laclau situa o discurso no centro da atividade política. A
contra-hegemonia laclauliana envolve uma redefinição discursiva da universalidade. A
autonomia do político se dá num embate que, em última instância, se resolve em termos
de linguagem. A força só consegue consolidar-se ao rearticular a vontade coletiva num
sentido social global. Tal cristalização de identidades políticas até então
subrepresentadas determina um novo bloco histórico, numa unidade simultaneamente
cultural e política.

Populismo 2.0 do Podemos

Iñigo Errejón, intelectual espanhol do novo partido Podemos, tomou Laclau


como referência em sua tese de 650 páginas sobre a chegada ao poder de Evo Morales e
do Movimento ao socialismo (MAS) na Bolívia. O autor explica como, depois do ciclo

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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

insurgente entre 2000 e 2006, que inclui as contendas da água e do gás, Evo e o MAS
conseguiram reconstruir uma hegemonia a partir da integração das lutas
sindicais/cocaleiras, indigenistas/camponesas e antineoliberais de esquerda. O resultado
histórico foi a sutura de uma nova totalidade discursiva que, superando as partes, pôde
ocupar o significante vazio aberto pela crise da representação boliviana, no começo do
século 21. Contornando tendências movimentistas, mistificações do indigenismo (e do
próprio Evo) e sem “pagar mistério” sobre o paradigma do viver bien e o
pachamamismo, Errejón conclui que a transformação social implicou, necessariamente,
a reforma do estado e a recriação das instituições noutros termos, ao reconhecer outras
identidades políticas como sujeitos ativos do processo.
O plano estratégico do Podemos, hoje a maior força eleitoral projetada da
Espanha, é inteiramente baseado nessa concepção hegemonista, que vem de Gramsci,
Laclau e Errejón. A leitura é que as jornadas do Movimento do 15 de Maio (15-M), a
partir de 2011, romperam o horizonte de sentido do regime monarquista de 1978, em
sua alternância entre o PSOE e o PP. Abriu-se com o 15-M, assim, um significante
vazio, que entrou em disputa. No entanto, até agora, nenhuma força organizada
conseguiu ocupá-lo para conferir um novo sentido social global. Tal incapacidade levou
o regime antigo a prolongar-se, apesar da crise destituinte, inclusive iniciando ações de
restauração aos moldes da revolução passiva.
O surgimento avassalador do Podemos se explica, assim, por estar no lugar certo
na hora certa, assumindo a tarefa de tomar para si o significante vazio do 15-M. Isto
implica assumir um discurso capaz de reunir uma maioria social, atraindo segmentos da
sociedade que se encontram flutuantes, reunindo as forças dispersas (e dispersadas pela
repressão) e os múltiplos sentidos políticos. Daí a ideia, tão presente no discurso de
Pablo Iglesias, de tomar o “centro do tabuleiro”. Ou seja, de afirmar uma nova
universalidade que seja composta pela integralidade da sociedade pós-15M. Isto
significa uma síntese ampla e transversal que, à semelhança do MAS na Bolívia, possa
consolidar o ciclo insurgente num novo ciclo institucional, levando à reforma do estado
e da representação, a partir dos novos movimentos como sujeitos ativos.
A investida contra-hegemônica do Podemos, segundo a concepção de seus
líderes, não é nem frentista — que seria mera unificação quantitativa e tática de forças
de oposição — nem imposição vanguardista — uma tentativa de tomada do poder
descolada das forças sociais não-representadas. Significaria, em vez disso, uma
Bruno Cava

mudança qualitativa e douradoura no horizonte de sentido, integrando as diversas


demandas, desejos e sujeitos políticos para uma nova universalidade concreta.

A crítica ao populismo

Uma primeira crítica das teorias da hegemonia, de Gramsci a Iglesias, está no


fato que ela confere demasiada importância aos intelectuais. Evidentemente, intelectual,
aqui, não se confunde com acadêmico. Em gramscês, intelectual é qualquer um que
produza discurso. Em sociedades do capitalismo tardio, isto significa líderes culturais,
músicos, celebridades, âncoras de TV, enfim, a produção de mídia em geral. Nas teorias
pós-gramscianas, a comunicação assume uma centralidade grande.
No Brasil, tal tendência pode ser constatada com a profusão de análises que
sobrevalorizam o papel da “grande mídia” na articulação da vontade coletiva. Não
admira que, segundo o diagnóstico dessa linha hegemonista, um dos maiores obstáculos
para a contra-hegemonia consista na impermeabilidade de rádio e TV em relação a
identidades políticas subalternas. O “significante vazio” restaria bloqueado.
Para Gramsci, os intelectuais alinhados com forças historicamente emergentes
devem mergulhar na atividade militante cotidiana, em participação orgânica na vida
prática como construtor, organizador, convencedor. Mais do que fundir-se ao povo, ele
estaria trabalhando, assim, para a construção da consciência nacional-popular, que
aspira a tornar-se povo.
No Brasil, no século 20, multiplicaram-se os intelectuais, geralmente formados
nas camadas médias, que se atribuíram a missão histórica de conscientizar (e, pelo
menos num primeiro momento, liderar) os proletários. O que vai desde a pedagogia do
oprimido de Freire ou o teatro de arena de Boal, dedicados à ativação de classe desde
dentro, até as lideranças de movimentos sociais, como Guilherme Boulos, do MTST.
No “populismo 2.0″ de um Podemos, a leitura é outra. Mudou a composição de
classe na base dos movimentos, de maneira que não faz mais sentido organizar no
esquema dialético cúpulas/bases. A própria ideia de “trabalho de base” se tornou
anacrônica, em termos de maioria social. A diversificação dos espaços sociais, a
mobilidade das pessoas entre eles e a velocidade comunicativa impõem outra maneira
de abrir brechas no bloco hegemônico. Daí a concentração nem tanto na capacidade
intelectual propositiva, de sedução e síntese, quanto na vocalização transversal de
amplos setores dispersos e autônomos em seu próprio direito. Desaparece a figura do

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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

intelectual orgânico junto às massas, de cariz gramsciano: Iglesias se coloca no cenário


midiático como intelectual pós-orgânico, ou melhor, inorgânico.

Multidão x hegemonia

A diferença do populismo para a teoria da multidão, de Negri e Hardt, consiste


em que, para a última, a potência não está na construção de um povo. O povo falta na
multidão, porque ela consiste de forças singulares que não admitem qualquer tipo de
unificação. O “significante vazio”, dessa maneira, não passa de uma abstração
estruturalista, que perde de vista como o vazio é produto de um êxodo e não de um
deslocamento estrutural. O êxodo vai ao deserto porque está prenhe de mundo e não
precisa de significantes.
A crise é gerada pela convergência de plenitudes constituídas por singularidades,
do que por alguma lacuna entre identidades e a totalidade. Muda a perspectiva. O 15-M,
nesse sentido, é antes uma experiência de viver o “sim”, uma experimentação de
cooperação, rede e amor à potência comum, do que um mero deslocamento de
significados. O trabalho da multidão não está em consolidar uma “universalidade
concreta” mediante a sutura dos sentidos, mas multiplicar pontos de atrito numa
variedade de táticas, visando ao aprofundamento das conquistas.
Para Negri e Hardt, não é que a construção de um nacional-popular esteja
moralmente errada porque tentaria unificar a diversidade de identidades políticas não-
representadas, a conformar-se segundo outro projeto de poder (“nacional-popular” ou
não). É que, primeiro, tais “identidades” não podem ser representadas, porque são
singularidades em permanente transformação. E, segundo, porque a tentativa de
unificação subtrai o poder próprio da diferença que elas exprimem. É que a potência
está com a multidão. O que condiz com o fundo marxista da teoria, visto que a multidão
é um conceito de classe e quem faz a revolução é a luta de classe. A essência da
multidão é a sua própria potência, no sentido que suas forças singulares são
imediatamente produtivas — de formas de vida, afetos ativos, direitos vivos,
capacidades criadoras de cidade.
Laclau e Negri divergem quanto às coordenadas da luta nas condições atuais. Se
Laclau postula uma era pós-ideológica, em que a luta de classe cede à diversidade de
identidades que buscam se afirmar; Negri aponta uma mutação no capitalismo
determinada por uma nova forma de vida social, baseada na autonomia dos sujeitos, na
Bruno Cava

colaboração transversal e, na esteira de Deleuze e Guattari, na amálgama entre humano


e não-humano, no plano maquínico. Não é que a classe tenha se dissolvido numa
diversidade de “novos movimentos”, nos termos de Laclau; em realidade, a classe se
reorganiza nas condições da organização social do capitalismo hoje, e é sobre esse
terreno que a multidão poderá emergir — sempre no antagonismo e na ação criadora.

A crítica do populismo 2.0

Com o foco na teoria do discurso, o “populismo 2.0″ (Errejón) perde de vista


todo o substrato com que funciona o próprio capitalismo. Com as mutações de que
falam Negri e Hardt, desaparece qualquer possível divisão entre o terreno material das
lutas em que se constituem os sujeitos, e o terreno cultural e ideológico em que são
articuladas as vontades coletivas. Não tanto que cultura e ideologia sejam super-
estrutura de relações econômicas, — o que seria marxismo vulgar, — mas sim que estão
imediatamente atravessadas pelo plano pré-discursivo ou pré-linguístico, o plano
maquínico do desejo.
As experiências de luta dos novos movimentos e de ciclos insurgentes — na
Bolívia ou na Espanha — produzem transformações no nível da sensibilidade, uma
nova maneira de sentir a democracia e a ação comum. Os afetos gerados pelos bons
encontros são cristalizados em hábitos, mesclando-se com os comportamentos mais
“naturalizados”. Se o capitalismo tem uma evidência e uma querência, tais construções
político-afetivas têm o condão de produzir outras evidências e outras querências.
A mudança real não pode ser totalizada em ideologia abrangente que substitui a
velha ordem e não procede desta forma, ficando no plano linguístico. Com prioridade
ontológica, a mudança real precisa ser metabolizada pelos próprios movimentos
minoritários na construção de novos hábitos, afetos e agenciamentos maquínicos. Isto
não é privilegiar alguma micropolítica localista romantizada, mas praticar movimentos
expansivos com capacidade propagadora de alta intensidade, atravessando fronteiras,
identidades, espaços delimitados. Afinal, as minorias são todo mundo.
Muitas transformações, da segunda metade do século passado em diante, dessa
maneira, não passam pela reforma da representação, nem pela ocupação de algum
significante vazio, de resto um esquematismo a-histórico igualmente vazio. O leitor
veja, por exemplo, a revolução sexual e das drogas dos anos 1960, ou então uma série
de mutações de sensibilidade que, por vezes, são entendidas impropriamente como

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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

“evolução social”, mas que no fundo significam a produção de práticas concretas, afetos
cristalizados, hábitos. O plano da linguagem não capta um mundo de fluxos e
reagenciamentos operantes diretamente entre os corpos e a composição dos corpos,
inclusive com corpos não-humanos, maquínicos, em sua dimensão molecular.
No fundo, a luta da multidão é mais potente do que a construção discursiva de
um povo porque opera no mesmo fundo inconsciente da vida comum que o capitalismo
coloniza e explora. Isto vale, inclusive, para a questão da mídia, denotando o vício
daqueles tão maceteados pela oposição ao Leviatã da “grande mídia”. Nenhum órgão de
comunicação tem o poder de emitir enunciados que, uma vez recebidos, passam a
circular pelo tecido social. Esta seria uma análise molar e discursiva do fenômeno. O
máximo que podem fazer é conectar-se ou conjugar-se a redes de afetos e fluxos
desejantes pré-existentes, que adquirem certa consistência. Basta ver como a força de
um telejornal de uma grande emissora está, através dos circuitos do desejo, ligada à
maquinaria da telenovela e do futebol.
Obviamente, tal percepção não nos deve levar a subestimar o “poder da mídia”,
mas a entendê-lo melhor na medida em que nós fazemos ele funcionar (querendo ver o
jogo no Galvão, por exemplo).

O Podemos na berlinda?

Disso tudo, não deveríamos cair num esquematismo precipitado. Como se a


descrição do MAS a partir do hegemonismo laclauliano, ou a autoelaboração do
Podemos por seus professores-ideólogos, fosse determinante para apreender o sentido
histórico e material daqueles. É preciso atentar que existe um lag entre o que falam de
uma experiência (mesmo aqueles implicados nela), e o que essa experiência nos
interpela.
A busca da maioria social do Podemos já foi criticada como captura dos devires
do 15-M, vago sincretismo populista, conchavo elástico demais, personalismo de
Iglesias ou, como escreveu o antropólogo argentino Salvador Schavelzon1, uma
tradução político-cultural deficiente (oportunista?) dos experimentos da América do Sul.
O Podemos levaria à Espanha não o que de melhor teria sido produzido na América do
Sul, mas justamente a parte problemática que tem levado governos a fechar-se em

1
Artigo a seguir, nesta edição.
Bruno Cava

termos de poder constituinte. Seria por demais luta hegemonista, socialista e nacional-
popular, e por de menos anti-pós-colonialista, plurinacional e cosmopolítica.
O caso é que, por outro lado, assim como na Bolívia, na Espanha quem disse que
o Podemos abafará o povo que falta, isto é, a multidão? Na Bolívia, o fechamento
progressivo do governo de Evo e do MAS levou à abertura de novos atritos e frontes de
disputa, que se somaram aos anteriores irresolvidos, o que o marxista boliviano (e vice-
presidente) Alvaro Linera chama de empate catastrófico. A multidão seguiu atuando
com Evo, a despeito de Evo, contra Evo — simultaneamente, segundo uma variedade de
táticas.
De maneira semelhante, se o “poder do Podemos” consiste no atravessamento
pela multidão, não será um governo podemista refém da força dispersa, que agora nele
parece apostar enquanto tática eleitoral? Se a potência está com a multidão, por que ter
medo de uma alternativa hegemonista cuja força depende dela em primeiro lugar?
O erro não seria, talvez, considerar o Podemos, em moldes gramsciano-
laclaulianos, como uma estratégia de construção de povo — em vez de mais uma das
táticas da multidão, uma maneira de concatenar poder e potência (potestas e potentia)?
Traçar um destino para a experiência organizativa em face de sua ideologia assumida
não é, exatamente, confirmar pela via negativa que aquela ideologia descreve e
prescreve a própria experiência?
De onde vejo, essa questão está em aberto.

Dedicado ao companheiro sul-americano Santiago Arcos, cujo ímpeto de debate e luta


é uma referência de engajamento não-hegemonista

Bruno Cava é autor de “A multidão foi ao deserto” (2013), escritor e pesquisador


associado à rede Universidade Nômade, bloga no quadradodosloucos.com.br

Referências
BEASLEY-MURRAY. La clave del cambio social no es la ideología, sino los
cuerpos, los afectos y los hábitos. Eldiário.es, 2015.
<http://www.eldiario.es/interferencias/Podemos-hegemonia-
afectos_6_358774144.html>

DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Felix. O anti-Édipo. 34, 2010.

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PODEMOS ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA, NEGRI OU LACLAU?

ERREJÓN, Iñigo. La lucha por la hegemonía durante el primer gobierno del MAS
en Bolivia (2006-2009): un análisis discursivo. Tese de doutorado. Madrid, 2012.

FERNÁNDEZ-SAVATER, Amador. Fuerza y poder; reimaginar la revolución.


Eldiario.es, 2013.
<http://www.eldiario.es/interferencias/Fuerza-poder-Reimaginar-
revolucion_6_155444464.html>

GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere, 6 vols. Civilização Brasileira, 1999-.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Record, 2005.


____. Commonwealth. Harvard, 2009.

LACLAU, Ernesto. A razão populista. EdUERJ, 2013.

SÁNCHEZ, Raúl Cedillo. O poder do Podemos. Site da UniNômade, 2014.

SCHAVELZON, Salvador. Podemos, América do Sul e república plurinacional. Site


da UniNômade, 2015.
< http://uninomade.net/tenda/podemos-america-sul-e-republica-plurinacional/>
Podemos, América do Sul e a república plurinacional da Espanha1

Salvador Schavelzon

Podemos vem sendo analisado de várias formas: como dispositivo discursivo


que consegue captar a atenção midiática; como força política que irrompe e ameaça o
bipartidarismo; como partido dos indignados e produto do 15-M; como aparelho que
transmuda pluralismo e mobilização em centralização partidária de horizonte social-
democrata; como combinação pós-moderna de chavismo com esquerda pró-soviética;
como futuro para o sul da Europa mediante soluções para uma política asfixiada pela
austeridade.
Aqui ensaiaremos outra leitura, nos perguntando de que forma a proposta do
Podemos se relaciona com o caminho seguido pelos governos progressistas da última
década na América Latina. Em especial, nos interessa explorar a plurinacionalidade
como um dos “significantes vazios” que o grupo de Pablo Iglesias mobiliza ao tratar da
questão da soberania catalã, e que nos remete diretamente aos processos constituintes da
Bolívia e do Equador. De fato, e guardando as distâncias, alguém que compare os
movimentos e posicionamentos do Podemos com esses processos, estudados ou
acompanhados de perto por três dos cinco fundadores do partido, não poderá evitar uma
sensação de deja vu. Ela não é suficiente para prever um curso análogo, mas é o
bastante para tecer hipóteses que abram um parêntese no entusiasmo generalizado pela
possibilidade de mudança.
A rápida aparição da plurinacionalidade, como parte da convocação de uma
Assembleia Constituinte como horizonte que aparecia bastante no início da vida política
de Podemos, diz muito sobre um projeto político, para quem a experiência latino-
americana parece ter mostrado o caminho para a criação de um instrumento eleitoral
que aposte no fortalecimento do estado-nação e amortize a mobilização das
nacionalidades, a fim de impulsionar crescimento com foco no social. Como
componente de projetos políticos que partilham desta perspectiva no “tabuleiro
político”; a plurinacionalidade constitucionalizada na Bolívia e Equador, agora proposta

1
Original em espanhol, em http://anarquiacoronada.blogspot.com.br/2015/01/podemos-sudamerica-y-la-
republica.html Tradutor: Bruno Cava.
PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

por Podemos, se adapta ao objetivo de dissuadir projetos de autodeterminação territorial


sob a sombra do estado de bem estar e de um chamado à pátria de todos os espanhóis.
Pode-se resumir esta proposta política partilhada como solução estatal para
temas sociais, sem rupturas a respeito do marco do capitalismo. Na demarcação de seu
espaço no imaginário político-discursivo, se opõe, por um lado, o liberalismo e os
bancos contra os despejos e hipotecas, no estado español, ou contra as privatizações e a
autonomia do Banco Central, na América do Sul. Por outro lado, este projeto se coloca
longe de formas de pensar o comum que não sejam as do social, longe de formas que
poderíamos associar à comunidade e à rede, presentes quando encontramos projetos de
autonomia, autogestão e horizontalidade, para a organização do comum.
Não é apropriado associar o Podemos com a social-democracia, apesar de
propostas deste tipo, porque na definição de seu lugar político é fundamental a crítica à
cumplicidade do socialismo europeu com o caráter antipopular e os partidos de raiz
conservadora ou liberal. Este projeto que amigos e inimigos descrevem como
“populismo”, na Bolívia e no Equador é remetido ao bolivarianismo de Chávez, em
Chávez se aludia ao peronismo de Péron, e desde o peronismo, hoje kirchnerista, as
referências mitopolíticas nos levam outra vez à Europa, mas aquela do passado, com
ainda outras modulações importantes em cada passagem destas. Em todas, é o povo
contra a oligarquia (ou o poder financeiro internacional) a conformar uma sociedade –e
um “povo”- na busca de sua realização a partir do estado, interpelando indivíduos e
seguidores em vez de povos em plural ou coletivos em movimento. Embora no
imaginário de Podemos circulem ideias que podemos identificar com autores variados
como David Harvey, o autonomismo italiano, a epistemologia do Sul, além dos
argumentos e posicionamentos adaptados dos governismos latinoamericanos, o autor
que permitiu fechar, em 2014, uma tática política com fundamento teórico de corte
“nacional-popular” foi Ernesto Laclau, mais do que qualquer outro.
Numa leitura especulativa sobre a forma em que esse imaginário se traduz numa
visão política e de mundo, vemos que o partido e o estado, como formas organizadas do
social, recortam redes e verticalizam conexões a partir de uma ideia do social que
prioriza a coesão à diferença, e se dirige desde acima a uma sociedade composta por
indivíduos, um selo sociológico moderno compartilhado com o liberalismo. A partir de
uma proposta pós-neoliberal, a chegada de governos progressistas na América do Sul ou
na Europa supõe várias vezes que o indivíduo rompa o isolamento consumista e atue
unido mediante o voto que, em alguns casos, pode vir acrescido da mobilização. Mas o
Salvador Schavelzon

impasse com a sociedade que individualiza é efêmero, ao restabelecer-se rapidamente a


promessa de assistência ou inclusão de sujeitos concebidos como necessitados de mais
estado, muito distantes dos novos rostos de um comando que poderia tentar governar
diferente, mas sim a partir do mesmo lugar, e cheio de cinismo, impotência e
continuidade.
A esse lugar de hegemonia e projeto de mudança bastante específicos, apesar de
sua ubiquidade discursiva, se pode chegar partindo de muitos lugares, e é dessa maneira
que se podem convocar maiorias sociais. Embora poucas vezes passem a representar as
lutas e os desejos dos muitos, essa proposta política sempre fala a partir da
universalidade, como força que somente funciona se for expressão de todos, e não como
setor ou ideologia que poderá participar de coalizões ou frentes do ponto de vista da
parcialidade.
Embora a esse lugar se chegue desde o socialismo, o catolicismo, o
progressismo liberal e o nacionalismo; desde a Epistemologia do Sul, o pós-operaísmo
italiano e a Esquerda Unida ou o trotskismo do Secretariado Unificado pela IV
Internacional; a posição de chegada é a de um instrumento de todos os cidadãos, da
gente, do povo indignado, e a partir daí falam o kirchnerismo e o chavismo, Rafael
Correa ou Pablo Iglesias: somos o povo, “podemos” e sorrimos (isto último lançado
frente a campanha suja da imprensa). Podemos só funciona como um “todos” que
representa a Espanha. Fora ficam apenas a oligarquia, a “ultraesquerda”, os que rompam
a unidade e aqueles que perdem, isto é, aqueles que não estejam preparados para fazer
os sacrifícios de identidade e projeto necessários para “ganhar”.
Quanto mais crescer o grupo e ligar-se com lutas, nada terá sido dito, apesar das
tendências, sobre o que é fundamental: quanto tempo de crescimento terá que ter o
Podemos antes de chegar ao governo, quanto a ansiedade por ganhar deixará espaço
para a construção desde baixo. Mas, por enquanto, observamos que a formalização do
Podemos como partido de autoridades que decidem no dia a dia, e votantes esporádicos
sobre questões secundárias ou candidatos assinalados pelo líder, deixou perplexos os
protagonistas das ruas no momento anterior, aberto pelo 15M.
O modo de crescimento adotado pela organização foi de seguidores que delegam
e autoridades que prevalecem, em vez de corpos e diferenças que se enredam e se ligam
desde a horizontalidade, em buscas de formas novas de democracia e organizacao
social. Veremos também se esta é uma crítica injusta e testemunhal, que desconhece as
tarefas pesadas exigidas para a mudança, ou se realmente desse modo escolhido se

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

perde uma oportunidade única para construir formas novas num momento em que os
contornos das instituições modernas estão se esfacelando, cada vez com menos
legitimidade.
Para coletivos urbanos, imigrantes, mulheres, precários desconectados sem
documentos, ou povos soberanos que, como indígenas e movimentos horizontais latino-
americanos, não concebem a participação política enquanto sociedades de indivíduos e
cidadãos da nação delegando ao estado e ao partido o vetor político de mudança, o
Podemos renunciou rápido demais em explorar todo o alcance de seu voo. Enquanto
isso, o fechamento sem fissuras ao redor de um comando político blindado, e a pátria
espanhola como referência identitária — ainda que justificada como estratégia, tal qual
no progressismo latino-americano, para alguns é parecido demais com o que se deveria
transformar antes de qualquer coisa.
Numa Europa que conheceu os problemas do nacionalismo e vê recrudescer
atualmente os conflitos étnicos e civilizacionais, se entende o lugar de uma esquerda
laica, moderna e republicana que busque distanciar-se de movimentos que considera
desvios da política social e defesa do estado de bem estar, concebidos como prioritários.
A partir de uma Europa das diferenças, apesar disso, os limites da república e do que
representa a Europa, com sua social-democracia totalmente cooptada pelo capital, o
projeto iluminista fracassado como companhia inseparável da violência colonialista, e
uma modernidade que em seus extremos mostra seu lado mais obscurantista, estão tão à
vista quanto a continuidade republicana do colonialismo nos Andes sul-americanos.
É nesse sentido que, desde uma proposta espanholista e social, ainda que seja
republicana, plurinacional e antimonárquica, pareça haver muito pouco do sentido
comum nascido nas praças ocupadas em 2011. Voltando à América Latina, se remete
menos às lutas indígenas e populares contra o neoliberalismo, do que ao seu termidor
desenvolvimentista multicultural. É esta a aprendizagem dos fundadores de Podemos na
América Latina, como projeto social que absorveu a plurinacionalidade e a alterou ao
modo do liberalismo que reduz diferença e autonomia a relativismo cultural, e um
nacionalismo que concebe o estado como instrumento central para organizar a vida e a
comunidade.

A perda da ambiguidade dos governos sul-americanos


Salvador Schavelzon

Os governos sul-americanos da última década trazem algumas chaves de leitura


possível para a proposta política de Podemos, e não somente por motivos biográficos de
seus fundadores. A experiência política de governos que deslocaram bipartidarismos e
partidocracias, que surgiram depois de importantes mobilizações antineoliberais,
oferecem um ponto de vista que ajuda a imaginar o que seria um governo europeu de
caráter “popular”. Mais do que exemplos concretos a seguir, tais governos oferecem um
ponto de vista e uma “narrativa” que já provou a sua eficácia enquanto dispositivo, para
impor-se eleitoralmente baseando-se na reivindicação do social frente a bancos e
recortes antipopulares.
Essa narrativa serve como demonstração que, depois de ditaduras e anos de
mobilização nas ruas e praças, é possível — e que “si, se puede” — ter governos
surgidos das lutas sociais, do voto crítico ou da indignação popular. Esses governos
conseguiram consolidar-se politicamente guiando períodos de crescimento
macroeconômico sustentado, depois de fortes momentos de crise. No terreno eleitoral,
foram encontradas fórmulas para obter apoios eleitorais que superaram os 50% em
reiteradas disputas.
Longe de uma demagogia meramente eleitoralista que liberais assustados
denunciam em Podemos, a disputa midiática se estendeu mais além das eleições, com
diversas medidas que permitiram aos governos antagonizarem com o passado, a elite e
as oligarquias partidárias, contrárias aos interesses da “pátria”. Sem necessidade de
mudanças estruturais que interferissem na dinâmica da distribuição de renda e a relação
com o mercado, a narrativa popular bastou para sustentar governos e abrir algumas
frentes de batalha. Na Venezuela, Argentina, Equador e Bolívia, a polarização com
quem se opõe aos interesses do povo excedeu o tempo eleitoral, apesar de que também
esteja claro que as alianças para governar sugerem transversalidade com os poderes de
sempre, em vez de antagonismo.
É notório o sentimento de familiaridade entre os governos progressistas sul-
americanos que se erigiram deixando para trás épocas de “ajuste neoliberal”, e a
proposta de Podemos – e Syriza – numa Europa comprometida com a austeridade.
Desde esse lugar, os diversos governos encontraram espaço político para debater-se com
o poder financeiro e os fundos “abutres”, recuperar algo de protagonismo para o estado
e combater a pobreza, principalmente extrema. A partir de uma realidade distinta, sem
dúvida, há uma mesma posição de sujeito na instalação do ponto de vista que, de
Chávez a Mujica, ressoa quando Podemos propõe caminhos políticos e marcos

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

constitucionais para uma mudança que, no entanto, não romperia com Espanha, a União
Europeia e o Euro, não proporia uma saida da OTAN.
Devemos notar que o diálogo elogiável que Podemos em sua fase ascendente
entabula com a política latino-americana nem sempre leva em conta os becos sem saída,
encontrados por processos que se desdobraram em pactos excessivos com o passado, na
aceitação de setores da velha política que nunca se foram e na tolerância com lastros
inesperados que impuseram distância a movimentos e antigos aliados. Uma debilidade
congênita para atacar privilégios e injustiças antes denunciadas se mostraria estrutural,
nos governos sustentados com acordos de governabilidade expostos como necessários, e
consensos conservadores no manejo da exploração de recursos e na expansão capitalista
no campo, com graves consequências ecológicas e de preservação dos territórios.
Na contramão do sentido comum da esquerda libertária contemporânea e de
imaginários pós-68, e talvez por isso um contraponto que funciona nas tertúlias
televisivas contra a direita conservadora e o regime pós-franquista de 1978, Podemos
buscará reconstruir e disputar uma identidade homogênea de um povo unitário.
Cidadãos que apoiam a partir das suas casas e encontram novos representantes para
substituir os desgastados, aparecem assim como a contraface de assembleias e redes
sem centro, ao que somente certa leitura despistada qualifica de ineficazes e sem efeitos,
como se o cenário atual não se devesse à magnitude daquele fenômeno.
Como diz Juan Carlos Monedero, os processos latino-americanos ajudaram o
Podemos a aprender e não repetir erros, e menciona que o Que se vayan todos de 2001,
assim como outras revoltas, os alertou de que é necessário uma alternativa com
capacidade de fazer governo e não somente impugnar [1]. Movimentos de protesto,
assembleias e ocupações do espaço público se reconhecem meramente como
antecedente primitivo e mitologizado que necessariamente deverá dar lugar a uma
institucionalização em que todos participem, mas apenas em consultas feitas por meio
dos telefones celulares, enquanto “os mais preparados”, como propõe Iglesias, sejam
convocados pelo partido para governar.
É o estado pra onde se devem dirigir necessariamente todos os esforços, nesta
visão, como catalisador de impulsos imaturos de um momento de protesto que
doravante se decreta encerrado. Disparando um deja vu ainda antes de aceder a algum
governo, vemos essa discussão quando Podemos opõe “ganhar” a “protestar”, na
proposta que, em janeiro de 2015, a Carolina Bescansa fez como parte de um debate
numa eleição interna do partido em Madrid, mas que na América do Sul já levou à
Salvador Schavelzon

prisão ativistas e líderes indígenas no Brasil e Equador, somente por protestar contra os
governos de que antes eram aliados. O mesmo juízo se adivinha na frase que “se não
estão gostando, montem um partido e ganhem as eleições”, com o que agora governos
progressistas também desafiam mobilizações contra medidas que afetam o bolso ou
formas de vida nos territórios.
A condução do Podemos, que busca fazer exatamente o que líderes como Lula
da Silva ou Rafael Correa propõem a seus críticos — formar um partido e ganhar —
pensa parecido quando enfrenta “eficácia” de frente às eleições, frente à democracia
interna e o pluralismo que a própria força política convocou inicialmente. Nesse sentido,
o debate que acompanhou a Assembleia Cidadã de Vista Alegre, quando se formava a
organização, teve Pablo Iglesias anunciando que sairia da organização caso sua proposta
não obtivesse a maioria, mas que se ganhasse queria listas completas e fechadas com
seus afins em todos os postos de autoridade partidária, como medida que considerava
necessária para ganhar. Ainda, além disso, buscaria integrar com sua gente os
Conselhos Cidadãos das comunidades, exceto onde as listas rivais tivessem chances de
rivalizar, onde ele sim estaria disposto a integrar com outros a condução do partido.
É mérito do Podemos mencionar os processos latino-americanos como
inspiração distante, ainda que não modelo, rompendo com a geopolítica colonial do
conhecimento, em que costuma ser mais usual que os países do sul sejam
contraexemplo e os da Europa modelo a imitar, justificativa para qualquer medida ou
reforma. A presença de muitos hoje quadros de Podemos na América Latina e noutros
lugares, apesar disso, é muitas vezes explicada por eles mesmos menos como
intercâmbio produtivo e vital, e mais como necessidade de sair do país obrigada pela
crise devido à falta de oportunidades. Em várias apresentações a que assistimos entre os
que correram para postular algum dos cargos do novo partido, se trata de heróis que
saíram por causa da crise e voltaram pela pátria, entidade sempre útil e lembrada
quando se busca aceder ao governo, mandar à guerra ou trabalhar.
A América do Sul oferece à Europa, sem dúvida, um rico repertório de
negociações soberanas de dívidas ilegítimas e políticas pontuais, mas também um
problema político irresolvido quanto à tolerância com o desflorestamento ilegal da
Amazônia, o extrativismo contaminador nos Andes e o avanço predatório da fronteira
agrícola para monoculturas transgênicas rentáveis, com suas consequências
irreversíveis, já causadoras de secas e inundações, resultado do uso descontrolado dos
recursos tidos como fundamentais para sustentar políticas sociais e manter o

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

crescimento e o consumo em alta. Esses temas não podem ser abordados como abusos
corrigíveis, nalguma possível versão melhorada, se trata antes disso de componentes
inseparáveis de modelos econômicos e projetos políticos, ao que Podemos parece
integrar-se, a julgar por posicionamentos passados de seus fundadores e propostas atuais
nos novos debates.
Como todo deja vu que devolve um passado sempre ubíquo e incompleto, o
lugar a partir de onde ler Podemos na América do Sul é disputado e instável. Um
primeiro impulso leva aos anos 90, com o auge e a queda de presidentes neoliberais,
bem como a líderes campesinos como Evo Morales, ou populares como Chávez, ou
cidadãos próximos da gente, como Chacho Álvarez, que impulsionaram seus partidos
com destinos diferentes mas inimigos similares. Embora os governos progressistas que
se consolidaram nos anos 2000 mantém viabilidade eleitoral até o presente; na América
do Sul também se evoca o Podemos em distintas iniciativas na busca de criar uma nova
força política, no momento em que retornam os protestos e o neoliberalismo denota
continuar.
Assiste-se na América Latina a um novo ciclo de mobilizações pela vida, o
comum e o território, na metrópole e comunidades, com movimentos sociais ou de
participação eleitoral, mas por caminhos políticos em que o objetivo não é a construção
de uma hegemonia que conduza a um novo estado, ou a acumulação de força eleitoral
para a remoção de partidos antipopulares, apesar de essas lutas não se oporem a isso. A
partir deste lugar, que não é o de nostalgia por mobilizações passadas nem de um
anarquismo que impugnaria qualquer institucionalização, a irrupção do Podemos parece
tão alheia quanto poderia ser para todo aquele que não considere terminadas as formas
coletivas que reverberaram no 15-M, ou na busca da mudança social com
autodeterminação.
O significante vazio confunde o soberanismo catalão que qualifica Podemos de
novo cavalo de Troia madrilenho do espanholismo, mas também como a melhor
interlocução possível na cabeça do estado espanhol. A ambiguidade também aparece no
novo partido que tanto é produto do 15-M, quanto a sua traição e antagonista. Se, com
efeito, a posição de sujeito em afinidade com os governos sul-americanos se constitui
como próximo governo espanhol, muitas dúvidas seriam rapidamente dissipadas. Como
tem acontecido, sem embargo, a capacidade de representar uma esperança — polarizar
com o neoliberalismo, mas governar com ele, — poderá manter-se. De qualquer modo,
Salvador Schavelzon

as inquietações das ruas e movimentos já podem ser enunciadas, como faz Uli Brand
sobre a Syriza e a Europa em geral:
Nos comentários, se repete uma ou outra vez a cantilena pálida do
‘crescimento’ necessário. Mas, o que significa isso concretamente?
Concretamente, que tipo de empregos serão gerados ou conservados?
Estamos falando de empregos na indústria bélica, ou numa indústria
produtiva o mais sustentável possível? Do trabalho de peões mal
remunerados, na agroindústria? Ou de trabalhadores com emprego digno na
produção ecológica de alimentos? E quem decide sobre as inversões que
devem nos levar ao crescimento? Fundos privados de alto risco em busca do
maior rendimento possível, ou empresários responsáveis, ou inclusive a
população, mediante mecanismos e procedimentos de democracia
econômica? [2].

Podemos e a plurinacionalidade

Em seu discurso em Barcelona, fechando o esplêndido ano de 2014 para sua


recém criada força política, Pablo Iglesias falou de respeitar o direito dos catalães de
decidir sobre o seu futuro. Algo básico desde o ponto de vista da esquerda universitária
que simpatizou com movimentos globais e latino-americanos, mas inédito para um
partido nascido em Madrid, que tem possibilidades de obter a presidência do governo.
Isso sim, Pablo Iglesias esclareceu em Barcelona: para que haja direito a decidir seria
necessário também decidir sobre a economia e outros assuntos. Qualquer decisão
vinculada à soberania, para Podemos, deve estar sujeita à abertura de um processo
constituinte geral.
Logo ao assumir o cargo de secretário geral, no teatro Apolo de Madrid, em 15
de novembro de 2014, Iglesias foi claro em detalhar em que medida o Podemos está de
acordo em consultar os catalães: a “relação jurídica que querem ter com o resto do
estado.” Pablo não escondeu, em várias declarações, que gostaria que os catalães “não
fossem embora” e “ficassem conosco”, mas a sua posição não é a de Rajoy. Em
Barcelona, falou da necessidade de “estender pontes em vez de elevar muros”. A
tradução desses desejos em termos de estrutura do estado tem a ver com o
reconhecimento de que a “Espanha é um país de nações” e a proposta de que “possamos
construir um futuro plurinacional juntos”, agregou no mesmo ato de 21 de dezembro,
em Barcelona.
O objetivo de Iglesias não é incorporar os setores soberanistas das comunidades
que contam com fortes movimentos independentistas. As pesquisas mostram que
Podemos não fecha com elas, mas sim, com mais incidência, com os votantes

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

desencantados dos partidos espanhóis, bem como entre novos votantes não
entusiasmados com a luta pela autodeterminação nacional. Trata-se de encontrar uma
saída ao desafio catalão que permita dispersar um nacionalismo que, desde a perspectiva
de esquerda ou social, não é julgado como autêntico ou essencial. Em lugar de
confrontar o soberanismo, se propõe um modelo de estado que o contemple, sem no
entanto perder o comando estatal requerido para efetuar mudanças sociais.
Depois que a Catalunha foi a comunidade com os piores resultados para o
Podemos na eleição para o parlamento europeu, em 2014, o partido parece ter
encontrado a forma de usar a mobilização soberanista a seu favor, tanto no impulso de
um processo constituinte mais amplo, como no desvio do descontentamento catalão
para outro tipo de saída. Íñigo Errejón definiu que “Para nós, a Espanha é um país
plurinacional, em que a cola deve ser o acordo livre e a sedução” [3]. Seduzir significa
conseguir que os catalães fiquem, atraindo um número suficiente de seguidores para
cimentar mudanças no estado espanhol.
As pesquisas dizem duas coisas interessantes para Podemos. Uma é que seu
avanço na Catalunha coincide com o retrocesso do independentismo. Na pesquisa de
dezembro de 2014, enquanto Podemos se convertia num ator de peso também para a
política catalã, se registrava pela primeira vez, desde o início das mobilizações
soberanistas, que ele não se impunha sobre o sim à independência [4].
O outro dado que seguramente foi avaliado pelo Podemos para propor uma
solução plurinacional foi que, nas medições de junho de 2014, nem o sim nem o não à
soberania plena se impunham quando se incluía uma “terceira via”, pela qual se
aumentavam as competências sem necessidade de uma ruptura secessionista [5]. Estes
votantes, cerca de um terço do eleitorado, é o que interessa a Podemos para somar
nacionalmente e impelir uma plurinacionalidade em que um bom número de catalães se
vejam refletidos, rompendo a aliança soberana popular e neoliberal, que encontra atores
muito diversos com as mesmas bandeiras da independência.
Para que esta proposta caia bem no público eleitoral, terreno preferido na análise
estratégica do Podemos, é chave que a narrativa do social chegue ao “cinturão
vermelho” de Barcelona, um dos focos de Pablo Iglesias em seu discurso de dezembro,
enquanto associava a casta espanhola com a catalã, e criticava o abraço de Artur Mas
(da CiU) com David Fernández (da CUP), símbolo do encontro conjuntural do
soberanismo popular com o da casta neoliberal. O cinturão industrial da área
metropolitana de Barcelona poderia assim ser a chave, e Podemos descobre isso quando
Salvador Schavelzon

parece substituir em seu bastião ao Partido Socialista Catalão, da onde não é casual que
também se fale em estado plurinacional como uma estratégia para o debate soberanista.
Gemma Ubasart, secretária de Plurinacionalidade do conselho estatal de Podemos, ex-
colaboradora da Tuerka [NT. Programa televisivo de debates que foi embrião
do Podemos] e que, como investigadora pós-doutora também passou pelo Equador, a
chave para o caminho da sedução. Como candidata à secretária geral da agremiação na
Catalunha, resume a sua visão se colocando bem longe do soberanismo: “Temos um
importante desafio à frente, construir um país de coesão e bem estar para todos, e livre
de corrupção” [6].
A partir de um modelo mais multicultural do que confederado e
autodeterminativo, a tendência parece ser apostar por uma consulta ao povo catalão em
que uma maioria soberanista não se imponha, canalizando desejos de soberania em uma
forma que permita manter o caráter unitário do estado, desde onde efetuar mudanças e
reformas de tipo social, tal qual assistimos em Bolívia e Equador.
Boaventura de Sousa Santos, de cuja equipe forma parte Juan Carlos Monedero,
e a quem este se refere como seu mestre, escreveu muito sobre a plurinacionalidade
latino-americana, destacando-a como parte de um novo constitucionalismo experimental
e pós-colonial que permite superar as formas modernas em países com mais de uma
nação, e que inclusive foi mencionado pelo sociólogo português como possível solução
para palestinos e judeus num novo estado secular compartilhado [7]. Esta proposta de
estrutura do estado é adotada pelo movimento indígena em Bolívia e Equador, como
caminho para aceder a uma autonomia territorial, mas se cimentou constitucionalmente
de forma aberta e indefinida.
A plurinacionalidade aparece, então, como o “significante vazio” que pode
permitir a Podemos repartir as cartas num eventual processo constituinte que o tenha
como protagonista, sem recorrer ao federalismo, proposto pelo PSOE e desacreditado
pelo provado centralismo de velho tipo desse partido, e sem definir, no entanto, quanto
se cederia em concreto de soberania e autodeterminação. O ponto de partida aberto fica
claro na entrevista com Pablo Iglesias em que o indefinido de sua proposta, claramente,
não deixa de ceder ante ao privilégio do social:

Pergunta: “Que modelo territorial o Podemos defenderá em Catalunha? Resposta:


Temos dito sempre que a Espanha é uma realidade plurinacional e é preciso atender a
essa plurinacionalidade para qualquer arranjo político. Pergunta: Mas em que se baseia

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

esse modelo? Em um estado federal ou num mais centralizado que elimine


competências? Resposta: Coloquemos em cima da mesa num processo constituinte
todas as opções e vejamos qual é a mais eficaz para assegurar os instrumentos
soberanos. A mim, o que importa é que haja uma saúde pública para todos, que se está
atendendo em catalão, em euskera [língua basca], galego ou castelhano, para mim é uma
questão secundária” [8].
O desejo de autonomia e descolonização não é considerado pelos povos
indígenas nem por nenhuma nação que se entenda enquanto tal como uma questão
secundária que seria abordada depois de solucionar, desde o estado, a questão social. No
processo boliviano, a língua e o território, inseparáveis das formas comunitárias de
justiça e democracia, formariam parte de reivindicações em que se busca avançar à par
das demandas sociais e soberania nacional ou popular, sem hierarquização e com pleno
reconhecimento. Esta visada política que nasce no indianismo do altiplano e inspirou a
nova Constituição da Bolívia foi descrita como “os dois olhos”, como o avanço sempre
inseparável contra a discriminação étnica e opressão de classe.
A articulação de demandas de autodeterminação com direitos sociais pode soar
familiar pensada a partir de uma posição como a da esquerda nacionalista basca, e
algumas vozes embarcadas no soberanismo catalão. Assim, vemos que desde o
periódico Gara de Euskal Herria, o pesquisador alemão Raúl Zelik manifesta
entusiasmo por Podemos, mas também cautela, quando escreve: “A ruptura com a
continuação franquista tem dimensões diferentes: o tema das nações periféricas não
urge menos do que as exigências sociais e democratizadoras da esquerda estatal.” [9].
Poderia pensar-se que, com a posição de sujeito que vemos nos governos
progressistas e em Podemos, a dos povos indígenas sul-americanos se encontraria com
os que não se veem parte de um projeto de pátria espanhola com coesão e bem estar.
Nos processos de Equador e Bolívia, deve-se ser mais exato, os processos constituintes
se abriram e levaram adiante a partir de uma aliança entre organizações sociais e
indígenas e os novos governos. A partir de 2008 e 2009, apesar disso, conflitos
reiterados levaram uns e outros a distanciarem-se.
Como poderá acontecer na Espanha com setores soberanistas que embarcam na
proposta de Podemos, hoje nos países que incorporaram este modelo, o conceito do
plurinacional é disputado tanto a partir do estado como desde uma oposição que
continua em sua busca de autonomia, não mais em cumplicidade com governos. O
cenário é provável se pensamos que Podemos precisa das comunidades para abrir um
Salvador Schavelzon

processo constituinte formal, e que possa vir um governo que se mostraria mais aberto a
negociar uma consulta, como Escócia, ou Quebec, no Canadá.
O Podemos que surge como deja vu dos processos sul-americanos da última
década é o do distanciamento de demandas descolonizadoras e de autodeterminação, na
renúncia das buscas de alternativas ao desenvolvimento, que construam uma nova
institucionalidade pós-republicana e antiliberal desde a comunidade, as ruas ou o debate
constitucional. A multiplicidade do caráter minoritário que o pluralismo iria exprimir se
reduz a um problema de assistência social para os iguais antes que diferentes, carentes
antes que singulares, numa concepção que só pode derivar em mais estado e menos
plurinacionalidade.

A plurinacionalidade na Bolívia

A experiencia política boliviana é fundamental para entender o olhar sobre a


Espanha que deu lugar à aparição de Podemos. O processo constituinte boliviano
encontrou uma situação política marcada pela recondução da reclamação de autonomia
por regiões, povos e nações, a partir de uma narrativa política que punha ênfase na
intervenção econômica e nos direitos, dirão alguns, mas em Bolívia se viu a força com
que reivindicações regionalistas por autonomia (ou retorno dos poderes do governo, no
caso de Sucre, a capital constitucional) podem tanto abrir como fazer naufragar uma
Assembleia Constituinte e um processo de mudanças.
Num relato adotado por Podemos, o intelectual e acadêmico vice-presidente da
Bolívia, Álvaro García Linera, analisa a chegada do governo de Evo Morales e do MAS
[10], como a transformação de uma maioria social numa maioria política. A gente
comum, de rosto indígena, chegava em 2006 ao palácio de governo, com novos gestos e
modos, como inclusive a Europa foi testemunha quando, na sua primeira viagem
internacional depois de eleito, causou sensação à “chompa” (casaco) de Evo Morales, de
forma similar a símbolos poderosos como o rabo de cavalo de Pablo Iglesias, as
sandálias de Mujica, e a “simplicidade” do papa Francisco quando telefona a uma frera
ou se detém a conversar com os guardas.
Os gestos podem transformar-se em medidas políticas, e Evo Morales fez isso
não tanto com a incorporação da plurinacionalidade, que na prática não mudou a
institucionalidade nem o pacto territorial do país, senão com um decreto que mudou a
relação com as empresas estrangeiras de hidrocarbonetos de forma favorável à Bolívia,

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

atendendo a uma demanda surgida da mobilização popular que destituiu um presidente


em 2003, e sobre a qual já haviam avançado os movimentos com pressão sobre o
parlamento. O mesmo lugar ocuparia talvez a esperada reversão da reforma do artigo
135 da constituição espanhola, pactuada pelo PP e PSOE em 2011, que blinda a
austeridade, e cuja reforma deverá ser acompanhada de medidas destinadas à situação
da moradia e da saúde pública.
O dado crucial, no curso do processo constituinte boliviano, é que para garantir a
continuação de Evo Morales e suas políticas sociais, foi necessário articular a proposta
que se traduziu constitucionalmente como “Estado Plurinacional, Unitário, Social, de
Direito e com autonomias”. O modelo autônomo era inspirado no modelo espanhol,
destinado a contemplar a reivindicação de mobilizações regionais que ameaçavam o
governo central, uma vez que as mobilizações indígenas haviam possibilitado a
ascensão do presidente campesino indígena.
Para aprovar a constituição e viabilizar o governo, foi necessário desarticular as
demandas autonomistas do leste do país, curiosamente defendidas em nível nacional por
uma “agrupación ciudadana” que também se chama Podemos (“Poder democrático e
social”, liderada por Tuto Quiroga), embora neste caso era inocultável a associação de
seus líderes com a velha “casta” colonial anti-indígena, derivada de partidos reciclados
da ditadura e que até então sempre haviam governado. É muito provável que, em
Madrid, os fundadores de Podemos associem esses setores autonomistas com a variante
neoliberal do soberanismo, encabeçando mobilizações especialmente na Catalunha.
No movimento que buscava neutralizar as demandas de autonomia a partir da região
mais rica do país, o MAS também iria se afastando de projetos de autonomia indígena e
campesina, justiça e democracia comunitária, territorialidade coletiva para povos, que
no auge da disputa com as regiões acompanhou com seu apoio, inclusive como forma
de debilitar os regionalismos a partir de demandas indígenas de autonomia contra elites
dos departamentos e províncias.
Se podemos associar o desafio separatista e autonomista da região da Media
Luna em Bolívia com o soberanismo basco e catalão; uma diferença entre o MAS de
Evo Morales e o Podemos da Espanha, é que o primeiro tinha a seu lado as lutas
descolonizadoras e de autodeterminação das nações indígenas, fundamento essencial da
plurinacionalidade. Elas se manteriam fiéis até a aprovação da constituição, quando
diferenças no bloco popular se tornariam irreconciliáveis. Frente ao Podemos, as
demandas de autodeterminação veem seu surgimento com desconfiança, portanto numa
Salvador Schavelzon

aproximação das situações deve mirar-se primeiramente a hostilidade da Media Luna e,


em segundo lugar, o momento de ruptura da aliança entre o governo e os indígenas,
posterior à aprovação da nova Constituição.
Corriam os anos de 2006, 2007 e 2008, e Pablo Iglesias publicava (organizado
com Espasaldín López), o livro Bolivia en movimiento. Acción colectiva y poder
político, enquanto outros futuros membros de Podemos assessoravam os governos de
Bolívia, Equador e Venezuela. A oposição a Evo Morales fundamentava a sua proposta
de autonomias com assessoramento de políticos catalães associados ao partido
socialista, imitando também o projeto de Estatuto que, desafiando o governo central,
fora aprovado pela população dessas regiões em referendo que se propunha como
vinculante.
Em formulação teórico-política ligada aos processos constituintes de Bolívia e
Equador, o constitucionalismo plurinacional não somente superaria o multiculturalismo,
como também se diferenciaria do constitucionalismo social, de inspiração nacionalista
ou bolivariana; assim como do constitucionalismo liberal, embora combinara alguns de
seus traços e incorporara vários de seus elementos. A riqueza destas propostas era a sua
capacidade de articulação de horizontes, sem que o social e o nacional eclipsassem,
entretanto, a autodeterminação indígena.
O que diferenciava o plurinacional de outros constitucionalismos era a
introdução de um vetor comunitário, descolonizador e de autonomia indígena
campesina. Estes elementos permitiam uma conexão do processo boliviano com o
neozapatismo de Chiapas e não somente o bolivarianismo de Chávez, com sua ênfase
no estado e no presidencialismo de caráter centralizador. A proposta do Pacto de
Unidade refletia as visões de organizações campesinas e indígenas das terras altas e
baixas do país. Dali surgia um modelo de estado que tinha muito de não-estatal,
reconhecendo as formas tradicionais de governo e justiça, assim como todas as línguas
indígenas como oficiais, em todo o território nacional e não somente nas regiões em que
falam [11].
Nas lutas que precederam a Assembleia Constituinte, e na defesa por parte das
organizações indígenas e intelectuais próximas a elas, o plurinacional avançava também
com o vivir bien (em espanhol da Bolívia), suma qamaña (em aimara) ou buen vivir (no
Peru e Equador) e suma kawsay (em quéchua), como alternativa ao desenvolvimento,
em construção que buscava formas de vida inspiradas no comunitário e no tom das
críticas ao capitalismo industrial e o desenvolvimento modernizante “desde acima”. Na

29
PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

Bolívia, significaria a introdução da Pachamama como parte do mundo comum,


enquanto no Equador se introduziam na constituição direitos da natureza que buscavam
quebrar com a concepção antropocêntrica e passiva sobre o meio ambiente.
Mais que no desenvolvimento destas discussões, o recurso do plurinacional por
parte do Podemos parte de um deslocamento de sentido ocorrido no período pós-
constituinte, notório no governo da Bolívia e do Equador, embora neste último país, ele
teve uma relevância constitucional menor. Uma vez os governos afiançados no poder, e
ao mesmo tempo em que a agenda do desenvolvimento e da exploração extrativista
dava lugar a importantes conflitos territoriais entre governo e povos indígenas, o termo
plurinacional começou a separar-se da questão indígena, referindo-se melhor a ideias
como inclusão e igualdade de oportunidades. Simultaneamente, a forma movimento do
MAS cedia ante um governo que se autonomizava na tomada de decisões e se impunha
como cabeça condutora centralizando tudo no chefe de estado, do partido e dos
sindicatos de produtores de folha de coca.
Num processo constituinte disputado, a inclusão da plurinacionalidade na
caracterização do estado boliviano, não foi acompanhada no desenvolvimento de
instituições ou formas estatais correspondentes. Esta releitura que tira do plurinacional a
sua força de luta étnica e de autonomia foi, ao mesmo tempo, a que permitiu encontrar a
chave do processo, para tecer um consenso com setores internos aos “processos de
mudança”, mas alheios ao projeto histórico de descolonização e governo indígena do
país; assim como para destravar na Assembleia Constituinte e no Congresso, em
Bolívia, a difícil maioria qualificada cuja chave estava nas mãos da oposição
conservadora.
O resultado de um acordo que tomou tempo e disputa nas ruas para chegar
permitiu isolar as demandas autonomistas e canalizar o processo às transformações
econômicas e à defesa de um desenvolvimento que buscara um “salto industrial”, nas
palavras do vice-presidente García Linera, e que convidou Pablo Iglesias como
conferencista em Bolívia pouco depois de seu triunfo nas europeias, além de ter incluído
uma conversa na Universidade Complutense como parte de uma viagem oficial pela
Europa, ainda antes que as eleições europeias de maio tivessem projetado Podemos
como voz da política europeia.
Atrás da imagem de um governo indígena ou comunitário, emergiria em Bolívia
uma identidade política que se aproxima mais do nacionalismo e do popular.
Observadores como Pablo Stefanoni e Fernando Molina descreveram este perfil,
Salvador Schavelzon

enquanto García Linera preferiria enfatizar o indianismo e o evismo. Estas identidades


entram na disputa de significados em que está o jogo da definição do que seja o
indígena, flutuante nos censos e que desde o governo tendia a definir-se de maneira
genérica e remetendo ao popular, recordando a velha imagem nacionalista da
mestiçagem (como identidade nacional proposta pelo estado), e deixando de lado a
singularidade étnica e a busca da autonomia, importante em projetos de reconstrução
das formas originárias que foram marginalizadas no projeto oficial.
A identidade de esquerda, com seus símbolos e palavras de ordem, também
deixariam a linguagem política cotidiana na Bolívia, de maneira parecida como o
Podemos entrou no jogo eleitoral, em janeiro de 2014. Em termos constitucionais, uma
plurinacionalidade construída à margem dos projetos dos povos que buscavam novas
institucionalidades a partir de seus territórios, formas de representação parlamentar
coletiva, e que também participaram da Assembleia Constituinte e se mobilizaram por
ela, permitiria cimentar a refundação do estado mantendo um modelo centralizado, visto
como necessário para evitar o desmembramento trágico na história do país, e também
para garantir as políticas sociais e ingressos estatais pela exploração de recursos
naturais.
Com o significante vazio da plurinacionalidade e do viver bem, se neutralizava
inclusive o recurso a um modelo federal. A viabilidade política deste modelo era difícil
de assegurar num contexto em que se pressionava para que o estado central cedesse o
controle de todos os hidrocarbonetos e outros recursos, num momento de expansão
econômicos e alta dos preços das commodities, base para as políticas sociais, aumento
de reservas e estabilização da moeda, além de cimentar a participação estatal na
economia. A capacidade do conceito “plurinacional” para a realidade espanhola parece
ser, justamente, a sua flexibilidade, como o poder de conotar autodeterminação e
respeito a nações igualitárias, mas também unitarismo e menos descentralização. Falta
saber ainda se a reforma tributária poderá fazer no estado espanhol as vezes dos campos
de hidrocarbonetos, da soja e do minério na América do Sul. Mas está claro que a
plurinacionalidade se presta, sem dúvida, a ser o pagamento de um país indiviso que
reconheça soberanias distintas.
O que o MAS de Evo Morales conseguiu na Bolívia foi o que Pablo Iglesias
parece necessitar, já que não quer que os catalães deixem a Espanha, e sua agenda
definitivamente aponta às fissuras do social. Na Bolívia, foi essa a transformação do
conceito plurinacional, depois de um processo constituinte acidentado em que era

31
PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

frequente ouvir falar de guerra civil, em que as regiões opositoras declaravam a


autonomia de fato e onde, depois de uma matança de indígenas em Pando, da tomada
das instituições nacionais em Santa Cruz, e da ratificação de Evo Morales num
referendo convocatório em que logrou o apoio de 67%, o governo conseguiu abrir uma
mesa de negociação que derivou na aprovação da constituição e a extinção da demanda
autonomista.
Para entender as modulações do plurinacional seria importante considerar que,
enquanto o autonomismo regional era neutralizado, os indígenas também perdiam a
cumplicidade com um governo que apostava no desenvolvimento. As bases campesinas
do MAS eram mais favoráveis a incorporar-se numa articulação camponês-indígena
com organizações de povos minoritários e setores intelectuais e de esquerda ativos no
processo, que buscavam o fortalecimento da comunidade, a autonomia e alternativas de
desenvolvimento. Este modelo que estimulava sobretudo a produção e exploração de
recursos para a exportação se tornou dominante em toda a América Latina, com uma
semelhança cada vez maior entre os governos bolivarianos, plurinacionais e
progressistas, com outros de outro signo político nos países vizinhos: Peru, Colômbia,
México ou Paraguai.
Na Bolívia, o indianismo inspirado pelo rebelde indígena Tupac Katari tem sido
o espaço intelectual e político desde onde a plurinacionalidade foi introduzida, embora
se registrem referências relacionadas ao modelo soviético de nacionalidades, impelidas
por partidos comunistas e oficinas de pesquisadores russos em toda a região andina.
Desde esta mirada que enfatiza a comunidade e a diferença indígena, hoje se avalia,
apesar disso, que o processo de mudança se aproxima das formas de nacionalismo
estatal contra o que sempre tinham enfrentado nas lutas de descolonização por um
governo índio, ou pela indianização da Bolívia.
Por outro lado, se por um lado a vigência das formas ancestrais ou reinventadas
indígenas são parte de um debate na Bolívia, também é certo que aimaras e quéchuas
prósperos e bem integrados no mercado capitalista devem ser considerados em sua
confluência com o projeto estatal de direitos, longe do indianismo que não renuncia a
pensar-se como alternativa civilizacional, mas também desde a identificação indígena.
Estes setores são parte das classes trabalhadoras que, em toda a América do Sul,
aumentam a sua participação econômica e capacidade de consumo, talvez como na
Europa e Estados Unidos do pós-guerra, mas hoje com supostas novas “classes médias”
festejadas pelos governos progressistas sulamericanos.
Salvador Schavelzon

As duas plurinacionalidades e a república

Não há um significado mais verdadeiro do plurinacional, e seu emprego em


novos contextos implicará transformações, mas talvez mantenha atualidade na Europa o
fato que em suas versões sul-americanas o conceito tem duas almas: surge de lutas
indígenas por autonomia e descolonização, buscando a partir da comunidade
alternativas ao desenvolvimento capitalista, mas se consolida como símbolo de um
projeto estatal que promete crescimento econômico e expansão do consumo com base
num modelo de desenvolvimento com ênfase na exploração de recursos naturais,
apostas pela industrialização e políticas sociais de transferência de renda para a
inclusão.
A plurinacionalidade entusiasmou povos indígenas que lutaram nas ruas contra o
liberalismo e a abertura de um cenário constituinte, mas hoje aparece atravessada em
Bolívia e Equador, pelas dificuldades de romper com o desenvolvimento convencional e
o modelo de crescimento de capitalismo pretensiosamente “social”, também presente na
Venezuela, Brasil, Uruguai e Argentina. Este lugar político, que às vezes parece
imaginar uma sociedade do trabalho e a produção de mais de meio século atrás, pode
permitir estabilidade política e econômica como na Bolívia ou propostas keynesianas
como as defendidas por Áxel Kicillof na Argentina, e Vincenç Navarro e Juan Torres
para Podemos e Esquerda Unida na Espanha. Mas esse lugar resulta intolerável para
quem vê seus direitos e formas de vida ameaçados pela intrusão exploradora em seu
território, e para quem não é incluído a partir de suas diferenças para além da evocação
de um povo abstrato a partir do olhar do universal.
A ideia de plurinacionalidade aparece, então, como tensão, na medida em que
busca exprimir e reconhecer a autodeterminação e a autonomia de povos e nações como
a catalã ou do povo galego, mas no marco de uma proposta onde o eixo é a mobilização
afetiva da consciência (mono)nacional ativada contra banqueiros alemães e a oligarquia
da casta nacional. A partir deste lugar, se abre um diálogo com a esquerda na crítica à
desigualdade social e os abusos do capitalismo, mas com soluções concretas pensadas
de cima para baixo, em relação a processos que podem incluir grandes mobilizações,
mas que não fazem de seus participantes sujeitos ativos na construção de um mundo
novo, mais além dessa condução desde acima, sem enclausurar-se nas decisões. Trata-se

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

melhor de falar desde os grandes meios de comunicação ao povo feliz ou cidadão-massa


que consume e vota, protegido pelo estado e representado antes que empoderado.
Esse olhar sensível desde cima com a situação “social” dos de abaixo remete a
uma identidade política compartilhada na América Latina que aceitou como projeto a
administração mais humanitária do capitalismo, embora seja certamente crítica ao
neoliberalismo a partir de uma sensibilidade nacionalista e social. O consenso sobre
essa política ficou à vista na recepção entusiasta do papa Francisco como último grande
fenômeno midiático na política sul-americana que também explorou esse espaço
político depois de empossado pela igreja alguns dias depois da morte de Chávez.
Apesar de desacordos do passado com a igreja e com Bergoglio, os governos
progressistas celebraram a sua chegada por motivos parecidos aos de Pablo Iglesias,
quando o aplaudiu no parlamento europeu. O apoio cúmplice com a crítica papal aos
abusos do capitalismo contrastou com a saída do recinto de outros eurodeputados que
não fizeram ouvidos de mercador sobre a degradação dos direitos das mulheres e
homossexuais; recebid@s com paternalismo pela igreja de Francisco, mas sem
reconhecer livre de pecado a sua autodeterminação. Retirar do programa eleitoral ou
não dar ênfase ao direito ao aborto e o casamento gay, vem sendo justificado em
Podemos pela necessidade de vencer, na suposição de mentalidade conservadora que se
tem dos votantes. À luz dos processos sul-americanos, apesar disso, o que saiu do
programa para as eleições nunca voltou a entrar e, na verdade, atuou ao contrário —
nestes e noutros temas — desde uma moderação que se prolonga por cálculo de
governabilidade, ou convicção de quem se vai somando desde o conservadorismo
quanto mais firme a consolidação no poder.
As organizações indígenas de maior representatividade em Bolívia e Equador,
campesinos sem terra e populações levantadas contra a contaminação mineira, abriram
os processos constituintes mas hoje estão num lugar de excomunhão. É assim que o
Podemos se desenvolve como resposta possível — e necessária — se pensamos no que
se pode fazer a partir de uma narrativa “Espanha” para milhões de sem ocupação,
pobres e desamparados. Se outros horizontes se eclipsam e Iglesias pode seguir falando
de crescimento, emprego e reforma tributária, assim, estará em seu território e será
imparável. Numa política que se encontra mais além do povo enquadrado e mais além
de um centralismo espanholista, para muitos esta não será a melhor mudança possível a
ser construída.
Salvador Schavelzon

Para quem, antes que pobre ou sem emprego de uma Espanha integradora se
reconhece como mulher, minoria sem estado, coletivo urbano ou imigrante sem nação,
Podemos deixará de falar a ela muito rapidamente. Se a ideia de país que busca
construir se assimila a sua ideia de partido, como parece; poderá suceder que a
plurinacionalidade se definirá contra a autonomia, como ocorreu na Bolívia e Equador,
quando o termo deixou de referir-se a nações específicas no marco de um mesmo
estado.
Embora a plurinacionalidade surja no debate em oposição ao reconhecimento
multicultural, incorporado em várias constituições latino-americanas na década de 90,
com as reformas neoliberais, o momento em que para os indígenas o conceito perde o
interesse, é o que o transforma em sinônimo de inclusão de todos nas formas políticas
anteriores, como integração do colonizado antes do que descolonização que para os
povos indígenas se refere a aceitar uma pluralidade de formas de organização,
desenvolvimento e autonomia. No lugar de autonomia e produção comunitária, a
plurinacionalidade que prevaleceria em Equador e Bolívia seria a da possibilidade que
um indígena não seja discriminado e inclusive possa ser presidente, mas sem superar o
modelo de reconhecimento do tipo liberal, reduzindo a diferença ao multiculturalismo, e
a forma republicana da democracia capitalista para a política sempre transcendente e
isolada.
A presença indígena nos processos políticos andinos, em lutas zapatistas pela
autonomia, ou frente à mineração ou avanço do agronegócio em Paraguai, Chile e
Brasil, vem permitindo a construção de novos horizontes políticos que põem em diálogo
o ancestral com o comunitário, em debates bem atuais para quem também nas cidades
sente os limites das formas modernas de representação política, em sua cumplicidade
com um capitalismo que destrói o planeta e privatiza o comum, inclusive em suas
variantes de tipo nacionalista ou social.
Quando os povos indígenas são levados em conta como identidades rígidas
reconhecidas pelo estado desde a cultura, a plurinacionalidade se desliga da
cosmopolítica indígena e da comunidade, os direitos da natureza e a inclusão dos não-
humanos, referência que se origina na socialidade e no viver bem indígena, mas que é
referência também para o ambientalismo, a política e a filosofia da ciência
contemporânea. A partir deste lugar, é possível pensar um diálogo entre lutas do estado
espanhol e latino-americanas, onde viagens políticas como dos bascos a Cuba e
Chiapas, exílios mútuos e imigrantes constroem faz tempo as bases para conversar.

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

No idioma de Podemos, que é o do estado, o social leva ao econômico, como variáveis


macro que resultarão em direitos efetivos para indivíduos-votantes, reduzindo a
diferença à esfera do cultural, como se a organização em rede ou comunitária não fosse,
ao mesmo tempo, cultura, política e economia, mesclada antes que separada em esferas
que se administram desde acima. Nesta visada, o soberanismo e a autodeterminação se
reduzem à língua e bandeira, como símbolos subordinados ao social e o político, e não
como mundos sem limites para voltar a pensar no comum. Arrasando a austeridade e o
regime de 78, mas não muitas de suas determinações, uma nova hegemonia garantirá o
novo ciclo do capitalismo europeu na Espanha, talvez plurinacional, talvez republicano,
certamente com menos protagonismo para os povos do que para o estado.
Ainda depois de chegar ao governo, a presença inédita de indígenas e
campesinos no estado da Bolívia manteve vivo o projeto de descolonização, entendido
como mudança das formas políticas com que haviam sido sempre governados. Nesse
sentido, na nova Constituição do País, promulgada em 2009, o preâmbulo dá conta do
alcance com que se introduz a ideia da plurinacionalidade: “Deixamos no passado o
estado colonial, republicano e neoliberal. Assumimos o desafio histórico de construir
coletivamente o estado unitário social de direito plurinacional comunitário”. Pouco
depois, Evo Morales firmava um decreto em que se substituía a denominação do país de
“República de Bolivia” por “Estado Plurinacional de Bolivia”.
O antirrepublicanismo tinha no estado espanhol um sentido obviamente
diferente, com a monarquia dos Bourbon ainda em pé e a lembrança da realização
republicana também presente. Nos Andes sul-americanos, essa forma política se
associou com a continuidade do colonialismo que nunca permitiu acesso das maiorias a
direitos cidadãos, e este ponto é essencial pra entender o impulso inicial da
plurinacionalidade. Referia-se à busca de formas políticas mais democráticas, inspiradas
na comunidade indígena, mas para muitos adequada também para as grandes cidades.
Esta ideia de plurinacionalidade vinha com uma proposta de refazer o mapa do país,
hoje produto de poderes dos “caciques” e oligarquias que desenhavam a seu gosto a
territorialidade do país. Neste sentido, a política das autonomias, o “para além da
república”, e uma política de abertura a outras civilizações e à pluralidade ganhava um
sentido de mudança revolucionaria.
No Podemos, se fala da eleição do chefe de estado e não da república, por
estratégia. O limite que encontramos na nova formação, não é o de retomar ou não esta
bandeira que na Espanha remete a lutas importantes. A crítica tem a ver, antes, com
Salvador Schavelzon

pensar a política desde a necessidade de conceber as instituições e os instrumentos de


organização, como formas que não são neutras. É nesse sentido em que os processos
plurinacionais de Bolívia e Equador desenvolvem um ponto essencial contra a tradição
moderna europeia, cujo lado colonial não é visível somente na América nem para os
indígenas.
No discurso supracitado de Pablo Iglesias em Madrid, quando a estrutura do
partido se formalizava, o líder do Podemos chamou a “recuperar a Europa para os
cidadãos, os trabalhadores e trabalhadoras. E recuperar aquilo do que somos filhos:
liberdade, igualdade e fraternidade”. Disputar para o povo conceitos como república e
democracia apropriados pelo capitalismo é importante. Mas vale a pena refletir também
porque essa frase ocorre de ser evocada por liberais e conservadores contra o
“populismo”, termo que deveria evocar diferença e multiplicidade antes do que um
fechamento vertical ante a própria pluralidade.
Como significante vazio, no estado espanhol, a república poderá combinar-se
com o plurinacional como ocorre no Equador da “Revolução Cidadã”, ou era postulado
em Bolívia por Juan del Granado, do progressismo urbano de La Paz primeiro aliado e
depois opositor ao MAS. O importante é o modo em que permite expressar a diferença e
o pluralismo, que em Bolívia abria um terreno de experimentação institucional que não
se limita aos princípios políticos modernos, por suas alternativas para pensar a
propriedade comum, a representação direta e formas de economia e decisão que não são
as do capitalismo e do estado.
Outra coisa é o fechamento pragmático ao redor do imediato, seja por correlação
de força, concepção política ou aposta pelo já dado. Foi neste contexto que a forma
república foi reincorporada ao imaginário do “processo de mudança” na Bolívia,
disputando um termo inicialmente introduzido na Constituição a instâncias de oposição
ao MAS, cujo lugar enunciativo era do estado de direito, além da república e da nação.
Como todo processo de mudança, a participação inicial de campesinos indígenas no
processo, logo terminada, deixou como legado a ideia de que seria bom enterrar
algumas palavras e formas cunhadas pela “casta” política que queremos remover.
A mudança de ênfase e transformação do plurinacional foi expressado pelo vice-
presidente García Linera, que reconheceu o caráter republicano do projeto de mudança,
num momento em que o debate boliviano questionava a saturação retórica do discurso
oficial com elementos de origem indígena, empregados de forma contraditória com o
desenvolvimentismo e que se manteria já sem conexão com os projetos plurinacionais

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PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E REPÚBLICA PLURINACIONAL NA ESPANHA

de mudança com que haviam sido inicialmente associados. A redução do indígena a um


romantismo folclórico fundamentava uma volta à política liberal e republicana, como se
termos como igualdade, liberdade e inclusão não fossem eles próprios abstrações
retóricas contraditórias com o que ocorre na vida social.
Havia algo que se perdia enquanto o desenvolvimento substituía a
descolonização. A mudança ficou clara quando García Linera, próximo de 2013,
associaria o conceito de plurinacionalidade à proposta de Estado Plurinacional
Continental Latino-Americano. O projeto latino-americanista e bolivariano tinha o custo
do distanciamento das reivindicações indígenas de autonomia territorial e comunidade
para as quais, no passado, García Linera teve muita abertura em sua militância
indianista-marxista. Na fundamentação desta proposta, acompanhada de uma visada que
põe em foco o social e, como Podemos, reduz a diferença a uma questão de
reconhecimento cultural, o vice-presidente diferenciava as “nações políticas” (dos
distintos países sul-americanos) das “nações culturais”, indígenas campesinas, que
tinham aberto com sua mobilização um processo constituinte, mas que na nova
plurinacionalidade estatal e continental ficariam marginalizadas.
Quando vemos o lugar do poder como impotente e muito mais condicionado do
que condicionante, seria injusto atribuir a Podemos ou a Evo Morales e García Linera o
curso semântico que tomam os distintos significantes no contexto de um processo
político. Confiemos melhor em que, quando a máscara de Fernando serviu de desculpa
para iniciar um esguicho de lutas libertárias em toda a América Latina frente ao avanço
de Napoleão em 1808, nem o retorno do rei nem o restabelecimento do estado pode
impedir que nossas redes, povos e comunidades sigam buscando caminhos de
autonomia e autodeterminação.

Salvador Schavelzon é professor e pesquisador na Universidad Federal de São Paulo,


Brasil. Publicou o libro El Nacimiento del Estado Plurinacional de Bolivia
(Plural/Clacso/Cejis/Iwgia, La Paz, 2012) e Buen Vivir y Plurinacionalidad leídos desde
Ecuador y Bolivia post-constituyentes (Abya Yala/Clacso, Quito, 2015). E-mail:
schavelzon@gmail.com

--
NOTAS
[1] Juan Carlos Monedero em “A Cara Lavada” da Radio Pública Argentina 29/7/14.
https://www.youtube.com/watch?v=8tRHWxmZq74
Salvador Schavelzon

[2] Uli Brand “¿Un nuevo comienzo para Europa?” Rebelión, 24/1/2015.
http://www.rebelion.org/noticia.php?id=194691

[3] Errejón: “Los catalanes tienen derecho a decidir como los escoceses” 13/11/2014 El
País.
http://politica.elpais.com/politica/2014/11/13/actualidad/1415892800_413245.html

[4] “El no a la independencia de Cataluña gana al sí por primera vez desde 2012”, El
País, 19/12/2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/19/catalunya/1418984873_128596.html
“La irrupción de Podemos trastoca el plan independentista”, El País, 22/12/2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/12/22/catalunya/1419283809_571655.html

[5] “Más Cataluña pero dentro de España” (Àngels Piñol) El País, 25 de julio 2014.
http://ccaa.elpais.com/ccaa/2014/07/24/catalunya/1406230479_555975.html

[6] Gemma Ubasart: Nunca antes un partido con opciones de gobierno había defendido
el derecho a la autodeterminación. El Diario, 15/1/2015.
http://www.eldiario.es/catalunya/politica/Gemma-Ubasart-Jamas-Espanya-
autodeterminacion_0_345766548.html

[7] Ver por exemplo o livro Reinvención del Estado y Estado Plurinacional, Santa Cruz
de la Sierra, CEJIS, CENDA, CEDIB, 2007.
http://www.boaventuradesousasantos.pt/media/reinvencion%20del%20estado%20y%20
estado%20plurinacional_Bolivia.pdf Sobre a proposta para a questão Palestina:
http://outraspalavras.net/posts/a-possivel-extincao-do-estado-de-israel/

[8] Entrevista com Pablo Iglesias: “En las próximas elecciones habrá dos opciones: PP y
Podemos” (Eva Saiz / Francesco Manetto) El País, 18/1/2015.
http://politica.elpais.com/politica/2015/01/17/actualidad/1421526937_154439.html

[9] Raul Zelik “Podemos y la «revolución democrática» en el Estado”, Gara,


07/01/2015. http://www.naiz.eus/es/actualidad/noticia/20150107/podemos-y-la-
revolucion-democratica-en-el-estado

[10] Movimiento al Socialismo, partido fundado como instrumento político dos


sindicatos cocaleros e campesinos do país, que adotou esse nome quando uma facção da
falange boliviana cedeu a sigla ao movimento que diferentes travas impediam de
apresentar-se nas eleições. O processo de chegada ao governo, habitualmente
considerado rápido, foi de 10 anos.

[11] O catedrático da Universidade de Sevilha, Bartolomé Clavero opõe o


constitucionalismo plurinacional, com eixo nos direitos indígenas, do bolivariano, com
mais ênfase no presidencialismo e no estado. Rubén Dalmau, Albert Noguera e Viciano
Pastor, da fundação CEPS, e Gerardo Pisarello, da Universidade de Barcelona, preferem
englobar as constituições de Bolívia, Equador e Venezuela no mesmo marco de um
novo constitucionalismo latino-americano.

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Podemos além Podemos, um poder constituinte na Europa

Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Nota dos editores: O pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sánchez Cedillo e o filósofo
italiano Antonio Negri publicaram, entre fevereiro e abril de 2015, uma série de quatro
artigos sobre as coordenadas em que se inscreve a experiência do Podemos na
Espanha e da Syriza, na Grécia, cada artigo abordando o problema de um ângulo
diferente. A seguir, estão os quatro artigos traduzidos dos originais espanhóis ao
português, pela Universidade Nômade.

O eixo Syriza-Podemos por uma nova Europa democrática. (12/2/2015)

“Um espectro ronda a Europa”. Esse era o título da manchete de dias atrás do
jornal italiano Il manifesto, comentando as visitas aos governos europeus de Alex
Tsipras e Yanis Varoufakis, primeiro-ministro e ministro da economia da Grécia,
ambos da Syriza. Os dois estão na contramão do ônibus europeu, na iminência de um
choque, como descrito no jornal Der Spiegel, causando um verdadeiro pesadelo aos
ordoliberais alemães. Imaginem o que poderia suceder com a vitória do Podemos na
Espanha neste ano: que magnífico espectro à espreita, um monstro real gerado pelas
forças produtivas e exploradas da quarta economia europeia! Nas próximas semanas,
vários turnos eleitorais estarão acontecendo na Espanha, enquanto o mantra dos atuais
governos europeus continua o mesmo, agora com força redobrada, numa clara tentativa
de amedrontar os cidadãos espanhóis. Vamos nos preparar. Com a certeza de que a
arrogância e o mau olhado dessa propaganda serão derrotados.
O que o Podemos poderia dizer sobre a Europa? Consciente da aceleração do
tempo político que a vitória da Syriza na Grécia impôs, o discurso do Podemos sobre a
Europa é, de um lado, formado pela sincera solidariedade e alto apreço pela vitória da
Syriza, de outro lado, por uma avaliação prudente — a linha adotada por Tsipras
poderia fracassar, no curto intervalo entre as eleições na Grécia e na Espanha. Mas
prudência não é a mesma coisa do que ambiguidade. De fato, é óbvio como nada
poderia ser mais perigoso do que uma posição ambígua, a respeito não apenas das
políticas adotadas pela Troika na Europa. Qualquer ambiguidade, aqui, deve ser
eliminada, e assim tem sido na prática, se avaliarmos baseando-se nos últimos meses.
Duas Europas existem e é necessário posicionar-se numa ou noutra. A população
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

sensata tem consciência que vencer na Europa somente é possível com uma frente, já
aberta pela Syriza, e que agora precisa expandir-se pela Europa. A política da dívida, o
tema da soberania e a questão da aliança atlântica (com os EUA) somente podem ser
tratados a partir de uma esfera europeu total.
Já se esperava que haveria grande atenção nas propostas táticas e na política da
equipe econômica e financeira da Syriza. Independente da avaliação sobre a qualidade
das propostas, elas sinalizam um plano de cooperação transnacional e o abandono da
demagogia antieuropeia típica das “velhas” esquerdas, uma demagogia que, em
qualquer caso, nunca foi forte no Podemos. Claro que a aposta da Syriza está formulada
em termos de defesa da soberania nacional (“contra a Troika”, “contra Angela Merkel”
etc), mas na prática isto implica uma aceitação razoavelmente evidente da necessidade
de uma intervenção política dentro e contra a União Europeia (UE) da maneira como é
dirigida hoje. Nesse sentido, a opção primária agora está na coalizão dos PIIGS (sigla
para Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha) e forças da nova esquerda, a fim de
sobrepujar o status quo da UE. Ao mesmo tempo, esta parece ser a única opção possível
para o Podemos ganhar a eleição.
Vamos tentar avaliar as coisas com maior profundidade. Até agora, o confronto
na Europa tomou a forma entre uma Europa neoliberal, neobismarckiana e
fundamentalmente conservadora, e uma Europa democrática, constituinte e
fundamentalmente afinada com as necessidades dos trabalhadores, camadas médias
empobrecidas e precarizadas, juventude desempregada, mulheres, imigrantes e
refugiados — os excluídos, velhos ou novos. A “alternativa”, por assim dizer, porque
afinal de contas partiu da crise de 2008, a alternativa bismarckiana se impôs à força,
deixando à outra Europa apenas um espaço marginal, de protesto e, por vezes, até
mesmo gritos de desespero. Entretanto, quando a situação pareceu ficar estritamente
fechada em relação às demandas de justiça e às revoltas contra a miséria, a alternativa
real se apresentou, a começar da Grécia. Agora, a tarefa é afirmá-la, organizá-la
precisamente nas áreas onde a iniciativa reacionária se impôs — onde se tenta afogar
Hércules para além de qualquer salvação popular.
A primeira questão, a primeira dificuldade, é enfrentar a dívida. A Europa da
Troika quer forçar as multidões europeias a pagar a dívida, e a habilidade em pagar essa
dívida se torna o metro da democracia e do grau de europeísmo. Mas todos esses que se
movem no fronte democrático pensam, ao contrário, que esse metro é insultante, porque
as dívidas cobradas das pessoas hoje foram contraídas por aqueles que governaram ao

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

longo dos anos. As dívidas engordaram as classes dominantes, não apenas mediante a
corrupção, sonegação ou favores fiscais, gatos militares insanos e políticas industriais
que não favorecem o trabalho, mas além disso ao submetê-la à lógica do rentismo
financeiro e impor precarização e incerteza sufocante sobre as formas de vida. Cada
homem, cada mulher, cada trabalhador teve de declarar-se culpado da dívida, da
imputação de que eles foram responsáveis.
O momento chegou para dizer em alto e bom tom que não foram os cidadãos,
mas os senhores do poder, os homens do projeto neoliberal, os políticos do “centro”, das
“grandes coalizões” — mais extremas e exclusivas a cada vez — foram eles que
geraram a dívida a partir do que vêm se apropriando para si e ante o que agora eles
exigem um reembolso indevido. Contra essa condição servil para as pessoas (não
apenas do sul da Europa, mas também do centro e de todo leste europeu), a nova
esquerda, através da Syriza, está exigindo um resgate — uma conferência europeia ao
redor da dívida, isto é, uma sede constituinte por um novo sistema de solidariedade,
pelo estabelecimento de um novo critério de medida e cooperação fiscal e para as
políticas do trabalho. Podemos pode trazer um apoio imenso a este projeto.
Todos sabemos que atrás desses tópicos reside um projeto de transformação
profunda das relações sociais. Uma vez mais, da Europa e na Europa, há um projeto de
liberdade, igualdade, solidariedade — um projeto que possamos chamar antifascista,
porque ele repete a paixão e a força das lutas da resistência. A aliança entre Podemos e
Syriza, e o impulso de fusão nesta aliança, endereça a todas as novas esquerdas
europeias, a possibilidade de construir um modelo — um modelo para uma UE
democrática e baseada na solidariedade, para além do mercado e contra ele.
Partindo desta refundação, a única política fiscal que pode ser feita está em
reduzir ou abolir a dívida, que tem sido consolidada sucessivamente até os dias de hoje
e então estabelecer e padronizar, para o futuro, critérios fiscais progressivos em toda a
Eurozona. Os temas centrais do estado de bem estar social — educação, assistência
médica, sistemas de pensão e políticas de moradia, mas também do trabalho doméstico
e no campo do cuidado [care] — podem ser desenvolvidos uniformemente no nível
europeu, acompanhando a grande inovação da renda básica de cidadania decente,
generalizada e uniforme. Tudo isso deflagra uma batalha constituinte nesses espaços em
que novos direitos de solidariedade podem ser reconhecidos, onde o comum se torna um
elemento central da organização socioeconômica.
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Porém, para vencer nesses temas, é preciso indicar o terreno da luta: este
somente pode ser o espaço europeu em sua totalidade. O que nos traz ao tópico central,
ao redor do que muitos desentendimentos têm se acumulado: a cessão da soberania. Já
aconteceram transferências de soberania, e essas têm sempre sido feitas em favor dos
poderes neobismarckianos do capitalismo financeiro. Demagogicamente, ao atacar as as
cessões de soberania, direitos nacionalistas têm nascido e se desenvolvido
perigosamente na Europa. E apesar disso, é estranho como essas posições podem de vez
em quando ser assumidas (ou então encaradas com postura favorável) entre membros da
Syriza, Podemos e outras forças da “nova Europa” que está se formando.
Nós devemos ser claros neste ponto: cada um dos países que entrou na União, e
ainda mais os que entraram na zona do euro, não têm mais soberania plena. E isso é
bom, porque foi por trás da soberania nacional que cada uma e todas as tragédias da
modernidade se desdobraram. Se queremos continuar falando de soberania num sentido
moderno (e clássico), quer dizer, de um poder “em última instância”, nós devemos ser
claros que a soberania está cada vez mais identificada com Frankfurt, com a torre do
Banco Central Europeu.
A nossa situação está caracterizada por uma duplicidade perigosa. Precisamos
reconhecer isto: nós precisamos de Frankfurt, de uma moeda europeia, se não quisermos
cair como presas dos poderes das finanças globais, da política dos Estados Unidos ou
outros gigantes continentais que estão se posicionando contra a Europa; mas nós
devemos também recuperar Frankfurt para a democracia, para impor-lhe a razão dos
povos — e Frankfurt deveria ser assaltada pela Europa: primeiro pelos movimentos e,
então, gradualmente, pela maioria das democracias europeias e por um Parlamento
Europeu transformado em assembleia constituinte. Com a globalização, a centralidade
da governança monetária de zonas continentais foi imposta em todo lugar — e a Europa
é uma dessas zonas continentais. É impossível imaginar uma batalha política mais
essencial do que aquela levando ao controle democrático da moeda europeia. Esta é a
tomada da bastilha hoje.
Além disso, está claro que meramente levantar o assunto do controle sobre o
vértice político e monetário da Europa, e insistir na dissolução das velhas soberanias
monocráticas, poderiam abrir, de um modo produtivo, o tópico do federalismo, que é
outro passo essencial para a construção de uma nova Europa. Federalismo: não apenas
alguém quer que as nações europeias recomponham-se num diálogo constituinte, mas
também, e acima de tudo, uma articulação entre todas as nações, todas as populações e

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

linguagens que querem se sentir culturalmente e politicamente autônomas, com um


quadro unitário, isto é, federal. Não são apenas os PIIGS que querem isto; também há a
Escócia, Catalunha e o País Basco e todas as demais regiões que exigem autonomia e
habilidade efetiva de decidir sobre as suas constituições social e política. O federalismo
será a chave para a construção da Europa. O tema da soberania pode apenas ser
levantado e usado em termos de pluralidade, subscrevendo às dinâmicas que articulam
um franco federalismo para os próximos anos.
Aqui nós vemos novamente que somente a esquerda — a nova esquerda que
parte da radicalidade democrática dos movimentos emergentes de luta e se organiza ao
longo de linhas emancipatórias (Syriza e Podemos) — pode impor à União Europeia
não um instrumento de dominação, mas uma meta democrática. Radicalidade da
Europa-de-esquerda-democrática, este dispositivo está se tornando cada vez mais
importante para definir a defesa dos interesses da classe trabalhadora e para a
emancipação da população em relação à pobreza. Existe uma longa e suja tradição de
soberanistas de esquerda que deve ser encerrada, assim como nós devemos derrotar as
experiências populistas que usam sentimentos nacionais e transformam-nos em
impulsos fascistas (nacionalistas, identitários, isolacionistas). Somente uma esquerda
europeísta, profundamente transformada pela radicalidade democrática dos movimentos
emergentes contra a austeridade, pode construir uma Europa democrática.
Aqui, outro problema emerge, que nós podemos chamar de “questão atlântica”
— é um problema geralmente contornado ou eliminado do debate, como se fosse óbvio
que o processo da unificação europeia devesse necessariamente desenvolver-se sob a
proteção vigilante dos Estados Unidos. A Europa foi promovida dentro da Resistência
antifascista de maneira a superar a era das guerras que, até a metade do século, tinha
destruído, empobrecido e humilhado as suas populações.
Contra essa condição, os primeiros elementos do discurso europeu foram
construídos durante a era do pós-guerra na Europa e a transición na Espanha, com a
consciência de que a paz significava a possibilidade de democracia, enquanto que a
guerra sempre significou fascismo e militarismo. Depois da queda do muro de Berlim, a
unidade europeia também perdeu as suas características como último fronte contra o
mundo soviético e o expansionismo russo. Dessa maneira, a meta da União Europeia se
recentrou e reorganizou ao redor do quadro da civilização, nossas estruturas jurídicas e
autonomia no ambiente global.
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Mas agora a Europa está cercada de guerras. Todo o Mediterrâneo está cruzado
por uma única linha de guerra, por fascismos e ditaduras, que se alastram por toda a
Europa em movimentos imigratórios, tensões críticas causadas pela política energética e
trocas comerciais. É uma linha que se estende por todo o caminho até o Oriente Médio,
fazendo da Europa um ator perigosamente exposto a movimentos armados com
importância e liderança globais.
Além disso, na fronteira oriental da Europa, uma guerra sem sentido está se
desenvolvendo entre populações falantes do russo, com responsabilidades que deveriam
ser colocadas num âmbito global de controle, pois a guerra contradiz os interesses das
populações europeias como um todo. Desta perspectiva, a soberania da Europa — não
mais a soberania imaginada de cada país, mas a soberania real da União que está sendo
construída — é projetada na OTAN e usurpada por ela. Isto é uma cessão verdadeira de
soberania nascida das populações europeias!
Quando Tsipras coloca, de maneira simbólica, a necessidade de lidar com o
problema, o premiê grego toca numa costura fundamental das estruturas europeias. Ao
fazer isso, ele introduz um problema a que nós deveríamos responder sem nos iludirmos
de que pudesse ser resolvido imediatamente, mas também sem negar a existência de seu
impacto central. Referimo-nos ao relacionamento da UE com a paz ou a guerra, com a
paz não apenas na Europa, mas também ao longo de suas fronteiras. Além disso, está
imediatamente claro que a questão atlântica não é um problema que concerne apenas
paz e guerra: é um assunto de paz e guerra traçado pelo sistema de controle e/ou
comando sobre as estruturas produtivas e financeiras da própria Europa.
De maneira a não ser hipócrita, a fim de falar claramente em imprimir um
ímpeto maior aos processos de construção de uma força política para a esquerda
europeia, nós vamos novamente colocar algumas questões na mesa que não podem ser
deixadas de lado.
O que o Podemos diz ou faz sobre a imigração, sobre os refugiados? Mas
também — repetindo-nos e tornando a nossa questão mais precisa — que diz sobre a
OTAN, sobre os conflitos regionais em curso na UE? Se tais tópicos forem
considerados “chabus” no reino eleitoral, é necessário evitá-los e/ou respondê-los com
exercícios retóricos, para sair do caminho? Não, não mesmo: é muito difícil adotar o
slogan “primeiro nós tomamos o poder, depois discutimos o programa”, neste domínio.
O tópico da paz e guerra não pode ser considerado secundário. Posicionar-se sobre eles
significa clarificar sem ambiguidade a respeito da orientação fundamental do grupo

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

liderando Podemos, não apenas a respeito de questões de paz e guerra, mas também em
assuntos que se referem à reforma e um projeto constituinte que afete toda a Europa.
A coragem e seriedade com o que Tsipras desenvolveu todo o contexto de
tópicos, que são agora importantes para a construção de uma Europa fora da Troica, são
os mesmos que podem permitir-nos de continuar traçando um dispositivo “além da
OTAN”. Os movimentos e governos de uma nova esquerda sabem que têm de tomar
esses assuntos como centrais. Sem ambiguidades, consciente de que a mesma
conjuntura global pode agora contribuir para a sua solução. De fato, o que cidadãos do
mundo estão exigindo, neste ponto, é uma Europa democrática no conjunto de uma
nova realidade global, porque a Europa é vista como uma realidade que pode renovar a
tradição democrática em longo prazo, seguindo a trilha aberta por Syriza e Podemos,
como esperança por reforma e em mover-se para além do capitalismo.
Os movimentos europeus querem ser incluídos na iniciativa política continental
que o eixo Podemos-Syriza podem criar/estão criando no espaço europeu. Essa
iniciativa constitui particularmente um ponto de atração para as novas esquerdas e a
nova radicalidade democrática em formação no sul da UE. O ritmo tanto quanto o grau
de articulação deste processo vai depender do curso presente do governo da Syriza e do
sucesso eleitoral do Podemos. Nós todos podemos organizar uma ruptura constituinte
no espaço europeu.

A democracia hoje é selvagem. O exemplo espanhol. (23/2/2015)

Dizem os companheiros que deram vida ao Podemos: temos conseguido sair


positivamente dos limites da horizontalidade do movimento, tão rica quanto infrutífera.
Temos conseguido isso com um gesto político de autoconstituição, de organização e
representação. Temos havido a inteligência para compreender que o espaço entre as
eleições municipais e as gerais, entre maio e o final do ano, é o único que poderia
permitir “romper o cadeado de 78″: no período eleitoral, o adversário se vê obrigado a
dispersar-se em seu território; as garantias constitucionais funcionam melhor do que
noutras condições e, consequentemente, se tornam zonas possíveis de ruptura do regime
atual, profundamente desacreditado e dividido. Além disso, no final de 2015, a frente
capitalista talvez esteja em condições de empenhar-se mais na preparação de seu ataque,
reorganizando-se depois de ter reagido, e eventualmente demolido, ferozmente, a nossa
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

resistência. Destarte, depois do final deste ano, a janela histórica de oportunidade


voltaria a fechar-se por muito, demasiado tempo.
Tudo isso admitimos. Os companheiros de Podemos são os únicos que, na
Europa, se atreveram a sério a dar esse passo e construir um eixo vertical, a partir de um
movimento com uma potência e uma novidade inauditas, organizando dessa maneira,
sem demagogia nem subterfúgios, um caminho de saída para o “democratismo de base”
— finalmente impotente ante o que os tempos exigem, para além da contemplação de
sua própria horizontalidade. Somente o barão de Münchhausen se jactava de ter
conseguido sair sozinho do atoleiro, puxando-se pela gola do casaco até levitar…o
Podemos conseguiu.
Apesar disso, para seguir ganhando, não apenas é necessário pensar no
adversário, em como derrotá-lo, desarticulando-o e levando-o a perder todo o peso
político e constitucional; é preciso estar certo de que o que se está fazendo nessa
direção, seja feito na mesma escala majoritária e radicalmente democrática de onde ela
nasceu. Nesse processo, não pode haver estreitezas, nem espaciais nem temporais.
Apenas para dar um exemplo: o Partido Comunista Italiano, a que tão frequentemente
os teóricos de Podemos fazem referência, perdeu toda a sua força junto com a cabeleira,
capturado que foi pelo inimigo: no caso do PCI, a estreiteza se chamava “autonomia do
político”.
A estreiteza não tarda em converter-se num nó corrediço que vai capturando os
dedos de quem colocar a mão — ou o pescoço. Sobre isso, a crítica à moda politóloga
do partido político, elaborada há pelo menos mais de um século, é meridianamente
clara: não somente sobre os limites da burocratização da estrutura-partido (sobre o que
insistiam aqueles teóricos, denunciando, como homens de direita que eram, a nascente
força dos partidos operários), como também, e sobretudo, acerca das características do
poder de mando, da direção, da liderança, do “carismático” que a autonomia do político
determina. Era uma análise correta de tendência, assim como de uma ameaça (uma a
mais entre mil outras, mas particularmente atinada), que se somava à luta daqueles
politólogos contra os partidos do operariado.
Até aqui, ficamos nos limites do que tínhamos chamado estreitezas “espaciais”.
Quanto às “temporais”, se vinculam à questão da “autonomia do político”. É bom deixar
claro desde já que nós não nos contamos entre aqueles que negam a possibilidade de
aproveitar, da melhor maneira, os tempos da crise, sejam eles eleitorais ou sociais; nem
entre aqueles que negam a necessidade de golpear num elo fraco da cadeia de poder de

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

mando, sobretudo se é possível fazer isso no momento em que as forças de protesto


social dos cidadãos estão mais fortes. Mas cuidado: um governo é difícil de exercer.
Não é algo que alguém possa fazer sozinho. Com maior razão ainda se pensarmos nos
regimes atuais de governança, em que a continuidade da ação não apenas deve manter-
se durante um longo ciclo temporal, como também está constituída por uma série de
atos pontuais. É preciso antecipar a capacidade de o adversário (direita nacional-popular
e/ou o “PPSOE”, projetos nacionalistas de capital catalão, Troika europeia e global etc)
sobrestar o contra-ataque indefinidamente. Ante esse adversário, na dimensão temporal,
“estar dentro” dos movimentos é essencial para a ação contínua de um governo
conquistado por Podemos.
Os companheiros bolivianos entenderam isso perfeitamente quando conseguiram
que convivessem durante uma longa temporada governo e assembleia constituinte. Foi
uma balbúrdia — mas esbanjou força e vitalidade.
O problema do exercício do governo “no tempo” não está apenas em sua
eficácia, senão sobretudo na irreversibilidade de suas conquistas. Quem se coqueteia
com a “autonomia do político” termina pensando que o desenvolvimento da democracia
de base é secundário. Em certas ocasiões, pode chegar a imaginar formas de poder de
mando energizadas de uma eficácia exclusivamente carismática: tragicamente, é o que
sucede de vez em quando. Mas não é o nosso caso, estamos trabalhando para sair em
definitivo dos dilemas weberianos do poder de mando burguês, que até agora tão
somente legitimaram soluções autoritárias aos conflitos sociais que as lutas levaram à
altura do político.
Sem embargo, voltemos ao problema central que abordamos aqui: da
horizontalidade à verticalidade; da agitação e resistência de movimento ao governo.
Podemos pede a toda/os a/os companheira/os que raciocinem partindo deste nível. Um
nível de governo central? Talvez. Isso se apresenta mais próximo e possível. Por acaso,
não seria certo que: somente se encaminhar a ação de todos os cidadãos para uma
renovação poderosa do governo das cidades, somente nesse caso, se pode dar o exemplo
próximo, palpável, de um projeto constituinte eficaz? Pensamos que sim. Porque a
cidade e o município, a vida cidadã e suas formas de encontro podem plasmar figuras
sólidas de administração e iniciativa constituinte. As acampadas na metrópole, as
cidades e inclusive os pequenos povoados têm sido um lugar de encontro constituinte.
Eles têm demonstrado que os modos de vida metropolitanos são modos políticos e
produtivos em termos gerais. Fazendo com que interajam democracia e (re)produção da
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

cidade teremos a possibilidade de articular o político, quer dizer, unir a vontade de


ganhar e a capacidade de decisão num tecido amplo, plural e ativo de presenças
militantes e produção de programas de transformação. O político se joga no interior
disto tudo. Aí se faz carne e osso o problema foucaultiano de “como queremos ser
governados?”
E acima de tudo, a partir daí, das administrações metropolitanas e municipais, se
dá a possibilidade de construir o governo no plano estatal, tijolo sobre tijolo. Num
regime biopolítico (a saber, em que o poder de mando, vida, produção, afetos e
comunicação se entrelaçam e se confundem como num labirinto), os saltos são difíceis
quando não impossíveis — na velha política também se davam assim as coisas, e
quando havia saltos, às vezes heroicos, quase sempre era necessário retroceder,
cobrindo de instituições artificiosas um terreno atravessado com pressa demais.
Verticalizar a horizontalidade não apenas significa conquistar as capacidades de
decisão geral, governo, gestão segundo uma “guerra de movimento”, senão também e
sobremaneira ter-se elevado a uma visão mais ampla desde cima: e aqui é quando se
compreende que a guerra de movimento não compensa se as posições conquistadas, as
frentes defendidas não possam se manter, consolidando-se e desenvolvendo-se
gradualmente.
O governo deve garantir o poder das organizações cidadãs — assim se dizia não
faz tanto tempo na América Latina, quando o movimento progressista era ganhador —
porque somente em tal caso, o governo central se coloca a salvo de capotagens
repentinas e/ou organizadas. Por quem? Podemos responder: já não somente pelo
adversário que conhecemos, por essas forças reacionárias que enfrentamos, senão por
uma hierarquia muito mais forte, que através de Europa se desdobra até as cúspides do
governo do capital financeiro.
Não cabe minimizar o reconhecimento de que não temos medo e que é possível
ganharmos dessas forças. Mas é preciso tomar cuidado de não tentar o diabo que ainda
pode surgir da profundeza do enfrentamento. A nossa força segue sendo as acampadas,
os municípios, as mareas, os movimentos — dito de outra maneira, o que o 15-M tornou
possível e praticável. Às vezes nos dá a impressão que, para os promotores do Podemos,
o “poder” é uma dimensão à parte. Não está certo: o poder é um incremento da
capacidade de atuar, é uma perspectiva de ação sobre e nas relações políticas, enquanto
“Poder” e “Político”, com maiúsculas, não existem. Não há senão graus diferentes e
múltiplos de contrapoder. Mas quase todos os dirigentes do Podemos reiteram, dentro e

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

fora da organização, o mesmo lema: “primeiro tomas o poder, e depois aplicas o teu
programa”.
A “autonomia do político” pode tornar-se uma teoria perniciosa se,
sobrevalorizando a instituição e a eficácia do poder estatal, negar a gênese e a
legitimidade materiais do fundamento do político. A representação que separa os
representantes dos representados, a “vontade geral” (chame-a “povo” ou “unidade
popular”), que cria um fundamento místico e inapelável dos representantes, nada disso é
o que interessa aos movimentos. Não. O importante passa por (re)criar um fluxo de
movimento político, um sistema aberto de governança desde baixo que mantenha
unidos — mediante o debate constituinte constante e uma contínua extensão desse
debate aos cidadãos — movimento e governo. É possível construir essa ponte, esse
conjunto — se todos se rendem à necessidade que se chama “ser maioria”. Este é o
empoderamento decisivo.

Podemos precisa ir do keynesianismo ao commonfare. (16/3/2015)

Na mídia internacional que se ocupa da questão da Syriza, frequentemente


aparece certo incômodo: os gregos teriam se apresentado nas negociações de Bruxelas
com atitudes informais, pouco adequadas à etiqueta diplomática. Que sensação mais
estranha esse juízo provoca, se compararmos a franqueza do comportamento de Yánis
Varoufakis, o ministro da economia grego, com a secura de Wolfgang Schäuble, seu
colega alemão! Parece uma cena do Avarento de Molière: um gastador presumido de
fortunas ao lado de um burguês que defende com os cinco sentidos o dinheiro
acumulado! À margem da cena, lemos a peça de outra perspectiva: temos assim
Varoufakis, livre representante de uma multidão de trabalhadores que exige, para eles, a
possibilidade de produzir valor e criar riqueza — diante de Varoufakis, Schäuble
aparece como guardião viciado das finanças dos ricos; Varoufakis como a imagem do
trabalho, Schäuble como o agente da extração do valor desse esforço e imaginação.
Durante um longo período na Europa, a variável salarial foi a ponta de lança do
desenvolvimento capitalista. Os estados pagavam o estímulo ao desenvolvimento: daí,
nasceu o chamado Welfare State e, pela primeira vez na história, se propiciou certo bem
estar às classes trabalhadoras. Elas tinham entrado na maioridade de idade, se
apresentaram à cena política e traduziram a questão do salário e do Welfare como efeito
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

de uma relação de forças que lhes era favorável. Razão pela qual os estados se
endividaram em troca de paz social.
Agora, na crise, a casta patronal e política europeia pede, exige e impõe aos
trabalhadores o ressarcimento desse gasto, chamando-o “dívida”. E assim a dominação
se reapresenta sob a figura da dívida. Na crise, se repetem as origens do capitalismo. A
origem remete à acumulação desenfreada e ao monopólio da distribuição social da
riqueza e da moeda. Dessa maneira, nascem a sociedade e o poder da burguesia, que
constitucionalizam seus interesses e baseiam a sua própria identidade na exploração de
todo esse trabalho social. Assim, pois, o problema não é exatamente a dívida, senão
como ela se formou; não a sua quantidade, mas seu aspecto qualitativo, o modo como
determina a vida de todos.
Com a mudança das relações de força, a dívida se converteu numa condenação,
não para quem a contraiu (i.e., os patrões, com o objetivo de manter a paz social), senão
dos trabalhadores, que de boa fé haviam aderido a essa paz que renovava a sua
subordinação. Há que se romper essa relação de subordinação. Podemos — assim nos
parece — tem a possibilidade de começar a acabar com esse escândalo na Espanha e na
Europa. Por quê? Porque a Espanha é a quarta economia da Europa, porque sua
consistência demográfica e econômica a coloca a salvo de chantagens e manobras
excludentes, porque uma iniciativa democrática que parta de Espanha — com a revisão
da dívida pública, a compensação e novo impulso de crescimento na forma de créditos e
as ajudas estruturais — não poderá ser tratada com arrogância pela emperiquetada
diplomacia de Bruxelas, ao contrário, poderá somar-se ao interesse e ao despertar
político e constituinte de outras forças democráticas na Europa.
Agora, certo, uma política econômica de renovação somente pode partir da
eliminação da injustiça fiscal. Exige, por conseguinte, a imposição de critérios
fortemente progressivos em matéria de impostos, um controle lúcido das atividades
bancárias, uma taxa sobre as transações financeiras — tudo isso vinculado a uma
política de destruição de paraísos fiscais e rentismo financeiro. A nossa é uma firme
chamada ao intervencionismo fiscal. Sabemos muito bem até que ponto o
intervencionismo poderia resultar contraproducente e restabelecer as piores versões do
jacobinismo, quando se juntam ao sacrossanto sentido de justiça outras tantas doses de
sectarismo plebeu: mas no que tange à questão fiscal, isso hoje é necessário. Porém,
além de seus excessos, se trata neste caso de uma representação do sentimento de
igualdade que a democracia produz, bem como de um aspecto fundamental para uma

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PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

vontade constituinte renovada. Nesse terreno, é perfeitamente legítimo recorrer àquela


vigorosa persuasão moral — a alma do pensamento democrático, segundo Thomas
Jefferson — exercida com frequência e eficácia pelos movimentos multitudinários. A
reconsideração, a partir dessa experiência de justiça, desse sentido de igualdade, de uma
nova experiência constituinte para a União Europeia representa o verdadeiro tema da
crítica da economia política de nosso século. Quem paga os impostos, quanto e para que
fins? Trata-se de uma questão cuja reinserção é tachada de “vulgar” pela casta, mas que
se mostrou fundamental em todas as experiências constituintes da modernidade. E se
hoje estamos mais além, se estamos já na pós-modernidade, isto significa que não basta
fazer um discurso sobre a distribuição social dos lucros. Hoje é necessário, mais do que
isso, desenvolver um discurso econômico que, partindo da reprodução da vida e da
riqueza, proporcione acesso aos temas da produção social. A batalha democrática tem
de ser travada e ganha no terreno da produção.
Assim, pois, keynesianismo, pós-keynesianismo? Uma vez que tenhamos
reconhecido a natureza reacionária do ordoliberalismo e, consequentemente, da
constituição mesma do Banco Central Europeu sob a batuta do Bundesbank — que
marco econômico e financeiro poderia ser estimulado? e quem deveria ser o ator
fundamental desse renascimento ao mesmo tempo econômico e democrático? O
problema é difícil, já que é novo. Velha é, ao contrário, a sagrada história da
laboriosidade e austeridade do experimento da República Federativa Alemã (RFA,
antiga Alemanha Ocidental). Velho é o credo ordoliberal da “economia social de
mercado”, que tem Ludwig Erhard como profeta e a reforma monetária de 1948 como
primeiro de seus milagres. Uma vez terminada a sua função anticomunista, promovida e
organizada pelos ocupantes anglo-americanos, o evangelho ordoliberal se converteu
hoje, paradoxalmente, num instrumento de destruição das defesas erigidas contra um
neobismarckianismo alemão — que, outra vez, está se elevando como ameaça contra a
paz e a democracia no continente.
Quando dizemos que estamos na pós-modernidade, nos colocamos, para
começar, o tema do sujeito econômico como central, capaz de interpretar e guiar a
reforma no modo que a produção social exige. Agora sim, ao fazer isso na Espanha de
hoje, não podemos deixar de remeter-nos ao povo do 15-M. Precariado, força de
trabalho cognitiva, trabalhadores de indústria e serviços, professores e estudantes,
trabalhadores do cuidado e da saúde, desempregados que trabalham esporadicamente,
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

imigrantes, mulheres e homens: se trata de um povo explorado pelo capital global, uma
multidão social de quem se extrai difusamente o mais-valor.
O capital financeiro extrai valor da sociedade em sua totalidade, em todos os
tempos e espaços. Diante disso, o sujeito que atua nessas condições chega ao
conhecimento da violência e das dimensões da dominação capitalista, assim como da
forma que ela se exerce, para desprender-se da austeridade e eventualmente da miséria,
para subtrair-se aos mecanismos de exploração. O que combatemos (e aqui não se trata
de desdobrar questões ideológicas) não é apenas o egoísmo e a avidez de dinheiro e
poder, nem tampouco o individualismo moral que trazem consigo: é mais do que isso,
se não levarmos o discurso de radicalidade democrática ao plano da produção
econômica e da vida de todos os dias, nos arriscamos a deixar a nossa ação
completamente insuficiente. Então, a nossa tarefa consiste em mover-se para construir,
no comum, formas de redistribuição de riqueza e desenvolver um trabalho de libertação
da produção social.
O Welfare ou políticas de bem estar são apenas o primeiro terreno da batalha. A
renda básica garantida e digna para viver a nossa própria viva é um elemento
fundamental para um novo welfare, de modo a exercermos a nossa própria cidadania
como iguais e livres, a salvo de chantagens e privilégios, das empresas e da corrupção
das máfias de toda espécie. A renda básica deve ser desenvolvida, portanto, como um
dos elementos principais do programa econômico. A partir de uma renda básica
garantida e digna para todos, podem se desenvolver políticas de gestão e empresariado
cooperativo, para abrir-se a novos “serviços humanos para o ser humano”: hospitais,
escolas, moradias, transformação ecológica da produção, dos transportes e das cidades,
produções baseadas no software e hardware livres (o que os companheiros equatorianos
e espanhóis chamaram de FLOK Society). Algo fundamentalmente distinto do
neoextrativismo em sua versão espanhola, que consiste em devastação ecológica e
social de territórios submetidos a economias de exploração e precariedade desenfreadas.
Sim, mas também — apenas para sublinhar momentos com uma importância
excepcional — medidas imediatas que tirem os pobres da miséria e uma grande política
que propicie às mulheres sentirem-se finalmente cidadãs inter pares, que contribua para
que as mulheres se emancipem não apenas do patriarcado e da família, mas ao mesmo
tempo lhes dê respaldo para as peripécias de sua libertação; que conceda aos cidadãos
migrantes a plena cidadania do trabalho que lhes corresponde in primis, porque a
ninguém escapa que os imigrantes têm sido, nos últimos vinte anos, a base humana do

53
PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

crescimento do setor imobiliário e dos serviços às pessoas e, sobretudo, à manutenção


do sistema público da previdência.
Trata-se, com isto, de formas de ações produtivas que se inscrevam na
construção do comum. Precisamos de “câmeras metropolitanas do trabalho” que
preparem instrumentos de luta e figuras para a organização do viver comum. E isto não
se aplica apenas ao salário social (renda básica), mas também ao salário dos
trabalhadores: a iniciativa sindical tem de medir-se com o campo social, se faz
necessário adotar e ampliar as formas de luta já experimentadas nas mareas e,
sobretudo, na Plataforma dos atingidos pelas hipotecas (PAH). Trata-se de um grande
objetivo: a unificação, num projeto forte e participativo, da iniciativa mutualista e
cooperativa com a sindical — voltada para a construção do comum. Sobre isso, não se
pode esquecer que a PAH é algo mais que um modelo de referência, é uma máquina de
guerra que está devolvendo vida e esperança a milhares de pessoas.
Podemos e seus economistas falam de uma ação inspirada no keynesianismo
para voltar a colocar em marcha a máquina produtiva do país. Não falta utilidade à
reivindicação keynesiana, para atacar diretamente as medidas ordoliberais de controle
social e econômico. Mas reinventar hoje o keynesianismo político não é uma tarefa fácil
depois da sua derrota política, depois de Thatcher, Blair e Schröder. Apesar disso, pode
começar a se tornar um terreno favorável para a recuperação de iniciativas empresariais
e a introdução de políticas redistributivas eficazes, ao se propor um novo âmbito de
programas sociais e decisão política, que incidam diretamente na relação entre capital
financeiro e sujeito produtivo social. O povo do 15-M de que temos falado pode assumir
aqui um papel antagonista. Mas surge a objeção: se trata de uma multidão não
organizada, essa é uma acumulação de forças muito distintas. E é verdade, mas ainda
pode tornar-se algo muito diferente. Assumindo a divisória, se faz necessário um
discurso e uma prática para uma (nova) luta de classe. Na esteira do 15-M, pode dar-se a
passagem da defesa e conservação do Welfare à construção europeia de um poderoso
Commonfare.
Quando chegou ao governo em 1933 e quis construir um New Deal que
reconquistou a classe operária para o desenvolvimento industrial, Roosevelt se propôs
acima de tudo a construir um sindicato novo, um sindicato do operário-massa (homem e
predominantemente branco). E assim foi feito, com o que funcionou a sua reforma
política: quer dizer, isso impulsionou a sindicalização das novas figuras operárias,
taylorizadas na grande empresa fordista — e assim nasceu o Congress of Industrial
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Organizations, antagonista aos capitalistas no interior do terreno do trabalho; à sua


hegemonia foram subordinados os velhos sindicatos do operário profissional: que não
passavam de empresas frequentemente corruptas e incapazes de construir uma
universalidade para toda a classe operária.
Hoje se trata, nas novas condições, de atuar da mesma maneira: construir uma
coalizão dos trabalhadores nas redes sociais e digitais que corresponda à nova
composição de classe dos trabalhadores; unificar o mutualismo, instituições
cooperativas e, sobretudo, construir uma forte sindicalização do social. A renda básica
contra a exclusão é fundamental, mas não é suficiente para determinar o êxito do
projeto. A revisão da dívida pública, o imposto sobre as grandes fortunas e transações
financeiras são elementos igualmente essenciais. O decisivo é construir um sujeito que
una interesse civil e econômico, integrando as diferenças da multidão; que possa a partir
disso construir de tal maneira uma ação política coerente e contínua, uma agitação que
desabroche desde baixo a reforma constituinte.
Na busca dessas novas figuras da democracia econômica — e plasmando-as
eventualmente através do governo do país — poderá colocar-se em marcha o
empresariado social da multidão. Devemos arrebatar das castas políticas e financeiras o
injustificado monopólio ideológico e institucional sobre a capacidade de criar empresas.
Quando se atua com sensatez, a crítica econômica e os programas de reforma nascem
diretamente da relação entre governo e multidões. Estas não preexistem à ação política
desde baixo. Mas quando as iniciativas populares se fazem governo, até a teoria
econômica pode ter uma renovação. Precisamos de uma nova ciência do governo
econômico para a sociedade pós-moderna. Muitos esperam de Podemos a introdução
deste saber, que não apenas consiste na excelência da tática de governo, como também
na estratégia das multidões e na proposta de uma democracia.

Por uma iniciativa constituinte na Europa. (20/4/2015)

No último pós-guerra europeu, o sistema democrático constitucional se


organizou em todos os países (depois de 1978, também na Espanha, com o
complemento das forças nacionalistas e/ou independentistas) ao redor de um modelo de
alternância de exercício do governo entre a esquerda e a direita, no marco de um sistema
capitalista em evolução e suscetível de reformas — porém não submetido à discussão
fundamental: os termos da conferência de Ialta. Este modelo está em crise. De fato, em

55
PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

muitos países europeus já surgiram terceiras vias, que se apresentaram no campo das
eleições, e que desbarataram o esquema dual. Sobre isso, seria preciso perguntar se a
nova estrutura constitucional da União Europeia não começou a construir-se,
precisamente, a partir da previsão de uma crise no modelo constitucional pós-guerra —
e, de todo modo, a partir da percepção de uma incontinência já presente no modelo
democrático clássico. Aquela estrutura havia se apresentado como garantia para a
manutenção de um modelo capitalista de desenvolvimento, frente à decadência de suas
formas nacionais estatais. De outro lado, tanto a esquerda quanto a direita já tinham
deslizado em direção ao “centro”, construindo formas artificiais de representação e
governo, destinadas a um equilíbrio que deveria garantir a estabilidade para o futuro,
eliminando assim qualquer dialética entre reforma e transformação.
Em consequência, hoje a situação está mudando rápido. A crise grega começa a
colocar a nu que aquela homogeneidade do poder de mando (composta de “direita” e
“esquerda”) exerce uma função sempre num sentido conservador e, não poucas vezes,
manifestamente reacionária. Por um lado, a direita considera a Europa um butim
próprio. O modo em que atuaram e continuam atuando as direitas até agora majoritárias
na Europa mostra que a querem como seu produto exclusivo — uma verdadeira
reificação. Por outro lado, se observarmos os governos socialistas, enrolados no bloco
centrista que lhes permite administrar interesses parciais, se vê que eles renunciaram a
qualquer esperança de renovação. Sirvam de amostra para o fenômeno o penoso
haraquiri do ex-premiê Zapatero, do PSOE, em maio de 2010 e a autodestruição do
partido socialista grego, o PASOK.
A União Europeia, tal e qual se formou e como se apresenta hoje, governada por
um “centro” político, — capaz de levar a cabo ações extremistas e devastadoras em
defesa dos equilíbrios capitalistas — está submetida à chantagem e talvez destinada a
despedaçar-se. Quanto mais as multidões europeias compreendem que, num mundo
globalizado, somente uma organização continental pode permitir a satisfação das
necessidades vitais das populações, menos as classes políticas europeias estão dispostas
a aceder a uma União política — a menos que seja criada para satisfazer direta e
exclusivamente os seus próprios interesses.
Precisamos nos afastar dessa descida e voltar a colocar em jogo a democracia
para a construção do projeto europeu. Isso é necessário para que a Grécia sobreviva,
para que as forças democráticas espanholas se afirmem e possam ganhar, e para que
todos os europeus se reconheçam na Europa e saiam de uma crise e uma austeridade que
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

não só já tornam difícil a subsistência, como também nos impedem de ser livres. Eles
podem jogar em ambos os terrenos: no da Europa existente e no de velhos
nacionalismos agressivos. Nós, em contrapartida, não.
Resulta particularmente doloroso o fato que, para falar a favor da Europa, para
trabalhar na fundação de um poder constituinte que imponha seu caráter social e sua
caracterização democrática com uma perspectiva federalista, hoje seja preciso avançar a
polêmica contra boa parte das esquerdas na Europa. Está claro que elas venderam o seu
direito de primogenitura. Já em 2005, momento do referendo sobre a Constituição
europeia, a cegueira das esquerdas europeias se colocou claramente. O fato é que os
socialistas europeus não veem outra possibilidade de fazer política e gerir o poder que
não seja no âmbito do estado nação. Essa cegueira sectária nacionalista renasceu (depois
de um longo eclipse) e chegou ao auge com a atual crise europeia. Em vez de aliar-se
aos movimentos de luta para mudar a realidade da União Europeia, as esquerdas
europeias têm se declarado, com frequência, não somente a favor das políticas de
austeridade, mas também contra a própria Europa (como, por exemplo, está
acontecendo agora na França). As esquerdas estão movidas por um egoísmo
corporativo, que está despojando a palavra “esquerda” do pouco esplendor que ainda
sobrava. Tanto é assim que esse egoísmo se confunde facilmente com o ódio das forças
fascistas contra a União Europeia. Dizem as esquerdas oficiais que a Europa não pode
funcionar porque, desde o começo, a um governo político no nascente processo,
preferiram-se as burocracias jurídicas: e isso está certo. Dizem também que, numa
segunda fase, tentaram-se compassar politicamente economias que tinham um ritmo
distinto e às vezes contraditório; porém, sem introduzir, naquele momento, motivos
eficazes de unidade programática nos planos fiscal e cultural: e isso está certo. Logo,
debaixo dos fogos da crise, não poderiam deixar de fracassar todos os mecanismos de
compensação, o que está conduzindo a União e o Euro — precisamente na ausência de
qualquer contraforça política — à beira da dissolução, em desdém ante a grande maioria
das populações do sul da Europa: e isso está certo.
Mas por que os partidos de esquerda querem nos dar lições quando foi
precisamente a visão exclusivamente estatal deles, isto é, o corporativismo dos
sindicatos e a traição a qualquer esperança internacionalista, o que nos levou a esta
situação em primeiro lugar? A ninguém escapa o fato que a unidade política da Europa
constitui o elemento fundamental de seu êxito econômico e civil, dentro de um marco
global. Trata-se de uma política cuja promoção corresponderia à esquerda — mas esta

57
PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

confundiu e se corrompeu na aliança com a direita, não somente no âmbito das


instâncias de governo nacionais, como sobretudo nas europeias.
Agora não temos mais tempo a perder. Renovar a integração quer dizer, hoje,
abrir uma campanha constituinte, isto significa eliminar o consenso apassivante que, até
agora, tem permitido o triunfo das atuais estruturas europeias e a continuação do
desastre provocado por suas políticas. Quer dizer desenvolver uma opinião pública que
comece a desdobrar uma nova perspectiva constitucional. Por trás da vitória da Syriza e
abrigando as esperanças da vitória do Podemos, depois do que em muitas partes da
Europa comecem a nascer forças políticas eurorradicais, não custa entender que
constituir Europa significa sair de cima dos parâmetros conservadores que, até agora,
determinaram as suas estruturas e políticas. Resulta estranho manifestá-lo agora, mas o
certo é que, desde a vitória da Syriza, as dimensões interna e externa da União
começaram a superpor-se e caminharem de mãos dadas, como estímulo a um regime de
maior liberdade e igualdade, como esforço de fazer o “comum”, mais além da dicotomia
entre o privado e o público, como um valor reconhecido em cada país da Europa e, ao
mesmo tempo, uma pressão que os atravessa a favor de uma integração federal
sancionada democraticamente. Trata-se de um processo que está somente em seu
princípio, mas que é tendencialmente majoritário. Em qualquer caso, é preciso
reconhecer que se insinua um novo espírito constituinte: não seria precisamente a
percepção deste fenômeno o que — enquanto uma resposta — tem produzido tanto
histerismo e tanta vulgaridade nas mídias dos mandachuvas, nas declarações dos
partidos e das burocracias europeias? Há uma nova compreensão de que a dimensão de
libertação dentro de cada um dos países precisa conjugar-se com a potência da
federação em toda a Europa — não é exatamente isto o que amedronta as oligarquias
nacionais estreitas e ignorantes?
Num artigo formoso, publicado faz pouco no diário italiano Il manifesto, se
recordava o juramento dos revolucionários do Terceiro Estado, pronunciado quando se
tornou evidente que os demais estamentos do Ancien régime não poderiam apoiar uma
reforma constitucional baseada na liberdade, igualdade e solidariedade. Hoje, as forças
democráticas na Europa precisam dar um passo análogo, quer dizer, fazer um juramento
constituinte, que permita identificar formas novas de união federal e novas estruturas de
unidade econômica no plano europeu, e que recolham em sua base a nova radicalidade
democrática expressa de 2011 em diante.
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri

Há elementos de política exterior, jurídicos, econômicos, que fundamentam essa


necessidade constituinte — ao que deve corresponder uma decisão política encarnada
nos movimentos. Os elementos da política exterior surgem de uma reflexão atenta sobre
a colocação da Europa no âmbito global. Hoje, a Europa participa de um bloco de forças
agrupadas na OTAN que orienta, de maneira irresponsável, as políticas externas dos
países da União. Os interesses das populações europeias estão totalmente subordinados
ao poder atlântico. Nesse terreno, assistimos todos os dias a paradoxos injustificados e
enredos injustificáveis, entre os quais aparece recentemente o financiamento europeu da
guerra ucraniana, ao mesmo tempo que se impede o refinanciamento da dívida grega.
Mas a confusão e a passividade dos povos e a opacidade das decisões, dos
compromissos e das vilanias em matéria de política exterior, de cada um dos países e da
União, são simplesmente indescritíveis: é preciso dizer basta! A irresponsabilidade da
relação estratégica e militar, numa época de instabilidade global, representa uma
condição perigosíssima que toda iniciativa constituinte terá que levar em conta como
prioridade (e aqui se trata, também, de acabar com a violência e o assassinato de
pessoas nas fronteiras externas da União).
A Europa, libertando-se do condicionamento atlântico, deve chegar a ser capaz
de desenvolver políticas autônomas,, tanto para promover intercâmbios e colocar à
disposição do mundo a inteligência coletiva — o general intellect de que falava Marx —
construído desde já; quanto para apoiar os povos que seguem oprimidos, quanto para
construir uma paz e um desenvolvimento duradouros. Com efeito, não nos esqueçamos
que o que está em jogo hoje é a paz.
Em relação às condições jurídicas, o certo é que o impulso em direção a uma
estrutura federal de governo das multidões da Europa não pode deixar de representar o
objetivo central desta fase constituinte. Somos partidários de um poder constituinte que
construa uma federação na Europa. Somos partidários de lançar as bases e fixar o
objetivo de um ordenamento federal que recolha, mobilize e consolide os interesses
civis, econômicos e morais dos cidadãos de cada um dos estados, numa comunidade de
europeus que reconheça, adicionalmente, a cidadania europeia desses cidadãos de
segunda e terceira categorias, que é como são tratados os migrantes comunitários e não-
comunitários. Sabemos que “federar-se” é difícil porque, na fase atual, exigiria a
destruição das oligarquias do governo europeu e, portanto, dos partidos de cada um dos
países da União. Mas a federação pode constituir-se apesar desses obstáculos, se
recordarmos que não se trata unicamente de uma unidade entre estados, de distintas

59
PODEMOS ALÉM PODEMOS, UM PODER CONSTITUINTE NA EUROPA

configurações econômico-políticas, senão um processo em cujo interior se revelam uma


nova história da Europa (mais além das guerras do passado) e as virtudes de que ela
pode ser capaz (uma riqueza de força de trabalho cognitiva e de trabalho de cuidado,
produtora de inovação econômica e civil).
No entanto, sobretudo, temos de insistir ainda mais no fato que, a partir do grau
que alcançaram as lutas políticas e sociais, as novas lutas de classe, da organização
social do trabalho e da extração capitalista de riqueza, a unidade europeia e o
federalismo não podem constituir uma máquina juridicamente intocável, que venha a
reproduzir as atuais diferenças de classe. Não pode ser o jogo em que tudo muda para
que nada mude, como ocorreu nas transições europeias do fascismo à democracia do
pós-guerra, e também nos anos 1980 no caso da transição espanhola. Queremos uma
constituição que exija, desde cima, uma governança das liberdades; desde baixo, desde
as multidões, um exercício de gestão igualitária na produção e na redistribuição de
riqueza. Nos últimos anos, temos assistido à formação na América Latina de novas
constituições democráticas que combinaram o pluralismo dos sujeitos com dispositivos
de reforças econômica muito eficazes, e que construíram novas solidariedades sociais,
iluminadas por um irresistível sentido da igualdade. Não se trata de imitar essas
experiências ou de discutir o seu êxito.
Trata-se de suscitar e promover uma dinâmica democrática capaz de ganhar o
terreno de uma constituição federal baseada no comum. Trata-se de difundir e colocar
em prática uma capacidade de construir empresas políticas da sociedade, que combine
liberdade e riqueza. Trata-se de eliminar definitivamente todo sentimento de identidade
ameaçada, que não produz nada além de nacionalismos ou democracias suicidas em sua
reprodução de tipo oligárquico. Trata-se de construir uma Europa justa e unida.
Desgraçadamente, não há alternativa. As irrupções democráticas das multidões na
Grécia, Espanha e, a seguir, o êxito da Syriza e a esperança do Podemos não são, desde
este ponto de vista, nada mais do que um começo, uma ocasião a que é preciso aferrar-
se com coragem e inteligência.

Rául Sánchez Cedillo, é pesquisador da fundação ProCommunes, tradutor e escritor,


participa da Universidad Nómada (Madrid).

Toni Negri, filósofo, é autor de muitos livros e artigos sobre as lutas nas últimas cinco
décadas, e participa da rede EuroNômade (Itália).
Fora do mercado: ao largo da etnografia de rua na rua1

Marcio Tascheto da Silva

E isto: cada sobrevivente e cada medo fundava uma hipótese de cidade, uma
metrópole transitória e frágil, mas todas o são.
Gonçalo Tavares

Eu gostaria de acompanhar alguns procedimentos – multiformes, resistentes, astuciosos, e teimosos – que


escapam à disciplina sem ficarem mesmo assim fora do campo onde se exerce, e que deveriam levar a
uma teoria das práticas cotidianas, do espaço vivido e de uma inquietante familiaridade da cidade.
Michel de Certeau

Da cruzada negra à cidade espectral

Em meados da década de 20 (1924-25), uma travessia automobilística chamou a


atenção do mundo e especialmente da França: “La Croisade Noir” 2. Percorrendo 28.000
km em menos de 8 meses, composta de uma equipe de cientistas, artistas, religiosos e
engenheiros, a cruzada negra representou uma grande façanha para a época. Com o
objetivo de promover publicitariamente as “máquinas”, Andre Citroen organizou uma
expedição ousada pelas profundezas africanas, chamando a atenção ainda hoje pela
riqueza de documentação etnográfica.
Através das fotografias de Georges Specht, os desenhos de Alexandre Iacovleff
e especialmente as filmagens de Léon Poirier, a cruzada negra retrata uma áfrica exótica
e misteriosa, recheada de paisagens desérticas e culturas estranhas. Com a marca do
colonialismo imprimida nas diversas imagens produzidas, o filme exibido no teatro de
ópera de Paris, marcou a representação do negro na França. Das Missões religiosas,
recepções pomposas aos administradores coloniais, triunfo das máquinas sobre a
natureza selvagem e suas savanas intermináveis - a civilização do homem branco
mostrando ao mundo seu poder desbravador -, desprendem signos fílmicos de uma
narrativa civilizatória onde o carro torna-se o emblema máximo do progresso.
Da era do rádio à Copa do Mundo da FIFA/2014 muitas águas já rolaram entre
os moinhos. A indústria automobilística e as campanhas publicitárias avançaram
tecnologicamente a passos largos, transformando-se completamente nesses quase cem

1
Artigo para a disciplina de Antropologia Visual e da Imagem. Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social – Universidade Federal do Rio Grande do Sul/UFRGS.
2
Disponível no site: https://www.youtube.com/watch?v=OjW2Fls0qAM

61
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

anos que nos separam das aventuras de Andre Citroen. No entanto, uma estranha
conexão parece persistir nas campanhas publicitárias da Citroen. Uma conexão que nos
remete as savanas africanas e seu espaço liso. Uma conexão que nos leva aos bancos de
areia de um deserto em preto e branco, nos povoando com paisagens fantasmagóricas.
Uma conexão com a imagem do deserto.
Porém, no incipiente século 21 a “cruzada” é outra. Não mais na África
misteriosa e profunda nos arrabaldes de culturas estranhas, mas no interior do mais
familiar e próximo. A cruzada se voltou para a cidade. No interior da metrópole mora a
nova maquinaria expedicionária. A colonização dos afetos e lugares, a colonização dos
imaginários, o mito do progresso continua apostar no espectral. Um espectro ronda o
mundo na atualidade, o espectro da cidade vazia.
Signatária dessa feérica tendência, a campanha publicitária do Citroen C4
lounge produzida no contexto da copa do mundo do Brasil/2014, teve como cenário as
ruas de Porto Alegre/RS3. Mais precisamente, as ruas desertas de Porto Alegre. No
comercial de TV um homem observa um conjunto de prédios. Papéis picados verde
amarelos caem aos milhares das janelas decoradas. Pessoas correm enroladas em
bandeiras com as cores nacionais. Ruas vazias deixam antever um clima de espera e
euforia. O jogo está para começar. Ao lado da paixão folclórica do brasileiro pelo
futebol, outra paixão vai sendo sugerida pela narrativa: a paixão de dirigir. Junto ao jogo
da seleção brasileira, o jogo da máquina e do homem está prestes a acontecer. O carro
aparece em cena exatamente quando as ruas estão desabitadas. Quando não há mais
obstáculos humanos e de outras máquinas e o fluxo da paixão homem-carro-cidade pode
desenvolver toda a sua utopia espacial.
É dada a partida.
As ruas da Porto Alegre real, conturbada, engarrafada, densa, dão lugar às ruas
de uma cidade que demoramos a reconhecer. Uma paisagem urbana que mais parece
saída das fotografias de Atget4, na Paris do começo do século passado. Enlevada pelo
imaginário de uma cidade privativa, longe das disputas territoriais cotidianas, o
personagem-motorista trafega livremente, deslizando o automóvel por uma cidade
somente sua. Uma nova mitologia do dia a dia é construída sob os auspícios de uma
cidade abandonada.

3
Disponível para visualização no site: https://www.youtube.com/watch?v=oD0-MIjUHHk
4
Eugène Atget (1857 – 1927), Fotógrafo Francês conhecido por suas imagens de cidades vazias.
Márcio Tascheto da Silva

Segundo Fuão (Fuão, 2002), esse esvaziamento do espaço público teria sido
antecipado enquanto tendência pelas reflexões propostas pelo filósofo Flusser (Flusser,
2011), no ensaio intitulado “Phanton City”.
(...) escrito para uma exposição fotográfica que percorreu algumas cidades da
Europa nos anos de 85 e 86. A exposição mostrava fotografias de vários
autores, cujo tema era a cidade sem pessoas. Este material constitui um
desdobramento da visão premonitória do papel da fotografia como imagem
técnica, e da exclusão do homem das atividades públicas da cidade. (...)
retirar a figura humana da fotografia da arquitetura é retirar a alma da cidade
e da própria arquitetura, é ver nelas somente a beleza e o caráter objetivo.
(Fuão, 2002; 1)

Desta forma, o autor tenta destacar o processo de mudança em curso que as


cidades vêm passando. Pelo viés da comunicação analisa as diversas mutações que as
cidades estão sofrendo na atualidade enfatizando a depreciação dos espaços públicos e o
desaparecimento da função da arquitetura como promotora de comunicação.
Preocupado em demonstrar como a fotografia em arquitetura sempre esteve de
alguma maneira ligada com “a ausência da figura humana na representação
arquitetônica, seja por fotos, seja por projeções” (Fuão, 2002: 2), o autor desdobra os
efeitos dessa tendência em tornar a cidade anti-humanista. Esta cidade desanimada e
deserta corrobora com a crise de subjetividade contemporânea e com a
espetacularização da cena pública.
Para Maurizio Lazzarato 5 a crise da subjetividade contemporânea é inseparável
do projeto central da política capitalista, tornando-se impossível apartá-la da crise
econômica. Da mesma forma que não podemos separá-la dos fluxos econômicos e
sociais, a crise da subjetividade contemporânea está profundamente entrelaçada com a
decadência do espaço público. Nesse sentido, a propaganda do automóvel torna-se
sintomática quando desertifica a cena urbana, dissolvendo a cidade do seu papel de
convivialidade.
O esquadrinhamento do espaço corresponde ao esquadrinhamento da
subjetividade, constituindo uma série de fragmentações e cesuras que fazem da
locomoção capitalista na cidade, um fatiamento da existência. No seminal ensaio de
André Gorz de 1973 (Ludd, 2005), a ligação que o autor estabelece entre o transporte e
a divisão social do trabalho dá boas pistas para entender essa correlação.
Sobretudo, nunca coloque isoladamente o problema do transporte. Conecte-o
sempre ao problema da cidade, da divisão social do trabalho e a
compartimentalização que ela introduz nas diversas dimensões da existência:
um lugar para trabalhar, outro para “habitar”, um terceiro para se abastecer, é

5
Em seu recente livro “Signos, Máquinas, Subjetividade”, lançado pela editora Sesc/N-1, 2014.

63
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

arranjado dá continuidade à desintegração das pessoas que começa com a


divisão de trabalho na fábrica. Ela corta uma pessoa em rodelas, corta seu
tempo, sua vida, em fatias bem separadas de modo que em cada uma você
seja um consumidor passivo a mercê dos negociantes, de modo que nunca lhe
ocorra que o trabalho, a cultura, a comunicação, o prazer, a satisfação das
necessidades e a vida pessoal podem e deveriam ser uma e mesma coisa: a
unidade de uma vida, sustentada pelo tecido social da comunidade.” (Gorz ,
in Ludd, 2005: 82)

Seguindo a advertência de Gorz, não podemos perder de vista o enrodilhamento


de elementos e a compartimentalização que ela introduz. Da mesma forma que a
questão do transporte não pode ser descolada da questão da cidade e do trabalho, a
análise do comercial de TV do citroen C4 não pode ser desvinculada de uma
constelação de imagens que vinculam a experiência do dia a dia em uma metrópole a
uma rede de micro inseguranças que subjetivam o espaço e guetificam a vida em
porções de tempo e território.
Se a entrada da comunicação na esfera produtiva caracteriza fortemente o
capitalismo contemporâneo - tornando o trabalho imaterial e afetivo -, comerciais como
esse, representam uma virada de época significativa que, por intermédio do
fortalecimento do sentimento de inseguridade, constrói um paradigma de produção que
necessita dos afetos e dos signos do terror para seu sucesso.
Se as imagens são mediações entre o homem e o mundo (Flusser, 2011), e se na
contemporaneidade conhecemos o mundo essencialmente através das imagens
(Luhmann, 2005), que mundo/cidade experimentamos através das “cidades fantasmas”
do comercial da Citroen? Qual é o impacto subjetivo nas práticas urbanas? Que cidade
se origina desse imaginário? Que cotejos há entre essa cidade deserta e a cidade real?
Se é o “aspecto mole, impalpável e simbólico o verdadeiro portador de valor no mundo
pós-industrial” , que regime de signos estamos construindo ao ponto de construir estilos
de vida baseados na irrealidade de uma cidade espectral?
Seguindo a carga teórica/poética de Macluhan, são os nossos próprios olhos que
“alugamos” para mobilização de práticas urbanas em uma cidade que se fantasmagoriza
(Macluhan, 1965). Ainda que o recorte da publicidade não esteja marcado somente pela
dimensão do medo, nem tampouco, para um público específico; ainda que a crítica da
massificação midiática e a necessária relativização dos seus efeitos sobre os indivíduos -
não tão pacatos diante das investidas do “mass mídia”-, há uma inegável relação de
força e uma disputa de estilos de vida.
Márcio Tascheto da Silva

Se a arquitetura e a cidade são meios de extensão do homem (MacLuhan, 1965)


e a cidade real dá lugar a cidade virtual, um desdobramento possível no “homem
espectador” (Jean Epstein, 1897-1953), é o consumo de uma experiência urbana
empobrecida (Benjamin, 1892-1940). As ruas desertas da Citroen representam a
transvalorização dos valores. Nesse caso, uma vida forjada a contrapelo do direito à
cidade. Partamos da crise e de seus desdobramentos subjetivos para olhar mais de perto
esses fenômenos.

As quatro figuras subjetivas da crise

Segundo Michael Hardt e Antonio Negri (Hardt e Negri, 2014) o triunfo do


neoliberalismo não mudou apenas os termos da vida econômica e política, modificou
também as condições sociais e antropológicas, produzindo pelo menos quatro figuras
subjetivas.
A hegemonia das finanças e dos bancos produziram o endividado. O controle
das informações e das redes de comunicação criaram o mediatizado. O
regime de segurança e o estado de generalizado de exceção construíram a
figura oprimida pelo medo e sequiosa de proteção: o securitizado. E a
corrupção da democracia forjou uma figura estranha, despolitizada: o
representado. (Hardt e Negri, 2014: 21)

O endividado, o mediatizado, o securitizado e o representado são o saldo


subjetivo da crise, estruturando um terreno social emblemático onde o campo de forças
contemporâneo orbita em um sentimento que transversaliza a todos: o medo. Antes de
tratarmos das conseqüências que essas quatro figuras articuladas representam e o que
promovem enquanto prática urbana, é preciso olharmos mais de perto cada uma delas.

Figura 1: O Endividado

A necessidade de contrair dívidas para viver está se tornando a condição social


geral. Financiamento da casa, seguros de saúde, escolas privadas, gastos com
previdência, consumo exarcebado, segurança, etc, são sintomas de um modo de vida
que tem na dívida sua estratégia de sobrevivência: “A rede de segurança social passou
de um sistema de bem-estar social para um de endividamento”(Negri e Hardt, 2014:
22).

65
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

O acúmulo de dívidas desencadeia um processo de responsabilização e


culpabilização pessoal, transformando-se rapidamente numa modulação das vidas a um
protocolo fechado das existências. Um duplo processo de culpabilização age de forma a
colocar na conta do indivíduo todos os motivos das intempéries sociais: o
endividamento financeiro é seguido de um endividamento moral.
Espécie de figura central da crise, o endividado simboliza o avanço neoliberal
sobre as políticas públicas, desarticulando a rede de proteção social e entregando
serviços e direitos aos ditames do mercado. “O homem não é mais o homem confinado,
mas o homem endividado” (Deleuze, 2006), sujeito da transição entre a sociedade
disciplinar e a sociedade de controle, agrega uma trama diagramática de formas
vigilância e monitoramento no espaço e no tempo.
A dívida promove uma forma de controle que não mais está sujeita a apenas
restrições espaciais, como nas fábricas do período fordista, mas na hipoteca do próprio
tempo. Sujeito de sua dívida o homem endividado negocia o futuro para garantir sua
sobrevivência e o pagamento de suas contas, negociando sua própria biografia.
Com o todo o seu tempo comprometido em honrar suas dívidas, pouco resta para
uma vida autoral e o controle de sua própria vida (Sennet,1999). Suas escolhas de
trabalho e formas de existência vão se achatando, constituindo uma série de restrições e
de perda de horizontes coletivos. Um dos efeitos perniciosos do endividamento é a
personificação de problemas estruturais e sistêmicos da sociedade capitalista. O
indivíduo cada vez mais assume sozinho a responsabilidade por suas dificuldades
financeiras e psicológicas, destituindo-se de qualquer projeto coletivo de mudança.

Figura 2: O Mediatizado

Só, correndo de um lado para outro para dar conta de suas dívidas, com o seu
tempo seqüestrado pela necessidade de trabalhar cada vez mais devido à perda de
direitos, aos arrochos salariais e declínio do seu poder de consumo, o sujeito endividado
torna-se bastante suscetível de uma invasão informativa, mediatizando seus afetos.
Antigamente, muitas vezes se tinha a impressão de que, em relação à mídia, a
ação política era reprimida principalmente pelo fato de que as pessoas não
tinham acesso suficiente às informações ou aos meios de comunicar e
expressar suas próprias visões. De fato, os governos repressivos atuais tentam
limitar o acesso a sites, fecham blogs e páginas do facebook, atacam
jornalistas e bloqueiam acesso às informações. Reagir a essa repressão é
certamente uma batalha importante, e muitas vezes testemunhamos como as
redes midiáticas e o acesso a elas rompem afinal e inevitavelmente todas
Márcio Tascheto da Silva

essas barreiras, frustrando as tentativas de fechamento e silêncio. No entanto,


estamos mais preocupados a respeito de como os atuais sujeitos mediatizados
sofrem do problema oposto, sufocados pelo excesso de informação,
comunicação e expressão. (Hardt e Negri, 2014: 27-28)

Enclausurado em montanhas de informação e presos ao constante estar “on”, não


mais dispõe do tempo necessário para pensar e dizer algo original. Impossibilitado de
reconhecer as fronteiras entre o tempo de trabalho e o tempo livre, mobilizando sua
atenção para os diversos canais de interação e conectividade, o sujeito contemporâneo
nos parece menos um sujeito alienado e mais um sujeito mediatizado.
Invadido por imagens do consumo em todas as horas do seu dia, o sujeito
mediatizado dispersa sua consciência ao mesmo tempo em que tem sua atenção
absorvida. Consumidor passivo de valores e estilos de vida vai compondo visões de
mundo pauperizadas, alimentado-se de signos do poder e ideais de felicidade. Com a
experiência submetida quase que unicamente aos meios de comunicação, o sujeito
mediatizado se assujeita a padrões e diretrizes irradiadas pelo mercado.
Exemplo desse consumo passivo é o declínio do espaço público. Quando a
cidade é retratada de uma forma esvaziada e a “paixão” de fazer cidade se vê submissa
ao contato apartado do carro ermitão, o consumo dessa imagem implica em uma
construção de uma visão de cidade enfraquecida. Fraca de convivência, fraca de
solidariedade, fraca de encontro, fraca de criação. A cidade construída pela
subjetividade mediatizada é uma cidade sitiada.

Figura 3: O Securitizado

Hardt e Negri ancoram sua terceira figura subjetiva da crise na obssessão


coetânea por segurança. O medo é um dos grandes mecanismos de controle da
atualidade, nutrindo formas de vida atemorizadas pelos perigos mais diversos.
O securitizado vive com medo em relação a uma combinação de punições e
ameaças externas. O medo em relação aos poderes dominantes e sua polícia é
um fato, mas mais importante e eficaz é o medo de outras e desconhecidas
ameaças perigosas: um medo social generalizado. (Hardt, Negri, 2014:39)

Tereza Caldeira no livro “Cidade de Muros”,(Caldeira, 2000), já alertava para


uma estética da segurança a partir de uma arquitetura do medo. Analisando as mudanças
urbanas de São Paulo6 como resultado de processos de segregação espacial, a autora

6
Embora a análise seja situada em São Paulo, os argumentos de Caldeira podem ser relacionados com
características comuns a várias metrópoles.

67
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

enfatiza algumas características de isolamento que tipificam o que chamou de “enclaves


fortificados”.
Todos os tipos de enclaves fortificados partilham algumas características
básicas. São propriedade privada para uso coletivo e enfatizam o valor do que
é privado e restrito ao mesmo tempo que desvalorizam o que é público e
aberto na cidade. São fisicamente demarcados e isolados por muros, grades,
espaços vazios e detalhes arquitetônicos. São voltados para o interior e não
direcionados a rua. Cuja a vida pública rejeitam explicitamente. São
controlados por guardas armados e sistemas de segurança, que impõem as
regras de inclusão e exclusão. (Caldeira, 2011: 258, 259)

Elegidos a espaços de prestígio, esses enclaustros tornan-se o ideal de moradia


disseminado no imaginário social sobre a cidade, construindo uma inversão de valores
que havia prevalecido em décadas anteriores. Vendidos como meio de escapar da
cidade, esses espaços vão constituindo uma trama territorial amparada em técnicas de
segurança e vigilância que, em uníssono com a imagem/cidade/citroen, definem
segmentações e cesuras entre classes sociais.
Espécie de quintessência Hobesiana7, toda uma política do medo vai se
configurando em estilos de vida, compondo no binômio terror/segurança, uma dialética
baseada na renuncia do espaço público. O sentimento de inseguridade construído
diariamente pelo jogo de espelhos da publicidade contemporânea, aprimora o que Gilles
Deleuze e Félix Guattari tinham escolhido chamar de “micropolítica da insegurança”,
no começo da década de 80.
A administração de uma grande segurança molar organizada tem por
correlato toda uma microgestão de pequenos medos, toda uma insegurança
molecular permanente, a tal ponto que a fórmula dos ministérios do interior
poderia ser: uma macropolítica da sociedade para e por uma micropolítica da
insegurança. (Deleuze, Guattari, 2004: 94)

Receptáculo de temores, o individuo contemporâneo é forçado a viver em uma


circunscrição do possível, direcionando ao consumo a única solução para o sentimento
de insegurança que o assola. Um regime de condutas que desemboca na produção de
subjetividades aterrorizadas em pânicos urbanos como: assaltos, sequestros, poluição,
roubos de automóveis, perda do emprego, colisões de veículos, atropelamentos, ruas
escuras, “bairros perigosos”, andar sozinho, usar o transporte coletivo, engarrafamentos,
etc.
A economia do consumo depende da produção de consumidores, e os
consumidores que precisam ser produzidos para os produtos destinados a
enfrentar o medo são temerosos e amedrontados, esperançosos de que os
perigos que temem sejam forçados a recuar graças a eles mesmos (com ajuda
remunerada obviamente). (Bauman, 2010:15)

7
Argumento defendido na obra mais famosa de Thomas Hobbes “Leviatã”,de 1651.
Márcio Tascheto da Silva

A cultura do consumo radicaliza o sentimento de isolamento, fechando as saídas


para soluções que não passem pelo viés do mercado. O perigo que o outro representa e o
imaginário de medos alimentados pela publicidade, ajudam a degradar ainda mais o
espaço público. Qual é o saldo político dessa conjugação de dívidas, midiatizações e
temores onipresentes?

Figura 4: O Representado

Consciente das inúmeras contradições sociais, espectador cotidiano do teatro de


horrores dos noticiários noturnos, desencorajado de sair de casa em virtude dos perigos
que a cidade é capaz de lhe oferecer, descrente das soluções políticas e de suas velhas
organizações, o representado é forçosamente empurrado de volta para o medo (Hardt,
Negri, 2014).
Filho da ausência de possibilidades coletivas de mudança reconhece o
esvaziamento da política e suas formas de corrupção da democracia, no entanto, sem
enxergar alternativas, facilmente se submete a uma posição passiva.

E o representado? O que permanece de suas qualidades como cidadão nesse


contexto global?Ao deixar de ser um participante ativo da vida política, o
representado se descobre o pobre entre os pobres, lutando sozinho na selva
dessa vida social. Se não estimular seus sentidos vitais e despertar seu apetite
pela democracia, o representado se tornará um produto puro do poder, a casca
vazia de um mecanismo de governança que não faz mais referência ao
cidadão-trabalhador. O representado, então, como as outras figuras é o
produto da mistificação. Da mesma forma que o endividado é destituído do
controle de seu poder social e produtivo; da mesma forma que a inteligência,
as capacidades afetivas e os poderes da invenção lingüística do mediatizado
são traídos; e da mesma forma que o securitizado, vivendo num mundo
reduzido ao medo e terror, é despojado de toda possibilidade de troca social
associativa, justa e amorosa, o representado também não tem acesso à ação
política eficaz. (Hardt, Negri, 2014: 45)

Quando transpostas para o contexto urbano essas quatro figuras sintetizam a


naturalização das imagens de uma cidade deserta. A crise que assola as grandes cidades
é incapaz de provocar o associativismo de uma ação política, caindo no buraco negro da
escolha sem alternativa do indivíduo por si mesmo.
Junto ao esvaziamento da política institucional e o seu conseqüente descrédito,
propagandas como a do Citroen C4 Lounge contribuem para o reforço de um imaginário

69
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

sobre a cidade que separam o indivíduo do contato com o outro. Que o separam da vida
pública e de toda a singularidade que a rua é capaz de proporcionar.
Quando a rua é marcada pela ausência da figura humana, quando a rua é
destituída de sua potência em proporcionar encontros, que tipo de desdobramento
político acarreta? A aleatoriedade, o acaso, o encontro, a diversidade e a possibilidade
da diferença se vêem tolhidas.

Fora do mercado

Na perspectiva do cotejo com a cidade citroen, nasceu à experiência com a


etnografia de rua que narraremos a seguir8. A partir do itinerário do comercial de TV
pelas ruas de Porto Alegre foi possível reconhecer algumas ruas, cruzamentos, esquinas
e lugares. Uma vez mapeadas as rotas usadas na captação de imagens, tornou-se viável
fazer um estudo das possibilidades de realização de uma etnografia situada no mesmo
cenário urbano.
A busca por experenciar os mesmos lugares trouxe de imediato a consciência da
inviabilidade em etnografar todas as ruas que aparecem nas imagens do comercial,
exigindo a definição de um espaço mais restrito. Não só pelo espaço amplo de
referências que as imagens do comercial remetem, quanto pelo tempo disponível para
realizar o processo etnográfico. Tensão que levou a criação de possibilidades realizáveis
e oportunas ao rigor metodológico que uma etnografia urbana exige.
Tornar-se um com os ritmos urbanos é perder-se no meio da multidão,
deixar-se possuir por alguma esquina, fundir-se nos encontros fortuitos, mas
é também localizar-se nas conversas rápidas dos habitantes locais, registrar
piscadelas descompromissadas dos passantes, rabiscar apressadamente um
desenho destas experiências no seu bloco de notas, tirar algumas fotos, gravar
algumas cenas “estando lá”. Desenhos, croquis, anotações, fotos, vídeos, etc.
No dizer Bachelardiano, para se praticar uma boa etnografia de rua o
pesquisador precisa aprender a pertencer a este território como se ele fosse
sua morada, lugar de intimidade e acomodação afetiva, através dos devaneios
do repouso. (Rocha, Eckert, 2013: 23)

O esforço de familiarização, de construção de intimidade com as pessoas e


identificação com o território exige um demorar no lugar. Os registros gráficos, a
produção de imagens e outras formas de guardar indícios de uma experiência com a

8
Fruto de um exercício proposto pelas professoras Cornélia Eckert e Ana Luiza Carvalho da Rocha na
disciplina de Etnografia Visual e da Imagem, do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
UFRGS. Disciplina ofertada no segundo semestre de 2014.
Márcio Tascheto da Silva

etnografia de rua, forçam a um rigor metodológico complexo e intenso. Desta forma, o


quadrante composto pela Av. Julio de Castilhos, a Rua Siqueira Campo, o Largo da
Glênio Peres e o trecho que liga a Rua Borges de Medeiros a Av. Júlio de Castilhos nos
arredores do mercado público de Porto Alegre, região central, foi o cenário escolhido
para confrontar com a cidade fantasma Citroen.
Munido de equipamento fotográfico e de vídeo, contando com o importante
apoio do antropólogo e cineasta Josep Juan Segarra9, o exercício possuiu o objetivo de
contrastar os fragmentos visualizados no comercial da Citroen, com o ritmos de uma
cidade habitada, povoada dos mais diferentes personagens e histórias. A cidade Citroen
é desubstancializada de temporalidade, tornando-se um espaço sem o verniz das gentes,
cores, sons e texturas que a compõem como teatro das vidas. Como em um conto de
Rubem Fonseca (Fonseca, 2006), a arte de andar pelas as ruas de Porto Alegre revive a
memória literária das invisibilidades sensíveis de Ítalo Calvino (Calvino, 1990) ou
encantamento pelas ruas de João do Rio (Rio, 2008). Da “Noite” de Érico Veríssimo
(Veríssimo, 2009) e seus personagens nada convencionais a própria cidade como um
personagem estranho em Ruffato de “Eles eram Muitos Cavalos” (Ruffato, 2011). Toda
essa literatura urbana faz brotar o gosto por estar dentro do espaço, como um Ícaro
caído nos estratagemas de Dédalo (Certau, 1994).
Na busca do encontro e diálogos menos fortuitos que aqueles que os
deslocamentos na rua permitem ao etnógrafo, a cumplicidade dos pequenos
gestos, sorrisos ou olhares dos habitantes da rua, moradores locais,
comerciantes, freqüentadores, mendigos, vendedores ambulantes, menino(a)s
de rua, feirantes, pode significar um convite a aproximação mais duradoura.
(Rocha, Eckert, 2013: 25)

Dessa forma, buscando a experiência que só uma metrópole é capaz de


proporcionar, o afastamento da cidade desabitada dá lugar ao imprevisto do jogar-se na
cidade, praticando e sendo praticado pela cidade. Ao revés da cidade Citroen, tentamos
produzir imagens outras, que demonstrassem seu ritmos e pulsões. Suas rotas e
itinerários, seus ângulos e esquinas. Perspectivas atravessadas e comuns com o
comercial, tempos próximos e espaços semelhantes. A partir da perspectiva do terraço
do Prédio da Federasul, localizado na Av. Júlio de Castilhos, o primeiro intento foi
produzir fotografias panorâmicas do espaço, criando uma perspectiva ampliada do
Mercado Público e seus arredores.

9
Na oportunidade, cursávamos a disciplina de Antropologia da Imagem e Visual.

71
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

Esse prazer de ver o conjunto (Certau,1994), desmaranhando-se


temporariamente da cidade e colocando-se a distância em uma observação aérea,
produz uma compreensão ampla do perfil topológico do lugar. Marcada pelo
planejamento geométrico no desenho de suas ruas, largos, calçadas, avenidas, paradas
de ônibus, estação de metrô, praças, ao mesmo tempo pela ocupação caótica de
camelôs, pontos de taxi, tapumes, vendedores ambulantes, feira, carros, ônibus,
transeuntes, a cidade vista de cima é um complexo de interações espaciais e temporais.
Amálgama de tempos, a arquitetura dos prédios e outras construções, são o
testemunho vivo de épocas que convivem em segredo. Um segredo concreto, memória
de pedra, aço, vidro, madeiras. Continuada no tempo, a cidade se espacializa
desordenadamente como uma romaria de escritas que se avolumam em cada fachada,
porta e telhado. A rua em ao meio a cada prédio é um sinal seguro da inevitável
passagem do tempo que corre no passo trôpego da metrópole.
Descer ao nível da rua e produzir imagens fotográficas e videográficas depois de
experimentar um olhar de Ícaro, sem dúvida traz outras miradas. Pegar o ângulo do
comercial e não pegar a sua espetacularização da rua é a sabotagem da etnografia com a
publicidade.
O espaço ocupado pelos homens lentos (Santos, 2011), com suas vivências e
práticas do lugar, os motoristas que dividem a rua sem o sonho da privatização dos
caminhos, os engarrafamentos de carros e ônibus, reinserem Ícaro na altura dos demais.
Mais uma vez é a cidade falando aos sentidos. Os negócios, trocas, profissões, esperas,
expectativas, são percebidas facilmente quando ao descer do prédio da Federasul nos
imiscuímos no torvelinho da multidão.
Diferente da figura do securitizado apresentado anteriormente, o espaço público
se apresenta como um lugar de encontro com o outro. Em contraste com o motorista da
Citroen, caminhar pelas ruas de Porto Alegre fornece os encontros mais aleatórios.
Levando a câmera de um ponto ao outro no intuito de captar imagens na parte externa
do Mercado Público, entramos em contato com diferentes pessoas. Abordando e sendo
abordados pelos mais diferentes personagens. Músicos populares, moradores de rua,
trabalhadores informais, precários, funcionários da prefeitura, toda uma legião de
personagens que tingem o espaço com suas biografias, desejos, objetivos e desvarios.
O engraxate de 80 anos que há sete décadas trabalha no mesmo local; A família
de músicos da cidade de São Luiz Gonzaga/RS que ganha à vida tocando no Largo da
Glênio Peres; A moradora de rua intrigada com o movimento que fazíamos com a
Márcio Tascheto da Silva

câmera e o equipamento que carregávamos naquela tarde chuvosa de outubro de 2014;


Os olhares desconfiados dos transeuntes que cruzavam incomodados com o travelling
que realizamos pelo mesmo trecho da Av. Júlio de Castilhos que o automóvel da
Citroen percorre no comercial de TV; A “denúncia contra a ciência” 10 que gravamos ao
sermos abordados por um jovem em frente à praça quinze; O espancamento do homem
negro que tentava roubar uma garrafa de vinho tinto; Enfim, a babilônia apresentando
suas diversas faces.

O engarrafamento de Cortázar

Imagine um engarrafamento que dura um ano. Uma auto-estrada cheia de


automóveis parados. Motoristas que retornavam de um final de semana na praia
enfurecidos pelo estancamento súbito de suas vidas. No começo ninguém desconfia que
a barricada de carros a sua frente durará tanto tempo. Que a copa de árvores que
visualiza ao lado esquerdo do pára-brisa dessa vez não passará como um raio e
permanecerá durante meses até sumir para sempre de sua consciência. Quem iria
imaginar que os modelos Citroen, Mercedes Benz, ID, 4R, Lancia, Skoda, Morris
Minor, Renault, Anglia, Peugeot, Prosche, Volvo, permaneceriam no seu campo de
visão tanto tempo, a ponto de você se familiarizar com essa disposição na estrada. Não
só se familiarizar como conhecer cada um dos integrantes daqueles veículos.
Aos poucos, um a um, os motoristas começam a abandonar seus carros. A moça
do Dauphine observa os meninos louros do carro ao lado. O engenheiro do carro atrás
reserva explicações detalhadas ao casal que lhe pede informações sobre o que está
ocorrendo kilômetros à frente. Toda uma rede relações começa a ser tecida. Carros
maiores viram leitos para os doentes. Encontros amorosos dividem lugar a pequenas
desavenças do cotidiano. Um grupo de homens sai em busca de mantimentos. Alguém
morre solitário agarrado ao volante que não voltará mais a dirigir.
Depois das chuvas tórridas do verão, do lento esfriar do outono, da neve e o
florescer da primavera, bem devagarinho a fila de automóveis começa a mexer. O
mundo constituído pela parada súbita dissolve-se ao ritmo da primeira marcha. A
velocidade aumenta e logo os carros atingem 80km/h sem saber para que tanta pressa,

10
Reproduzido no vídeo intitulado “Fora do Mercado”. O vídeo resulta de exercícios com etnografia de
rua proposto na disciplina de Antropologia Visual e da Imagem PPGAS/UFRGS.

73
FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA

“por que essa correria na noite entre automóveis desconhecidos onde ninguém sabia
nada sobre os outros, onde todos olhavam fixamente para a frente, exclusivamente para
frente”(Cortázar, 2011; 35).
Olhando exclusivamente para frente os motoristas de Cortázar dão continuidade
a uma trajetória sem a presença do outro. Os laços de pertencimento se dissolvem a
medida que a rotação do motor se intensifica. O que o engarrafamento produziu em
possibilidade de encontros se dissipa junto à nostalgia que aflige os motoristas a cada
carro que desaparece para sempre de seu convívio.
O fantástico engarrafamento de Cortázar é uma inflexão de tudo que tentamos
argumentar até agora. Uma criativa forma de confrontar o motorista Citroen e suas ruas
fantasmas com o vigor de um experimento de “olhar para o lado” que o exercício com a
vivência com etnografia de e na rua proporciona. Endividado, mediatizado, securitizado
e representado, o homem-motorista contemporâneo é uma inflexão de uma encruzilhada
de medos.
Sintoma e produção de uma prática urbana despotencializada a marcha da
publicidade da citroen é de outra natureza da democracia. Ir para a rua mesmo sem a
parada obrigatória de um engarrafamento aos moldes de Cortázar, na condição do
exercício etnográfico e tudo que é capaz de fazer pensar, tornou-se o corolário desse
experimento e a razão de continuidade de uma pesquisa que permanece sem resposta a
várias perguntas realizadas nesse texto. Sem dúvida, ainda sim, com o mesmo gosto de
perguntar o mesmo, só que em lugar diferente.

Márcio Tascheto da Silva é professor da Faculdade de Educação da Universidade de


Passo Fundo - UPF/RS. Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS/RS.

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75
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Arte, mídia e cultura

77
O Cristo terceiromundista. Rocha com/contra Pasolini.

Nicolás Fernández Muriano

Identidades tribais, bárbaras.

Em 1965, Bertolucci e Gianni Amico apresentaram a Pasolini uma projeção


privada de Deus e o diabo na terra do sol (Rocha, 1964), organizada em Roma, como
efeito da fortuna do filme determinada pelo festival de Cannes do ano anterior; e, em
geral, do cinema novo (levando em conta a diáspora que se seguiu ao golpe de estado
ocorrido no Brasil nesse ínterim)1. Rocha espera na antessala. Não quer ver Pasolini
assistindo ao seu filme, o que lhe interessa mais é que essa visada já aconteça como um
momento construtivo da colocação em cena: “eu tinha filmado Deus e o diabo... quase
ao mesmo tempo, e o filme de Pasolini me revelava identidades tribais, bárbaras”,
recordaria dez anos depois2. A revelação de O Evangelho segundo Mateus (1964) não
significa que Glauber identifique a sua visada com a de Pasolini, ao contrário, a
imanência de outras visadas define a modernidade política do filme, para mais além do
traço singular da sua autoria3. Antes de viajar a Cannes, Glauber declara que Deus e o
diabo: “não é um resultado meu individual, não: eu creio que o filme é o resultado de
toda a consciência cultural propriamente dita que o cinema novo tem”4. O termo
“consciência”, na tradição teórica de Eisenstein e Bazin, que Rocha compartilha com
Pasolini, não aparece aí indeterminado: “em nenhuma outra arte o estilo pode fundar
uma moral... é o filme enquanto consciência”, escreve o brasileiro num ensaio do
mesmo ano5. Na continuação, Glauber propõe uma periodização da história do cinema
segundo os modos de apresentação da consciência da mise-en-scène: “a) o estilo

1
“Eu viajei com Deus e o diabo, veio a queda de Jango, voltei com tudo mudado e as pessoas dispersas,
desmoralizadas, tristes”, ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 1997,
p. 35.
2
ROCHA, Glauber. O século do cinema. São Paulo: Cosac Naif, 2006. P. 256.
3
Resume Ismail Xavier: “em seus filmes, o caráter heteróclito da enunciação no cine vem em primeiro
plano, porque soube inventar formas originais para articular faixas de som e imagem, ora incorporando
traços da cultura popular, ora do teatro moderno ou da tradição literária, sem eludir seu diálogo intenso
com o cinema de autor europeu que lhe era contemporâneo, o mesmo vale para o western dos anos 50 (...)
seu cinema é o ponto de interseção dos conflitos entre vários canais de expressão, conflitos que os
cineastas de sua geração tornaram evidentes ao questionar o imperativo de que uma única voz deve
orquestrar todo um filme”, XAVIER, Ismail. Sertão mar. Rocha e a estética da fome. São Paulo: Cosac
Naif, 2007, p. 10.
4
ROCHA, Glauber. Cartas ao mundo, op.cit. p. 274.
5
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 248.
Nicolás Fernández Muriano

enquanto discurso de uma moral” que caracteriza a découpage clássica do cinema


narrativo, representativo e industrial, e “b) o estilo enquanto moral” que caracteriza os
filmes surgidos na época do pós-guerra: “de Rosselini a Michelangelo e de
Michelangelo aos cineastas do futuro”. A articulação diferida entre os autores do
chamado “cinema moderno” e o postulado bem mais profético de um “cinema futuro”
constituem a margem problemática do “cinema novo”. O que antecipa a importância
estratégica de uma “identificação tribal, bárbara” com o primeiro filme de Pasolini,
tomando assim distância da filiação neorrealista de sua obra prima Accattone –
desajuste social (1961). Rocha viu O Evangelho um par de semanas antes da projeção
de Deus e o diabo, ele apenas regressava à Roma vindo de Gênova, onde acabava de
apresentar o manifesto da Estética da fome (1965), no marco do seminário “Terceiro
Mundo e Comunidade Mundial” (janeiro, 1965), que se destinava à promoção na Itália
dos filmes latino-americanos em destaque em Cannes. Um ano depois, Glauber escreve
o seu primeiro texto sobre Pasolini: “A moral de um novo Cristo” (1966).
O ponto de partida teórico do ensaio poderia ser confirmado por qualquer leitor
contemporâneo dos Cahiers du cinéma. “A consciência do mundo moderno, desde o
fim da segunda guerra mundial, está no cinema”6. A consciência do mundo moderno
identificada com o estilo dos autores é o pressuposto que permite a Bazin conceber o
plano-sequência de Rosselini como uma forma de piedade. Isto torna possível “voltar às
coisas” depois da guerra, uma clara alusão à fenomenologia de Husserl, que
demonstrava a posição necessária de uma consciência do tempo implicada nos perfis
incompletos das coisas7. “A moral de um novo Cristo”, apesar disso, considera O
Evangelho de Pasolini um filme precursor do novo Cristo latino-americano, seguindo a
tradição de Buñuel, para mais além da pietas rosselliniana: “o Cristo de Pasolini é um
revolucionário que sucede ao Cristo anárquico de Buñuel”. Um ano depois, a lista de
autores contemporâneos que projetam ao futuro o marco genético do pós-guerra não
deixa de acentuar a diferença moral dos latinos:
No meio do caminho tombaram Visconti, Fellini, Bergman. Circulando no
caminho com a cruz às costas: N. S. Buñuel. Satélite artificial circulando no
caminho: Michelangelo. Guerrilheiro deste universo: Godard, dois filmes por
semana, simultânea criação e vivência; poeta deste universo: Pier Paolo
Pasolini; exército deste universo, espero, os futuros cinastas do mundo
subdesenvolvido.8

6
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 187.
7
BAZIN, André. Qué es el cine? Madrid: Rialp, 2008.
8
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 367 e ss.

79
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

“Nosso Senhor Buñuel”, Glauber lhe confere, para mais além de qualquer
periodização, a dignidade eclesiástica de um patriarca, sustentando a cruz desde a pré-
história do cinema, enquanto os velhos autores modernos ficavam pra trás: “Nosso
Senhor Buñuel é um monge rebelde, surrealista, não tem nada a ver com a História do
Cinema, o seu caminho é outro, artista bárbaro.”9 Antonioni é apenas um satélite
artificial e Godard, um guerrilheiro que dinamita solitariamente a história do cinema.
Pasolini, em vez disso, aparece articulado sem um senão sequer com o exército de
cineastas subdesenvolvidos do futuro. A cruz de Nosso Senhor e a esperança que
projeta o Apóstolo Profano constituem, em bloco, a filiação latina que excede o
momento genético de Rossellini: “autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico”.
Mas a tribo ou o exército do mundo subdesenvolvido ainda está por vir, somente aí,
num futuro possível, reside a identidade tribal de O Evangelho, que subtrai a moral de
Pasolini da sua identificação natural com “os místicos financiados pela Democracia
Cristã, assim como Rossellini, Antonioni e Fellini”, dada a sua condição revolucionária
que tampouco deriva dos “velhos comunistas de sistema, como Visconti ou De Sica”,
senão, sim, do Cristo anárquico de Buñuel10. A operação crítica complementar consiste
em subtrair a consciência do cinema novo de sua filiação natural na história do cinema
brasileiro. Um ano antes de Deus e o diabo, Glauber editava a Revista crítica do cinema
brasileiro (1963), em que “demonstra” a inexistência de uma cinematografia clássica
nacional que possibilite no Brasil um “cinema moderno”, no sentido de Bazin. O ensaio
polêmico produz um tipo de bloqueio histórico antes de chegar à época contemporânea.
O capítulo seguinte, “Origens de um cinema novo”, comenta uma série de filmes
recentes que, apesar das limitações técnicas, parecem desmontar o marco histórico do
cinema nacional: Os cafajestes (Ruy Guerra, 1962), Garrincha ou a alegria do povo
(Andrade, 1962), Vidas secas (Pereira dos Santos, 1963), entre outros, não têm
precedentes no cinema brasileiro; antes disso, eles próprios constituem as “origens” do
cinema por vir, na medida em que prolongam, para além de si próprios, uma nova
tradição nacional: “mais que o filme em si, interessa saber que o país em progresso terá
no cinema a sua expressão por excelência”. Deste modo, Glauber reformula a pergunta
pelo “cinema novo”:
Garrincha é uma definição do cinema novo? (...) Não é uma definição do
cinema novo, porque este cinema não se definirá previamente: a sua
existência é a prática dos anos vindouros, na busca inquieta e na criação

9
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op.cit. p. 311.
10
Ibid., p. 256-257.
Nicolás Fernández Muriano

possível dos jovens diretores brasileiros que, segundo Louis Marcorelles,


“são, em potencial, os melhores cineastas do mundo.”11

O atributo “novo” se usa no sentido de “por vir”, “potencial”, como uma


“criação possível”. Um ano depois do impacto do cinema novo em Cannes, que reduz o
“novo” a um simples catálogo de filmes contemporâneos, a Estética da fome amplia as
fronteiras nacionais e geracionais para restituir o sentido prospectivo ao termo.12 O
cinema novo se define a partir de “um gérmen” do que pode vir a ser. O gérmen consiste
numa “disposição subjetiva” do cinema dos países colonizados: “é uma questão moral
que se refletirá nos filmes”. Um ano mais tarde, “A moral de um novo Cristo” (1966),
que amplia as origens desde seus germens europeus, usa o termo “novo” como atributo
condicional do Cristo Latino, que está por vir, assim como define “moralmente” a
operação estilística do Patriarca espanhol e do Apóstata italiano. O primeiro rastro desta
concepção “crística” do cinema latino se encontra em “Os doze mandamentos de Nosso
Senhor Buñuel” (1962), que é uma espécie de declaração de princípios concorrentes
com as distintas etapas da filmografia do espanhol. A consagração simultânea dos
princípios, convertidos em mandamentos, e do próprio Buñuel alçado a “Nosso Senhor”
se realiza mediante uma série de gestos batismais: “autor ibero-americano”, “fundador
da estética da fome”, “primeiro cineasta da América Latina”, “artista bárbaro”, entre
tantas outras dignidades, que sustentam a eminência de Buñuel ao longo de toda a obra
ensaística de Glauber. Dez anos depois, pouco antes de morrer, Glauber agrega uma
precisão sobre a tribo latina do Nosso Senhor: “O cinema, como dizia Buñuel, não é
uma arte que possa ser realizada pelos latinos; eu lhe perguntei: ‘E você?’, ‘não –
respondeu – eu sou um amador’. Segundo Buñuel, o cinema é para anglo-saxões, desde
o ponto de vista técnico e industrial.”13
O que torna possível o cinema latino é o seu “amadorismo”, entendendo-o não
apenas pelas condições subprofissionais de produção, como também por um “novo
amor”, inclusive pelo Cristo dos inimigos (Griffith, De Mille), que excede o pathos
idealista do catolicismo europeu ou latino-americano através da violência da estética da
fome:

11
ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naif, 2003 (1963). P. 151.
12
“O cinema novo é um fenômeno dos povos colonizados e não uma entidade privilegiada do Brasil:
onde houver um cineasta disposto a filmar a verdade e enfrentar os padrões hipócritas e policiais da
censura, ali haverá um gérmen do cinema novo. Onde houver um cineasta, de qualquer idade ou qualquer
procedência... ali haverá um gérmen do cinema novo. A definição é esta.” ROCHA, Glauber. Revolução
do cinema novo. São Paulo: Cosac Naif, 2004. p. 67.
13
O século do cinema. op cit. p. 328.

81
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

Uma moral: essa violência, contudo, não está incorporada ao ódio, como
tampouco diríamos que está ligada ao velho humanismo colonizador. O amor
que esta violência encerra é tão brutal quanto a própria violência, não é um
amor de complacência ou de contemplação, mas sim um amor de ação e
transformação.14

No texto de 1966, O Evangelho participa e projeta essa disposição moral e


afetiva que faz germinar o “novo Cristo” dos latinos, através da violência contra o
cânon “antigo”: “Anticinema – gritam alguns críticos furiosos diante da falta de respeito
de Pasolini pela técnica tradicional, a gramática dos espetáculos antigos do cinema
americano. Pasolini não se interessa pela continuidade, as técnicas de interpretação, o
realismo dos cenários etc.”15
Mas Pasolini não tem a mesma sorte do que o Nosso Senhor. A partir da década
de 1970, Rocha deixou de crer nos filmes do italiano que, ao mesmo tempo,
profissionalizaram e perverteram o “amadorismo” do cinema latino. A figura de Cristo
constitui o fio condutor da insistência dramática no nome do italiano, na reflexão de
Glauber Rocha – desde a identificação de 1966 até o depoimento impiedoso de 1981
intitulado “O Cristo-Édipo” e publicado pelos Cahiers du cinema: “incômodos,
escutávamos a sua voz veemente, o encanto de seu francês com sotaque brasileiro, o
ajuste de contas colérico e afetuoso com Pier Paolo Pasolini, as reprovações post
mortem”, lembra Serge Daney16. O ajuste de contas “colérico” deixa intacto o princípio
“afetivo” da relação, que é a imanência do Cristo de Pasolini na mise-en-scène de seus
próprios filmes, ao contrário, o ajuste o intensifica mediante a conjuração do seu signo
de identidade:
Em meu último filme, A idade da Terra (1978-80), falo de Pasolini, digo que
desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da
morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão de
um Cristo Terceiro-Mundista que não tinha nada que ver com o Cristo
pasoliniano.17

A mimese sagrada

Poucos meses depois da projeção de Deus e o diabo, em Roma, Pasolini


apresenta o seu famoso ensaio sobre “O ‘cine poesia’”: “Como exemplos concretos de
tudo isto, trarei para a análise Antonioni, Bertolucci e Godard – mas poderia agregar

14
Revolução do cinema novo. p. 66.
15
O século do cinema. op. cit. 280.
16
DANEY, Serge. Cine, arte do presente. Buenos Aires: Santiago Arcos ed., 2004. p. 100.
17
O século do cinema. op. cit. 285.
Nicolás Fernández Muriano

desde o Brasil também Rocha... e, naturalmente, a muitíssimos outros (presumivelmente


quase todos os autores do festival de Pesaro).”18
A apresentação do ensaio no marco do Festival de Pesaro de 1965 autoriza
Pasolini a generalizar a sua tese sobre uma nova condição estilística que se tornou
evidente na época em que o cinema se acostumou a mostrar a câmera (em contraste
com a “montagem invisível” da découpage de Hollywood): o plano “subjetivo indireto
livre”. Rocha toma distância imediatamente da analogia literária de Pasolini: “não se
podem aplicar métodos literários para a crítica do cinema, porque o cinema é uma arte
nova que não tem nada a ver com a literatura”, escreve no ensaio de 196619. Não se
pode pensar o “novo” através do “velho”. Esta objeção tensiona a escritura de Rocha
desde os seus primeiros ensaios, destinados a disputar no meio local o significado e a
extensão da expressão “cinema novo” (ser em potencial, porvir). A apresentação da
Estética da fome, em 1965, marca a abertura da discussão desde o velho mundo,
complicada poucos dias depois pela revelação do Evangelho. Pode dizer-se, também,
que a Estética da fome é o primeiro marco ensaístico do calendário crítico de um ano
atravessado de polêmicas desencadeadas pela irrupção do cinema do Terceiro Mundo,
pondo em crise as categorias forjadas nos Cahiers: “Cinema de autor x cinema
industrial”. Existe, de direito, um terceiro cinema ou um cinema novo, não é tão
somente um testemunho cru da violência política das nações sem desenvolvimento
industrial, um cinema pré-industrial (primitivo) antes que “anti-industrial” (moderno),
no sentido de uma política dos autores?20
Pasolini está entre os primeiros a reconhecer teoricamente a novidade estilística
do terceiro mundo, comparável à de Antonioni, Gordard e Bertolucci. Por isso, para
além das diferenças irredutíveis com os europeus e as objeções contra o dispositivo
conceitual de Pasolini, é factível determinar a correlação teórica entre os postulados do
brasileiro e os princípios estilísticos do italiano, o que Ismail Xavier define a partir do
privilégio do “foco expressivo” da Estética da fome: “Da fome. Uma estética. A
preposição ‘de’, ao contrário da preposição ‘sobre’, marca a diferença: a fome não se

18
PASOLINI, Pier Paolo. Empirismo herético. Córdoba: Brujas ed., 2005. p. 249.
19
O século do cinema. op. cit. p. 281.
20
A Estética da fome começa assim: “Enquanto a América Latina lamenta as suas misérias gerais, o
interlocutor estrangeiro cultiva o sabor dessa miséria... como dado formal de seu campo de interesse...
Para o observador europeu, os processos de criação artística do mundo subdesenvolvido só o interessam
na medida em que satisfazem a sua nostalgia de primitivismo.” Revolução do Cinema Novo, p. 63.

83
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

define como tema, um objeto de que se fala. Ela se instala na própria economia do dizer,
na própria textura das obras.”21
A Estética da fome não é um testemunho “digestivo” sobre a vida dos
esfomeados, antes disso, ela expressa uma “nova sensibilidade” além de qualquer
limitação temática: “é uma questão moral que repercutirá nos filmes, na hora de filmar
um homem ou uma casa, num detalhe a observar, na Filosofia.”22 A partir disso, cabem
distinguir dois níveis na composição de um filme, segundo o texto de Glauber: um que
corresponde ao plano de conteúdos (homem, casa, filosofia etc), e o outro ao plano da
expressão (estética da fome, cinema digestivo etc). Noutras palavras, a singularidade da
estética da fome deverá rastrear-se ali onde Pasolini finca a subjetividade do autor:
“debaixo deste filme transcorre outro– é o que o autor teria incluído, sem o pretexto da
mimese visiva de seu protagonista: um filme total e livremente de caráter expressivo-
expressionista.”23 A analogia que Pasolini faz entre o “cinema de poesia” e o “discurso
indireto livre” do romance contemporâneo, que não deixa de ser um modo de prosa
narrativa, longe de introduzir um equívoco na sua distinção inicial, facilita a
esquematização da tese principal do ensaio: se o “discurso indireto” caracteriza a voz de
um narrador em terceira pessoa e o “discurso direto” equivale a uma citação direta da
voz do personagem, se chama “indireto livre” o discurso composto de maneira
indiscernível entre os dois níveis: “consiste simplesmente na imersão do autor no
mundo de seu personagem e, portanto, a adoção, por parte do autor, não somente da
psicologia de seu personagem, como também de sua língua”, diz Pasolini.24 De maneira
análoga, se, no cine de prosa, as tomadas objetivas apresentam uma “visada indireta” ou
exterior ao conjunto narrado e as tomadas subjetivas equivalem a uma “visada direta”
desde os olhos do personagem, o cinema de poesia constitui uma “subjetividade indireta
livre”, esta que consiste numa “mimese visiva” de autor e personagem. Por exemplo:
Antonioni libertou o próprio momento mais real: pôde finalmente representar
o mundo visto por seus olhos, porque substituiu, em bloco, a visão de mundo
de uma enferma, pela sua própria visão delirante de esteticismo: substituição
em bloco justificada pela possível analogia de ambas as visões.25

21
XAVIER, Ismail. op. cit. p. 13.
22
A revolução do cinema novo. p. 67.
23
PASOLINI, op. cit. p. 225.
24
Op. cit, p. 244.
25
Op. cit., p. 251.
Nicolás Fernández Muriano

Além da antipatia de Glauber pela nomenclatura literária de Pasolini,


existem ressonâncias frequentes do postulado geral do cine de poesia em suas análises
críticas:
Fellini é Fellini, Mastroiani o seu meio. O meio é o ator, o Duende, enquanto
Deus Fellini descansa no paraíso. O eu partido. Eu e meio, eu e uma metade,
Esquizofrenya, Projeção do Eu Escondido, celebração orgiástica deste Amor
à Eu-autocrítica, excreção, ritual, prazer, gozo, sexo (...) o Meio é a
mensagem... uma metade realizada do ser em Estétyka. 26

A proliferação de figuras sagradas e neotestamentárias na reflexão de Rocha (e


de Pasolini) não é casual, nem pertence a uma ordem espiritual ou cultural indiferente
do meio cinematográfico.27 Além da primazia dos autores cristãos em toda a história do
cinema (Griffith, Ford, Hitchcock, Bergman, Bresson, Buñuel, Rossellini etc), o Deus
escondido e seu meio expressivo, personagem, duende ou Cristo, constituem as duas
metades do “ser em estética”, compostas pela “mimese sagrada” do espírito do cinema:
“se trata de uma operação de enunciação que opera no lugar dos atos de subjetivação
inseparáveis”, descreve Deleuze, “que constitui um personagem em primeira pessoa e
outro que assiste a seu nascimento e o coloca na cena.” Deleuze remete os polos de
análise do discurso (sujeito de enunciação/sujeito do enunciado) a uma matriz
transcendental (“Cogito/sujeito empírito”), que permite repartir de maneira equânime as
formas do visível e do enunciável pela síntese (ou a discordância) de uma consciência-
câmera.28 O modelo transcendental gasta o resíduo de transcendência que compreende
a relação dos sujeitos no vocabulário de Pasolini:
Pasolini decide chamar mimese esta operação de dois sujeitos de enunciação,
ou de duas línguas, com o discurso indireto livre. Talvez o termo não seja
afortunado, já que não se trata de uma imitação, mas de uma correlação entre
dois processos assimétricos funcionando juntos na língua. São como vasos
comunicantes. Apesar disso, Pasolini insistia na palavra “mimese” para
sublinhar o caráter sagrado da operação.29

26
ROCHA, Glauber. O século do cinema, op. cit. p. 268.
27
“Rossellini se transformaria no autêntico Papa do Novo Mundo Cinematográfico... é um místico antes
do que neorrealista... é a voz que se projeta contra a destruição do homem pelo homem... a sua câmera às
vezes gira como louca, quando o homem se encontra perdido... é uma paisagem mais além do real, sem
transigir com o real. Assim é possível definir o estilo de Rossellini como Mise-en-scène da Mística, desde
que o seu realismo é um “Por quê?”, lúcida e livre interrogação poética... Jean-Luc Godard é “Filho e
Espírito Santo do Pai”, enquanto Pasolini se faz Apóstolo Profano”, op. cit. p. 209 e ss.
28
“Trata-se do Cogito: um sujeito empírico não pode nascer no mundo sem se refletir ao mesmo tempo
num sujeito transcendental que o pensa, e no qual ele se pensa. E o Cogito da arte: não há sujeito que atue
sem outro que o veja atuar, e que o capte como atuado, tomando para si a liberdade de que o desapossa.
Daqui existem dois eus diferentes, um dos que, consciente de sua liberdade, se erige em espectador
independente de uma cena que o outro representaria em forma maquinal. Mas este desdobramento não
chega nunca ao fim. É melhor do que isso uma oscilação da pessoa entre dois pontos de vista sobre si
própria, um ir e vir do espírito, um estar-com.” DELEUZE, Gilles. La imagem-movimiento. Buenos
Aires: Paidós, 2005. p. 112.
29
Op. cit.

85
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

A crítica da imitatio é injusta. A expressão “mimese visiva” não se define


somente pela oposição entre a “imitação naturalista” e a realidade, mas sim por uma
“imitação subjetiva” da língua audiovisual do personagem, pela simples razão que não
existe um equivalente visivo das “línguas especiais, os jargões, as diferenças sociais”
ou, melhor ainda, se existem “estão totalmente fora da possibilidade de catalogação e
uso” por parte do diretor.30 Nisso consiste a condição poética da operação,
inconfundível com o procedimento da prosa contemporânea31. As “línguas
diferenciadas” do narrador e do personagem, compostas num discurso unificado sobre o
mundo narrado, não oferecem um modelo de diferenciação transponível às visadas do
autor e do personagem. A diferença, segundo Pasolini, se estabelece no plano dessa
mesma realidade: “A visada de um camponês... abarca outro tipo de realidade, do que a
visada de um burguês culto a essa mesma realidade: os dois veem em concreto ‘séries
diversas’ de coisas, mas não apenas, também cada coisa em si própria resulta diversa
nas duas ‘visadas’”32
Pasolini não confunde o “enquadramento obsessivo” de Antonioni com uma
“fixação obsessiva” de seu personagem sobre o objeto enquadrado, ao contrário, destaca
a tendência da câmera a abandonar os seus personagens para enquadrar espaços vazios,
33
fora da diegese. Trata-se de um processo assimétrico, dois atos de subjetivação
correlativos, no sentido de Deleuze, em nenhum caso uma imitação. Por isso, a
“mimese” se caracteriza como uma “substituição” que o autor opera sobre a visada do
personagem “mais aquém do limite da patologia: simplesmente o estado-meio de um
34
novo tipo antropológico” O cinema de poesia é uma criação de realidade, um
“momento mais real” alcançado pela visada do cineasta, que antecipa um novo tipo
antropológico: “libera das possibilidades expressivas compreendidas pela tradicional
convenção narrativa... até voltar a encontrar nos meios técnicos do cinema a originária

30
“como na literatura burguesa, onde “o indireto livre” é um pretexto: o autor se constrói um
personagem... para expressar a sua própria e particular interpretação do mundo”, PASOLINI, op. cit. p.
245 e ss.
31
“Portanto, se o cineasta se identifica com o personagem, e através dele narra os fatos ou representa o
mundo, não pode valer-se desse formidável instrumento diferenciador natural que é a língua. Sua
operação não pode ser linguística, senão estilística”, PASOLINI, loc. cit.
32
Ibid. p. 248.
33
Conforme o nosso texto “Deleuze lector de Pasolini. Acerca del estilo indireto livre en el cine”, na
revista Imagofagia, n.º 9, 2014. www.asaeca.org/imagofagia.
34
PASOLINI, op. cit. p. 254.
Nicolás Fernández Muriano

qualidade onírica, bárbara, irregular, agressiva, visionária.” 35 A crítica de Rocha está no


outro lado (e alcançaria a Deleuze), “mais aquém”, por assim dizer, da compreensão
convencional da forma narrativa, – existe uma condição a priori que a exige enquanto
movimento de autocompreensão de si próprio:
Se o filme, por ser nacional, não é americano, ele decepciona. O espectador
condicionado impõe ao filme nacional uma ditadura artística a priori: não
aceita a imagem do Brasil que veem os cineastas brasileiros, porque ela não
corresponde a um mundo tecnicamente desenvolvido e moralmente ideal. 36

O texto de 1968 identifica a colonização da imagem nacional na estrutura


reflexiva da subjetividade, que Glauber descreve como uma identificação entre o ponto
de vista colonizado e a matriz perceptiva do colonizador. De maneira que é possível
catalogar as “matrizes óticas” do colonizador, não tanto como uma semiologia da
realidade, senão como história do cinema que deixa aberta uma brecha genealógica para
o estabelecimento de uma nova perspectiva “Tricontinental”.37 O objetivo polêmico da
Estética da fome, desde a primeira linha, não era outro senão desautorizar o modelo
reflexivo da crítica europeia: “nossa originalidade é nossa fome, e nossa maior miséria é
que esta fome, sendo sentida, não pode ser compreendida.”38 A condição do autor não é
menos convencional nem compreensiva que uma narração, porque está constituída
sobre a mesma tradição, “herdeira da razão revolucionária burguesa europeia”, que tem
a sua melhor expressão na imagem de povo como sujeito político: “o povo é o mito da
burguesia. A razão do povo se converte na razão da burguesia sobre o povo”, dirá com
toda a precisão em Estética do sonho (1971).39 A crítica, nesta altura já radicalizada, do
ensaio sobre o cinema de poesia (“é um erro, e inclusive repercute na obra de
Pasolini”), somente se entende nestes termos: não se pode restituir o velho pelo novo,
nem muito menos substituir em bloco os meios expressivos do autor moderno pela
potência visionária da tribo bárbara, sem confinar as suas possibilidades expressivas na
forma da temporalidade do sujeito europeu moderno, – ainda que seja para acentuar a
incompreensão correlativa entre as visadas, no sentido de Pasolini (“os dois veem, em

35
Ibid. p. 249.
36
Revolução do cinema novo, p. 128.
37
“O cinema do Terceiro Mundo não deve ter medo de ser primitivo. Será naif se insiste em imitar a
cultura dominadora. Também será naif se fizer-se patrioteiro. Deve ser antropofágico, fazer de maneira
que o povo colonizado pela estética comercial (Hollywood), pela estética populista/demagógica
(Moscou), pela estética burguesa/artística (Europa) possa ver e compreender a estética revolucionária
popular, que é o único objetivo a justificar a criação tricontinental. Mas, também, é necessário criar essa
estética.”, op.cit., p. 237.
38
Op. cit., p. 65.
39
Ibid, p. 250.

87
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

concreto, ‘séries diversas’ de coisas”). Por isso, a retrospectiva sobre O Evangelho na


década de 1970 introduz um hiato que limita a identidade com Pasolini a 1964:
“[naquela época] o filme de Pasolini me revelava identidades tribais comuns, bárbaras...
Mas eu já estava pensando em Terra em transe, no mar que sucede ao sertão, ondas
mais além da Nouvelle Vague”.40 O impacto de O Evangelho é descrito como “porra
louca e genial, mescla de Godard e Che Guevara”. Durante a filmagem de Deus e o
diabo, Rocha identifica em Godard a condição de partida do cinema novo: “é necessário
dar um tiro no sol: o gesto de Belmondo no início de Acossado define, e muito bem, a
nova fase do cinema.”41
Godard tinha rastreado o momento genético da “consciência de um autor” no
umbral estilístico do filme: “um enquadramento é uma decisão moral”, dizia Glauber,
ao mesmo tempo que compartilha esta concepção, condiciona a sua projeção aos países
subdesenvolvidos: “Tricontinental, a decisão política de um cineasta nasce no momento
em que a luz fere a película. E isto é assim porque ele escolhe a luz: câmera sobre o
terceiro mundo, aberto, terra ocupada. Na rua, no deserto, nas florestas ou nas cidades, a
escolha é imposta.”42
A tese de “Tricontinental” (Cahiers, 1967) é paradoxal. A primeira política de
um autor é a decisão sobre a luz na composição do quadro. Mas a eleição do cineasta é
imposta nos enquadramentos do terceiro mundo. Não tanto porque a “ocupação da
terra” condicione a “abertura da câmara” à liberação territorial, como ocorreu na Itália,
mas sim por uma condição genética do cineasta latino-americano, independentemente
da censura ou do compromisso eventual que limitem desde fora a sua margem de
liberdade: o que se impõe é a própria decisão, que nasce no ato de enquadrar, não antes,
nem como uma limitação, senão de maneira positiva, imanente ao processo de criação.
Noutras palavras, não é por uma condição negativa que se define a barbárie do cinema
do terceiro mundo, nem é por uma consciência do enquadramento que se ampliarão as
possibilidades expressivas de um novo tipo antropológico, mas sim porque a escolha do
cineasta latino é investida de uma força maior do que a sua consciência autoral. Há
outras forças concorrentes no enquadramento do terceiro mundo, o que não significa a
exclusão de toda moralidade não seja equiparável com um defeito formativo: “existe o
plano americano, o italiano, o francês, e também o da América Latina: o que é feito

40
ROCHA, Glauber. O século do cinema, p. 256.
41
Revisão crítica..., op. cit., p. 36.
42
Revolução do cinema novo, op. cit. p. 104.
Nicolás Fernández Muriano

como um cu”, como costumava dizer. Rocha, desde antes de partir à Europa, milita por
uma definição positiva dos enquadramentos bárbaros, tomando como uma expressão de
forças que não se possam estabilizar numa sequência contínua, que projete no plano da
consciência tomada pelo enquadramento. É um dos mandamentos de Nosso Senhor:
“quando tudo está iluminado e o enquadramento composto, Luis se aproxima, dá um
empurrão na câmera e manda rodar”.43 A extensão dos planos está condicionada pela
irrupção de forças que exigem a repetição do momento genético, quer dizer, a
disposição instantânea da força que impõe ou sustenta um ponto de vista. A “operação
sagrada” da América Latina não se pode consolidar sobre nenhuma perspectiva moral
que justifique a duração correlativa dos dois sujeitos num plano indireto livre:
Que linguagem original usar, uma vez rechaçada a linguagem da imitação?
(...) O cinema, inserido no processo cultural, deverá ser em última instância a
linguagem de uma “civilização”. Mas qual civilização? Terra em transe, o
Brasil é um país indianista / ufanista, romântico / abolicionista, simbólico /
naturalista, realista / parnasiano, republicano / positivista, anarco /
antropofágico, nacional / popular / reformista, concretista / subdesenvolvido,
revolucionário / conformista, tropical / estruturalista etc etc. A informação
das oscilações fecundas de nossa cultura de superestrutura (porque falamos
de uma arte produzida por elites, muito diferente da “arte popular produzida
pelo povo”), tampouco basta para saber quem somos. Quem somos? Qual
cinema é o nosso?44

A moral de um novo Cristo.

“Pier Paolo Pasolini, em 1964, filmou O Evangelho segundo Mateus. Versão


moderna da vida de Cristo, análise histórica do fenômeno judaico e tentativa de nova
moral revolucionária, o filme de Pasolini foi atacado por setores da crítica francesa.”45
O comentário de Glauber ao filme parte de uma distribuição de pontos de vista e do
plano dos conteúdos, segundo uma disposição temporal: versão moderna (presente),
análise histórica (passado), tentativa de uma nova moral (porvir). O caráter de tentativa
caracteriza o novo, como ponto de vista sobre um objeto possível. A análise histórica,
ao contrário, pressupõe seu objeto como uma realidade independente de qualquer
análise. A modernidade do filme, em primeiro lugar, se opõe aos clássicos de
Hollywood: “não se interessa pela continuação, as técnicas de interpretação, o realismo
dos cenários etc”. Em termos positivos, consiste na composição de duas perspectivas
irredutíveis, que desmontam a continuidade objetiva e a narrativa do plano de
conteúdos: a análise histórica do fenômeno e a “mimese visiva”, entre a tentativa do
43
O século do cinema..., op. cit., p. 174.
44
Revolução do cinema novo, op. cit., p. 131.
45
O século do cinema, op. cit., p. 188.

89
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

autor e a perspectiva revolucionária de seu personagem, duende ou Cristo. A análise


toma distância dos fatos que narra, da própria letra do evangelho. Por exemplo, Pasolini
filma a página do Texto fora da diegese dramática, entre atos, por assim dizer, como um
objeto que não é interpretado por um personagem nem posto em perspectiva pelo
narrador, procedimento característico que está associado com outros, como
interpretação autoral não dramatizada. Por exemplo, se o Cristo cumpre ao pé da letra o
evangelho, é como se não o concernesse em absoluto, pelo menos, segundo o pathos
codificado pelo Actor studio.46 A paixão é desapaixonada, se poderá dizer,
correlativamente, o primeiro plano não codifica psicologicamente a expressão do
personagem, com frequência o autor sói dessincronizar a faixa de som da imagem etc.
Diz o ensaio:
Seu Cristo – que predica a intolerância antes do que a piedade, que predica a
violência antes que a complacência, que se volta (revolta) contra o Pai
quando, na Cruz, se vê desamparado – é o porta-voz de uma nova moral: a
moral da fome subdesenvolvida consciente. O Cristo de Pasolini é um
estigma contra a alienação: alienação é a piedade, a complacência, a
hipocrisia, o tabu sexual, o servilismo, todos os comportamentos que
caracterizam o homem subdesenvolvido, ou melhor, ao homem colonizado.47

A “tentativa de moral”, apesar disso, não se limita a inverter de fato a moral do


homem colonizado. A “operação sagrada” depende da neutralização dramática dos
pressupostos morais e estéticos da mise-en-scène do Texto. O mesmo desamparo de
Cristo na cruz não muda de signo porque o autor expresse outra atitude, insubmissa, no
lugar da resignação do gesto: o rosto neutralizado se converte em superfície refletiva
das paixões complementares, desde o ponto de vista de seus possíveis intérpretes. É o
contrário de um suspense, a câmera não manipula o espectador, o deixa livre de
manipulação que venha a constituir a priori a condição moral do espectador
cinematográfico: “o herói positivo, o esquematismo sociológico”. Nesse sentido, “é um
estigma contra a alienação”, contra a imagem que tira proveito de “todos os
comportamentos que caracterizam o homem colonizado”. Os ataques da crítica se
explicam menos pela violência contra as matrizes narrativas do que pela dificuldade, da
parte dos especialistas europeus, de assistir à imagem de um povo em formação e a

46
Uma das características principais do cinema moderno, segundo Deleuze: “Precisamente porque o que
sucede a eles não lhes pertence, não lhes concerne mais do que pela metade, eles sabem descolar do
acontecimento a parte irredutível ao que acontece”, La imagem-tiempo. Buenos Aires: Paidós, 2005. p.
35.
47
O século do cinema, op. cit.
Nicolás Fernández Muriano

mise-en-scène de novas forças que não estão encarnadas expressiva ou historicamente, –


nem sequer por oposição entre classes, em tensão dramática resolutiva:
Pasolini respondeu e deu a chave do problema: “a sordidez da crítica francesa
recusa a admitir a existência de um subproletariado em evolução nos países
subdesenvolvidos, recusa a compreender os valores dessas novas forças. A
cultura francesa caiu num racionalismo que Sartre já denunciara como
aristocrático e decadente.” 48

O primeiro parágrafo do ensaio introduz como princípio da orientação


genealógica do novo cinema a desarticulação das forças expressivas, a respeito do
campo dramático da tradicional convenção narrativa preparada por Buñuel.49 Esta
disposição inorgânica das forças tem na violência dos enquadramentos narrativos não
apenas uma condição estilística de partida, como também um suplemento de verdade:
O despertar do terceiro mundo faz do cinema a sua língua viva: as brutais
consequências da fome mascaram as imagens desse cinema, queiram ou não
os heraldos de um mundo digestivo e belo onde os homens são bonitos, fortes
e invencíveis, onde as rosas divisam a terra e as frases de efeito procuram
esconder o câncer que nasce nos lábios da miss ou a criminalidade que se
desenha na cabeça do diretor.50

A “verdade” desta moral de “novas forças” está marcada no nível da expressão


das imagens deste cinema como um espírito que é maior que a sua vontade de autor51.
A violência contra a fotogenia industrial não se reduz a uma forma limitativa, que
arrastaria a Buñuel, Pasolini e Rocha a reproduzir o mesmo gesto de negação contra
Hollywood, em vez disso, é o filo genealógico que conduz positivamente o Cristo
Anárquico ao Cristo Revolucionário:
O surrealismo de Buñuel é a pré-consciência do homem latino, é
revolucionário na medida em que pela imaginação libera o que a razão
proibiu. Esta liberação, contudo, não é uma fuga, mas sim uma arma que
castiga, como o Cristo de Pasolini, os símbolos da sociedade capitalista
subdesenvolvida.

O momento Buñuel é a pré-consciência da ideia. Isto não significa que a tomada


de consciência encerre a tentativa. O prefixo “pre” não deve ser pensado em termos
temporais, mas num sentido vagamente psicanalítico. Buñuel libera a imagem da

48
Op. cit.
49
“O sortilégio bloqueia as portas da igreja. Os padres paralisados, os fiéis misteriosamente detidos. O
povo explode nas praças, a cavalaria dispara. Enquanto as massas lutam contra as forças fascistas, os
signos soam. Um bando de carneiros, mansos e servis, marcha na direção dos templos. Esta, a sequência
final de O anjo exterminador, que significa? Sugestão de que a igreja e o fascismo, principalmente nos
países latinos, andam sempre de mãos dadas? Saída que se abre para quem joga cartas com o sexo
(Viridiana), mostrando que a estrada mais consequente é a que leva às praças e não aos templos? O
anarquismo do velho espanhol estaria em crise? O homem livre de sua alienação (carneiros), precisa
disciplinar a liberdade e a violência para fins políticos?, op. cit., p. 185.
50
Op. cit.
51
Revolução do cinema novo, p. 237.

91
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

repressão psicológica e moral do racionalismo, que expulsa fora de campo o


“enquadramento irracional” de forças psíquicas. Esta liberação não é uma fuga pela
imaginação, mas é sim violenta no nível dos símbolos que expressam, reforçam e talvez
inventem as identidades morais e estéticas do ocidente. A demolição dos valores
vigentes, primeiro mandamento da moral anárquica, não está orientada na direção a um
futuro.52 Um rasgo típico de Buñuel consiste na “repetição” do tempo, que arrasta a
representação realista até o desmoronamento dos costumes e da própria forma narrativa,
mediante uma desestabilização das forças expressivas que deslocam o gesto repetido,
por exemplo, a saudação inicial em O anjo exterminador (1962) ou a repetição da
última cena no banquete orgiástico de Viridiana (1961): “Buñuel, no absurdo quadro da
realidade do Terceiro Mundo, é a consciência posssível (...) O surrealismo em sua obra
é a linguagem por excelência da fome oprimida.” O quadro da realidade absurda define
a composição sagrada de Buñuel com “a linguagem do oprimido” no êxtase das forças:
“o herói de Buñuel (...) é, em última redução, um fanático latino organicamente
esfomeado: o comportamento de um esfomeado é tão absurdo que o seu registro real
cria o neossurrealismo; a sua moral, enquanto subproletariado, é mais metafísica do que
política.”53 O “neossurrealismo” não é específico das elites culturais como na Europa,
na realidade, ele define uma “mimese viva” provisória entre o mundo visto pelo cineasta
e o mundo que seus personagens deliram. É, por isso, “a consciência possível”. Aquela
que pode ter um tempo presente, como moral provisória: “frente à opressão, ao
policialesco, ao obscurantismo e à hipocrisia istitucionalizada, Buñuel representa a
moral libertária, a abertura de caminho, o constante processo de rebeldia clarificadora”.
O irracional entendido como “consciência possível” é uma força clarificadora da
realidade, um suplemento de verdade, o que vincula Buñuel a Pasolini, através da crítica
do método histórico introduzido pelo Evangelho:
Em sua última entrevista à imprensa, em março de 1965, Georg Lukács
declarou que é necessário revisar a programática política em relação ao
mundo subdesenvolvido. A alienação no mundo burguês, que alguns teóricos
europeus – inclusive ele próprio – impuseram, não tem validade em absoluto
para o homem subdesenvolvido. Neste homem, afirma por sua vez Pasolini,
as forças do irracional geraram Cristo. Aqui, a Virgem Maria é o irracional, é

52
“Frente a sua multidão de esfomeados (como o subproletariado que seguia a Cristo, colonizado pelo
Império Romano), Buñuel preparou, na história do pensamento cinematográfico moderno, o caminho para
o novo Cristo de Pasolini. Buñuel pode ser considerado como anarquista de esquerda, é o demolidor dos
valores vigentes do mundo ocidental cristão (principalmente do submundo latino): não propõe uma nova
ordem, mas não aceita a ordem vigente.” O século do cinema, op. cit.
53
Op. cit., p. 189.
Nicolás Fernández Muriano

o suprarreal, é a imagem de um povo sofrido, cuja alienação provoca, num


parto a fórceps, antes ou depois, o Cristo redentor. 54

A tese que sustenta que a colocação da realidade na imagem surrealista falseia a


imagem do mundo só é válida para o velho continente: “a crise da velha Europa
Ocidental faz do cinema um espelho de sua alienação.” Mas, no “mundo
subdesenvolvido”, o espelho inverte a sua direção e o seu sentido. Por um lado, é a
“programática política” do realismo socialista que falseia “a linguagem por excelência”
do povo, refletindo-se a si própria, segundo o seu próprio esquematismo (“o sujeito
revolucionário europeu”), enquanto que o irracional da composição provoca, produz,
pela violência surreal ou anárquica, antes ou depois, o Redentor ou uma nova
subjetividade. A crítica do “racionalismo” antecipa o ponto central da discussão com a
perspectiva do cinema europeu, que alcança a sua formulação mais consistente na
Estética do sonho (1971):
A razão dominadora classifica o misticismo de irracionalista e o reprime a
bala. Para ela, tudo o que é irracional deve ser destruído, seja a mística
religiosa, seja a mística política. A revolução, como possessão do homem que
lança a sua vida na imprevisibilidade da prática histórica, é a cabala do
encontro com as forças irracionais das massas pobres. 55

Encontramos neste fragmento alguns dos tópicos do que temos considerado. O


“novo”, a “revolução”, é um estado de possessão, se orienta na direção de uma “ideia”
que não tem outra consistência que a de um objeto de crença. Não prossegue na direção
da história, nem segundo a ordem racional da consciência: é uma tentativa, lançada em
direção à ideia que ela própria afirma. A tentativa não apenas caracteriza uma
disposição espiritual, como também a conduz a sua maior altura: da mística religiosa à
mística política. O “novo” implica uma relação problemática com a história, se faz na
imprevisibilidade, de modo que a sua possibilidade de ser não está articulada com os
antecedentes e consequentes da narrativa histórica: é uma cabala, um encontro possível
com as forças irracionais. Por isso, não pode ser objetivada na análise histórica como
uma “imagem do povo”.56 A Estética da fome (1965), em seu momento, definia como a
única contraparte moral da miséria o “raquitismo filosófico” da ideia que não pode
compreender a sua própria realidade de maneira reflexiva, nem mesmo postulando uma
tomada de consciência da fome a respeito de sua própria realidade: “nossa originalidade

54
Op. cit.
55
Revolução do cinema novo, op. cit. p. 250.
56
Em caerta do mesmo ano, diz: “as velhas interpretações econômicas, sociológicas, antropológicas,
pouco valem frente ao desafio tecnológico e místico que o país nos impõe.” Cartas ao mundo, op. cit., p.
411.

93
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

é nossa fome e nossa maior miséria é que esta fome que pode ser sentida não pode ser
compreendida”. Este raquitismo filosófico, sem embargo, tem o seu momento positivo:
“a fome não é somente uma realidade alarmante, mas sim o nervo positivo da América
Latina”. O que pode ser sentido é uma possibilidade de expressão. A violência de
Buñuel (que desconfigura as forças articuladas narrativamente), que intensifica Pasolini
(neutralizando a codificação dramática do que pode ser sentido) e Rocha (sobre-
expondo a película à luz mais além dos umbrais da fotogenia) desloca a continuidade
orgânica de seu objeto, assim desativando os signos da pobreza que costuram o nervo
expressivo à realidade: “nosso possível equilíbrio não resulta de um corpo orgânico,
mas de um esforço titântico e autodevastador no sentido de superar a nossa
impotência... aqui reside a trágica originalidade do cinema novo”.57 A Estética do sonho
(1971) diagrama a curva genealógica que conduz desde a neutralização dramática do
“nervo expressivo” até a tentativa positiva de uma moral revolucionária, que supera a
impotência filosófica, literalmente, como outra cabeça, que funciona diferente e a partir
de outros recursos em relação à “consciência possível”:
De modo que este pobre se converte em um animal de duas cabeças. Uma é
fatalista e submissa, a razão pelo que o explora como escravo. A outra é
naturalmente mística. A revolução como possessão do homem que lança a
sua vida rumo a uma ideia é o mais alto grau de misticismo.58

A mise-en-scène do pobre como um “animal de duas cabeças” (ou de duas


morais) condiciona a “mimese visiva” do cinema da América Latina, já que desmonta a
operação sagrada em duas perspectivas distintas sobre o seu objeto, composto
inorganicamente pela operação do Patriarca espanhol e pela tentativa do Apóstolo
Profano. A segunda operação somente é possível por meio e junto da primeira, que
constitui as condições de uma nova sensibilidade, porque amplia os efeitos sensoriais do
cinema, mais além do enquadramento que naturaliza a sensibilidade do colonizador,
como um marco compreensivo do que pode ser sentido no terceiro mundo: “a arte
revolucionária deve ser magia capaz de enfeitiçar o homem a tal ponto que ele não
suporte mais viver nesta realidade absurda.”59 A violência irracional, neossurrealista, do
Cristo anarquista, deste modo, torna possível uma tentativa revolucionária como a de
Pasolini: “O Cristo de Pasolini é o porta-voz de uma nova moral, que é a moral do
homem subdesenvolvido consciente”, porque esta nova moralidade não pode ser
produzida por meio da consciência (fatalista e submissa) do subdesenvolvido:
57
Revolução do cinema novo, op. cit., p. 65.
58
Ibid., p. 250.
59
Ibid., p. 251.
Nicolás Fernández Muriano

“passaram mil anos antes que o povo possa ouvir algum discurso”, disse Paulo Martins
no carnaval político Terra em transe (1966). Mas nos países subdesenvolvidos, “afirma
Pasolini”, o Novo Cristo é criado, antes ou depois, em um parto a fórceps, por uma
“cabeça mística”. A operação mística é lançada em altura mediante uma ruptura da
continuidade dramática ou “horizontal”, no sentido de Eisenstein. Mas o sonho, desde a
sua altura, não se pode limitar a elaborar reflexamente as penúrias da vigília, como
ensina Buñuel em Os esquecidos (1950), quando os seus miseráveis sonham de noite a
carne que não comem de dia e o incesto que não se atrevem sequer a desejar. A moral
anarquista decodifica a cabeça “fatalista e submissa” do pobre que pensa a pobreza
abaixo do que pode sentir. A moral revolucionária elabora o plano de conteúdos da
“cabeça mística”, que sustenta a consciência estilística do autor (“porta-voz”) sem
encarná-la dramaticamente nos personagens, a não ser pelo buraco expressivo que não
traduz nenhuma afeição programática ou psicologicamente justificada (como as risadas
dos pobres típicas de seus filmes, nunca motivadas psicológica ou dramaticamente: de
que riem os esquecidos de Pasolini?). Os dois filmes de Rocha contemporâneos à
Estética do sonho são exemplares: Cabeças cortadas (1970) desmembra a violência
absurda da realidade (que filma exteriores) do plano discursivo delirante (que filma
interiores), como uma cabeça é separada do corpo, vista por dentro, enclausurada numa
interioridade sem nervo, como um fluxo ideativo separado do espaço puramente
intensivo das forças disponíveis. O leão de sete cabeças (1971) introduz uma nova
disposição que transborda da tentativa pasoliniana, mediante um princípio de
metamorfose que põe em “transe” o porta-voz das tentativas. Por isso, cada palavra do
título se diz num idioma europeu distinto, lido por uma cabeça distinta de um Novo
Evangelho:
É toda uma reversão da fé cristã que Glauber levará a sua culminação num
filme como A idade da terra, com a multiplicação de Cristo, liberado do
cristianismo (o Cristo índio, o Cristo negro, o Cristo militar e o guerrilheiro),
um Cristo investido de forças desestabilizadoras.60

O Cristo Édipo

A década de 70 contrasta de maneira irreversível as condições de produção dos


italianos frente à diáspora de cineastas subdesenvolvidos do porvir. Rocha cada vez

60
Cartas ao mundo, p. 31.

95
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

escreve mais e filma menos.61 O ano de 1969 marcou o ápice de seu reconhecimento
internacional. O dragão da maldade contra o santo guerreiro (1969) obteve o prêmio
de melhor direção no festival de Cannes. Glauber ironiza. Tive que fazer um western de
estruturas paralelas para ser distinguido na Europa enquanto um autor. O Maio Francês
tinha feito de Terra em transe uma espécie de ícone audiovisual, completando La
chinoise (Godard, 1967). Depois de Cabeças cortadas (1970) e O leão de sete cabeças
(1971), apesar disso, Glaub não consegue financiar nenhum outro projeto até 1975,
quando realiza Claro, em Roma, praticamente sem outros recursos além de uma câmera
na mão e o amor de Juliet Berto, que ele rouba da nouvelle vague, – como Rossellini
havia feito com a star Ingrid Bergman. É uma mimese visiva delirante e amorosa, sem
fio condutor técnico nem literário, a intervir performaticamente na arquitetura política
do velho mundo. A revista Nouvel Observateur critica o filme desapiedadamente.
Existem duas cartas do mesmo ano que vinculam o “ataque” da imprensa com Pasolini.
A primeira é remetida a seu crítico. Aqui o signo “Pasolini” é positivo:
Como pode você, tendo eu sido liberado, falar em narcisismo confuso e,
sobretudo, insuportável. Siclier, Le Monde, também: “...o desprezo do autor
pela língua burguesa, filho de Marx e Maldoror etc... insuportável”. Para
você eu não sou um filme perpetrado em Roma, para Siclier um imprecador –
como Pasolini e os condenados da terra.62

A identidade tribal subsiste contra a crítica dos franceses. Pasolini está do


mesmo lado de Frantz Fanon. Mas a tribo terceiromundista avança sobre o centro. O
centro reage:
A periferia avança para o centro e Godard político (Sadoul) é um filho do
cinema novo? Você entende italiano? Inglês? Não entendeu Cabeças
cortadas quando Franco ainda estava vivo. Frantz Fanon, tem aqui a estética
colonialista: Rocha para a crítica deve se manter confinado na tribo
terceiromundista. Não aqui. E por que proibir o filme? Você defende os
interesses de quem? Meu filme será lançado, se chama Claro (Luz...) que
desnaturaliza a mitologia... É preciso rever esse filme insuportável legendado
para não cometer o crime da censura em nome do revisionismo acadêmico
anticomunista profissional... Em Claro têm católicos e comunistas em Roma.
Tropicalismo mais neorrealismo mais nouvelle vague = Claro. O cinema
novo, segundo ato, a periferia avança ao centro.

O centro é definido em termos geopolíticos e genealógicos. O cinema novo


chega a Roma, onde tem um fio político com Godard e a protagonista de 2 ou 3 choses
que jê sais d´elle (1967). A periferia transborda em resistência cultural à crítica
europeia, amarra as suas línguas, pensa mais rápido, opera mimeticamente através de

61
“A Itália é a maior indústria cinematográfica da Europa e concorrente de Holywood porque dispõe dos
melhores cineastas do mundo”, O século do cinema, p. 242.
62
Cartas ao mundo, op.cit. p. 546.
Nicolás Fernández Muriano

suas atrizes (Juliet Berto) e faz falar as suas novas cabeças (Carmelo Bene). Clarifica os
monumentos da mitologia política europeia, católica e burguesa, camada por camada,
operação complementar a que realiza Idade da Terra (1981) sobre a América Latina.
Isto define o segundo ato do “cinema novo” e é a razão do “profundo reacionarismo” da
crítica. 63
Pensemos na segunda carta, remetida a um colega brasileiro. Aqui o signo
Pasolini é negativo:
O último filme de PASO é o processo sobre um intelectual burguês
revolucionário que passou a sua vida explorando o cu do subproletariado e
acabou vítima de sua própria culpa, um carneiro morto. A crítica francesa
recebeu mal Claro no festival de Paris: disseram que o meu “desprezo pela
linguagem burguesa me conduzia para além do suportável”... e ainda me
chamaram, de sacanagem, de filho de Marx com Lautréamont (...) PS =
continuo pobre! 1975, novembro.64

A pobreza é uma prova de honestidade socrática aplicada sobre a morte de


Pasolini. Rocha vincula o crime do italino com a consumação de um último filme, o
momento mais real de sua obra, o nervo expressivo de Pasolini: “inclusive se foi um
atentado fascista, eles aproveitaram a cenografia pasoliniana para matá-lo segundo os
seus próprios ritos.” De maneira correlativa, o último filme de Pasolini, Saló ou os 120
dias de Sodoma (1975), produz um tipo de efeito crítico retrospectivo que despe a
“tentativa” de seu autor: Cristo se compõe com Édipo. O nome de Pasolini se decompõe
no nome do filme e do pathos que investe o seu amor cristão: “Paso Sado Maso Salo”.65
Antes da estreia de Saló, entre 74 e 75, Glauber periodiza a filmografia de Pasolini,
numa rápida anotação de seus títulos, ordenados por data e acompanhados de uma ou
duas palavras (“Accattone é o último grito do neorrealismo”), que chega até Il fiore
delle Mille e una notte (1974). A descrição muda de tom drasticamente: “ritual
estetizado pela frustração sexual”. A outra diferença notável está na extensão do
comentário. Rocha reconstrói a contrapelo a periodização da virada moral em Pasolini:
“Neste filme, o Pasolini revolucionário do cinema se converte em costureiro da montagem,

63
“Os críticos de Paris que proclamaram Rocha gênio irão massacrá-lo. Muito típico de profundo
reacionarismo. Siclier denunciou Imprecación e você Perpetración. Filme perpetrado em Roma?
Perpetrado? Juiz, polícia, tira, moralista etc. Não dependo mais de seu diário para assegurar o sucesso de
meus filmes. Claro é o meu primeiro filme. O primeiro filme da nouvelle vague... você não sabe de
nada... o cinema novo saiu do subsolo... bem... falaremos amanhã. op. cit.
64
Op. cit. p. 539.
65
Assim intitulava-se um texto que não chega a publicar em vida, nem está fechado: “entre a cidade e o
campo, o Édipo cristão... professor, escritor, kyneazta, um intelectual profyzyonale, mas o escândalo não
é ‘a arte de Pazolyny’, o bonito é a imoralidade da vyrtude kriztyana pela sexualidade absoluta, o
sofrimento e o prazer, a extasorgiástya (cruz do Pai), falo sagrado de um pai que mata... o encurramento,
(inkukazione) de Kryzto por Deus, de Édipo por Layo, de Pier Paolo por alguns ragazzi di vita...
Krystedipo deve ser punido”, O Século do cinema, op. cit. p. 323.

97
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

maquiador de heróis decadentes, fotógrafo de turismo, um sonoplasta raso e poeta católico e de


tendência espanholizante.”66
O mínimo que se pode dizer é que Pasolini largou a cruz de Nosso Senhor
Buñuel, abandonando o caminho do amadorismo latino, nos dois sentidos da palavra:
profissionaliação da colocação em cena e perversão do amor, perpassado por forças
sexuais frustradas, dissimuladas pelo enquadramento vazio e pela costura do raccord
narrativo. Esta operação de “a arte de Pazolyny” se projeta através da visada dos
personagens, como um espelho invertido de sua própria alienação: “é a exposição de
fantasmas cristãos que desfilam no terceiro mundo com o encanto da flexibilidade
sexual dos primitivos.” A sensibilidade ampliada da sexualidade primitiva reflete os
fantasmas morais do catolicismo e, vice-versa, a barbárie moral dos personagens
exprime o erotismo frustrado do autor. A perversão de Pasolini se condensa num ritual
de primeiros planos expressivo-expressionistas: “Pasolini coloniza o sexo do pobre, o
subproletariado é uma máquina indefesa frente a sua morbidez”. Deleuze define o
“primeiro plano” como um procedimento de rostificação de qualquer superfície
refletora: “o relógio me olha”, diz. Nisto, segue-o Eisenstein, que pensava o close-up de
Griffith como a expressão da moral puritana que anima os detalhes das coisas inertes, a
partir de Dickens: “foi num guisado que tudo começou”.67 Rocha é einsensteiniano
quando escreve “Pazolyny”, “Kryztedipo”, “Eztetyka”, com as letras do alfabeto da
teoria do cinema, e também quando define o enquadramento obsessivo de Pasolini,
codificado pelo primeiro plano de Griffith, como uma substituição em bloco da visada
primitiva sobre a sexualidade, por sua própria fixação visiva no sexo dos primitivos:
subjetivação fetichista do sexo dos personagens e sexualização simultânea do olho da
câmara (“o sexo me olha”). A adaptação de As mil e uma noites conclui, perverte a
literatura árabe por meio de um ritual codificado narrativa e dramaticamente para
inverter a disposição das forças expressivas do povo:
A literatura árabe nasce do povo e estruturou uma sociedade capaz de resistir
ao cristianismo imperialista. A magina nasce da fome, mas Pasolini se diverte
com peripécias sádicas... Pier Paolo vende poesia erótica popular. Pasolini
anuncia São Paulo.68

Este comércio sádico da imagem do povo é a expressão estética da moral de São


Paulo, o Cristo imperialista, ponto de inflexão do cristianismo em Pasolini, que nasce

66
O século do cinema, op. cit., p. 282.
67
A referência a El Grillo del hogar está em EISENSTEIN, Sergei. “Dickens, Griffith e o filme de hoje”,
Teoria e técnica cinematográficas. Madrid: Rialp, 2002.
68
O Século do cinema, op. cit., p. 282.
Nicolás Fernández Muriano

certa vez da piedade de Rossellini, o Cristo Neorrealista que morre financiado pela
Democracia Cristã e volta a nascer da Cruz de Buñuel, o Cristo do Terceiro Mundo
traído pelo Cristo Romano e que, em última instância, morrerá no espelho de Édipo,
como uma configuração ritual da frustração sexual mais inveterada do ocidente. Esta
conclusão se atinge nos textos posteriores a Saló. Mas como Saló, Il fiore... opera na
periodização de Glauber uma espécie de efeito clarificador retrospectivo: “O Evangelho
é a integração do artista ao Vaticano Comunista”. Pasolini ocupa o centro da moral do
velho mundo desde 1964. Mas Il fiore... é todavia uma última tentativa de mascarar, sob
um véu esteticista, a virada do poeta da revolução em direção à “inkukazione” edípica,
que articula sobre o plano da produção a frustração das forças anticapitalistas que se
dispõem industrialmente.69 Os efeitos ou pelo menos os ecos da industrialização do
cinema na Itália justificam histórica e geracionalmente a perversão pasoliniana:
Pasolini foi aquele que chamou o produto do milagre do Plano Marshal, na
Itália. Depois da geração de fome – os neorrealistas – o cinema italiano se
converteu numa indústria. O momento de Pasolini representa a passagem da
fome à gula e penso que o escândalo Pasolini era um “mais-valor”, um luxo
para essa Itália que queria ser desenvolvida desde o ponto de vista industrial
e moderno, desde o ponto de vista ideológico, mas que em realidade era uma
Itália desagregada, arcaica, selvagem, bárbara, anárquica. Contudo, a
selvageria, a barbárie, a anarquia pasoliniana eram dominadas pela disciplina
marxista, pelo misticismo católico, tornando-se uma barbárie maquiada.70

Da fome à gula, a geração do luxo, financiada por Hollywood, exprime o desvio


ou a perversão das forças que conduzem da fome ao sonho dos latinos. Pasolini mata o
seu pai histórico (Rossellini) e o seu pai genealógico (Buñuel), assim como Bertolucci é
“o assassino cinematográfico de Pasolini”. Mas, diferentemente de Bertolucci, que
assume sem resistências o imperativo do raccord narrativo (levando ao extremo a
unidade temporal de seus longa-metragens), o assassinato ritual antes de Saló conserva
em Pasolini, sob um verniz estetizante, um mais-valor irredutível à estética do
classicismo, o que equivale a dizer que Pasolini não consegue produzir um só plano
objetivo que estabeleça um corte preciso com a subjetividade de seus personagens.
Todos os seus planos são expressivo-expressionistas:
Não era uma prática sexual, mas sim uma religião, uma ideologia, um
mecanismo de fetiche, um misticismo. É o que se vê em seus filmes, essa
dialética entre Cristo e Édipo, o Cristo-Édipo. Isto podemos ver bem no
Evangelho segundo São Mateus, no momento da morte, Cristo diz: “Pai, por

69
“Ele rechaçava a sociedade capitalista, mas a aceitava no sentido em que se converteu num profissional
da indústria editorial e cinematográfica. Ele passou do estatuto de cineasta marginal (realizando filmes
que não davam dinheiro) a cineasta que fazia filmes abertamente comerciais, como a Trilogia”, op. cit., p.
283.
70
Op. cit. p. 282.

99
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

que me abandonaste? que é o momento mais forte do filme, ele é crucificado


no falo do pai (inexistente) e a mãe que esconde sempre a condição de
mulher (as mulheres estéreis ou histéricas, ou as mães possessivas que não
cedem o lugar à mulher). Esta fusão Cristo-Édipo o leva ao desespero, à
derrisão, à infelicidade permanente. 71

O efeito retrospectivo provocado por Il fiore e por Saló está muito bem
detalhado em “O Cristo-Édipo”. A neutralização dramática do plano dos conteúdos é
tomada a partir de agora como signo geral da “perversão” maquiada, um rodeio
perverso de ponto de vista, que nada tem que ver com a disposição revolucionária das
forças:
Ele fala sempre de sexo, mas não nos excitanmos com os seus filmes. Os
personagens são frios, teóricos, a violência é programada, o sexo é sempre
“dobrado” pelo cérebro (é por isso que seus filmes são sempre dobrados), e
ele vai sempre na direção da tragédia, do sacrifício, da autopunição edipiana
e cristã.72

A violência está controlada. O “mais-valor” não libera o nervo expressivo da


cabeça que pensa o enquadramento erótico das forças. Em consequência, a outra cabeça
de Pasolini, seu misticismo, não se logra constituir numa verdadeira expressão poética,
mas sim num intervalo fantasmático que dobra ou substitui em bloco o sexo pelo
cérebro. Por isso, o público não se excita com as suas imagens. A dobra de imagem e a
faixa de som são outras formas de maquiagem fetichista, igual a seus primeiros planos
etc. O “buraco” dramático que o “sonoplasta” deixa livre para escamotear a sua câmera-
edipiana ,debaixo da pele de um Cristo revolucionário que tem de ser punido: “o que me
choca em seu cinema é a ausência de poder, nunca é convincente, os seus personagens
são fracos, e penso que é por isso que ele não sincroniza os diálogos.” 73 Ausência de
poder / ausência de excitação; o “mais-valor” da defasagem estetizante é todo o
contrário de uma violência expressiva que seja capaz de desencadear as “novas forças”
do subproletariado:
Penso que o sadismo, que se converteu em um mito na cultura
contemporânea, sobretudo para a geração de Pasolini, é o renascimento do
espírito fascista nessa geração e é também um mais-valor sofisticado das
sociedades que não têm verdadeiramente problemas de sofrimento. Sade em
sua época, Sade na Bastilha é uma coisa, mas o neossadismo como fetiche,
como mito é o delírio da fascinação fascistizante.74

O precursor latino era, na realidade, um efeito perverso da sua época. Não


projeta uma esperança revolucionária, mas sim o renascimento do espírito fascista, que

71
Op. cit. p. 284.
72
Op. cit. p. 284.
73
Op. cit. p. 283.
74
Op. cit. p. 285.
Nicolás Fernández Muriano

está perfeitamente plasmado em Salò: “Pasolini, em Salò, aceita a sua verdadeira


personalidade.” Até então, Pasolini tinha adulterado a visada do subproletariado por
meio de sua própria visão edipiana de Cristo:
Em meu último filme, A Idade da Terra (1978-80), falo de Pasolini, digo que
desejava fazer um filme sobre o Cristo do Terceiro Mundo no momento da
morte de Pasolini. Pensei nisso porque queria fazer a verdadeira versão de
um Cristo. Terceiromundista que não teria nada que ver com o Cristo
pasoliniano. Pasolini procurava no terceiro mundo um alívio para a sua
perversão. Para mim, o conceito de subversão é muito diferente do conceito
de perversão, porque a perversão culturalmente constituída pelos intelectuais
sadianos não é a minha. Para mim, a subversão é verdadeiramente inverter
essa perversão por um fluxo amoroso que não exclua a homossexualidade.

O fluxo amoroso do cinema revolucionário foi uma maquiagem do erotismo


visivo de seu autor. Mas Glauber não postula uma espécie de ascetismo moral, como
um kantismo sem a sua dobra sádica. Sobre a perversão europeia, se limita a dizer: “esta
não é a minha”. Numa carta de 1973, identifica a sua no nome de seu personagem:
Sou um sádico de massas. O ritual do sangue me fascina... começo a entender
a significação do sadomasoquismo e a infinita ternura que existe no crime.
Eu sentia um verdadeiro prazer filmando Antonio das Mortes mascarando
beatos, projetava em meu inconsciente fascista em cima de miseráveis. 75

Glauber não somente é o único cineasta latino que colocou em cena o genocídio
latino-americano ao mesmo tempo em que ocorria, – e inclusive antes, quando somente
poderia ser exprimido por uma sensibilidade descarnada, sem figuras morais ou
políticas, quer dizer, sem justificações ou ilusões “liberacionistas”, – como também
elaborou positivamente nos transes de seus filmes das décadas de 1960 e 1970 as forças
fascistas da sensibilidade política de sua época, tocando o nervo expressivo mais
profundo de seus filmes: “este zero ideológico nos deixa limpos.”76 De maneira geral, a
expressão “o ritual de sangue me fascina” é a mais sincera expressão do amante do
cinema. O ritual erótico de Pasolini é um duplo complementar para o mesmo princípio
(“o ritual sexual me fascina”). Portanto, é um momento interno da reflexão do
“amateur”. Por outro lado, em 1973, o italiano reconhece antecipadamente a justeza da
crítica de Rocha:
Para um diretor como eu, que tivesse intuído que a cultura (em que se havia
formado) estava acabada, que já não representava nada, senão precisamente
(talvez) a realidade física, era consequência natural que a realidade física se
identificasse com a realidade física do mundo popular. O signo da realidade
corpórea é, com efeito, o corpo nu: é, de modo todavia mais sintético, o
sexo... se quiser continuar com filmes como O Decamerão eu já não poderia
fazê-los, porque já não encontraria na Itália – especialmente entre os jovens –
a realidade física (cujo estandarte é o sexo em sua glória) que é o conteúdo

75
Cartas ao mundo, op. cit., p. 29 e s.
76
Op. cit. p. 57.

101
O CRISTO TERCEIROMUNDISTA. ROCHA COM/CONTRA PASOLINI

desses filmes (...) me arrependo da influência liberalizadora que meus filmes


eventualmente podem haver tido nos costumes sexuais da sociedade italiana.
Contribuiu, na prática, a uma falsa liberalização, na realidade, querida pelo
novo poder reformador permissivo, que é o poder mais fascista que a história
recorda.77

A composição da cultura moribunda com o corpo desnudo do povo caracteriza a


operação sagrada de Pasolini, segundo a sua própria reflexão. É um composto do velho,
enquanto sujeito da expressão, e do novo, como personagem que dispõe num fluxo de
amor as novas forças do proletariado, desaparecida com a modernização na Itália, – o
que implica para o próprio Pasolini a impossibilidade de prosseguir na mesma operação:
“Tetis, me arrependo”, diz: a “operação sagrada” contribuiu com a liberalização querida
pelo poder mais fascista da história. Rocha leva essa conclusão ao limite:
O problema não é a homossexualidade ou a heterossexualidade, é a
fascinação pela herança fascista, os grandes balés contorcionistas de um
homem vindo do campo, de uma civilização arcaica, e que utiliza várias
linguagens (a literatura, o cinema) para sublimar, disfarçar enfim, ou com
Salò, alcançar a sua verdadeira personalidade que não era nem Cristo nem
Édipo, senão algo muito misterioso, o prazer fascista. 78

O neossadismo de Pasolini elabora de maneira fetichista a fascinação fascista


pelas grandes colocações em cena da estética das massas comum à Hollywood, Mosfilm
e a Goebbells e Leni Riefenstahl: o povo deve morrer. O problema não é Pasolini.
Pasolini é uma configuração possível do nervo positivo do Terceiro Mundo. A
subversão moral contém a perversão fascista germinalmente, erotismo e sangue, mas
um fluxo amoroso precisa articular-se com as imagens do povo, libertar as forças da
claudicação sádica do pathos do autor:
A Idade da Terra... investe o mito cristão, mas não o mito do Cristo Católico,
europeizado ou civilizado, investe uma espécie de cristandade descristificada.
Meu Cristo não morre, não é Crucificado. Encontro inclusive que, em meu
último filme, não há sofrimento como nos outros. 79

Pasolini vira na direção contrária e, com Salò, alcança o momento mais real de
seu estilo, seu verdadeiro personagem, uma vez que o ponto de vista já não se mimetiza
com a maquiagem dos oprimidos, senão que substitui em bloco a perspectiva dos
torturadores por sua própria visão autopunitiva num espaço de clausura:
Salò é o filme de Pasolini que prefiro, porque penso que é o melhor desde o
ponto de vista da forma: está bem enquadrado, bem montado, bem
representado, o filme se converte num corpo convincente, com uma violência
existencial, e não com a violência teórica de seus outros filmes. Porque em
Salò diz a verdade ao afirmar: “aqui está, sou pervertido, a perversão é o meu

77
PASOLINI, Pier Paolo. “Tetis” in Vittorio Boarini (ed.). Erotismo e destruição. Madrid:
Fundamentos, 1998. p. 99 e ss.
78
O século do cinema, op. cit., p. 286.
79
Cartas ao mundo, op. cit., p. 65.
Nicolás Fernández Muriano

personagem, meu herói ama aos carrascos como eu amo o meu assassino”, e
depois de seu filme ele morreu numa aventura de exploração do sexo
proletário.80

A perversão como personagem composto dos dois sujeitos do filme é a primeira


“mimese visiva” justificada por seu autor, uma sorte de parúsia final que alcança o
momento mais real de uma época: “ele assume a tragédia, punido pelas falsas máscaras
de Édipo e de Cristo... nisso está o fundo do mistério, não somente de Pasolini como
também do Pasolini em que se converteu, e por causa disso, é um mito contemporâneo.”
O epitáfio é duplo e recíproco. Assim como o Cristo de Rocha é elaborado com e contra
a versão de Pasolini, por um efeito de simetria selvagem do ritual de snague e do ritual
erótico, pode dizer-se também que a morte de Rocha coloca em cena o seu próprio rito
sádico como um duplo recíproco ao assassinato ritual do italiano. Pouco antes de voltar
ao Brasil, Glauber consagra ao General Golbery do Couto e Silva, “gênio da raça” e aos
militares “legítimos representantes do povo”: “serei Sócrates, bebendo a cicuta na polis?
Não, eu quero estar no banquete democrático da república”, diz premonitoriamente. Em
meio desta última mise-em-scène, morre subitamente de uma infecção generalizada.
Linchamento e funeral, recepção e despedida, põem em transe a liturgia de seu último
filme. Antes de partir, se despede de Pasolini nos Cahiers:
Já ninguém falava dele, salvo para dizer que tinha ficado louco ou que tinha
comprometido com o regime militar brasileiro. Tinha vindo à França mostrar,
quase às escondidas, o seu último filme, em que havia investido muito tempo,
dinheiro e trabalho, e tinha deixado os que o tinham visto em Veneza, no
mínimo, perplexos. Chamava-se A idade da Terra e não se parecia com nada
conhecido: era um filme torrencial e alucinado, um ovni fílmico, nem mais
nem menos... Falava muito, sem dúvida delirava: nada do que dizia era
insignificante. Nos Cahiers perguntamos a ele se aceitava escrever algo sobre
Pasolini... Encerrou-se no escritório e, sem necessidade de que lhe fizéssemos
perguntas, falou sozinho durante horas ante um pequeno gravador.
Incomodados, escutávamos a sua voz veemente, o encanto de seu francês
com sotaque brasileiro, o ajuste de contas colérico e afetuoso com Pier Paolo
Pasolini, as reprovações post mortem. Era já um diálogo de mortos.81

Nicolás Fernández Muriano é professor de filosofia na Universidade de Buenos Aires,


coeditor da revista Fármacos, é autor de A Biblia Gaucha.

Tradutor: Bruno Cava.

80
O Século do cinema, op. cit., p. 284.
81
DANEY, Serge, op. cit., p. 99 e s.

103
Benjamin e a percepção coletiva

Maurizio Lazzarato

Nota dos editores: Este texto é o capítulo de conclusão do livro “Videofilosofia. La


percezione del tempo nel postfordismo” (Roma: manifestolibri, 1996), de Maurizio
Lazzarato. O capítulo foi traduzido por Gustavo Bissoto Gumiero.

1.
Antes de chegarmos às conclusões, queria repreender todas as temáticas tratadas
até agora e confrontá-las com o trabalho de Walter Benjamin, de modo particular com o
seu conceito de percepção coletiva, que poderia lançar as hipóteses aqui levantadas
sobre um terreno político. Ao contrário de Bergson, para Benjamin “o modo no qual a
percepção se elabora (o medium no qual se realiza) não é determinado somente pela
natureza humana, mas pelas circunstâncias históricas” (BENJAMIN: 1991, 143). A
intersecção destes dois pontos de vista nos leva a pensar a nossa atualidade. A
metodologia benjaminiana nos interessa porque liga de maneira direta a mecanização
do trabalho e a mecanização da percepção, a forma coletiva da produção e a forma da
recepção, o choque produzido pela rede de montagem e o choque produzido pela rede
das imagens montadas, as transformações da forma-mercadoria e a introdução das
tecnologias de reprodução da obra de arte (a qual é conectada com a crise do conceito
de arte, de obra de arte e de autor). E tudo isso sob a base do advento do cinema como
tecnologia adequada à socialização das formas de percepção introduzida pelo
capitalismo. Enfim, uma metodologia que pensa juntas a socialização da percepção e da
memória com os processos de socialização e de desenvolvimento do capitalismo. Esta
conexão é o que este trabalho tinha em mente e que geralmente falta no meio acadêmico
e que constitui a verdadeira dificuldade.
Devemos, pois nos distanciar do conceito de Benjamin sobre reprodução técnica
a respeito da obra de arte que apresenta muitas ambiguidades. Benjamin oscila entre a
reprodução automática da obra de arte, a sua produção estandardizada e serializada e a
análise das temporalidades próprias do capitalismo. Assim, ele nem sempre chegou ao
fundo da relação entre automação e o tempo, ainda que tenha examinado e criticado as
mudanças da percepção e da memória e os processos de subjetivação. Automação e
tempo andam paralelamente sem que se impliquem reciprocamente. Mas é exatamente
esta implicação que resulta decisiva hoje.
Maurizio Lazzarato

2.
Em Benjamin, a análise da percepção coletiva é entendida na relação tempo-
memória. O homem da metrópole vive, no spleen, a impossibilidade de se liberar do
fascínio que o passar vazio do tempo exercita sobre ele. O ideal baudeleriano,
interpretado por Benjamin como antecipação do tipo metropolitano, responde à perda da
experiência recorrendo à memória involuntária, depositária das imagens da vida
anterior. A poética de Baudelaire poderia assumir-se na tentativa, destinada sempre a
falência, de reinserir a imagem na recordação da memória involuntária. A destruição
desta última é obra da informação, que constringe a consciência a responder com o
intelecto aos choques, definidos por Benjamin como “a forma preponderante da
sensibilidade na época da grande indústria”. Quanto mais a consciência é levada a se
defender dos choques, mais desenvolve uma forma de memória voluntária que responde
aos estímulos através de reflexos mecanizados.
É importante entender a leitura de “Matéria e Memória” feita por Benjamin para
compreender as diferenças fundamentais com relação à nossa interpretação de Bergson.
Benjamin coloca o trabalho de Bergson dentro da oposição entre tempo da tradição
(memória involuntária) e tempo do capitalismo (memória voluntária). Bergson tenderia,
mediante o conceito de memória, a “restaurar a experiência autêntica que existe em
função da tradição”, opondo-se, assim ao modo de experiência próprio da época da
grande indústria. A nossa interpretação não relaciona a memória bergsoniana ao tempo
da tradição, mas ao tempo vazio do capitalismo, ao tempo liberado de qualquer
subordinação dos “movimentos do cosmo e da alma”, e à sua possível inversão em
tempo-criação, tempo-potência.
É precisamente o conceito bergsoniano de memória virtual que pode nos ajudar
a definir mais precisamente as dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit
(o presente messiânico ou a imagem dialética), que Benjamin, ao fim da sua vida via
como alternativa seja ao tempo vazio e homogêneo da informação, seja à restauração
(impossível) do tempo da tradição. A crítica da progressão de um tempo vazio e
homogêneo próprio do capitalismo deve converter, como vimos em Bergson, a forma
vazia do tempo em tempo-potência que cria contemporaneamente o presente e o
passado (e pode assim, como queria Benjamin, redimir este último). Bergson, como
Baudelaire, insere a imagem na recordação, descobrindo uma memória mais profunda,
uma memória ontológica que é o fundamento da memória psicológica e da memória
social.

105
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

É interessante notar que, para Benjamin, as condições que abrem o acesso ao


passado, à consciência social – mas não a este ou àquele passado, mas ao passado
virtual, ao tempo não cronológico – são as mesmas que permitem que o tempo enquanto
tempo mesmo mostre-se à consciência individual; a marcha da vida frente aos olhos
daquele que está em perigo de morte (o enforcado ou o afogado de Bergson1) ou o
improviso de uma recordação. O materialismo histórico deve captar uma imagem do
passado como se apresenta ao sujeito no improviso ou no instante de um perigo
supremo (BERGSON: 1959, 342).
O presente, que é a forma mais contraída do passado, uma vez liberado das
necessidades de ser útil à ação finalizada, uma vez liberado da sua subordinação ao
tempo da banalidade cotidiana, nos introduz à experiência do “tempo em pessoa”. O
rompimento da solidariedade do tempo e da imagem com os mecanismos senso-motores
do individuo é representado, a nível social, pelo ato revolucionário, que rompe o
percurso do tempo vazio do valor. O movimento é, assim, tão importante quanto o
rompimento. As articulações de destruição e de constituição, como tarefas fundamentais
da revolução, nos são dadas, nas “Teses sobre a filosofia da história”, como tarefas que
consideram diretamente o tempo.
“O ato de pensar não se funda somente sobre o movimento do pensamento,
mas também sobre o seu impedimento. Suponhamos que o movimento do
pensamento seja improvisamente bloqueado – produz-se, então, uma
constelação com grande carga de tensão, uma espécie de choque; um choque
que permitirá à imagem de organizar-se no improviso [...] Esta estrutura se
apresenta ao materialista histórico como o sinal de um bloco messiânico de
coisas passadas; dito de outra maneira, como uma situação revolucionária na
luta pela liberação do passado oprimido” (Idem, p. 346).

Somente nesta condição se poderá desvencilhar da continuidade vazia e


homogênea do tempo do valor e colher a singularidade de uma época ou de uma vida.
Nesse trabalho, Benjamin coloca a ênfase no tempo não cronológico, onde o passado
vale para todos os tempos. O presente messiânico é um tempo que contém todos os
tempos (todos os passados), sendo ele mesmo a forma mais contraída do passado.
Parece que Benjamin oscila algumas vezes, de um texto a outro, entre a tentativa de
fundar o tempo no “passado que conserva” e a tentativa de fundá-lo no “presente que

1
Em casos excepcionais, a consciência renuncia improvisamente à atenção, à vida e rompe, assim, sua
subordinação à ação finalizada e aos esquemas senso-motores: “Imediatamente, como por encanto, o
passado torna-se presente. Nas pessoas que veem surgir a ameaça de uma morte imediata, no alpinista que
escorrega em um precipício, nos sequestrados [...] isto basta para que muitos detalhes esquecidos sejam
trazidos à mente para que a história inteira da pessoa desfile como um movimento panorâmico”
(BERGSON: 1959, p. 1387).
Maurizio Lazzarato

cria”. Esta dupla fundação do tempo, que encontramos no conceito de memória virtual
de Bergson, não parece suficientemente articulada em Benjamin. Se a oposição entre os
tempos históricos é certa, precisa, o mesmo não se pode dizer das condições
ontológicas do tempo. O presente como evento, como abertura do tempo não
cronológico leva de maneira contínua, e mesmo alternativamente, a estas duas formas
da memória virtual-ontológica e é este levar que dá um tom particular à obra de
Benjamin, presa entre o tipo do novo bárbaro que, nas condições capitalistas de
ausência de memória, não deve deixar escapar a oportunidade histórica de se liberar da
opacidade mentirosa da sua vida interior e o novo tipo religioso que, como o messias,
deve liberar e resgatar o passado de todos os oprimidos e de todos os vencidos da
história.
As dificuldades e ambiguidades que o conceito de Jetzt-Zeit apresenta devem-se
à tentativa original de articular as formas históricas do tempo com as suas formas
ontológicas (ausentes em Bergson). No trabalho de Benjamin, encontramos uma
tentativa de tematização das condições histórico-sociais que anunciam e preparam a
inversão do tempo-medida em tempo-potência, que também em Bergson é quase
ausente, podendo somente ser deduzida de seu trabalho. Benjamin nos diz que a
mutação introduzida pelas tecnologias de reprodução da obra de arte determina as
condições para uma “tomada de consciência do papel político da imagem e do tempo”.
Mas a relação que Benjamin estabelece corretamente entre reprodução de massa e
reprodução das massas corre o risco de mascarar o processo de produção/reprodução
industrial do tempo, que faz as suas primeiras aparições com o cinema. O cinema
(reprodução automática da imagem) seria melhor definido como um dispositivo que
introduz o movimento e o tempo nas imagens (e não tanto como um processo de
reprodução serial da existência singular e única da obra de arte). O cinema é, dessa
forma, um dispositivo automático que cristaliza o tempo, um motor que produz e
reproduz as sínteses do tempo. Fundamentalmente, Benjamin entende a reprodução
técnica como a reprodução de uma cópia, cujo modelo pode ser comparado àquele da
imprensa; para nós, entretanto, aquilo que a técnica reproduz é o tempo.
O nosso conceito de máquinas que cristalizam o tempo quer demonstrar como o
capitalismo opera uma reprodução automática do tempo, daquele tempo que é a matéria
prima da percepção, da memória e da subjetividade. O conceito de reprodução mecânica
das obras de arte tende a fazer com que estas tecnologias sejam colocadas entre as

107
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

tecnologias mecânicas. Nós procuramos, entretanto, demonstrar a especificidade e a


originalidade delas como tecnologia do tempo.
Agora que já tomamos a distância necessária de Benjamin com relação a este
ponto fundamental, podemos voltar à leitura de seu trabalho de maneira específica em 3
aspectos: 1) a socialização das formas de percepção e recepção, que encontra no cinema
a sua primeira realização e nas massas o seu primeiro objeto: o processo de produção da
subjetividade é organizado por dispositivos tecnológicos (maquínicos), como o processo
de produção material. 2) A forma coletiva da percepção determina uma transformação
radical das formas seja da produção que da recepção das obras de arte. A mutação da
função da obra de arte não se deve somente à industrialização da sua produção, mas
também e, sobretudo, à atividade das massas que querem aproximar-se do objeto,
reduzir a distância hierática (que, como veremos, é fundamentalmente um problema
temporal) que as separa da obra. A forma na qual esta aproximação se dá é aquela da
percepção coletiva que se constitui na distração e no entretenimento. 3) A percepção
coletiva transforma o público em um especialista. Benjamin liga esta mutação às formas
de socialização e cooperação que se constituem no processo de trabalho. A
transformação do público e a transformação do trabalhador coletivo [operaio colletivo]
são duas faces do mesmo processo, ao ponto de Benjamin conseguir ver, nas formas
coletivas que assume a produção cinematográfica, a “forma mais pura de superação da
divisão capitalista entre trabalho manual e trabalho intelectual”.
Estas indicações são tão atuais que podem ser aplicadas também às passagens
posteriores (televisão e redes digitais) do desenvolvimento da percepção coletiva
determinada pelas máquinas que cristalizam o tempo.

3.
Precisamos voltar a estes três pontos de uma maneira mais profunda e
procurarmos seguir as mutações que o capitalismo e a luta de classe determinam na
percepção coletiva, no conceito de público e na natureza do trabalho. A adequação da
realidade às massas é, para Benjamin, um fenômeno decisivo e que abrange todos os
campos. A massa é a matriz, onde se geram novas atitudes em relação à percepção, à
sensibilidade, à obra de arte. A reprodução mecânica desta última modifica a maneira
que a massa reage com relação à arte. No cinema, que é a primeira forma de percepção
adequada às massas na época da grande indústria, podem-se verificar e definir essas
novas atitudes, cuja característica principal consiste na tendência das massas a romper a
Maurizio Lazzarato

distância que normalmente a obra de arte estabelece com relação aos seus fruidores:
nesta renovada forma de percepção, o prazer emocional e do espetáculo confunde-se
intimamente com a atitude do especialista. A grande ligação entre o juízo crítico e o
prazer puro e simples é, para Benjamin, o sintoma da importância social de uma forma
de arte.
A recepção do cinema, que poderia encontrar seus antecedentes no poema épico,
diferencia-se da fruição das pinturas nas igrejas, nos monastérios e nas cortes da
Renascença pela sua forma intrinsicamente coletiva. A recepção das massas se
contrapõe, além do seu caráter coletivo, do fato que acontece na distração e no
entretenimento. Este movimento é motivado pela vontade das massas de aproximar-se
do objeto2, de torná-lo seu, de penetrar nele, de conhecê-lo, de experimentá-lo, de tirar
toda a sua aura, que como veremos, é uma aura temporal e de poder. Precisaríamos ler a
perda da aura não como um processo unilateralmente capitalista, como acontece
sempre, mas como uma manifestação da luta de classe, da intervenção ativa dos sujeitos
sociais. Deste modo, estamos mais próximos à metodologia benjaminiana que coloca na
dupla natureza da mercadoria o motor desta transformação.
A recepção na distração e no entretenimento opõe-se radicalmente à percepção
na contemplação: aquele que se coloca diante da obra de arte penetra dentro dela como
um pintor chinês que desapareceu no fundo da sua paisagem [...] a massa, entretanto,
através de sua distração, recebe a obra de arte dentro de si, transmite a ela o seu ritmo de
vida, abraça-a com os seus fluxos (BENJAMIN: 1991, 167).
A contemplação estabelece uma distância entre a obra e o seu fruidor, distância
essa que a massa não aceita, porque leva consigo uma outra temporalidade, uma outra
sensibilidade, uma outra atitude com relação ao mundo.

4.
Gostaria de comentar este parecer de Benjamin com um texto de Bakhtin, no
qual ele demonstra extraordinariamente que esta atitude com relação à distância é uma
atitude relacionada com o tempo. Este comentário nos leva de maneira surpreendente ao
problema das máquinas que cristalizam o tempo e às sínteses que as constituem.
Bakhtin lê o desenvolvimento e a luta dos gêneros literários como uma tentativa por

2
O desejo apaixonado das massas hoje: “aproximar-se” (näherzubringen) das coisas não deveria ser outra
coisa que a inversão do sentimento de alienação crescente que a vida cotidiana gera no homem, e não
somente no homem confrontado consigo mesmo, mas também confrontado com os objetos (BENJAMIN,
op. cit., p. 179).

109
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

parte dos gêneros baixos, cômicos e populares de “reorientar-se para o futuro”, como
expressão de uma sensibilidade que se sente mais próxima ao que irá acontecer do que
ao passado. Já a alta literatura se constitui pela tentativa de superar a realidade
contemporânea, o presente “baixo” fluente e transeunte, a vida sem início e sem fim
(BACHTIN: 1976, 200). O ponto central da avaliação artística e interpretativa da alta
literatura está, segundo Bakhtin, no passado absoluto, na memória, porque o presente,
no seu fluir, é privado de uma verdadeira realização e, portanto, de essência.

É importante a correlação dos tempos: o tom axiológico não cai sobre o


futuro, não existem os méritos frente ao futuro (esses estão diante da
eternidade extratemporal), mas a memória futura se serve do passado, serve-
se da ampliação do mundo do passado absoluto, o seu enriquecimento com
novas imagens (a despeito da idade contemporânea) de um mundo que, por
princípio, se contrapõe sempre a cada presente transeunte 3.

Esta hierarquia dos tempos é uma hierarquia que trata diretamente a hierarquia
do poder. A idealização do passado tem um caráter oficial. Todas as expressões externas
da força e das verdades dominantes são organizadas dentro da categoria do passado, da
distância, da memoria, dentro de um tempo fechado como uma roda, diz Bakhtin.
Já na criação cômica popular, o presente, a idade contemporânea, o “eu em pessoa”, os
meus contemporâneos e o “meu tempo” estão sujeitos ao riso ambivalente, alegre e
destrutivo ao mesmo tempo. O presente que aponta para o futuro se opõe ao passado
absoluto (dos deuses, semideuses e heróis). O livre contato familiar se opõe à distância
e ao afastamento; o presente ainda não realizado se opõe ao passado fechado, realizado.
É então, segundo Bakhtin, que nascem novas atitudes com relação à língua, à palavra, à
representação e também com relação ao poder e à tradição.
As intuições de Benjamin a respeito da percepção no entretenimento e na
distração (e também sobre a vontade das massas de aproximar-se do objeto), parecem
estar conectadas às atitudes carnavalescas com relação ao tempo 4 que, segundo Bakhtin,

3
Segundo o autor, o mundo da grande literatura da época clássica é projetado no passado: “O que não
significa que neste passado não haja nenhum movimento. Ao contrário das categorias temporais relativas,
no seu interno, são elaborados de modo rico e sutil [...] há uma alta técnica artística da representação do
tempo. Mas todos os pontos deste tempo realizado e fechado em uma roda estão longe do tempo real e
dinâmico da idade contemporânea; na sua complexidade, não é localizado em um processo histórico real,
não é correlacionado nem com o presente, nem com o futuro e, por assim dizer, contém em si mesmo a
plenitude dos tempos” (BACHTIN: 1976, 198).
4
Mas é necessário notar que este processo de reorientação para o futuro não podia realizar-se na
“ausência de prospectiva” da sociedade antiga, onde este futuro não existia. “Pela primeira vez, esta
reorientação aconteceu no Renascimento. Nesta época, o presente se sentia não somente continuação
incompleta do passado, mas também um início novo e heroico” (BACHTIN: 1956, 221).
Maurizio Lazzarato

estão na origem da literatura moderna. O cinema estaria, portanto, na origem da arte


moderna.

É o riso que destrói tanto a distância épica quanto qualquer outra


distância hierárquica que distancia o objeto no sentido axiológico. Na
imagem de distanciamento, não há como o objeto ser cômico; para
que ele o torne assim, é necessário aproximá-lo; tudo aquilo que é
cômico é vizinho, está próximo [...] o riso contém a força
extraordinária de aproximar o objeto; isso o introduz em uma zona de
rude contato, onde pode-se familiarmente tateá-lo por todas as partes,
rodá-lo, colocá-lo de ponta cabeça, olhá-lo de cima, de baixo, tirar a
embalagem, lançar um olhar ao seu interno, decompô-lo [...] O riso
destrói o medo e o respeito com relação ao objeto, com relação ao
mundo, e torna o objeto familiar, predispondo-o, assim, a uma análise
absolutamente livre [...] O riso, ao aproximar e familiarizar o objeto, é
como se o entregasse nas mãos de uma análise – tanto científica como
artística – e de uma livre invenção experimental que serve aos
objetivos desta análise (Idem, p. 202).

Para Bakhtin, o cômico é a expressão de uma temporalidade absolutamente


específica. A função da memória é mínima: zomba-se para esquecer. O tempo do
cômico popular é um tempo que destrói a distância do passado absoluto e entreabre o
tempo da indeterminação, da irrealização, da criação. Uma temporalidade que se apoia
no futuro ao invés do passado. O seu ser exige uma continuação no futuro, e quanto
mais prossegue nele, mais se torna irrealizada, indeterminada, aberta à “imprevisível
criação do novo”. Um presente que não é somente histórico-social, mas que goteja
virtualidade.

A mesma zona de contato com o presente ainda não realizado e, portanto,


com o futuro, cria a necessidade desta não coincidência do homem consigo
mesmo. Nisso permanecem sempre potencialidades ainda não realizadas.
Existe o futuro, e ele não pode não pensar à imagem do homem, não pode
não ter raízes nela. O homem não se representa por inteiro no existente
histórico-social” (Ibidem, p. 216).

Bakhtin encontra a representação artística desta “gaia eccedenza” do tempo nas


máscaras italianas da comédia da arte. Arlecchino e Pulcinella são os heróis da
improvisação, de um processo vital sempre contemporâneo, indestrutível e que se
renova eternamente. Giorgio Agamben, em um artigo sobre cinema, faz destes
personagens os portadores de uma prática artística na qual existe um “misto de potência
e ato que foge às classificações da ética tradicional5”.

5
“Arlecchino, Pulcinella e Beltrame não são sub-personagens, mas “experimentum vitae” em que a
destruição do autor e de seu respectivo papel acontecem paralelamente. É a própria relação entre texto e
execução, entre real e virtual que é colocada em pauta novamente. Entre um e outro, aparece um terceiro

111
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

Nós lemos estas formidáveis páginas bakhtianas como um exemplo da luta com
relação ao tempo. As duas formas de temporalidade que fundam a “memória pura” ou
“virtual” nos trabalhos de Bergson (o passado que conserva e o presente que cria)
tornam-se, nas mãos de Bakhtin, elementos de uma forte luta entre formas existenciais,
processos de subjetivação, práticas artísticas, modos alternativos de constituição da
sociedade e das suas finalidades. E aludem, segundo a indicação de Agamben, ao
conceito de “potência” (do tempo-potência) e a duas éticas radicalmente opostas.
Benjamin reencontra estes tons nas novas atitudes que a massa exprime no
cinema e, de modo mais geral, com relação às formas de fruição da obra de arte.
Segundo a teoria literária de Bakhtin, é o romance (organicamente adaptado às
novas formas da percepção muda, isto é, da leitura) que herda e desenvolve o presente
ainda não realizado, a atualidade da época contemporânea e a subjetividade que não
coincide nunca consigo mesma. Poderíamos talvez acrescentar que esta temporalidade
encontra no cinema uma forma de representação através das próprias imagens-duração
do tempo, enquanto na televisão e nas redes digitais o presente que “se está fazendo”, o
tempo aberto ao futuro não são somente representados, mas constituem também a
matéria e o tema destes dispositivos tecnológicos.
Benjamin sabia bem que responder à industrialização da percepção e à
comercialização da obra com a reafirmação da arte não era somente reacionário no
sentido etimológico do termo, mas também, do ponto de vista político, absolutamente
ineficaz. A canonização do cinema como sétima arte é, para Benjamin, a outra face da
hollywoodização das novas condições da percepção coletiva. Ela reintroduz a distância,
o afastamento, o respeito e o medo do objeto, que não são outra coisa que a distância, o
respeito e o medo do poder. Benjamin nos adverte que a postura daquele que se
encontra diante da obra de arte pode, a qualquer momento, transformar-se em um novo
comportamento religioso, introduzir o passado absoluto e a sua ética. Comercialização e
arte são as alternativas que o poder reproduz e que os intelectuais de esquerda tomam
como problema.
A divisão social do tempo na sociedade capitalista contemporânea poderia ser
descrita do seguinte modo: o presente passa à indústria cultural (a imagem que ainda
não se realizou, essência, mas que é interpretada somente como um contínuo
desaparecimento, presente que é simplesmente repetição), enquanto o passado é

momento que é uma mistura de potência e de ato que foge à classificação da ética tradicional” (Agamben,
G; “Trafic”, Paris, n. 3, 1992, p. 5).
Maurizio Lazzarato

entregue à arte (a imagem realizada, o tempo que permanece e se conserva). São estas
as novas qualificações às quais o surgimento do tempo-potência é submisso, nas
condições do capitalismo: requalificações que atualizam a definição do tempo do poder
como nos descreveu Bakhtin.
O presente (como desdobramento do tempo), que pede uma requalificação da
postura carnavalesca com relação às tecnologias do tempo, parece encontrar uma
realização somente no grande desenvolvimento, operado pela televisão, do livre contato
familiar, da necessidade de destruir a distância e de se aproximar do objeto na distração
e no entretenimento que, de qualquer forma, as massas continuam a exprimir.

5.
O conceito de percepção coletiva benjaminiano nos dá outras sugestões que nos
levam de volta à Bergson, mas também, de maneira ainda mais produtiva, às condições
da nossa atual forma de percepção coletiva. A descontinuidade das imagens
cinematográficas, ligando-se em sucessão contínua, produz movimentos anormais para
a nossa percepção, que se iniciam no inconsciente ótico.
Para Benjamin são as transformações, as alterações, as catástrofes do mundo
visível produzidas pelas deformações da câmera cinematográfica que garantem o acesso
ao inconsciente ótico. Como vimos, é a câmera que nos leva ainda mais longe na
descoberta da percepção pura (o inconsciente bergsoniano), além do tempo e do espaço
homogêneos. “Percebe-se que a natureza que fala à câmera é diferente daquela que fala
aos olhos. Diferente principalmente no sentido que o espaço do homem que sofreu
penetração inconscientemente substitui o espaço conscientemente explorado”
(BENJAMIN, op. cit., p. 163). O cinema produz uma explosão do inconsciente e a
massa se apropria, dessa maneira, das formas de percepção do psicopático e do
sonhador. Apropria-se, assim, dos movimentos da consciência que invertem a
subordinação do tempo ao espaço. Tudo isso é, para Benjamin, sinal evidente de uma
mudança da função do dispositivo de “apercepção humana”. Mas “os encargos que são
impostos à percepção humana não podem ser resolvidos somente através da ótica, isto é,
através da contemplação. Essas tarefas são progressivamente assumidas pelo hábito”
(Idem, p. 168).
E aqui encontramos, surpreendentemente, um outro tema de Bergson. Trata-se
de uma crítica direta e sem ambiguidades ao modelo ótico. A visão não seria possível
sem as sínteses passivas constituídas do hábito. Cada dispositivo de visibilidade precisa

113
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

das suas sínteses passivas. Não é o olho (que opera fundamentalmente como o intelecto)
o primeiro objetivo das máquinas que cristalizam o tempo, mas o corpo. Primeiro o
corpo, depois todo o resto se seguirá. A recepção dos movimentos anormais se dá
através de uma recepção tátil e o efeito de choque da sucessão das imagens
cinematográficas introduz, segundo Benjamin, um elemento tátil na própria ótica. E o
homem distraído poderá habituar-se melhor que qualquer outro6, porque é através do
corpo, e não através da inteligência, que ele assimila as novas imagens e as novas
temporalidades.
Isto que é somente anunciado no cinema, é completamente desenvolvido na
tecnologia do vídeo, e sobretudo, no computador, perante o qual se se habitua através de
uma ótica que se aproxima a uma recepção tátil, como o sabem todos aqueles que são
familiarizados com este dispositivo. O recolhimento e a contemplação são atitudes que
impedem a familiarização com as novas tecnologias, porque, como sabemos, a produção
da percepção não é um fato fundamentalmente de visão, mas de ação.
Uma das funções da arte deveria ser de tornar determinadas imagens familiares a nós,
antes ainda que as finalidades perseguidas por estas imagens se tornem conscientes. Se
esta tarefa foi parcialmente assumida pelo cinema, o mesmo não se pode dizer das
imagens-vídeo.
Benjamin define a aparência e a brincadeira como os dois lados da arte, “ligadas
uma à outra como as duas membranas do germe vegetal”. O declínio da aura é lido por
Benjamin como um enfraquecimento da aparência. Quando esta última não mais se
opõe ao real, mas torna-se somente um de seus extratos (como vimos com Nietzsche),
então “o espaço mais alargado da brincadeira se instaurou no cinema. Neste momento, a
aparência fica totalmente eclipsada em favor do momento da brincadeira” (Idem, p.
189).
Enquanto as tecnologias do tempo real e suas imagens são demonizadas, a
indústria da comunicação familiariza a humanidade do amanhã com o tempo, através do
hábito e da diversão. O que está na base dos jogos eletrônicos é a repetição automática
na distração e no entretenimento. De fato, como sabemos, a automação é uma condição
para o desenvolvimento do espírito porque, segundo Bergson, libera virtualidade e
possibilidade de escolha.

6
“O motorista, cujo pensamento está bem longe, por exemplo, quando precisa consertar seu motor,
habitua-se melhor à forma moderna da garagem do que o historiador da arte, que se esforça, de fora, a
fazer um exame estilístico” (BENJAMIN, op. cit., p. 183).
Maurizio Lazzarato

6.
O choque que as imagens cinematográficas produzem pode ser relacionado com
os choques dos trabalhadores com as máquinas. Antecipando a relação godardiana entre
a rede de montagem e o dispositivo de projeção cinematográfico, Benjamin afirma:

Antes de mais nada, com relação à continuidade das imagens, devemos notar
que a sucessão de imagens (que tem um papel decisivo no processo da
produção), encontra o seu correspondente na película do filme, no processo
que a consuma. As duas coisas aparecerem quase ao mesmo tempo. Não se
pode compreender o significado social de uma independente da outra
(Ibidem, p. 175).

Mas Benjamin estabelece também uma outra relação entre a produção e o


cinema: uma relação que não fica mais presa ao dispositivo tecnológico, mas à natureza
da atividade que é requerida ao espectador. A técnica do filme, como aquela do esporte,
estimula (suscita) a participação do espectador enquanto conhecedor, enquanto um
especialista. O cinema (como também a imprensa e o esporte) determina um movimento
de transformação cultural em que a diferença entre o autor e o público tende a perder o
seu caráter unilateral. Esta diferença seria “somente funcional, podendo variar em cada
caso. O leitor está pronto a se tornar escritor a qualquer momento” (Ibidem, p. 158).
Benjamin tem o mérito de relacionar a realização desta tendência às transformações do
trabalho e ao rompimento da separação entre trabalho intelectual e trabalho manual.
Destas transformações e desta quebra, Benjamin antevê um exemplo decisivo na
produção cinematográfica.

Enquanto especialista em um processo de trabalho diferenciado ao extremo –


mesmo no emprego mais humilde – pode a qualquer momento adquirir a
qualidade de autor. O trabalho toma a palavra e a sua representação através
da palavra é parte integrante do poder necessário à sua execução” (Ibidem, p.
158-159).

O fato que o trabalho se torna ativo, o seu “tomar a palavra”, requalifica


completamente o papel da arte, porque inverte as bases da divisão social das atribuições
às quais a arte é envolvida. Benjamin vê nas performances dos dadaístas um indício
muito importante na mudança de função da arte, que opõe um público distraído à
comunidade artística que contempla. “Na distração, a obra de arte provoca agitações,
emoções, impressões que são pretextos para um comportamento ativo dos sujeitos”
(Ibidem, p. 176).
A produção e a recepção não podem se dar de forma independente desta segunda
natureza, das suas formas coletivas, tecnológicas e do papel ativo que têm as massas. A

115
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

interatividade das tecnologias digitais desfruta comportamentos e atitudes induzidas da


mecanização da percepção coletiva. Os intelectuais de esquerda, que deveriam insistir
em uma “ontologia específica” das novas formas de percepção-produção
(reversibilidade das funções de autor e de espectador, novos processos de criação
coletiva etc.), reportam-se no melhor dos casos à arte e no pior à propaganda.
Benjamin vê no cinema o sintoma de uma transformação radical do público, que
não somente se massifica, destruindo as formas burguesas de percepção, mas adquirindo
também uma nova natureza. O público-massa, novo especialista que quer intervir
ativamente como autor, é o sujeito que se adequa não somente à percepção, mas
também ao processo de produção das obras.
As grandes obras não podem mais ser consideradas como produtos
individuais; elas têm se tornado produtos coletivos, tão potentes que, para
assimilá-los, é necessário antes de tudo reduzi-los. No fim das contas, os
métodos mecânicos de reprodução são uma técnica de redução e conseguem
do homem um grau de controle tal que sem o qual não poderiam estar à sua
disposição (BENJAMIN: 1982).

Formas coletivas de produção, autor coletivo, tendência à reversibilidade da


relação entre autor e público, papel ativo do espectador: esses são os desafios lançados à
arte nas novas condições de percepção. O cinema respondeu a esses desafios? Certo é
que este problema nem mesmo foi levantado pela tecnologia do vídeo.

7.
Adorno diz concordar com Benjamin na questão de “defender o cinema kitsch
contra o cinema cultural”. Por outro lado, critica Benjamin por este não ter estabelecido
os dois extremos da produção cultural sob o mesmo tratamento dialético. “Os dois
levam as marcas do capitalismo. Os dois contêm elementos de mudança. Os dois são as
metades cortadas da liberdade, a qual é considerada como um todo, mas que de qualquer
forma não se obtém por uma simples adição” (BENJAMIN: 1991, 136).
Adorno, de forma geral, critica Benjamin por afirmar que este subestima a
técnica da arte autônoma e que superestima a técnica da arte dependente (comercial).
Sem entrar no mérito desta discussão, queria discutir a respeito da teoria política que se
desenvolve a partir desta análise. Segundo Adorno, Benjamin credita ao proletariado,
enquanto sujeito do cinema [Kinosubject], uma ação que pode-se cumprir somente a
partir de uma teoria dos intelectuais. Adorno refere-se diretamente à teoria leninista do
partido como intelectual coletivo, em oposição à fé cega que Benjamin coloca no
“processo de auto-constituição do proletariado dentro do processo histórico”. Parece-me
Maurizio Lazzarato

que Adorno tenha em mente uma concepção do intelectual como vanguarda, enquanto
Benjamin vê na produção cinematográfica uma mudança radical da figura e do papel do
intelectual. A reversibilidade das funções de autor e do público, o papel ativo deste
último etc., antecipam o processo de constituição de uma intelectualidade de massa que
o cinema tinha anunciado em sua origem e que acelera de maneira exponencial depois
de 1968, portando consigo a necessidade de se reconsiderar radicalmente as condições
do processo revolucionário, uma vez que espontaneidade, ação e consciência são
realidades que sofreram modificação após a constituição destes novos sujeitos coletivos
e da nova compenetração de percepção e trabalho.
A percepção coletiva, a percepção das massas, deve passar pela prova da
revolução. Se na publicidade a arte e a “percepção na distração” fazem suas
experiências mercantis, na revolução essas farão a experiência humana. “Se tudo se
conformasse ao capital cinematográfico, o processo pararia na alienação de si mesmo,
na alienação do artista da tela, e também na dos espectadores” (Idem, p. 158).
Toda a análise de Benjamin converge para este ponto chave: a percepção
coletiva coloca problemas que podem somente ser resolvidos de forma coletiva. A
revolução seria, deste ponto de vista, a tentativa de inervar a coletividade com os órgãos
que estas novas tecnologias de reprodução mecânica produzem. Aquilo que a arte
antecipa (“permitir as tendências sociais de se afirmarem no mundo das imagens”
(Ibidem, p. 181)), a revolução poderia realizar de forma coletiva. A qualificação deste
processo é a desintegração do proletariado enquanto “massa” e a sua constituição em
sujeito coletivo que pode estabelecer uma harmonia entre as soltas forças da tecnologia
e o homem. A tendência do indivíduo de se separar e a diferenciar-se da massa, se não
encontra sua expressão na revolução, será desfrutada, no nível das imagens, na figura da
estrela de cinema (star) e na volta das funções religiosas do cinema (o cinema cultural,
artístico). A revolução não aconteceu, e como Benjamin previu, a percepção coletiva se
realiza, então, na massa que encontra seu “olho” a partir das câmeras de Hollywood e de
Leni Rifenstahl. “Nas grandes cortes e assembleias, nas organizações guerreiras e
esportivas, que são hoje captadas pelos instrumentos de registro de vídeo, a massa se
olha nos seus próprios olhos” (Ibidem, p. 169).

8.
Depois de Auschwitz, que garantiu a total mobilização da totalidade dos meios
técnicos da época, sem colocar em discussão a “propriedade”, as tendências da

117
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

percepção coletiva, profeticamente previstas por Benjamin no cinema, se realizam em


outro meio, a saber, a televisão. O cinema não representa mais a percepção coletiva e
qualquer discurso que não queria aceitar este desenvolvimento (contido virtualmente no
cinema) é reacionário.
A atualização das virtualidades da percepção coletiva contidas no cinema cria
uma situação completamente nova, que requer outras funções à arte e ao elemento
coletivo que deveria se apropriar das novas condições criadas pelo desenvolvimento das
tecnologias do tempo. Responder a estas novas tarefas a partir da produção e da
recepção de imagens cinematográficas é ilusório e fará somente com que seja integrado
aos dispositivos comunicativos do poder.
O cinema nos dava uma segunda natureza feita de imagens. Mas esta segunda
natureza, com suas características (o inconsciente ótico, a ubiquidade, a explosão do
mundo pela dinamite dos décimos de segundo etc.) era ainda somente representada. O
cinema nos faz ver o movimento e o tempo. E pode fazê-lo ver segundo todas as suas
sínteses porque trabalha com imagens-duração do tempo. Mas esta visão-representação
acontece sempre in um tempo diverso. O cinema, pela particularidade do seu dispositivo
tecnológico (a separação da tomada da imagem da difusão, ou também, segundo uma
indicação de Einsenstein, a separação da tomada da imagem da montagem), conserva
ainda a distinção entre o real e a imagem, entre o atual e o virtual.
A televisão, todavia, já nos faz entrar em outra dimensão na qual estas distinções
não valem mais. A razão fundamental da mudança consiste no fato que a televisão,
funcionando em tempo real, duplica o mundo com suas imagens, cobrindo-o com uma
camada de imagens-lembrança, exatamente no mesmo momento em que se produz algo.
A sua essência é ser interna ao tempo, e como vimos, sob duas formas: interna à
matéria-tempo, da qual contrai e dilata as vibrações, e interna à memória pura, no tempo
que se conserva em si mesmo, mas que se desdobra também em cada momento, no
presente que está acontecendo e que aponta para o futuro. Com a televisão, entramos no
mundo do espetáculo, na indistinção entre “coisa” e imagem, entre real e imaginário,
entre atual e virtual. Com o cinema, estávamos na dimensão do choque (no sentido que
o choque é a forma preponderante da sensação), enquanto com a televisão entramos na
dimensão do fluxo. As imagens do cinema produziram choques porque abriam o mundo
do inconsciente ótico a um espaço e a um tempo “além da vertente da nossa
experiência”, a um mundo bergsoniano feito somente de imagens, mas mantendo a
distinção entre o real e a aparência, entre o atual e o virtual. Somente a magia da sala de
Maurizio Lazzarato

cinema, onde se celebrava o culto deste novo mundo, nos fazia prisioneiros desta ilusão.
Já no caso do fluxo, ele nos envolve, “andamos em onda” (N.T. equivale ao “estamos
no ar” em português). Não somente as transmissões televisivas “vão em onda”, mas
todo o real, inclusive nós. As imagens não nos provocam mais choques porque não são
mais externas à nossa percepção, mas somos nós mesmos que nos tornamos imagens.
Somente a televisão pode realizar a indistinção entre o atual e o virtual, entre a coisa e a
imagem, que o cinema apenas tinha anunciado.
O cinema introduziu o movimento e o tempo na ligação das imagens, mas a
televisão é o próprio movimento da matéria-tempo (fluxo) e a sua modulação. Se o
cinema tinha generalizado o “valor de exposição” da arte, conservando, porém, ainda o
lugar público do culto, a televisão desterritorializa o lugar do culto em um “espaço
qualquer” e não há mais nenhum valor de exposição. Aquilo que é exposto é a própria
indistinção do mundo e da imagem.
A televisão requalifica na base do tempo não cronológico (como dizia Bergson)
as diferenças entre espaço e tempo, entre o público e o privado, entre o individual e o
coletivo.
Depois de Auschwitz, foi a própria televisão que destruiu o público-massa.
Socialização da percepção e individualização da recepção andam de mãos dadas. As
redes digitais levam à destruição final do público massa, já que introduzem uma
reversibilidade entre autor e público, entre produção e recepção (consumo), que torna
altamente produtivas estas funções.
A recepção acontece na distração porque efetivamente não existe mais um lugar
onde se pode contemplar, ou melhor, para dizer a mesma coisa de um outro modo, a
distração tornou-se a própria forma da percepção. Assim, o que pode ser a atenção à
imagem quando esta é indistinguível do objeto que deveria descrever?
O cinema pós 1945 representou perfeitamente (e antecipou) esta nova dimensão,
nos mostrando uma imagem direta do tempo, onde não se pode mais distinguir entre o
atual e o virtual. Mas com a televisão não se trata mais de uma representação: a própria
televisão é uma imagem direta do tempo. “A tecnologia vídeo é o tempo”. O cinema é
apenas um sintoma (importante) desta nova situação. O cinema é uma aventura da
percepção, mas a televisão é uma aventura do tempo.

9.

119
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

A televisão nos faz colocar o problema em outros termos: não se trata mais de
imagens que representam o mundo, mas de imagens que são constitutivas dele. A
função representativa da imagem-vídeo nos é colocada pela televisão como dispositivo
de poder.
Dessa forma, é inútil procurar as imagens e os locais onde se podem vê-las,
porque com as imagens é necessário construir situações, eventos, formas de vida.
Insistir na visibilidade (ou melhor, na não visibilidade) das imagens-vídeo é um falso
problema que nos leva sempre ao cinema. Precisamos recuperar a aventura da
percepção, que certamente foi uma experiência importante para a humanidade, mas
inseri-la nesta nova dimensão. E inseri-la significa criar algo de novo, também para o
cinema.
A imagem-vídeo é uma imagem tátil, uma imagem sobre a qual intervir, ao invés
de somente ver. As condições coletivas da percepção-recepção nos levam, segundo
Benjamin, à experiência da arquitetura, onde somos familiarizados pelo hábito,
enquanto pela experiência da pintura, somos familiarizados pela contemplação. Assim,
a propósito da televisão, poderíamos falar de uma arquitetura temporal. Como habitar o
tempo, como nos habituar às novas temporalidades e como, a partir destes novos
hábitos, construir outras dimensões espaço-temporais?
O dispositivo vídeo não serve somente para ver (como queria sua raiz
etimológica), mas para criar situações, para intervir no acontecimento. Ele precisa de
uma resposta, requer a atividade do espectador, senão, como disse um dos nossos
artistas, nem mesmo teria começado a existir. De fato, o que existiu foi a televisão e não
a tecnologia do vídeo. A passividade à qual o dispositivo de poder da televisão nos
forçou é diretamente proporcional à atividade que a ontologia da tecnologia vídeo
suscita: a imagem que está se formando, a situação que se está criando, a subjetividade
que se está criando, ou seja, em uma palavra, o tempo não cronológico. Assim, toda
essa ontologia da tecnologia do vídeo e da atividade do espectador reaparecem com o
computador e as redes digitais: da passividade à atividade, do isolamento à
hipercomunicação de todos com todos, da separação entre produção e recepção à
integração de ambas. A visibilidade da imagem é integrada na própria operação do
computador: não se é mais apenas espectador, mas agente.

10.
Maurizio Lazzarato

A utilização visual-passiva do espectador televisivo, a redução de todas as


virtualidades da televisão como instrumento de recepção unilateral, administram tudo
aquilo que tem de ser aludido ao regime de temporalidade que dominava o fordismo: a
subordinação do tempo-potência ao tempo-medida. É esta temporalidade que comanda a
capacidade de produzir e reproduzir o tempo real pela televisão. Toda ontologia da
tecnologia do vídeo é selecionada e subordinada ao tempo-medida e à sua organização7.
O emergir de outras temporalidades sociais (depois de 1968) colocou em evidência
outras virtualidades do dispositivo tecnológico, que se desenvolveram além da
televisão, em um outro meio: as tecnologias digitais8.
Mas continuamos a utilizar Benjamin como guia nestas passagens. Benjamin nos
diz que o cinema e o taylorismo (a rede de montagem e a rede de imagens montadas)
são quase contemporâneas. O taylorismo foi interpretado por Benjamin como um
processo que “tira” a experiência do trabalhador (o ofício, a cooperação, o poder que
sobre estes se constituía). O trabalho é reduzido a uma série de movimentos a serem
feitos segundo regras bem definidas. O trabalhador não deve agir, mas reagir. O
consumidor, representado por Benjamin através do “jogador”, é colocado nas mesmas
relações de estímulo-reação. Poder-se-ia dizer que o fordismo queria reduzir o homem
aos seus modelos senso-motores: o corpo mudo da fábrica foucaltiana9. O tipo de
atividade à qual o trabalhador é constrangido é representada por Benjamin através do
“teste” de realizar movimentos codificados sob a supervisão de um grupo de
especialistas ou de uma máquina, que os mede. O cinema é a experiência do teste que,
sempre frente a uma máquina, reproduz e mede em massa ações e comportamentos10.
Mas o trabalho fala, como diz Benjamin, e acima de tudo recusa. Recusa a
divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, rebela-se no tocante à
separação/expropriação das funções intelectuais, comunicativas, linguísticas e à sua
redução a modelos senso-motores. A recusa do trabalho é a recusa desta condição, que

7
Guattari demonstrou (através o exemplo do Concorde), a pluralidade dos componentes que entram em
jogo na realização de um dispositivo tecnológico e a importância dos componentes econômicos e
políticos.
8
Não se trata de uma substituição, mas sempre de uma dominação que integra os outros dispositivos
tecnológicos e suas virtualidades.
9
Deleuze define, com um conceito geral, a imagem do cinema entre as duas guerras como “imagem-
movimento”, “imagem-ação”.
10
Mas o cinema, como a mercadoria, apresenta um duplo caráter: “Já que é sob o controle dos
dispositivos tecnológicos que a maior parte dos habitantes da cidade, nos escritórios como nas fábricas,
devem abdicar, durante o dia de trabalho, a humanidade deles. À noite, essa mesma massa enche as salas
de cinema para assistir à vingança que o seu ator realiza, não somente afirmando sua própria humanidade
no aparelho, mas colocando este último a serviço do seu triunfo”.

121
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

deve ser interpretada como recusa do desdobramento do tempo “qualquer” do


capitalismo em tempo-medida e tempo-potência e como negação da subordinação do
último ao primeiro. O capital procura integrar essa recusa. O grande desenvolvimento
das redes televisivas e digitais aconteceu quando esta recusa foi inteiramente
consumada (depois de 1968), quando o tempo se liberou de toda subordinação e se
mostrou como fonte da produção enquanto tempo “qualquer”, além da separação de
tempo de trabalho e tempo de vida. Deste ponto de vista, a indistinção de atual e virtual
nos leva à indistinção e à recíproca implicação entre trabalho manual e trabalho
intelectual, entre a memória automática (senso-motora) e a memória inteligente
(trabalho intelectual) que caracteriza o pós-fordismo.
A emergência desta nova temporalidade11 requalificou, de uma nova maneira, a
indistinção entre atual e virtual (e o seu circuito) que a televisão anteriormente nos
mostrou seu funcionamento em nível social. A indistinção entre o atual e o virtual, entre
o real e o imaginário, entre a coisa e a imagem, teve o efeito, sob a regência do tempo-
medida, de impedir e neutralizar as potências (produtivas) de criação. O circuito atual-
virtual, subordinado na televisão à temporalidade fordista, tornou-se um novo
fechamento do tempo. Agora não mais como a roda perfeita do “passado absoluto”, mas
a roda encantada do girar ao infinito, do estéril reflexo da imagem e da coisa.
Mas a emergência do tempo-potência, a sua insubordinação ao tempo-medida,
rompe o encantamento deste infinito preso, quebra o cristal do reflexo contínuo do atual
e do virtual e realiza as condições para que o circuito torne-se a fonte de uma
“imprevisível criação de novidade”. Os dispositivos digitais são a tradução tecnológica
desta passagem porque tornam produtivo o circuito do atual e do virtual e constituem as
condições de saída do círculo vicioso de sua recíproca pressuposição e contemplação.
Os dispositivos digitais não se limitam a duplicar o mundo com as imagens (a
televisão), mas definem uma nova materialidade e uma nova espiritualidade através a
produção/reprodução do sensível e do inteligível. Mostram que a origem da
subjetividade e da matéria e também do fabricar e do criar estão no tempo, e que as suas
respectivas diferenças (de grau e não de natureza) são modulações, solidificações,
costumes do tempo. Redefinem, na base do “monismo temporal”, as diferenças entre
matéria e espírito, subjetivo e objetivo, tempo e espaço. Um novo poder de metamorfose

11
É evidente que esta temporalidade livre define somente um novo terreno de lutas.
Maurizio Lazzarato

e de criação é colocado à nossa disposição. Novas formas de subjetividade e de


materialidade são possíveis.
Que o mundo seja “tempo”, estas tecnologias o interpretam não segundo uma
uniformidade de valor, mas segundo a contínua possibilidade de criação que o
constituir-se do tempo não cronológico carrega consigo.
A sorte dos pós-modernos, o exercício ideológico deles foi o seguinte: terem
ressaltado a esterilidade do circuito atual-virtual exatamente no momento em que
começava a mostrar toda sua potência. Descoberto o espetáculo, quando estávamos
entrando em uma nova dimensão, ao invés de indicar um novo terreno de combate, as
novas correntes seduziram e fascinaram com as suas teorias a respeito do
desaparecimento do mundo. A situação, no entanto, é totalmente diversa. Não existe
mais, como no caso de Benjamin (no fordismo), um dispositivo tecnológico para a
produção coletiva e um outro dispositivo tecnológico para a percepção coletiva. Existe,
sim, somente um dispositivo (as tecnologias digitais) com as quais percebemos e
trabalhamos, e cuja matéria não é o tempo de trabalho, mas o tempo enquanto si
mesmo. Não existe mais a separação entre produção e recepção, porque o mesmo
dispositivo pode contemporaneamente fazer ambas as coisas. E também a separação
entre fabricar e criar é completamente redefinida.
Todas as qualificações da percepção coletiva que encontramos em Benjamin são
aqui atualizadas na base do tempo-potência, que lhes confere novo valor no sentido da
criação e da atividade.
Duas observações se fazem necessárias para que se eliminem as ambiguidades e
para que não pairem dúvidas sobre o nosso discurso: 1) Que não exista mais distinção
não quer dizer que tenhamos entrado no reino do “indiferenciado”, mas que temos
necessidade agora de um outro fundamento para definir as diferenças de um fundamento
temporal. Trabalho intelectual e trabalho manual, tempo de trabalho e tempo de vida,
imagem e coisa, real e imaginário, tempo e espaço, todos esses binômios não
desaparecem, mas recebem uma nova qualificação quando do emergir do tempo-
potência. É o tempo não cronológico que os distribui dentro de uma nova natureza, que
os rende reversíveis, menos rígidos, mais moduláveis; é o tempo que se mostra
diretamente como fonte, como origem das diferenças, as quais são de grau e não de
natureza, funcionais e não objetivas. A ética deveria estar na base das suas
determinações porque ela aumenta o grau de liberdade e de escolha, como vimos com
Bergson (liberação da maldita “necessidade”, que representa o trabalho, para falar em

123
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

termos marxianos). 2) Estamos somente descrevendo a ontologia das condições da


produção-percepção na época do general intellect. Isto não quer dizer que não possam
existir novas divisões (aliás, já são produzidas), mas que estas divisões, com uma nova
natureza, aludem à ética ou ao poder.

11.
Como reconquistar a singularidade e como sair da indistinção entre atual e
virtual, da reversibilidade pós-fordista do trabalho material e do intelectual, da
reversibilidade finalizada da acumulação capitalista do tempo de trabalho e tempo de
vida? Como tornar destrutiva/criativa esta relação?
Acompanhando aquilo que temos dito até agora, o real não desapareceu, mas
tornou-se mais temporal (mais artificial); o social não é já constituído, já dado, mas
deve cada vez cristalizar-se. O real e o social devem ser cada vez inventados e criados.
As máquinas que cristalizam o tempo têm um papel estratégico, sendo um terreno de
combate fundamental porque no interior desta indeterminação, dentro deste tempo ainda
não-realizado, são elas as condições tecnológicas da co-produção do real e da
subjetividade. O real e a subjetividade encontram nas máquinas que cristalizam o tempo
um novo poder de metamorfose, de modulação, de criação. Aqui as condições da
percepção e do trabalho coletivo, nas suas trocas e pressuposições recíprocas, são as
condições da criação do mundo.
Na época do general intellect, a oposição entre a arte e o coletivo, a qual deveria
se apropriar das novas formas da percepção-trabalho para verificá-las em um processo
de criação da subjetividade e do real, parece não acontecer fortemente. A potência, que
o circuito do atual e do virtual manifesta, deve, uma vez desconexa de sua subordinação
ao tempo-medida, determinar os processos de singularização, de reterritorialização que
a economia da informação oculta. E a força de singularização das relações estéticas, que
são sempre invenções de novos mundos, podem se tornar o paradigma sobre o qual se
pode medir a nova produção. Mas estas relações devem ser verificadas e confrontadas
com as novas condições de produção da percepção coletiva e do trabalho, com sua
indistinção-reversibilidade. Confrontá-los e verifica-los nas condições coletivas da
percepção-trabalho significa criar os dispositivos que tornam possível que as instâncias
individuais ou coletivas estejam em posição de emergir como novos territórios
existenciais. “Somente o controle das relações coletivas da produção de subjetividade
permite a invenção de relações singulares”. A necessidade benjaminiana de resolver
Maurizio Lazzarato

coletivamente os desafios lançados pela socialização do trabalho e da percepção


reaparece nesta afirmação de Guattari. Mas aqui o “coletivo”, na medida em que se
socializa (até incluir o tempo como seu tecido constitutivo), se individualiza, se
singulariza. O público-massa é atomizado em “minorias” e não mais encontra a sua
humanidade no conceito de classe geral e totalizante.
O elemento coletivo que deveria fazer a revolução/desintegração da massa e do
público foi além dos desejos de Benjamin.
A mudança na função da arte, largamente antecipada pela tecnologia do vídeo e
consolidada com as tecnologias digitais, poderia reassumir uma outra afirmação de
Guattari, em que a arte “não deve somente contar histórias, mas criar dispositivos pelos
quais a história possa se fazer”. As práticas estéticas se tornam, assim, altamente
produtivas, como podemos verificar na economia da informação, porque aqui também a
distinção entre arte e vida, entre arte e trabalho tende a perder o seu caráter unilateral,
como previu Benjamin.
E terminamos como começamos, com o desejo nietzschiano de ver a emergência
de um novo tipo de barbárie, uma barbárie para a qual o tempo-potência abre um terreno
de ação imensurável com o tempo que se foi, tempo perdido. Nietzsche via a condição
ótima para a emergência da barbárie na crise dos regimes socialistas que se constituíram
no projeto do devir-massa, do devir-proletariado do mundo (a mesma crise dos regimes
comunistas, que caíram com o muro de Berlim). Benjamin nos diz que o tempo-
potência que estamos vivendo é uma das condições para a criação de um novo tipo de
barbárie.

Barbárie? Exatamente. Nós afirmamos desta forma para introduzir um novo


tipo de barbárie. O que o bárbaro da pobreza da experiência é obrigado a
fazer? A começar de novo, a começar do novo [...] não vê nada de duradouro.
Mas exatamente por isso vê sempre caminhos novos [...] E já que por todos
os lados vê caminhos novos, ele está sempre diante de um cruzamento.
Nenhum momento pode saber o que o próximo momento tem. Destruir o
existente não por amor das ruínas, mas porque a vida passa através dele (do
existente)12.

A atualização da virtualidade bárbara do tempo-potência é o projeto da luta de


classe sem classe do pós-fordismo.

12
Trata-se de uma montagem de duas citações extraídas de dois relatos breves de Walter Benjamin: Der
destruktive Charakter e Erfahrung und Armut [Experiência e Pobreza].

125
BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA

Maurizio Lazzarato é sociólogo francês do trabalho pós-fordista e filósofo, autor de


vários livros, entre os quais As revoluções do capitalismo (traduzido pela Record, na
coleção “Políticas do Império”, 2006) e O governo do homem indebitado.

Tradutor: Gustavo Bissoto Gumiero – mestrando em Sociologia (IFCH - Unicamp)


gustavo.gumiero@hotmail.com | Tel: (19) 993322774
Orientador – Prof. Dr. Sílvio César Camargo

Referências

BACHTIN, M. Epos e romanzo. In: Problemi di teoria del romanzo. Torino: Einaudi,
1976.

BENJAMIN, W. Ecrits français. Paris: Gallimard, 1991.


___. Petite histoire de la photographie. Paris: Essai I. Denoel, 1982.

BERGSON, H. Oeuvres. Paris: PUF, 1959.


Navegações
Proteção social e trabalho no Brasil em tempos de capitalismo cognitivo

Cecília Paiva Neto Cavalcanti

Introdução

Considerando a intrínseca relação entre proteção social e trabalho, este ensaio


se propõe a desenvolver uma análise da proteção social hoje no contexto brasileiro a
partir da sua vinculação com o trabalho. Tal vinculação se estabelece historicamente por
ser a necessária reprodução da força de trabalho no processo de desenvolvimento do
capitalismo, a gênese que comanda as políticas sociais, as quais exercem funções
políticas, econômicas e ideológicas para manutenção da ordem vigente. Sendo
dialeticamente contraditórias, constituindo-se em espaços e instrumentos,
simultaneamente, de proteção e controle social, as políticas sociais surgem e se
desenvolvem como decorrentes da condição de assalariamento, na qual os direitos se
circunscrevem-se no campo dos direitos do trabalho, se estabelecendo uma forte e
problemática associação entre cidadania e trabalho.
Com a crise contemporânea que se inicia nos anos 1970 e as estratégias de
reordenamento do sistema capitalista que se seguem para restauração do poder de
classe, mudanças profundas atingem o chamado mundo do trabalho, levando à
necessária, e consequente, reconfiguração da proteção social. Portanto, para uma melhor
apreensão do atual padrão de proteção requerido, das funções que as políticas sociais
vêm exercendo no presente estágio da acumulação capitalista, se considera
indispensável compreender a organização do trabalho hoje e as formas vigentes de uso e
gestão da força de trabalho, sendo este o objetivo deste ensaio que pretende refletir
sobre a relação proteção social e trabalho na contemporaneidade no contexto brasileiro,
questões que estarão sendo abordadas na primeira seção. Na segunda, o ensaio traz
alguns cenários alternativos que vem sendo alvo de debates e de instrumentos de lutas e
resistências por parte de movimentos e segmentos da sociedade (como acadêmicos,
trabalhadores, sindicalistas, formuladores de políticas públicas e ativistas) que tendem a
confrontar os processos políticos e econômicos hegemônicos.
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

1. A nova centralidade do trabalho e a conformação das relações de trabalho e de


proteção social no contexto brasileiro

A noção de Seguridade Social, sobre a qual se alicerçou o welfare state nos


países centrais no período pós II Guerra Mundial, se funda no pensamento Keynesiano e
sua junção com o modelo produtivo fordista, na qual a inclusão nos direitos é
consequência da integração na relação salarial (COCCO, 2012), promovendo um acesso
hierarquizado à proteção social pela condição de assalariado. Sendo assim, a realização
da Seguridade Social tem por fragilidade a dependência do pleno emprego e de
contratos estáveis e permanentes de trabalho, assim como a universalização dos direitos
sociais está condicionada à universalização do direito ao trabalho. Eis aí a associação
problemática entre trabalho e cidadania, sobretudo, quando a forma salarial na
organização do trabalho hoje, apresenta-se tendente à dissolução.
O processo de restauração do capitalismo, que se inicia nos anos 1970
conduzido pelo ideário neoliberal, traz como imperativo a desoneração do capital
viabilizada através da reforma fiscal (redução de impostos sobre os rendimentos mais
altos e sobre as rendas) e trabalhista, esta última visando não somente a diminuir o
chamado “custo trabalho”, como também por introduzir os novos mecanismos políticos
de controle e subordinação dos trabalhadores, o que requer a desregulamentação do
mercado de trabalho através da flexibilização das relações de trabalho, particularmente
no que se refere à contratação, demissão e remuneração da força de trabalho, e da
reprivatização do controle do uso da mão-de-obra em detrimento do Estado e dos
sindicatos.
No Brasil, a desregulamentação do mercado de trabalho 1 é conduzida
inicialmente pelo governo de Fernando Henrique Cardoso que, através da revisão na
legislação que define o contrato de trabalho por tempo determinado e da
regulamentação do trabalho a tempo parcial, ambas leis de 1998, alteram as formas de
contratação e de demissão dos trabalhadores, flexibilizando-as. A resultante desse
processo, na análise do economista Márcio Pochmann (2007), é uma intensa
flexibilização no mercado de trabalho, levando a uma pulverização de contratações,
existindo, atualmente, mais de 15 tipos de contrato, onde para cada três trabalhadores
ocupados, apenas um possui proteção legal, trabalhista, no seu contrato de trabalho.

1
Na análise de Pochmann (2007), a reforma trabalhista no Brasil foi realizada via mercado.

129
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

Indo nessa direção, no mesmo ano, a Lei 9.601/982 que institui o banco de
horas, vem tanto a estender a jornada e intensificar o trabalho 3, como flexibilizar a
remuneração da força de trabalho, posteriormente aprofundada com a Lei 10.101/2000
que regulamenta a participação nos lucros ou resultados, instituída no inciso XI do
artigo 7º da Constituição Federal4, estabelecendo uma espécie de salários por tarefa,
uma vez que corresponde a uma remuneração com valor condicionado a metas a serem
cumpridas em determinado prazo, em que fator tempo e fator produção são
contabilizados no cálculo da remuneração (PINA, 2012). A vinculação do bônus a
metas e indicadores que levam em conta volume de produção, qualidade (redução do
retrabalho e do refugo de materiais) e absenteísmo, impõe, simultaneamente, aos
trabalhadores, a cobrança por não se afastar do trabalho e pela qualidade, sendo esta
colidente com o prazo (PINA, 2012). Cumpre salientar que o controle (coletivo e/ou
individual) e a redução do absenteísmo são um imperativo do atual modelo produtivo
em que os processos produtivos encontram-se externalizados e desterritorializados e as
empresas operam com um número ajustado de trabalhadores.
A flexibilização, operada pela desregulamentação do mercado de trabalho,
responde pela sua precarização que, por sua vez, como dito inicialmente, não cumpre
apenas com a função econômica de redução de custos para recuperação das taxas de
lucro, como também, e principalmente, por estabelecer os novos mecanismos de
controle e subordinação do trabalho, cuja centralidade encontra-se ancorada no imaterial
e no conhecimento, imaterialidade essa que se define pelo trabalho difuso cognitivo
realizado através da cooperação produtiva operada fora do espaço da empresa que além
de produzir objetos, produz informação, conhecimento, serviços, valores. Nesse
processo, o trabalho vivo se torna produtivo antes e fora da relação de capital (COCCO,
2012) e o controle sobre esse trabalho difuso e baseado no conhecimento que delega ao
trabalho uma crescente autonomia na organização da produção, mesmo que restrita, só é
possível se baseado na precariedade.
Como afirma Vercellone (2011), a precariedade é, em grande medida, “um
fator estrutural da regulação neoliberal do trabalho cognitivo, apesar de seus efeitos

2
A Lei estabelece que a jornada de trabalho diária pode ser ampliada em até duas horas, sem acréscimo
no salário, ou reduzida, e, as horas a mais ou a menos trabalhadas, são computadas como positivas ou
negativas no banco de horas para futura compensação, sendo que o banco de horas deve ser objeto de
acordo ou convenção coletiva de trabalho entre trabalhadores e empregadores. Em 2001, a Medida
Provisória 2.164-41 vem a estender o período para a compensação das horas de 120 dias para 1 ano.
3
Para um aprofundamento sobre “redução-reorganização” do tempo de trabalho, vide Pina (2012).
4
Anteriormente regulamentado pela Medida Provisória 794 de 29 de dezembro de 1994.
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

contraproducentes no que concerne a uma gestão eficaz da economia do conhecimento.”


(p. 133). É onde Gorz (2005) percebe a “novidade revolucionária” desse estágio da
acumulação que mais destrói do que cria valor ou, nas palavras de Cocco (2012), “o
capitalismo cognitvo não tem como reproduzir-se sem ‘estragar’ a própria mecânica de
geração de valor” (p. 43).
Assim, só é possível aplicar as atividades da economia baseada no
conhecimento a custo de insustentáveis desigualdades (VERCELLONE, 2011).
Desigualdades essas que se expressam nas formas predominantes da organização desse
trabalho difuso, ou seja, na precariedade, na informalidade, na terceirização, no qual o
trabalho se torna atividades de serviços (COCCO, 2012), e, portanto, contratado não
mais dentro da relação salarial, mas comercial, remunerado através do salário por peça,
salário por tarefa, e se descola do emprego, que, por sua vez, vira empregabilidade.
Os mecanismos de controle e subordinação do trabalho não se restringem ao
campo das relações de trabalho, se realizam também através das políticas sociais, das
funções políticas e ideológicas que exercem. Sendo assim, as reformas não alcançam só
o mercado de trabalho, a proteção social também precisa se adequar aos tempos do
capitalismo cognitivo e do trabalho reconfigurado. A atual ordem econômica mundial
impõe uma nova divisão sócio-técnica, alterando as relações entre Estado, mercado e
sociedade, exigindo um recuo do primeiro para viabilizar a mercantilização dos bens e
serviços sociais, cuja provisão havia se tornado função dos welfare states. A
“acumulação por desapropriação”, assim denominada por Harvey (2004), em curso, que
privatiza direitos comuns de propriedade (água, território etc.), que extrai dinheiro das
populações de baixa renda através das patentes de direitos (medicamentos, sementes
etc.), transforma bens fundamentais, como educação e atenção à saúde, em mercadorias,
como formas predatórias, entre tantas outras, de desapropriação como mecanismo de
acumulação de riqueza em tempos de lento crescimento econômico (HARVEY, 2004).
Assim, no Governo FHC, através da reforma do Estado, um novo marco
regulatório é instituído para viabilizar a comercialização dos bens e serviços sociais, de
um lado, e, do outro, redirecionar a ação estatal nos segmentos tidos mais vulneráveis,
“os que precisam”. Assim, a Seguridade Social, que começava a se ensaiar pela primeira
vez no país com o advento da Constituição de 1988, tem a sua materialização
comprometida pela aplicação das políticas neoliberais. Novas modalidades de gestão,
ancoradas nas parcerias público-privado, são criadas, como as Organizações Sociais
(OSs), em 1998, as Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIPs), em

131
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

1999, as Parcerias Público Privado, em 2004, e as Fundações Estatais, em 2007, estas


duas últimas já no Governo de Luís Inácio Lula da Silva, rompendo com o princípio da
prerrogativa do Estado. Não menos sutis do que a criação dessas entidades, que
implicam na privatização da gestão/execução dos serviços sociais, em paralelo se
avança com esse processo através do incentivo à demanda pelos serviços privados,
como assistimos na previdência que, através da reforma previdenciária, particularmente
a Emenda Constitucional 41/2003, que decreta o fim da aposentadoria integral para o
serviço público, e a Emenda Constitucional 47/2005, que estabelece novas regras para a
aposentadoria integral para os ingressantes antes de 1998, culminando, em 2012, com a
Lei 12.618 que institui o Regime de Previdência Complementar aos servidores públicos
federais, converte a aposentadoria em “fundos de pensão”. Da mesma forma, a saúde se
torna “plano” e a educação vira “bolsa”.
Mercantilizados os bens e serviços sociais, o Estado deve se ater, então, aos
pobres. Pautada pela concepção difundida pelo Banco Mundial, por sua vez sustentada
no conceito de capacidade humana, a pobreza passa a ser compreendida como privação
de capacidades, que acarreta a diminuição do potencial do indivíduo em auferir renda. A
partir deste entendimento, o enfrentamento à pobreza através da intervenção do Estado
deve se dar de modo a aumentar as liberdades por meio da expansão das capacidades
humanas dos pobres (UGÁ, 2004). Esta compreensão, que passa a ser difundida depois
de 2000, denominada por Vianna (2008) de concepção liberal revisitada para distinguir
da orientação anterior, a qual ela se refere como concepção liberal por excelência, ou
seja, a corrente minimalista que conduziu as reformas nos anos 1980, passa a postular a
coexistência de políticas universais com as focalizadas, desde que as primeiras venham
a contribuir para a ampliação das oportunidades, uma vez que aqui o conceito de
igualdade se pauta não pela igualdade de resultados, mas de oportunidades. Assim,
políticas universais são aceitáveis, mas somente aquelas que “propiciam igualdade de
oportunidades para o exercício da liberdade, como educação fundamental e atenção
básica à saúde” (VIANNA, 2008, p. 135)
É assim que se observa que a educação brasileira atualmente apresenta o ensino
fundamental universalizado em termos de vagas, mas sem qualidade ou sequer
continuidade, pois, segundo o Censo 2010 do IBGE, apenas 55% dos brasileiros
completam o ensino fundamental e 35% o médio. A saúde tem nos Programas Saúde da
Família (PSF) e Agentes Comunitários (PAC) os núcleos estratégicos para sua
reorganização, em substituição à rede de atenção básica tradicional, orientados pelo
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

conceito do “novo universalismo”, ou seja, cobertura para todos, mas não de tudo. Tais
iniciativas promovem um reordenamento do sistema de saúde dentro da lógica da
assistencialização, aqui entendida sucintamente como práticas pautadas numa
concepção restrita de proteção focalizada nos segmentos mais pobres e vulneráveis. E as
ações “educativas” dos agentes comunitários recordam as práticas higienistas do início
do século XX, que transferiam para a população a responsabilidade por sua saúde, sem
o correspondente investimento em políticas de saneamento e urbanização
(CAVALCANTI e TEIXEIRA, 2012, p. 7 e 8). Tais práticas remetem ao aprendizado
do autocuidado com a saúde, que juntamente com o aumento da escolaridade, o acesso à
renda e ao crédito, para complementar a renda (insuficiente) do trabalho (precarizado) e,
claro, saber lidar com a renda, “constituem os ativos primordiais que equalizam os
indivíduos” (VIANNA, 2008, p. 135).
Desse modo se desenha o atual padrão de proteção social minimalista
brasileiro, no qual a proteção pela assistência social ganha centralidade, num duplo
movimento em que, simultaneamente, as mudanças nas relações de trabalho e na
legislação trabalhista, acarretam na “desproteção” pelo trabalho. Empreendedorismo e
assistencialismo condicionado, via programas de transferência de renda com
condicionalidades, estas últimas como mecanismos de
empoderamento/empresariamento, constituem-se nas chamadas políticas sociais de nova
geração (VIANNA, 2008).
Dentro dessa lógica, se percebe que o enfrentamento à pobreza e ao
desemprego tem ênfase na empregabilidade, coerente com o novo tipo de trabalho -
convertido em atividades de serviço, e de trabalhador - que se torna prestador de
serviços, empreendedor da gestão da sua força de trabalho, logo, responsável pela
manutenção da sua empregabilidade.
Para além dessa noção de empregabilidade empobrecedora, acontece que a
dimensão cognitiva e comunicativa do imaterial é exatamente o conteúdo dessa
empregabilidade, o que significa que se tornar cidadão, ter acesso a bens (telefone,
computador com internet etc.) e serviços (educação, esporte, lazer, cultura etc.), é
condição para se tornar produtivo, pois é esta bagagem cultural adquirida nas diversas
atividades humanas cotidianas fora do trabalho que permite ao trabalhador desenvolver
a sua vivacidade, sua capacidade de improvisação, de criação, de cooperação, enfim,
habilidades, conhecimentos e saberes requeridos pelo novo modelo produtivo (GORZ,
2005).

133
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

É neste sentido que Cocco (2012) afirma que


o capitalismo global, articulado entre finanças e redes, não é excludente, mas
altamente inclusivo... o tipo de “inclusão” não depende mais do fato de ser ou
não mobilizado e explorado, mas do tipo de direitos prévios aos quais
teremos acesso como população em geral e não como camadas específicas de
proletariado destinado a vender sua força de trabalho. (p.52)
Isso implica promover uma inversão na lógica de como se constituíram os
direitos no capitalismo industrial, em que ao invés da inserção nos direitos ser
consequência da integração na relação salarial, a cidadania se torna condição prévia
para tornar-se produtivo (COCCO, 2012). A questão é como se garantir direitos num
contexto em que os mecanismos de controle e subordinação do trabalho difuso
cognitivo se baseiam justamente na precariedade conformando um padrão de proteção
social minimalista? Na próxima seção, desenvolveremos algumas reflexões em torno
desta questão trazendo alguns cenários e perspectivas que despontam no meio do debate
acadêmico e nas agendas públicas.

2. Por uma garantia de renda existencial

Vercellone (2011) discorda da hipótese sustentada por alguns estudiosos de que


a atual crise possa levar a um novo compromisso capital/trabalho, um New Deal, capaz
de compatibilizar capitalismo cognitivo e economia do conhecimento, oferecendo, desse
modo, uma solução, simultaneamente, para os desequilíbrios inerentes à desigualdade
na distribuição de renda, à tendência ao subconsumo e à instabilidade das finanças. Para
o autor,
...um possível reforço das proteções do welfare e de novos mecanismos de
distribuição de renda que reduzam substancialmente o vínculo monetário da
relação salarial levaria o capital a um risco maior: o de desestabilizar
profundamente os próprios mecanismos de controle e subordinação do
trabalho cognitivo baseados na precariedade (p. 142).
Como possível cenário, o autor vislumbra a perspectiva da construção de um
modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo a partir das lutas sociais “por meio
de uma longa guerra de posição” (p. 144) e que se sustentaria em dois eixos: a) da
reconquista democrática das instituições de welfare, cuja dinâmica associativa e de
auto-organização do trabalho se basearia “no primado do não mercantil e da produção
do homem pelo homem” (p. 144) e b) constituição de uma renda social garantida,
“resultante não da redistribuição, mas da afirmação do caráter cada vez mais coletivo da
produção do valor e de riqueza.” (p. 145).
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

Essa perspectiva, também compartilhada por autores como Antônio Negri,


Cocco, Gorz, se ancora na compreensão de que no atual modelo produtivo, baseado no
conhecimento e na produção difusa e cooperativa, a produção do valor capturado pelas
empresas, não se restringe ao que é gerado durante a jornada oficial, mas se estende pela
totalidade do tempo social através de uma atividade que guarda uma crescente dimensão
coletiva na criação de valor, originando uma diversidade de trabalhos não reconhecidos
e não remunerados, que fogem ao conceito de trabalho produtivo, que, na economia
política, é denominado como aquele que cria lucro e participa na formação de valor
(VERCELLONE, 2011).
A garantia de uma renda universal, incondicional e suficiente, seria uma
espécie de salário social como mecanismo de distribuição de uma parcela do que é
produzido coletivamente, direta ou indiretamente, cuja contribuição individual, se antes
já não era possível mensurar, hoje o é menos ainda (GORZ, 2005).
A defesa de uma renda nesses moldes emerge e vem sendo tecida e
amadurecida por diversos acadêmicos, sindicalistas, políticos, ativistas, desde o pós-
crise de 1970. Em 1984 um grupo de pesquisadores e sindicalistas ligados à
Universidade de Louvain na Bélgica apresenta uma sinopse, assinada como Coletivo
Charles Fourier, intitulada “A renda básica de cidadania” num concurso sobre o futuro
do trabalho organizado pela Fundação Rei Balduíno. O trabalho é premiado e com o
recurso ganho o grupo organiza um colóquio, realizado em 1986, em Louvain-la-Neuve,
ocasião em que deliberam pela realização de um congresso a cada dois anos, a criação
de um boletim informativo e fundam uma rede denominada BIEN (Basic Income
European Network)5 ambicionando a constituição de uma associação mais permanente,
com o objetivo de publicar ensaios e organizar encontros regulares. Em 2004, durante a
realização de um dos seus congressos internacionais ocorrido em Barcelona, ao se
constatar a progressiva participação de pessoas de países não europeus, se decide por
ampliar a rede convertendo o “E”, inicialmente de European, para Earth (terra),
passando a rede a ser denominada de Basic Income Earth Network (VAN PARIJS e
VANDERBORGHT, 2006).
Aqui no Brasil temos no senador Eduardo Suplicy um dos seus integrantes e
principal propagador da garantia da renda básica como instrumento de redistribuição do
produto social e de justiça. Inclusive, podemos também creditar a ele a introdução do

5
Em português, Rede Europeia da Renda Básica.

135
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

debate sobre mínimos sociais no país que emerge com a apresentação de um projeto de
lei, em 1991, que propunha uma espécie de imposto de renda negativo, sob a forma de
renda complementar, destinada às pessoas com mais de 25 anos e com renda abaixo de
um patamar. Posteriormente, ao tomar conhecimento da BIEN e nela se integrar,
Suplicy reformula sua proposta se aproximando dessa concepção de renda passando a
incorporar a defesa de uma renda universal e incondicional e que, para garantir a sua
aprovação, foi proposta ser implementada em etapas, priorizando-se as camadas mais
necessitadas da população, aprovada em 08 de janeiro de 2004, através da Lei
10.835/2004. Ironicamente, no dia seguinte, é aprovada e instituída a Lei 10.836/2004
que cria o Programa Bolsa Família, cujo desenho de transferência de renda segue outra
perspectiva afinada com as políticas neoliberais.
Em matéria recente publicada em 17/07/2014 no Uol notícias6, o senador
Suplicy, ao retornar do 15° Congresso da BIEN, divulgou que pretende a instituição de
um grupo de trabalho interministerial para propor a evolução do Bolsa Família na
Renda Básica de Cidadania em direção ao cumprimento da Lei que a instituiu no Brasil.
Desse modo, o debate em torno da garantia de uma renda, que não é recente,
nem enquanto ideia, já presente no pensamento de Thomas More no início do século
XVI, nem enquanto experiência, cuja mais antiga e famosa que se tem notícia é a do
Sistema de abonos ou Speenhamland, que prevaleceu na Inglaterra entre 1795 a 1834,
reaparece com a crise de 1970 só que com um elemento novo,
A atual reivindicação de uma renda de existência não tem, por consequência,
muito em comum com suas formas anteriores, que reclamam uma
redistribuição socioestatal da produção de valor. A maioria de seus
defensores contemporâneos refere-se à capacidade dessa reivindicação unir
um vasto espectro de forças sociais em uma perspectiva anti-capitalista
(GORZ, 2005, p. 72, grifo nosso).
Independente do trabalho e concebida não como um agregado de bem-estar, a
luta por uma renda básica de cidadania, ou uma renda existencial ou renda social
garantida, seja o nome que for, é transgressora da ética capitalista do trabalho e é
valorizada por aqueles que reconhecem, agora mais ainda, “numa economia que gera
cada vez mais mercadorias com cada vez menos trabalho produtivo remunerado”
(GORZ, 2005, p. 72), a impossibilidade de se garantir, pela via do emprego, da
ocupação, o direito à renda, ao pleno exercício da cidadania, ao usufruto da riqueza
socialmente produzida.

6
Disponível em
file:///H:/Pesquisa/Artigo%20PBF%20deve%20se%20transformar%20em%20programa%20de%20renda
%20b%C3%A1sica.htm. Data do acesso 25/07/14.
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

A reivindicação por sua garantia mostra-se ainda com forte potencial


aglutinador de várias lutas, desde os movimentos de proteção ambiental, de defesa da
agroecologia, da saúde, particularmente, no campo das relações saúde e trabalho, aos
sem terra, sem teto, desempregados, informais, aos usuários da assistência social, ou
seja, de diversas forças sociais progressistas na direção da ultrapassagem do próprio
capitalismo que, no seu atual estágio, conforme Gorz (2005), traz gestada uma crise
estrutural que, em determinado momento, pode transitar da crise do modelo de
acumulação para uma crise mais geral que leve à crise do próprio modo de produção.
Portanto, a luta pela distribuição de renda, desassociada da relação salarial, se
torna o terreno que estabelece a fronteira entre uma “inclusão excludente” - já que a
economia baseada no conhecimento mobiliza a todos e a todos explora e precariza,
mantendo informalizados os que assim estavam no mercado de trabalho, e, para os
inseridos na relação salarial, estende a precarização como mecanismo de gestão e uso da
força de trabalho, e uma mobilização baseada na produção de novos direitos, no âmbito
do direito do comum7 (COCCO, 2012).
Na defesa pela renda de existência, Gorz (2005) identifica duas interpretações,
por vezes, nos mesmos autores. Numa a defesa se dá a partir da concepção de trabalho e
produção de valor (social) fora da esfera mercantil e, na outra, que, contrariamente,
reivindica a remuneração do tempo livre como contribuição necessária à produtividade
do trabalho, logo, traz consigo uma armadilha, já que ao fazer a leitura de que a vida
inteira se tornou produtiva como produção de capital humano, incorporando a noção de
empregabilidade, rebaixa toda a produção de si em trabalho econômico.
A Renda de Existência só tem sentido de um ‘ataque contra o valor trabalho’
(Combes e Aspe) se não exige e nem remunera nada, sua função, ao
contrário, é restringir a esfera da criação de valor no sentido econômico
(GORZ, 2005, p. 27).
3. Conclusão

Nas atuais formas de uso e gestão da força de trabalho, baseadas na precariedade


como forma de regulação de um trabalho que se dá antes e fora da relação de capital
com cada vez mais autonomia na organização da produção, observa-se um recuo no
campo dos direitos trabalhistas, esfera em que se circunscreveu historicamente a
cidadania. A essa desproteção pelo trabalho assiste-se o avanço da proteção assistencial

7
“O direito do comum é um novo tipo de direito: aquele que atualiza o comum como condição prévia, ou
seja, aquilo que nós conseguimos produzir, inclusive graças às nossas diferenças, para continuarmos a
produzir juntos.” (Cocco, 2012, p. 53).

137
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

que cumpre a função, juntamente com a popularização do crédito, de complementar a


renda insuficiente do trabalho e, desse modo, garantir, simultaneamente, o consumo ou
a chamada demanda efetiva, e o investimento e gestão da força de trabalho em seu
capital humano enquanto “vendedora”, “prestadora” de serviços, estando, portanto,
sempre em condições “empregáveis”.
Desse modo, as ações de geração de trabalho e renda, que visem converter o
trabalhador em empreendedor, e o assistencialismo condicionado, tornam-se os pilares
do padrão de proteção social requerido pelo atual estágio da acumulação capitalista com
ênfase na empregabilidade. Associando o desemprego tanto à ausência de informação,
quanto à inadaptação e falta de habilidades específicas dos trabalhadores,
responsabilizando os próprios desempregados pela sua situação, quando muito, ao mau
funcionamento do mercado, a solução repousa, então, nas políticas de formação, via
qualificação profissional, e informação, que aproxima o trabalhador da vaga disponível
no mercado de trabalho, via intermediação de mão-de-obra, ou lhe oferece o
microcrédito produtivo, sendo o empreendedorismo o foco destas ações. A ênfase no
empreendedorismo apresenta um duplo enfoque, pois tanto viabiliza as novas formas de
trabalho externalizadas e desterritorializadas, portanto, induzindo a flexibilização das
relações de trabalho, quando servem para prover o meio de sustento para os
trabalhadores de baixa renda.
Do mesmo modo, as condicionalidades do Programa Bolsa Família, ainda que
não voltadas diretamente para a promoção do auto-emprego, ao fomentarem a educação,
básica, e a saúde, básica, o fazem dentro da premissa da empregabilidade, de tornar
esse segmento de baixa renda empregável.
Contudo, dentro deste cenário surgem críticos que ao perceberem a
impossibilidade de se manter os tradicionais mecanismos de inclusão social pela via da
relação salarial e mesmo da sua inadequação com relação à forma como se organiza o
trabalho hoje e da necessidade de se garantir uma existência social que nem de longe se
esgota na relação ocupacional, vem ganhando cada dia mais adeptos a defesa por uma
renda suficiente, universal e incondicional com potencial de aglutinar lutas e
movimentos sociais em prol de um modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo
ao hegemônico. Tal mecanismo pode efetivamente levar a emancipação do trabalho da
esfera da produção do valor e da mais-valia, permitindo à força de trabalho recompor e
fortalecer o poder de negociação do preço e das condições de trabalho na luta contra a
precariedade. Promove também a emancipação da renda assistencial que impõe aos seus
Cecília Paiva Neto Cavalcanti

assistidos cumprir condicionalidades e aceitar o acompanhamento familiar feito por


profissionais da assistência, com seus instrumentos “invasivos” e “autoritários” (visita
domiciliar, recadastramentos constantes, atestado de frequência escolar e caderneta de
vacinação dos filhos atualizada, assistir palestras denominadas socioeducativas etc.). No
longo prazo, o horizonte é transgredir a lógica mercantil do trabalho subordinado para
uma outra economia baseada nas formas de cooperação não mercantis.

Cecília Paiva Neto Cavalcanti é Graduada em Serviço Social pela Escola de Serviço
Social/UFRJ, mestra em Engenharia de Produção pela Coordenação de Programas em
Engenharia de Produção (COPPE)/UFRJ e doutora em Serviço Social pela Escola de
Serviço Social/UFRJ. Atualmente é professora associada da Escola de Serviço Social da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, onde coordena o Laboratório de Estudos em
Política Social na América Latina (LePSaL).

Referências

CAVALCANTI, Cecília P. N. e TEIXEIRA, Regina C. P. “As Políticas Sociais do


Estado Brasileiro Hoje: contenção da pobreza e dos pobres”. IV Seminário Internacional
Direitos Humanos, Violência e Pobreza: a situação de crianças e adolescentes na
América Latina. Rio de Janeiro, PROEAL/UERJ, novembro de 2012.

COCCO, Giuseppe. Trabalho e cidadania: produção e direitos na era da globalização.


São Paulo: Cortez, 2012, 3ª edição.

GORZ, André. O imaterial: conhecimento, valor e capital. São Paulo: Annablume,


2005.

HARVEY, David. “Neoliberalismo e restauração do poder de classe”. Publicado em


agosto de 2004. Disponível em
http://resistir.info/varios/neoliberalismo_ago04_port.html. Acesso em 19/08/2010.

POCHMANN, Márcio. “Há uma transformação no mundo do trabalho, que veio para
ficar”. IHU On-Line (Revista do Instituto Humanitas Unisinos), no 216. São Leopoldo,
23 de abril de 2007.

PINA, José Augusto. Intensificação do trabalho e saúde dos trabalhadores na indústria


automobilística: estudo de caso na Mercedes Benz do Brasil, São Bernardo do Campo.
Tese de doutoramento, Rio de Janeiro, ENSP/Fiocruz, 2012.

UGÁ, Vivian Domínguez. “A categoria ‘pobreza’ nas formulações de política social do


Banco Mundial”. In: Revista de Sociologia e Política nº 23. Curitiba: novembro de
2004.

139
PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE CAPITALISMO COGNITIVO

VAN PARIJS, Philippe e VANDERBORGHT, Yannick. Renda Básica de Cidadania.


Argumentos éticos e econômicos. Editora Record, 2006.

VERCELLONE, Carlo. "A crise da lei do valor e o tornar-se rentista do lucro". In:
Fumagalli, Andrea e Mezzadra, Sandro (Orgs.). A crise da economia global. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2011.

VIANNA, Maria Lúcia T. W. “A nova política social no Brasil: uma prática acima de
qualquer suspeita teórica?”. Revista Praia Vermelha: estudos de política e teoria social,
no. 18. Rio de Janeiro: PPGSS/UFRJ, 2008.
Um, múltiplo, multiplicidade(s)1

Alain Badiou

1.
Acreditávamos que tínhamos sido claros. Mas como somos interrogados
novamente sobre este ponto, reiteramos em que consiste a importância singular, para
nós, da obra de Deleuze. Ele não contribuiu em nada ao tema hegemônico do fim da
filosofia, nem à sua versão patética que o enoda ao destino do Ser, nem ainda à sua
versão benévola que o enoda à lógica do juízo. Nem hermenêutica, nem analítica: já é
demais. Por conseguinte, ele teve a empresa de corajosamente construir uma metafísica
contemporânea, e inventou para ela uma genealogia completamente original, genealogia
na qual filosofia e história da filosofia são indiscerníveis.
Ele desenvolveu, como um “caso” inaugural de sua vontade, as produções de
pensamento mais incontestáveis de nosso tempo, e de alguns outros. Fez mostrar, assim
fazendo, um discernimento e uma acuidade sem equivalentes entre os seus
contemporâneos, particularmente no que concerne à prosa, ao cinema, a certos aspectos
da ciência, e também à experimentação política. Isso porque foi um progressista, um
rebelde aposentado, um suporte irônico dos movimentos mais radicais. É também por
essa mesma razão que ele se opôs aos “novos filósofos”, permanecendo fiel à sua visão
do marxismo, não concordando em nada com a sutil restauração da moral e do “debate
democrático”. Essas são virtudes raras.
Ele foi o primeiro que entendeu perfeitamente que uma metafísica
contemporânea é necessariamente uma teoria das multiplicidades e uma apreensão das
singularidades. Enodou essa exigência àquela de uma crítica das formas mais tortuosas
da transcendência. Viu que não se poderia acabar com o que há de sempre religioso na
interpretação do sentido que impõe a univocidade do Ser. Determinou claramente que
fazer uma verdade do ser unívoco exigiria que se pensasse o advento do acontecimento.
Esse considerável programa é também o nosso. Evidentemente, pensamos que
ele não o conduziu até o fim, que o levou a uma direção oposta àquela pela qual

1
Este artigo foi inicialmente publicado em francês, sob o título Un, multiple, multiplicité(s), na revista
Multitudes: revue politique, artistique, philosophique, em março de 2000. Agradecemos ao autor pela
gentileza com que prontamente autorizou a presente tradução, colocando-se à disposição para eventuais
dúvidas no processo de tradução e no trabalho de interpretação do texto. (N. do trad.)
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

pensamos deveria ter levado. Senão, seriamente aderiríamos aos seus conceitos e às suas
orientações de pensamento.
O litígio pode ser dito de muitas maneiras. Poder-se-ia entrar nele por questões
inéditas, por exemplo: como é possível que a política, para Deleuze, não seja um
pensamento autônomo, um lance singular no caos, diferentemente da arte, da ciência e
da filosofia? Esse ponto apenas atestaria a nossa divergência, e todo o restante viria com
ele. Contudo, o mais simples é partir do que nos separa até o ponto de nossa maior
proximidade: os requisitos de uma metafísica do múltiplo. É também aí que os nossos
críticos dão os gritos mais penetrantes. Ou antes, mais sufocantes, pois a tese de uma
quase-mística do Um permanece para eles, literamente, engasgada na garganta. Na
verdade, eles parecem ter lido os enunciados primordiais (sobre o Um, a ascese, ou a
univocidade), sem ter examinado a sua composição e a especificidade de sua colocação
à prova.
Mas eles estão realmente trabalhando com o Eterno retorno, a Relação, o
Virtual, a Dobra? Isso não é evidente. É verdade também que parecem crer, ao contrário
de seu Mestre, que se pode discutir tudo isso ignorando com soberba o pensamento de
quem eles atacam. Aí estão eles, desde logo, acuados em procedimentos de imprecisão,
tornando-se, ademais, eles mesmos superficiais e inexatos, para lembrar aquilo que os
Acadêmicos escrevem sobre as obras de Deleuze concernentes à Espinosa ou à
Nietzsche. Se nossos críticos pretendem demonstrar, como o deveriam a partir da
doutrina que herdam do discurso indireto livre, que o que dizemos sobre Deleuze é
homogênio a O ser e o acontecimento, precisaria ainda, como Deleuze pelo menos o
tenta, definir a sua especificidade. Haveria, então, um pouco mais e um pouco melhor
do que uma defesa e uma ilustração da ortodoxia textual. Aproximar-se-ia dos jogos
inerentes à tensão filosófica do final do século passado2.
Em todo caso, de nada serve argumentar contra quem quer que seja que, por
exemplo, a oposição entre o Um e o Múltiplo seja “fingida”, e opor a isso, como se se
tratasse da última verdadeira invenção da Vida, um terceiro conceito, por exemplo, o de
multiplicidades, sustentando supostamente a inconciliável “riqueza” do movimento do
pensamento, da experimentação da imanência, da qualidade do virtual ou da velocidade
infinita da intuição. Esse terrorismo vitalista, do qual Nietzsche deu a versão

2
As referências de datação ao longo do texto foram adaptadas ao momento da tradução e da publicação
da versão em português. (N. do trad.)
Alain Badiou

santificada, e Bergson, como o nota muito justamente Guy Lardreau, a variante polida
burguesa, nós o julgamos pueril.
Antes porque ele toma por consensual a norma a que se deveria examinar e
fundar: que o movimento é superior à imobilidade, a vida ao conceito, o tempo ao
espaço, a criação ao incriado, o desejo à falta, o aberto ao fechado, a afirmação à
negação, a diferença à identidade etc. Há nessas “certezas” latentes, que organizam a
estilística metafórica e peremptória das exigências vitalistas e anticategoriais, um tipo
de demagogia especulativa, que tem por motor se endereçar, em cada caso, à sua
inquietude animal, aos seus desejos embaraçados, a tudo aquilo que corre sem direção
sobre a superfície desolada do mundo.
Em seguida e sobretudo, porque nenhuma filosofia “interessante” (para adotar a
linguagem normativa de Deleuze), por mais abruptamente conceitual e antiempirista
que seja, nunca consentiu em se estabelecer no interior das oposições categoriais
herdadas, e, nesse sentido, os filósofos vitalistas não têm nenhum tipo de especificidade
a se valorar. Platão institui um processo simultâneo do devir-múltiplo (no Teeteto) e do
Um-imóvel (no Parmênides), cuja radicalidade ainda não foi superada. O motivo pelo
qual o pensamento deve se estabelecer sempre num para além das oposições categoriais,
e traçar nelas uma diagonal sem precedente, é constitutivo da filosofia mesma. Toda a
questão é de saber qual é o custo dos operadores do traço diagonal e a que espaço
desconhecido eles convocam o pensamento.
Desse ponto de vista, falar, como eu o faço com detalhes, de um dispositivo
político, que a diagonal conceitual que ele inventa, para além da oposição categorial do
Um e do Múltiplo, está a serviço de uma intuição renovada da potência do Um – como é
manifestadamente o caso dos estoicos, de Espinosa, de Nietzsche, de Bergson e de
Deleuze –, não corresponde em nada a uma “crítica” em relação a qual seria preciso
energicamente apressar-se em “refutar” a fim de preservar não sei que ortodoxia da
invenção diagonal ela mesma. Todas essas filosofias, por meio de operações de grande
complexidade, às quais importa a cada caso fazer justiça, sustentam que a intuição
efetiva do Um (a que se pode chamar o Todo, a Substância, a Vida, o corpo sem órgãos,
ou o Caos) é aquela da potência criativa imanente ou aquela do eterno retorno da
potência diferenciante como tal. O que está jogo na filosofia é, desde então, conforme a
máxima de Espinosa, pensar adequadamente o maior número de coisas singulares
possíveis (vertendo no “empirismo” de Deleuze, nas sínteses disjuntivas ou no
“pequeno circuito”), a fim de pensar adequadamente a Substância ou o Um (vertendo no

143
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

“transcendental”, ou na Relação, ou no “grande circuito” de Deleuze). É na exata


medida em que há esse jogo que os dispositivos de pensamento são as filosofias. Elas
não serão apenas fenomenologias mais ou menos vividas, tampouco aquilo que é em
vão e indefinidamente recomeçado. Ao que me parece a maioria de seus discípulos quer
reduzi-las.
Se se trata de filosofia (cremos estar entre os primeiros, senão o primeiro, a ter
tratado Deleuze como filósofo), falar dela não significa repeti-la, como se se estivesse
sob o constrangimento subjetivo da lealdade ou do academicismo. Falar dela
verdadeiramente retorna como sendo avaliar, numa disposição ela mesma inventiva ou
liberada à sua própria potência, os operadores diagonais que um dispositivo metafísico
nos propõe. A questão não é, portanto, de modo algum saber se as “multiplicidades” são
tidas para além da oposição categorial do Um (como transcendência) e do Múltiplo
(como dado empírico). Não se trata aí senão de uma evidência trivial quanto ao que
constitui o projeto metafísico de Deleuze. O que se trata de avaliar, a propósito da
promessa que se vincula ao conceito de multiplicidade e que se orienta segundo uma
intuição vital do Um, segundo uma fidelidade do pensamento à “potente vida
inorgânica” ou ao impessoal, é a densidade intrínseca desse conceito e a sua aptidão
para sustentar, por um pensamento cujo próprio movimento vem de outro lugar, o
anúncio filosófico que ele carrega.
Ora, a construção desse conceito é, aos nossos olhos, marcada (é sua filiação
bergsoniana patente) por uma desconstrução prévia: aquela do conceito de conjunto. A
didática deleuziana das multiplicidades é de ponta a ponta (e sobre esse aspecto crucial
não vejo nenhuma espécie de cesura entre Diferença e repetição e os textos filosóficos
bastante detalhados que se encontram nos dois volumes sobre o cinema) uma polêmica
contra os conjuntos, exatamente como o conteúdo qualitativo da intuição de duração em
Bergson é identificável apenas a partir do descrédito que se deve dar ao valor
quantitativo puramente espacial do tempo cronológico.
A partir disso, nós gostaríamos de esboçar a demonstração de três teses:
a) O que Deleuze nomeia “conjunto”, ao que ele contrapõe o que identifica
como sendo multiplicidades, não faz senão repetir as determinações tradicionais da
multiplicidade exterior ou analítica, e ignora, de fato, a extraordinária dialética imanente
pela qual a matemática dotou esse conceito a partir do final do século XIX. Desse ponto
de vista, a construção experimental das multiplicidades é anacrônica, porque é pré-
cantoriana.
Alain Badiou

b) Quanto à densidade do conceito de multiplicidade, ela permanece inferior,


inclusive por suas determinações qualitativas, em relação ao conceito de Múltiplo que
se tira da história contemporânea dos conjuntos.
c) É em razão dessa decalagem (na qual um dos componentes é uma
interpretação “pobre” de Riemann) que é impossível subtrair as multiplicidades de sua
reabsorção equívoca no Um e conseguir chegar, como desdobramos o pensamento, a
uma determinação unívoca do múltiplo-sem-um.

2.
O modo próprio segundo o qual a “multiplicidade” é tida para além da oposição
categorial do Um e do Múltiplo é do tipo intervalar. Queremos dizer que é o jogo em
devir de no mínimo duas figuras disjuntivas que autoriza sozinho o pensamento de uma
multiplicidade. É assim que se recusa toda transcendência, tomando experimentalmente
as coisas “pelo meio”. No entanto, vê-se facialmente que esse “meio” é, na realidade, o
meio da própria oposição categorial. Pois uma multiplicidade é, na realidade, aquilo
que, apesar de apreendido por um número, será dito conjunto e, apesar de permanecer
“aberto” à sua própria potência ou apreendido pelo Um vital, será dito multiplicidade
efetiva. Conceitualmente reconstruída, a multiplicidade está em tensão entre duas
formas do Um: aquela que enfatiza o cálculo, o número, o conjunto, e aquela que
enfatiza a vida, a criação, a diferenciação. A norma dessa tensão, que é o verdadeiro
operador conceitual, é emprestada de Bergson: a multiplicidade apreendida por um
número será dita “fechada” e apreendida pelo Um vital será dita “aberta”. Toda
multiplicidade é a efetuação conjunta do fechado e do aberto, mas seu ser-múltiplo
“verdadeiro” está do lado do aberto, igualmente como, para Bergson, o ser autêntico do
tempo está do lado da duração qualitativa ou igualmente como a essência do lance de
dados deve se buscada no único Lançar primordial, e não no resultado numérico afixado
sobre os dados imóveis.
Ora, a destinação do conjunto ao fechado e, portanto, à unidade numérica,
enfatiza um pensamento limitado de conjunto, que só permite a sua pretendida “ênfase”
pela abertura diferenciante da vida. Pois intuído, desde Cantor, como múltiplo dos
múltiplos, sem qualquer ponto de chegada senão o vazio, igualando em si mesmo o
infinito e o finito, assegurando que toda multiplicidade é imanente e homogênea, o
conjunto não saberá ser destinado nem ao número, nem ao fechado.

145
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

Consagramos um livro inteiro (o Número e os números) para estabelecer que


longe de o conjunto ser reduzido ao número, ele é, ao contrário do número e mesmo de
uma inumerável infinidade de tipos de números (a maioria ainda não estudados), o que
suporia, para ser apreendida pelo conceito, uma doação preliminar da ontologia dos
conjuntos. O número é uma pequena parte específica do ser-múltiplo tal como se dá a
pensar na axiomática conjuntiva, que é, na realidade, a ontologia racional mesma. É por
não querer assumir esse ponto e por manter a todo custo, contra a evidência, que todo
conjunto é um número que resulta um trecho bastante estranho 3, consagrado, em O que
é a filosofia?, ao nosso livro O ser e o acontecimento. Nada mostra melhor; querer se
servir como filtro, a propósito de uma filosofia que assume Cantor em suas condições,
da lógica normativa do fechado e do aberto não produz senão opacidade.
Pois o conjunto é de maneira exemplar o que não é pensável senão quando se
coloca inteiramente de lado a oposição do fechado e do aberto, pela razão máxima de
que é apenas a partir do conceito indeterminado de conjunto que essa oposição tem um
sentido aceitável. Pode-se mesmo dizer que o conjunto é essa neutralidade-múltipla
originalmente subtraída tanto da abertura quanto do fechamento, mas que é ainda assim
capaz de sustentar essa oposição.
Sabe-se, com efeito, que a respeito de um conjunto qualquer é possível definir
numerosas topologias. Ora, o que é uma topologia? É muito precisamente a fixação de
um conceito de aberto (ou de fechado). Mas, no lugar de essa fixação confiar
empiricamente na intuição dinâmica, como no fato, com consequências paradoxais, que
enfatizamos em nosso Deleuze, da orientação vitalista, ela opera, como a falta em todo
processo fidedigno a um princípio de imanência, pela determinação de efeitos
relacionais de abertura (ou de fechamento). Substancialmente, um conceito de Aberto é
fixado assim que se tem um determinado múltiplo, residindo na intersecção de dois
elementos ou na união de tantos elementos quanto se quiser (inclusive, uma infinidade).

3
Dizemos “estranho” e não totalmente falso ou inexato. Não enfatizamos aí qualquer imprecisão,
somente uma torção estranha, um ângulo de visão impraticável, que faz com que não possamos
compreender do que se trata (contrariamente a nossos escritos sobre Deleuze, que os críticos declaram
não compreender senão muito bem, suspeitando ser essa clareza precisamente um fato tortuoso da
miraculosa e indefinida sutileza dos textos. Colocamos, com efeito, que a filosofia, certamente sob a pena
da dificuldade, deve evitar toda profundidade obscura. Pois, para quem se interdita o virtual, nada é
profundo). Assim, consideramos essa nota, na qual saudamos a evidente intenção amigável e atenta como
uma peça enigmática (existem outras, evidentemente) do dispositivo de Deleuze concernente às
multiplicidades. E nos alegramos pela ocasião que ele nos deu. Se alguém puder me esclarecer esse
fragmento, e sua relação real com O ser e o acontecimento, estarei contente. É um verdadeiro convite,
desprovido de toda ironia.
Alain Badiou

Ou ainda: a intersecção de dois abertos é um aberto e uma união qualquer de


abertos permanece aberta. Quanto ao fechado, ele nunca é mais do que o duplo do
aberto, seu complemento, seu avesso. Suas propriedades relacionais simetrizam aquelas
do aberto: a união de dois conjuntos fechados é fechada e a intersecção de tantos
fechados quanto se quiser permanece fechada. O fechado também reside, e isso segundo
outras vias imanentes para além daquelas do aberto.
É somente desse ponto do “residir”, dessa persistência do “aí” de um ser-aí
múltiplo que sustenta operativamente a sua imanência, que se esclarece uma
propriedade fundamental dos conjuntos abertos, a qual Deleuze identifica (sem razão) à
sua “ausência de partes”, e, portanto, à sua singularidade qualitativa ou intensiva. A
saber, que os “pontos” de um aberto são parcialmente inseparáveis ou indesignáveis,
porque o aberto está na vizinhança de cada um de seus pontos. Pelo que um conjunto
aberto provoca topologicamente um tipo de coalescência daquilo que o constitui.
Que o aberto reenvie a um “residir” não é nem um pouco paradoxal (há a
propósito desse reenvio fortes intuições de Heidegger). Se a abertura efetua, em sua
construção mesma, uma localização sem fora (o que reitera que o aberto “localiza”,
enquanto vizinhança, todos os seus pontos), é porque “aberto” é uma determinação
intrínseca do múltiplo, que se trata bem de uma construção imanente. Não poderia ser
diferente mesmo para Deleuze, porque é sempre a outra coisa para além de sua
efetividade que o aberto está aberto, nomeadamente à potência inorgânica, pela qual ele
é uma atualização móvel. Se não, reenviado à sua pura potência interna de localização,
ele seria, para Deleuze, um conjunto fechado. Além do mais, porque é preciso que esteja
aberto ao seu próprio ser que o aberto vitalista não é pensável, por fim, senão como
virtualidade. O aberto conjuntivo ou ontológico está ele mesmo inteiramente na
atualidade de sua própria determinação, esgotando-se aí univocamente.
Definitivamente, a construção topológica dos abertos, sobre o fundo de uma ontologia
conjuntiva, demonstra que o conjunto tomado como tal não é de maneira alguma uma
imagem do fechado, sendo indiferente à dualidade do fechado e do aberto; e que, assim
concebido, o pensamento do aberto é inteiramente fiel a um princípio de imanência e de
univocidade que detém a multiplicidade vitalista, sob a pena, tão cerrada que seja, de
apontar equivocamente para a abertura da qual ela é um modo.

3.

147
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

Diremos pois que a capacidade descritiva da dialética aberto/fechado, tal como


sustenta o conceito de multiplicidade(s), faz justiça ao devir, às singularidades, às
criações, à diversidade inesgotável do sensível e da vida? Que é propriamente anátema
ler aí um tipo de monotonia fenomenológica? E que nada na teoria pós-cantoriana do
múltiplo puro pode ser equivalente a essa capacidade descritiva? Que é preciso antes ver
aí uma vingança categorial da identidade sobre a diferença?
Achamos que é totalmente o contrário, pelo menos por três razões:
a) A matemática tem isto de particular, que ela é sempre mais rica em
determinações surpreendentes do que qualquer dado empírico. Do senso comum (aliás,
totalmente estranho à Deleuze) vem o tema recorrente da “pobreza abstrata” da
matemática, oposto à luminosa surpresa do “concreto”. Na realidade, a matemática
revela-se apta, simultaneamente, a dar esquemas adequados à experiência e a
decepcionar essa experiência por invenções que nenhuma intuição pode aceitar.
Tomemos um exemplo simples: a noção empírica de “atrito”, de toque
superficial, de contato quase idêntico ao não-contato, e mesmo de carícia leve, é
certamente pensada no interior daquela de tangência, de aproximação infinitesimal num
ponto, aquela que, desde os gregos, supõe um esforço ascético do pensamento em
direção ao conceito de derivada de uma função. Pode-se dizer (muito grosseiramente)
que sendo dada a curva que representa uma função, se essa função é derivável a partir
do valor de seu argumento, existirá uma tangente à curva no ponto que representa esse
valor. Pode-se, portanto, sustentar que as noções conjuntas de curvatura e de contato,
num ponto apenas dessa curvatura, circulam intuitivamente no interior dos conceitos de
função contínua (a curva) e de derivada num ponto (tangente). Esse exemplo é
escolhido a partir do que é bastante deleuziano e, aliás, bem conhecido por ele.
Curvaturas, contatos, bifurcações, linha de fuga (uma tangente toca a curva e foge para
longe dela), diferenciação, limite, são constantes em suas descrições. Mas eis que no
século XIX descobre-se que existem funções contínuas que não são deriváveis em ponto
algum. Tentem imaginar uma curva contínua tal que seja impossível uma reta a “tocar”
em um ponto... Melhor ainda: demonstra-se que essas funções, subtraídas de toda
intuição empírica, propriamente irrepresentáveis, são “mais numerosas” do que aquelas
que governam até então o pensamento matemático. Caso particular de uma lei geral: por
todo lugar onde a matemática está próxima da experiência, seguindo até o fim seu
próprio movimento, ela descobre um caso “patológico” que desafia absolutamente sua
intuição inicial, depois ela estabelece que esse patológico é a regra e que o intuitivo não
Alain Badiou

é senão uma exceção. Por onde se descobre que, enquanto pensamento do ser enquanto
tal, a matemática não cessa de se afastar de seu ponto de partida, este tomado como ente
local disponível ou como efetividade contingente.
Daí resulta, em particular, que a propósito das multiplicidades “rizomáticas”, as
quais servem de caso para Deleuze (a matilha, o enxame, as raízes, os entrelaçados etc.),
o recurso à teoria dos conjuntos em configurações diversas é de uma prodigalidade e de
uma complexidade incomparável, que autoriza que se apreenda o mais distante. A
construção (por exemplo) de um subconjunto genérico de um conjunto particular
ordenado não somente supera em violência, como um caso do pensamento, qualquer
que seja o esquema empírico rizomático, mas, estabelecendo o que são as condições de
uma “neutralidade” de um múltiplo de uma só vez dispersivo e coordenado, subsume,
na realidade, a ontologia desses esquemas. É por isso que, na elaboração de uma teoria
do múltiplo, a regra (platônica: que ninguém entra aqui se não for geômetra) segue, de
início, as construções conceituais matemáticas, as quais, sabemos, excedem em toda
parte qualquer que seja o caso empírico, já que é do recurso mesmo do múltiplo que se
trata. Que zona da experiência poderia conceder, outro exemplo, uma ramificação do
conceito de infinito tão densa quanto aquela que pensa os cardeais inacessíveis,
compactos, inefáveis, mensuráveis de Malho, de Ramsey, de Rowbotton, enormes, e
assim por diante? Logo, quando se fala pobremente de um percurso do pensamento
“com velocidade infinita”, perguntar-se-á: de que infinito você fala? O que é essa
unidade suposta do infinito, lá onde aprendemos que existe não apenas uma infinidade
de infinitos diferentes, mas uma hierarquia infinitamente ramificada e complexa de tipos
de infinito?
Sabemos – e fazemos isso como um elogio – que Deleuze não tem nenhum
desprezo pelos matemáticos, e que ele utiliza, como recurso do pensamento filosófico, o
cálculo diferencial ou os espaços de Riemann. Mas esses exemplos deveriam, se não
fossem retrabalhados no contexto criptodialético do fechado e do aberto, entrar em
contradição com a doutrina vitalista das multiplicidades.
Sobre esse ponto o caso de Riemann é significativo. Ele conquista Deleuze
porque complexifica de modo genial a intuição elementar do espaço e fornece uma
máquina de guerra contra a concepção unilateralmente extensiva ou estendida de tipo
cartesiana ou ainda kantiana. Riemann fala, com efeito, de espaços “multiplicadamente
estendidos”, de variedades, e antecipa a noção moderna de espaço funcional. Ele
autoriza os desenvolvimentos de Deleuze a respeito do caráter folhado do plano de

149
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

imanência e de uma concepção não-partitiva das localizações. É verdade que Riemann


generaliza para além de toda intuição empírica o conceito de espaço, ao menos de três
maneiras: admite a consideração de espaços de n dimensões, e não somente de no
máximo três dimensões; procura pensar as relações de posição, forma, vizinhança,
independentemente de toda métrica e, portanto, de modo “qualitativo”, sem a ajuda do
número; imagina que se possam tomar como componentes de espaços não somente os
elementos ou os pontos, mas as funções, de sorte que o espaço seria “povoado” por
variações antes que por entidades. Assim fazendo, Riemann abre um domínio imenso,
sobre o qual trabalha sem cessar, aos métodos “geométricos”. Cria, em suma, uma
geometria generalizada. Ora, o pensamento vitalista de Deleuze combina com essa
geometrização multidimensional, com essa doutrina de variações locais, com essa
orientação qualitativa de territórios.
Apenas é absolutamente claro que as antecipações fulminantes de Riemann
exigiriam, para a concretização de seu programa, um quadro de pensamento
inteiramente subtraído das limitações da intuição empírica e que a “geometria”,
portanto, tratasse de devidamente apreender não as configurações empiricamente
comprováveis, fossem elas bifurcadas ou dobradas, mas os múltiplos neutros,
desprendidos em seu ser de toda conotação espacial ou temporal, nem fechados, nem
abertos, infiguráveis, liberados de toda oposição imediata entre o quantitativo e o
qualitativo. É por isso que essas antecipações não se tornaram o corpo mesmo da
matemática moderna senão com Dedekind e Cantor, que conseguiram matematizar, sob
o nome de conjunto, o múltiplo puro, arrancado de toda figura preliminar do Um,
subtraído desse farrapo da experiência onde residem os pretensos “objetos” da
matemática (números e figuras) e a partir do qual se podem definir e estudar, inclusive
sob o nome de espaços, as configurações multidimensionais mais paradoxais. Levando
Riemann ao estatuto de paradigma anticartesiano e de pensador das multiplicidades
qualitativas, Deleuze falta com a ontologia subjacente de sua invenção, ontologia que,
por uma inconsequência marcante, ele destitui, submetendo-a à alternativa indecidível,
mas normativa, do fechado e do aberto.
Riemann não é de forma alguma uma passagem do múltiplo (oposto ao Um) às
multiplicidades. É uma passagem do que subsiste da potência empírica do Um (na
modalidade da experiência de “objetos” matemáticos) ao múltiplo-sem-um, o qual, com
efeito, pode acolher indiferentemente números, pontos, funções, figuras ou lugares, já
que não prescreve aquilo de que é composto. A potência do pensamento de Riemann é
Alain Badiou

de total neutralização da diferença. A interpretação de Deleuze, que vê aí uma


complexificação móvel da ideia de plano, não é inexata, mas não vai até as verdadeiras
determinações metafísicas de seu paradigma.
b) É recorrente, em Deleuze, sustentar que as multiplicidades, diferentemente
dos conjuntos, não contêm “partes”. Está claro, para nós, que a oposição que ele realiza
em relação aos conjuntos se faz sob o signo do Um. Decerto, vemos que se trata de
salvar a singularidade qualitativa e a potência vital ligada a ela, mas não cremos que se
possa consegui-lo por essa via. Para dizer a verdade, é totalmente o contrário: o excesso
imanente que “anima” um conjunto, e o fato de que o múltiplo é interiormente marcado
pela indecidibilidade, resulta diretamente que ele não apenas contém os elementos, mas
também as partes.
É um grande ponto de fraqueza para toda uma teoria de multiplicidades não
distinguir os elementos (o que o múltiplo apresenta ou compõe) de suas partes (o que é,
no múltiplo, representado por um submúltiplo). Já o enunciado de que as
multiplicidades não contêm partes não diferencia dois tipos de imanência, duas formas
fundamentais de ser-aí, que a teoria dos conjuntos destaca tão logo distingue o
pertencimento (elementar) da inclusão (partilhada). Ora, a relação entre essas duas
formas é a chave de todo pensamento do múltiplo; sua ignorância apenas pode subtrair a
filosofia de uma de suas mais exigentes condições contemporâneas.
No final do século 19, Cantor, com efeito, demonstrou que a potência do
conjunto das partes de um conjunto (e, portanto, do que é sustentado pela imanência de
tipo inclusivo) levaria necessariamente vantagem sobre a potência do conjunto ele
mesmo (e, portanto, do que é sustentado pela imanência de tipo elementar). Isso
significa que existe um excesso ontológico da representação sobre a apresentação. Há
quarenta e cinco anos, Cohen demonstrou que esse excesso seria inassimilável. Dito de
outra maneira, que nenhuma medida poderia ela mesma ser prescrita, de modo que ela
seria como um excesso errante do conjunto sobre ele mesmo. Não há que se procurar no
Todo o grande animal cósmico ou o caos, o princípio do excesso-sobre-si de um
múltiplo puro: ele é dedutível de uma in-coesão interna entre os dois tipos de imanência.
Não há que se procurar no virtual o princípio de indeterminação ou de indecidibilidade
que afeta toda atualização. É atualmente que todo múltiplo é assombrado por um
excesso de potência que ninguém pode calcular, senão, uma decisão, sempre aleatória e
dada em seus efeitos...

151
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

É muito certo que a experiência deve a cada vez redeterminar o excesso


imanente. Por exemplo, decidir o que está em excesso da potência do Estado (no sentido
político) sobre a apresentação comum (o pensamento das pessoas) é um componente
essencial de toda política singular: se você decide que o excesso é muito fraco, prepara
uma insurreição; se você pensa que ele é muito forte, instaura-se numa ideia de “longa
marcha” etc. Mas essas determinações singulares não revelam nada além de uma
descrição filosófica, pois elas mesmas são interiores às efetuações de verdades
(políticas, artísticas etc.). O que, ao contrário, é filosófico é afastar todo empirismo
especulativo e designar a forma dessas determinações segundo o seu fundamento
genérico: a teoria do múltiplo puro. Desse ponto de vista, os operadores “concretos” do
tipo vitalista que, finalmente, reenviam a positividade do Aberto a um criacionismo
imanente, cujo fundamento é a prodigalidade caótica do Um, são obstáculos, e não
apoios. O concreto é mais abstrato que o abstrato.
c) A riqueza do empírico é com bastante justiça tratada por Deleuze como
riqueza de problemas. Que a relação do virtual com o atual tenha como paradigma
aquele do problema e de sua solução (e não aquele do possível e de sua realização) me
parece uma das forças do método deleuziano. Mas disso resulta a falsidade de uma
máxima que, no entanto, Deleuze pratica e transmite: que se deve partir de qualquer que
seja o caso concreto, e não dos casos “importantes” ou da história do problema. Se se
tomar a noção de problema pelo seu lugar de origem, que é a matemática, vê-se
rapidamente que a consideração de um caso qualquer interdita todo o acesso aos
problemas que têm potência, àqueles cuja solução importa ao devir conjunto do
pensamento e do que ele pensa. Galois dizia que o que produzia um problema era ler
seus textos sem se dar conta de seus precedentes: é aí que residiria o jazigo dos
problemas.
Em falta com essa lógica dos precedentes, que seleciona duramente os
pensamentos produtivos, a prodigalidade do empírico se torna um tipo de peso arbitrário
e estéril. Pois se substitui o problema por uma pura e simples verificação.
Filosoficamente, a verificação é sempre possível. Fomos, em nossa juventude, dessa
escola: depois de Sartre, sabíamos transformar tudo em filosofema, segundo os
exemplos do garçom de um café, do esquiador, da lésbica e do negro, de qualquer dado
“concreto”. É para isso que poderiam servir as multiplicidades, suspendidas entre o
aberto e o fechado ou entre o virtual e o atual, da mesma maneira com que nos
servíamos daqueles exemplos para fazer frente à interioridade do em-si e do para-si. É
Alain Badiou

para isso, contudo, que não podem servir as multiplicidades conjuntivas, cuja regra não
é jamais descritiva, cavilhadas que são a uma axiomática delicada. Dizemos que, desde
logo, a teoria do múltiplo é tão mais fecunda em problemas que, sem autorizar descrição
alguma, ela não pode senão servir de ideia reguladora às prescrições.

4.
Que diferença há, de direito, entre dizer que uma matilha de lobos e a rede
subterrânea de uma planta com tubérculos são casos de rizoma, e dizer que eles
participam um e outro da Ideia de rizoma? Que sentido é preciso empregar para que se
possa comparar à Cristo, assim como à Espinosa, Bartleby, o escrivão? Se a obra de
Foucault testemunha da Dobra entre o visível e o dizível, é no mesmo sentido com que
os filmes de Straub e de Marguerite Dura o fazem, nos quais a singularidade é definida
nos mesmos termos? O termo “folhado” designa a mesma propriedade nos espaços de
Riemann (que reportam a um plano de referência científico) e no plano de imanência
filosófico? Se falamos da monotonia da obra de Deleuze (o que seria, para nosso
espírito, um elogio bergsoniano: somente uma intuição motora, afinal de contas), é
igualmente por não termos posto frontalmente as questões mais grosseiras. Pois o nosso
campo de interpretação das inumeráveis analogias que povoam os estudos de caso de
Deleuze autorizaria que as relacionássemos à univocidade, como doação de sentido
uniformemente distribuída sobre a superfície das atualizações, na qual a mola, idêntica à
potência da substância espinosista, seria a determinação ontológica do Um-Vida.
Àqueles que, contrariamente, não querem uma postulação ontológica desse tipo e que
colocam ironicamente a pergunta: “Deleuze terá por objetivo intuir o Um?” (o que, no
entanto, bem poderia se ocupar um discípulo aficionado de Espinosa?), é preciso
questionar o estatuto que conferem a essas analogias, ainda mais ao que o Mestre diz,
desde sempre, proscrever.
Partilhamos com Deleuze a convicção (no meu entendimento, de caráter
política) que todo pensamento verdadeiro é pensamento de singularidades. Mas logo
que as multiplicidades atuais são sempre para Deleuze modalidades puramente formais4

4
A autocrítica de Deleuze concernente à doutrina dos simulacros toca, sem dúvida, na forma muito
imediatamente nietzschiana do antiplatonismo em Diferença e repetição. Mas o motivo profundo que
essa doutrina recobre se mantém integralmente até as últimas obras. Ele diz: a diferença dos entes atuais é
modal, somente a unidade do virtual (percorrido no “grande circuito”) é integralmente real. Há dezenas de
textos explícitos sobre esse ponto. Que essa unidade seja aquela da Relação, ou se se quiser, da Diferença,
não faz senão acentuar o alcance ontológico da tese. Para Heidegger também o ser se diz da diferença (do
ser e do ente). Mas o Esquecimento é o de pensar que apenas o ser, e não o ente, é o diferenciante dessa

153
UM, MÚLTIPLO, MULTIPLICIDADE(S)

e que somente o Virtual dispensa univocamente o sentido, sustentamos que não há outro
recurso para pensar a singularidade senão classificar as diferentes maneiras pelas quais
uma singularidade tem de não ser ontologicamente singular. Sejam os diferentes modos
de atualização. Já é, enfim, a cruz do espinosismo, cuja teoria das “coisas singulares”
oscila entre um esquematismo de causalidade (uma coisa é um conjunto de modos
produzindo um efeito único) e um esquematismo de expressão (uma coisa testemunha
da infinita potência da substância). Assim como, a singularidade para Deleuze oscila
entre uma fenomenologia classificatória dos modos de atualização (e de virtualização) e
uma ontologia do virtual. Mantemos que a “ligação” entre essas duas abordagens não é
compatível com a univocidade, nem com a imanência. Entendemos que a partir dessa
incompatibilidade o texto esteja povoado por analogias, as quais determinam as Ideias
descritivas, cujas singularidades são os casos.
Que essas Ideias (a Dobra, o Rizoma, o Lance de dados...) visem às
configurações em devir, às diferenciações, aos vértices, aos rendilhados, às linhas de
fuga, não muda em nada a situação. Dizemos sempre que as singularidades deleuzianas
enfatizam a atualização ou a virtualização, e não a identidade ideal. Mas que um
esquema tenha por modelos descritivos apenas os devires concretos, isso não o impede
de forma alguma de ser uma Ideia, cujos modelos são isomorfos. O velho Parmênides,
lendário de Platão, “objetaria” a Sócrates que seria bastante preciso que existisse uma
Ideia de cabelo ou de lama. Resta que, sustentar que a singularidade exige, para ser
pensamento, a intuição do virtual, a qual, estamos convencidos disso, opera como

diferença. Da mesma maneira, a besteira filosófica é a de acreditar que são essas diferenças atuais que,
analogicamente, permitem remontar à Diferença; logo, a intuição pensante não é completa senão quando
leva o seu movimento até o ponto em que ela se identifica de modo impessoal à potência diferenciante e
imanente do Virtual. A essência do atual é a atualização, mas a essência da atualização é a Vida. Ora, não
existe essência da Vida [da Vida (refrão)]: ela é, portanto, necessariamente o Um pré-filosófico de toda
filosofia. O motivo da elevação afirmativa dos simulacros não parece, sob esse olhar e levando em conta a
continuidade desse ponto essencial, mais convincente do que as formulações posteriores, pois é mais
adequado do que aquele da univocidade, bem como do que aquele da crítica do “platonismo”. Deleuze
jamais esteve mais a vontade quando conseguiu fusionar, num ponto, Nietzsche, Bergson e Espinosa.
Esse é o caso toda vez que ele pensa a relação imanente da potência diferenciante do Um e suas
expressões modais. Admiramo-nos, de passagem, o pouco caso que fazem a maior parte dos seus
discípulos (com a exceção notável de Eric Alliez) com a genealogia filosófica construída por Deleuze.
Encontramo-os mais embaraçados do que armados com esses constantes apelos didáticos à Nietzsche, à
Bergson, à Whitehead, aos estoicos e, singularmente, à Espinosa. Sem dúvida, o que mais importa a eles é
que Deleuze seja “moderno”, no sentido em que eles o entendem, e que contenha sempre uma parte
obscura de anti-filosofia corrente. Sem dúvida, é essa também a razão pela qual eles “preferem” os livros
escritos com Guattari, nos quais alguns toques “modernos” são perceptíveis, razão que provoca
simetricamente o nosso menor interesse por esses textos. É suficiente ler o breve Foucault para constatar
com que soberana intensidade Deleuze retorna intacto às suas intuições iniciais. Lembremo-nos que, aos
nossos olhos, é uma das virtudes cardeais de Deleuze não ter, em seu nome próprio, utilizado quase nada
de toda a tralha desconstrutivista “moderna” e de ter sido, sem o menor complexo, um metafísico (e,
ainda, um físico, no sentido pré-socrático do termo).
Alain Badiou

transcendência (ou como lugar das Ideias descritivas), não pode senão dar ocasião, no
interior de uma virtuosidade sem cessar revisitada, a uma visão analógica e
classificatória dessa singularidade. É a razão pela qual tanto importa se mantiver firme
no múltiplo enquanto tal, composição inconsistente do múltiplo-sem-um, que identifica
a singularidade do interior, em sua estrita atualidade, tendendo o pensamento para o
ponto onde não há nenhuma diferença entre a diferença e a identidade. E onde, por
conseguinte, há a singularidade dos que são indiferentes em relação a ele, a diferença e
a identidade.
Resumamos. A tentativa de subversão da transcendência “vertical” do Um pelo
jogo do fechado e do aberto, o qual distribui a multiplicidade no intervalo móvel de um
conjunto (inerte) e de uma multiplicidade efetiva (linha de fuga), produz uma
transcendência virtual “horizontal”, que desconhece o recurso intrínseco do múltiplo,
supõe a potência caótica do Um e relaciona analogicamente os modos de atualização lá
onde seria preciso apreender a singularidade. O resultado disso é o que chamaremos de
mística natural. Para acabar com a transcendência, é preciso manter o fio do múltiplo-
sem-um, insensível a todo jogo do aberto e do fechado, anulando todo abismo entre o
finito e o infinito, puramente atual, assombrado pelo excesso interior de suas partes e no
qual a singularidade unívoca é ontologicamente nomeável apenas por um gráfico
subtraído da poetização da linguagem natural. A única potência que pode concordar
com aquela do ser é a potência da letra. Pode-se, então, esperar resolver o problema
próprio da filosofia contemporânea: o que é, de direito, uma singularidade universal?

Alain Badiou é filósofo, escritor, militante e professor emérito da École Normale


Supérieure, na qual fundou o Centre International d’Étude de la Philosophie Française
Contemporaine. É autor de diversos livros, entre eles: O ser e o acontecimento (1988,
trad. brasileira, Ed. UFRJ/Zahar, 1996), Manifesto pela filosofia (1989, trad. brasileira,
Aoutra, 1991), O número e os números (1990), Deleuze, o clamor do ser (1997, trad.
brasileira, Zahar, 1997), Lógicas dos mundos (2006), A hipótese comunista (2009, trad.
brasileira, Boitempo, 2012).

Tradutor: Luiz Paulo Leitão Martins é doutorando pelo Programa de Pós-Graduação


em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro, bolsista da CAPES.
E-mail: lplmartins@gmail.com

155
Implementação do Conselho da Igualdade Racial em Teófilo Otoni-MG/BR: uma
luta também do serviço social

Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

1. Introdução

Este trabalho tem como objetivo fazer um breve resgate da trajetória do


Movimento Negro, pontuando as conquistas e desafios encontrados nessa caminhada
histórica. Após essa viagem ao passado será discutido o reflexo do Movimento Negro
na cidade de Teófilo Otoni-MG, destacando o processo de construção do Conselho da
Igualdade Racial na cidade e a importância do engajamento político do Serviço Social
nessa luta junto aos grupos que apoiam e defendem essa bandeira.
A metodologia utilizada para a realização da pesquisa que formou a base deste
artigo esteve ancorada na realização de entrevistas em profundidade, com agentes
sociais que se autoidentificam como negros e que atuaram de forma coordenada na
criação do Conselho da Igualdade Racial local.
De inicio é importante demarcar a existência de movimentos de resistência à
escravidão já no período pré-abolição, como foi o caso da quilombagem (movimento
organizado e dirigido pelos escravos), resultando em insurreições, tal como a Revolta
dos Malês em 1835, e na constituição dos quilombos, conforme denomina Clóvis
Moura (2004). Todos estes movimentos foram reprimidos à força.
No período pós-abolição, já no século XX, após a Revolta da Chibata em 1910,
os movimentos de protesto negros emergem dos clubes recreativos e desportivos, das
associações beneficentes negras, da Imprensa Negra (O Getulino; O Progresso, O
Clarim da Alvorada; A Voz da Raça; Alvorada; O Novo Horizonte, entre outros),
atuando na denúncia da discriminação racial e dos males por esta causados, bem como
na promoção da educação da população negra.
De 1931 a 1937, a Frente Negra Brasileira (FNB), associação de caráter
político, recreativo e beneficente, diante do não compromisso do Estado brasileiro,
elaborou uma “proposta ousada de educação”, visando “agrupar, educar e orientar”,
tanto alunos negros quanto não-negros, de ambos os sexos. Essa proposta não se
restringiu apenas à escolarização, mas também buscou a formação política de futuras
lideranças; criou escolas e cursos de alfabetização de crianças, jovens e adultos. Em
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

1936, transformou-se em partido político, no entanto foi extinta em 1937, no momento


em que o golpe do Estado Novo, promovido por Getúlio Vargas colocou na ilegalidade
todos os partidos políticos. Embora a ditadura Vargas (1937 a 1945) tenha imposto o
silêncio às organizações negras, elas não desapareceram por completo.
Além disto, foi durante o primeiro período Vargas que o país passa a caminhar
na direção da construção de uma identidade nacional, o que ainda não se iniciara
durante a chamada Primeira República. Neste ponto as obras do sociólogo
pernambucano Gilberto Freyre foram fundamentais (principalmente Casa Grande &
Senzala – de 1933 – e Sobrados e Mucambos – de 1936). Freyre constrói, através
destas, a tese da “mestiçagem”, que tem como aspecto fundamental o fato de realizar
uma interpretação da ordem racial brasileira a partir de elementos que se desenrolam no
âmbito das relações privadas entre os membros da sociedade nacional.
O argumento de Freyre é que os aspectos capazes de gerar integração racial e
práticas democráticas podem ser encontrados nas representações, nos comportamentos e
nas atitudes dos atores sociais. A origem deste fenômeno estaria na forma da
colonização brasileira, realizada por homens que chegavam aqui sem suas famílias e
que estabeleciam relações sexuais e também conjugais com índias e negras. Produto de
uma sociedade também miscigenada – por conta dos séculos de dominação mulçumana
na Península Ibérica – os portugueses teriam criado na colônia um amalgama entre os
grupos de cor ou raça e constituído uma esfera privada democrática.
Derivaria daí a baixa presença entre nós de uma legislação relativa à raça no
pós-abolição (fenômeno inverso ao ocorrido nos Estados Unidos, por exemplo). Por sua
vez, a valorização da cultura mestiça brasileira teria ganhado força a partir dos anos
1930. Mas, tal valorização cultural, operava no campo próximo aos elementos, que
recentemente a teoria social tem denominado como reconhecimento (Taylor, 1998), sem
se voltar para iniciativas públicas no campo da redistribuição material (Fraser, 2010),
que pudessem promover a equalização das posições de brancos e negros em sociedade.
Mais à frente, já na ditadura militar que perdurou durante as décadas de 60, 70
e 80, o tema relativo às relações raciais, além de outros, se torna uma “questão de
segurança nacional”, em especial no período que compreende os anos de 1965 até o
final da década de 1970. Neste período, a ideia de democracia racial é disseminada e
trabalhada no sentido de, por um lado, ocultar a existência de divisões raciais e, por
outro, afirmar a unidade e a homogeneidade nacional.

157
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Com a gradativa abertura política no pós-1979, os movimentos sociais


ressurgem e, entre eles, aparece o Movimento Negro Unificado (MNU), que passa a
exercer um forte impacto no processo de conscientização da população negra quanto à
discriminação e desigualdade raciais no Brasil, e na organização de seus membros para
a luta contra o racismo. O MNU trará para a pauta dos movimentos sociais uma extensa
agenda de demandas, denúncias e reivindicações.
Nesta direção, foi organizada a Marcha Zumbi dos Palmares Contra o
Racismo, Pela Cidadania e a Vida, em homenagem aos 300 anos de morte de Zumbi.
Esta saiu às ruas de Brasília no dia 20 de novembro de 1995, em direção ao Congresso
Nacional, reivindicando ao então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso,
medidas concretas de combate à desigualdade racial. No entanto, nada foi efetivamente
realizado pelo governo federal.
Em 2001, cinco anos após a primeira Marcha Zumbi dos Palmares, ocorreu a
III Conferência Internacional contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e
Intolerância Correlata, em Durban, África do Sul.
Esta conferência pretendeu fazer um balanço dos progressos alcançados no
combate ao racismo desde a adoção da declaração Universal dos Direitos Humanos em
1948, além de estimular a formulação de medidas de combate ao racismo em nível
internacional, nacional e regional. As conferências preparatórias para Durban ocorreram
tanto no âmbito nacional (em quase todos os estados brasileiros) quanto no
internacional e delas participaram líderes do governo, acadêmicos e, especialmente,
ativistas do movimento negro brasileiro, unidos em torno de um único objetivo: o
combate à discriminação racial e à desigualdade, e a promoção da igualdade via
políticas afirmativas. Para a Conferência de Durban seguiu uma delegação do governo
brasileiro, constituída pelo Ministro da Justiça, pelo Secretário Nacional de Direitos
Humanos e por vários deputados federais, autoridades locais e componentes do Comitê
Nacional sobre Raça e Discriminação Racial, além de membros do movimento negro.
O relatório oficial do governo brasileiro, apresentado em Durban, constituiu-se
de vinte e três propostas destinadas à promoção da população negra, entre elas:
[...] medidas reparatórias às vítimas do racismo nas áreas de educação e
trabalho; titulação das terras quilombolas; política agrícola e
desenvolvimento das comunidades negras rurais; fundo de reparação social
para financiar políticas inclusivas, em especial, na educação, cotas para o
acesso de negros às universidades públicas. Desta forma, o Brasil se
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

compromete a implementar políticas de ação afirmativa (SILVA, p. 67, 2008;


HERINGER, 2003).
Das vinte e três propostas apresentadas, poucas foram efetivamente
implantadas nos anos seguintes, em especial a adoção de cotas raciais para ingresso em
instituições federais de ensino (consolidada na Lei n.º 12.711 de 2012) e a ampliação do
rol de comunidades negras que poderiam demandar a titulação de seus territórios
enquanto quilombolas (através do Decreto n.º 4.887/2003).

2. O processo de construção do Conselho da Igualdade Racial

Teófilo Otoni é uma cidade localizada no nordeste do Estado de Minas Gerais,


no Vale do Mucuri. Contém três comunidades remanescentes de quilombo, que se
denominam: Cama Alta, Córrego Novo e São Julião. Comunidades essas com pouca ou
nenhuma organização social. Sua população tem uma grande representatividade de
negros, que em sua maioria são agricultores familiares. É nesse espaço geográfico que
se encontram pessoas distintas, com um ponto em comum: se identificam como negros
e tem como objetivo a igualdade racial.
Foi através de um evento voltado para a História e cultura da África e afro-
brasileira, promovido pelo Núcleo de estudos afro-brasileiros (NEAB), da Universidade
Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM) em março de 2010, que essas
pessoas se encontraram. Neste momento, perceberam que suas lutas locais eram parte de
processos coletivos. A partir disto resolveram somar forças e começaram a trabalhar
juntos. A idéia da construção do Conselho da Igualdade Racial já estava plantada há
alguns anos, e vinha sendo discutida. Mas, após a realização do referido evento, amplia-
se o debate e o NEAB/UFVJM e outros atores sociais passam a somar forças, junto ao
movimento.
Para a composição deste artigo realizamos quatro entrevistas em profundidade
com representantes do Conselho da Igualdade Racial, sendo três membros da sociedade
civil e um da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM).
Vale destacar que um dos entrevistados da sociedade civil é membro da Associação

159
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Bahiminas.1 Nosso objetivo foi compreender se havia em Teófilo Otoni uma estrutura
de mobilização passível de ser nomeada como Movimento Negro e, caso esta ainda não
existisse, se o Conselho poderia ter algum impacto na formação deste.
De início devemos ressaltar que os entrevistados apontam não haver um
Movimento Negro na cidade, no entanto, todos apostam na possibilidade de criação
deste.
Quanto a um possível impacto do Conselho na formação do Movimento Negro
de Teófilo Otoni, os entrevistados são otimistas e todos indicam que esta relação seria
possível. Porém destacam que não será um processo fácil: “A criação e atuação dos
Conselheiros do Conselho da Igualdade Racial poderá ser um dos caminhos para
fortalecer laços e para iniciar um possível movimento negro mais articulado... Mesmo
que com muita dificuldade” (Representante da Bahiminas).
No que diz respeito aos mecanismos que impossibilitaram, ou continuam
impossibilitando a formação de um Movimento Negro na cidade, todos alegam que para
a formação deste é preciso haver inicialmente uma identificação maior da população
negra local com a própria noção de negritude, ou seja, é preciso que se dissemine um
sentimento de pertencimento, de identificação com a luta pela igualdade racial. Uma das
representantes da sociedade civil destaca: “No Brasil ser negro é tornar-se negro, o
conhecimento e o pertencimento dessa questão nos ajuda a superar e na cidade de
Teófilo Otoni falta isso ao negro”.
Os entrevistados, ao serem questionados sobre a relação do Estado com o
Movimento Negro, apontaram:
Na verdade não existem espaços dados a nenhum movimento, seja ele negro
ou não, na verdade, o movimento negro e ativistas intelectuais conquistaram
espaços no governo. E como o último governo se mostrou mais sensível e
mais aberto a dialogar, o movimento negro conseguiu concretizar pontos de
reivindicações, embora muitos ainda em curso (Representante da Bahiminas).

Uma maior inserção do Movimento Negro e suas demandas no aparelho


estatal ocorreram nos últimos oito anos do governo “Lula”, com a criação da
Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial - SEPPIR e

1
Associação composta por ex-funcionários que trabalhavam na linha férrea que ligava Bahia a Minas
Gerais. Criada em 1997 com o intuito atender as necessidades das famílias vinculadas a ferrovia, além
buscar preservar a memória da extinta Estrada de Ferro Bahia-Minas. Conforme relatou a presidente da
associação.
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade -


SECAD (Representante da Sociedade Civil)
Refletindo sobre a política do governo local contra o racismo, os entrevistados
relatam que algumas medidas vêm sendo verificadas no nível mais amplo, mas que, em
relação ao município de Teófilo Otoni, não há nada constituído em âmbito de política
municipal. A representante da UFVJM relata:
No primeiro mandato (2003-2006) do governo “Lula” é sancionada a Lei
10639, em janeiro de 2003, que torna obrigatória a História e Cultura da
África e Afro-brasileira no ensino fundamental e médio das redes pública e
privada de ensino, e criada, em março do mesmo ano, a Secretaria Especial
de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR). Até o final do
segundo mandato (2007-2010) deste governo, algumas das políticas
propostas para a população negra foram implementadas no âmbito dos
diversos ministérios (Mistério da Educação, do Desenvolvimento Agrário, do
Desenvolvimento Social, da Saúde, etc.). De acordo com o Movimento
Negro Unificado, embora este tipo de política tenha avançado no governo
“Lula”, ficaram algumas lacunas, em especial no que diz respeito à titulação
das terras quilombolas, haja vista que das 1527 comunidades certificadas pela
Fundação Palmares desde 2003 apenas 126 conquistaram o título, menos de
10%, e à promulgação do Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288, de 20 de
julho de 2010). Ele vem garantir à população negra a igualdade de
oportunidades no acesso à saúde, educação, cultura e lazer, à terra, à moradia
adequada, liberdade no exercício de cultos religiosos de matriz afro-
brasileira, ao trabalho e aos meios de comunicação.
No que tange às principais bandeiras e desafios do Movimento Negro
atualmente, os entrevistados foram bem objetivos, todos pontuando que o maior
objetivo é combater o racismo e a falsidade da noção de democracia racial, e conseguir
estabelecer e manter um diálogo com o Estado, de modo que isso venha fazer valer e
garantir algumas demandas que já se tornaram letra da Lei, mas que efetivamente ainda
não foram implantadas ou geraram efeitos.
O posicionamento dos entrevistados sobre as políticas de ação afirmativa é
unânime. Todos se referem a estas como ações compensatórias, como argumenta uma
dos entrevistados: “Políticas públicas compensatórias voltadas para reverter às
tendências históricas que conferiram a grupos sociais uma posição de desvantagens
particularmente nas áreas da educação e do trabalho (Representante da Sociedade
Civil)”. O posicionamento da representante da Bahiminas não é diferente: “Política de

161
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

ação afirmativa é a política de inclusão de um grupo que há muito tempo se encontra


esquecido. Programas entre diferentes grupos sociais.”
Sabemos que a discussão relativa à necessidade, à validade e mesmo à
operacionalidade da política de cotas divide opiniões, mas entre nossos entrevistados o
posicionamento é favoravelmente unânime. Ao serem questionados se a separação de
cotas para negros constitui ou não discriminação, os entrevistados apresentaram os
seguintes posicionamentos: “É uma discriminação, mas positiva, pois busca tornar
viável a igualdade (Representante da Sociedade Civil)”. Enquanto os outros três
entrevistados destacam que as cotas não são discriminação, se as tomarmos como
alternativa para minimizar a desigualdade de oportunidades entre negros e brancos,
decorrente do processo histórico de escravização e de não inserção da população negra
na “sociedade de classes” no pós-abolição.
Para buscar analisar mais detalhadamente a relação entre os movimentos
sociais e o Conselho da Igualdade Racial, foi realizada a seguinte pergunta: o Conselho
da igualdade racial é movimento social?2 Dos entrevistados, 03 pessoas responderam
que Conselho é um movimento social, onde uma dessas pessoas destaca:
Bem, a proposta de criação do Conselho de igualdade Racial aqui em Teófilo
Otoni pode ser considerada como um movimento negro, mas de poucos
negros, pois não existe na região um “movimento negro”. A proposta, que
acreditam ser ele o primeiro espaço/tempo da história da cidade, que poderia
se pensar em políticas públicas mais sistematizadas para os grupos
considerados “minorias” no âmbito municipal (Representante da Bahiminas).
Entre os pesquisados, apenas um discorda de tal afirmação e alega que Conselho
não é movimento social. Para justificar sua posição faz a seguinte reflexão:
Os Conselhos, de um modo geral, representam uma conquista dos
movimentos sociais, a partir de suas demandas específicas, no contexto do
processo de redemocratização do país. Como órgãos gestores e paritários, os
Conselhos se institucionalizam, tal como previsto na Constituição Federal de
1988, e assumem o papel de mediadores entre a sociedade civil e o Estado.
Logo, a criação dos Conselhos e efetividade de suas ações depende

2 Neste artigo, entendemos por movimento social: "[...] ações sociopolíticas construídas por atores
coletivos de diferentes classes sociais, numa conjuntura específica de relações de força na sociedade civil
(GROSS, 2004, apud, GOHN, 1997, p.78)". Segundo a autora, as ações se desenvolvem em um processo
de criação de identidades em espaços coletivos não institucionalizados, gerando transformações na
sociedade, seja de caráter conservador ou progressista.
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

fundamentalmente da organização e pressão dos movimentos sociais. Sendo


assim, os Conselhos de Promoção da Igualdade Racial existentes em muitos
dos municípios dos diversos Estados brasileiros, são demandas dos seus
respectivos movimentos negros, no sentido de fazer valer o diálogo entre seus
representantes, enquanto sociedade civil, e o poder público local, e,
consequentemente, implementar políticas públicas de combate à
discriminação racial e assim promover a “igualdade” de oportunidades de
acesso à saúde, educação, emprego, e outros. Entre negros e brancos
(Representante da UFVJM).
Nas entrevistas os participantes afirmaram que o Conselho não está ainda
operante, e que o mesmo não surge como uma demanda do(s) movimento(s) negro(s)
local, pois este não existe formalmente. Mas a partir da alteração de Lei aprovada na
Câmara Municipal por um de seus vereadores e por uma Comissão composta por
representantes do poder público local, da UFVJ (enquanto instituição governamental
federal, participando através de seu Núcleo de Estudos Afrobrasileiro) e de membros da
sociedade civil, a perspectiva é de consolidação do Conselho em curto prazo.

3. Movimento Negro: uma luta constante

O Movimento negro pode ser caracterizado como uma organização de pessoas


que lutam para a efetivação dos direitos, respaldados tanto na centralidade da cultura,
como no próprio aparato legal brasileiro. São grupos unidos com o objetivo de trabalhar
contra a discriminação racial na sociedade e contra o preconceito no mercado de
trabalho; e buscam a efetuação de uma sociedade que reconheça a população negra
enquanto cidadãos históricos e onde haja garantias de uma vida igualitária com acesso a
educação, à política e pela valorização da sua cultura.
Como pode ser observado, nos escritos de Domingues (2007), por volta de
1889, um ano após a abolição da escravatura, e com a proclamação da república, a
população negra recém-liberta se mantinha à margem da sociedade, pois com a política
de subsídio à imigração européia (prática estatal diretamente ancorada na perspectiva de
branquear a população brasileira), não havia lugar para a mão de obra negra.
Este processo de segregação não oficial, mas com efeitos práticos evidentes
foi a somente o primeiro passo para a construção de uma ordem racial muito especifica,
contra a qual os movimentos negros vêm lutando.

163
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Na história brasileira podemos observar que os movimentos negros foram se


dividido em fases. Na primeira fase (1889-1937), em muitos estados da federação, os
negros se uniram e a partir dessa articulação foram criados grêmios, clubes ou
associações negras, que organizavam palestras, atos públicos e publicações de jornais.
Estes retratavam as diversas mazelas que afetavam a população negra no trabalho, na
habitação, na educação e na saúde. Já no ano de 1936, parte do movimento se organizou
em partido político que pretendia participar das eleições. Porém os anos de 1937-1945,
palco da ditadura do Estado Novo, foram marcados por grande repressão política que
inviabilizou qualquer ação dos movimentos sociais em geral e chegou mesmo a cercear
a participação política no país.
Com a queda de Vargas em 1945, os movimentos negros se reorganizaram,
surgindo assim uma segunda fase situada entre 1945 e 1964. Nesta, há um
direcionamento para o teatro e para imprensa. As ações desenvolvidas visavam à
sensibilização da população branca para os problemas enfrentados pelos negros no país
e defendiam também os direitos civis dos negros enquanto direitos humanos. No bojo
destas ações, foi no ano de 1951, quando o Brasil instituiu sua primeira Lei
Antidiscriminatória. Trata-se da Lei Afonso Arinos (Lei 1390/51 de 3 de julho de
1951) que prevê punições em caso de discriminação ou preconceito racial. Esta lei teve
como evento detonador um escândalo envolvendo uma bailarina norte-americana,
impedida de se hospedar em um hotel em São Paulo.
Com o golpe militar em 1964, os movimentos negros foram novamente
impedidos de participar da vida pública nacional. Assim teremos, de 1964 até o inicio
do processo de redemocratização, um período de recrudescimento do conjunto dos
movimento sociais. Somente a partir de 1978, quando começaria uma terceira fase do
movimento (fase esta que se estenderia os dias de hoje) os movimentos negros voltam a
participar de manifestações públicas e acessar a imprensa. Temos neste período a
entrada de militantes negros nos partidos de esquerda e a formação de comitês de base e
mesmo de movimentos de âmbito nacional.
No ano de 2003 o movimento negro teve uma grande conquista que foi a
aprovação da Lei nº. 10.639, no Congresso Nacional. Essa lei tem como princípio
alterar a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), e tornar obrigatório o ensino de
história e cultura da áfrica e das populações negras brasileiras nas escolas de ensino
fundamental e médio de todo o país. De acordo com Plano Nacional de Implementação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações Étnicorraciais e para
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana (2012), muitos sistemas de


ensino municipais, estaduais e mesmo privados ainda não adaptaram ou inseriram em
suas grades curriculares estes conteúdos, devido os problemas relativos a formação de
professores e a conscientização a respeito da importância nova temática.
Outra conquista do movimento negro, foi a criação do Estatuto da Igualdade
Racial, sancionado em julho de 2010 através da Lei 12.288. O Estatuto da Igualdade
Racial estabelece diretrizes para a implementação de políticas públicas de promoção da
igualdade de direitos para o enfrentamento da discriminação racial que atinge a
população negra. Essa é uma grande conquista, mas vale ressaltar que a luta não acaba,
pois a mesma continua para a efetivação e aprimoramento dessas políticas.

Considerações finais

Segundo o censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística


(IBGE), o município de Teófilo Otoni, possui 26,57% da sua população auto-
classificada como branca, 61,06% como parda; 0,86 como amarela; 0,15 % como
indígena e 11,36% como preta. Como podemos observar, Teófilo Otoni agrega uma
proporção significativa de população afrodescendente, com um total de
aproximadamente 72% de negros (considerando a soma dos autodeclarados pardos e
dos autodeclarados pretos); além de abrigar quatro comunidades remanescente de
quilombo (sendo três rurais e uma urbana). No entanto, mesmo com este número
relevante de população negra, e contendo no seu território comunidades cujo processo
histórico está ligado a antepassados negros, o município não possui até o momento
nenhum movimento negro consolidado. Isso pode se dar por vários motivos que não se
excluem e podem até mesmo se complementar, tais como: falta de articulação entre os
que defendem a causa, a ausência de identidade negra e diversas limitações políticas e
culturais da região.
Conforme foi visto, há possibilidades da criação de um movimento negro na
cidade de Teófilo Otoni, entretanto acredita-se que o maior desafio é a articulação
daqueles que, negros ou não-negros, assumem uma postura anti-racista. Reunir pessoas
que, segundo Safira (1991), carreguem o germe da insatisfação. Só assim, será possível
mobilizar uma ação coletiva, de caráter contestador, articulando a criação de possível
movimento de abrangência sociopolítica.

165
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

Em âmbito nacional as políticas voltadas para as relações raciais implementadas


pelo Estado brasileiro são, em geral, paliativas, e muitas vezes reforçam uma lógica
individualista e descontextualizada. Porém, ao mesmo tempo, sempre reafirmam as
conquistas do movimento negro que somente após muita luta política consegue impor,
na agenda pública, elementos que garantem algum grau de igualdade para esta
população. Hoje, o grande desafio é colocar em prática essas políticas, como a Lei
10639/2003, que tornou obrigatório o ensino da História e Cultura da África e
Afrobrasileira, a titulação de terras dos quilombolas (prevista no artigo 69 dos Atos das
Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição de 1988), e o Estatuto da
Igualdade Racial. Leis essas também citadas nas entrevistas.
Voltando para a cidade de Teófilo Otoni, das quatro comunidades quilombolas
existentes em seu território, apenas uma possui a titulação de seu território ancestral.
Tais comunidades, após autorreconhecerem como quilombolas, começam a enfrentar o
jogo burocrático e a procrastinação legal seja para obter o reconhecimento oficial, seja
para alcançar a titulação territorial.
Diante de um quadro repleto de desigualdades e de grandes desafios para a
efetivação de direitos, vale destacar a existência da Universidade Federal dos Vales do
Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), fundada em 06 de setembro de 2005 com um
campus avançado em Teófilo Otoni, que integrou a Fafeid – Faculdades Federais
Integradas de Diamantina, fundada em outubro de 2002, que por sua vez foi resultante
da Faculdade Federal de Odontologia de Diamantina (Fafeod) fundada em 17 de
dezembro de 1960, pelo então presidente Juscelino Kubitschek. A UFVJM, através do
Núcleo de Estudos Afro-brasileiros – NEAB/UFVJM criado em 2007, vem discutindo e
debatendo o racismo e seus reflexos na região. Além de estudar a realidade das
comunidades quilombolas locais. Em 2012, após a emissão da Lei 12.711/2012, que
regulamenta a reserva de vagas para a população negra nas instituições federais de
ensino, a UFVJM iniciou a implantação de um sistema de cotas raciais para ingresso do
corpo discente, uma vitória para Teófilo Otoni e toda a sua população negra.
As lutas por ação afirmativa são contínuas e árduas, mas aos poucos estas
políticas estão sendo colocadas em prática. As políticas afirmativas poderão levar as
gerações futuras a uma sociedade em que as oportunidades entre negros e brancos sejam
mais igualitárias.
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão

No que tange aos agentes sociais entrevistados, constata-se que estes trabalham
com a perspectiva de criar o Conselho da Igualdade Racial na cidade de Teófilo Otoni,
mesmo com desafios e impedimentos colocados pelo poder político local.
Por fim, faz-se necessário esboçar algumas considerações sobre o Serviço
Social e sua relação com as questões raciais, pois ainda são restritos os estudos
realizados acerca dessa temática no interior dos cursos de Serviço Social, conforme
pode ser observado nos planos de ensino de algumas instituições federais.3 Este dado
inviabiliza a realização de um diálogo aprofundado com as categorias analíticas
defendidas pelo Projeto Ético-Político-Pedagógico da profissão, em especial no que se
refere às políticas de ação afirmativa e à assessoria aos movimentos sociais negros e
quilombolas.
Seria fundamental a realização de pesquisas sobre questão racial e movimento
negro no âmbito da formação em Serviço Social. Uma vez que, estudos nessa temática
se relacionam com as atribuições privativas do assistente social, podendo auxiliar, entre
outros elementos, na elaboração de políticas públicas conectadas com as demandas
deste segmento que se encontra sobrerrepresentado entre a parcela mais vulnerabilizada
da população nacional.
Conforme podemos observar na Lei 8.662, que regulamenta o exercício
profissional do assistente social, em seu artigo 4º afirma que é competência deste
profissional: elaborar, implementar, executar e avaliar projetos, programas e políticas
sociais; orientar e encaminhar providências a indivíduos; prestar assessoria aos
movimentos sociais entre outras tantas coisas. Ressalto tais atribuições para dar ênfase à
relevância de estudos que retratem o problema do negro no interior da formação em
Serviço Social.
As políticas sociais constituem o alicerce da profissão do assistente social,
sendo assim ressalta-se que as diversas expressões da questão social se manifestam nas
cidades e também no campo, como é o caso das comunidades remanescentes de
quilombo, das mulheres negras, da população negra em geral. Exatamente por isso, são
necessárias investigações que se aprofundem nesta realidade e insiram no cotidiano
profissional do assistente social a necessidade de pesquisar, elaborar projetos e
programas sobre grupos étnico-raciais, que desmistifique a falsa noção de que somos

3
Para a realização dessa consideração foi feito um levantamento via internet do plano de ensino de
algumas instituições federais, como a UFVJM, UFRB, UFF e UFES. No interior dos cursos de Serviço
Social oferecidos por essas instituições não há nenhuma disciplina obrigatória que discuta a questão racial
e seus rebatimentos no contexto social como um dos reflexos da questão social.

167
IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM TEÓFILO OTONI-MG/BR

um Brasil sem preconceito, sem exclusão racial. Esta inserção contribuiria com a
reivindicação de direitos e para o processo de formação política emancipadora, justa e
igualitária.
Destaco, por fim, que o próprio Projeto Ético Político do Serviço Social tem
como princípio o reconhecimento da liberdade como valor central da profissão,
buscando eliminar qualquer forma de preconceito e de discriminação, de forma a
ampliar e consolidar a cidadania e a democracia. Esses princípios vão de encontro com
a questão racial, assim como com as diversas mazelas sociais expressas no interior das
comunidades rurais negras, reafirmando a importância e a necessidade de ações
interventivas do assistente social junto aos reflexos da questão social no espaço
socioeconômico rural.

Sidimara Cristina de Souza é Assistente Social, discente do Programa de Pós-


Graduação em Política Social na Universidade Federal Fluminense. E-mail:
sidi.mara@hotmail.com

André Augusto Pereira Brandão é Sociólogo, doutor em Ciências Sociais e docente da


Universidade Federal Fluminense. E-mail: aapbuff@globo.com

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169
Faces da crise da representação: as jornadas de junho e os rastros de uma
democracia por vir1

Germano Nogueira Prado

Mais que um raio em céu azul, as jornadas de junho(-outubro) de 2013 foram um


terremoto2 que, preparado silenciosamente nas profundezas por uma miríade de lutas de
base, abalou desde baixo o cenário seguro e de consensos mais ou menos tácitos e
consolidados da política eleitoral do Brasil Maior. Como um autêntico evento (político),
no sentido de Badiou, elas parecem ter produzido (mais de) uma ruptura ou rearranjo
nas coordenadas da situação; como um ato, no sentido de Zizek, elas parecem ter
introduzido no horizonte do possível (o que se julgava até então) impossível; no
horizonte do pensável, o (considerado até aqui) impensável.
Para nós, pensar (politicamente) o que foi aberto por esse sismo não equivale
simplesmente a formular teorias atestando se e em que medida “de fato” ele aconteceu,
mas, em verdade, consiste em apostar na declaração de que “algo aconteceu” e
experimentar práticas (inclusive “teóricas”, como a em que trabalhamos nesse
momento) que iluminem, descubram, desenvolvam e/ou criem as possibilidades aí
(apenas) vislumbradas. Nesse sentido, investigar um evento seria não (apenas ou
sobretudo) verificar “se é o caso” que ele aconteceu, mas reivindicá-lo como um ter tido
lugar de possibilidades que podem ser reativadas com vistas ao porvir – e, do ponto de
vista do evento (passado), o presente é sempre já um seu possível porvir.
Um dos aspectos desse abalo, desse deslocamento do terreno político ganhou
voz na expressão “crise da representação”. Trata-se de uma expressão equívoca ou,
antes, prenhe de sentidos. Como aposta, o presente trabalho – e o (meu) trabalho (no)
presente – é uma tentativa bastante franciscana de cartografar alguns desses sentidos.
Em um primeiro momento, pode-se entender por “crise da representação” a
desconfiança e a crítica mais ou menos desenvolvida e elaborada àqueles que
desempenham o papel de representantes na democracia parlamentar das sociedades
contemporâneas. Trata-se de uma crítica que se dirige à pessoa (pública e, não raro,
também à privada) do representante. Não entra em jogo aí – ou entra apenas

1 Texto-base da apresentação feita no dia 08.08.14, na mesa de encerramento do “X Seminário de


Graduação em Filosofia da UFRJ – Jornadas de Junho”.
2 Cf. o Prefácio de Raquel Rolnik para a coletânea Cidades Rebeldes (São Paulo, Boitempo: 2013)
Germano Nogueira Prado

secundariamente – a crítica aos partidos como mecanismo envolvido em e na maioria


das vezes necessário à eleição dos representantes das várias esferas, bem como
tampouco ao sistema representativo como tal. “O sistema”, por sinal, quando aparece,
tende a ser compreendido como o agente anônimo ou o horizonte inelutável da
corrupção, no qual quase que irremediavelmente “todos os políticos são corruptos” – o
que serve menos para desculpar “os políticos”, que seguiriam criticáveis, do que para
alimentar o cinismo dos críticos que afirmam sem pudor que “se eles [críticos]
estivessem lá, fariam o mesmo.” Talvez não seja demais sublinhar que, nessa
perspectiva, a “crítica” ao sistema corrupto raramente se estende até os interesses
econômicos corruptores.
Esse primeiro nível em geral se articula e se confunde com o que poderíamos
distinguir analiticamente como um segundo nível, a saber, uma aversão genérica aos
partidos, que costuma ser acompanhada, aliás, de uma aversão a ou pelo menos de uma
desconfiança de outras organizações dos trabalhadores (como sindicatos, por ex.) e
movimentos sociais e populares (como os movimentos por terra e moradia, por ex.).
Reduzindo a política aos políticos profissionais, aos partidos e às eleições, a
combinação desses dois níveis costuma aparecer como uma rejeição da política como
um todo.
Em todo caso, esses dois primeiros níveis constituem uma espécie de senso
comum político mais ou menos difuso em diversas classes sociais ou, se quisermos, a
configuração mais ou menos dominante da opinião pública, criada e/ou fomentada pela
mídia empresarial(-militar) – opinião que pauta ainda em grande medida os facebooks e
twitters da vida. Ela se fez presente nas ruas em junho quando das maiores
manifestações (nos dias 17 e 20).
Nessas ocasiões, à pauta inicial contra o aumento da passagem (ocasião
“metonímica” para pautar a melhora do transporte público, reivindicar a efetivação do
direito de ir e vir e do direito à cidade) e a outras pautas que foram surgindo quando do
crescimento dos protestos, somaram-se a pautas como a do combate à corrupção, em
geral no sentido de uma moralização da política concentrada na exclusão de figuras
eticamente nefastas e partidos-quadrilha (em especial os tradicionalmente identificados
com a esquerda). Enrolados em bandeiras do Brasil, entoando o hino nacional, muitos
foram às ruas para protestar “contra tudo que está aí” – opondo o “povo brasileiro” aos
políticos e à política. Essa oposição assumiu ares de fascismo não só por acenar à
contraposição da unidade substancial de um povo a um inimigo a ser eliminado, mas

171
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

também pelas “passagens ao ato” com a (tentativa de) expulsão violenta de militantes de
partidos políticos e a destruição de suas bandeiras (sejam os agentes dessa violência
“cidadãos revoltados” ou policiais infiltrados). Obviamente, nem todos os que
compartilham de uma postura “antipolítica” e até mesmo de certo nacionalismo estão
implicados em posturas fascistas e/ou de violência. Pelo contrário: a recusa genérica à
política e a aceitação genérica (e ainda assim perigosa) do nacionalismo vem muitas
vezes acompanhada de uma igualmente genérica repulsa a “toda forma de violência” –
subentende-se: nas manifestações, nas partes mais ricas e no centro das cidades; “todas
as formas de violência” não sistêmica e não normalizada (e por isso invisível), contra
negras, pobres, presidiários, etc.
Não por acaso, foi mais ou menos nesse mesmo momento que a mídia
empresarial(-militar) passou de uma mera criminalização das manifestações para um
apoio seletivo, construído a partir da distinção entre “manifestantes pacíficos” e
“vândalos”. No mesmo movimento, a mídia tentou pautar ou, ao menos, sequestrar a
pauta do movimento, diluindo-a em reivindicações genéricas e/ou reacionárias – o que
não equivale à afirmação de que foi ela a causa da ocupação das ruas por esse tipo de
pauta; foi, antes, a ocupação mesma das ruas que parece condicionar a mudança de
estratégia da mídia.
Tanto quanto posso ver, nesses dois primeiros momentos teríamos no máximo
uma espécie de sintoma negativo da “crise da representação”, que joga fora o bebê (a
política) junto com a água do banho (o sistema representativo e, sobretudo, os
representantes que o personificam) e não parece capaz de propor alternativas – isso se
não considerarmos uma alternativa a mera ocupação “espontânea” das ruas ou a
considerarmos no máximo uma alternativa condicionada ao(s) sentido(s) (não fascistas,
não nacionalistas) dessa ocupação. Ao concentrar-se no negativo ou, ao menos, na “má”
negatividade, na negatividade “passiva” do “não tem jeito, sempre foi assim, etc.”, essa
postura acaba por reforçar o caldo de descrédito da política que tem sido cozido e
recozido pela opinião pública, isto é, pela opinião hegemonicamente empresarial(-
militar), ao menos desde a ditadura – o que tende a levar a mais desmobilização popular
e a entraves no aprofundamento da democracia. Todxs sabemos para quem vão os
dividendos da venda desse caldo.
Bem entendido, isso não significa, por outro lado, que a mera mobilização seria
o caminho para o aprofundamento da democracia: pois, como já foi sublinhado mais de
uma vez, sabemos pela história o perigo que se corre se tal mobilização se dá em
Germano Nogueira Prado

direção à unidade homogênea de um povo, que aplaina e/ou elimina as diferenças (e os


diferentes) e se ancora, de um lado, na eleição de um inimigo comum e, de outro, na
pessoa de um líder.
Mas a coisa não parou e não para por aí. É obviamente injusto com as jornadas
de junho reduzi-las a uma mobilização repentina e espontânea do povo como unidade
substancial que elege como inimigo os políticos, “contra tudo que está aí”, mobilização
que, além disso, teria um alcance político limitado e notas de fascismo (notas que, por
sinal, chegaram a ser acentuadas, de maneira assaz oportunista, pela “esquerda” no
poder). O que parece ter surpreendido o poder constituído (a mídia aí incluída), de um
lado, e militantes há mais tempo na rua3, por outro, foi não só o crescimento
exponencial das manifestações, mas também a pluralidade de pautas, pessoas e grupos
que, nesse crescimento, se juntaram a elas de maneira horizontal, sem que se pudesse
dizer que os atos eram liderados ou dirigidos por partidos, sindicatos ou mesmo
movimentos sociais.
Como bem notou Rodrigo Nunes, as jornadas de junho são um caso de
“movimento de massa sem organizações de massa”4 – movimento que não pode ser
reduzido nem a uma massa informe e homogênea (próxima a um povo como unidade
substancial, um Um que dissolve o múltiplo) nem a um conjunto de indivíduos
atomizados que se articulam de maneira horizontal e por laços “fracos”, “de ocasião”,
sem nenhuma organização mais duradoura, via facebook ou twitter. Muito antes, parece
que cabe utilizar um modelo de rede para analisá-las. Segundo esse modelo, as
mobilizações se adensariam em certos nós (comitês, redes, assembleias, movimentos,
núcleos, frentes, coletivos e mesmo, a certa altura, sindicatos e partidos) que não
chegariam a dirigir ou comandar de maneira hegemônica os protestos, mas que
formariam zonas de laços mais fortes que “contagiariam” uma “cauda longa” de laços
mais fracos, de indivíduos não ligados a nenhuma dessas organizações. Nesse modelo, o
“limiar de participação” entre a presença ocasional em protestos e o engajamento
efetivo seria mais tênue, de modo que a criação de laços mais fortes quando da
passagem das redes sociais as ruas seria facilitada. As “lideranças” aí seriam, sobretudo,
“lideranças imanentes” que surgiriam de maneira mais ou menos espontânea em ou
outro momento. E talvez seja o caso de falar não exatamente de “lideranças”, mas do

3 Cf., entre outros, o testemunho de Bruno Cava no seu livro A multidão foi ao deserto.
4 Diferenciação interna, intensidade de laço, contágio, cauda longa, limiar de participação, liderança
distribuída, direção imanente, direcionalidade. Cf. http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3036

173
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

protagonismo temporário e distribuído de certos grupos, de certas “minorias mais


ativas”, de modo que horizontalidade não se confunde com um plano homogêneo e
absolutamente igual, nem tampouco com o mercado de troca, a preços iguais, de
opiniões qualitativamente equivalentes.
Assim, embora o movimento se faça um, essa unidade é internamente
diferenciada, de modo que a diferença conta, sim. Talvez pudéssemos arriscar dizer que
a unidade das manifestações, sobretudo na medida em que se compreende a partir de
um viés classista, de esquerda, estaria justamente nesse organizar-se de modo a contar
com a diferença. Por outra: o comum produzido pelas lutas de junho é o da experiência
de uma outra organização das lutas e, quiçá, da comunidade como um todo – dessa
maneira, uma forma de organização em que todxs e cada umx respondem, sem a
mediação de representantes, pelos caminhos da comunidade. Nesse sentido, o “contar
com a diferença”, na medida em que abre espaço para uma diferença qualquer – a rigor,
uma singularidade qualquer – é indiferente às diferenças – e, assim, aponta para a
constituição de um modo de organização da comunidade que seria ancorado nessa “zona
de indeterminação”5 que, nos interstícios das identidades particulares6, constituiria todxs
e cada sujeito político (numa democracia que faz jus a seu nome) como universal na
medida em que (igualmente sob a condição de) singular. Por tudo isso, aliás, há quem
prefira tomar as jornadas não como uma revolta do povo (conceito que costuma
designar, mas não só, a unidade em cuja “vontade” se ancora a legitimidade do Estado),
mas um levante da multidão, compreendendo esse conceito como o de um “Um que é
Múltiplo”, o um que articula em si singularidades, as quais não se confundem com o
indivíduo, na medida em que podem ser suprapessoais (assembleias, coletivos, etc.) e
infrapessoais (uma conversa, um meme, etc.).
Nesse sentido, as jornadas de junho deslocaram o terreno político não só por
fazer emergir expressamente a questão da “crise da representação” em sua face negativa
e não raro reacionária ou, pelo menos, “antipolítica”, mas também – e aqui já
alcançamos outro nível de análise – por reativar no horizonte do possível e do pensável
uma proposta para esse impasse: a velha e boa ideia de democracia direta, sob novas
formas e condições materiais (proporcionadas, em certa medida, pelas mídias
alternativas e redes sociais, sobretudo aquelas que vêm nascendo por fora dos
oligopólios controlados por grandes capitais e do consequente potencial de controle daí

5 Cf. SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome, p. 34 ss, p 67 ss
6 Cf. ZIZEK, Slavoj. A visão em paralaxe.
Germano Nogueira Prado

decorrente). É sintomático que, mal ou bem (ou mal ou mal), isso apareça em várias
organizações tradicionais de esquerda: subtraído o cálculo eleitoral, mais de uma
declaração de membros de partidos de esquerda e mais de uma campanha tem como
eixo a leitura de que as jornadas clamam por democracia direta e participação popular7;
mesmo o PT no governo fez, ou vem tentando fazer, um movimento nesse sentido, com
o decreto que implementa a Política Nacional de Participação Social, amplamente
criticado por setores mais à direita – e por mais que isso seja uma piada ruim (ou de
mau gosto), é no mínimo curioso (ou irônico) que um governo, mesmo de esquerda,
tente instaurar a participação social através de um decreto...
Brincadeiras à parte, o fato é que essas atitudes testemunham a tentativa por
parte do Estado e dos partidos de se apropriar de e/ou de responder às demandas e
desejos que emergiram nas ruas de junho. Resta saber se as estruturas hierarquizadas e
ainda bastante ligadas à direção por lideranças pessoais, à noção de vanguarda e de
“quadros” específicos que tomariam a frente do processo político e revolucionário; resta
saber, enfim, se o Estado e a forma-partido, se o horizonte da política representativa
pode ir ao encontro dessas demandas e desejos e das formas de subjetividade e vida que
aparecem aí e manterem algo do horizonte da representação – ou se ir ao encontro de
verdade dessas formas, ao tentar realmente atender a essas demandas e desejos eles não
estariam fadados a uma autossabotagem e, no limite, à autodissolução.
Nesse sentido, mais sintomático (e mais emblemático) do modo como a “crise da
representação” emergiu nas ruas de junho de 2013 – como reinscrição e criação de
mecanismos de participação e democracia diretas à margem do Estado, mas em luta
com e contra ele pela ampliação de direitos (entre eles o direito mesmo à manifestação e
à participação política) –, mais sintomático e mais emblemático, digo, é o fato de que o
princípio das jornadas está ligado ao Movimento Passe Livre, que surge como: “...um
movimento social de transportes autônomo, horizontal e apartidário, cujos coletivos
locais, federados, não se submetem a qualquer organização central. Sua política é
deliberada de baixo, por todos, em espaços que não possuem dirigentes, nem respondem
a qualquer instância externa superior.”8

7 A bem dizer, Safatle, hoje no PSOL, já havia apontado para algo do gênero antes das manifestações
quando, em A esquerda que não teme dizer seu nome, de 2012, coloca entre os princípios inegociáveis do
“tipo” de esquerda que comparece no título do livro a “soberania popular” e argumenta que esta soberania
se exerce propriamente com a construção de mecanismos de participação direta de todxs nas decisões
políticas (p. 38 ss.)
8 Cidades rebeldes.

175
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

Na mesma perspectiva, talvez pudéssemos arriscar dizer que, para além da


proteção com relação às forças do Estado (mutatis mutandi, usada também pelo braço
que visa garantir que este tenha o monopólio da violência “legal”, a polícia), as
máscaras e os dispositivos de anonimato onipresentes nas jornadas de junho são
emblemas de uma democracia compreendida radicalmente como uma forma de
organização de e para todxs e para ninguém – e que o avesso perverso disso é a ânsia da
mídia empresarial(-militar) e do aparelho estatal de “identificar” líderes e imolá-los em
praça pública, a título de bode expiatório e mecanismo de desmobilização popular. Mas
não se trataria aqui, ao que tudo indica, da mesma impessoalidade vazia da função,
presente em toda burocracia estatal; nesse sentido, talvez pudéssemos arriscar ainda um
(último) passo – ou antes, um salto –, que nos daria, quiçá, um vislumbre da “forma de
subjetividade” que me parece estar articulada com uma ideia de democracia tal como a
esboçada em mais de um momento desde as jornadas de junho – trata-se de uma forma
que gostaria de designar – e já o fiz algumas vezes mais acima – “singularidade”9.
De acordo com uma visão comum, a democracia é o “governo/poder do povo” e,
como somos todos povo, é o governo/poder de todos. A história nos mostra que é
perigoso compreender “povo” como um todo homogêneo e a ser conduzido por um
porta-voz da sua vontade única. A emergência de regimes totalitários no século XX
mostrou que isso leva à tentativa de eliminação violenta de quem aquela vontade não
compreende como (devendo ser) parte do todo – os outros ou as (ditas) “minorias”
(judeus, deficientes, ciganos, etc.). Por outro lado, as lutas por direitos promovidas por
esses outros, esses diferentes – negros, mulheres, homossexuais etc. – contra a
hegemonia de certa identidade dominante e normativa – para muitos, o homem adulto
heterossexual branco (cristão ocidental) – mostraram ainda mais claramente o quanto há
de violento também em sociedades (autoproclamadas) democráticas: o quanto o todo
forja uma identidade que esmaga o que, em relação a esta, se mostra diferente – e o faz,
sobretudo, pela privação de direitos. Nesse sentido, a luta dessas “minorias” (e
deixemos de lado o quanto pode haver de discurso da identidade hegemônica nessa
expressão) se estruturou, em linhas gerais, na constituição de identidades contra-
hegemônicas (movimento feminista, movimento negro, movimento GLBTT) que
reivindicavam a ampliação e efetivação de direitos. A esse quadro, pode-se acrescentar

9 Para o mesmo argumento que aparece em seguida, mas introduzido desde outra perspectiva, cf. os
artigos “Democracia, diálogo, violência: notas de uma política da singularidade” (publicado em:
http://www.diplomatique.org.br/acervo.php?id=3044) e “Notas de uma pedagogia da singularidade” (no
prelo).
Germano Nogueira Prado

ainda a luta por direitos sociais e pela justiça social, que visa à inclusão daqueles que
estão separados dos que são “mais iguais que os outros” por outras barreiras de
diferenciação – a desigualdade social (a essa altura, à identidade de “homem branco,
etc.”, deveríamos acrescentar algo como “capitalista” ou “de classe média” ou
“burguês” ou...).
Assim, algo fundamental vem à tona nessas lutas: o fato de que aquele “todos”
da democracia é composto por inúmeras diferenças e desigualdades. E se, por um lado,
é desejável que estas, as desigualdades, sejam eliminadas, sejam elas de direitos ou
desigualdades socioeconômicas – é verdade que, por outro lado, a eliminação das
desigualdades está a serviço justamente da promoção das ou, ao menos, do dar espaço
àquelas diferenças (de sexo, de cor, de gênero, de orientação sexual, de culto, de
cultura). Assim, se a democracia é mesmo o governo de todos, são esses os “todos” que,
igualmente, mas em sua (possível) diferença10, tem que ter voz no diálogo que ela é.
Mais, ainda: se é verdade que a (auto-)afirmação dos diferentes enquanto
diferentes é estruturada como contra-identidade, e mesmo que este tipo de afirmação
seja estrategicamente fundamental para a luta contra uma identidade hegemônica, talvez
seja preciso cumprir mais um passo para além da lógica de identidade e diferença (ao
menos no que se refere à diferença que se define por uma identidade constituída). E esse
passo é justo o de uma “política da singularidade”, isto é: a ideia de que, radicalmente
compreendida e exercida, a democracia “serve para” criar o âmbito ou os âmbitos em
que a vida de todos e de cada um possa se realizar livremente em sua singularidade. Em
sua singularidade, isto é: em suas múltiplas e sempre imprevisíveis (e em última
instância incompreensíveis) possibilidades. A tais possibilidades, a tal singularidade são
possíveis, claro, múltiplas identidades e diferenças – mas ela(s) não se reduz(em) a
estas. A singularidade se define justamente por ser o que escapa à definição e, assim, é
puro possível. O seu signo talvez seja justo o poder de surpreender – o que é também a
possibilidade de não surpreender (o que, dependendo do que se espera, pode ser ainda
mais surpreendente...).
O tratamento da singularidade aqui só pode ser sumário. A singularidade é o
fundamento da democracia justamente porque aquilo em que todos (nós) nos
encontramos é justamente a singularidade – é nela que se pode encontrar, nesse sentido,
uma universalidade (concreta). Todos e cada um de nós é singular ou, antes, vive

10 Cf. BAKUNIN, M. “A educação integral”.

177
FACES DA CRISE DA REPRESENTAÇÃO

singularmente. Pois “singularidade” é uma propriedade não (primordialmente) de


indivíduos, mas da vida ou, antes, dos âmbitos em que se dá vida: uma comunidade, um
grupo de amigos, uma conversa, uma sala de aula, bem como nesse conjunto de relações
consigo, com o próximo e com o diverso que cada um chama de “minha vida”. Como
fundamento da democracia e da vida de todos e de cada um (a rigor, fundamento da
democracia porque fundamento da vida de todos e cada um), a singularidade é o
passado da democracia, na medida em que aquilo que, em sua ideia, esta sempre já
pressupõe para vir a ser (o que é).
Mas, ao mesmo tempo, a singularidade é o sentido da democracia e, nessa
medida, o seu futuro. Pois ser singular é o poder ser de múltiplas maneiras de cada um,
de cada âmbito em que se dá vida. Esse caráter de possibilidade é o que dá a dimensão
de impossível fechamento (pleno) da vida enquanto tal e, assim, sua dimensão de
“eterno” porvir. Em correspondência a isso, a democracia é ela mesma sempre porvir:
nunca está acabada; é sempre, como a vida mesma pela qual ela se rege, uma tarefa,
algo por cujos sentidos a cada vez respondemos, ainda que não esteja sempre (se é que
está alguma vez) sujeita, como tal, à “vontade” de alguém. Os discursos que preferem
“construção da democracia” e/ou “democratização” ao substantivo “democracia” talvez
vislumbrem algo dessa dimensão.
Mesmo na nossa “democracia racionada”, para me apropriar de uma expressão
de Marighella11, talvez um sinal do caráter de abertura de uma democracia enraizada na
singularidade possa ser visto no fato de que, ao menos quanto ao princípio, o poder é
um lugar (de representação) aberto, vazio, que é de todos e de cada um, mas de
ninguém desde sempre e sempre determinado (em contraste com a monarquia, por
exemplo) – bem como na constatação, solidária a esta, de que um dos problemas está
justo no fato de que tal princípio não tem efetividade: são bem determinadas as
características que identificam o campo dos possíveis “representantes” de todos, à
diferença dos que não podem sê-lo. Assim, talvez o que “crise da representação” que
veio à tona nas ruas do Brasil e do mundo nos últimos tempos12 indique com clareza é
que o problema não está no campo dos representantes, que deveria ser mudado,

11 Cf.; http://www.viomundo.com.br/politica/lincoln-secco-e-o-risco-da-democracia-racionada.html
12 Os exemplos são abundantes: a recusa da presença de emblemas de partidos nas manifestações de
2013; o surgimento e a expansão, no bojo destas, dos mais diversos coletivos e assembleias horizontais e
autogestionários; a greve dos garis e dos rodoviários no Rio de Janeiro, construídas à revelia dos
sindicatos e contra a peleguice destes; a enorme abstenção nas eleições europeias de 2014, etc. E em tudo
isso, a incapacidade da política partidária de produzir um emblema que “represente” as ruas, que
“canalize” as suas demandas.
Germano Nogueira Prado

reestruturado e/ou ampliado, mas no conceito mesmo de representação, na diferença (na


desigualdade?) que este instaura e/ou pressupõe no “todos” que perfaz a democracia
enquanto tal, isto é, em sua ideia. Daí uma democracia direta poder ser, com pleno
direito, uma democracia radical, porque fincada na raiz mesma da democracia: o fato de
todos sermos igualmente (sob a condição de) singulares. Seja como for, o caráter aberto
da democracia, que provém do singular e caminha para este, o seu caráter de tarefa
parece indicar que, a rigor, ela nunca acaba de ser inventada13.
Creio que algo do gênero emergiu nas jornadas de junho: no comum das formas
de organização horizontal e de democracia direta o que se ensaia é uma comunidade em
que a singularidade tenha livre trânsito. Paradoxalmente, justo aí parece que a
democracia tende a ser não ligada a outro nome próprio – menos ainda a um ou outro
líder – , mas a construção do lugar comum de todxs e de cada um, para todxs e para
ninguém – ou, antes, para falar mais uma vez com Agamben, o lugar comum de uma
singularidade qualquer14.

13 O que, considerando a capacidade de se autoinventar do capitalismo e a sua construção e reconstrução


de identidades, sua capacidade de desterritorialização e reterritorialização, parece colocar a democracia
em uma espécie de (perigosa) “homologia”, de uma espécie de (perversa) “semelhança formal” com o
capitalismo – diante da qual talvez seja preciso insistir nos vetores inversos que “governariam” cada um
desses sistemas (universalidade abstrata do capital X universalidade concreta do singular...). O que, claro,
talvez não baste para pensar a relação entre um e outra. Em todo caso, essa relação não cheira à velha
ideia marxista, retomada por Negri, de que o capitalismo engendra em si seu fim quando produz o comum
da cooperação ((do capital) cognitiva(o)) que acaba por “dispensar” a figura do capitalista?
14 Ver A comunidade que vem (Belo Horizonte: Autêntica, 2013)

179
Resenhas
Murilo Duarte Costa Corrêa

Filosofia radical e utopia: universitários. Eis o que faz deste livro


inapropriabilidade, an-arquia, a-nomia
mais que uma vibrante experiência de
Andityas Soares de Moura Costa Matos
Belo Horizonte: Via Vérita, 2014. tessitura de horizontes pré, anti e
metaconceituais, mas o movimento
Elogio do intempestivo
constituinte de um gesto filosófico
Murilo Duarte Costa Corrêa original. A filosofia jurídica brasileira, a
exemplo da filosofia do direito cosidetta
universal (anglo-saxônica e europeia
“Filosofia Radical e Utopia”, de continental), permaneceu por muito
Andityas Soares de Moura Costa Matos, tempo presa das reduções
é talvez o primeiro livro de filosofia epistemológicas que a consideravam ora
política escrito por um jurista há muito como um apêndice da Teoria Geral do
tempo no Brasil. A filosofia que esse Direito, ora como um departamento de
texto seminal propõe é simultaneamente discussões metafísicas especializadas de
radical e utópica porque, à sombra de Teoria da Justiça; agora, encontra em
um só gesto, esboça tanto os elementos “Filosofia Radical e Utopia” uma
de recusa quanto os signos proposta amadurada, embora sempre e
genuinamente positivos de uma outra já a caminho, de ler a ontologia dos
filosofia do direito, pensada a partir de fenômenos jurídicos sob a chave de sua
seus vetores políticos e das formas de constitutividade inerentemente política.
vida que estes engendram. O amplo Se boa parte da tradição
campo de jogo conceitual que Andityas metafísica contemporânea ocupa-se do
mobiliza, junto à notável plêiade de missing link entre ontologia e política, o
leituras a cada vez cerzidas, forjadas e advento de uma Filosofia Radical não se
articuladas, tensiona uma linha de furta a reconhecer e a assumir em
ruptura em direção ao Fora e, a um só termos contrahegelianos, antidialéticos
tempo, manifesta o desejo candente de e pós-marxistas a precisa tarefa de seu
rasurar de maneira indelével os tempo: pensar, nas fendas de um
referenciais cômodos que constituem o horizonte temporal irreconciliavelmente
senso comum jusfilosófico brasileiro. fraturado, uma filosofia radicalmente
O texto assume o corajoso atrelada ao “tempo-de-agora”, mas que
projeto de constituir uma filosofia de não deixa de nutrir-se das cinzas da
ruptura no interior dos quadros memória imensa e extemporânea das

181
ELOGIO DO INTEMPESTIVO

lutas, nem ignora a tarefa de constituir- nela se produzem. Não é possível


se na indeterminação e na virtù de uma descentrar essa lógica na direção da
filosofia que vem. imanência, da singularidade e da
Toda a multiplicidade de que o diferença penetradas de multiplicidades
livro se compõe pontilhada por ensaios senão por meio de um gesto negativo
relativamente autônomos entre si e inaugural que recusa os efeitos
povoada por categorias multitudinárias, metafísicos unificadores e totalizantes
move-se em um solo unívoco de da Aufhebung hegeliana. Henri Bergson,
sentido: o questionamento aberto e e mais tarde Gilles Deleuze, criticaram
radical das estruturas ocidentais a dialética por não enxergarem nela
modernas de pensamento. Se, como mais do que um falso movimento
quisera Giorgio Agamben (2008 : 111), (Deleuze 1966 : 44; Hardt 1996 : 39 ). É
“toda cultura é uma experiência do contra as pretensões de concretude
tempo, e uma nova cultura não é pressupostas por este falso movimento
possível sem uma transformação desta que uma Filosofia Radical se erige, em
experiência”, é através das potências função dos movimentos reais e de sua
revolucionárias da recusa que as pluralidade desconcertante de
relações duracionais e políticas racionalidades/irracionalidades.
impostas pelo trabalho, pelo espetáculo Ocupações, manifestações, ações
e pela especulação podem ser diretas, greves gerais, desobediência
transformadas. Grande linha de fuga no civil e toda forma encarnada de recusa
imenso quadro dissolvido do Sein und do sequestro das potências constituem o
Sollen (Ser e Dever-Ser), a utopia não corpo teso, mas jamais o fundo, capaz
assinala o lugar do sonho ou do de abrigar multidões e efetuar a lógica
possível, sem relação com o real; antes, do acontecimento que uma Filosofia
define os múltiplos campos diferenciais Radical deve produzir como
em que o por vir – como uma “memória antidialética.
que nunca foi presente”, na feliz É da emergência das ações de
expressão de David Lapoujade – contestação e das contracondutas que se
irrompe na atualidade sob o signo deduz que uma Filosofia Radical “só
ingovernável do intempestivo. pode viver na dimensão da utopia”
A dialética é, sobretudo, um (Matos 2014 : 64). Entretanto, jamais
modo de se relacionar com a poderemos compreendê-la, a contrapelo
temporalidade e com os eventos que de seu significado etimológico, como o
Murilo Duarte Costa Corrêa

lugar tão obscuro quanto para sempre das novas formas de imaginação social
aberto, penetrado de perigos e de e política para além do Estado e dos
promessas, sem operar reversões na modos de vida para o trabalho, o
própria ontologia; é preciso “pensar a espetáculo, a especulação. O
negação com a mesma dignidade endividado, o midiatizado, o
ontológica reservada à afirmação” securitizado e o representado encarnam
(Matos 2014 : 69), deslocando o as formações subjetivas efeitos da
referencial aristotélico da concepção de reprodução em bloco dos referenciais
potência. Ponto luminoso em que a políticos, sociais, econômicos e
potência de não, de Agamben, encontra ideológicos operados pela nova
um Marx antidialético e um Debord temporalidade que o espetáculo
ontólogo, assume e rasura as ilusões do implicaria, segundo a chave ontológico-
tempo-de-agora, rejeita as “razões da política segundo a qual Andityas relê as
crise” e suas medidas opressoras principais teses de Debord.
travestidas pela necessidade, exerce O que nos impede de
uma função contraideológica e, a um só compreender adequadamente as ilusões
tempo, capaz de gerar anticampos: esses que emanam dos centros difusos de
“lugares físicos e reais” que reúnem “os poder? Nada como um puro efeito
não-lugares da impossibilidade”, os ideológico, nem uma falsa consciência
excessos de sentido que convocam a geral, mas os efeitos políticos de uma
outros mundos monstruosos e possíveis ontologia curto-circuitados com os
suturados pelos modos de vida para a efeitos ônticos de uma política; isto é, o
servidão e o capital. O anticampo é uma fato de nos encontrarmos presos ao
geografia da revolta traçada em “circuito que unifica repartição social,
oposição ao capital, mas também trabalho e violência” (Matos 2014 :
voltada contra as armadilhas do 122), na medida em que permanecemos
marxismo progressista, incapaz de expostos à temporalidade do espetáculo
pensar a revolução exceto sob o tecido contínuo, permanente e irreflexivo. Não
cerrado das teleologias histórico- se trata de um tempo circular ou linear,
dialéticas – unificação conservadora mas progressivo, sem início ou fim,
superior que a Filosofia Radical rejeita cujo desenrolar permanece
por princípio. integralmente condicionado pelo poder
É no seio dos anticampos que se do capital, que dispõe de uma infinita
avaliam os potenciais de transformação capacidade de reconfigurar e modular o

183
ELOGIO DO INTEMPESTIVO

passado e fechar qualquer possibilidade a um processo irrepetível de afirmação


de tempo futuro em um presente de político-econômica burguesa, que à
repetição nua: “resta apenas um tempo liberação de contingentes oprimidos
presente amorfo e artificialmente pelas múltiplas formas de violência
estendido diante de si mesmo [...]” sistêmica. Não se poderia fazer uma
(Matos 2014 : 152). revolução anticapitalista nos moldes das
Eis o que explica por que as revoluções burguesas. Seria preciso
novas dinâmicas das manifestações e inventar um anticampo como
protestos populares foram capazes de singularidade absolutamente nova,
abrir anticampos em espaços e por produzir em comum “o verdadeiro
durações limitadas, mas os eventos estado de exceção”, a que Benjamin
foram logo reconfigurados e aludia em suas Teses sobre o conceito
desacreditados pelas massmedia. Sob de história.
esse aspecto, uma das teses encriptadas Porém, o que podemos encontrar
em “Filosofia Radical e Utopia” poderia do outro lado? Em que consiste o lugar
ser enunciada diretamente: Toda da utopia que o tempo presente marca
metafísica é uma política. O que a com o signo ilusório do impossível – e
temporalidade do espetáculo dá a ver é que maio de 68 já havia desafiado com
que as capacidades de sequestrar, seu “Soyez réalistes! Demandez
modular e controlar a temporalidade dos l'impossible!”? A possibilidade de
eventos surgem como instrumentos constituição de uma comunidade
definidores de um “tempo-de-agora” humanas sem divisões entre oprimidos e
contra o qual resistir, pensar e lutar. opressores. Uma nova configuração
Todavia, não é possível resistir ou lutar para o princípio de imanência do poder
de modo eficaz sem pensá-lo – nem no corpo social, que Clastres havia
coagido por sua lógica insidiosa. descoberto nas sociedades primitivas,
O que a Filosofia Radical recusa, cuja única lei constitui a própria
em cada um de seus aspectos, é a lógica ontologia do ser social selvagem: não
intrassistêmica. Nesse sentido, ela se cair de amores pelo poder, nem se tornar
aproxima de um pensamento do Fora presa de seus apelos. Assim como entre
absoluto, segundo o qual mesmo os os índios, cuja antropologia política
direitos humanos e fundamentais antimoderna Clastres soube
garantidos em documentos formais compreender com precedência, e que
serviriam mais à mistificação, enodada Deleuze e Guattari estenderiam pouco
Murilo Duarte Costa Corrêa

tempo depois, uma pulsão igualitária e modernas, não é apenas um instrumento


anárquica percorre a totalidade do corpo de conservação da ordem jurídico-
social de uma comunidade que vem. política. Seu advento assinala o “mau
No entanto, torna-se impossível encontro” absoluto, o instante em que o
estimar o plural de que esse devir é feito poder abandona a imanência do corpo
sem conjurar os referenciais estatalistas social e constitui um poder separado e
que interditam a política e as vias ativas uma sociedade dividida. A violência e o
e passivas de uma violência criadora. poder que transcendem o corpo social
Eis o que Clastres havia percebido: constituem a origem da divisão entre
muito antes de incorporar-se aos senhores e escravos.
aparelhos militares de Estado, a Se os modernos idealizaram o
máquina de guerra primitiva voltava-se Estado como o agente monopolista de
contra a própria formação do Estado, uma violência sagrada – subtraída ao
cuja emergência política assinalava uso comum dos homens, segundo uma
virtualmente o aparecimento – contínuo inventiva definição de Agamben –, uma
apenas no imaginário etnológico Filosofia Radical assume a tarefa
impreciso da modernidade ocidental – contramoderna de dessacralizar a
das sociedades divididas entre violência e inventar para ela um uso
governantes e governados, opressores e comum, inapropriável e novo. Assim
oprimidos. Disso, derivam duas como a política já não pode ser
distensões capitais: (1) ao contrário do confinada ao Estado, tampouco “as
que afirmaram Marx e Engels, a violências” poderiam sê-lo.
dominação econômica não precede a Não se trata de fazer da
dominação política – nenhum homem violência a dimensão privilegiada da
seria obrigado a trabalhar mais do que o política, nem de descurar do Direito e
necessário para bem viver senão por um da lei, mas de perceber, como Andityas
efeito de poder e de sujeição – o que registra, que “o direito não está na lei,
implica que o Estado não é um efeito da mas em alguma dimensão que a
dominação econômica, mas que a antecede e a suspende […]. O segredo
dominação econômica e o próprio do nómos passa pela violência que os
advento do Estado são efeitos da gênese juristas contemporâneos cinicamente
da hierarquia; (2) o monopólio estatal tentam esconder sob as formas e os ritos
da violência, celebrado como marco de uma racionalidade comunicativa já
inaugural das civilizações ocidentais esgotada” (Matos 2014 : 261).

185
ELOGIO DO INTEMPESTIVO

Descrever que a condição Henrique Burigo. Belo Horizonte:


Editora UFMG, 2008.
contemporânea de exercício de poder
_____. Profanações. Tradução de
consiste em um “estado de exceção Selvino J. Assmann. São Paulo:
Boitempo, 2007.
como paradigma de governo” significa
_____. La puissance de la pensée:
precisamente que a força da lei essais et conférences. Paris : Rivages,
2006.
denodou-se de sua forma; que esta força
informe produz efeitos normativos BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito
da história. In: Obras escolhidas.
puros. A outra lei funda-se na
Magia e técnica, arte e política., Vol. 1.
imanência radical do poder ao corpo Tradução de Sérgio Paulo Rouanet. 7.
ed. São Paulo: Brasiliense, 1994.
social, na pulsão igualitária utópica e na
intempestiva guerra declarada contra as CLASTRES, Pierre. A sociedade
contra o Estado: pesquisas de
divisões que interdita, por meio de um
antropologia política. Tradução de Theo
gesto unívoco, o desejo de poder e a Santiago. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
_____. Arqueologia da violência:
servidão voluntária. Limiar em que
pesquisas de antopologia política.
Clastres encontra Agamben; em que a Tradução de Paulo Neves. Cosac Naify,
2011.
lei da selva é lançada no ecúmeno e no
por vir que os limiares de positividade DEBORD, Guy. La société du
spectacle. In: Œuvres. Paris :
de uma potência de não descerra: “A
Quarto/Gallimard, 2006, p. 764-861.
marca sobre o corpo, igual sobre todos
DELEUZE, Gilles. Bergsonisme. Paris
os corpos, enuncia: 'Tu não terás o
: Presses Universitaires de France,
desejo de poder, nem desejarás ser 1966.
_____; GUATTARI, Félix. Mil platôs:
submisso'”. Elogio da imanência
capitalismo e esquizofrenia. Volume 5.
intempestiva do desejo: única lei do Tradução de Peter Pál Pelbart e Janice
Caiafa. São Paulo: Editora 34, 2007.
mundo.
ENGELS, Friedrich; MARX, Karl. A
ideologia alemã. Tradução de Luis
Murilo Duarte Costa Corrêa é doutor
Claudio de Castro e Costa. São Paulo:
(USP) e mestre (UFSC) em filosofia e
Martins Fontes, 2008.
teoria geral do direito. Professor de
filosofia política de Direito da UEPG.
HARDT, Michael. Deleuze: um
Autor de “Direito e ruptura: ensaios
aprendizado em filosofia. Tradução de
para uma filosofia do direito na
Sueli Cavendish. São Paulo: Editora 34,
imanência” (Juruá, 2013) e de
1996.
“Filosofia Black Bloc”, no prelo.
Referências
LAPOUJADE, David. Puissances du
AGAMBEN, Giorgio. Infância e temps: versions de Bergson. Paris :
história: destruição da experiência e Presses Universitaires de France, 2010.
origem da história. Tradução de
Bruno Cava

Korpobraz; por uma política dos vincula sua trajetória à adesão das
corpos.
massas conscientes de sua missão
Giuseppe Cocco.
Rio de Janeiro: Mauad X, 2014. histórica. O pobre aí não passa de
matéria bruta que, no seio do trabalho de
A terceira estética de Glauber Rocha
base, ganha contornos de classe para
Bruno Cava
empreender a luta contra a burguesia.
O pensamento de
Pobreza e subdesenvolvimento Giuseppe/Glauber não separa a pobreza
da questão do subdesenvolvimento. O
Sob um olhar paternalista, os pobre é, imediatamente, o
pobres são tratados como oprimidos que subdesenvolvido. Nisso, seguem a trilha
dependem de uma instância externa para de Oswald de Andrade, cuja
se organizar e lutar por direitos. Uma antropofagia significava, antes de
versão à esquerda desse paternalismo qualquer coisa, reconhecer a dimensão
consiste em rebaixar os pobres na mesma positiva do pobre. Em vez dos modelos
medida em que os elogia. Trata-se de europeístas do desenvolvimento, é sair
uma postura ambígua que, se de um lado do subdesenvolvimento pela via do
festeja a massa alegre e cheia de vida, de próprio subdesenvolvimento, sua
outra a confina num mundo simplório. riqueza, sua positividade.
Para Giuseppe, na esteira de Existe uma estranha afinidade de
Glauber Rocha, é preciso romper com fundo entre quem, à esquerda, enfrenta o
essa concepção redutora do pobre e subdesenvolvimento com as várias
resgatá-lo como sujeito político. Para pedagogias da conscientização, e quem
eles, o pobre não é povão. Os pobres não atribui cabalmente ao pobre o caráter de
constituem uma categoria sociológica, vergonha nacional. A mente colonizada
em oposição às elites e sob a tenta expulsar o subdesenvolvimento
intermediação de interesses por uma pela porta, mas ele retorna pela janela e,
classe média inexoravelmente uma vez infiltrado na má consciência,
inautêntica. leva o subdesenvolvido a cobiçar os
É preciso romper com a tradição limites inferiores da cultura do
que, de Gramsci às esquerdas da colonizador, em papel de coadjuvância
América Latina, fomenta uma — que é o máximo que ele vai ter em
consciência nacional-popular com termos de reconhecimento pelos
pretensões de galgar o poder, mas que senhores que escolheu para si.

187
A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

Com Glauber e Giuseppe, o


A potência dos pobres problema da comunicação precisa ser
substituído pelo problema da criação,
Assumir a dimensão positiva da que cria o público de que precisa. Criar é
pobreza, da dor, da fome significa revolucionar, autodotar-se das
cultivar as insuficiências e esforços, para ferramentas e condições com o que se
deles fazer uma força motriz de recriação poderá subverter o pântano apassivador
do sensível. Isto conduz para além do em que a libertação está de antemão
desenvolvimento e seus modelos. frustrada. Precisa-se de um salto
Nenhuma concessão, aqui, a fatalismos qualitativo, um gesto de convocação que
que se resumem a explicar a pobreza por abre as cortinas para o teatro da grande
meio das suas privações, tomando assim política.
a falta por natureza e, portanto, destino. Disso decorrem três estéticas, três
Existe uma potência do inquietações materiais de um tempo de
subdesenvolvido. luta que pontuam o percurso de Glauber
A estética na condição do Rocha, inquietações que anseiam por
subdesenvolvimento não pode coadunar dilacerar expressão e conteúdo.
com exotismos que enxergam sujeitos
fabulosos entre os pobres enquanto os A primeira estética: eztetyka da fome
apartam da capacidade de abstração.
Desrespeitosa a diretriz de “estar com o A fome aqui é o expressivo dado
povo, minha arte comunica”, tanto positivo, retomado do tema oswaldiano
quanto qualquer tendência comercial de da devoração. Manifesto escrito em
“atingir o público”. Tão adequada ao 1965, sob o rugido do alastramento de
primarismo preguiçoso que costuma se guerrilhas, a resistência argelina, o
esconder nas saias da falsa generosidade, imediato pós-golpe no Brasil, os ventos
ao pretender “falar coisas simples que o das revoluções globais.
povo entenda”. Daí o combate do
cineasta baiano contra a chanchada, que A eztetyka da fome transpõe à
acha genial a desgraça e morre de rir da criação o esquema estrutural da obra de
miséria, mas também contra o realismo Franz Fanon, o teórico das lutas
socialista, arte comandada por burocratas anticoloniais. Essa é sua premência e sua
de partido. intempestividade, mas também será sua
limitação.
Bruno Cava

A saída da primeira estética é a A segunda estética: eztetyka do sonho


violência do subdesenvolvido. A
violência do oprimido guarda assimetria As guerrilhas foram esmagadas,
em relação a do colonizador. Além de Brasil vive Médici e o mundo das lutas
condição material, a miséria penetra no padece o refluxo de maio de 1968, além
espírito e intoxica o colonizado do da morte de Hendrix. Legitimar a
veneno da impotência. A fome produz violência que nasce da pobreza não
fraqueza e delírios. É pela violência, desencadeou as forças revolucionárias
somente, que a grande saúde reanima o que ela abriga, perdendo-se num
corpo dos pobres, reunindo-os na luta. esquematismo sem corpo. Assim como
Daí, em Deus e o diabo na terra não há conteúdo revolucionário sem
do Sol (1964), os revolucionários estética revolucionária, a insuficiência
primitivos sob a liderança cangaceira de política ressoa num esgotamento
Corisco. Quem não aspira à violência, estético. A geração faz uma virada.
condena-se como Paulo Martins, de Em 1971, Glauber lança o
Terra em transe (1967), a oscilar entre manifesto da segunda estética, em
uma burguesia indolente e o populismo resposta à recepção do filme Dragão da
rasteiro da esquerda partidária, ao final maldade contra o santo guerreiro (1969).
sozinho de fuzil na mão. A preocupação, agora, é sondar o
Em termos estéticos, o lance é subsolo mítico do inconsciente
violentar, por meio do horror, do grito, subdesenvolvido. Se os primeiros filmes
da feiura, a sensibilidade forjada pela ainda estão assentados sobre uma
cultura desenvolvida: sejam aqueles que didática e uma épica, explicação e
saboreiam a miséria como dado formal, estímulo, Brecht e Eisenstein; nos anos
sejam os que a instrumentalizam para 70 o cineasta se desvencilha
seus projetos socialistas de poder. sucessivamente da dialética histórica,
Por isso, o povão, à esquerda ou mais interessado em ir diretamente ao
direita, é criação da burguesia e deve ser manancial afro-indígena-brasílico.
incessantemente profanado enquanto Nenhuma pedagogia, por favor.
depósito de esperança. Isso Glauber sabe Momento em que Glauber faz a digestão
fazer, em sucessivas e dolorosas do furacão tropicalista que acabara de
provocações pelo que jamais ele seria passar. Em Vento do leste (Godard,
perdoado. 1969), entre o caminho das vanguardas
europeias e a construção do divino &

189
A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

maravilhoso cinema do terceiro mundo, Rosselini, mas Buñuel; não mais Brecht,
Glauber escolherá o último. A razão que mas Artaud. E novamente Oswald.
conhecemos é burguesa e ela fala mais
alto no estado. A saída da segunda A terceira estética: eztetyka do êxodo
estética é o inconsciente. O conteúdo
procura assim a energia subversiva, a No último capítulo de
afirmação do Outro em relação à KorpoBraz, Giuseppe revolve os escritos
racionalidade moderna. de Glauber perto da morte do cineasta,
Fanon é deixado de lado. O em 1981, para assinalar uma terceira
escritor antilhano repudiava o lado estética ou “terceyro modelo”, “terceira
místico da África por considerar que força: imagens e sons do povo”, nas
danças e rituais desperdiçavam palavras do diretor. A longa ressaca da
importantes energias revolucionárias. Já década de 1970 implodiu o imaginário
o baiano, ao contrário, prefere a revolucionário e a reestruturação do pós-
macumba ao panfleto e vê a razão de fordismo parece empurrar o horizonte de
esquerda herdeira da razão das lutas até o inefável.
revoluções burguesas. De volta ao Brasil, Glauber
É por isso que Glauber, ao parece exilado em seu próprio país. Por
conhecer a Teologia da Libertação, não um lado, apartado de condições materiais
vai interpretá-la como uma conversão de de produção, por outro, execrado pelas
uma fração do cristianismo ao marxismo, esquerdas sobreviventes como maldito
mas uma sincretização mística do irresponsável.
próprio marxismo. A TL significa antes É nessa situação de total
uma potenciação dos socialistas graças à precariedade quando emerge Idade da
matriz afro-índio-brasílica do Terra (1980), o último filme. Próximo do
cristianismo, do que dos cristãos pela via muralismo, num encadeamento veloz de
do socialismo. temas, Idade da Terra encerra um brutal
A estética revolucionária, esforço de metabolização.
portanto, só pode ser antirrealista, “Síntese”, sobretudo, da máxima
inclusive antineorrealismo e o nacional- contradição entre a gradiosidade de um
popular à italiana. Tal nova atitude de projeto, repleto de amplas panorâmicas
ruptura transborda nos filmes Leão de em Cinemascope, e a dissonância de sua
sete cabeças e Cabeças cortadas (ambos execução precária. O que aliás
de 1970). A referência não é mais acompanhou toda a cinematografia de
Bruno Cava

Glauber, na contingência de atuar subdesenvolvido, em Fanon; nem a


simultaneamente como diretor, produtor, libertação do inconsciente impregnado
publicitário, crítico de si mesmo, tudo. nas formas culturais do colonizador, num
Depois do cristo anárquico de movimento de dessublimação do tipo
Buñuel e do materialista de Pasolini, freudiano-marcusiano.
Idade da Terra é protagonizado por A libertação do corpo
quatro cristos (negro, índio, europeu e subdesenvolvido começa a dar-se na
guerrilheiro) e um diabo (Brahms, o potência de arranjos sincréticos de alta
imperialista). Nenhum resquício de intensidade. Recompõe-se na potência
pedagogia das massas ou fábulas de das culturas de resistência, lutas
consciência, apenas a abertura do leque indígenas, raciais, das mulheres, de um
de intensidades, que saltam das sindicalismo de novo tipo.
paisagens monumentais e frustram Marcantes na vida cultural desse
sentidos lineares. O mito de Cristo, período, além de Idade da Terra, o
miscigenado pelas raízes afro-índio- trabalho de copesquisa de um Eder
brasílicas, proporciona a energia vital Sader, ou então a passagem avassaladora
para, uma vez mais, recompor o sensível de Felix Guattari com Suely Rolnik
das lutas de seu tempo. pelos novos coletivos, em 1982, numa
Entre birita, pó, carnaval, torre de história até hoje subestimada.
televisão, o vasto Planalto Central, o
desfile de corpos selvagens, minoritários, Devir-brasil
infartados, operários, utópicos. A
“síntese neobarroca” querida por No percurso glauberiano, da
Glauber se mostra, afinal, um grande primeira à terceira estética, de Deus e o
afresco da brasilidade menor que se diabo à Idade da Terra, a fragmentação
recompunha na virada para os anos 80, do Brasil é exponencial, resultado das
limiar da crise da ditadura e da aparição miscigenações cruzadas. Estamos longe
de novos movimentos de lutas. da literatura de formação nacional ou de
Giuseppe enxerga, neste último um Gilberto Freyre, já que a síntese não
Glauber, a terceira estética. O momento admite uma substância propriamente
em que as forças emergentes se brasileira, por exemplo, a democracia
reconfiguram e escapam das formas racial. Admite, isso sim, o que Giuseppe
nacionalistas e autoritárias. Não mais a chama de devir-Brasil, que
libertação pela violência do imediatamente se contrapõe aos projetos

191
A TERCEIRA ESTÉTICA DE GLAUBER

neocoloniais de país, à esquerda ou controle que operam com distribuições


direita. esparsas, moleculares, ordenando nuvens
No devir-brasil, a mestiçagem estatísticas. Tudo isso que, no Brasil,
não forma um corpo da nação, como transformou o país nas décadas
desejado pelos ideólogos do povo. O seguintes.
povo está molecularizado em Mas KorpoBraz contrapõe-se
microforças minoritárias, engendradas escapando. A saída da terceira estética,
dos fluxos do Atlântico, da afrodiáspora, nem violência nem sonho, é a fuga.
dos devires indígenas e dos imigrantes Menos fugir da pobreza, do que “fazer a
europeus, das tradições caboclas, da pobreza fugir”, nos termos de Rociclei
cristianização descontrolada. Nesse Silva, citado por Giuseppe.
processo, a classe trabalhadora primeiro Quando a violência direta é
virou suco e depois gás, proletariado capturada numa dialética estrutural, num
nômade. jogo estéril entre imperialismos (tema do
O capital vem atrás, para capturar Império); quando o capitalismo monta
a fuga, perseguindo-lhe as linhas de seu cativeiro de sonhos incorporando-os
fragmentação. O salário moleculariza-se à dinâmica do consumo (tema do
em relações de serviço, flexíveis, Controle); a terceira estética vai ao
enquanto a metrópole se torna a nova deserto para recompor-se com seus mil
fábrica, numa difusão generalizada de cristos entre carne e libertação. Não é
circuitos produtivos e circulatórios. Essa mais possível projetar o êxodo num lugar
mutação qualitativa força as tecnologias mítico: é corpo de imediata presença,
de controle a funcionar no aberto, em como queria Glauber.
variação contínua.
As sociedades de controle, de que Bruno Cava é autor de “A multidão foi
ao deserto” (2013), escritor e
fala Gilles Deleuze, passam a funcionar
pesquisador associado à rede
por meio da empresa, das finanças e da Universidade Nômade, bloga no
quadradodosloucos.com.br
publicidade, formas moduladas de
Resumos
RESUMOS

PODEMOS, ENTRE MULTIDÃO E HEGEMONIA: NEGRI OU LACLAU?


Bruno Cava
RESUMO: O artigo desenvolve uma análise situada da experiência de formação do
partido Podemos no âmbito da Espanha pós-Movimento do 15 de Maio. A análise
material procede das relações de força conforme duas configurações possíveis do enjeu:
de um lado, a quadratura populista, a partir dos conceitos do teórico pós-marxista
argentino Ernesto Laclau; de outro lado, a tomada do efeito-Podemos por meio das
teorias pós-estruturalistas da multidão, de Toni Negri e Michael Hardt. Trata-se, assim,
de tomar o Podemos para além da interpretação populista-hegemonista, de chave
laclauliana em termos de teoria do discurso, para avançar numa concepção imanente do
fenômeno. Pensa-se, dessa maneira, num Podemos além Podemos, como continuação
do processo de lutas do 15M noutra realidade histórico-política, em que ele reabre os
desafios e repõe os problemas do poder constituinte.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Teoria da multidão. 2. Ernesto Laclau. 3. Antonio Negri.
ABSTRACT: The article develops an analysis located the party training experience we
can within the Spain post-Movement 15 May. Material analysis proceeds of power
relationships as two possible configurations of enjeu: on the one hand, the populist
square , from the concepts of the Argentine post- Marxist theorist Ernesto Laclau ; on
the other hand , the taking of the effect we can through poststructuralist theories of the
multitude, Toni Negri and Michael Hardt. We are thus taking the Can beyond the
populist - hegemonic interpretation of laclauliana key in terms of the theory of
discourse, to advance an immanent conception of the phenomenon. It is thought that
way , in addition We can We can , as a continuation of the process of 15M struggling in
another historical- political reality, as it reopens the challenges and restores the
constituent power problems.
KEYWORDS: 1. Multitude theory. 2. Ernesto Laclau. 3. Antonio Negri.

PODEMOS, AMÉRICA DO SUL E A REPÚBLICA PLURINACIONAL DA


ESPANHA
Salvador Schavelzon
RESUMO: Neste trabalho ensaiamos uma aproximação ao projeto político Podemos,
aparecido na Espanha em 2014, com os processos políticos “progressistas” da América
do Sul, iniciados nos anos 2000. Avaliamos o desenvolvimento de uma proposta com
ênfase na política social e o Estado, que da conta de um imaginário político-discursivo
compartilhado entre as experiências mencionadas. Tentamos identificar este lugar
político que busca construir uma ferramenta eleitoral que abra uma nova fase política
visando uma saída da austeridade e do neoliberalismo se afastando, ao mesmo tempo,
de uma política que podemos identificar com as ruas; com projetos de
autodeterminação, autonomia e comunidade; com redes e horizontalidade para a gestão
do comum. Sugerimos que o processo constituinte boliviano (2006-2009) tem especial
interesse para uma caracterização do projeto político em questão, como aparece
claramente quando consideramos a recuperação do conceito de plurinacionalidade na
Espanha, como forma de lidar com reivindicações locais de soberania, desde um olhar
que prioriza a coesão nacional e um projeto centralista de mudança.
PALAVRAS-CHAVE: 1. América do Sul. 2. Bem viver. 3. Plurinacionalidade. 4.
Podemos.
ABSTRACT: In this work we make an approach to the political project Podemos,
appeared in Spain in 2014, with the political "progressive" processes in South America,
RESUMOS

started in the 2000s. We evaluate the development of a proposal with an emphasis on


social policy and focus on the state that account of a political and discursive imaginary
shared between the mentioned experiences. We try to identify this political place that
seeks to build an electoral tool that opens a new political phase aiming an output of
austerity and neoliberalism in a way, at the same time, distant to other political views
that we can identify with the streets; self-determination, autonomy and community; with
networks and horizontalism for the organization of the common. We suggest that the
Bolivian Constituent process (2006-2009) is of special interest for a characterization of
the political project in question, as it appears clearly when we consider the recovery of
the concept of Plurinacionality in Spain as a way of dealing with local sovereignty
claims, from a look that gives priority to national cohesion and a centralized project of
change.
KEYWORDS: 1. South America. 2. Buen vivir. 3. Plurinationality. 4. Podemos.

PODEMOS ALÉM PODEMOS, POR UM PODER CONSTITUINTE NA


EUROPA
Raúl Sánchez Cedillo e Toni Negri
RESUMO: O pesquisador e tradutor espanhol Raúl Sánchez Cedillo e o filósofo
italiano Antonio Negri publicaram, entre fevereiro e abril de 2015, uma série de quatro
artigos sobre as coordenadas em que se inscreve a experiência do Podemos na Espanha
e da Syriza, na Grécia, cada artigo abordando o problema de um ângulo diferente. A
seguir, estão os quatro artigos traduzidos dos originais espanhóis ao português, pela
Universidade Nômade.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Podemos. 2. Syriza. 3. Antonio Negri.
ABSTRACT: The researcher and Spanish translator Raúl Sánchez Cedillo and the
Italian philosopher Antonio Negri published between February and April 2015, a series
of four articles on the coordinates which is part of the experience we in Spain and
Syriza in Greece, each article addressing the problem from a different angle. Following
are the four articles translated from the Spanish original to the Portuguese, by the
Universidade Nomade.
KEYWORDS: 1. Podemos. 2. Syriza. 3. Antonio Negri.

FORA DO MERCADO: AO LARGO DA ETNOGRAFIA DE RUA NA RUA


Márcio Tascheto da Silva
RESUMO: O artigo intenciona debater a produção de imagens sobre a cidade a partir
da propaganda do automóvel Citroen C4 lounge, realizada na cidade de Porto de
Alegre/RS. Para tanto, desenvolve a problematização da desertificação da cidade como
um sintoma do declínio do espaço publico em quatro figuras subjetivas da crise: o
endividado, o midiatizado, o securitizado e o representado. O esquadrinhamento do
espaço urbano corresponde ao esquadrinhamento da subjetividade, constituindo uma
séria de linhas de segmentação que privilegiam os espaços privados em detrimento dos
espaços públicos, desencadeando uma micropolítica das inseguranças cotidianas. Nesse
sentido, aciona toda uma administração dos medos que direciona para soluções pelo
viés do consumo, imputando ao individuo mecanismos de culpabilização e
circunscrição das possibilidades de enfrentamento aos problemas urbanos em
alternativas segregacionistas e de negação da cidade. Em cotejo a essa tendência é

195
RESUMOS

relatada a experiência com etnografia de rua e seus desdobramentos para a produção de


imagens outras sobre a cidade.
PALAVRAS CHAVE: 1. Medo. 2. Cidade. 3. Publicidade. 4. Segurança. 5. Etnografia
de rua.
ABSTRACT: The article intends to discuss the production of images of the city from
the Automobile Advertising Citroen C4 lounge, held in Porto Alegre / RS. To this end,
develops questioning the city of desertification as a symptom of the public space decline
in four subjective figures of the crisis: the debt, the mediatized, securitized and
represented. The scrutinizing of urban space corresponds to rummage subjectivity,
constituting a serious segmentation lines that favor the private spaces to the detriment of
public spaces, triggering a micro of everyday insecurities. In this sense, it triggers a
whole administration fears that directs solutions to the bias of consumption, imputing to
the individual mechanisms of blame and division of coping possibilities to urban
problems segregationist alternatives and denial of the city. In collating this trend is
reported the experience with street ethnography and its consequences for the production
of other images of the city.
KEYWORDS: 1. Fear . 2. City . 3. Advertising . 4. Security . 5. Street Ethnography.

BENJAMIN E A PERCEPÇÃO COLETIVA


Maurizio Lazzarato
RESUMO: Este é o capítulo conclusivo denominado “Benjamin e a percepção
coletiva” do livro “Videofilosofia” de Maurizio Lazzarato, publicado em 1996. Nesta
obra, Lazzarato liga de forma inédita e original as obras de Walter Benjamin, Mikhail
Bakhtin, Henri Bergson e Friedrich Nietzsche no intuito de apreender as
particularidades do capitalismo pós 1968, principalmente com relação à ontologia do
tempo. Para ele, a força do capitalismo residiria na subordinação do tempo-potência em
tempo-medida, inversão essa operada pelo capitalismo através de vários mecanismos.
As tecnologias digitais seriam, pois, os dispositivos mais atuais, pujantes e
emblemáticos do capitalismo contemporâneo.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Capitalismo; 2. Percepção coletiva; 3. Pós-fordismo; 4.
Tempo-potência
ABSTRACT: This is the concluding chapter called "Benjamin and the collective
perception " of " Videofilosofia " Maurizio Lazzarato , published in 1996. In this work ,
Lazzarato alloy unprecedented and original way the works of Walter Benjamin ,
Mikhail Bakhtin , Henri Bergson and Friedrich Nietzsche in order to grasp the
peculiarities of capitalism after 1968 , especially in relation to the time ontology. For
him, capitalism's strength lie in tying time - power on - time measure, this reversal
operated by capitalism through various mechanisms . Digital technologies would thus
be the most current devices , mighty and emblematic of contemporary capitalism .
KEYWORDS: 1. Capitalism ; 2. collective perception; 3. Post -Fordism ; 4. Time –
Power.

PROTEÇÃO SOCIAL E TRABALHO NO BRASIL EM TEMPOS DE


CAPITALISMO COGNITIVO
Cecília Paiva Neto Cavalcanti
RESUMOS

RESUMO: O ensaio trata da proteção social na contemporaneidade, abordada a partir


da sua vinculação estreita com o trabalho, buscando identificar como se conforma esta
relação hoje a partir das mudanças no modelo produtivo e de acumulação e seus
impactos nas formas e relações de trabalho e no padrão vigente de política social no
contexto brasileiro. Apresenta ainda a proposta de constituição de uma renda
existencial, defendida por diversos segmentos sociais, e com potencial aglutinador de
lutas, como modelo de sociedade e desenvolvimento alternativo ao hegemônico.
PALAVRAS-CHAVE: trabalho; proteção social; renda de existência.
ABSTRACT: This article is about the social protection in contemporary times, through
from its close linking with work, trying to identify how this relationship conforms today
through changes in the production and accumulation’s model and its impact on
relationships and forms of work and the standard current of social policy in the
Brazilian context. It also presents a proposal for the establishment of an existential
income, supported by various social groups, and with potential to unify various
struggles, as a model of society and development’s model alternative.
KEYMORDS: work; social protection; existential income.

IMPLEMENTAÇÃO DO CONSELHO DA IGUALDADE RACIAL EM


TEÓFILO OTONI-MG/BR: UMA LUTA TAMBÉM DO SERVIÇO SOCIAL
Sidimara Cristina de Souza e André Augusto Pereira Brandão
RESUMO: O trabalho apresentado tem como objetivo fazer um breve resgate da
trajetória do Movimento Negro, pontuando as conquistas e desafios encontrados nessa
caminhada histórica. Após essa viagem ao passado será discutido o reflexo do
Movimento Negro na cidade de Teófilo Otoni-MG/BR, destacando o processo de
construção do Conselho da Igualdade Racial na cidade e a importância do engajamento
político do Serviço nessa luta junto aos grupos que apóiam e defendem tal bandeira.
PALAVRAS-CHAVE: 1. Movimento Negro. 2. Teófilo Otoni. 3. Conselho. 4.
Participação Política
ABSTRACT: The presented work aims to briefly rescue the trajectory of the Black
Movement , highlighting the achievements and challenges encountered in this historic
walk . After this trip to the past discussed the reflection of the black movement in the
city of Teófilo Otoni - MG / BR , highlighting the construction process of the Council
for Racial Equality in the city and the importance of political engagement in this
struggle together to service groups that support and defend such a flag.
KEYWORDS: 1. Black Movement. 2. Theophilus Otoni. 3. Council. 4. Political
Participation

197

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