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CARLOS MONTAÑO

PREFÁCIO DE ANGÉLICA LOVATTO

“IDENTIDADE”
E
CLASSE SOCIAL
UMA ANÁLISE CRÍTICA PARA A ARTICULAÇÃO
DAS LUTAS DE CLASSES E ANTIOPRESSIVAS
O
livro “Identidade” e Classe Social é uma obra teórica que analisa com rigor e
clareza uma das questões políticas mais importantes da atualidade: devemos
abandonar a luta de classes e acreditar que todas as opressões de gênero, raça
e sexualidade serão superadas dentro da ordem capitalista? Defendendo a importân-
cia primordial da luta de classes para a superação do capitalismo, Carlos Montaño faz
um balanço crítico das teorias que transformaram as lutas contra opressões especifi-
cas (de gênero, raça, sexualidade) em uma espécie de identitarismo sem perspectiva
unitária, levando mesmo a rivalidades e à política de “cancelamento” entre distintos
movimentos. A crítica do autor incide especialmente sobre os equívocos das teorias
pós-modernas, que terminam sendo capturadas pela lógica individualista do neoli-
beralismo, em que a ideologia do empreendedorismo (que encobre o desemprego, a
precarização e a perda de direitos trabalhistas) tem seu correlato na falácia do “em-
poderamento” e o debate político é cerceado em nome do “lugar da fala” que, em
última instância, nega qualquer possibilidade de unidade na luta.
Portanto, não se trata de negar a importância dos movimentos sociais organizados em
torno de opressões específicas, mas de apresentar os equívocos políticos e teóricos
dos chamados identitarismos. Por mais bem intencionadas que sejam algumas cor-
rentes identitárias a verdade é que o apelo a uma pretensa identidade racial ou sexual
termina por naturalizar justamente aquilo que deve ser denunciado. A lógica identi-
tarista constitui uma espécie de essencialismo e permanece prisioneira da armadilha
da identidade quando justamente se trata de colocar em questão as condições his-
tóricas que tornaram o negro um escravo e a mulher o apêndice do homem. Sem se
dizer que na Europa os grupos que se definem como identitários são exatamente os
que defendem o supremacismo branco.
O capitalismo não inventou nem o patriarcalismo nem o racismo, mas se apropriou
dessas discriminações de maneira a aumentar sua taxa de lucro. Ao mesmo tempo em
que o capitalismo subordinou e continua submetendo parcelas crescentes do globo
terrestre à lógica do lucro, as demais opressões também foram se adequando ao im-
pério do Capital. O trabalho doméstico não pago, a desvalorização da mão de obra
feminina e o racismo são poderosas ferramentas para a acumulação capitalista. Mes-
mo importantes vitórias no tocante aos direitos sexuais, transformaram-se em novos
instrumentos de mercantilização do corpo.
Dessa maneira, na nossa realidade concreta, as formas de opressão se misturam e se
reforçam mutuamente, razão pela qual a transformação radical da sociedade supõe
a superação da exploração capitalista e de todas as formas de patriarcalismo e racis-
mo. E nesta luta as militâncias refletem os lugares e as condições de existência de
cada um e cada uma de nós, mas tendo como horizonte comum uma nova sociedade
baseada no respeito à natureza, em novos modos de vida, sem quaisquer tipos de
exploração de classe ou opressão de gênero, raça/etnia ou orientação sexual.
O livro de Carlos Montaño é uma importante contribuição para os estudiosos e mili-
tantes de todos os gêneros e cores.

Maria Lygia Quartim de Moraes


Cientista Social e Professora Titular
na UNICAMP e UNIFESP
CARLOS MONTAÑO

“IDENTIDADE”
E CLASSE SOCIAL
UMA ANÁLISE CRÍTICA PARA A ARTICULAÇÃO
DAS LUTAS DE CLASSES E ANTIOPRESSIVAS

São Paulo
2021
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL.
Uma análise crítica para a articulação das lutas de classes e antiopressivas

Produção: Editora Anita Garibaldi

Revisão técnica: Theófilo Rodrigues

Revisão textual: Pedro Siqueira

Revisão final: Carlos Montaño

Administração: Laércio D’Angelo

Projeto gráfico, diagramação e capa: Cláudio Gonzalez

Imagem de capa: “Manifestación” (1934), tela-mural (têmpera em estopa, 180 x 249,5 cm.)
do argentino Antonio Berni (Rosario, 1905 - Bs. As., 1981), fundador do “Novo Realismo”.
MALBA (Museo de Arte Latinoamericano), Coleção Constantini, Buenos Aires, Argentina.
Ver em: <https://coleccion.malba.org.ar/manifestacion/>; acesso em jan. de 2021.

Direitos compartilhados desta edição: Editora Anita Garibaldi / Carlos Montaño


Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor.
© by Carlos Montaño

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD


M765i Montaño, Carlos

“Identidade” e classe social: uma análise crítica para a articulação das lutas
de classes e antiopressivas / Carlos Montaño. – São Paulo : Anita Garibaldi,
2021.
416 p. ; 16cm x 23cm.

ISBN: 978-65-89805-05-2

1. Ciências políticas. 2. Identidade. 3. Classe Social. 4. Lutas Antiopressivas.


5. Lutas de Classes. 6. Identitarismo. 7. Revolução. 8. Emancipação. 9.
Movimentos Sociais. 10. Opressão. 11. Marxismo. I. Título.

2021-1719 CDD 320


CDU 32

Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410

Índice para catálogo sistemático:


1. Ciências políticas 320
2. Ciências políticas 32

CONSELHO EDITORAL
Ana Maria Prestes Augusto Cesar Buonicore (in memoriam) Cláudio Gonzalez
Fábio Palácio de Azevedo Fernando Garcia de Faria João Quartim de Moraes
Júlio Vellozo Manuela D’Ávila Mariana de Rossi Venturini Nereide Saviani
Nilson Araújo Nilson Weisheimer Osvaldo Bertolino Thiago Modenesi
Aos meus pais, Luis Alvaro
(in memoriam) e Lucy, membros
de uma geração que lutou para nos
deixar um mundo mais justo.
Ao meu filho, Miguel, para que
possa herdar de nossa geração um
mundo não tão conturbado!
Agradecimentos
Muitas são as pessoas que gostaria de agradecer aqui. Afinal, não
se chega a este momento se não a partir de histórias, processos,
caminhos... todos eles “codo-a-codo” com muitos que estiveram
presentes nas lutas, nos debates, compartilhando a indignação com
toda forma de exploração, opressão e desigualdade social. A lista seria
quase interminável.

Quero, no entanto, registrar meu agradecimento especial àqueles


que, de uma ou outra forma, acompanharam mais estreitamente este
processo específico do debate aqui condensado neste livro.

Aos amigos e camaradas Francisco Teixeira, Gabriel Martins, Luiz


Eduardo Motta e Mário Duayer (levado pela trágica pandemia da
Covid-19, a quem vai minha homenagem), por suas atentas leituras e
comentários, que muito contribuíram para enriquecer o debate aqui
apresentado.

A Angélica Lovatto vai meu muito especial agradecimento, não só


pelo maravilhoso Prefácio, que muito engrandece este livro, mas
por todo o envolvimento e cumplicidade neste processo de debate e
construção, fazendo também importantes contribuições ao texto.

Minha gratidão também a Maria Lygia Quartim de Moraes, pela


sua pronta disposição a contribuir com sua magnífica reflexão nas
“Orelhas” do livro.

Igualmente quero expressar meu agradecimento a Edson França,


Gerson de Souza Oliveira e Soraya Moura, pela atenta leitura para a
elaboração da “Quarta Capa” deste livro.

À Editora Anita Garibaldi, particularmente ao Cláudio, que abraçou


o desafio desta publicação em meio à pandemia. Aliás, nada mais
oportuno para um livro que trata do entrelaçamento entre classe
e identidade que ser publicado na editora que leva o nome da
revolucionária Anita Garibaldi.
Também quero registrar aqui meu profundo agradecimento a Lucy
e Paula, minha mãe e irmã, pelo estímulo de sempre, especialmente
nestas reflexões. A Yolanda, Janete e Silene, minhas caras amigas, e
ao Leo, pelos comentários e vibrações. A Gianne, por toda a força
para levar adiante este projeto. Aos membros do Grupo de Leitura de
“O Capital”, do Núcelo de Estudos Marxista sobre Política, Estado,
Trabalho e Serviço Social (PETSS-UFRJ), pelo seu apoio e estímulo,
sempre motivador.

Finalmente, em sua peregrinação por Macondo, nos “tempos de


Covid”, Soledad esteve sempre presente, dramática e intensamente,
durante todo este processo de concepção, estudo e elaboração do
texto.
SUMÁRIO
Prefácio | Angélica Lovatto 13
Introdução 29

PRIMEIRA PARTE
A “IDENTIDADE” COMO CATEGORIA POLÍTICA E A “LÓGICA IDENTITARISTA”
PÓS-MODERNA 35

1. As origens da “identidade” como categoria e objeto teórico-políticos 37


1.1- A “identidade” como paradigma dos “Novos Movimentos Sociais” na abordagem
acionalista: os estudos de Alain Touraine e Tilman Evers 38
A) A “identidade” no pensamento de Alain Touraine 40
B) A “identidade” na reflexão de Tilman Evers 42
1.2- A “identidade” em autores pós-marxistas e pós-estruturalistas: as reflexões de
Manuel Castells, Zygmunt Bauman e Stuart Hall 44
A) O poder da “identidade” nas análises de Manuel Castells 45
B) A “identidade” líquida, da “modernidade líquida”, nas reflexões de Zygmunt
Bauman 47
C) A “identidade” cultural do sujeito pós-moderno em Stuart Hall 49
1.3- A política liberal de “identidade” 54
A) Liberalismo e cidadania 54
B) “Liberalismo identitário” e “políticas identitárias” nos EUA 56

2. Da “identidade” ao “identitarismo”: a “lógica identitarista”


pós-moderna como fundamento de congregação e polarização política 61
I- Da “identidade” (como categoria teórico-política)... 63
2.1- “Identidade” e condição / situação real 63
2.2- “Identidade”: vivência, percepção e consciência 70
2.3- A importância das causas identitárias e a necessidade e urgência das suas
lutas (antiopressivas) 75
A) O caráter estrutural da opressão por “identidades”: os casos do racismo e do
patriarcalismo / machismo 76
B) A necessidade e urgência das lutas antiopressivas (“identitárias”) 81
C) Contribuições da análise e lutas “identitárias” 83
SUMÁRIO

II- … ao “identitarismo” (pós-moderno) 84


2.4- A “identidade” nas análises de Boaventura de Sousa Santos 84
2.5- A “classe” como uma “identidade” no pensamento pós-moderno 88
2.6- Da categoria de “identidade” ao conceito de “identitarismo”: a “lógica identitarista”
pós-moderna na polarização “nós” / “eles” 92
A) Categorias e conceitos de análise, e seu impacto no conhecimento e nos processos
de luta 93
B) “Identidade” subalterna / oprimida e “identidade” hegemônica / dominante 97
C) A “lógica identitarista” pós-moderna na polarização entre “nós” e “eles” 100
D) Da opressão como expressão estrutural à relação interpessoal 109
E) Da análise teórica da “identidade” múltipla, líquida e flexível, para a utilidade
política de “identidade” “essencialista”: única, fixa e natural 115
F) Os limites do identitarismo e da “lógica identitarista” pós-moderna 117

3. Outros fundamentos ideológicos e (a)políticos do pensamento / ação


pós-modernos: o tripé da “lógica identitarista” 125
3.1- O “lugar de fala” como referencial do discurso político 125
A) O direito à voz dos subalternos 126
B) Todo discurso é social e politicamente situado e posicionado 128
C) “Lugar de fala” como “ponto de vista” comum a partir de um “lugar social” 129
D) Só quem vivencia uma situação ou pertence a uma “identidade” tem direito à fala? 136
E) A vítima ou o oprimido sempre tem a verdade? 138
F) Alguns argumentos críticos sobre o “lugar de fala” 140
3.2- A “pós-verdade” como expressão da “realidade concebida” e objeto de ação política 144
A) Verdade e “pós-verdade” 144
B) Os fundamentos da “pós-verdade” 147
C) As formas de expressão ou manifestação da “pós-verdade” 161
D) A “pós-verdade” como ferramenta política da direita ultraconservadora e da
“esquerda pós-moderna” 169

4.- Os três instrumentos e objetivos centrais da luta “identitarista” pós-moderna 173


4.1- O “punitivismo” (de esquerda) como um objetivo político 174
A) Punitivismo e a “lógica polarizadora” 174
B) Punitivismo à direita e à esquerda 176
SUMÁRIO

C) Havendo crime, deve ter punição, não impunidade 182


D) Punitivismo remete a uma ação individualizada, e não contra a estrutura, o sistema
ou a cultura social 183
E) O punitivismo fundado no Estado e no direito burgueses: a despolitização da ação
política 187
F) A punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais: a moralização da ação
política 191
4.2- O “reconhecimento” e a “inclusão” (mediante o direito, políticas e acesso a bens e
serviços) como outro objetivo político 198
A) A necessária (porém insuficiente) luta por “reconhecimento” 199
B) A demanda (imediata) por “inclusão” (dentro da ordem) 202
4.3- O “empoderamento” do indivíduo e o desempoderamento da classe 214
A) O “poder político” ou relação de poder 214
B) O “poder subjetivo” ou autopoder, e o projeto de “empoderamento” 219

5. A invasão pós-moderna (na ideologia e na política) da esquerda, e a necessidade


da crítica e superação da “lógica identitarista” para o enfrentamento do avanço
ultraconservador e para a emancipação 225
5.1 A hegemonia da “lógica identitarista” pós-moderna na esquerda 226
5.2- O avanço do ultraconservadorismo no Brasil e a esquerda pós-moderna 248
5.3- Os principais tipos de crítica ao identitarismo 257
A) A crítica da ultradireita ao identitarismo 257
B) A crítica liberal ao identitarismo 259
C) A crítica do marxismo “economicista” e “estruturalista” ao identitarismo 260
D) Para uma crítica ao identitarismo fundada no “marxismo histórico-dialético” (ou
ortodoxo) 263

SEGUNDA PARTE:
A ANÁLISE MARXISTA E A NECESSÁRIA ARTICULAÇÃO DAS LUTAS DE CLASSE E
ANTIOPRESSIVAS 267

6. Contradição (de classe) e desigualdade (identitária) na análise marxista 269


6.1- Duas dialéticas diferentes: “identidade / diferença” e “igualdade / desigualdade” 270
A) Há que diferenciar o “igualitarismo” do “identitarismo” 271
B) Há que tratar desigualmente os desiguais, mas não os diferentes 282
SUMÁRIO

6.2- As “identidades” são historicamente determinadas, conformando manifestações da


“questão social” 289
6.3- A centralidade da contradição de classe: exploração, opressão e desigualdade no
pensamento marxista 299
A) Classe não é “identidade”, e exploração não é diferença 299
B) A centralidade da contradição de classes 309

7. Lutas de classes e lutas antiopressivas particulares (“identitárias”) na análise


marxista 323
7.1- Alguns pressupostos teórico-políticos no debate marxista: as dialéticas reforma/revolução,
emancipação política/humana, exploração/opressão, estrutura/superestrutura 323
A) Reforma e/ou revolução (em Rosa Luxemburgo), e as guerras de posição e de
movimento (em Gramsci) 324
B) Emancipação política e humana: a questão (da “identidade”) judaica em Marx 335
C) Exploração e opressão 344
D) Estrutura (econômica) e superestrutura (Estado e sociedade civil) 358
7.2- Lutas antiopressivas particulares não equivalem à “lógica identitarista” (pós-moderna) 362
A) Lutas de classe e lutas antiopressivas (identitárias) 362
B) A relação dialética: singular / particular / universal 375
C) Causas, lutas e “pautas” identitárias: retomando a questão 381
7.3- O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e articular todas as lutas de
classe e antiopressivas particulares (“identitárias”) 383
A) As lutas antiopressivas (identitárias) devem se articular, como particularidades, à
totalidade social 384
B) As lutas de classes devem incorporar as bandeiras das lutas antiopressivas
(identitárias) 388
C) O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e articular todas as lutas de
classe e antiopressivas (“identitárias”) 393

A modo de conclusão 403


Referências bibliográficas 407
Sobre o autor 415
Prefácio

Combater a transgressão resignada:


um livro na trincheira contemporânea

N este momento de grave crise do capitalismo temos em mãos


uma publicação mais que oportuna. O livro de Carlos Montaño traba-
lha numa trincheira ideológica de suma importância para a esquerda,
mexendo no nervo central da luta pela emancipação da classe trabalha-
dora na atualidade. O rigor intelectual e a fundamentação teórica apu-
rada marcam o texto do autor no enfrentamento de um tema polêmico
e, acima de tudo, necessário.
Inspirado no arsenal teórico-metodológico marxiano, o primeiro
aspecto do livro que chamou minha atenção foi o tratamento privi-
legiado que o autor dá ao tema da emancipação humana, raro mesmo
entre autores marxistas, que chegam a refletir e indicar a necessidade
da emancipação política dos trabalhadores, mas deixando em segundo
plano – ou simplesmente ignorando – a necessária ultrapassagem da
política (e do Estado), rumo à emancipação humana, a fim de comple-
tar a transição socialista, superando não só o capitalismo, mas o capital.
E o livro traz, numa dada altura de sua crítica ao irracionalismo, as

13
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

bases da discussão que Marx inicia na Crítica da Filosofia do Direito de


Hegel, indo à raiz da emancipação,1 em texto escrito entre dezembro de
1843 e janeiro de 1844 que, como se sabe, foi momento fundamental de
inflexão nos textos marxianos. Cito uma de suas clássicas passagens:
“As necessidades teóricas serão imediatamente necessidades práticas?
Não basta que o pensamento tenda para a realização; a própria reali-
dade deve tender para o pensamento”.2 Essa dimensão da teoria e da
prática são fundamentais para entender (e efetivar) o processo de trans-
formação social, sem o quê qualquer reflexão sobre o socialismo rumo a
uma livre associação de produtores fica, no mínimo, incompleta. Afi-
nal, socialismo é transição e não um fim em si mesmo.
Tratando de uma das principais dimensões do irracionalismo con-
temporâneo, a crítica geral do autor concentra-se na pós-modernidade,
detalhando as diferenças entre identidade e sua transmutação em iden-
titarismo, o segundo correspondendo a uma redução, fragmentação (e
isolamento) da identidade e diminuindo – ou, na maioria das vezes,
anulando – sua importância e articulação para as lutas de classes.
A pós-modernidade apresenta-se como uma teoria crítica, princi-
pal motivo do alvoroço político-ideológico que provoca nas esquerdas.
Entendo que esta é a armadilha principal na qual se pulveriza a im-
prescindível centralidade do trabalho contra a centralidade do capital,
ou seja, a pós-modernidade compõe uma dimensão da ideologia con-
trarrevolucionária burguesa dominante, mas apresenta-se como se fi-
zesse parte do arsenal de luta ideológica do campo “progressista”, por
assim dizer.
No entanto, pode-se desnudar esta suposta capacidade crítica da
pós-modernidade quando trabalhamos na explicitação da regressivida-
de de que se reveste. Para compreendê-la e, mais que isso, desmontá-la,
são necessários não só indicativos de ordem histórica e política, mas
1 Definitivamente desenvolvidas em Sobre a questão judaica, publicado em 1844 (Cf.
RUBEL, Maximilien. Crônica de Marx – vida e obra. São Paulo: Ensaio, 1991, p.26).
2 MARX, Karl. Crítica à Filosofia do Direito de Hegel – Introdução. São Paulo: Editorial
Grijalbo, Revista Temas de Ciências Humanas, n.2, 1977, p.9. Importante também conferir a
edição completa de Crítica da filosofia do direito de Hegel. São Paulo: Boitempo, 2005.

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PREFÁCIO | Angélica Lovatto

sobretudo as fundamentações de ordem teórico-filosóficas que a cons-


tituem. Levada nestes termos – que pressupõem o tratamento do tema
dentro de uma totalidade metanarrativa (a redundância é proposital)
– resulta então uma importante crítica da crítica regressiva das teorias
pós-modernas. O livro aqui apresentado contribui decisivamente para
esse movimento crítico, consolidando uma análise na contracorrente
da “lógica” pós-moderna e compõe uma (ainda insuficiente) safra de
trabalhos que optam por um combate ao irracionalismo contemporâ-
neo, ao invés de somar-se a autores que privilegiam construir obras
com uma adesão acrítica ao movimento hegemônico pós-moderno,
propagado nas esquerdas há, no mínimo, cinco décadas.
Além da crítica regressiva e do irracionalismo, o anti-humanismo cons-
titui também um dos principais traços da pós-modernidade em sua he-
gemonia ideológica, no mínimo desde os acontecimentos de Maio de
1968, especialmente o francês. O tema da morte do sujeito, da dissolu-
ção da ideia de verdade, do fim de qualquer referência ao universal e o
elogio das fragmentações narrativas – como inevitável limite das inter-
pretações subjetivas plurais (sujeitos coletivos) – são momentos funda-
mentais da chamada “desconstrução” pós-moderna e suas consequen-
tes “ressignificações”, conceitos desenvolvidos especialmente para esta
cepa do irracionalismo (já que a cepa originária está no existencialis-
mo), que invadem aos borbotões – veja-se especialmente os capítulos 1
e 5 do livro – o discurso e a atuação dos chamados novos movimentos
sociais (NMS) e a invasão pós-moderna, tanto na ideologia como na
política. É também nestes dois capítulos que o autor refere-se ao Maio
de 1968, trazendo as fundamentações político-teóricas da chamada cri-
se dos paradigmas, fundamental para a análise da pós-modernidade e
suas consequências “identitaristas”.
Dividido em duas partes, o livro anuncia no próprio título sua hi-
pótese principal: articular lutas de classes e lutas antiopressivas, por
meio de uma análise crítica: as lutas de classes trazendo a discussão
sobre a exploração na sociedade capitalista, e a identidade fundamen-
tando o debate sobre as opressões, no sentido de lutas que têm sua par-

15
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

ticularidade, mas não podem deixar de ser consideradas no contexto


da classe social.
O autor não trata como antagônicas essas duas dimensões, mas
em sua inter-relação. Embora deixe claro que propõe uma espécie de
“debate interno crítico”, e não de polarização e confronto no interior
do campo progressista, sua posição sobre o tema apresenta claramente
uma centralidade: a de classe. Com isso, pareceu-me que o autor inten-
cionou sair do lugar comum de opor, incontornavelmente, exploração
versus opressão. Considero essa relação, senão a principal, uma das
principais questões de fundo neste controverso tema, cujo tratamento
adequado atua no sentido de impedir a esterilização da categoria de
revolução, risco que se corre quando a discussão é tratada de forma
dicotômica. Inclusive o autor dedica-se a apresentar ao leitor, no tocan-
te à explicitação metodológica que usa, a diferenciação entre conceito
e categoria, esta última carregando a máxima marxiana da “viagem de
volta”, na dialética do concreto pensado, que considerei um importan-
te momento do livro a ser destacado aqui.
Ao demarcar que não existiria um “capitalismo sem opressões”,
o autor afirma que a centralidade de classe carrega um significado im-
portante pois, sem lutar contra a exploração, não haverá superação
possível do capitalismo, ou seja, não basta apenas a luta antiopressiva,
considerada isoladamente, o que não significaria, em hipótese alguma,
diminuir sua importância. Em suas palavras, “mesmo que certamente
ressaltemos a relevância, a importância, a necessidade e a urgência das
lutas antiopressivas (particulares)” e, nesse sentido, causas que envol-
vem as chamadas identidades, “essas formas de luta, por si só, não
impactam a base econômica e as relações de produção e a exploração
da riqueza”.3
Com isso, o autor assinala, desde logo, uma importante diferen-
ça na discussão nesse campo. Ele deixa claro nos vários momentos de
inflexão de sua hipótese, ao longo do livro, que não se trata de uma

3 Ver a página 356 da presente obra.

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PREFÁCIO | Angélica Lovatto

escolha rígida entre combater a “exploração” ou as “formas de opres-


são”, mas (novamente) a articulação entre as duas. Talvez – e demarco
aqui como um grande talvez – minha única problematização com o
autor, neste aspecto, seja a seguinte: entendo que a exploração engloba
e abarca as formas de opressão. Se elas podem (e devem) ser tratadas
numa articulação, isso não quer necessariamente dizer que inexista uma
diferença qualitativa entre elas, ou mesmo um grau diferenciado de
importância, isto é, não acho que elas apareçam como partes iguais na
articulação. A centralidade de classe, claramente indicada por Mon-
taño, resolve – nesse sentido – o indicativo de que existiria uma certa
priorização de grau entre as duas. Mas para avançar gradativamente
nesta interlocução com o autor, apenas demarco aqui essa questão, sem
com isso considerar o debate esgotado.
Decifrando o “identitarismo”, o autor escava os elementos consti-
tutivos de sua construção lógica. Entendo que nesse quadro de inves-
tigação, o irracionalismo – que Montaño vai pondo em evidência pela
explicação e encadeamento dos conceitos da pós-modernidade – fica
ainda mais explícito em função de outro traço fundamental e, de certa
forma, consequência deste: o niilismo, que une-se aos outros três aspec-
tos já apontados: crítica regressiva, irracionalismo e anti-humanismo.
Numa sociedade onde o trabalho morto domina o trabalho vivo,
o niilismo que permeia a pós-modernidade demanda, para sua devida
caracterização, a compreensão de uma complexidade social: as ques-
tões das quais as teorias pós-modernas se ocupam têm uma importân-
cia prática e são legítimas, ou seja, o fato de rejeitarmos uma teoria – por
motivos fundados na necessidade da superação do capital – não signi-
fica que essa teoria não se ocupe de problemas reais. O problema está na so-
lução (ou na falta de solução) que essa teoria preconiza. As lutas pelas
causas oriundas das opressões são reais, concretas, verdadeiras. São,
enfim, dimensões da vida humana no capitalismo. Portanto, a teoria
que tomar como objeto a crítica à pós-modernidade não poderá deixar
de tratar dos problemas reais ali indicados.

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“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

No entanto, a “solução” pessimista e destrutiva auferida pela crítica


regressiva pós-moderna é o niilismo, configurado como total ausência
de possibilidade de futuro, de impossibilidade de superação humana de
suas angústias existenciais intrínsecas, limitando a luta “social” a uma
transgressão individual, apenas somando-se na plataforma de sujeitos
coletivos que não têm condições de superar a fragmentação do mundo,
que se subordinam ao “ser e o nada”, convertendo-se na aceitação des-
se mundo e na impossibilidade de sua transformação. Só existiria, nesse
sentido, uma insustentável leveza do ser “jogado (solto) no mundo”, (o
dasein – ser-aí – de inspiração existencialista heideggeriana), com a finali-
dade de tomar consciência de que a única certeza e alternativa do sujeito
é caminhar para a morte e, em alguns casos mais graves, a explícita su-
gestão de que a saída seria a antecipação dessa morte, o suicídio.
Decorre daí que a pós-modernidade – que bebe sua fundamenta-
ção teórico-filosófica no movimento ideológico contrarrevolucionário
burguês, imediatamente anterior (o existencialismo) – assimila como
inevitável a alienação humana produzida pela “modernidade” que, em
verdade, é transitória porque produzida historicamente nas engrenagens
do modo de produção capitalista. Neste quadro, afirma e defende, en-
tão, como inalienável a “condição pós-moderna”, que teria jogado a
humanidade na impossibilidade de realização e aceitação do “huma-
no, demasiado humano”, em outra inspiração existencialista (nietzs-
cheana) na qual a pós-modernidade se alimenta e cresce.
Como uma espécie de resultado do niilismo, aparece o que pode-
ríamos chamar de quinto traço da pós-modernidade: a rejeição ao his-
toricismo, afirmando a (in)transitoriedade do mundo. Senão, vejamos: a
que classe social, sob o capitalismo, interessa defender que a alienação
(que produz angústia e “maltrata” os seres humanos) é impossível de
ser superada porque é uma condição intrínseca e, literalmente, (in)alie-
nável da humanidade? Que o máximo que podemos fazer é transgredir
individualmente? Que não existe verdade “coletiva” a ser buscada e,
muito menos, superada? Qual a saída?

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PREFÁCIO | Angélica Lovatto

A resposta da “condição pós-moderna” é que não existe saída, ape-


nas a parcialidade da postura individual da resistência. No entanto,
resistência não erradica, mas administra o dano, e, ainda menos, não
resulta em ruptura contra o sistema, que tem no comando uma classe
social específica, definida materialmente. Resistir é ato passivo e não
ativo. Por evidente que, em determinados momentos da luta contra
o capital, a opção de resistência pode ser a única conjunturalmente
possível. Não há por que negar isso. Mas o problema se localiza quan-
do o indicativo antihistoricista, niilista, irracionalista, antihumanista
e regressivo de uma teoria aponta tão somente para a dimensão da re-
sistência e, o que é pior, em âmbito individual. Significa que o poder
(político) que oprime cada sujeito (mesmo que plural) não tenha como
ser superado coletivamente, mas apenas administrado na parcialidade
de sua condição subjetiva, como uma atitude individual e não como
uma posição de classe. A receita da pós-modernidade para atuar na
resistência é limitada a três dimensões, em síntese: empoderar-se in-
dividualmente, ocupar seu lugar de fala, polarizar sua identidade
subjetiva oprimida.
Nessa dimensão do problema, Montaño indica a diferença obje-
tiva entre a transformação social efetiva (nos marcos da luta contra a
exploração) e os limites da mudança social (nos marcos da opressão).
O núcleo da parte I de seu livro – capítulos 2, 3 e 4 – nos oferece subs-
tantiva e pormenorizadamente o tripé da “lógica identitarista”: a po-
larização; o lugar de fala; a pós-verdade. E, em seguida, apresenta os
três instrumentos que colocam em foco e em andamento esse tripé: a) o
punitivismo de esquerda como um objetivo político, que remete a uma
ação individualizada, e não contra a estrutura e o sistema; b) o chama-
do “reconhecimento” e a “inclusão”, em relação aos direitos, políticas
públicas e acesso aos bens e “serviços”; c) o empoderamento do indiví-
duo e o consequente “desempoderamento” da classe. Nesses capítulos
fica configurada a eventual pertinência ou mesmo a impropriedade (na
maioria das vezes) de cada polarização. O destaque da lógica identita-

19
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

rista é nas visibilidades das lutas contra a opressão, é o campo da espon-


taneidade imediata cotidiana das resistências (sempre no plural).
Entendo que o autor faz dois caminhos para atingir o público lei-
tor, num tema tão controverso:
a) um primeiro caminho de combate à pós-modernidade “dentro
da lógica contra a lógica” dessa teoria, sem deixar de mencionar o mé-
todo marxista (mas ainda sem explicitá-lo totalmente), inclusive inter-
pondo exemplos da atualidade política brasileira e mundial, as arma-
dilhas da direita e extrema-direita, o junho de 2013, governo Bolsonaro,
Trump, Brexit, teorias conspiratórias do tipo QAnon, e outros exem-
plos; bem como a explicitação dos argumentos e posições, à esquerda e
à direita, nesse processo (essa discussão ocupa o núcleo da parte I, que
fiz referência há pouco, nos capítulos 2, 3 e 4);
b) um segundo caminho, que explicita sua postura teórica e proble-
matiza a lógica identitarista, confrontando-a com o método marxista.
Nesse momento (capítulo 5), que imediatamente antecede a parte II do
livro, inicia-se a configuração da tese propriamente dita do autor. É um
capítulo de ligação, portanto, entre as partes I e II, muito bem articulado.
Este segundo caminho é o objetivo principal dos dois extensos capítulos
que finalizam o livro (6 e 7). Neles, indica-se não só a necessidade social
da superação da “lógica identitarista” – e do irracionalismo que a carac-
teriza – como a impossibilidade de conceber, e colocar em andamento,
aquilo que Montaño denomina como projeto emancipatório revolucionário,
que entendo como sendo a transição socialista para além do capital. Nes-
ta parte II, o autor explicita – e precisa ainda mais – sua utilização do
método marxiano, indicando tanto a necessidade da emancipação polí-
tica, quanto da emancipação humana, sendo este último o aspecto que me
capturou definitivamente para o livro.
Em suas palavras, a tese é a de que “o projeto emancipatório revolu-
cionário tem que ter a capacidade de aglutinar todas as lutas antiopres-
sivas particulares (identitárias)”, ressaltando que elas seriam “necessá-
rias e urgentes, mas articuladas numa luta anticapitalista, antissistema,

20
PREFÁCIO | Angélica Lovatto

complementando (e não opondo) as lutas de classes e antiopressivas”.4


Raciocinar primeiro “dentro da lógica contra a lógica” (os muitos opos-
tos) e, apenas num segundo momento expor o identitarismo ao confron-
to (com o método marxiano), foi um caminho inusual, mas interessante,
do autor. Durante a leitura, aos poucos percebi que seu esforço tinha
sido entrar na lógica de como se raciocina no âmbito de uma separação
rígida e oposta da polarização identitária, com o objetivo de desmontá-
-la ao longo de todo o livro, indicando sua própria (in)coerência interna, e
dando argumentos políticos e históricos concretos para combatê-la. Já o
segundo caminho, onde Montaño problematiza com maior ênfase (não
quer dizer que não o faça no primeiro), “por fora da lógica identitária
pós-moderna”, configura e completa o confronto dentro da centralida-
de de classe, “pela lógica de classe, a favor da classe”. Concluí que os
dois caminhos, portanto, completaram-se dialeticamente.
Em função dessa dialética dos caminhos escolhidos, é um livro que
– na organização de sua exposição (diante da investigação realizada) –
tem o mérito de apresentar-se para um público ainda não aprofundado
numa discussão marxista das categorias, ampliando sua base de divul-
gação e de educação crítica sobre o tema. É inescapável, no entanto,
um aspecto árido da discussão, que Montaño enfrenta recorrendo a
autores clássicos e contemporâneos: a complexidade de sua construção
ideológica. As lutas antiopressivas, tomadas isoladamente, não fratu-
ram nem desorganizam a centralidade do capital. Mas a pós-moder-
nidade, em sua dimensão ideológica, fratura em cheio a centralidade
do trabalho, pulverizando-a. Como se não bastasse isso, tudo conduz a
um outro problema que é a sedução linguística que a pós-modernidade
exerce sobre a esquerda, dando uma solução discursiva com “sonori-
dade radical ideal”: transgredir, sim, mas sem a necessidade de incor-
porar o compromisso com a transformação revolucionária. Nos moldes
nietzscheanos-foucaultianos seria exercer tão somente a “vontade de
revolta”, a “vontade de rebelião”, a “vontade política”, apenas a vonta-

4 Ver a página 406 da presente obra.

21
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de de potência, enfim, como pulsões, exercidas por meio de fragmen-


tos narrativos. A rejeição às metanarrativas é uma das mais notórias
objeções metodológicas da estrutura teórica da pós-modernidade. É,
particularmente, no capítulo 6 que Montaño indica essa contradição
(de classe) e desigualdade (identitária) recorrendo à análise marxista,
completando indicativos críticos sobre a chamada semiologização do
real (o excesso de “representações”) provocada pela estruturação ideo-
lógica pós-moderna.
Não há caminho fácil em teoria e não há caminho fácil em políti-
ca. Este é um livro teórico, mas que articula a dimensão da luta polí-
tica, propondo caminhos para essa conexão. Enfrentamentos teóricos
de contracorrente, no campo da própria esquerda, normalmente vêm
acompanhados de profunda solidão política, quando não de lutas fra-
tricidas no campo progressista. Em parte, porque a hegemonia atual
da concepção pós-moderna leva a uma relativa acomodação de escre-
ver (e de atuar politicamente) para “ser aceito”, usando “narrativas” a
partir da assimilação dos “lugares de fala”, dos cumprimentos a “todos
e todas”, do chamado empoderamento, das oralidades, das multiplici-
dades, do “imaginário popular” (ao invés da consciência de classe) etc.
Porém, apenas dizer as “coisas certas” nos lugares certos não me pare-
ce que estejam trazendo eficácia para as lutas contemporâneas contra
o capitalismo.
Se “as ideias dominantes de uma época são as ideias da classe
dominante”,5 enfrentar-se com a pós-modernidade é enfrentar-se, de
forma desafiadora, com as ideias dominantes da nossa época. Então
por que a hegemonia pós-moderna, e seus identitarismos, haveriam de
matrizar a perspectiva de luta da esquerda? Há algum tempo venho
defendendo que não faz sentido – mesmo que apenas no âmbito ter-
minológico – utilizar o arsenal teórico e político (e linguístico) de uma
contrarrevolução burguesa, quando se pertence a uma classe oposta a
ela.

5 Cf. MARX. Karl e ENGELS, Freidrich. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007, p.47.

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PREFÁCIO | Angélica Lovatto

Qual é o sistema teórico que alimenta o identitarismo? A que classe


social interessa hoje a rejeição da razão dialética, do historicismo, do
humanismo?
Exatamente neste ponto da inflexão que o tema demanda, gostaria
de chamar a atenção para uma hipótese que venho desenvolvendo, ado-
tando a herança intelectual de autores clássicos que trabalharam numa
tradição crítica ao irracionalismo contemporâneo.6 Em apertada sínte-
se, defendo que a pós-modernidade – ou como elas se autodenominam
no plural, teorias pós-modernas – constituem a quarta contrarrevolução
ideológica burguesa, ou seja, o quarto movimento teórico-político burguês
que se constrói como tendência hegemônica de pensamento a partir do
fim dos anos 1960, cuja proposta e resultado político prático redunda,
no máximo, numa transgressão resignada. Esse aparente paradoxo –
transgressão que se resigna – propõe uma atitude individual de suposta
radicalidade (e cuja terminologia de fato ecoa de modo radical), mas
não indica a necessidade de ruptura revolucionária, ao contrário, a repe-
le. Defendo que a valorização hipertrófica da transgressão não é suficiente
diante das exigências das lutas de classes no mundo contemporâneo.
Apresentar e desenvolver essa hipótese de trabalho tem sido um desafio
nos últimos anos. E, na interlocução estabelecida com o livro de Mon-
taño, identifico condições de continuar nela avançando.
Chamá-la de quarta contrarrevolução implica, evidentemente,
identificar a gênese e a função social das anteriores. Sabemos que a
cada movimento concreto das lutas de classes, correspondem necessi-
dades teóricas: não há revolução sem teoria revolucionária,7 como tam-
bém não há contrarrevolução sem teoria contrarrevolucionária.
Identificar, portanto, quatro momentos do pensamento liberal, não
quer dizer, de modo algum, que sejam sequencialmente estabelecidos

6 Inspirada não só nos textos marxianos, mas marxistas, especialmente nas reflexões de Lukács
nos anos 1940-50 (com destaque para Existencialismo ou marxismo e A destruição da razão) e,
mais ao final de sua vida, nos escritos que resultaram em Para a ontologia do ser social.
7 Cf. LENIN, V.I. Que fazer? Questões candentes do nosso movimento. São Paulo:
Boitempo, 2020.

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“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de maneira estanque. A contrarrevolução burguesa – tanto do ponto


de vista material, quanto ideológico – tem sua gênese mais marcante a
partir do (e para combater o) primeiro movimento organizado da clas-
se operária que culminou na Primavera dos Povos de 1848. Com essa
premente necessidade social de combate de classe, surge aos poucos a
primeira contrarrevolução ideológica burguesa, o positivismo, e – por
evidente – o primeiro massacre material armado que reprimiu e derro-
tou as insurreições de junho. Representado especialmente por Comte
e Durkheim, o positivismo propôs uma concepção de mundo baseada
na lógica da ordem e do progresso, típicos de uma teoria que inten-
cionava, a qualquer custo, estancar o próprio processo revolucionário
burguês que o Iluminismo havia representado, com total eficácia his-
tórica, pois tudo que era sólido havia se desmanchado no ar, na transição
do feudalismo ao capitalismo.
Ainda no século XIX, desta vez como resposta à movimentação
revolucionária operária que resultou na Comuna de Paris de 1871, de-
senha-se e concretiza-se gradativamente a segunda contrarrevolução
ideológica burguesa, sem que a primeira deixasse de exercer influên-
cia, só que não mais de forma hegemônica. Baseada na premissa de que
“a verdade é relativa”, essa vertente teórica nasceu com o nome abran-
gente de “relativismo”, correspondendo a uma função social que o po-
sitivismo se mostrou insuficiente para realizar, e sofisticando a crítica
às teorias da revolução proletária que, a essa altura – urge acentuar – já
contava com o arsenal teórico do marxismo. O principal expoente des-
sa corrente foi sem dúvida Max Weber, mas contando com influencia-
dores teóricos de grande monta como Dilthey, Windelband e Rickert.
Na passagem ao século XX, e com o avanço da social democracia
operária, nova necessidade prático-teórica contrarrevolucionária colo-
ca-se para a burguesia e, tendo em vista que tanto o positivismo como
o relativismo já não davam conta totalmente do combate ideológico,
surge uma terceira vertente, ainda mais sofisticada filosoficamente,
contra a movimentação revolucionária, que iniciaria com a vitória da

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PREFÁCIO | Angélica Lovatto

Revolução Russa de 1917, bem como nas movimentações operárias


(derrotadas) de 1918-19 na Alemanha, e culminaria nas vicissitudes e
idiossincrasias dos processos revolucionários da primeira metade do
século, resultando nos regimes do Leste Europeu e da URSS. Estamos
falando do irracionalismo contemporâneo em sua gênese, que ficou co-
nhecido como existencialismo, a terceira contrarrevolução ideológica.
Neste caso são muitos os autores e desdobramentos, mas sem dúvida
seu inspirador máximo foi Nietzsche, que morre em 1900, portanto an-
tes mesmo da gigantesca influência que seu pensamento exercerá (e
continuará influenciando) por todo o século XX.
Todo o esforço ideológico-prático das quatro contrarrevoluções
burguesas era o de desacreditar a possibilidade de entendimento (e
consequente transformação) do mundo em sua totalidade, na máxima:
a razão moderna nos enganou. Para além dos limites ideológicos da “or-
dem e progresso” do positivismo, e da “verdade na perspectiva do ator
social” do relativismo – onde ainda subsistiam traços de racionalidade,
embora já marcadamente amputada e desfigurada – o existencialismo
propunha algo marcado pelo mais completo irracionalismo e que passa
a se afirmar na famosa máxima nietzscheana, repetida em várias obras:
não há fatos, só interpretações. Essa foi a gênese das fragmentações narra-
tivas que serão ainda mais absolutizadas na vigência hegemônica das
teorias pós-modernas, e que marcam intensamente a lógica identitaris-
ta daí decorrente. Foucault, por sua vez, em continuidade à lógica da
destruição da razão (característica do existencialismo),8 escreve que “se
a interpretação não pode jamais concluir-se, é porque, simplesmente
não há nada a interpretar [...] pois, no fundo, tudo é já interpretação”.9
Niilismo e anti-humanismo em estado puro.
Portanto, no nascimento das teorias pós-modernas, o deslocamen-
to do sujeito moderno (centrado e autônomo) cederá ainda mais espa-
ço, por meio do pensamento de Michel Foucault, à afirmação de uma
8 E depois protagonista da miséria da razão, para usar os termos de Carlos Nelson Coutinho
em O estruturalismo e a miséria da razão. 2ª. edição, São Paulo: Expressão Popular, 2010.
9 FOUCAULT, Michel. Nietzsche, Freud, Marx. Paris: Les Editions de Minuit, 1967, p.189.

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“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

história descontínua e caótica, misturada a um sujeito fluido e descen-


trado: o sujeito coletivo, plural, multifacetado, heterogêneo e que só
tem condições para atuar nas margens do sistema e não no centro. O
motivo apresentado é relativamente simples: o centro do poder políti-
co (do Estado) seria inalcançável, e as contestações, rebeldias e trans-
gressões possíveis (do sujeito descentrado) só podem se dar no âmbito
de micropoderes, em poderes difusos, onde atuam sujeitos difusos. Ao
longo dessa notável influência foucaultiana, que se hegemonizou do
Maio de 68 para cá, gerou-se a difusão de uma ideia, especialmente
nos anos 1990 (mas muito celebrada ainda hoje) de que seria possível
“mudar o mundo sem o tomar o poder”.10
Ao contrário daqueles que identificam a gênese da pós-moderni-
dade em seus aspectos essencialmente culturais em 1979, com Lyotard
(A condição pós-moderna),11 entendo – seguindo indicativos de alguns
poucos pensadores brasileiros, latino-americanos e franceses – que a
pós-modernidade deve ser entendida, antes de tudo, a partir de seus
fundamentos filosóficos, daí a ainda enorme hegemonia de Foucault
em pleno século XXI. Entender o que é a contrarrevolução pós-moder-
na é, enfim, entender a força material e teórica da contrarrevolução
burguesa, que atua cotidianamente em oposição aos interesses da clas-
se dominada por ela, mas que sutil e articuladamente se apresenta, pela
pena de autores da importância intelectual de Foucault, como agentes
progressistas da transgressão “social”.
Esta digressão, que fiz com a mais delicada intenção de localizar o
contexto ideológico grave e imensamente amplo da contrarrevolução
burguesa desde 1848, justifica-se para reiterar e saudar ainda mais o
oásis representado pelo livro de Carlos Montaño no deserto pós-mo-
derno que nos massacra na contemporaneidade. Mesmo porque, trata-
10 Título do livro do cientista político irlandês John Holloway (S.Paulo:Boitempo, 2003),
que marcou época e ainda encanta gerações que valorizam acriticamente o chamado
horizontalismo. De fato, a declaração política inócua de que seria possível mudar o mundo
sem tomar o poder, agrada sobremaneira às (e corresponde ao projeto político das) frações
burguesas vitoriosas no mundo contemporâneo.
11 Publicado em 1979, o livro de Jean-François Lyotard é considerado obra seminal do
movimento pós-moderno, especialmente no aspecto cultural.

26
PREFÁCIO | Angélica Lovatto

-se de autor que encarna e cultiva as melhores tradições do intelectual


público, hoje tão raro.
Já que o livro nos inspira a repor a tão abandonada perspectiva da
emancipação humana, aproveito a deixa do autor, para terminar com
mais uma citação da Crítica da filosofia do direito de Hegel, a propósito da
miséria da situação alemã (comparável talvez, guardadas as devidas
proporções, à miséria brasileira hoje) e da necessidade da crítica a uma
teoria que representa um inimigo de classe: “Guerra à situação alemã!
É certo que a situação alemã encontra-se abaixo do nível da história,
abaixo de toda crítica, porém continua sendo objeto de crítica [...] Lu-
tando contra essa situação, a crítica não é uma paixão sem cabeça, mas
a cabeça da paixão. Não é um bisturi, mas uma arma. Seu objeto é seu
inimigo, ao qual não se trata de refutar, mas de destruir”.12

Angélica Lovatto
Professora de Ciência Política UNESP/Marília

12 MARX, Op. cit., p.3.

27
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

28
Introdução

H á, basicamente, dois tipos de debate.


Por um lado, aquele que se trava a partir de fundamentos, valo-
res, ideologias e interesses antagônicos. Esse tipo de debate pode ajudar
muito as partes e terceiros a conhecerem os pontos de vista em disputa,
mas, em função do antagonismo de posições, jamais produzirá um en-
tendimento entre os debatedores.
Por outro lado, aquele tipo de debate entre sujeitos que, em geral,
compartilham valores, princípios, perspectivas ideológicas e interesses
semelhantes, porém divergem em questões específicas sobre o que es-
tão debatendo. Nesses casos, o debate é sobre diferenças, não sobre
antagonismos, e o entendimento e o consenso podem ser um resultado
factível e desejável.
É sob o segundo caso que este livro visa tratar o tema da “identi-
dade” e das lutas identitárias, das classes sociais e das lutas de classe.
Em tal sentido, o presente texto tem por finalidade fomentar e con-
tribuir com um debate crítico no interior do campo progressista, entre
aqueles que visam combater toda forma de desigualdade e injustiça
sociais, de opressão e exploração, no caminho da efetiva e plena eman-
cipação, tanto política como humana.

29
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Com tal propósito e inserido nesse (amplo e diverso) campo, as-


sumimos aqui uma postura de “debate interno”, construtivo, e não de
confronto, polarização.
A análise aqui apresentada procura ser clara, explícita, direta e pro-
funda, sem rodeios, sem adjetivações, sem sentenças infundadas. Tra-
ta-se de um tema e um debate – os sujeitos e os caminhos na construção
da emancipação humana – que envolve e interessa a todos aqueles que
visam à edificação de uma sociedade de igualdade social entre os di-
versos, sem opressão, discriminação e exploração de uns sobre outros,
em função das suas diferenças.
Porém, por se tratar de um tema especialmente polêmico e muitas
vezes tratado de forma acalorada, baseado na desconfiança e na po-
larização, optamos por, de início, apresentar as teses principais deste
texto e deixar para nos aprofundarmos nos argumentos das mesmas
no desenvolvimento.
Distanciamo-nos, neste texto, de ambos lugares-comuns, tão fre-
quentes no debate sobre “identidade”: a) por um lado, o lugar-comum
de rejeitar ou secundarizar a “identidade”, como uma categoria desim-
portante para a reflexão da complexidade social e para a ampliação
da ação política emancipatória; b) por outro lado, o lugar-comum da
apologia pós-moderna ao “identitarismo”, em evidente substituição da
classe social.
Sustentamos aqui que não se trata de um antagonismo entre “clas-
se” vs. “identidade”, como se tivéssemos que optar pelas lutas em torno
de uma ou de outra. Nem de uma escolha entre combater a “exploração”
ou as formas de “opressão”.
Essa visão polarizada e dualista, do tipo “ou, ou”, tem orientado
negativamente boa parte do debate sobre essas questões. Como se as
lutas progressistas tivessem que optar, como alternativas mutuamen-
te excludentes, por ou combater a exploração de classes, relegando as
lutas antiopressivas particulares para o segundo plano ou postergan-
do-as para o pós-revolução; ou então enfrentar e combater as diver-

30
INTRODUÇÃO

sas formas de opressão, que marcam as chamadas “identidades”, mas


substituindo ou equalizando a contradição de classe pela “identidade”
e abandonando o projeto revolucionário anticapitalista, renunciando
ao socialismo e aceitando um suposto “capitalismo sem opressões”.
Trata-se, nessa polarização dualista, de uma falsa disjuntiva. A es-
querda não tem que optar entre as lutas de classes contra a exploração
ou as lutas antiopressivas, não tem que optar entre as causas particu-
lares, chamadas de “identitárias”, ou as causas universais e o projeto
revolucionário.
A esquerda pode, e deve, trilhar os dois caminhos, os dois proces-
sos, combater a exploração e as formas de opressão, tratar da questão de
classe e das questões “identitárias” (particulares).
O que está em questão aqui não é uma subordinação da “identidade”
à classe, nem das lutas ou “pautas” identitárias, antiopressivas, em fase
das lutas de classes, em torno da exploração.
Não refutamos, neste texto, a extrema necessidade e urgência de
combater toda forma de opressão, mediante as lutas antiopressivas ou
identitárias. Ao contrário, partimos da defesa intransigente da necessi-
dade e a urgência dessas lutas antiopressivas particulares (identitárias).
O que aqui se questiona, e essa sim constitui a tese central aqui de-
senvolvida, é a “lógica identitarista”, fundada na racionalidade pós-mo-
derna, que passou a comandar boa parte das análises sobre essas lutas.
Deixemos claro de início, a “lógica identitarista” pós-moderna e seu
projeto político “emancipatório” (abstrato e indefinido) não representam
em si, objetivamente, as “identidades” ou as questões específicas ligadas
às diversas formas de opressão, desigualdade ou discriminação. Repre-
sentam, sim, uma determinada concepção e compreensão sobre elas, e um par-
ticular projeto político “emancipatório”: a compreensão e o projeto político
pós-moderno, que impregna hoje outras correntes de pensamento nos
campos pós-estruturalista, liberal e até de setores da tradição marxista.
O que está em questão aqui, portanto, não é a relevância nem a
urgência das lutas em torno de identidades ou de relações particulares

31
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de opressão, discriminação e desigualdade social, mas a “lógica identi-


tarista” fundada no seio do pensamento pós-moderno.
Nossa análise crítica não é, assim, sobre as lutas sociais particulares,
antiopressivas (em torno de “identidades”), mas o que aqui chamamos
de “lógica identitarista” pós-moderna. Ou seja, não questionamos as ne-
cessárias lutas identitárias (antiopressivas particulares), mas a perspec-
tiva teórica e política pós-moderna, que orienta e funda a polarizadora
e pessoalizada “lógica identitarista”, transmutando “identidade” em
“identitarismo”.
O que problematizamos neste texto não é a causa identitária ou
particular, enquanto uma justa e necessária luta antiopressiva e con-
tra a desigualdade, mas a lógica polarizadora e individualizante que, com
base fundamentalmente na razão pós-moderna, comanda o que cha-
maremos de “lógica identitarista”, que tende a abandonar a necessária
articulação entre as diversas causas e questões particulares em torno de
um projeto anticapitalista mais amplo.
Assim, “identidades”, “causas identitárias” e “lutas identitárias”
não correspondem ao “identitarismo” ou à “lógica identitarista”; estas úl-
timas são a forma pós-moderna de construção da polarização identita-
rista e da ação política polarizada entre “nós” e “eles”.
Não se trata, portanto, de “classe” vs. “identidades”, como se fosse
uma escolha entre alternativas mutuamente excludentes: ou as lutas de
classes, ou as lutas identitárias. Trata-se, sim, de uma escolha entre duas
perspectivas de análise da sociedade e de organização das lutas sociais:
a perspectiva pós-moderna e a perspectiva marxista. Trata-se de vincular a
classe à “identidade”, superando a “lógica identitarista”. Trata-se, sim,
de uma escolha, mas entre “identidade” e “identitarismo”.
Finalmente, não se afirma aqui que o “identitarismo” seja “culpa-
do” pelo avanço do ultraconservadorismo no Brasil e no mundo. Esse
é um avanço que resultou tanto das crises econômicas, pela aplicação
de modelos neoliberais, como das estratégias midiáticas desses gru-
pos, que se apropriam da desconformidade e desesperança de amplos

32
INTRODUÇÃO

setores da população; trata-se fundamentalmente de um avanço da


extrema-direita, e não dos erros (reais) das esquerdas (especialmente
no Brasil e na América Latina dos anos 2000). O que aqui se afirma é
que a “lógica identitarista”, por um lado, ingressa na (e reproduz a)
mesma lógica polarizadora individualizada, em que cada indivíduo de
um lado da relação de opressão é posto como inimigo dos sujeitos do
outro lado, e por outro lado, e a partir disso, fragmenta e fragiliza a
capacidade de resistência dos setores progressistas, agora desunidos e
ocupados com disputas internas por “identidades”, em função daquela
polarização.
* * *
Dividimos nosso texto em duas partes.
Primeiramente, dedicamo-nos a tratar da “identidade” como catego-
ria política e da “lógica identitarista” pós-moderna.
Essa primeira parte compõe-se de cinco capítulos. No primeiro ca-
pítulo apresentamos sucintamente as origens da identidade como ca-
tegoria e objeto teórico-políticos, abordando a análise dos acionalistas
(Alain Touraine e Tilman Evers) sobre os Novos Movimentos Sociais,
a reflexão de pensadores pós-marxistas e pós-estruturalistas (como
Castells, Bauman e Hall) e o identitarismo liberal. No segundo capí-
tulo consideramos a passagem da “identidade”, como categoria teó-
rico-política, ao “identitarismo”, como apropriação pós-moderna na
construção de uma “lógica identitarista” fundada na polarização “nós
/ eles”. O terceiro capítulo é dedicado a completar o tripé da “lógica
identitarista”, articulando os conceitos de “lugar de fala” e “pós-ver-
dade” àquela polarização. Já o capítulo quatro trata dos três instru-
mentos e objetivos da luta “identitarista” pós-moderna, a saber: a) o
“punitivismo”, b) o “reconhecimento” e a “inclusão” e c) o chamado
“empoderamento”. Finalmente, no quinto capítulo, dedicamo-nos a
avaliar a invasão hegemônica da “lógica identitarista” pós-moderna na
esquerda, o consequente avanço do ultraconservadorismo no Brasil e a
necessidade da crítica à essa “lógica”, apresentando os principais tipos

33
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de crítica: da ultradireita, do liberalismo, do “marxismo economicista”


e “estruturalista”, para finalizar com uma proposta de crítica fundada
no “marxismo histórico-dialético” (ortodoxo).
A segunda parte do texto está orientada para a análise marxista e a
necessária articulação das lutas de classe e antiopressivas.
Nos dois capítulos que compões a parte final, são apresentadas as
reflexões críticas sustentadas no “marxismo histórico-dialético”. Por
um lado, no sexto capítulo, diferenciaremos a contradição existente en-
tre as classes e a desigualdade oriunda das relações de opressão ou iden-
titárias. Trataremos aqui das dialéticas identidade / diferença e igual-
dade / desigualdade, do fundamento histórico das “identidades”, que
devem ser compreendidas como manifestações da “questão social”, e
finalmente caracterizaremos a centralidade da contradição de classe –
o que ela significa e o que não significa. O sétimo e último capítulo é
dedicado a tratar das lutas de classes e antiopressivas, e a necessária
articulação delas. Começaremos apresentando alguns pressupostos
da análise marxista: as dialéticas reforma / revolução, emancipação
política / humana, exploração / opressão e estrutura / superestrutura.
Em seguida nos voltamos para demonstrar que as lutas antiopressivas
(identitárias) não correspondem à visão pós-moderna contida na “lógi-
ca identitarista”. Finalmente chegaremos à nossa tese central, na qual
discutiremos que o projeto emancipatório revolucionário deve incor-
porar e articular todas as lutas de classe e antiopressivas particulares
(ou identitárias).

34
PRIMEIRA PARTE

A “IDENTIDADE”
COMO CATEGORIA
POLÍTICA E
A “LÓGICA
IDENTITARISTA”
PÓS-MODERNA

35
35
capítulo 1

AS ORIGENS DA “IDENTIDADE”
COMO CATEGORIA E OBJETO
TEÓRICO-POLÍTICOS

A noção da “identidade” faz parte da organização social há mui-


to tempo, atrelada à família, ao Estado, à religião e à nação. No entanto,
como conceito sociológico, ela aparece associada aos conceitos de indiví-
duo e de individualidade próprios da modernidade, e está presente de
uma ou outra forma desde os chamados pais da sociologia: Durkheim,
Weber e outros tantos autores. Por outro lado, como conceito psicológico,
a “identidade” já aparece, entre outros, em Freud, pai da psicanálise,
em Melanie Klein e em Lacan, no processo de autoconstrução da perso-
nalidade. Já na esfera da cultura, a “identidade” aparece como conceito
antropológico, a partir dos estudos de diversos grupos e comunidades
étnicos, suas características e diferenças com outras culturas, tal como
aparece em Stuart Hall.
Porém é como conceito político que a “identidade” assume maior
relevância e passa a ocupar boa parte do debate político mais recente.
É a partir do momento que a “identidade” assume centralidade
teórica e política que iniciaremos nossos estudos. Primeiramente apre-

37
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sentando os precedentes do debate e da prática política na análise acio-


nalista dos chamados Novos Movimentos Sociais (NMS), em seguida
as referências de autores pós-marxistas e pós-estruturalistas, chegando
às “políticas identitárias” promovidas pelo liberalismo, especialmente
o norte-americano.
A partir daí, ingressaremos no foco do nosso estudo: as reflexões
pós-modernas sobre o “identitarismo” e os fundamentos (a)políticos
dessa corrente, que, a nosso ver, ocupa hoje um espaço hegemônico no
campo das esquerdas.

1.1- A “identidade” como paradigma dos “Novos Movimentos So-


ciais” na abordagem acionalista: os estudos de Alain Touraine e Til-
man Evers

O conceito de “identidade” assume relevância sociológica e política


inicialmente a partir da análise dos chamados “Novos Movimentos So-
ciais” (NMS), desenvolvida pelos autores “acionalistas” dos anos 1970-
1980.
Essa perspectiva “acionalista” de análise encontra entre seus fun-
damentos a teoria weberiana da “ação social”. Efetivamente, para Max
Weber (2012) a “ação social”, como objeto da sociologia, é caracterizada
como um tipo de ação que “orienta-se pelo comportamento dos outros”
(ibidem, p. 13). Dessa forma, afirma o autor: “Nem todo tipo de ação
[…] é ‘ação social’ […], só é ação social quando se orienta pelas ações
de outros” (ibidem, p. 14). Assim, não se trata de qualquer ação isolada
ou individual, mas de uma ação que encontra seu motivo e sua causa,
e que impacta em outros sujeitos, gerando reação.
Porém, a “ação social” é orientada tanto subjetiva e irracionalmente,
quanto racional e intencionalmente para a obtenção de respostas de ou-
tro(s) indivíduo(s). Isto é, a “ação social” tem fundamentos racionais e
irracionais; ou seja, ela funda-se, por um lado, na intencionalidade racional
mediante a qual um ator procura a reação de outro ator, e, por ou-
tro lado, nas influências irracionais (subjetivas, como os “afetos”), que
são tratadas por Weber como desvios. Trata-se, portanto, de uma ação
“orientada racionalmente a um fim” (ibidem, p. 5).

38
CAPÍTULO 1

Dessa forma, o “método compreensivo” da sociologia procura


compreender a “ação social” a partir de fundamentos racionais. As-
sim, a “ação social”, compreendida pela racionalidade, intencionali-
dade e finalidade que conscientemente persegue, serve à sociologia
compreensiva, do ponto de vista metodológico, como um “tipo ideal”
(ibidem).
Portanto, para o autor, o sujeito da ação não é um indivíduo pas-
sivo, mas ativo e reativo, imerso num processo de interação – por tal
motivo, os autores “acionalistas” falam de “ator” e não de “sujeito”,
assim como preferem falar de “ações sociais” em vez de “lutas sociais”.
Por seu turno, na esteira do positivismo e amparado em autores
como Vilfredo Pareto e Émile Durkheim, toma corpo o funcionalismo,
ou teoria funcionalista, de Talcott Parsons, do qual também se nutre a
análise acionalista.
Assim, para entendermos a análise “acionalista” dos (novos) mo-
vimentos sociais, por um lado, devemos remeter tanto à teoria da ação
desenvolvida a partir de Weber, como ao funcionalismo norte-ameri-
cano. Mas também, por outro lado, por relativa adesão (Touraine) ou
evidente oposição (Evers), é fundamental compreendermos a teoria
marxista sobre a contradição e as lutas entre as classes sociais, presente
na análise marxista dos movimentos sociais.
Essa é a base teórica com que autores “acionalistas” como Alain
Touraine e Tilman Evers, nos anos 1970 e 1980, vão analisar os NMS.
Ainda, o marco histórico e político dessa abordagem está, em face
do início da crise capitalista, no consequente esgotamento do mode-
lo fordista e keynesiano, nas posteriores crises do chamado socialismo
real e na radical mudança de paradigmas que o “Maio Francês de 68”
opera nos processos de consciência, na organização e nas lutas sociais
do mundo todo.
Efetivamente, o levante estudantil e operário em Paris, entre maio e
junho de 1968, marcou uma nova forma de luta social, distante tanto da
estratégia política defensiva da esquerda e do sindicalismo social-de-
mocrata, como da ação política de grupos alinhados à influência sovié-
tica. Assim, sem desconhecer a motivação anticapitalista inicial desse
movimento, o Maio de 1968 passou a se centrar muito mais, conforme

39
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

aponta Hobsbawm (1995, p. 325 e ss.), numa “cultura individualista


e hedonista”, orientado antes para uma “revolução cultural” do que
“econômica”, e, portanto, não mais sustentado na contradição de clas-
se, nem voltado para um novo projeto societário que se contrapusesse
ao capitalismo. Seu horizonte ideopolítico era a defesa da autonomia
da subjetividade, o que era compatível com os valores individualistas e
consumistas do mercado capitalista (ibidem, p. 327).
O projeto de “revolução social” (estrutural) dá lugar ao projeto de
“revolução cultural” (individual), tal como expressa o slogan do Maio
de 68: “Quando penso em revolução quero fazer amor” (in ibidem, p.
326), ou como escreve John Lennon na música “Revolution” dos Beatles:
You say you want a revolution […]
We all want to change the world […]
But when you talk about destruction
Don’t you know that you can count me out […]
You tell me it’s the institution […]
You’d better free your mind instead […]
But if you go carrying pictures of Chairman Mao
You ain’t going to make it with anyone anyhow […]
(Lennon e MacCartney) 1

Com essa base teórica e esse caldo de cultura histórico e político,


os autores “acionalistas”, ao refletirem sobre os novos movimentos so-
ciais que emergiam nesse contexto, passam a enfrentar e a opor a ca-
tegoria de “classe” (própria dos movimentos operários) ao conceito de
“identidade” (característico dos “Novos Movimentos Sociais”, conforme
esses autores).

A) A “identidade” no pensamento de Alain Touraine


O francês Alain Touraine, uma das principais referências “aciona-
listas”, caracteriza a natureza dos (novos) movimentos sociais no con-

1 “Você diz que quer uma revolução […] / Todos nós queremos mudar o mundo […] / Mas
quando você fala de destruição / Você não sabe que não pode contar comigo? […] / Você me diz
que é a instituição […] / Em vez disso é melhor você libertar sua mente […] / Mas se você ficar
carregando fotos do presidente Mao / Você não vai convencer ninguém de jeito nenhum […].

40
CAPÍTULO 1

texto do que ele denomina “sociedade pós-industrial”, a partir da com-


binação de três princípios fundamentais: identidade, oposição e totalidade.
a) O princípio de identidade, conforme aponta, “é a definição do ator
por ele mesmo” (TOURAINE, 1977, p. 345). É como o ator se identifica,
como ele se vê. Porém, afirma, “é o conflito que constitui e organiza
o ator” (ibidem), pois a identidade é determinada a partir de uma ca-
rência e de uma peculiaridade, e do conflito em torno delas. Esse con-
flito, orientado para essa carência ou peculiaridade, encontra, no lado
oposto, seu adversário. Um sujeito só pode tomar consciência da sua
identidade em função de “relações sociais”, a partir da clara percepção
de quem são seus adversários (ibidem). Segundo nosso autor, “a identi-
dade do ator não pode ser definida independentemente do conflito real com
o adversário e do reconhecimento do objetivo da luta” (ibidem, p. 346). Eis
que surge, de forma articulada, o segundo princípio.
b) O princípio da oposição, em que o sujeito (ou grupo) se opõe (en-
frenta) ao seu adversário, que representa o contrário do seu interesse,
ou constitui um obstáculo para alcançar seus objetivos. Para Touraine,
“um movimento só se organiza se ele pode identificar seu adversário”, e o
conflito (que emana a partir de uma carência ou de uma peculiaridade)
“faz surgir o adversário [e] forma a consciência dos atores” (ibidem, p.
346). Para o autor francês, o conflito pode ser “limitado” e se propor
a alcançar “objetivos imediatos”, porém ele afirma: “Só se pode falar
de princípio de oposição se o ator se sente confrontado com uma força
social geral num combate que coloca em causa orientações gerais da vida
social” (ibidem). Isto é, a identidade (a partir da carência ou da peculiari-
dade do ator) pode ser específica, o conflito pode ser limitado e os ob-
jetivos podem ser imediatos, mas para constituir um movimento social
(para organizar as lutas em torno dessa identidade) é preciso superar a
consciência imediata, orientando a ação para o enfrentamento com “uma
força social geral”, sustentada em “orientações gerais da vida social”.
Se isso não ocorrer, o processo (seja ao conquistar o objetivo imediato,
seja ao fracassar) tenderá a se desarticular como movimento. Porém
essa dimensão geral da “vida social”, conforme Touraine, não se res-
tringe a interesses econômicos, mas antes à esfera cultural. Tratam-se
de “modelos culturais” que são enfrentados pelos movimentos sociais,

41
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

nas ações e nos conflitos em torno das suas identidades: a cultura ma-
chista, a cultura racista, a cultura patriarcal, a cultura xenofóbica e ho-
mofóbica etc. Assim, o princípio de oposição, o adversário, não represen-
ta necessariamente o lado contrário da identidade, o “diferente”, mas a cultura
que expressa interesses diferentes ou que obstaculiza a conquista dos objetivos.
Ou seja, o princípio de oposição não trata de um indivíduo diferente,
mas de uma cultura contrária.
Conforme o autor: “Se é verdade que sempre existem tais interes-
ses [econômicos] em jogo, um movimento social só existe quando o
conflito se coloca no nível do modelo cultural, que é central na sociedade
considerada” (ibidem, p. 346). E isso nos leva ao terceiro princípio.
c) O princípio da totalidade, que expressa que um movimento social
não se limita ao conflito específico, mas a um “sistema de ação histórica”
(ibidem, p. 347). Isto é, mesmo se tratando de um movimento locali-
zado, de uma “identidade”, de um conflito específico e de objetivos
imediatos, “o movimento social não deixa de recorrer a um princípio
de totalidade” (ibidem).
Touraine completa sua reflexão afirmando que os três princípios não
podem ser isolados ou separados, mas devem existir de forma combina-
da. É errado, portanto, para esse autor, pensar a identidade e a oposição
sem recorrer à totalidade. Para ele, “O [oposição] só pode ser compreen-
dida como mediadora da ligação entre I [identidade] e T [totalidade]”
(ibidem, p. 348). Para ele, os atores de um movimento social não podem
ser caracterizados apenas por uma identidade (ibidem, p. 349).

B) A “identidade” na reflexão de Tilman Evers


Outro autor dessa corrente é o alemão Tilman Evers, que trata do
tema no célebre artigo “Identidade: A face oculta dos novos movimen-
tos sociais” (EVERS, 1984).
Para o autor, a principal novidade desses novos movimentos so-
ciais está na dicotomia “alienação-identidade” (ibidem, p. 12), sendo a
identidade o aspecto aglutinador dos NMS. Esse aspecto constituiria
ainda o que era verdadeiramente novo nessas organizações dos anos
1970-1980, diferenciando-se tanto dos movimentos conservadores
como dos populistas e dos marxistas. Conforme Evers:

42
CAPÍTULO 1

A principal investida nesta busca de identidade autônoma pare-


ce fazer-se contra a atitude e prática generalizadas de tutelagem
[…] em relação aos movimentos sociais. Isto aplica-se ao paterna-
lismo conservador e à manipulação populista, tanto quanto à inter-
pretação mecanicista da história que os marxistas latino-america-
nos herdaram da Terceira Internacional […] legitimando, assim,
a vanguarda iluminada (ibidem, p. 12).

O autor apresenta quatro teses para compreender os NMS, dentre


as quais destacamos a primeira e a terceira:
Primeira tese: “O potencial transformador dos novos movimentos
sociais não é político mas sócio-cultural” (ibidem, p. 14). Para o autor,
esses movimentos não se orientam para questões econômicas e/ou po-
líticas, mas para questões socioculturais, o que, para o autor, não os
converte em organizações imaturas de fazer política, e dessa forma ele
afirma que “a capacidade inovadora desses movimentos parece ba-
sear-se menos em seu potencial político e mais em seu potencial para
criar e experimentar formas diferentes de relações sociais quotidianas”
(ibidem, p. 15). No entanto, para Evers, essa ação orientada para a esfera
sociocultural da vida cotidiana teria, a longo prazo, um maior potencial
político do que “a ação imediatamente orientada na direção das estru-
turas de poder existentes” (ibidem).
Terceira tese: “Os aspectos centrais da construção contra-cultural
dos novos movimentos sociais podem ser entendidos a partir da dico-
tomia ‘Alienação-Identidade’” (ibidem, p. 17). Para ele, “a rebelião con-
tra a sociedade existente embutida nos novos movimentos sociais” tem
como perspectiva final o combate contra a alienação, visando a uma
“sociedade libertária, igualitária e comunitária” (ibidem, p. 18). Porém,
afirma:
durante o longo processo de ruptura com a alienação, o que pode
ser de relevância prática para os movimentos sociais atuais são
os primeiros e tímidos passos no sentido de tornarem-se sujeitos
de sua própria história. Talvez a noção de identidade seja mais
adequada para esboçar os conteúdos básicos destes primeiros
passos (ibidem, p. 18).

43
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Percebe-se que, para o autor, “ser sujeito de sua própria história”


não exige a “ruptura com a alienação”, tratando-se, assim, de processos
de curto prazo na esfera cotidiana e local, no âmbito sociocultural. Des-
sa forma, Evers define a identidade como o “faça-você-mesmo” em que
o movimento social realiza um “trabalho de formiga” (ibidem, p. 19).
Justamente, para o autor, quanto mais um movimento social atua
em torno do poder político, mais alienação, menos “identidade” e me-
nos potencial sociocultural ele terá (ibidem, p. 22).
Em síntese, trata-se de uma análise que tende a diferenciar os mo-
vimentos sociais tradicionais, notadamente o movimento operário ou
sindical, centrado na contradição de classes e focado na luta política,
dos chamados “novos movimentos sociais”, centrados na identidade
dos atores, cuja esfera de ação é a dimensão sociocultural (ver MON-
TAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 117-120 e 337 e ss.), reduzindo para
estes últimos, ou suprimindo, a centralidade da classe. Não obstante
isso, há ainda nessa abordagem um caráter universal – o “princípio de
totalidade” (para Touraine) e a finalidade no combate à alienação (para
Evers) –, que dá um certo horizonte mais amplo, no qual se insere e
adquire sentido a identidade específica.
Dessa forma, na análise acionalista dos chamados NMS, a identi-
dade passa a substituir a classe, porém eles ainda estão voltados para
um projeto transformador, orientado pelo princípio de totalidade
(Touraine) ou de superação da alienação (Evers). É nesse sentido, e
contrastando a “identidade” dos acionalistas com a “identidade” dos
pós-modernos, que Ellen Wood afirma: “O conceito [pós-moderno] de
‘identidade’ substitui o de ‘grupos de interesse’” (dos acionalistas), sendo
que o último, presente no debate sobre os Novos Movimentos Sociais,
difere da identidade na medida em que, mesmo negando a centralida-
de da classe, ainda reconhece “uma totalidade política inclusiva – o ‘sis-
tema político’, a nação ou o corpo de cidadãos –, ao passo que o novo
[conceito pós-moderno de ‘identidade’] insiste na irredutibilidade da
fragmentação e da diferença” (2006, p. 223).

1.2- A “identidade” em autores pós-marxistas e pós-estruturalistas:


as reflexões de Manuel Castells, Zygmunt Bauman e Stuart Hall

44
CAPÍTULO 1

O conceito de “identidade” também é assimilado por autores pós-


-marxistas e pós-estruturalistas, como Anthony Giddens (2002); Jürgen
Habermas (1983), em sua tentativa de “reconstrução do materialismo
histórico”; Zygmunt Bauman (1998, 2003 e 2005), no contexto da “mo-
dernidade líquida”; assim como igualmente aparece em O poder da iden-
tidade de Manuel Castells (1999) e na “identidade cultural” de Stuart
Hall. Vejamos brevemente as reflexões dos três últimos.

A) O poder da “identidade” nas análises de Manuel Castells


Conforme afirma o ex-marxista estruturalista espanhol Manuel
Castells, “no que diz respeito a atores sociais, entendo por identidade o
processo de construção de significado com base em um atributo cultu-
ral, ou ainda um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s)
qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado” (1999, p. 22).
Após distinguir o conceito de “identidades” (que “constituem fontes
de significados para os próprios atores” e são “construídas por meio de
um processo de individuação”) do de “papéis” (“definidos por normas
estruturadas pelas instituições e organizações da sociedade”) (ibidem,
p. 23), o autor afirma que é a “identidade” que detém maior força de
significado, por ela ser o resultado de um “processo de autoconstrução
e individuação” dos sujeitos, e não da construção das instituições do-
minantes (ibidem).
Segundo o autor aponta, “a construção social da identidade sem-
pre ocorre em um contexto marcado por relações de poder” (ibidem, p.
24), representando, portanto, uma relação de opressão. A partir disso,
Castells propõe três formas e origens de construção de identidades (ibi-
dem):
a) A identidade legitimadora: “Introduzida pelas instituições domi-
nantes da sociedade”. Ela dá origem a “um conjunto de organizações e
instituições” e de atores que “reproduzem a identidade que racionaliza
as fontes de dominação estrutural” (ibidem, p. 24).
b) A identidade de resistência: “Criada por atores que se encontram
em posições / condições desvalorizadas e/ou estigmatizadas pela lógica
da dominação, construindo, assim, trincheiras de resistência e sobre-
vivência” (ibidem, p. 24). Ela levaria à formação de “comunidades”, a

45
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

partir das quais se articulariam formas de resistência coletiva diante de


uma opressão, numa lógica de “identidades excluídas / excludentes”
(ibidem, p. 25).
c) A identidade de projeto: quando os atores sociais “constroem
uma nova identidade capaz de redefinir sua posição na sociedade
e, ao fazê-lo, de buscar a transformação de toda a estrutura social”
(ibidem, p. 24). Ela produz “sujeitos” – não indivíduos, mas “atores
sociais coletivos”. Nesse caso, ele afirma, “a construção de identida-
de consiste em um projeto de uma vida diferente, talvez com base
em uma identidade oprimida, porém expandindo-se no sentido da
transformação da sociedade como prolongamento desse projeto de
identidade” (ibidem, p. 26).
Essa última forma / origem da identidade seria, para o autor, aque-
la capaz de sair do espaço da resistência particular e alcançar uma di-
mensão universal. Mas a “identidade de projeto” pode se constituir a
partir da “identidade de resistência”, ao superar sua orientação parti-
cularista, e pode ainda vir a se tornar uma “identidade legitimadora”,
ao se tornar dominante nas instituições sociais.
Castells, seguindo Zaretsky, afirma que a política de identidade
“deve ser situada historicamente” (ibidem, p. 26). Assim, ao abando-
nar o marxismo estruturalista (e, com ele, a tradição marxista), Caste-
lls entende que as identidades deveriam ser compreendidas por meio
daquilo que ele, conforme abordara anteriormente, denominou de
“sociedade em rede”, caracterizada a partir da chamada “era da in-
formação”. Para ele, “o surgimento da sociedade em rede traz à tona
os processos de construção de identidade […] introduzindo novas
formas de transformação social” (ibidem, p. 27).
Isto é, segundo o autor, “o poder da identidade” na “sociedade
em rede” radicaria aqui: a “identidade” não só articula as pessoas a
partir de um atributo ou um “significado” em comum, mas, em con-
cordância com pós-marxistas como Habermas e Giddens, quando
a classe perde a condição aglutinadora, de identificação, e a adesão
social, ela perde também a capacidade transformadora, e então é
a “identidade” que vai orientar o(s) processo(s) de transformação
social.

46
CAPÍTULO 1

É dessa forma que Castells apresenta sua hipótese:


[…] a constituição de sujeitos, no cerne do processo de transfor-
mação social, toma um rumo diverso do conhecido durante a
modernidade dos primeiros tempos e em seu período mais tar-
dio, ou seja, sujeitos […] não mais formados com base em sociedades
civis [no sentido marxiano, como base econômica, conformada
a partir das relações de produção] que estão em processo de desin-
tegração, mas sim como um processo de prolongamento da resistência
comunal. Enquanto na modernidade a identidade de projeto fora
constituída a partir da sociedade civil (como, por exemplo, no
socialismo, com base no movimento trabalhista), na sociedade
em rede, a identidade de projeto […] origina-se a partir da resis-
tência comunal (ibidem, p. 28).

Cabe aqui uma nota: quando Castells diferencia a “modernidade”


da “sociedade em rede”, parece que a última não constituiria uma fase
da modernidade, mas um tipo de sociedade diferente da modernida-
de… depois da modernidade. Estaria ele então aceitando (tacitamente)
uma pós-modernidade?
Ainda, com todas as letras, Castells afirma o esgotamento do sujei-
to da transformação social próprio da modernidade: a classe social. Na
medida em que ela estaria em processo de “desintegração”, abrindo
espaço, na sociedade atual (de rede), para as “identidades de resistên-
cia”, que constituiriam “comunidades” ou coletividades identitárias e
assumiriam a condição de novos sujeitos da transformação social.

B) A “identidade” líquida da “modernidade líquida” nas


reflexões de Zygmunt Bauman
Tese central e referenciada de Zygmunt Bauman é a de que a moder-
nidade (clássica e tardia) passou, na virada dos anos 1960-1970, da “ri-
gidez” institucional-organizacional, centrada no trabalho e nas relações
de produção, para o que ele chama de “modernidade líquida” (2003 e
1998), uma modernidade de maior flexibilidade, transitoriedade e hete-
rogeneidade relacional e institucional, na qual o trabalho e as relações de
produção teriam perdido a centralidade e a força organizativa.

47
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, nessa nova ordem social líquida, tudo adquiriria maior li-
quidez: as instituições, as relações sociais, os projetos de vida e… as
identidades.
Bauman aponta que nas sociedades pré-modernas a “identida-
de” era algo rígido, predeterminada pelas raízes nacionais, regionais
e familiares. A modernidade colocou um fim nessa predeterminação,
transformando essa “identidade” em uma construção pessoal, um pro-
jeto, uma realização de cada indivíduo. Nas palavras dele:
O projeto moderno prometia libertar o indivíduo da identidade
herdada. Não tomou, porém, uma firme oposição contra a identida-
de como tal, contra se ter uma identidade, mesmo uma sólida, exu-
berante e imutável identidade. Só transformou a identidade, que
era questão de atribuição, em realização – fazendo dela, assim, uma
tarefa individual e de responsabilidade do indivíduo (1998, p. 30).

Porém se a modernidade clássica e tardia, que o autor trata como


“sólida”, por um lado conseguira romper com a “identidade” herdada,
atribuída, predeterminada, por outro não conseguiu romper com a ri-
gidez. Na “modernidade sólida”, a “identidade”, uma vez construída
pelos indivíduos, assumia um caráter fixo, permanente e imutável.
Só no contexto atual, com o advento do que chama de “moder-
nidade líquida”, é que a rigidez da “identidade” torna-se liquefeita.
Conforme aponta:
O mundo construído de objetos duráveis foi substituído pelo de
produtos disponíveis projetados para imediata obsolescência.
Num mundo como esse, as identidades podem ser adotadas e
descartadas como uma troca de roupa (ibidem, p. 112).

O grande desafio, segundo Bauman, da “vida pós-moderna” é


manter a flexibilidade e a mutabilidade das “identidades”. Assim, “a
dificuldade já não é descobrir, inventar, construir, convocar (ou mesmo
comprar) uma identidade, mas como impedi-la de ser demasiadamen-
te firme”, rígida; nesse sentido, continua, “o eixo da estratégia de vida
pós-moderna não é fazer a identidade deter-se – mas evitar que se fixe”
(ibidem, p. 114).

48
CAPÍTULO 1

A dita “modernidade líquida” de Bauman, naquilo que ele chama


da “vida pós-moderna”, parece se inspirar na “metamorfose ambulan-
te” de Raul Seixas. A liquidez da “identidade” não seria apenas uma
manifestação da liquidez da sociedade, mas, segundo ele, uma condi-
ção desejável.
Dessa forma, Bauman afirma que “identidade significa aparecer:
ser diferente e, por essa diferença, singular – e assim a procura da iden-
tidade não pode deixar de dividir e separar” (2003, p. 21). Essa “iden-
tidade” vai se desenvolver em “comunidades voláteis”, passageiras,
organizadas em torno de interesses específicos.
Assim, conforme o autor, na sociedade líquida a “identidade” seria
líquida e estaria em constante processo de mudança.

C) A “identidade” cultural do sujeito pós-moderno em Stuart Hall


Stuart Hall, um sociólogo de origem jamaicana e radicado na In-
glaterra, é um dos fundadores da escola de estudos culturais britânicos.
Influenciado na sua origem pela teoria marxista, particularmente pelos
estudos gramscianos sobre a cultura, também foi fundador e editor,
ao lado de Edward P. Thompson e de Raymond Williams, da New Left
Review, em 1960.
Conforme Celso Frederico (2020), nos anos 1960, Hall “pensava a
cultura em suas relações com a economia, o poder e as classes sociais”.
Porém,
A virada para as teses pós-modernistas ocorreu durante o tha-
tcherismo. Estudando esse fenômeno, Hall constatou como ele
pôs fim ao referencial teórico das esquerdas. Thatcher atacou
de frente o movimento sindical e nem por isso a classe operá-
ria reagiu. A partir daí, Hall abandonou o referencial classista,
decretando o fim das “solidariedades tradicionais”, preferindo
falar sobre outras formas de identificação baseadas no gênero
e etnia para, finalmente, remeter o tema da identidade para o
indivíduo, o sujeito nômade, flutuante, híbrido, portador de in-
fluências díspares.
Esse percurso tortuoso acabou por aproximá-lo de Antonio
Negri na busca de forças sociais capazes de resistir à globalização:

49
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

“Não o proletariado, nem o sujeito descolonizado, mas sobretudo


o que Antonio Negri chama de ‘multidões’, forças difusas […]”.
Nesse percurso das classes sociais ao indivíduo, o pensamento
de Gramsci, em Hall, sofreu drásticas transformações […] (ibidem).

Segundo Frederico, para Hall, na medida em que o mundo (em


crise e sob a hegemonia do neoliberalismo) “tornou-se um lugar ‘in-
determinado’”, ele “não pode ser enfrentado com conceitos ou cate-
gorias rígidas”, motivo pelo qual Hall foi “atraído pelas concepções
pós-estruturalistas sobre o processo de significação” (ibidem). Assim,
ainda conforme Frederico, ele abandona posturas “essencialistas”
e, “levando adiante o projeto pós-estruturalista, Hall pretende des-
construir todos os referentes fixos”, saindo assim “da genética para
ingressarmos na cultura e na vertigem das proliferantes diferenças:
da classe ao povo, deste para os grupos sociais e [finalmente] para os
indivíduos” (ibidem).
Em seu livro A identidade cultural na pós-modernidade (2006), Stuart
Hall, em função do contexto histórico-social, apresenta três concepções
de sujeito e de “identidade”:
a) O “sujeito (e a identidade) do Iluminismo”,
baseado numa concepção da pessoa humana como um indivíduo
totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão,
de consciência e de ação […] permanecendo essencialmente o mes-
mo –contínuo ou “idêntico” a ele – ao longo da existência do indi-
víduo [… sendo] uma concepção muito “individualista” do sujeito e
da identidade “dele” (HALL, 2006, p. 10-11).

b) O sujeito (e a identidade) do mais complexo “mundo moderno”, que


apresenta:
a consciência de que este núcleo interior do sujeito não era autô-
nomo e auto-suficiente, mas era formado na relação com “outras
pessoas importantes para ele”, que mediavam para o sujeito os va-
lores, sentidos e símbolos – a cultura – [… sendo] esta concepção
“interativa” da identidade e do eu. De acordo com essa visão […]
a identidade é formada na “interação” entre o eu e a sociedade. O

50
CAPÍTULO 1

sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o “eu real”,


mas este é formado e modificado num diálogo contínuo com os
mundos culturais “exteriores” e as identidades que esses mundos
oferecem.
[…] A identidade, então, costura […] o sujeito à estrutura. Es-
tabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais […] (ibidem,
p. 11-12).

Porém, conforme o autor, são exatamente essas coisas que agora es-
tão “mudando”. O sujeito, previamente vivido como tendo uma identi-
dade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não
de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias
ou não resolvidas. […] O próprio processo de identificação, através do
qual nos projetamos em nossas identidades culturais, tornou-se mais
provisório, variável e problemático (ibidem, p. 12).
Assim, ao falar da “modernidade tardia” como “aquilo que descri-
to, algumas vezes, como nosso mundo pós-moderno”, o autor afirma
que os sujeitos passam a ser também “pós” em relação “a qualquer
concepção essencialista ou fixa de identidade” (ibidem, p. 10).
Dessa forma, como afirma Hall, “as velhas identidades, que por
tanto tempo estabilizaram o mundo social [na modernidade], estão [na
sociedade ‘pós-moderna’, ou ‘modernidade tardia’] em declínio, fazen-
do surgir novas identidades e fragmentando o indivíduo moderno, até
aqui visto como um sujeito unificado”, o que estaria levando os sujei-
tos a uma “crise de identidade” (ibidem, p. 7). Conforme o autor, na
atualidade, [a] mudança estrutural está transformando as sociedades
modernas no final do século XX. Isso está fragmentando as paisagens
culturais de classe, gênero, sexualidade, etnia, raça e nacionalidade,
que, no passado, nos tinham fornecido sólidas localizações como in-
divíduos sociais. Estas transformações estão também mudando nossas
identidades pessoais, abalando a ideia que temos de nós próprios como
sujeitos integrados (ibidem, p. 9).
Hall chama esse processo de “deslocamento” ou “descentração
[…] dos indivíduos”, em duplo sentido: por um lado, em relação ao
“seu lugar no mundo social e cultural”, e por outro, em relação a “si

51
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

mesmos”, constituindo uma “‘crise de identidade’ para o indivíduo”


(ibidem). Surge o novo sujeito.

c) O sujeito (e a identidade) pós-moderno(a),


conceptualizado como não tendo uma identidade fixa, essencial
ou permanente. A identidade torna-se uma “celebração móvel”:
formada e transformada continuamente […]. É definida histori-
camente, e não biologicamente. O sujeito assume identidades di-
ferentes em diferentes momentos, identidades que não são uni-
ficadas ao redor de um “eu” coerente. Dentro de nós há identi-
dades contraditórias, empurrando em diferentes direções, de tal
modo que nossas identificações estão sendo continuamente des-
locadas. Se sentimos que temos uma identidade unificada desde
o nascimento até a morte é apenas porque construímos uma cô-
moda estória sobre nós mesmos ou uma confortadora “narrativa
do eu” […]. A identidade plenamente unificada, completa, segu-
ra e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam,
somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e
cambiante de identidades possíveis (ibidem, p. 12-13).

Seguindo o pós-marxista argentino Ernesto Laclau, Hall sustenta


que “as sociedades modernas [tardias?…] não têm nenhum centro, ne-
nhum princípio articulador ou organizador único e não se desenvol-
vem de acordo com o desdobramento de uma única ‘causa’ ou ‘lei’”
(ibidem, p. 16). Para Laclau, como recupera Hall, “as sociedades da mo-
dernidade tardia [ou da pós-modernidade…] são caracterizadas pela
‘diferença’” (ibidem).
Conforme Hall, ainda apoiado em Laclau, o sujeito pós-moder-
no representa “uma concepção de identidade muito diferente e muito
mais perturbadora e provisória do que as duas anteriores [do Iluminis-
mo e da modernidade]”, porém, se esse “deslocamento” do sujeito, por
um lado “desarticula as identidades estáveis do passado”, por outro
“também abre a possibilidade de novas articulações: a criação de novas
identidades, a produção de novos sujeitos” (ibidem, p. 17-18).

52
CAPÍTULO 1

Com isso, segundo Hall, a classe social perderia a centralidade e o


papel na organização das lutas políticas. Conforme ele afirma, agora
seguindo Kobena Mercer, na sociedade contemporânea, considerada
como “modernidade tardia” ou “pós-modernidade”, “as pessoas não
identificam mais seus interesses sociais exclusivamente em termos de
classe; a classe não pode servir [mais] como um dispositivo discursi-
vo ou uma categoria mobilizadora através da qual todos os variados
interesses e todas as variadas identidades das pessoas possam ser re-
conciliadas e representadas”, o que mostra a “erosão da ‘identidade
mestra’ da classe e da emergência de novas identidades, pertencentes à
nova base política definida pelos novos movimentos sociais” identi-
tários (ibidem, p. 20-21).
Nesse sentido, as identidades perdem o caráter rígido, fixo e
até natural próprio das sociedades anteriores, tornando-se flexíveis,
transitórias, múltiplas e contrárias, agora fundadas nas “diferenças”.
Como ele afirma:
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o
sujeito é interpelado ou representado, a identificação não é au-
tomática, mas pode ser ganhada ou perdida. Ela tornou-se po-
litizada. Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo
uma mudança de uma política de identidade (de classe) para
uma política de diferença (ibidem, p. 21).

Conforme Hall, as “identidades culturais” são híbridas, móveis,


dinâmicas; podem ser direcionadas e redirecionadas, e estão em cons-
tante mudança. Por esse motivo, ele prefere o conceito de “identifica-
ção” ou “processo identitário”, já que “identidade” sugere algo fixo,
imóvel.
● Como podemos constatar, a “identidade”, a partir das abor-
dagens pós-marxista e pós-estruturalista, passa de uma categoria
que define o indivíduo em relação aos outros para um conceito que
o transforma em um ser indefinido. Da “identidade” fixa e rígida à
“identidade” líquida, flexível, cambiante.

53
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

1.3- A política liberal de “identidade”

Como veremos, a tradição liberal, particularmente a keynesiana e a


neokeynesiana, tem desenvolvido uma apropriação particular do con-
ceito de “identidade”, diluído na noção de cidadania; mas é só recente-
mente, a partir dos anos 2000, que nos EUA se desenvolve o que alguns
autores chamam de “política identitária”, em função das demandas
sociais de grupos identitários, e depois promovida institucionalmente,
portanto, no interior do próprio liberalismo, caracterizando o que Lilla
(2018) chama de “liberalismo identitário”.

A) Liberalismo e cidadania
A forma com que a “identidade” é tratada política e juridicamente
pelo liberalismo, ou seja, na história da ordem burguesa, é por meio
da sua diluição no conceito formal e indiferenciado de “cidadania”, rele-
gando para o (livre jogo do) mercado a resolução das divergências e das
diferenças.
O conceito de “cidadania” contém uma noção indiferenciada e
abstrata de sujeitos, eles são tratados como “iguais” a partir do aces-
so a direitos comuns, direitos nacionais e/ou direitos humanos. Tho-
mas Humphrey Marshall, sociólogo liberal que desenvolveu a base
do conceito de “cidadania”, referindo-se ao seu homônimo Alfred
Marshall, afirma que: “A desigualdade do sistema de classes sociais
pode ser aceitável desde que a igualdade de cidadania seja reconhe-
cida” (1967, p. 62). Em outras palavras, a desigualdade própria das
diferentes condições e capacidades individuais, configurando diver-
sas classes sociais, pode ser equalizada a partir da intervenção do
Estado num processo de igualação (formal) no acesso aos direitos
dos cidadãos. Assim, ele afirma: “A igualdade humana básica da
participação” associa-se a “um conjunto formidável de direitos”, e é
“identificada com o status de cidadania” (ibidem).
Marshall (o T. H.) divide o conceito de “cidadania” em três par-
tes, ou conjuntos de direitos: civis (direitos vinculados à liberdade
individual), políticos (direitos de participação no exercício do poder
político) e sociais (direitos ligados ao bem-estar econômico, à educa-

54
CAPÍTULO 1

ção e à seguridade social) (ibidem, p. 63). Numa análise linear, critica-


da por Barbalet (1989), Marshall situa o desenvolvimento dos direitos
civis dos países centrais no século XVIII (ibidem, p. 66), dos direitos
políticos no século XIX (ibidem, p. 69) e dos direitos sociais no século
XX (ibidem, p. 70).
Nesse sentido, a Declaração Universal dos Direitos Humanos,
promulgada pela Organização das Nações Unidas em 1948, reza no
art. 1o que: “Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dig-
nidade e direitos”.2 A partir daí, no Brasil, como na Carta Magna de
diversos países, o art. 5o da Constituição Federal de 1988 assegura
que: “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer na-
tureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade”.3
Dessa forma, por um lado, para o liberalismo (especialmente o
keynesiano e o neokeynesiano), a “identidade” é relegada ao espaço da
intimidade, do privado, na medida em que do ponto de vista político,
do direito, mesmo que formalmente, para o Estado as diferenças indivi-
duais seriam desconsideradas, em virtude da igualação (ou indiferencia-
ção) operada pelo conceito de cidadania. Todos os cidadãos são iguais
perante as leis e o Estado.
Porém, por outro lado, o liberalismo (especialmente o liberalismo
clássico e o neoliberalismo) – desde a noção de um mercado livre e
autorregulado (presente no conceito da “mão invisível do mercado”
de Adam Smith), e da teoria da natural diferença de riqueza entre os
indivíduos (a partir da “teoria do valor-trabalho” de Smith e David
Ricardo, em meados de 1700, também presente em John Locke, meio
século antes) – vai solidificar a noção de uma natureza das diferenças e
das desigualdades, produtos (segundo essa análise) da capacidade e do
esforço individual, e portanto aceitáveis a partir da natureza e da liber-
dade individual. Essa noção adquire maior radicalidade no pensamen-

2 Ver em: <https://www.unicef.org/brazil/declaracao-universal-dos-direitos-humanos>; acesso


em jun. de 2020.
3 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>; acesso em
jun. de 2020.

55
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

to neoliberal, quando Hayek, em 1944, entende que o espaço natural


de concorrência individual é o mercado, onde cada sujeito se enfrenta
a partir da sua capacidade e competência pessoal (ver em MONTAÑO,
2002, p. 76 e ss.).
Assim, na tradição liberal, para o Estado, e na esfera formal do di-
reito, todos os cidadãos são iguais. As diferenças e, portanto, as “identi-
dades” são remetidas ao espaço privado ou à concorrência do mercado.

B) “Liberalismo identitário” e “políticas identitárias” nos EUA


Nas últimas décadas, porém, especialmente nos EUA, viu-se o de-
senvolvimento do que o cientista político e jornalista liberal Mark Lilla
(2018) chama de “liberalismo identitário”. Este, mais do que uma análise
teórica e um discurso identitarista, expressa o desenvolvimento con-
creto de “políticas identitárias”.
Conforme Lilla, o liberalismo democrático – leia-se Partido De-
mocrata, entendido por ele como liberal e “progressista”, se compa-
rado, claro, com o Partido Republicano – passou de um discurso e de
uma proposta universalista, orientados à nação e à cidadania, para um
discurso e uma prática “identitarista”, orientados a nichos, grupos e
coletivos particulares.
Para ele, se “o termo identidade […] só entrou no discurso político
americano no fim dos anos 1960” (LILLA, 2018, p. 52), “a grande ab-
dicação liberal [da plataforma universalista] começou na era Reagan
[nos anos 1980]” (ibidem, p. 13). Conforme o autor, enquanto a “direita”
– leia-se Partido Republicano – unificou-se em torno do discurso e do
projeto neoliberal, os “liberais” – leia-se Partido Democrata – “envol-
veram-se na política identitária, perdendo o sentido do que comparti-
lhamos como cidadãos e do que nos une como nação” (ibidem, p. 14).
Assim, afirma, “durante os anos 1970 e 1980 houve uma mudan-
ça. A atenção [dos liberais] passou a se concentrar menos na relação
entre nossa identificação com os Estados Unidos como cidadãos de-
mocratas e mais na nossa identificação com diferentes grupos sociais
dentro do país. A cidadania desapareceu” (ibidem, p. 55), passando
do “nós” para o “eu” (ibidem, p. 56). A partir daí, segundo o autor,
“eles [os liberais, do Partido Democrata] se perderam no matagal da

56
CAPÍTULO 1

política identitária e desenvolveram uma retórica da diferença […]


desagregadora” (ibidem, p. 50).
Para Asad Haider, a “política identitária” não tem origem no libe-
ralismo, nem no Partido Democrata, mas numa organização feminista
que apontou os limites (a perpetuação do machismo) na experiência so-
cialista. Assim, é em 1977 que surge a expressão “política identitária”,
quando o Coletivo Combahee River (CCR) argumenta que o projeto
socialista revolucionário estava minado de racismo e sexismo (HAI-
DER, 2019, p. 31). No manifesto desse coletivo feminista lê-se: “Somos
socialistas […]. Porém não estamos convencidas de que uma revolução
socialista que não seja também uma revolução feminista e antirracista
garantirá nossa libertação” (apud HAIDER, 2019, p. 31-32).
Porém, sustenta Haider, esse caminho tomou outros rumos ao ser
apropriado pelo discurso e pela política liberal. Dessa forma, citando
Salar Mohandesi, Haider afirma:
“o que começou como uma promessa de superar algumas limi-
tações do socialismo, de modo a construir uma política socialista
mais rica, mais diversa e inclusiva”, terminou “sendo aproveitado
por aqueles com uma política diametralmente oposta àquelas do
CCR”. O exemplo mais recente e mais marcante foi a campanha
presidencial de Hillary Clinton, a qual adotou a linguagem de “in-
terseccionalidade” e do “privilégio” e usou a política identitária
para combater o surgimento de uma opção de esquerda no Parti-
do Democrata, em torno de Bernie Sanders (HAIDER, 2019, p. 34).

Segundo Lilla, o desafio para os liberais democratas está na retoma-


da de um discurso e de uma política universalista, que reincorporem o
conceito de cidadania. Assim, afirma: “Precisamos reaprender a falar aos
cidadãos como cidadãos” (LILLA, 2018, p. 18).
Conforme aponta Lilla, se por um lado “a direita americana usa o
termo cidadania hoje como ferramenta de exclusão”, por outro lado, e
contrariamente, “os liberais o veem tradicionalmente como generosa fer-
ramenta de inclusão” (ibidem, p. 98).
O autor defende o poder articulador e unificador desse conceito,
tanto no discurso como na plataforma política eleitoral. Assim, segun-

57
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

do ele, “o conceito de cidadania tem uma vantagem adicional. Ofere-


ce uma linguagem política para falar sobre uma solidariedade que
transcende os vínculos identitários” (ibidem, p. 98), já que, segundo
o mesmo autor, “os progressistas [liberais democratas] compreendem
a necessidade da solidariedade de um jeito que os liberais identitários
não compreendem” (ibidem, p. 99), pois os últimos orientariam sua
solidariedade apenas para o interior da própria “identidade”, para os
próprios pares, o “nós”, enquanto os primeiros a orientariam externa-
mente, para os “diferentes”, para o “outro”.
Assim, o autor conclui afirmando que “cidadania não é identidade
[…], mas torna possível incentivar as pessoas a se identificarem umas
com as outras” (ibidem, p. 101).
Surge assim, a partir dessa corrente identitarista liberal, institu-
cionalizada nos EUA em políticas sociais específicas – políticas com-
pensatórias, inclusivas e/ou afirmativas –, a conversão e institucionali-
zaçãodas causas e das lutas identitárias em “políticas identitárias” ou
“identitaristas”.
Aqui, o que de um lado – o lado dos grupos ou coletivos “identitá-
rios”, oprimidos, e das chamadas “minorias” – é visto como conquistas de
políticas e de direitos que respondem às demandas específicas deles, do
outro lado – o lado do establishment, da elite econômica, política e ideologi-
camente dominante – é visto como uma forma de institucionalização dos
conflitos sociais, de deseconomização das demandas, de segmentação da
classe trabalhadora e de desarticulação das lutas de classes.
Efetivamente, do ponto de vista da classe dominante, a conversão
das justas e necessárias causas e lutas antiopressivas (dos grupos “iden-
titários”) em “políticas identitárias” representou, por um lado, o radical
deslocamento das lutas, que saem da esfera econômica da produção e pas-
sam para a esfera do mercado (pelo acesso a bens e serviços), do Estado
(por conquistas de direitos ou políticas sociais específicos) e/ou da so-
ciedade civil (muitas vezes transmutada num abstrato “terceiro setor”,
ver MONTAÑO, 2002) (como um espaço de “liberdade”, de expressão
multicultural). Por seu turno, isso significou uma clara institucionali-
zação dessas lutas, agora já não mais contra os pilares do sistema capitalista
(particularmente contra a exploração da força de trabalho), mas pela

58
CAPÍTULO 1

inclusão no sistema (via direitos e políticas sociais específicos), derivan-


do na própria legitimação da ordem social. Ideologicamente, por outro
lado, a crítica radical ao sistema capitalista e à refuncionalização e recria-
ção do racismo, do patriarcalismo e de outras formas de desigualdade,
discriminação e opressão (agora recriados e refuncionalizados sob a
lógica do capital), tende a ser abandonada e substituída por críticas es-
pecíficas e desarticuladas da totalidade social (e, portanto, abstratas), como
se o racismo, o machismo etc. não tivessem hoje uma raiz burguesa,
uma conexão com os fundamentos econômicos do modo de produção
capitalista. Finalmente, essa guinada de causas / lutas antiopressivas
(“identitárias”) para “políticas identitárias” representou também uma
desarticulação interna da classe trabalhadora como um todo, agora di-
vidida e fragmentada em múltiplas “identidades”, e enfrentada e con-
frontada internamente.
É a dialética contraditória da realidade da qual Marx – após He-
gel – nos falava. Em relação às “políticas identitárias”, em geral, sem
dúvidas há conquistas para os grupos e coletivos identitários, mas ao
preço de abandonar a perspectiva anticapitalista de revolução social e
até de transformação das estruturas de opressão: inclusão (via direitos
e políticas sociais, e, claro, incorporando a linguagem “politicamente
correta”) dentro da ordem.
Porém, em que pesem à existência do “liberalismo identitário”
da análise acionalista sobre a “identidade” nos NMS, e do estudo de
autores pós-marxistas e pós-estruturalistas sobre o conceito, é a razão
pós-moderna que incorpora a “identidade” e a converte em “identita-
rismo”, em “lógica identitarista”, essa força hegemônica na esquerda
contemporânea.
É na perspectiva pós-moderna que o “identitarismo” e a “lógica
identitarista” passam paulatinamente a comandar a análise e as ações
da esquerda, até se tornarem hegemônicos nesse campo político. Dessa
forma, é sobre a “lógica identitarista” pós-moderna que nos debruça-
remos em seguida.

59
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

60
capítulo 2

DA “IDENTIDADE” AO
“IDENTITARISMO”: A “LÓGICA
IDENTITARISTA” PÓS-MODERNA COMO
FUNDAMENTO DE CONGREGAÇÃO E
POLARIZAÇÃO POLÍTICA

S e o conceito de “identidade” vem dos estudiosos da modernidade


e é um dos primeiros conceitos da sociologia, ele só adquire relevância
e centralidade teórica e política quando passa a ser concebido como um
conceito que vem substituindo a categoria de “classe social”, e, com isso,
as lutas de classe e os movimentos sindicais vão sendo substituídos pe-
las “lutas sociais” e pelos chamados novos movimentos sociais, cujo
elemento congregador e aglutinador não seria mais a classe, nem a luta
econômica, mas a “identidade” e a luta cultural. Porém, apesar dessa
enorme transformação analítica e política, ainda há uma visão univer-
sal, uma “dimensão de totalidade”, que orienta a ação política.
Assim, é o irracionalismo pós-moderno que vai operar uma nova
transformação do conceito de “identidade”, agora em “identitarismo”,
fundando o que chamaremos de “lógica identitarista”, um processo de
multissegmentação da polarização social e de perda do horizonte uni-
versal e da totalidade social.

61
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Dessa forma, as análises que fundam a “lógica identitarista” e


toda sua articulação com os conceitos de “lugar de fala”, “pós-ver-
dade”, “punitivismo”, “inclusão” e “empoderamento”, sustentam-se
sobretudo nas concepções pós-modernas sobre o poder.
Trata-se de uma visão, primeiramente, desarticulada sobre o po-
der; uma foucaultiana “microfísica do poder” (ver FOUCAULT, 1985
e 1985a), em que ele é pensado a partir de relações interpessoais (sin-
gulares ou particulares) de poder. Um poder expresso na cotidiani-
dade das pessoas e nos seus microespaços. Um poder que, além de
interpessoal, é concebido como institucional, mas não como estrutural,
próprio do sistema capitalista. Aliás, nos estudos pós-modernos so-
bre o poder, assim como na compreensão da “lógica identitarista”,
como veremos, o modo de produção capitalista é o grande ausente. Para
essa racionalidade (ou, na verdade, “irracionalismo”), ele parece não
ser determinante nas relações sociais de poder e de opressão. Como
se apenas as questões econômicas e de classe fossem estruturais, en-
quanto as demais formas de opressão não responderiam à estrutura
capitalista, sendo meramente culturais.
Em decorrência disso, em segundo lugar, trata-se de uma aná-
lise que desconsidera a contradição de classes ao pensar o poder. Como
se o poder fosse uma questão exclusivamente política, vinculada ao
conceito de exclusão, desconectada da economia, da qual daria conta a
categoria de exploração. Opera-se assim a dissociação da política e da eco-
nomia; isto é, essa análise deseconomiza a política e, especificamente,
o poder.
Trataremos, neste capítulo, primeiramente, da “identidade”,
como categoria que expressa certos grupos subalternos dentro de
relações de opressão, de discriminação ou de desigualdade. Em se-
guida, analisaremos sua passagem ao “identitarismo”, como infle-
xão operada pela racionalidade pós-moderna. Nesse momento, va-
mos nos debruçar nas formulações de Boaventura de Sousa Santos,
autor privilegiado dessa corrente de pensamento, sobre a chamada
“esquerda pós-moderna”; também nos debruçaremos no processo
que transforma “identidade” em “identitarismo”, a partir da “lógica
identitarista” articulada ao arcabouço (a)político pós-moderno, o que

62
CAPITULO 2

trataremos no capítulo três, a saber: os conceitos de “lugar de fala” e


“pós-verdade”, os objetivos “punitivistas”, a representação e “inclu-
são” social, e o “empoderamento”.

I- Da “identidade” (como categoria teórico-política)...

A categoria de “identidade” tem uma expressão real, seja ela de


base objetiva, dada pela condição real e de vida das pessoas, seja de base
subjetiva, a partir da percepção que o indivíduo constrói da sua condi-
ção, da sua “autoimagem”, isto é, sustentada em aspectos objetivos e
interpretações subjetivas.
Desta forma, a categoria “identidade” (enquanto expressão da rea-
lidade) não corresponde a “identitarismo” (enquanto apropriação pós-
-moderna que se faz da realidade). A noção de “identitarismo” pós-
-moderno se constrói, ideologicamente, a partir da concepção dessa
corrente de uma “lógica identitarista”.
É mister, portanto, partir do tratamento do que seja a “identidade”,
como categoria real (subjetiva ou objetivamente fundada), para depois
tratar de sua mutação pós-moderna, o “identitarismo” (a partir da “ló-
gica identitarista”).

2.1- “Identidade” e condição / situação real

É preciso, primeiramente, diferenciar o conceito de “identidade”


da condição ou situação real (atributo, circunstância ou posição) dos
sujeitos, a partir da qual eles são submetidos a alguma forma de opres-
são, discriminação ou desigualdade. Essas formas podem coincidir ou
não. Vejamos.
Engels não pertencia ao proletariado, ele era membro de uma fa-
mília burguesa e no entanto se identificava com a causa operária. Um
trabalhador autônomo tem como condição real viver do seu trabalho,
porém ele sente-se um “empreendedor” e se identifica como pequeno
empresário. Um desempregado também pertence à classe trabalhado-
ra, ele só não pode vender sua força de trabalho, porém, por sua con-
dição de desemprego, não se identifica como trabalhador. Dois irmãos

63
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

imigrantes, um se identifica com a cultura do país de origem, enquanto


o outro, com a do país de destino.
Esses exemplos mostram claramente que uma coisa é a “condição
real”, os atributos reais, a realidade ou a situação factual que fazem parte
da vida de cada sujeito; outra coisa é como esse sujeito se “identifica”,
como ele se sente em relação a um atributo, como se autopercebe ou até
com que causas se identifica. Falamos, então, de uma questão objetiva, a
real existência de um atributo, a “condição real” ou a situação concreta, e
de uma percepção subjetiva, a “identidade” que esse indivíduo constrói a
partir desse atributo ou dessa situação, e que é central na vida dele.
Sobre isso, Marx já diferenciava a “classe em si” – a mera condição
de pertencimento a uma classe social – da “classe para si” – a percepção
na consciência dos seus interesses de classe, a construção de uma cons-
ciência de classe, a partir da qual se organiza a luta por seus interesses.
Porém, se “condição ou situação real” (objetiva) e “identidade”
(subjetiva) expressam coisas diferentes, elas podem coincidir ou não.
Dois indivíduos com a mesma idade, superior a 60 anos: um está
aposentado e o outro ainda está na ativa, um sente-se “velho” enquanto
o outro se sente ainda “jovem”; por conta disso, um frequenta grupos
da terceira idade, com os quais se identifica cultural e geracionalmen-
te, enquanto o outro frequenta reuniões com seus colegas de trabalho
mais jovens, construindo aí sua identidade.
Dois trabalhadores negros, um se identifica prioritariamente com a
causa operária, fazendo parte das lutas sindicais pela defesa do direito
dos trabalhadores, enquanto o outro tem como identidade sua condi-
ção racial, militando em grupos e causas antirracistas.
Duas mulheres trabalhadoras e mães, uma se identifica mais com
a condição de trabalhadora, dedicando os maiores esforços a progredir
no emprego, enquanto a outra tem sua subjetividade construída na sua
condição de mãe, identificando-se mais com a maternidade e procu-
rando diminuir o mais possível seu tempo e esforço no trabalho para
se dedicar ao filho.
Dois irmãos, filhos de um pai judeu e de uma mãe cristã, que foram
igualmente educados, um se identifica mais com a religião judaica, en-
quanto o outro se percebe como cristão.

64
CAPITULO 2

Dois irmãos, filhos de um pai negro e de uma mãe branca, um se


identifica como negro, enquanto o outro se identifica como branco.
O que estamos ressaltando com esses exemplos é que cada indiví-
duo apresenta uma diversidade enorme de atributos, de “condições e
situações reais” – vinculados a raça, gênero, orientação sexual, mater-
nidade / paternidade, atributos físicos, religiosidade, condição social e
econômica, bairro etc. –, mas ele formará sua “identidade” fundamen-
talmente a partir de alguns deles, e a partir da forma como os percebe
(como constrói esses atributos no pensamento), aqueles com os quais,
valha a redundância, se identifique mais.
Via de regra, a “identidade” remete a uma relação, uma oposição
ou uma diferenciação. A existência de um atributo num grupo só é per-
cebida quando contrastada com a ausência desse atributo no outro, ou
quando confrontada com o contrário e o diverso dele. Por exemplo, de-
pois da dissolução da antiga Iugoslávia, os eslovenos, sérvios, bósnios
e croatas tiveram que construir sua “identidade” a partir daquilo que
os diferenciava entre si (ver WOODWARD in SILVA, HALL e WOO-
DWARD, orgs., 2014, p. 7 e ss.). Para essa autora, “ao afirmar a prima-
zia de uma identidade […] parece necessário […] colocá-la em oposi-
ção a uma outra identidade” (ibidem. p. 12). Nesse sentido, ela afirma,
a identidade é relacional. A identidade sérvia depende, para
existir, de algo fora dela: a saber, de outra identidade (Croácia),
de uma identidade que ela não é, que difere da identidade sér-
via, mas que, entretanto, fornece as condições para que ela exista.
A identidade sérvia se distingue por aquilo que ela não é. Ser
um sérvio é ser um “não croata”. A identidade é, assim, marcada
pela diferença (ibidem, p. 9).

Sendo, ainda, que “a diferença é sustentada pela exclusão: se você


é sérvio, você não pode ser croata, e vice-versa” (ibidem).
Dessa forma, do ponto de vista sociológico, a “identidade” remete
a uma relação social; porém, do ponto de vista político, ela remete a
uma relação de opressão.
Apesar de tratarmos aqui da “identidade” que emana a partir de
uma relação de desigualdade e opressão, há, no entanto, “identidades”

65
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

que não necessariamente remetem a esse tipo de relação opressiva. Por


exemplo, a “identidade” com (ou de “torcedor” de) um time de fute-
bol, que em muitos países ocupa um lugar central na construção da au-
toimagem e do lugar social de muitos indivíduos, remetendo, é claro,
a uma rivalidade, que não é necessariamente uma relação de opressão;
ou a “identidade” de “empreendedor”, claramente diferenciada da de
“trabalhador”, porém, sem estabelecer uma relação de opressão com/
por este.
Ainda mais, a “identidade” que o indivíduo (ou o conjunto deles)
constrói, aquilo com o qual se identifica, envolve não apenas escolher
(ou priorizar) alguns atributos e descartar (ou secundarizar) outros,
mas fazê-lo a partir da percepção que dele tenha. Isto é, o atributo ou a
situação expressam uma condição real (objetiva) do sujeito, mas a identi-
dade representa uma autoimagem, uma representação (subjetiva) a partir
da forma como o indivíduo se percebe ou como ele percebe a realidade,
como ele reconstrói idealmente esse atributo ou essa situação. Sendo
assim, a “identidade” (por ser autoimagem, representação, construída
subjetivamente pelo indivíduo) pode estar mais ou menos relacionada
com o “atributo ou situação real”, podendo ser uma representação real,
clara e fiel do atributo ou da situação, ou tal vez representar uma au-
toimagem deturpada do real, ou até essa “identidade” (essa autoima-
gem) possa não ter nenhuma materialidade objetiva, expressando ape-
nas um desejo, uma fantasia.
Dessa forma, se cada sujeito é constituído e/ou determinado por
um conjunto enorme e dinâmico de “atributos”, de “condições reais”,
a(s) “identidade(s)” com a(s) qual(is) ele identifica-se, reconhece-se e
constrói sua “imagem” (social e psicológica) é (são) o resultado de uma
seleção subjetiva (de maior ou menor grau de consciência). Ou seja: O
que melhor me define? Com o que eu mais me identifico? Com minha
condição de mulher ou de negra?, com o fato de ser operário ou imigran-
te?, ou até, com o bairro onde moro ou minha orientação sexual? De to-
dos esses atributos, situações ou “condições reais”, um sujeito define-se
melhor, identifica-se mais, e constrói sua imagem e identidade social e
psicológica a partir da escolha ou seleção (mais ou menos consciente)
daqueles atributos (reais ou ideais) que terão maior peso, simbólico ou

66
CAPITULO 2

não, a partir da biografia, dos acontecimentos pessoais marcantes, do


impacto e/ou peso social que tenha cada um, da autoimagem etc.
Nesse sentido, conforme afirma Stuart Hall, “o sujeito, previa-
mente vivido como tendo uma ‘identidade’ unificada e estável, está
se tornando fragmentado, composto não de uma única, mas de várias
identidades, algumas vezes contraditórias e não resolvidas” (2006, p.
12). Dessa forma, continua:
o sujeito assume identidades diferentes em diferentes momen-
tos, identidades que não são unificadas em redor de um ‘eu’ coe-
rente. Dentro de nós há identidades contraditórias, empurrando
em diferentes direções, de tal modo que nossas identificações
estão sendo constantemente deslocadas… A identidade plena-
mente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia.
Ao invés disso, à medida em que os sistemas de significação e
representação cultural se multiplicam, somos confrontados por
uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades
possíveis (ibidem, p. 13).

É, portanto, a partir da maior identificação do indivíduo com al-


guns atributos ou situações (ou da imagem e percepção que deles tem),
e em como esse sujeito os percebe e os reconstrói na consciência, que
ele formará sua “identidade”, a partir da qual orientará sua vida, seus
grupos de referência, seu sentimento de pertencimento, sua visão de
mundo, seu agir.
Assim, ao conceituar a “identidade” não estamos falando, de
início e nem necessariamente, do grupo ou coletivo social, da “iden-
tidade” entre sujeitos. A “identidade” acontece, antes de tudo, entre
o indivíduo e o atributo ou a situação que o sujeito escolheu como
central. Assim, primeiramente, a “identidade” remete à imagem, à
representação ou ao significado que, a partir desse atributo, situação
ou condição, o indivíduo tem de si mesmo. Ela expressa, em primeiro
lugar, a relação sujeito / objeto; o sujeito se identifica com o atributo ou a
condição (ou a percepção ou representação que tem dele) e constrói a
partir dele ou dela uma autoimagem, uma autorrepresentação, uma
(a sua) “identidade”.

67
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Só em segundo lugar, e como uma possibilidade, o sujeito, que se


identifica com determinado atributo ou situação (real ou idealizado, con-
creto ou abstrato), pode passar a se identificar com outros indivíduos
que apresentem (realmente ou no imaginário) o mesmo atributo ou vi-
vam a mesma situação, construindo assim uma identidade intersubjetiva.
Esses atributos ou situações, ainda, não são fixos e imutáveis,
muitos deles estão em constante mudança: por exemplo, questões li-
gadas à idade (geracionais), ao local de residência, à condição de em-
pregado ou de desempregado, a alguma característica física passível
de mudança, como por exemplo a obesidade. Isso quer dizer que, por
um lado, os atributos e as situações, em tanto condições reais que con-
tituem a vida dos indivíduos, são em muitos casos mutáveis e estão
em constante mudança. Dessa forma, por outro lado, essa mudança de
atributos (objetivos) pode levar a mudanças na identidade (subjetiva)
dos indivíduos, alterando ou variando as coisas com as quais eles prio-
ritariamente mais se identificam, mudando sua “identidade”.
A identidade, portanto, remete a três processos e fenômenos, diferen-
tes porém relacionados. Vejamos:
Assim, a “identidade” remete de início à relação sujeito-objeto, à
autoimagem e à autorrepresentação que ele constrói e elabora a partir de
fatos, situações ou condições reais, que, no entanto, são reinterpretadas
subjetivamente.
Em segunda instância, ela remete à relação sujeito-sujeito, à constru-
ção coletiva de uma “identidade”, num processo de identidade grupal, a
partir da comunhão de uma situação, uma condição ou um atributo en-
tre pessoas, o que as vincula, por um lado, e as diferencia dos demais,
por outro.
Porém, há um terceiro processo relacionado à “identidade” que re-
mete, nesse caso, à relação sociedade-sujeito, isto é, à construção social de
uma imagem em relação a um grupo. Trata-se, aqui, de uma “identidade
atribuída” socialmente. Por exemplo, a “identidade” atribuída social-
mente à mulher, tanto a partir de papéis sociais predefinidos com base
no gênero (mulher do lar, dona de casa, mãe amorosa etc.), como em
função de características socialmente esperadas (feminilidade, afetuo-
sidade, docilidade etc.) (ver SILVA, 1994, p. 201, 213, 245, 273, 281).

68
CAPITULO 2

Lembrando que, como afirmaram Marx e Engels em A ideologia ale-


mã (ver item 4.3-A), “as ideias (Gedanken) da classe dominante são […]
as ideias dominantes” (MARX e ENGELS, 1993, p. 72), e assim a cons-
trução social de identidades está permeada pelas ideias, pelos valores
e pelas visões de mundo dominantes: numa sociedade patriarcal, por
exemplo, a “identidade social” da mulher é pautada pelos valores ma-
chistas; em idêntico sentido, numa sociedade racista, a “identidade so-
cial” da pessoa negra é fortemente determinada pela dominação do
homem branco.
Há, portanto, no processo de construção da “identidade”, três refe-
rências: a “identidade” pode ser individual, coletiva e/ou socialmente
atribuída.
Nesse sentido, no caso da questão racial, como afirma Silvio Al-
meida, “tanto o ‘ser branco’ quanto o ‘ser negro’ são construções so-
ciais” (2019, p. 77).
Em função disso, o apelo do objeto real (situação, condição ou atri-
buto) na construção da “identidade” é variado, podendo ser ela pura
elaboração subjetiva, não amparada no objeto real (como quando al-
guém cria uma autoimagem para obter aceitação dos outros), ou repre-
sentação que reflete fielmente a realidade, assim como todos os matizes
dela.
Podemos assim falar, nos extremos, de uma “identidade subjeti-
va” e de uma “identidade objetiva”, em função do grau de representa-
tividade que ela tenha com o objeto real.
Feita essa distinção entre “atributos e situações” objetivos, realmen-
te existentes, e “identidades”, como representações subjetivas, percebidas
e reconhecidas pelo sujeito como próprias e construídas coletivamen-
te ou atribuídas socialmente; a partir de agora, por efeito dos propó-
sitos deste texto, falaremos de “identidades” como aqueles atributos e
situações objetivos que, levados ao plano consciente como percepções e
representações, são constitutivos das identidades subjetivas, individuais
e coletivas.
Assim, como categoria de análise, o conceito de “identidade” diz
respeito à autorrepresentação, ao campo do simbólico no qual os su-
jeitos – individual, coletiva e até socialmente – percebem-se e identifi-

69
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

cam-se com algum atributo, condição ou situação (real ou construída


subjetivamente).
Porém a referência e a análise dos fenômenos, das condições so-
ciais e dos atributos etc. realmente existentes, remete-nos à realidade ob-
jetiva, para além da percepção, vivência ou representação que os sujei-
tos fazem delas. E isso nos leva a pensarmos a relação entre a realidade
objetiva, a percepção a partir da vivência, e os graus de consciência que o
sujeito possa ter dela. Vejamos.

2.2- “Identidade”: vivência, percepção e consciência

O conhecimento crítico e de totalidade não pode tratar isolada e


desarticuladamente um do outro: tratar a realidade objetiva sem con-
siderar a percepção e a representação subjetiva; ou, contrariamente,
tratar a percepção e a representação subjetiva independentemente da
realidade como ela é. Todo conhecimento de uma dimensão (subje-
tiva ou objetiva) sem a outra representa um reducionismo cognitivo
quando falamos da realidade social. Do ponto de vista político, esse
reducionismo no plano do conhecimento tende a derivar numa vi-
são ora estruturalista / fatalista (quando pensamos na realidade obje-
tiva e na estrutura social sem o sujeito), ora subjetivista / voluntarista
(quando analisamos os sujeitos e sua vivência sem referencia com a
realidade objetiva, ou como se ela fosse resultado da mera vontade
dos sujeitos).
Porém para o irracionalismo pós-moderno, que desconsidera a
objetividade do real, a realidade é configurada apenas pelas percep-
ções, pelas vivências subjetivas. Assim, o pensamento pós-moderno
desconecta e desarticula a “identidade” dos sujeitos da base mate-
rial, da realidade objetiva. Por isso, essa análise substitui “condição e
situação real” por “identidade” subjetiva. Para o irracionalismo pós-
moderno existe apenas a “identidade” (subjetiva).
Contrariamente, numa concepção materialista e dialética, é
fundamental tratar da questão objetiva, real, a partir da qual os indi-
víduos formam sua autopercepção e sua autoimagem, desenvolven-
do “identidades”. Há uma inter-relação entre as condições objetivas e as

70
CAPITULO 2

construções subjetivas. Porém há decerto uma precedência e autonomia


da realidade em relação à consciência dos sujeitos sobre ela. Como
diz Marx: “Não é a consciência dos homens que determina o seu ser;
é o seu ser social que, inversamente, determina a sua consciência”
(1977, p. 24).
Ainda, essa consciência se faz sob condições historicamente de-
terminadas; assim, Marx continua em outro texto, “os homens fazem
sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem
sob circunstâncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se de-
frontam diretamente, legadas e transmitidas pelo passado” (MARX,
1997, p. 21).
Dessa forma, e contrariamente ao que a visão subjetivista / vo-
luntarista supõe, não basta a vivência de uma realidade para fundar
um conhecimento ou uma consciência crítica sobre essa realidade.
Com isso, a relação entre realidade objetiva e percepção subjeti-
va se apresenta em diversos graus e de diversas formas, pois há dife-
rentes níveis de percepção e consciência sobre a realidade. Vejamos.
a) Primeiramente, a mera vivência proporciona uma primeira for-
ma de consciência social, que aparece fundamentalmente no cotidiano
das pessoas.
Aqui se dá o que Lukács chama de “materialismo espontâneo” e
“pensamento analógico” (1966, p. 45 e 53).
Trata-se da percepção individual, espontânea e imediata so-
bre a realidade, na qual o indivíduo se apropria cognitivamente do
entorno imediato, do nível aparente ou pseudoconcreto (conforme
KOSIK, 1976, p. 9 e ss.) do real, estabelecendo uma relação neces-
sidade-resposta imediata, pragmatista e pontual. Nessa forma pri-
mária de consciência, o indivíduo transforma o singular em geral,
generalizando a realidade e o entorno imediatos, criando a sensação
de que tudo se passa como na situação imediata que ele vivencia. A
“realidade imediata” é vista como “a realidade universal”.
Certamente, nesse tipo de consciência da realidade imediata, as
formas de alienação e de reificação, próprias da vida cotidiana na so-
ciedade burguesa, estão presentes e são determinantes.

71
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Marx trata da questão da alienação ou estranhamento,4 particular-


mente em Manuscritos econômico-filosóficos (MARX, 2004), como um
processo histórico próprio da sociedade capitalista, particularmente
ligado ao trabalho. Assim, conforme cita Mészáros, Marx apontou em
seus Grundrisse como “esse processo de objetivação surge de fato [no ca-
pitalismo] como um processo de alienação do ponto de vista do trabalho, e
como apropriação do trabalho alheio, do ponto de vista do capital” (MARX
apud MÉSZÁROS, 2006, p. 64). Porém o processo de alienação (ou es-
tranhamento) não remete apenas ao produto (objeto) do trabalho, à
obra. Dessa forma, Mészáros (2006) retoma o processo de alienação de
Marx, elencando os quatro aspectos a seguir:
a) O homem está alienado da natureza;
b) está alienado de si mesmo (de sua própria atividade);
c) de seu “ser genérico” (de seu ser como membro da espécie
humana);
d) o homem está alienado do homem (dos outros homens).
(MÉSZÁROS, 2006, p. 20).

Já autores marxistas que estudam a vida cotidiana, como o pró-


prio Lukács (1966, p. 68 e 2013, p. 464), além de Heller (2014, p. 56;
1991, p. 28 e 1994, p. 8), Lefebvre (1991, p. 40-41) e Kosik (1976, p. 64),
avaliam o cotidiano da sociedade capitalista como um espaço pro-
priamente alienado.

4 A categoria “alienação” tem sido diversamente traduzida como: “alienação”,


“estranhamento” e até “enajenación” (no castelhano). Utilizamos aqui o termo da bibliografia
referenciada, porém alertamos para o fato de esses termos distintos tratarem da mesma
categoria. Vejamos:
Diferentemente de Hegel, Marx distingue a “objetivação” (como ato de produzir, mediante o
qual o sujeito objetiva-se, exterioriza-se, externaliza-se no produto, reconhecendo-se na sua
obra) da “alienação” ou “estranhamento” (como forma degradada de objetivação, própria do
capitalismo, em que o sujeito sente-se estranho e não se reconhece no produto) (ver MARX,
2004, p. 80 e ss., e FREDERICO, 1995, p. 178).
Porém Marx emprega diferentes termos em alemão para as variadas categorias:
Entäusserung (“alienação”), Entfremdung (“estranhamento”), Selbstentfremdung
(“estranhamento-de-si”), Vergegenständlichung (“objetivação”), Äusserlichkeit
(“externalização”) (ver MARX, 2004, p. 80-83). Com tudo isso, em não poucos casos há
erros de tradução (como a própria edição aqui referenciada – ver MARX, 2004, p. 80-82 –,
onde Entäusserung aparece tanto como “alienação” quanto como “exteriorização”) ou de
compreensão, desfazendo a distinção que Marx realiza entre as duas formas, e, portanto,
tratando ambas como uma mesma, como Hegel fazia.

72
CAPITULO 2

Por seu turno, Lukács caracteriza a reificação como o processo me-


diante o qual, a exemplo do fetichismo da produção e da troca de merca-
dorias (MARX, 1980, p. 80), todas as relações sociais da ordem burgue-
sa são vivenciadas pelos sujeitos como relações entre coisas, estranhas e
alheias.
Dessa forma, assim como a mercadoria não é vista como o resulta-
do de relações sociais (relações de produção), mas como coisas estra-
nhas e alheias, também o Estado é visto como algo superior e alheio às
relações sociais; o desemprego, a pobreza, a mais-valia, a assistência, as
políticas sociais – tudo passa a ser visto de forma “fetichizada”, como
coisas alheias e estranhas às relações sociais.
Para Lukács, a essência da estrutura mercantil / capitalista está no
fato de “uma relação entre pessoas tomar [ser percebido como] o ca-
ráter de uma coisa, e ser, por isso, de uma ‘objetividade ilusória’”, que
esconde e “dissimula todo e qualquer traço da sua essência fundamen-
tal: a relação entre homens” (1974, p. 97). Assim, conforme o autor, esse
fenômeno faz
com que o homem se oponha à sua própria atividade, ao seu pró-
prio trabalho, como algo de objetivo, independente dele e que
o domina […]. Isto verifica-se tanto no plano objetivo como no
plano subjetivo. Objetivamente, surge um mundo de coisas aca-
badas e de relações entre coisas […]. Subjetivamente, a atividade
do homem – numa economia mercantil realizada [capitalista] –
objetiva-se em relação a ele, torna-se numa mercadoria regida
pela objetividade das leis sociais naturais estranhas aos homens
e deve efetuar os seus movimentos […] independentemente dos
homens […] (ibidem, p. 100-101).

Dessa forma, conforme afirma Lukács, a reificação se torna “uma


questão específica da nossa época e do capitalismo moderno” (ibidem, p.
98), influenciando “toda a vida […] da sociedade” (ibidem, p. 97). Nesse
sentido, a reificação “é o ato (ou resultado do ato) de transformação das
propriedades, relações e ações humanas em propriedades, relações e
ações de coisas”, que se tornam autônomas e independentes daqueles
que as produziram, significando ainda “a transformação dos seres hu-

73
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

manos [e suas relações] em seres semelhantes a coisas” (PETROVIC in


BOTTOMORE, ed., 1988, p. 314). Assim, “a reificação é um caso ‘espe-
cial’ de alienação” (ibidem).
b) Há uma segunda forma de consciência que pode ser denominada
como consciência reivindicatória ou sindical.
Aqui, a situação, os fatos e os fenômenos deixam de ser percebidos
individualmente e passam a ser vistos de forma coletiva. Desenvolve-se
aqui a compreensão das necessidades e das situações em comum, de-
sencadeando uma ação coletiva reivindicatória. Os exemplos vão desde a
consciência e a ação sindical,na lutam por melhores condições de venda
da força de trabalho, até as formas de percepção e ação de grupos “iden-
titários”, que lutam por direitos e políticas específicas.
Desde que não superem a consciência e as lutas específicas ou par-
ticulares, elas constituem formas de consciência e de ação reformistas,
sem compreender as questões específicas como particularidades da es-
trutura social mais ampla, e sem enfrentar os fundamentos da ordem
social vigente. Assim, como sustenta Lukács, “esta simples crítica, esta
crítica feita do ponto de vista do capitalismo, manifesta-se da forma
mais notória na separação dos diferentes setores da luta” (1974, p. 92).
c) Finalmente, a terceira forma de consciência é a chamada cons-
ciência de classe ou consciência humano-genérica, caracterizada como
“o máximo de consciência possível”, que Lênin vai chamar de “cons-
ciência político-universal” e Gramsci de “catarse”.
Trata-se, reafirmamos, de uma forma de consciência humano-ge-
nérica, que procura compreender as causas e os fundamentos dos fenô-
menos, chegar à raiz deles, superando a mera aparência e alcançando
a essência. Para Marx, “ser radical é agarrar [compreender] as coisas
pela raiz. Mas, para o homem, a raiz [das coisas] é o próprio homem”
(2005, p. 151).
No estudo da vida cotidiana dos já mencionados autores marxis-
tas, alcançar esse nível de consciência sobre a realidade exige a supera-
ção ou a suspensão da imediaticidade próprias da vivência cotidiana e
dos fenômenos singulares, alcançando o conhecimento da totalidade,
saturada de mediações (ver KOSIK, 1976, p. 73, 77; e HELLER, 1991,
p. 34; 2014, p. 41 e ss.). Para Lukács, é preciso superar o conhecimento

74
CAPITULO 2

próprio do “materialismo espontâneo” para alcançar o “materialismo


filosófico”. Assim, ele afirma:
[…] o pensamento humano supera a imediaticidade da cotidia-
nidade […] porque se supera a conexão imediata entre o reflexo
[representação] da realidade, sua interpretação mental e a prá-
tica, com o que, conscientemente se insere uma série crescente
de mediações entre o pensamento – que assim chega a ser pro-
priamente teórico – e a prática. Somente graças a este ato de su-
peração pode abrir-se um caminho desde o materialismo espon-
tâneo da vida cotidiana para o materialismo filosófico (LUKÁCS,
1966, p. 50).

O conhecimento crítico radical, na perspectiva da totalidade e da


transformação social, torna-se central, pois não basta apenas o conhe-
cimento científico – ele tem que ser revolucionário. Assim, nas pala-
vras de Lênin, “sem teoria revolucionária, não há movimento revolucionário”
(2010, p. 81).
Devemos observar que todos os sujeitos (individual ou coletiva-
mente) constroem “identidades”, representações da realidade e sua
condição ou situação social. Dessa maneira, as formas de “identidade”
respondem ao grau de consciência que o sujeito tem sobre a sua reali-
dade. Isto é, falar de “identidade” não significa necessariamente dizer
que o indivíduo ou o coletivo tem uma consciência crítica sobre sua
condição ou situação, a qual dependerá do grau de consciência alcan-
çado pelo sujeito.

2.3- A importância das causas identitárias e a necessidade e urgência


das suas lutas (antiopressivas)

Nossa análise, já o afirmamos na introdução deste livro, não visa


opor “classe” a “identidade”, promovendo a escolha entre uma catego-
ria ou outra, nem satanizar a “identidade” e a luta identitária como uma
causa e luta secundarizadas ou desimportantes em função da questão
e da luta de classes. Muito menos afirmar que a “identidade” não tem
materialidade ontológica, sendo apenas uma construção subjetiva.

75
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Muito pelo contrário, nossa reflexão visa mostrar como a apropria-


ção da categoria “identidade” pela razão pós-moderna, transforman-
do-a em “identitarismo”, que é submetido a uma lógica polarizadora
e dissociada da totalidade, constitui um abandono efetivo dos funda-
mentos e da importância das lutas antiopressivas particulares (“iden-
titárias”) no caminho para a transformação social e a emancipação hu-
mana.
Para isso, vamos apresentar a importância das causas identitárias e
a necessidade e urgência das suas lutas – lutas antiopressivas particu-
lares, não uma alternativa à lutas de classe, mas complementares a ela
(do que trataremos no item 7.3).

A) O caráter estrutural da opressão por “identidades”: os casos do


racismo e do patriarcalismo / machismo
Muitas das questões, dos fenômenos e das relações (de opressão e
de desigualdade) que conformam as chamadas “identidades” consti-
tuem processos que devem ser entendidos não na sua fenomenalidade,
como questões autoexplicativas, afastadas umas das outras e da totali-
dade social, mas como fenômenos estruturais, isto é, como expressões e
manifestações da chamada “questão social” (voltaremos a isso no item
6.2), fundadas na estrutura do atual sistema capitalista. Tratam-se de
questões estruturais, não de comportamentos ou idiossincrasias pes-
soais e grupais.

Vejamos brevemente o caso do racismo e do patriarcalismo.


a) Por um lado, vemos o racismo como um fenômeno de caráter
essencialmente estrutural. Silvio Almeida (2019, p. 35 e ss.) apresenta
três formas de conceber o racismo: o racismo “individual”, o “institucio-
nal” e o “estrutural”.
Primeiramente, a concepção que entende o racismo como uma
mera manifestação individual (ibidem, p. 36 e ss.), identificando-o com
atos de preconceito e de discriminação (ibidem, p. 32) promovidos por
indivíduos ou grupos, como se fossem “uma espécie de ‘patologia’ ou
anormalidade” ou um problema ético dessas pessoas (ibidem, p. 36).
Nessa concepção, nega-se o caráter racista da sociedade. Se o racismo

76
CAPITULO 2

corresponde, nessa concepção, a atos individuais de preconceito e de


discriminação, a forma de enfrentá-los será, portanto, também indivi-
dualizada: a punição, por um lado, e/ou a educação e a conscientiza-
ção, por outro.
Em segundo lugar, a concepção institucional do racismo (ibidem, p.
37 e ss.), que vai além de atos individuais, manifesta-se a partir das
instituições. Essas instituições, sob hegemonia de grupos raciais domi-
nantes, reproduzem a desigualdade mediante normas, costumes, mé-
todos e procedimentos institucionais. Aqui, não se trata de um proble-
ma ético ou patológico dos indivíduos, mas de uma questão de poder:
“O racismo é dominação” (ibidem, p. 40). Aqui, a forma privilegiada de
enfrentamento será mediante ações compensatórias e políticas afirma-
tivas, como as cotas raciais (ibidem, p. 41-42).
Finalmente, em terceiro lugar, há a concepção estrutural do racismo
(ibidem, p. 46 e ss.). Conforme Almeida, enquanto as instituições são ex-
pressões do sistema social que as cria, se há racismo institucional, é por-
que ele reflete o racismo estrutural (ibidem, p. 47). Isto é: “As instituições
são racistas porque a sociedade é racista” (ibidem). O racismo não é cria-
do pelas instituições ou pelos indivíduos, mas é por eles reproduzido.
Assim, como fenômeno estrutural, o racismo tem expressões ideológi-
cas, políticas, jurídicas e econômicas. Ideologicamente (ibidem, p. 60 e ss.),
o racismo “molda o inconsciente” das pessoas, tendendo a naturalizar
e a reproduzir a desigualdade racial; politicamente (ibidem, p. 86 e ss.),
ele expressa uma relação de poder, plasmada no Estado e nas demais
instituições da sociedade; juridicamente (ibidem, p. 136 e ss.), o direito
estabelece a base legal sobre a qual as relações sociais racistas se desen-
volvem; e economicamente (ibidem, p. 154 e ss.), porque o racismo assume
(mesmo que com sequelas da herança escravocrata: o negro se insere na
classe trabalhadora carregando a herança da escravidão e a dominação
do homem branco), na sociedade capitalista, contornos de desigualdade
econômica, mediante a precária inserção do negro no mercado de traba-
lho, fornecendo força de trabalho mais barata para o capital.
O caráter estrutural do racismo significa que ele não se trata de um
fenômeno isolado, autônomo, autodeterminado, mas articulado estru-
turalmente à totalidade social, à esfera econômica, política, cultural etc.

77
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Essa compreensão estrutural do racismo, apesar de ser importante


no imediato, não basta. Portanto, o foco da luta antirracista não podem
ser as medidas reparadoras, punitivas ou educativas, sobre os indiví-
duos, nem as ações ou políticas compensatórias e afirmativas. Elas não
transformam o caráter estrutural do racismo.
Assim, o racismo, mesmo presente em outras sociedades não ca-
pitalistas, assume contornos e particularidades próprios no Modo de
Produção Capitalista (MPC). Enfrentar o racismo é enfrentar também
o capitalismo.
b) Por outro lado, o patriarcado, que funda a cultura machista,
também deve ser compreendido no seu caráter estrutural. Friedrich
Engels (2002), no clássico A origem da família, da propriedade privada e do
Estado, mostra como a família monogâmica, que instaura o patriarca-
do, baseado no “predomínio do homem”, se funda no surgimento da
propriedade privada, quando o homem precisava garantir a legitimi-
dade indiscutível da sua paternidade, em função da hereditariedade
de suas posses para os filhos (ibidem, p. 62). Para isso, o casamento
monogâmico do homem com a mulher, e a castidade e fidelidade da
última, constituem aspectos centrais de uma união que será selada
por contratos religiosos, políticos e/ou econômicos, não por laços afe-
tivos (ibidem, p. 65).
Assim, para garantir a castidade e a fidelidade da mulher, única
forma de confirmar a consanguinidade entre os filhos e o pai, a mulher
tinha que se tornar uma figura fora da esfera pública, própria do priva-
do, do lar, enquanto o homem cuidava da vida pública, das proprieda-
des e/ou do sustento de cada dia.
Nesse sentido, Engels afirma, assim como Marx, que “a primei-
ra divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para
a procriação dos filhos”, e acrescentam: “O primeiro antagonismo de
classe que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do
antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia; e a primeira
opressão de classe, com a opressão do sexo feminino pelo masculino”
(ibidem, p. 65-66).
Dessa forma, na síntese que o autor realiza, “a monogamia nasceu
da concentração de grandes riquezas nas mesmas mãos – as de um ho-

78
CAPITULO 2

mem – e do desejo de transmitir essas riquezas, por herança, aos filhos


deste homem […]. Para isso era necessária a monogamia da mulher,
mas não a do homem” (ibidem, p. 75).
Temos, portanto, a origem não só do matrimônio e da família mo-
nogâmica, mas também a da desigualdade e da atribuição de papéis
rígidos para o homem e a mulher, em função de o homem ser o único
proprietário de bens, proprietário inclusive dos filhos e das mulheres,
para cuja hereditariedade a vida pública das mulheres, isto é, sua li-
berdade, devia-lhes ser furtada. Garantindo que a mulher só tivesse
contato com o marido, dentro do âmbito privado do lar, o homem afas-
taria de si eventuais dúvidas sobre a paternidade e a consanguinidade
com sua prole, possibilitando que suas posses fossem só para os filhos
legítimos.
Há aqui a origem da dominação e opressão da mulher pelo homem,
da caracterização de papéis sociais rigidamente determinados para ho-
mens e mulheres, do confinamento da mulher ao lar, do roubo da liber-
dade feminina. Temos, assim, a origem do patriarcalismo e do machismo.
Para o autor, o capitalismo reconfigura e refuncionaliza essas ba-
ses. Na sociedade burguesa, o contrato matrimonial não pode mais ex-
pressar uma relação de posse, mas deve constituir um “livre contrato”
(ibidem, p. 79), que nos setores dominantes da burguesia continua atre-
lado a questões econômicas e patrimoniais, mas que na classe trabalha-
dora (despossuída) foi cada vez mais sustentado em vínculos afetivos
(ibidem, p. 80-81).
Engels, portanto, entendendo a gênese do matrimônio monogâmi-
co baseado em contratos, atrelada à necessidade de hereditariedade da
propriedade privada por parte de filhos legítimos, vai afirmar que, no
socialismo, com o fim da propriedade privada, não obstante, o matri-
mônio monogâmico permaneceria vigente; estando nessa sociedade, a
partir de uma mudança paulatina da base matrimonial, cada vez me-
nos sustentado num contrato de união matrimonial (religioso, político
e/ou econômico), e mais fundado no estabelecimento de laços de afetivi-
dade (ibidem, p. 81 e 75-76).
No entanto, o que observamos nos tempos atuais é exatamente o
contrário. Com a paulatina substituição do contrato por laços afetivos,

79
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

como base e fundamento da união matrimonial, não se verifica a ma-


nutenção do matrimônio monogâmico, pelo contrário, ele se tornou
mais instável e transitório, pois “quando o afeto desaparece ou é subs-
tituído por um novo amor apaixonado, o divórcio será um benefício
tanto para ambas as partes como para a sociedade” (ibidem, p. 82). O
afeto, novo fundamento da relação conjugal, é mais variável e volátil
que os contratos.
Essa análise nos mostra a origem e os fundamentos do patrimo-
nialismo, estrutural e estruturante das relações e dos papéis sociais de
gênero.
Porém não podemos compreender essas relações e atribuições de
papéis de gênero sem analisar a influência da moral religiosa neles,
particularmente nas culturas de origem judaico-cristã.
No entanto, como falamos, o capitalismo reconfigura e refunciona-
liza todas as relações e funções sociais. Ele transforma o racismo ine-
rente a uma sociedade escravista em um racismo funcional à lógica
capitalista, assim como também transforma as relações e os papéis de
gênero em função da sua lógica e da sua dinâmica.
Aqui, sem nos adentrarmos nos seus detalhes, é importante regis-
trar a análise marxiana do papel econômico do uso da força de trabalho
feminina no processo de produção e de valorização do capital.
Conforme analisa Marx, com a máquina-ferramenta na indústria,
“tornando supérflua a força muscular”, o capital pode empregar “tra-
balhadores sem força muscular”, como mulheres e crianças (1980, p.
449). Com isso, se antes “o valor da força de trabalho era determina-
do […] pelo [tempo de trabalho] necessário a sua manutenção e à da
sua família”, agora, “lançando à máquina todos os membros da família
[…], reparte ela [a máquina] o valor da força de trabalho do homem
adulto pela família inteira. Assim, desvaloriza a força de trabalho adulto”
(ibidem p. 450). Dessa forma, a máquina “revoluciona radicalmente o
contrato entre o trabalhador e o capitalista”, ampliando o grau de ex-
ploração. “Antes, vendia o trabalhador sua própria força de trabalho
[…]. Agora vende mulher e filhos” (ibidem, p. 451). É o que Marx cha-
ma de “apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares”
(ibidem, p. 449).

80
CAPITULO 2

Com isso, o capital não apenas amplia o exército de reserva de


trabalhadores, quebrando o poder de luta deles e diminuindo a remu-
neração, mas também tem acesso a uma força de trabalho mais barata:
as mulheres e as crianças, já que a remuneração delas seria comple-
mentária à reprodução familiar.
Efetivamente, o capital precisa constantemente ter acesso a supri-
mentos de mão de obra mais barata. Assim, a mulher, o jovem (apren-
diz), o trabalhador negro, o imigrante (especialmente o ilegal) e o
portador de deficiência fornecem essa força de trabalho de mais baixa
remuneração.
Dessa forma, o que de um lado, o da mulher, é uma conquista ci-
vilizatória – o ingresso no mercado de trabalho e, com isso, a conquista
de sua independência econômica, e tudo o que devém disso –, de ou-
tro, o do capital, é uma forma de ampliar a oferta de força de trabalho,
promovendo a desvalorização dessa força, assim como uma fonte de
mão de obra mais barata.
Isto é, as causas identitária, em torno de relações de opressão, de
discriminação e de desigualdade, são expressões concretas da estru-
tura social, manifestações da chamada “questão social”. Pensar criti-
camente essas questões, por um lado, exige considerá-las a partir dos
fundamentos da sociedade capitalista. Pensar a sociedade capitalista
a partir da diversidade de expressões e manifestações concretas, das
formas e relações de opressão e de desigualdade, exige, por seu turno,
saturar a análise da sociedade capitalista dessas questões particulares.
Nesse sentido, não dá para analisar o patriarcalismo e o machis-
mo, as relações desiguais de gênero e a determinação de papéis so-
ciais, isolando essa questão, como se ela fosse uma mera “identidade”
da moral judaico-cristã e da estrutura social capitalista. O mesmo ca-
minho deveríamos trilhar para compreender, como fenômenos estru-
turais, a questão indígena, a xenofobia, a intolerância religiosa etc.

B) A necessidade e urgência das lutas antiopressivas (“identitárias”)


É a partir da compreensão desses fenômenos como estruturais,
refuncionalizados e reconfigurados pelo MPC a partir da estrutura e
dinâmica capitalista, que podemos ter um entendimento crítico da cul-

81
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

tura racista, machista, homofóbica etc., das relações institucionais de


opressão delas derivadas, e dos comportamentos individuais e grupais
de preconceito, discriminação e violência – expressões dessa estrutura.
Essas culturas, essas relações institucionais de opressão e de desi-
gualdade, esses atos individuais ou grupais, não são outra coisa senão a
materialização, institucional e pessoal, da estrutura racista, patriarcal etc.
Nesse sentido, assim como “gênero masculino” e “gênero femini-
no” são construções sociais, culturais, caracterizando o que se espera
de cada um deles e transformando o sexo, como determinação biológi-
ca, em gênero, como questão social (ver BUTLER, 2003), a “raça bran-
ca” como a “raça negra” também são construções sociais e, portanto,
culturais (ver ALMEIDA 2019, p. 76-77).
Por esse motivo, podemos e devemos afirmar que as lutas antio-
pressivas não podem esperar o socialismo. Elas são necessárias e ur-
gentes hoje.
Não se trata de travar uma luta (de classe) em torno da explora-
ção, deixando para depois as lutas em torno das formas particulares
de opressão (ver item 7.1-C). Não se trata de transformar o universal
para depois resolver o particular. Não se trata de pensar que, com a
superação da ordem burguesa e a construção do socialismo, como re-
sultado direto teremos resolvido as formas e as relações opressivas do
capitalismo.
É uma arrogância incomensurável pretender que o negro, a
mulher, o imigrante, o praticante de uma religião discriminada, o
LGBT etc. suportem a desigualdade e a opressão estrutural, a discri-
minação e a violência (simbólica ou real), esperando a superação do
capitalismo.
As lutas de classes e a luta anticapitalista devem caminhar juntas e
mancomunadas com as lutas antiopressivas particulares (ditas “iden-
titárias”) (ver item 7.3). Uma sem a outra não conseguem alcançar a
emancipação, seja política, seja humana. Uma precisa da outra. As lu-
tas de classes e anticapitalistas precisam das lutas antiopressivas para
ganhar adesão popular, penetrando na epiderme social e ganhando
a diversidade de suas manifestações. As lutas antiopressivas, por sua
vez, precisam das lutas de classes e da perspectiva anticapitalista para

82
CAPITULO 2

orientarem-se no caminho universalista, conseguindo compreender e


combater os fundamentos estruturais dessa opressão.

C) Contribuições da análise e das lutas “identitárias”


Sem dúvidas, se não forem tratadas de forma autônoma, não his-
toricizada e desconectada da totalidade social, a categoria “identida-
de” e as diversas formas e relações de opressão, assim como as lutas
antiopressivas, representam avanços e trazem contribuições significa-
tivas para a análise social crítica e para as lutas pela emancipação.
Elencaremos algumas contribuições dessa categoria que conside-
ramos centrais.
Por um lado, a “identidade” permite ampliar nossa análise e com-
preensão da realidade, indo além da classe social (mas a ela atrelada)
e brindando-nos com o conhecimento de diversas particularidades
que, na sociedade capitalista, representam as diversas formas de de-
sigualdade, de opressão e de discriminação social. As “identidades”
ampliam e adensam nossa compreensão da realidade social, dando
uma dimensão concreta à diversidade dos grupos que compõem a so-
ciedade e as classes sociais.
Por outro lado, a “identidade” remete não só à autopercepção
(em vários níveis de consciência) de um indivíduo sobre sua condição
subalterna numa dada relação de opressão, mas também à compreensão
coletiva dessa realidade, condição ou situação compartilhada com
outros, que passam a se organizar e a lutar em torno de uma causa
comum.
Nesse sentido, as lutas de classes podem e devem ser articuladas
às lutas antiopressivas particulares (“identitárias”), e vice-versa.
Dessa forma, podemos afirmar que sem lutas “identitárias” que
combatam formas de opressão e de desigualdade social não há eman-
cipação política ou humana possível. Elas representam demandas im-
portantes, necessárias e urgentes, que não podem esperar a revolução
socialista para entrar em pauta. Ao contrário, elas devem fazer parte
do conjunto de lutas cotidianas do agora e devem ser parte do projeto
de revolução socialista, por uma sociedade verdadeira e efetivamente
emancipada.

83
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

II- … ao “identitarismo” (pós-moderno).

A “identidade”, portanto, enquanto categoria que expressa uma


realidade (seja ela de base objetiva, subjetiva, ou ambas), é algo inega-
velmente importante, e que, quando articulada com a diversidade de
processos de opressão, de desigualdade e de exploração, e inserida na
totalidade social, enriquece tanto a análise da dinâmica social como a
ação política.
Porém, ao ser transformada em “identitarismo”, a partir da pers-
pectiva pós-moderna, e inserida em uma “lógica” polarizante que au-
tonomiza as “identidades” da estrutura social, ela polariza o “nós” e o
“eles”, o grupo “identitário” e o diferente, e procede à individualização
ou subjetivação das ações sociais.
Vejamos a análise de um dos principais formuladores dessa cor-
rente na ala “esquerda”, Boaventura de Sousa Santos, para em seguida
tratar do que aqui chamamos de “lógica identitarista”.

2.4- A “identidade” nas análises de Boaventura de Sousa Santos

Boaventura de Sousa Santos, um dos mais respeitados e influentes


pensadores pós-modernos do campo progressista, apresenta-nos o pa-
pel do conceito de “identidade” tanto para a caracterização da socieda-
de contemporânea como para a ação política “emancipadora”.
No seu Pela mão de Alice, o autor afirma que as “identidades” (cul-
turais) são processos de identificação, não rígidos nem imutáveis, mas
transitórios e fugazes. As “identidades” são processos de identificação
em curso (SANTOS, 1995, p. 135), processos nos quais os indivíduos
vão se identificando e desenvolvendo um sentimento de pertencimen-
to em questões específicas da vida.
Ainda, conforme ele aponta, as identificações “são dominadas pela
obsessão da diferença e pela hierarquia das distinções” (ibidem). Nesse
sentido, Boaventura trata como “identidades” tanto o gênero (a mu-
lher, o homem) e a nacionalidade, como as classes sociais.
Sim, para o autor, a classe é uma identidade como qualquer outra
(trataremos disso nos itens 2.5 e 6.3-A).

84
CAPITULO 2

Assim, o sociólogo português questiona o suposto reducionismo


marxista que vincula a “identidade” de classe apenas à estrutura econô-
mica; conforme afirma: “É errôneo reduzir a identificação, formação e
estruturação das classes à estrutura econômica da sociedade” (ibidem,
p. 42).
Ainda mais, segundo aponta ao tratar da “ação coletiva e [da] iden-
tidade”, quando os movimentos e as lutas políticas mais importantes,
particularmente nas últimas três décadas do século XX, “foram prota-
gonizados por grupos sociais congregados por identidades não direta-
mente classistas” (ibidem, p. 40), e dada “a primazia explicativa, como
a primazia transformadora” que o marxismo atribui às classes sociais,
essa corrente de pensamento já não seria mais capaz de compreender a
nova dinâmica social, assim como o processo de lutas e de transforma-
ção social. Como ele afirma: “Ao privilegiar a opressão de classe, o mar-
xismo secundarizou e, no fundo, ocultou a opressão sexual [e muitas
outras faces da opressão] e, nessa medida, o seu projeto emancipatório
ficou irremediavelmente truncado” (ibidem, p. 41).
Para ele, a “emancipação social” (que o autor não esclarece de que
se trata) não estaria mais centrada nas lutas de classes, mas na diversi-
dade de outras “identidades”.
Boaventura faz uma análise das origens do identitarismo, encon-
trando sua raiz na modernidade, após o colapso da cosmovisão teocrá-
tica medieval, no desenvolvimento da subjetividade e individualidade
próprias do humanismo renascentista (ibidem, p. 136). Constitui-se aqui
a compreensão liberal de “identidade”, que prioriza tanto a subjetividade
individual por sobre a coletiva, como a subjetividade abstrata em detrimen-
to da subjetividadecontextual (ou concreta) (ibidem, p. 137-138). Nesse
processo, conforme o autor, a subjetividade e a individualidade (“identi-
dade”) do pensamento liberal é polarizada e descontextualizada.
Para a superação da visão liberal, conforme o autor, surgem as
contestações do romantismo e do marxismo. Enquanto a contestação
romântica propõe uma recontextualização da “identidade” por meio do
vínculo étnico ou religioso, e por meio da relação com a natureza, re-
valorizando o irracional, o inconsciente, o mítico e o popular (ibidem, p.
140-141), a contestação marxista procura recontextualizar o indivíduo

85
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

concreto nas relações de produção, passando a ter centralidade, por-


tanto, a “identidade” de classe (ibidem, p. 140).
Assim, descartando as vertentes liberal, romântica e marxista, é a
pós-modernidade que protagonizará o “regresso das identidades” (ibi-
dem, p. 143). Para ele:
A recontextualização e reparticularização das identidades e das
práticas está a conduzir a uma reformulação das interrelações
entre os diferentes vínculos atrás referidos, nomeadamente entre
o vínculo nacional classista, racial, étnico e sexual (ibidem. p. 145).

Para ele, contrário ao processo de descontextualização (liberal) e


de universalização (marxista) das identidades e das práticas, que per-
mitiram projetos universais de emancipação, “o novo contextualismo
e particularismo [pós-moderno] tornam difícil pensar estrategicamente a
emancipação” (ibidem, p. 147). Nesses casos, ele afirma: “As lutas locais
e as identidades contextuais tendem a privilegiar o pensamento táctico
em detrimento do pensamento estratégico” (ibidem). Ou seja, para o au-
tor, a “emancipação social” passa pelas lutas locais (táticas) em torno
de “identidades contextuais” (particulares), e não pela ação estratégica,
cujo foco é a emancipação universal, global (“humana”). Para ele:
a crise do pensamento estratégico emancipatório, mais do que
uma crise de princípios, é uma crise dos sujeitos sociais interessa-
dos na aplicação destes e também dos modelos de sociedade em
que tais princípios se podem traduzir (ibidem, p. 147).

Para Boaventura, esses são os verdadeiros “sujeitos sociais eman-


cipatórios”, constituídos a partir dos processos de identificação, das
identidades locais, promovendo ações no plano tático em vez de pro-
movê-las no estratégico. Mas o autor transfere o antagonismo marxiano
das classes sociais para todas as “identidades”, equalizando a contradi-
ção e o antagonismo entre as classes com um suposto antagonismo em
torno do sexo, da raça etc. Os “inimigos” surgem a partir da diferença
de “identidades”. Conforme afirma o autor, “a multiplicação e sobre-
posição dos vínculos de identificação […] particulariza as relações e,
com isso, faz proliferar os inimigos […]” (ibidem, p. 147).

86
CAPITULO 2

Uma década mais tarde, Boaventura de Sousa Santos, ainda pre-


tendendo “renovar a teoria crítica” e “reinventar a emancipação so-
cial”, esboça alguns comentários críticos sobre o “identitarismo” que
tomara conta da esquerda mundial. O fundamento da crítica está na
desarticulação operada pela extrema segmentação própria da “lógica
identitarista”. Assim, ele afirma: “Sem articulação, não iremos muito
longe” (SANTOS, 2007, p. 99). E diz mais:
Há um excesso de teorias de separação e muito poucas teorias de
união, por uma tradição nefasta, a meu ver, na política de esquer-
da: a crença de que politizar uma questão é polarizar uma diferença.
Para nossa tradição, politizar significa polarizar (ibidem, grifos
nossos).

Boaventura parece ter acertado em cheio o nervo da cultura po-


lítica pós-moderna, que ele mesmo ajudou a constituir e a difundir: a
“lógica identitarista” pós-moderna funda a ação política a partir da po-
larização de “microidentidades”, de “identidades” específicas, criando
uma oposição / polarização entre membros e não membros, idênticos e
diferentes; oposição e polarização correspondentes ao antagonismo de
classes. Assim, o autor sustenta que “é preciso buscar outra cultura po-
lítica, que tem de se basear no que chamo de pluralidades despolarizadas”
(ibidem, p. 99 e 101).
Apesar do fundamento da (auto)crítica ser profundo, o autor não
avança muito mais nele. Para ele, essa “pluralidade despolarizada” de
grupos e processos de lutas representa uma “incompletude de [suas]
propostas políticas” (ibidem, p. 101), sugerindo que o lado positivo des-
ses processos está em não apresentarem de forma definitiva um projeto
político de emancipação ou dizerem qual resultado concreto deve ser al-
cançado. Ele complementa que é preciso unir essas lutas, mas “sem uma
teoria geral […] que diga qual é o mais importante” (ibidem, p. 101-102);
quais lutas, reivindicações, grupos e “identidades” são mais importantes.
Boaventura está claramente criticando tendências marxistas que
afirmaram (ou ainda afirmam) que a questão de classe é mais “impor-
tante” do que as questões de gênero, de raça etc. Certamente é um equí-
voco (teórico e político) afirmar que a desigualdade de gênero, de raça

87
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

etc. sejam “secundárias” ou “menos importantes” que a contradição de


classe (ver MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 126-127; voltaremos
a isso no item 6.3-B), mas como compreender a realidade social, e como
articular os movimentos e as lutas “sem uma teoria geral”, universal? Ao
questionar e pretender eliminar a “teoria geral” ou universal, Boaventu-
ra está, na verdade, querendo excluir toda teoria social moderna – libe-
ralismo, marxismo, positivismo etc. –, colocando como teoria interpreta-
tiva da realidade atual (apenas e unicamente) a teoria pós-moderna, que
se funda na ausência de uma compreensão universal e macrossocial da
realidade, apresentando teorias contingenciais, particularistas.
Ora, mesmo que algumas tendências do marxismo tenham real-
mente secundarizado as formas de desigualdade, discriminação e opres-
são, legitimando apenas a contradição de classe como superior, supos-
tamente “primária” e “mais importante” (e críticas a essas afirmações
devem ser feitas), uma “teoria geral” ou universal, particularmente a
teoria marxista, que visa à superação da ordem e à emancipação hu-
mana, não tem por que decidir qual forma de opressão e/ou de luta é
mais importante que as outras. Porém, uma teoria universal deve nos
mostrar os fundamentos sistêmicos da sociedade (capitalista) que de-
terminam e condicionam qualquer forma de opressão, de discrimina-
ção e/ou de desigualdade social. Sem ela, não teremos a compreensão
dos fundamentos que articulam a questão de gênero, de raça, de classe,
da ecologia, da nacionalidade etc. no cerne da sociedade capitalista.
Assim, toda visão será parcial e necessariamente desarticuladora dos
processos e das lutas particulares; cada um será visto e compreendido
como um fenômeno autônomo, sem fundamentos comuns.
Vejamos então, por um lado, a equalização da categoria “classe so-
cial” como mais uma “identidade”, e, por outro, os fundamentos pós-
-modernos da “identidade” e sua transformação em “identitarismo”,
que deriva na construção da “lógica identitarista”.

2.5- A “classe” como uma “identidade” no pensamento pós-moderno

O pensamento pós-moderno concebe a classe social como sendo mais


uma “identidade”: a “identidade de classe”. Nesse sentido, classe, gê-

88
CAPITULO 2

nero e etnia são equalizadas, assim como outras formas de “identi-


dade” (nacionalidade, bairro, religião, grupo social, time de futebol,
orientação sexual, necessidades especiais etc.), como se todas elas
fossem da mesma espécie, variando apenas no impacto e na abran-
gência social – mas todas elas “identidades”, que peculiarizam o indi-
víduo e o identificam a um grupo, em oposição ao diferente, aquele
que não possui o atributo ou a condição em questão.
Há aqui ou uma “substituição” da categoria classe pela noção de
“identidade” ou, ao menos, uma “equalização” da questão de classe,
como se ela fosse mais uma “identidade”, o que equipararia a classe
a qualquer outra forma de “identidade” pessoal ou grupal.
Para Ernesto Laclau, conforme Woodward, “não somente
a luta de classes não é inevitável”, como não seria “mais possível
argumentar que a emancipação social esteja nas mãos de uma única
classe” (in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 30), optan-
do pelas diversas e novas “identidades” em vez da classe.
Ellen Wood afirma ser oriundo da “teoria do pós-fordismo” e
dos “‘estudos culturais’ pós-modernos” a percepção de que “as rela-
ções de classe constitutivas do capitalismo [atual] representam ape-
nas uma ‘identidade’ pessoal entre muitas outras” (WOOD, 2006, p.
205). A autora sustenta que essa visão é gerada a partir da “frag-
mentação ‘pós-fordista’” da atual economia capitalista, em que cada
“fragmento […] abre espaço para lutas emancipatórias” (ibidem). O
resultado dessa fragmentação – de relações, experiências, estilos de
vida, “identidades” – é que, conforme essas teorias, estaríamos vi-
vendo num “mundo pós-moderno”, “um mundo em que diversida-
de e diferença” teriam dissolvido “todas as antigas certezas e todas a
antigas universidades” (ibidem, p. 220), derivando naquilo que Bau-
man (2003 e 1998) chamou de realidade “líquida”.
Conforme aponta Wood, para o pensamento pós-moderno o
conceito de “identidade” teria “a virtude de, ao contrário das noções
‘reducionistas’ ou ‘essencialistas’ como classe, ter a capacidade de
[…] abranger tudo, desde gênero a classe, de etnia até raça ou pre-
ferência sexual”, sendo, para essa perspectiva, o conceito de “identi-
dade”, por ter maior abrangência, mais fecundo para estudar a atual

89
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sociedade plural e multifragmentária do que o de “classe” (WOOD,


2006, p. 220-221).
Porém, ao diluir a classe como mais uma “identidade”, se por um
ladonos permite ampliar o conhecimento da diversidade social, das va-
riadas formas de relação de opressão, de discriminação e de desigual-
dade no entanto, por outro, isso retira da nossa compreensão aquilo
que remete aos fundamentos estruturais da sociedade capitalista, isto
é, a centralidade da classe social (da qual trataremos no item 6.3).
Assim, com essa caracterização da “classe” como sendo mais uma
“identidade”, o pensamento pós-moderno afirma não ser ela mais uma
questão, uma “identidade” central no capitalismo do final do século
XX e no do século XXI.
Ao compreender a classe como uma “identidade”, num mesmo
patamar e numa mesma dimensão, equalizando-a às demais formas
de “identidade”, o pensamento pós-moderno fala de classe, de gênero,
de etnia etc. como formas de “identidade”. Nesse sentido, todas es-
sas “identidades” (incluindo a “classe”) são igualmente colocadas na
mesma perspectiva polarizadora: trabalhador vs. burguês; homem vs.
mulher; branco vs. negro etc.
Nesse sentido, nessa corrente de pensamento, haveria uma equiva-
lente oposição, na “identidade de classe” entre trabalhadores e burgue-
ses, como na “identidade” de gênero, opondo homens a mulheres, na
identidade racial, contrapondo negros a brancos etc.
Assim, como os pós-modernos entendem, se a classe correspon-
desse a mais uma “identidade”, então seria correto afirmar – como o
fazem tanto o pós-marxista Jürgen Habermas, como o pós-moderno
Boaventura de Sousa Santos – que a classe, dado o elevadíssimo índice
de desemprego, a grande população expulsa ou excluída do mercado
de trabalho, os trabalhos autônomos e informais, a subcontratação, o
chamado “empreendedorismo”, a chamada “classe média” etc., já não
seria mais central, tanto para compreender a dinâmica do mundo con-
temporâneo, como para fomentar e congregar as lutas sociais. A classe,
enquanto “identidade”, teria perdido a centralidade, na medida em
que importantíssimos contingentes populacionais já não se reconhe-
cem nem se identificam com o (ou como) trabalhador.

90
CAPITULO 2

Isso, por um lado, leva a reflexão pós-moderna a reduzir a questão


de classe a uma questão de (auto) “percepção” individual ou coletiva
do sujeito: se o indivíduo (um camelô, um trabalhador autônomo, um
desempregado, um “empreendedor” ou um membro de uma coope-
rativa etc.) não se “sentir” pertencente à classe trabalhadora, então a
questão de classe não lhe diria respeito, não o identificaria, ou ele não
se identificaria com ela, perdendo assim esta categoria, no o pensamen-
to pós-moderno, poder heurístico explicativo, e poder político de con-
vocatória, articulação e luta. Ora, a condição de classe (a “classe em si”,
conforme caracterização de Marx, em MARX e ENGELS, 1977, p. 277),
independe da (auto) percepção que o indivíduo tenha de si, de como
se “identifica”.
Mas, por outro lado, leva a análise pós-moderna a conceber a clas-
se como uma “identidade” dentro de uma relação de opressão, como
qualquer outra forma de “identidade”. Ora, a relação de classe não en-
volve apenas opressão, mas formas de alienação e, particularmente, de
exploração da riqueza socialmente produzida (ver item 6.3).
Ainda mais, por outro lado, ao absolutizar a “identidade” (de raça,
de gênero, de orientação sexual, de religião etc.), deixando de se impor-
tar com a contradição de classe no seu interior, a análise pós-moderna
não consegue diferenciar as mulheres trabalhadoras das mulheres bur-
guesas, os negros trabalhadores dos negros burgueses, os muçulmanos
trabalhadores dos muçulmanos da elite política e econômica, os LGBTs
trabalhadores dos LGBTs burgueses. E ainda, como as chamadas pau-
tas identitaristas pós-modernas centram-se nos direitos individuais ou
grupais (não em universais) e na dimensão cultural (não estrutural),
então acaba-se festejando, como conquistas dessas pautas identitaris-
tas, o sucesso de indivíduos que representam essa “identidade”, mes-
mo que eles pertençam à classe burguesa ou à elite e tenham acesso ao
poder político e ao establishment: um Barack Obama, uma Condoleezza
Rice, uma Margaret Thatcher, um Clodovil Hernandes, uma Damares
Alves etc., mesmo que essa “conquista individual” em nada tenha alte-
rado a relação de opressão.
Dessa forma, segundo afirma Ellen Wood, o problema das análises
identitaristas pós-modernas

91
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

é que teorias que não distinguem […] entre as muitas instituições


e “identidades” sociais são incapazes de enfrentar criticamente
o capitalismo. Como forma social específica, o capitalismo sim-
plesmente desaparece diante de nossos olhos, enterrado sob um
monte de fragmentos e “diferenças” (WOOD, 2006, p. 223).

Segundo a autora, para compreender (e transformar) o capitalismo


contemporâneo, é necessário
reconhecer que, ainda que todas as opressões tenham o mesmo peso
moral, a exploração de classe tem um status histórico diferente, uma
posição mais estratégica no centro do capitalismo; e a luta de clas-
ses talvez tenha um alcance mais universal, um maior potencial de
progresso não somente da emancipação de classe, mas também de
outras lutas emancipatórias (ibidem, p. 224, grifos nossos).

Assim, complementa a autora, é preciso uma teoria e um projeto


social “que reconheça a unidade sistêmica do capitalismo e que tenha a
capacidade de distinguir entre as relações constitutivas do capitalismo
e outras desigualdades e opressões” (ibidem). Isto é, uma teoria e um
projeto revolucionário, anticapitalista, que consiga aglutinar e articular
todas as formas particulares de opressão e de desigualdade, que não
ignore a contradição central da sociedade capitalista entre capital e tra-
balho (do que trataremos nos capítulos 6 e 7).
A partir da compreensão da classe como mais uma “identidade”,
o que a análise pós-moderna faz é transferir o antagonismo de classes
para todas as “identidades”: agora as “identidades” passam a ser anta-
gonistas dos “diferentes”.

2.6- Da categoria de “identidade” ao conceito de “identitarismo”:


a “lógica identitarista” pós-moderna na polarização “nós” / “eles”

É considerando os diversos níveis de consciência (ver item 2.2) e, por-


tanto, de construção de “identidades”, que vamos abordar a transforma-
ção pós-moderna da “identidade” em “identitarismo”, a partir da constru-
ção de uma “lógica identitarista” fundada na polarização “nós” / “eles”.

92
CAPITULO 2

Trata-se de uma mudança conceitual e categorial na análise da rea-


lidade. Por esse motivo, primeiramente trataremos de como o uso de
diferentes conceitos e categorias impactam no conhecimento do real e
nas ações políticas fundadas neles.

A) Categorias e conceitos de análise, e seu impacto no conheci-


mento e nos processos de luta
Há uma distinção entre “conceitos”, em quanto construções do pen-
samento, e “categorias”, como “expressões realmente existentes da rea-
lidade” que são transpostas ao pensamento. Assim, conforme Lukács,
as categorias não são elementos de uma arquitetura hierárquica e
sistemática [classificatória], mas, ao contrário, são, na realidade,
“formas de ser, determinações da existência”, elementos estruturais
de complexos relativamente totais, reais, dinâmicos, cujas inter-
-relações dinâmicas dão lugar a complexos cada vez mais abran-
gentes (LUKÁCS, 2012, p. 297).

Essas categorias, na concepção marxiana, são do pensamento por


serem constitutivas (e extraídas) da realidade.
Assim, as categorias ou os conceitos empregados na análise dos
fatos condicionam o tipo de conhecimento produzido, o alcance da
compreensão sobre a realidade e, portanto, as formas de ação que ela
desencadeia. Para o cientista social, as categorias e os conceitos fun-
cionam como o microscópio ou o reagente para o biólogo. Conforme
esclarece Marx, no prefácio à 1a edição de O capital, “na análise das
formas econômicas, não se pode utilizar nem microscópio nem reagen-
tes químicos. A capacidade de abstração substitui esses meios” (MARX,
1980, p. 4), lembrando que a “abstração” constitui o primeiro caminho
metodológico do conhecimento, que vai da totalidade concreta e real
para as particularidades e categorias mais simples. Isto é, mediante a
abstração chegamos às categorias que compõem a totalidade da reali-
dade concreta.
Dessa forma, o tipo de categoria ou de conceito empregado para
o conhecimento da realidade social, como o tipo de microscópio ou de
reagente na pesquisa micro-orgânica, vai levar a conhecimentos dife-

93
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

rentes sobre o mesmo fenômeno. Não é a mesma coisa o conhecimento


alcançado sobre a realidade contemporânea a partir da análise de uma
ou outra categoria ou conceito: contradição ou disfunção; antinomia ou
harmonia; exploração ou exclusão; classe social (fundada no processo de
produção) ou classe rica e pobre (ou alta, média e baixa), ou ainda ci-
dadania ou povo; lutas de classes ou ação social; imperialismo ou globa-
lização; sociedade civil ou terceiro setor; transformação ou mudança etc.
Por quê? Porque a contradição trata do antagonismo, do movimento
e da transformação, enquanto a “harmonia” e a “disfunção” pressu-
põem um sistema perfectível mas perene; a exploração faz referência à
relação contraditória entre as classes fundamentais no processo de pro-
dução do MPC (capital e trabalho) e sua eliminação supõe a superação
da ordem capitalista, enquanto a “exclusão” remete a qualquer forma
de desigualdade, e sua resolução passa pela “inclusão” (dentro da or-
dem social vigente); a classe social (fundada no processo de produção,
como foi analisado por Marx) remete à relação contraditória entre os
dois sujeitos fundamentais da produção capitalista (o dono da força
de trabalho e o dono dos meios de produção), entretanto a noção de
“classe” rica ou pobre trata de uma diferença (de poder aquisitivo, con-
forme a interpretação weberiana) e não de uma contradição – enquanto
a classe mostra a contradição fundada na divisão social do trabalho, o
povo e a cidadania escondem essa contradição; as lutas de classes reme-
tem a um processo de conflito (manifesto ou latente) que confronta as
classes antagônicas, mas a ação social via de regra está ligada à cola-
boração ou à parceria entre as classes, e induz ao ocultamento desses
antagonismos e dessas contradições, supondo uma abstrata comunhão
de interesses; o imperialismo remete a uma ordem mundial marcada
pelo monopolismo, pela fusão do capital bancário e industrial, pelo de-
senvolvimento desigual e combinado (a relação de dependência entre
países de centro e de periferia), sendo que a chamada “globalização”
esconde um processo histórico, naturaliza-o e oculta seu sujeito; a so-
ciedade civil remete (mesmo que autores de diversas tradições teóricas a
tratem de formas diferentes) à esfera da totalidade social, saturada de
contradições e lutas, enquanto o chamado “terceiro setor” é desarticu-
lado da totalidade, homogêneo e harmônico; a transformação significa a

94
CAPITULO 2

superação estrutural da ordem burguesa, do MPC, mas a “mudança”


remete a alterações dentro do sistema vigente.
As categorias e os conceitos representam o arsenal heurístico, as fer-
ramentas de pesquisa do cientista social, apontando para onde olhar
e o que vai se observar da realidade. Portanto, o grau e o tipo de co-
nhecimento obtido dependem do tipo das categorias e dos conceitos
observados e analisados.
Mas essas categorias, mais universais no MPC, não ajudam a com-
preender apenas a estrutura social mais ampla. Empregá-las no proces-
so de conhecimento dos fenômenos particulares – a questão do Estado,
as políticas sociais, a desigualdade de gênero, a questão étnica, assim
como as questões “identitárias” etc. –, ou até dos singulares e locais –
questões de um grupo, uma família, um território determinado –, tam-
bém é fundamental para que o conhecimento crítico consiga captar a
essência desses fenômenos no interior da totalidade social.
Em sentido contrário, as correntes de pensamento formalistas e
abstratos (positivismo e neopositivismo) tratam dos fenômenos e das
particularidades em sua dimensão abstrata, isto é, como processos au-
tônomos e dissociados da totalidade social, prescindindo de categorias
universais, ou mediante conceitos construídos intelectivamente, como
a “globalização”, o “terceiro setor” etc., sem existência real e objetiva.
Por seu turno, o pensamento pós-moderno autonomiza os fenômenos
ao nível da sua singularidade, porém constituída pela subjetividade, a
partir da vivência, da percepção dos indivíduos.
Nesse sentido, por um lado, tratar questões reais, condições objetivas
de vida, como a opressão, a discriminação e a desigualdade de raça, de
gênero, de orientação sexual etc. como “identidades”, formas de auto-
percepção, construções simbólicas individuais ou coletivas, certamente
expressa uma mudança conceitual-categorial significativa, orientada
pela primazia da subjetividade (usar a percepção subjetiva dos fatos na
construção de “identidades”) em detrimento da condição ou situação ob-
jetiva. Essa mudança conceitual-categorial, que desconsidera e relativi-
za a “condição objetiva” e passa a se sustentar na “identidade”, causa
profundos impactos no conhecimento da realidade e, portanto, na ação
política.

95
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

A partir daí, e por outro lado, tratar as lutas antiopressivas, voltadas


às causas particulares, como “pautas identitárias”, constitui igualmen-
te uma significativa mudança conceitual-categorial, que, a nosso ver,
contribui para uma certa despolitização. A transformação das causas e
lutas antiopressivas (compreendidas a partir da totalidade social) em
“pautas” (conjunto de reivindicações) também causa impactos profun-
dos tanto na apropriação teórica do real como na ação política.
Há, aqui, a substituição das categorias objetivas, que realmente exis-
tem enquanto “formas de ser” e “determinações da existência”, inse-
ridas numa totalidade social, por conceitos e termos nos quais prima a
subjetividade, a autopercepção, o universo simbólico, conceitos e termos
dissociados da totalidade. Certamente, com essa mudança conceitual-
-categorial, assim como o biólogo usa diferentes reagentes e microscó-
pios, há uma compreensão fundamentalmente diferente dos fenômenos
particulares, preferindo a subjetividade em detrimento da condição real
e autonomizando o fato que pertence à dimensão estrutural, universal.
Em síntese, no plano cognitivo, a substituição de “condições objetivas
de vida” por “identidades”, nas quais se prima pelo aspecto simbólico e
subjetivo, leva a um tipo de conhecimento sobre esses processos que,
se por um lado aumenta nosso conhecimento da diversidade de fenô-
menos sociais, por outro lado representa uma perda no processo de
compreensão da realidade objetiva inserida na totalidade, que será su-
bordinada à construção e à elaboração subjetiva.
Em idêntico sentido, no plano político, a substituição do conceito de
“lutas antiopressivas” pelo de “pautas identitárias”, como na formulação
pós-moderna, impacta profunda e visivelmente na compreensão, na
orientação e na ação política desses grupos.
Não se trata apenas de “termos” diferentes, mas de conceitos e ca-
tegorias diferentes, e, portanto, de diversos instrumentos de análise e
compreensão da realidade que produzem conhecimentos e ações dis-
tintos.
O uso dos conceitos oriundos da racionalidade pós-moderna certa-
mente não poderia deixar de impactar na compreensão dos fenômenos
e na ação política em torno deles.

96
CAPITULO 2

Ora, não se trata de uma escolha entre abrangência de fenômenos e


profundidade de análise. Ou elegemos conceitos que dizem respeito ao
maior número e diversidade de casos e fenômenos – como a “exclusão
social” –, perdendo a capacidade de compreendê-los na sua essência,
no seu fundamento, na sua articulação com a totalidade social. Ou es-
colhemos categorias que dão conta da complexidade dos fenômenos,
alcançando a compreensão do seu fundamento, da sua essência, che-
gando à sua raiz – como a “exploração” da mais-valia –, porém nos
restringindo a fenômenos determinados e específicos. O caminho do
conhecimento crítico deve ser abrangente, não deve deixar de tratar a
diversidade da realidade social, e profundo, deve alcançar sua essência
e seu fundamento na totalidade social. Como afirma Eduardo Galeano,
devemos ter “um olho no telescópio” e o “outro olho no microscópio”.5
É por isso que, em certos textos, Marx se debruça mais nos funda-
mentos estruturais do MPC (em O capital, por exemplo), enquanto em
outros trata das variadas manifestações das relações sociais (em Luta de
classes na França, por exemplo). Isto é, combinando a análise estrutural
com a análise fenomênica na vida cotidiana, ou o que o próprio Marx
chama de “formações econômicas e sociais”.

B) “Identidade” subalterna / oprimida e “identidade” hegemôni-


ca / dominante
Geralmente associamos a “identidade” e as causas e lutas identitá-
rias aos grupos ou coletivos oprimidos e subalternos, às chamadas “mino-
rias”, aos grupos ditos “marginais” ou “periféricos”.
Pareceria que o conceito e o processo de “identidade” existissem
apenas nesses grupos e coletivos.
Certo é que o termo ganha notoriedade precisamente por surgir
vinculado às lutas desses grupos, que não querem mais ter sua voz
silenciada, seus direitos desrespeitados, e que se insurgem contra a
opressão, a discriminação e a desigualdade.
Porém se a “identidade” existe num grupo subalterno é porque ela
representa o lado não dominante de uma dada relação, geralmente de
5 Ver em: <https://ficcao.emtopicos.com/2017/04/escrever-geral-especifico-historia/>; acesso
em jan. de 2021.

97
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

opressão, discriminação ou desigualdade social. Não haveria, por exemplo,


“identidade” racial num país onde não há desigualdades e até diferen-
ças raciais. Ela se desenvolve apenas em contextos em que a raça foi
pretexto para a escravidão, a partir da qual se origina todo tipo de dis-
criminação e desigualdade, perpetuando-se mesmo após a superação
do regime escravocrata.
A “identidade”, por sua natureza, tem necessariamente ao menos
dois lados, sem os quais ela não teria sentido. Não tem sentido formar
uma “identidade” sobre um atributo que está presente na totalidade
dos indivíduos e que não gera diferença, desigualdade, opressão, dis-
criminação e, portanto, polarização social. Isto é, as pautas feministas,
antirracistas, LGBT etc., de um lado, só têm sentido porque elas exis-
tem em função do outro lado – o machismo, o racismo, a homofobia –,
constituindo não uma relação de igualdade, mas de opressão, discrimi-
nação e desigualdade.
Dessa forma, se o conceito de “identidade” está geralmente asso-
ciado a grupos oprimidos, subalternizados ou discriminados, e a suas causas,
“pautas” e lutas antiopressoras e progressistas; existem também, não
obstante, “identidades” entre grupos dominantes e de perspectivas conser-
vadoras ou moralistas, como a “identidade nacional” e o “patriotismo”,
como o “supremacismo branco”, como certas “identidades religiosas”,
como a “identidade” com um bairro de elite etc.
Isto é, tal como é frequentemente entendida, a “identidade” diz
respeito ao lado subalterno e oprimido de uma determinada relação so-
cial, de gênero, de raça etc.; assim, falamos em “identidade” da mulher,
do negro, do imigrante, do LGBT, dos povos originários etc.
O outro lado da relação, o lado dominante, hegemônico, não se
apresenta como “identidade”, mas como o “normal”, o “status quo”,
o “superior”, o “dever ser”. Não se fala, pois, da “identidade” do ho-
mem, do branco, do heterossexual, do nacional, pois essas não apare-
cem como construções sociais.
Para Tomaz da Silva, “fixar uma determinada identidade como a
norma é uma das formas privilegiadas de hierarquização das identida-
des e das diferenças”. Dessa forma, ele continua, “normatizar significa
eleger – arbitrariamente – uma identidade específica como o parâmetro

98
CAPITULO 2

em relação ao qual as outras identidades são avaliadas e hierarquiza-


das. Normatizar significa atribuir a essa identidade todas as caracte-
rísticas positivas possíveis” (in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs.,
2014, p. 83). Assim, “a força da identidade normal é tal que ela nem
sequer é vista como uma identidade, mas simplesmente como a identi-
dade” (ibidem).
Aqui radica o profundo erro conceitual e político de boa parte das
interpretações sobre a “identidade”.
Se a “identidade” expressa um coletivo, situado no polo subalter-
no e oprimido de uma relação, então ela diz respeito a essa relação social.
Portanto, se o conceito remete a uma relação social, ele necessaria-
mente está presente em ambos os lados ou polos dessa relação.
Assim, se há uma “identidade” subalterna ou oprimida, então há
uma “identidade” hegemônica ou dominante.
É claro que o reconhecimento social é exclusivo apenas dos grupos
e coletivos subalternos. Isso basicamente por dois motivos: porque isso
é tratado dessa forma nos discursos, e porque é o grupo que, por ser
oprimido, silenciado, subalternizado, precisa se construir como grupo
identitário para enfrentar e se opor a essa relação de opressão e desigual-
dade, enquanto o grupo hegemônico transforma ideologicamente sua
“identidade” na “normalidade”. Ele não precisa se constituir como grupo,
a não ser quando se sente “ameaçado” pelos grupos subalternos.
Porém mesmo que de forma camuflada como “natural” ou escon-
dida atrás da suposta “normalidade”, há sim uma construção ideológica
dessa “normalidade” e dessa “superioridade” na “identidade” branca,
masculina, heterossexual, rica, católica, nacional. Dessa ideologia de
raça superior (e inferior), religião verdadeira ou santa (e pagã), de sexo
forte ou racional (e débil ou emocional), de orientação sexual moral (e
profana ou amoral), de sagrada família nuclear (e herege) etc., legitima-
-se toda a dominação, a opressão e a desigualdade infligidas aos que
não cumprem com esses atributos tidos como “normais”, “corretos” ou
“superiores”.
Manter camuflada e não reconhecer essa “identidade” hegemônica
representa, como afirmamos, um profundo equívoco conceitual e teórico,
pois nos faz pensar a questão da “identidade” como expressão apenas

99
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de grupos subalternos, nos impedindo perceber que se trata de uma


relação social.
Porém, também o mencionamos, esse erro teórico pode derivar
num profundo erro político. Aceitando a suposta “normalidade” e o
“dever ser”, não como uma “identidade” hegemônica, do lado do-
minante da relação de opressão, pode-se pensar que a solução da
desigualdade passaria pela eliminação da diferença, levando todos à
condição de “normal”.
Ora, a diferença entre as pessoas é insuprimível, considerando
que cada indivíduo e cada grupo têm características e atributos par-
ticulares. Há uma distinção fundamental entre igualdade e desigual-
dade social e entre identidade e diferença (trataremos disso a seguir
e no item 6.1). Dessa forma, com esse erro conceitual, deriva-se numa
ação muito mais focada no indivíduo do que na estrutura e na cultura
de opressão e desigualdade, uma ação muito mais individualista e
menos estrutural.

C) A “lógica identitarista” pós-moderna na polarização entre


“nós” e “eles”
É a partir da existência desses, ao menos, dois lados da relação,
que a análise pós-moderna opera uma polarização pessoalizada entre
“nós” e “eles”, fundada no que aqui vamos chamar de “lógica iden-
titarista”.
Parece evidente afirmar que se há “identidade” em um grupo ou um
coletivo, é porque há uma “diferença” entre ele e outro(s) grupo(s) ou
coletivo(s), os “diferentes”. O atributo que cria a “identidade” num grupo
(“nós”) é o mesmo que constitui sua diferença com os outros (“eles”).
Porém, como vimos, por se tratar, via de regra, de uma relação de
desigualdade, discriminação e opressão, na análise pós-moderna todo e
cada sujeito diferente passa a ser visto e tratado individual e pessoalmen-
te como “opressor”, “inimigo” e “vitimário” real ou potencial. Assim, a
relação “identidade” / “diferença” passa a ser considerada a partir da
polarização entre “nós” e “eles”, “vítimas” e “vitimários”, “identitários”
e “inimigos”. A análise pós-moderna opera uma polarização em que cada
sujeito diferente será visto como inimigo real ou potencial.

100
CAPITULO 2

Assim, nesse processo analítico, passa-se da estrutura e da cultu-


ra racista, machista etc. para a pessoa e o indivíduo racista, machista
etc., no qual toda pessoa branca será vista, real ou potencialmente,
como inimiga da pessoa negra, no qual todo homem será conside-
rado, real ou potencialmente, como vitimário e agressor da mulher
etc. O inimigo, e portanto alvo da luta, deixa de ser a estrutura, a
cultura, e passa a ser a pessoa, o indivíduo diferente.Há, portanto, nes-
sa racionalidade que despreza as macroteorias e a análise estrutu-
ral, uma individualização e pessoalização na polarização entre “nós” e
“eles”, entre “identitário” e “diferente”, a partir das quais se funda
a “lógica identitarista”.
O pensamento “identitarista” pós-moderno centra-se na diferen-
ça entre as formações e os grupos sociais. A relação estrutural é substi-
tuída pela oposição (ou polarização) interpessoal.
Há, aqui, o par dialético “identidade / diferença” (trataremos das
dialéticas “identidade / diferença” e “igualdade / desigualdade” no
item 6.1). É nesse sentido que, tratando do “pós-modernismo e [d]
a louvação da diferença”, Kenan Malik atribui ao pensamento pós-
-moderno o fato de tratarmos “o sentido das formas sociais não em
relações, mas em diferenças” (in WOOD e FOSTER, 1999, p. 125).
A partir dessa identidade / diferença que identifica o “nós” e o
diferencia do “eles”, o pensamento pós-moderno estabelece uma ar-
ticulação, uma vinculação entre os sujeitos que compartilham o mes-
mo atributo, a mesma “identidade”, assim como gera uma polari-
zação, uma antagonização entre “nós” e “eles”. Para o pensamento
pós-moderno (herdeiro, nesse aspecto, do “princípio de oposição” do
acionalismo), a “identidade” teria hoje um poder aglutinador e mobi-
lizador muito maior do que a classe.
Isso ocorre quando a “diferença” é naturalizada (“biologizada”)
e transformada em antagonismo. Nessa antagonização pessoalizada
das partes (dos diferentes), o “outro”, o “diferente” é concebido, indi-
vidual ou grupalmente, como inimigo, ameaça e, portanto, como alvo
a eliminar, aniquilar, anular. Com essa polarização criou-se, à direita e à
esquerda, a cultura da “tolerância zero”: não se deve ser tolerante com
o diferente, com o outro, o “antagônico”!

101
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Com isso, na “lógica identitarista” pós-moderna, é em torno de


“identidades” que os sujeitos se organizam para tratar das questões
(de direitos e acesso a bens e serviços) ligadas a ela e para desenvolver
sua ação política tendo o diferente, o não possuidor desse atributo,
como seu adversário, seu inimigo, o responsável pela falta de direito
e obstáculo para sua consecução, colocando-o como alvo e objetivo
da sua luta, procurando destruí-lo, submetê-lo ou puni-lo – o outro,
o diferente.
A “lógica identitarista”, portanto, é uma lógica polarizadora, opo-
sicionista, antagonista de todo e cada indivíduo em ambos os lados
da relação, impondo a necessidade do extermínio do outro, tido como
inimigo.
Trata-se, portanto, da polarização entre “nós” (o semelhante, o coi-
dentitário) e “eles” (o “diferente”), vivenciando uma relação de ameaça
entre o “diferente” (algoz real ou potencial) e os sujeitos da “identida-
de” (as vítimas reais, virtuais ou potenciais). Porém a polarização não
se dá com todo indivíduo diferente ou não pertencente à “identidade”
em questão, mas com aquele diferente considerado oposto, antagônico,
contrário. A polarização via de regra envolve dois polos não apenas dis-
tintos, mas contrários.
A “lógica identitarista”, assim, estimula uma compreensão biná-
ria da realidade, separando o “nós” do “eles”, os que pertencem a essa
“identidade” e aqueles de fora, que não pertencem a ela. E nessa com-
preensão e divisão social, cria-se um antagonismo entre “nós” e “eles”.
Quanto mais forte a “identidade” for na percepção do sujeito, mais ele
verá o mundo dividido e antagonizado entre “nós” e “eles”, mais ele
amará o membro da “identidade” e odiará o diferente, mais essa “iden-
tidade” será objeto de organização e de luta. Dessa forma, a tática e a
estratégia política pós-moderna consistem em tornar cada vez mais in-
tensa a “identidade” em questão, tendo uma percepção cada vez mais
impactante nos indivíduos, para acirrar ainda mais a oposição entre “nós”
e “eles”, com o objetivo de assim promover maior adesão e solidarie-
dade interna, e promover também organizações e movimentos sociais
e ações políticas identitaristas.

102
CAPITULO 2

É nesse sentido que a militante e intelectual feminista, Judith


Butler,6 questiona o “fundacionalismo” presente na “política identitá-
ria” (apud HAIDER, p. 36).
De forma semelhante, a francesa Elisabeth Badinter,7 também ati-
vista e intelectual feminista, aponta no seu livro Rumo equivocado (2005)
que “depois do feminismo [como luta pela igualdade], [veio] a guerra
dos sexos [como polarização]”. Ela defende a necessidade da luta pela
“igualdade entre homens e mulheres” em vez da “vitimização” que po-
lariza homens e mulheres. Para ela, houve uma retomada do “mito da
mãe” que repõe a “diferenciação dos papéis sexuais” mediante deter-
minações biológicas (BADINTER, 2005, p. 157 e ss.), o que deriva num
recuo das lutas pela “igualdade de gênero”, que cede espaço à lógica
polarizadora da “vitimização” (ibidem, p. 146 e ss.). Assim, ela afirma:
“Ao fazer da diferença biológica o critério supremo da classificação dos
seres humanos, fica-se condenado a pensá-los em oposição um ao ou-
tro” (ibidem, p. 157). Segundo a autora, na verdade, “homens e mulhe-
res não constituem dois blocos separados” (ibidem, p. 159). As determi-
nações socioeconômicas são um aspecto que não pode ser desprezado,
pois “há muito menos diferenças entre um homem e uma mulher de
igual condição social e cultural do que entre dois homens ou duas mu-
lheres de meios diferentes” (ibidem).
Badinter, insistindo na luta pela “igualdade de gêneros”, manifesta
que “a diferença entre os sexos é uma realidade, mas não predestina
os papéis e as funções”, uma vez que “a indiferenciação [a igualdade]
dos papéis não equivale à das identidades” (ibidem, p. 171). Com isso, a
autora conclui: “Militar pela indiferenciação dos papéis […] constitui o
único caminho para a igualdade entre os sexos” (ibidem, p. 170).
A luta pela igualdade social entre os diferentes (“identidades” diver-
sas), de fato, não se ampara na lógica polarizadora pessoalizada.
6 Filósofa pós-estruturalista, professora da Universidade da Califórnia e uma das principais
teóricas do feminismo e da teoria queer. É autora, dentre outros, de Problemas de gênero:
Feminismo e subversão da identidade, Os atos performativos e a constituição do gênero: Um
ensaio sobre fenomenologia e teoria de gênero, Debates feministas: Um intercâmbio filosófico.
7 Filósofa francesa nascida em 1944, é uma das vozes mais importantes e polêmicas do
movimento feminista francês. Autora dos livros: Um amor conquistado: O mito do amor materno,
Um é o outro: O que é uma mulher, O conflito: A mulher e a mãe (2011) e Rumo equivocado.

103
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

É questionando essa lógica polarizadora que Elisabeth Badinter


afirma que “é preciso renunciar a uma visão angelical das mulheres,
que serve de justificativa para a demonização dos homens” (ibidem, p.
92). A autora, dessa forma, questiona a oposição mulher-homem como
uma relação necessariamente entre vítima e opressor (ibidem, p. 146).
Para Woodward, ao tratar da relação “identidade” / diferença, fun-
dada culturalmente, “as culturas fornecem sistemas classificatórios,
estabelecendo fronteiras simbólicas entre o que está incluído e o que
está excluído” (in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 50).
Segundo ela, as “identidades” são construídas e formadas em relação
a outras identidades (diferentes), sendo que “essa construção aparece,
mais comumente, sob a forma de oposição binária” (ibidem). Conforme
aponta a autora, “Derrida argumenta que a relação entre os dois termos
de uma oposição binária envolve um desequilíbrio necessário de poder
entre eles” (ibidem, p. 51). Para ela, citando Hélène Cixous, nessa oposi-
ção binária um lado “é a norma” e o outro lado “é o outro”, o diferen-
te, o “visto como ‘desviante ou de fora’” (ibidem, p. 51-52). Porém, em
contraste, Luce Irigaray entende que a diferença não é necessariamente
oposição, assim, “as mulheres e os homens têm sexualidades diferentes
mas não opostas” (ibidem, p.53).
Em sintonia com a anterior, também numa perspectiva antiessen-
cialista, para Tomaz T. da Silva,
a identidade e a diferença têm que ser ativamente produzidas.
Elas não são criaturas do mundo natural ou de um mundo trans-
cendental, mas do mundo cultural e social. Somos nós que as
fabricamos, no contexto de relações culturais e sociais. A identi-
dade e a diferença são criações sociais e culturais […]
[…] identidade e diferença são o resultado de atos de criação lin-
guística […] (in SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 76).

Sendo a “identidade” e a diferença, conforme o autor, produções


simbólicas e discursivas, elas representam também “uma relação so-
cial”, mais especificamente uma “relação de poder” (ibidem, p. 81). Para
ele, “a identidade está sempre ligada a uma forte separação entre ‘nós’
e ‘eles’”, pressupondo e reafirmando uma “relação de poder”. “Nós”

104
CAPITULO 2

e “eles” expressam “posições-de-sujeito fortemente marcadas por rela-


ções de poder” (ibidem, p. 82).
Segundo Silva, para Jacques Derrida “as oposições binárias não ex-
pressam uma simples divisão do mundo em duas classes simétricas:
em uma oposição binária, um dos termos é sempre privilegiado, rece-
bendo um valor positivo, enquanto o outro recebe uma carga negativa”
(ibidem, p. 83). Para ele, “as relações de identidade e diferença orde-
nam-se, todas, em torno de oposições binárias: masculino / feminino,
branco / negro, heterossexual / homossexual” (ibidem).
Por seu turno, para Stuart Hall, um dos referentes teóricos do iden-
titarismo cultural, “as identidades são construídas por meio da diferen-
ça e não fora dela. Isso implica o reconhecimento radicalmente pertur-
bador de que [em concordância com Derrida, Laclau e Butler] é apenas
por meio da relação com o Outro, da relação com aquilo que não é […],
com aquilo que tem sido chamado de seu exterior constitutivo […]”, que
a identidade pode ser construída (in SILVA, HALL e WOODWARD,
orgs., 2014, p. 110). Conforme ele, “as identidades podem funcionar
[…] como pontos de identificação e apego apenas por causa de sua ca-
pacidade para excluir, para deixar de fora, para transformar o diferente
em ‘exterior’, em abjeto” (ibidem). O autor concorda com Laclau, para
quem “a constituição de uma identidade social é um ato de poder”,
pois “se uma identidade consegue se afirmar é apenas por meio da
repressão daquilo que a ameaça”. Conforme Laclau, “Derrida mostrou
como a constituição de uma identidade está sempre baseada no ato de
excluir algo e de estabelecer uma violenta hierarquia entre os dois po-
los resultantes – homem / mulher etc.” (ibidem).
Ora, nessa concepção apresentada por Woodward, Silva e Hall, em
concordância com Derrida e Laclau, a “identidade” sempre e neces-
sariamente é apresentada numa relação binária com o “diferente”, e
expressando necessariamente uma relação desigual de poder, isto é,
uma relação de opressão. Nesse sentido, entre homens e mulheres, por
exemplo, sempre haverá uma relação de dominação, de desigualdade,
de opressão. Cabe perguntar, então: como e por que combater a desi-
gualdade e a opressão entre dois grupos (duas “identidades” opostas)
que sempre e necessariamente conformarão uma relação de opressão?

105
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Nesse processo de polarização e de opressão compulsória, confor-


me essa análise, formam-se “novos” sujeitos, organizados a partir de
“identidades”, em grupos, coletivos ou movimentos sociais “identitá-
rios”, com forte presença e articulação nas redes sociais.
Assim, conforme Fredric Jameson, na formação desses “novos su-
jeitos históricos” ou dessas “novas identidades coletivas” foi preciso
a constituição “de inimigos de fora para sobreviver como grupo, para
criar e perpetuar um sentido de coesão e identidades coletivas”, na qual o
“outro”, o “diferente”, o “eles” é visto como inimigo do “nós” (1991, p.
98). Conforme o autor, esse processo de constituição de novas identi-
dades levará ao desenvolvimento de “unidades menores e mais con-
fortáveis de microgrupos em confronto direto” com seus adversários
imediatos (ibidem, p. 98-99).
Por conta disso, e a partir da afirmação pós-moderna (também pós-
estruturalista e pós-marxista) de que o trabalho e a classe não represen-
tam mais uma força de articulação política, essas correntes entendem
que o novo e mais forte elemento de congregação e mobilização é a
“identidade”. A “identidade” teria um potencial maior de aglutinação
e de mobilização política, maior que a classe social. Isso aparece, por
exemplo, no manifesto de 1977 do Coletivo Combahee River, no qual
se afirma que “a política mais profunda, e potencialmente mais radical,
vem diretamente da nossa própria identidade, em oposição a traba-
lhar para pôr fim à opressão de outrem” (apud HAIDER, 2019, p. 32 e
LILLA, 2018, p. 69).
Porém, a “lógica identitarista” pós-moderna procede, por um lado,
a uma pessoalização dessa polarização “nós / eles”, e ainda opera uma
destotalização da questão, a qual é levada para sua mera singulari-
dade, como uma questão autônoma retirada da dimensão universal,
da totalidade social (ver item 7.2-B). Nesse procedimento cognitivo, a
compreensão enviesada da questão traz consigo certos riscos que não
são pequenos. As causas pontuais, quando absolutizadas e desarticu-
ladas da totalidade, quando retiradas dos fundamentos capitalistas da
contradição de classe, pode pender para um lado progressista ou para
um lado conservador.

106
CAPITULO 2

Pensemos, por exemplo, nas reivindicações das mobilizações de


junho de 2013 no Brasil, inicialmente por “passe livre” e depois con-
tra a corrupção, e como elas acabaram sendo “tomadas” e conduzidas
(manipuladas) pela grande mídia (Globo à frente), derivando no golpe
institucional de Estado (impeachment) da presidenta Dilma Rousseff.
Lembremos também, nas lutas contra a opressão do Estado, do sindica-
to “Solidariedade” (Solidarność), na Polônia, liderado por Lech Walesa,
nos anos 1980, que tornou-se um movimento eminentemente antico-
munista e antissoviético. Consideremos o processo do Brexit, na Ingla-
terra, como um movimento fundamentalista, extremismo nacionalista
e ultraconservador.
Ainda mais, nessa polarização pessoalizada e destotalizada, há um
esvaziamento da dimensão estrutural, econômica e política, e uma gui-
nada para a esfera cultural, comportamental, numa clara moralização
da questão identitária. Isso é uma evidente expressão dos fundamentos
pós-modernos dessa “lógica identitarista”, absolutizando a dimensão
cultural e comportamental dos indivíduos. A polarização entre “nós” e
“eles”, além de pessoalizada, individualizada, centra-se nos comporta-
mentos e hábitos individuais, em claro processo de moralização com-
portamental. Portanto, ela ingressa funcionalmente na mesma lógica
da ultradireita moralista e fundamentalista, que repudia o aborto, o
uso de drogas, as relações homoafetivas. De um lado ou de outro esta-
mos no campo da moralização comportamental, da pessoalização dos
atos, da dimensão cultural da vida, as pessoas de um lado julgando o
comportamento das pessoas do outro.
Dessa forma, a polarização operada pela “lógica identitarista” pós-
-moderna, a partir da pessoalização e destotalização, mesmo que com
sentido progressista, tem os mesmos fundamentos da polarização identita-
rista própria dos grupos dominantes (da extrema-direita, do fundamen-
talismo religioso e até do fascismo, visando à eliminação, individual e
coletiva, do diferente, tido também como ameaça e “inimigo”). É nesse
sentido que Haider aponta que a “eficiência da armadilha identitária
está no seu duplo funcionamento, que serve tanto à ‘direita’ quanto à
‘esquerda antirrevolucionária’” (HAIDER, 2019, p. 13) ou “possibilista”.

107
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Também o antropólogo liberal Antonio Risério aponta o fato des-


sa lógica identitarista ter um lado, na esquerda, e outro, na direita,
apontando que “em matéria de ‘caça às bruxas’”, muito embora com
sinais ideológicos pretensamente opostos” podemos encontrar na di-
reita “o velho macarthismo” e na esquerda “o novel identitarismo”
(2019, p. 22).
O ultranacionalismo de direita, a xenofobia, o “supremacismo”
branco, o fundamentalismo religioso, tudo isso se funda (numa outra
moral) também numa “lógica identitarista”.
A diferença (que não é pequena) está em que o identitarismo de es-
querda trata dos oprimidos, enquanto o de direita diz respeito, em geral,
aos opressores. Mesmo assim, é também uma característica dos grupos
fascistas (mesmo os “supremacistas” e opressores / dominadores) a
“vitimização”, como aponta Stanley (2019, p. 97 e ss.), vendo o “outro”
como vitimário, como ameaça.
Na mesma trilha, o italiano Umberto Eco (2018) aponta, dentre
as 14 características do fascismo, a busca, por um lado, do consenso
e da unidade exacerbando o “medo à diferença” (ibidem, p. 49-50), a
partir da exploração da “frustração individual”, típica das “classes
médias”, “frustradas” e que se sentem “ameaçadas” pelos de “baixo”,
e tendo o “nacionalismo” como uma fonte de identidade social (ibidem)
que aglutina e organiza esse movimento.8 Também Stanley, ao tratar
do fascismo como “a política do ‘nós’ e ‘eles’”, afirma que “no cerne
do fascismo está a lealdade à tribo, à identidade étnica, à religião, à
tradição ou, em uma palavra, à nação” (STANLEY, 2019, p. 101), fun-
dando uma espécie de “vitimização”, ou seja, tratando o grupo da
“identidade” como “vítima” e o dos diferentes como opressor (ibidem,
p. 97 e ss.); isto é, o fascismo se legitima quando consegue criar num
grupo de identidade (particularmente a “nação” e o “supremacismo”
racial) a sensação de sentir os diferentes como inimigos, como amea-
ças, como opressores, como riscos contra o que é considerado “nor-
mal”, exacerbando o desejo de se levantarem contra esse inimigo,

8 Ver também em: <https://outraspalavras.net/outrasmidias/onze-sinais-do-fascismo-


segundo-umberto-eco/>; ou <https://operamundi.uol.com.br/samuel/43281/umberto-eco-14-
licoes-para-identificar-o-neofascismo-e-o-fascismo-eterno>; acesso em: dez. de 2019.

108
CAPITULO 2

contra essa ameaça, contra os diferentes, e destruí-los, aniquilá-los,


antes que eles sejam aniquilados.
Em síntese, a polarização “nós” / “eles” está presente tanto no
campo progressista, da esquerda, dos grupos subalternos, quanto no
campo conservador e até fascista, da direita, muitas vezes presente nos
grupos dominantes. A análise pós-moderna concebe essa polarização
não no plano estrutural, mas como uma oposição ou um antagonismo
entre pessoas, na esfera individual.
Ora, uma coisa é conceber a opressão como uma relação social de
opressão e, portanto, como uma questão estrutural, plasmada institucio-
nal e culturalmente. Outra coisa completamente diferente – e aqui o sub-
jetivismo do pensamento pós-moderno deita as bases para esse enten-
dimento – é supor que essa relação se esgota no plano interpessoal, não
tendo um fundamento estrutural, cultural, histórico. Vejamos.

D) Da opressão como expressão estrutural à relação interpessoal


Como vimos, não podemos negar a existência real da(s) “identi-
dade(s)”, e nem o fato de muitas delas estarem sujeitas a estruturas e
culturas discriminatórias, opressivas e a relações de desigualdade (ver
itens 2.1 e 2.3-A).
Os indivíduos são constituídos por várias “identidades”, ou, melhor
dizendo, por vários “atributos” e condições (tenham ou não clareza e
consciência sobre eles, sejam ou não eles assumidos ou centrais na vida
das pessoas), ou situações (muitas delas expressando relações de desi-
gualdade, discriminação e opressão).
Assim, a diversidade de atributos e situações (objetivos) e de “iden-
tidades” (representações subjetivas) que fazem parte dos indivíduos e
dos coletivos é uma realidade inegável. Alguns deles tornam-se mais
relevantes e centrais para os sujeitos, por ocuparem uma dimensão
maior, ou pela dimensão do impacto que têm na vida e na formação da
personalidade dos indivíduos, particularmente aquelas “identidades”
que são objeto de discriminação, opressão, desigualdade.
No entanto, dada a diversidade de características, atributos e si-
tuações que fazem parte das pessoas, assim como a multiplicidade de
“identidades” constitutivas dos indivíduos e coletivos, não podemos

109
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

ignorar que elas respondem a tipos de relações diferentes e têm pesos e


determinações diversos, havendo aspectos e “identidades” transitórias
(como questões relacionadas a uma fase da vida) ou permanentes
(como uma característica física), socialmente relevantes (como ques-
tões raciais, religiosas etc.) ou de menor importância (como prefe-
rências nutricionais e musicais ou estilos visuais), que representam
estar do lado dos dominantes (como o pertencimento a uma casta
socialmente dominante) ou dos subalternos (como na condição de
“minoria”), que representam alto grau de paixão ou envolvimento
pessoal (como o pertencimento a uma torcida de futebol ou a uma
igreja fundamentalista) ou não, que têm forte impacto na construção
da personalidade (como ter sido objeto de abuso sexual na infância)
ou não.
Assim, tanto os atributos (objetivos), aquelas “condições reais” que
fazem parte da vida dos sujeitos, quanto as formas de percepção, de
construção das “identidades” (subjetivas), todos eles possuem existên-
cia real, que não pode nem deve ser desconhecida ou desconsiderada.
Aqui, portanto, não está em questão reconhecer a existência real desses
“atributos” e dessas “identidades”.
Porém o problema aparece, por um lado, quando o pensamento
pós-moderno trata de igual forma e com a mesma relevância e peso social
todos os atributos e todas as “identidades”. Assim, como afirma Malik:
O reconhecimento de que seres humanos estão sujeitos a reivin-
dicações e identidades conflitantes é de evidente importância. O
problema surge, contudo, quando todas as “identidades”, quais-
quer que sejam suas formas, são tratadas como equivalentes, de
modo tal que preferências pessoais em estilo de vida, como os
“estilos musicais”, recebem o mesmo peso e importância que
atributos físicos, tais como “deficiência física” ou alguns produ-
tos sociais como raça e classe, enquanto, ao mesmo tempo, cada
identidade é concebida à parte de relações sociais específicas (in
WOOD e FOSTER, 1999, p. 127).

A intelectual marxista Ellen Wood também vai tratar desse ponto,


afirmando que o “novo pluralismo” (pós-moderno), fundado no con-

110
CAPITULO 2

ceito e na política de “identidade” – diferente do “velho pluralismo”


liberal –, teria, segundo seus defensores, a virtude de
abranger tudo, desde gênero a classe, de etnia até raça ou prefe-
rência sexual. A “política de identidade” afirma então ser mais
afinada em sua sensibilidade com a complexidade da experiên-
cia humana e mais inclusiva no alcance emancipatório do que a
velha política do socialismo (WOOD, 2006, p. 220-221).

É também nesse sentido que Asad Haider vai questionar o que cha-
ma de “divina trindade” identitarista: “raça, gênero e classe”, na me-
dida em que cada uma trata de um tipo de relação social inteiramente
diferente (HAIDER, 2019, p. 36).
Reconhecer a real existência de atributos e identidades em sujeitos,
porém, não significa corroborar a “lógica identitarista”. A “identidade”
(como condição ou como percepção do real) não equivale ao “identita-
rismo” ou à “lógica identitarista”, pois, enquanto a “identidade” expressa
uma realidade (objetiva ou subjetiva) da pessoa, a “lógica identitarista”
representa sua compreensão pós-moderna.
Há, aqui, na apropriação pós-moderna, a passagem da categoria
de “identidade”, enquanto construção simbólica da autorrepresenta-
ção do sujeito, individual ou coletivo, a partir de uma relação social de
opressão, em alguns casos estrutural (ver item 2.3-A), para o “identita-
rismo”, fundado no que chamamos de “lógica identitarista”.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna (que alguns autores
tratam, a partir da experiência norte-americana, como “política identi-
tarista”, ver HAIDER, 2019, p. 31, LILLA, 2018 e WOOD, 2006, p. 205)
reduz a questão da “identidade” a apenas uma delas, isolando-a das
outras e do sistema social mais amplo, além de operar uma individualiza-
ção, pessoalização e subjetivação da “identidade”. É aqui, no isolamento e
na individualização de uma única “identidade” dos indivíduos, que a
“identidade” passa a ser tratada no pensamento pós-moderno a partir
da “polarização” “nós” / “eles”.
A “lógica identitarista” pós-moderna, portanto, transforma a oposi-
ção (da qual trata Touraine, ver item 1.1-A) em torno de uma cultura e de
uma estrutura (machista, racista, xenofóbica, homofóbica etc.) em oposi-

111
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

ção entre indivíduos (que seriam expressões dessa cultura), abandonando


ainda mais o princípio tourainiano de totalidade, limitando a luta política
a “um conflito específico” a partir de uma “identidade” específica.
As lutas emancipatórias centradas na estrutura de desigualdade
de classes e de setores sociais se orientam para alcançar a igualdade so-
cial. Aqui, o que está em questão são as estruturas de opressão e desi-
gualdade, e o que se almeja é a transformação desse sistema estrutu-
ralmente desigual e opressor, visando à igualdade social (ver itens 6.1,
6.3 e 7.2).
Contrariamente, as lutas centradas na “lógica identitarista” pós-
moderna não combatem a estrutura de desigualdade, mas as relações
entre sujeitos diferentes, contrapondo os sujeitos de uma “identidade”
aos “diferentes”, o “nós” ao “eles”. Essas lutas, portanto, não procuram
alcançar a igualdade estrutural, pois se organizam em torno das diferen-
ças individuais.
A diferença fulcral entre ambas as formas de luta é que uma conce-
be a opressão como estrutural, e a partir daí combate a estrutura, e a ou-
tra concebe a opressão como meramente relacional, e portanto combate
o indivíduo do outro lado da relação, o “diferente”, numa evidente
pessoalização da questão.
Ora, quando uma relação de opressão e discriminação se funda
em atos e comportamentos individuais, o alvo a combater (e a crimi-
nalizar) será o indivíduo. Porém, quando uma relação de opressão é
estrutural e cultural, a prioridade deve ser o combate a essa estrutura
e a essa cultura.
Assim, a partir da “lógica identitarista” o objetivo político imedia-
to e mais relevante passa a ser a derrota e/ou punição (individual) do
“outro”, o diferente, considerado como inimigo, deixando em segundo
plano, ou para o longo prazo, o objetivo da igualdade. O objetivo da mu-
dança estrutural cede lugar ao objetivo do confronto individual, o que servirá
como conquista “exemplarizante”, dando maior “visibilidade” à causa,
à luta (voltaremos a isso no item 4.1).
Antonio Risério, ao questionar a “esquerda identitária”, expressa
como o identitarismo de alguma maneira promove “ações virulentas
contra qualquer expressão de dissenso político ou ideológico e a rejei-

112
CAPITULO 2

ção radical da outridade” (RISÉRIO, 2019, p. 12), num “quadro de po-


larização violenta, brutal mesmo, onde a norma é o ataque e a agressão
ao outro, ao diferente, ao desviante” (ibidem, p. 131).
A relação de opressão é reduzida pela razão pós-moderna a uma
polarização quase pessoalizada. Essa polarização em torno de “iden-
tidades”, fundamentada na “lógica do identitarismo”, sustenta-se na
individualização “vítima / vitimário”, “oprimido / opressor”.
Se pensarmos do ponto de vista político-institucional, realmente
existem as estruturas e culturas machista, racista, homofóbica, xeno-
fóbica, de intolerância religiosa etc. (amparadas em leis, instituições,
hábitos, ideologia, formas de discriminação, opressão e desigualdade
etc.), nas quais de fato se desenvolvem a opressão, a discriminação, a
desigualdade. E essas estruturas e culturas devem ser combatidas ur-
gente e energicamente. O problema é quando a “lógica identitarista”
(pós-moderna) individualiza essa questão, isto é, torna necessariamen-
te todo e cada membro da “identidade” em vítima de todo e cada indi-
víduo que a ela não pertence. Assim, a “lógica identitarista” leva à no-
ção de que todo homem (pela sua condição) é, real ou potencialmente,
agressor e opressor de toda mulher, de que todo homem branco é no
fundo racista e inimigo de todo homem negro, de que todo indivíduo
heterossexual é no fundo homofóbico, de que todo evangélico será in-
tolerante com as religiões afro-brasileiras etc.
Nessa lógica (identitarista e polarizadora), o alvo da luta política
deixa de ser a estrutura (e até a cultura) machista, racista etc., passando
a ser o indivíduo não pertencente à “identidade”, o diferente, tido por
definição como encarnação dessas culturas e, portanto, como inimigo.
Há, dessa forma, uma espécie de “santificação” da “identidade”, e de “sa-
tanização” do diferente.
Assim, a lógica polarizadora identitarista, como aponta Malik, “na
melhor hipótese […] provoca nossa indiferença [no sentido de desinte-
resse] pelo destino do Outro; [e] na pior [hipótese], dá-nos permissão
para odiar e maltratar os que são diferentes” (in WOOD e FOSTER,
1999, p. 132).
Ora, a ultradireita fascista mundial, a exemplo do QAnon e suas
denúncias de pedofilia contra políticos e artistas norte-americanos, re-

113
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

centemente no Brasil apelou para o mesmo moralismo e repugnância


de supostas afirmações para gerar coesão social, por um lado, e ódio
e repulsa, por outro. É assim que funcionaram, durante o pleito elei-
toral de 2018, as fake news das “mamadeiras eróticas” e do “kit gay”,
supostamente distribuídos nas escolas durante a gestão do ex-minis-
tro da Educação nos governos do PT, e então candidato à presidência,
Fernando Haddad. Com isso, constituiu-se um movimento de rejeição
pelo candidato. Os temas aborto, pedofilia, troca de sexo, satanismo,
doutrinação ideológica, são recorrentemente usados pela ultradireita
no processo de aglutinação e de formação de medo, repulsa e ódio pelo
“outro”. Assim se constituiu o fascismo e o nazismo no início do século
XX, e o neofascismo na atualidade.
Porém o que verificamos é que a esquerda pós-moderna, a par-
tir dessa “lógica identitarista” polarizadora, trabalha com os mesmos
mecanismos e métodos visando à geração de repulsa, ódio e/ou medo,
tanto para aglutinar, por um lado, em torno da “identidade”, como
para repelir e destruir o diferente, por outro.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna reconfigura completa-
mente a questão da “identidade”, deixando-a presa à relação estrutural
e dominante que polariza opressores e oprimidos, dominantes e subal-
ternos. Ela passa a enfrentar o opressor (enquanto indivíduo), e não a
relação de opressão (enquanto estrutura e cultura). Fica presa nessa lógica
e nessa relação, apenas agindo sobre indivíduos.
Ora, uma coisa é a “identidade” em si, outra é o significado que se
dá a ela. A “identidade” como autoidentificação, autorrepresentação,
autoimagem e “processo identitário” (Hall) pode existir em qualquer
indivíduo, e seu significado pode expressar e representar ora o lado
opressivo e dominante, ora o subalterno e dominado da relação so-
cial. Porém “relação social” de opressão não é a mesma coisa que relação
individual. É essa distinção que a polarização da “lógica identitarista”
deixa de fazer, identificando todo indivíduo como adversário, inimigo,
opressor do outro, reduzindo a opressão, como expressão estrutural, a
uma relação interpessoal.

114
CAPITULO 2

E) Da análise teórica da “identidade” múltipla, líquida e flexível,


para a utilidade política de “identidade” “essencialista”: única,
fixa e natural
Nesse processo, por outro lado, a “lógica identitarista” pós-moder-
na, paradoxalmente, esvazia o aspecto “líquido”, flexível, mutável da
“identidade”, conforme desenvolvido pelas abordagens pós-marxistas
e pós-estruturalista (Castells, Bauman e Hall; ver item 1.2), e volta-se
pragmaticamente para uma concepção rígida, fixa, “naturalizada”.
Ou seja, do “antiessencialismo” com que esses autores tratam a
questão da “identidade”, pragmaticamente retorna-se ao “essencialis-
mo”, fundando a “identidade” como uma questão histórica ou bioló-
gica rígida, “apelando seja à ‘verdade’ fixa de um passado partilhado
seja a ‘verdades’ biológicas” (WOODWARD in SILVA, HALL e WOO-
DWARD, orgs., 2014, p. 15). O “essencialismo”, conforme Woodward,
“pode, assim, ser biológico e natural, ou histórico e cultural”, mas o que
há em comum “é uma concepção unificada de identidade” (ibidem, p. 38).
Esse processo, paradoxal no plano teórico (teoricamente não se
justifica uma abordagem pós-moderna que torne a “identidade” algo
rígido, “essencialista”), tem muito mais a ver com a utilidade política
desse conceito, num evidente pragmatismo político. Do ponto de vista
da associação de pessoas a partir de uma “identidade”, da polarização
com a “identidade” antagônica e das lutas ou ações políticas, um con-
ceito flexível e cambiante de “identidade” parece pouco útil. Politica-
mente seria mais útil conceber a “identidade” como algo rígido, infle-
xível, fixo... e natural, contrastado como polos opostos com o “outro”.
Por esse motivo, parece haver nas análises pós-modernas e nas pautas
de grupos com elas identificadas, uma renaturalização das questões de
gênero, de raça etc. em análises amparadas nessa polarizadora “lógica
identitarista” pós-moderna. Ao naturalizar a oposição homem / mu-
lher, negro / branco, nacional / estrangeiro etc., as relações de opressão
são transformadas em relações próprias da, e naturais à, diferença en-
tre sujeitos. Portanto, os últimos passam a ser vistos como “inimigos
naturais”. Esse aspecto é o divisor de águas entre as demandas e as
lutas (de gênero, de raça etc.) igualitaristas, por um lado, e aquelas que
polarizam “nós” e “eles”, “vítima” e “vitimário”, por outro lado.

115
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Ainda, conforme Douglas Rodrigues Barros,


a exaltação da identidade como fixo e não relativo é a pura ex-
pressão de forma de valorização do capital como fim em si mes-
mo que precisa assegurar alguns indivíduos como colônia ainda
viável de exploração. É esse fenômeno que busca uma identida-
de estanque, ideal e não relativa, um Eu=Eu, como forma incons-
ciente de realização de valorização do capital, que chamo identi-
tarismo (BARROS, 2018).

Dessa forma, a “lógica identitarista” pós-moderna não só polariza


a relação “nós” / “eles”, não só individualiza ou pessoaliza essa rela-
ção, como também torna a “identidade” uma questão transcendental,
classificatória, “essencialista”. A “identidade” passa a ser vista na sua
singularidade (e não na sua multiplicidade), como uma condição rígida,
fixa, imutável e, portanto, transcendental ao sujeito, como uma questão
que define o indivíduo, a qual não pode mais superá-la. A “identidade”
deixa de ser um processo de identificação múltipla, de autoconstrução
do indivíduo, para ser uma etiqueta classificatória, discriminatória, sob
a qual o sujeito, paradoxalmente, desaparece.
Ora, se a “identidade” remete a relações sociais e a situações que os
indivíduos vivenciam, e se essas relações e situações que os indivíduos
vivem podem mudar, então as “identidades”, além de variadas e mui-
tas vezes contrárias, são processos que mudam, que se transformam.
Tornar a “identidade” um processo único e fixo, quase natural, con-
sistitui um reducionismo teórico que atende apenas a uma aparente,
imediata e transitória utilidade política.
Naturalizam-se e biologizam-se as diferenças sociais entre homens
e mulheres, entre negros e brancos etc., fazendo dessa relação social de
opressão uma relação pessoal de opressão natural. Assim, nessa pers-
pectiva, não adianta enfrentar a cultura e a estrutura, pois o inimigo é o
“outro” indivíduo; é ele que deve ser enfrentado e anulado.
Em função disso, cada vez que uma bandeira de luta civilizatória e
emancipatória é usada para benefício pessoal, em torno de relações indivi-
duais ou grupais, certamente ocorre a degradação e redução desse prin-
cípio universal de luta a um instrumento pessoal. A transmutação de

116
CAPITULO 2

históricas bandeiras de luta pela igualdade em posturas “vitimistas” é


um claro exemplo dessa degradação e desse reducionismo.
O problema, portanto, não é a “identidade” em si, mas a “lógica
identitarista” pós-moderna.
A “identidade” é um fato real; as pessoas se auto-identificam com
fenômenos, atributos ou características que sentem como próprios e
determinantes nas suas vidas, sejam esses fatos reais ou construídos
simbolicamente. E em função deles se identificam entre si, em gru-
pos e coletivos. E quando essa “identidade” expressa uma relação de
opressão ou discriminação, elas podem se organizar e lutar contra essa
opressão e na defesa de seus interesses em comum, luta necessária, jus-
ta e urgente.
Porém a “lógica identitarista” pós-moderna trabalha com a noção
de polarização social, onde o atributo ou a “identidade” assume carac-
terísticas absolutas e imutáveis, onde o indivíduo “diferente”, e não a
cultura ou a estrutura, é visto como inimigo, e onde o objetivo de vida
e/ou de luta se centrará na aniquilação e/ou subordinação do “outro”,
numa individualização da luta que acaba perpetuando a relação de
polarização e a estrutura de dominação e opressão, apenas visando a
punição individual do “outro” e a inclusão do “nós”.
Desta forma, não se trata de “santificar” a “identidade” (tal com
é feito pela razão pós-moderna), porém também não se trata de “sa-
tanizá-la”. Trata-se, sim, de avaliar criticamente suas contribuições e
limites, tanto para a análise da realidade como para a organização e
lutas emancipatórias.
Já vimos as potencialidades e contribuições da categoria “identida-
de” para a análise teórica e a luta política (item 2.3-C); vejamos agora os
limites da abordagem identitarista pós-moderna.

F) Os limites do identitarismo e da “lógica identitarista”


pós-moderna
A “identidade”, como vimos, remete à autopercepção e à represen-
tação dos indivíduos, grupos e coletivos de suas condições, situações e
experiências de vida (reais ou percebidas) mais imediatas e/ou diretas,
as mais impactantes na sua vida, mediante as quais (se me permitem a

117
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

redundância) o sujeito se identifica como tal, e em muitos casos expres-


sando uma relação de opressão / subalternidade.
Porém “identidade” não se limita à autoimagem individual, pois ela
expressa também, e fundamentalmente, uma construção coletiva. Por-
tanto, a “identidade” não é apenas a forma como o indivíduo se iden-
tifica com a realidade que o rodeia ou o constitui, mas também a forma
como se identifica com os outros, seus pares, aqueles com quem com-
partilha a mesma realidade, condição ou situação.
Via de regra, portanto, a “identidade” é construída coletivamente
por um grupo que sofre algum tipo de opressão ou discriminação, o que
marca sua vida, sua autopercepção, seu lugar no mundo, e determina
um tipo de relação (real, ideológica, direta ou indireta) com o “diferen-
te”, não só com o grupo oposto à “identidade” em questão, mas com
todos os outros.
Dessa forma, as “identidades” representam questões, causas, de-
mandas e lutas que são legítimas, necessárias e urgentes, em torno des-
sa relação de opressão ou de desigualdade.
Assim, a partir do exposto, nós nos afastamos tanto das visões que
rejeitam a “identidade”, como se fossem algo desimportante ou secun-
dário, em evidente “satanização” da questão de “identidade”, quanto
das visões que reivindicam a “identidade” como o novo conceito de
articulação e ação política, substituindo a classe social, em clara “santi-
ficação” daquela.
Porém vimos que a transformação pós-moderna da “identidade”
em “identitarismo”, a partir da construção de uma lógica polarizadora
e autonomizadora, tende a esvaziar e a despolitizar essa categoria, bem
como as lutas identitárias.
Assim, após a consideração das contribuições da categoria “identi-
dade” (ver item 2.3-C), vamos apontar alguns limites da “lógica identi-
tarista” pós-moderna, tanto no conhecimento da realidade, como na
articulação e na ação política.
Até aqui, nossa análise mostra alguns limites da “identidade” (como
percepção subjetiva) e do “identitarismo” (apropriado pela lógica pós-
-moderna), quando entendidos como questões singulares e autônomas,
desarticuladas de outras questões particulares (outras “identidades”) e

118
CAPITULO 2

da totalidade social (a estrutura), derivando num reducionismo tanto


na reflexão da realidade, como no processo de ação e lutas sociais.
Pelos motivos expostos, as causas (transformadas em “pautas”)
e as lutas identitárias, quando isoladas e desarticuladas da totalidade
social e da luta universal, tendem a se orientar para uma ação tática
(secundarizando questões estratégicas) pessoalizada, quando não in-
dividualizada, cujos efeitos são práticos, imediatos e diretos.
O combate contra a estrutura e a cultura tende a ser substituído pela
ação contra indivíduos. O inimigo não é mais a estrutura e a cultura, mas
a encarnação, pessoalização deles: o sujeito individual ou grupal.
O objetivo (tático) de sua ação passa a ser tanto a punição do
“outro”, como o reconhecimento e a inclusão (por meio de direitos
e acesso a bens e serviços) dos pertencentes à “identidade”, assim
como o chamado empoderamento dos setores vulneráveis, relegando
a segundo plano ou desconsiderando qualquer objetivo de transfor-
mação estrutural e cultural. A luta identitária, quando permanece
em sua singularidade ou como particularidade desarticulada e iso-
lada da totalidade social, se não se tornar uma luta universal, não vai
conseguir alcançar e golpear a estrutura de opressão, ficando apenas no
plano da conquista de direitos específicos, na punição individual exem-
plarizante de indivíduos e no chamado “empoderamento” (tratare-
mos disso nos itens 4.1, 4.2 e 4.3).
Nesse sentido, como sustenta Francisco Bosco, as lutas identitá-
rias, quando isoladas da totalidade, “não se voltam […] contra o ‘ini-
migo-mor’” (o sistema, a estrutura, a cultura dominante), mas contra o
“inimigo imediato” (o “diferente”, o “outro”) (2017, p. 81).
Isto é, se o racismo é estrutural, como mostra Silvio Almeida (2019),
e se o machismo se sustenta numa estrutura patriarcal, então a luta antir-
racista e feminista deve procurar atingir e transformar essa estrutura.
Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Educativa (em 22 de
junho de 2020), ao tratar da luta antirracista e da questão da “identida-
de”, Almeida afirma:9
O racismo é um elemento muito complexo na sociedade no mun-

9 Ver em: <https://www.youtube.com/watch?v=L15AkiNm0Iw> (22/06/2020); acesso em jun.


de 2020.

119
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

do todo. E não podemos deixar de ver o racismo na sua ligação


intrínseca com outros elementos da vida social. Como, por exem-
plo, a economia, como o direito, como a política, e também como a
produção do imaginário social. […]
Não há mais lugar para raciocínios ou para pensamentos so-
bre o racismo que não estejam dispostos a ir além de atos indivi-
duais e questões comportamentais, ou mesmo que pensem o racis-
mo como parte de um mal funcionamento institucional.

Também nesse sentido, ao tratar do feminismo e questionar o


“identitarismo”, Maria Lygia Quartim de Moraes aponta que “a ques-
tão do feminismo foi acabar com o mito da ‘mulher’ [… e] desbiologizar
as diferenças sociais. O que o machismo, o racismo […] fazem […] é
a tentativa de dizer ‘é assim porque […] nasceu assim’”,10 atribuindo
papéis e lugares sociais a partir da condição biológica.
Na verdade, do que se trata é de superar a biologização das dife-
renças (de raça, de sexo, de etnia etc.) como pretexto para as desigual-
dades sociais e para a opressão.
Dessa forma, conforme afirmam Petras e Veltmeyer, nesse “novo
modo (pós-moderno) de fazer política” há uma “política do antipoder,
com o fim de evitar a confrontação e não se dirigir contra as estruturas
de poder econômico e político, mas sim de construir o capital social
dos pobres [ou das ‘minorias’] para se comprometer em projetos de
desenvolvimento local nos espaços disponíveis dentro da estrutura de
poder” (2004, p. 330).
Assim, essas lutas ou pautas identitárias, a partir da “lógica iden-
titarista” pós-moderna, acabam sendo subsumidas à própria dinâmica
do capital, vinculada ao Estado e ao direito burgueses. É o que sustenta,
segundo Haider, a feminista Judith Butler, para quem o termo “sujei-
to” carrega um duplo sentido: significa, por um lado, a capacidade de
protagonizar e de agir, e, por outro, sujeitar-se e subordinar-se ao ou-
tro ou a algum poder externo. Assim, em função disso, “a política no
liberalismo se caracteriza por nos tornarmos sujeitos que participam na
10 Ver em: <https://www.youtube.com/watch?v=QoLFVyFHuTQ&feature=youtu.be> (postado
em 27 de maio de 2016); acesso em jun. de 2020.

120
CAPITULO 2

política através da sujeição ao poder” (in HAIDER, 2019, p. 35). Nesse


sentido, Butler sugere que “o que chamamos de política identitária é
produzida por um Estado que só pode dar reconhecimento e direitos
a sujeitos totalizados pela particularidade que constitui seu status de
demandante” (apud HAIDER, 2019, p. 35).
Dessa forma, se para Butler “a afirmação de direitos e reivindica-
ções de benefícios só podem ser feitas com base numa identidade sin-
gular lesada” (apud HAIDER, 2019, p. 35), então, conforme afirma Hai-
der, “podemos reclamar que somos de algum modo lesados com base
em nossa identidade [… e] podemos demandar reconhecimento do Es-
tado com base nisso. E, uma vez que são a condição da política liberal,
as identidades se tornam cada vez mais totalizantes e reducionistas.
Nossa capacidade de ação política através da identidade é exatamente
o que nos prende ao Estado, o que assegura nossa contínua sujeição”
(ibidem) ao Estado e à ordem burguesa. Ainda, o autor, ao analisar as
lutas de Malcolm X, entende que a “política identitária” é uma forma
de “neutralização” dos movimentos contra a opressão (ibidem, p. 37).
Finalmente, o “identitarismo” e a “lógica identitarista” pós-moder-
na, a partir do isolamento da “pauta” – que é desarticulada de outras
causas e da totalidade social – e da pessoalização da luta, deriva em
dois problemas políticos fundamentais:
1) Quem lutará por aqueles grupos (ou “minorias”) que não têm capaci-
dade de organização e força para lutar?
Estamos falando das comunidades dos povos originários, particu-
larmente daqueles isolados. Estamos nos referindo às crianças e aos
adolescentes. Incluímos aqui os portadores de necessidades especiais,
particularmente aqueles com distúrbios de ordem psicológica ou até
intelectual e cognitiva: portadores do transtorno de espectro autista, da
síndrome de Down etc. Falamos dos contingentes populacionais anal-
fabetos, que no Brasil representam dezenas de milhões etc.
Em um debate sobre a inclusão dos povos originários nas “cotas
raciais” das universidades, alguém disse: “Se os índios não estão or-
ganizados e representados aqui, não têm que ser incluídos nas cotas”.
Ora, se a “lógica identitarista”, acompanhada do “lugar de fala”,
funda-se na luta de “cada um por seus interesses específicos”, então

121
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

aqueles que não têm organização política, que não têm condições de
uma “fala” consciente ou sequer de se reconhecerem como sujeitos
com demandas específicas, também não têm como se autodefender e
lutar por seus direitos, nem ainda, em muitos casos, têm como falar por
si mesmos do seu “lugar de fala”.
Se essa “lógica” exclui a possibilidade de uma luta conjunta por
direitos particulares de grupos específicos – negros e brancos contra o
racismo e na defesa dos povos originários, mulheres e homens contra o
machismo, LGBTs e héteros contra a homofobia, nacionais e imigrantes
contra a xenofobia, pais e mães pelo direito das crianças etc. –, se so-
mente cada “identidade” pode falar por si (“lugar de fala”) e lutar por
seus direitos específicos (na “lógica identitarista”), então aqueles que
não podem se organizar, falar e lutar por seus direitos, ficarão de fora,
excluídos do status de cidadãos, pois nessa “lógica” ninguém poderia
lutar pelos direitos alheios, de outrem.
Como, então, uma comunidade ribeirinha de baixa instrução e ele-
vado isolamento social (o que dificulta até de considerá-la como “co-
munidade”) vai lutar contra o desmatamento ou a poluição das águas?
Como uma comunidade indígena vai reivindicar demarcação de terras,
proteção contra garimpos ou até respiradores no meio da pandemia de
Covid-19? Como um pequeno povoado do sertão vai demandar e lutar
pelo acesso à água potável? Como crianças vão lutar contra a prática
da alienação parental e por seus direitos de convivência familiar e de
construção da identidade?
Crianças, povos originários, portadores de transtornos psicológi-
cos e mentais, pessoas analfabetas etc., serão abandonados à própria
sorte e à própria capacidade de luta. Nada mais neoliberal do que isso:
deixar os indivíduos concorrerem “livremente” no mercado, sem inter-
ferência estatal, a partir das próprias capacidades (ver HAYEK, 1990, p.
58 e 1985, p. 88).
2) Quem lutará pelos valores, pelos direitos e pelas demandas universais,
comuns, humano-genéricas?
Estamos falando, aqui, de questões que não envolvem aspectos
particulares de um grupo específico, mas que são comuns a toda hu-
manidade, tal como a preservação do meio ambiente, o avanço e a so-

122
CAPITULO 2

cialização do conhecimento científico, a distribuição da riqueza social-


mente existente, a luta contra a desigualdade social, a saúde e a educa-
ção públicas, a defesa da democracia etc.
Questões que, como podemos observar, estão fora das “pautas
identitárias”, por não tratarem de causas específicas de um grupo
identitário. E que de fato estão perdendo força, teórica e política, nos
processos de lutas sociais. Basta observar as manifestações populares
por estas questões, realmente insignificantes ao lado das manifestações
populares de grupos identitários.
Não se trata, aqui, novamente o afirmamos, de desestimar a im-
portância das manifestações de grupos identitários e suas lutas parti-
culares, que, como já sustentamos, são necessárias, justas e urgentes.
Trata-se, sim, de mostrar que a “lógica identitarista” – que polariza,
pessoaliza e isola as causas (transformadas em “pautas”) e lutas iden-
titárias (reduzidas a ações pontuais e de efeito imediato) – também
abandona ou deixa em segundo plano as lutas universais, comuns, hu-
mano-genéricas.
Assim, da mesma forma que essa “lógica” pós-moderna abandona
a luta pelos “outros” (os que não têm como se perceber como grupo,
nem como se organizar, falar e lutar), ela também abandona a luta pelas
demandas universais.
A luta revolucionária não pode se esgotar em interesses próprios,
específicos, identitários; ela tem de se constituir ou confluir em lutas
universais.
A “lógica identitarista” (e as “políticas identitárias”) estimula o
abandono das bandeiras mais universais, de questões comuns da luta
humanista, ou ainda, socialista. Todas as demandas ou causas que não
sejam específicas da “identidade” em questão tendem a ser abandona-
das ou secundarizadas.
Assim, em princípio, o movimento negro não precisa ter uma opi-
nião sobre o aborto; o movimento LGBT não necessita se posicionar
sobre a questão racial; o movimento feminista não tem que ter uma
postura sobre a xenofobia; o movimento estudantil não tem necessa-
riamente que deliberar sobre a flexibilização das leis trabalhistas etc.
Quando o fazem é necessariamente porque querem ir além das suas

123
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

“pautas identitárias”, porque conseguem articular as demandas de di-


versos grupos ou coletivos identitários e as causas universais. Como
inserir nas pautas identitárias uma luta comum, como a luta pela saú-
de e educação pública, como a luta pela reforma tributária ou pelos
direitos trabalhistas? Como articular numa luta conjunta grupos que
se identificam como inimigos nas questões identitárias? Apenas indo
além dessas “pautas identitárias” e incorporando objetivos universais.
A emancipação humana não é a somatória de causas particulares;
ela precisa de um elemento aglutinador que dê sentido e articule as
diversas pautas particulares numa finalidade comum. Sem isso, cada
luta particular se esgotará na conquista (ou derrota) de sua pauta par-
ticular.
Nesse sentido, ao tratar das lutas pela limitação da jornada de tra-
balho, substituindo bandeiras formais e abstratas por causas concretas,
Marx afirmou: “O pomposo catálogo dos direitos inalienáveis do ho-
mem será substituído pela modesta Magna Carta que limita legalmente
a jornada de trabalho… Que transformação!” (1980, p. 345). Nós pode-
ríamos dizer hoje, em sentido inverso, sobre nossa particular questão: a
luta pelos direitos universais, pelas conquistas comuns e a luta anticapitalista
pela transformação social e por uma sociedade socialista integralmente emanci-
pada é substituída pelas “pautas identitárias”… Que transformação!
Em síntese, mais do que “identitárias” (o que remete a uma autorre-
presentação subjetiva), preferimos falar em causas e lutas antiopressivas
e/ou particulares (retomaremos essa questão no item 7.2-C).

124
capítulo 3

OUTROS FUNDAMENTOS IDEOLÓGICOS


E (A)POLÍTICOS DO PENSAMENTO /
AÇÃO PÓS-MODERNOS:
O TRIPÉ DA “LÓGICA IDENTITARISTA”

O “identitarismo” pós-moderno representa uma “lógica”, uma


racionalidade ideológica e (a)política, fundada num tripé mutuamente
articulado: a) a lógica polarizadora, b) o chamado “lugar de fala”, que
aparece como o referencial do discurso político do qual se produzem
as vozes identitárias, e c) a assim denominada “pós-verdade”, como
expressão de uma “realidade” não objetiva, nem amparada em fatos
ou evidências, mas na forma como ela é apropriada ou concebida pelo
sujeito,coloca-se, portanto, como o objeto da ação política. Resta-nos
completar o tripé tratando dos dois últimos. Vejamos.

3.1- O “lugar de fala” como referencial do discurso político

Este conceito, o chamado “lugar de fala”, assumiu centralidade


política na “lógica identitarista”, representando uma “adaptação” ter-
giversada pelo pensamento pós-moderno, da noção de conhecimento
interessado e engajado.

125
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

A expressão “lugar de fala” tem dimensões tanto cognitivas −


quem pode conhecer e falar sobre as questões que envolvem as di-
versas “identidades” –, como políticas – o fator de articulação e ação
política. Assim, sobre essa segunda dimensão, Wilson Gomes afirma
que o
“lugar de fala” tem sido uma ferramenta largamente usada nos
últimos tempos, tanto para reforçar os vínculos identitários de
certos estratos da esquerda quanto para mobilizar e engajar
para a luta política, tanto para orientar a ação política dos mo-
bilizados e engajados como para oferecer justificativas de su-
perioridade moral para a ação praticada (2019).

Antes de ingressarmos na sua análise, vamos buscar os funda-


mentos desta expressão na sua origem.

A) O direito à voz dos subalternos


Por um lado, a origem da expressão “lugar de fala”, de claro viés
progressista, visava reivindicar o direito à voz dos subalternos, dos que
não tinham fala.
Assim, ao que tudo indica, o uso inicial da expressão “lugar de
fala” pode ser encontrado no livro da professora indiana Gayatri Spi-
vak, intitulado Pode o subalterno falar?, originalmente publicado em
1985 e editado no Brasil em 2010 (SPIVAK, 2010). A partir de referên-
cias a autores pós-modernos como Michel Foucault, Félix Guattari,
Gilles Deleuze e Jacques Derrida, ela trata do silêncio dos “subal-
ternos”, ou seja, segundo a prefaciadora do livro, Sandra R. Goulart
Almeida, e partindo do conceito gramsciano, do silêncio daqueles
“cuja voz não pode ser ouvida” (ibidem, p. 13), que pertencentes às
“camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos espe-
cíficos de exclusão dos mercados, da representação política e legal,
e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato so-
cial dominante” (ibidem). Assim, para a autora, não se pode falar em
nome do subalterno, mas é ele próprio quem deve tomar a palavra,
para poder falar a partir da sua condição de subalternidade, do seu
“lugar”.

126
CAPITULO 3

A autora analisa, a partir disso, a “violência epistêmica” dos se-


tores dominantes e colonizadores (ibidem, p. 63), que neutraliza o su-
balterno ou o colonizado, silenciando-os e inviabilizando-os como
sujeito político.
Ela ainda identifica dois significados do termo “representação”: o
primeiro no sentido de “falar por”, como ocorre na política, e o segun-
do no sentido de “re-presentação”, como na arte e na filosofia (ibidem,
p. 39). Assim, conforme a autora, “nenhum ‘intelectual e teórico […
ou] partido ou […] sindicato’ pode representar ‘aqueles que agem e lu-
tam’” (ibidem). Isso estaria reproduzindo as estruturas de poder (ibidem,
p. 14). Como sujeitos de desejo e de poder “os oprimidos podem saber
e falar por si mesmos” (ibidem, p. 56, 78). Isto é, ao falar por si mesmo,
o subalterno não precisa ser representado pelos outros, pois ele mesmo
se autorrepresentará.
Dessa forma, a origem da expressão “lugar de fala” se vincula à ne-
cessidade dos subalternos terem voz própria, de falarem por si mesmos, a
partir de suas vivências concretas, de seus lugares. Que os subalter-
nos tenham direito à própria voz constitui um aspecto fundamental
no processo civilizatório em direção à igualdade social e política, e nas
conquistas progressistas.
Como afirma o autor uruguaio Eduardo Galeano, a partir de um
provérbio africano: “Até que os leões tenham seus próprios historiado-
res, as histórias de caçadas continuarão glorificando o caçador” (1985,
p. 49, ou 2009).11
No entanto, se a origem da expressão visa reivindicar o direito à voz
e à fala dos subalternos, das chamadas “minorias”, dos dominados e dos
“excluídos”, hoje podemos dizer que o mesmo sentido – de que só aque-
le pertencente a determinada “identidade” pode falar pelo “nós” – existe
nos grupos de “identidades” dominantes, sejam eles ligados a questões
de raça, de religião, de gênero etc. Isto é, a bandeira antes exclusiva dos
setores subalternos, dos silenciados, agora passou a ser apropriada pelos
grupos dominantes, perdendo qualquer orientação progressista.

11 Ver em: <https://www.pensador.com/frase/MTE4NDcwOA/>; acesso em: jan. de 2021.

127
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

B) Todo discurso é social e politicamente situado e posicionado


Por outro lado, em tese, o termo “lugar de fala” parece remeter à
noção de que todo discurso é social e politicamente situado e posicionado,
expressando visão de mundo particular.
É sabido que para o pensamento marxista – contrariamente à noção
positivista de “neutralidade” científica ou gnosiológica, ou à de “neu-
tralidade axiológica” de Weber –, o nosso conhecimento da realidade
depende de valores, interesses, ideologias, posicionamentos políticos,
ou seja, de quem somos, de qual lugar ocupamos no mundo e como
percebemos isso, particularmente em relação aos aspectos da realidade
em questão e às perspectivas, opções e escolhas que fazemos em torno
da realidade em que vivemos. O conhecimento é, portanto, “saturado
de interesses” (ver HABERMAS, 1982).
Porém, ao mesmo tempo, essa afirmativa nada tem a ver com a
noção pós-moderna de “lugar de fala”. Vejamos.
Para a razão positivista, assim como para a teoria marxista, a reali-
dade é objetiva, material e independente do conhecimento que se te-
nha sobre ela; porém essas correntes de pensamento divergem sobre
os fundamentos do conhecimento sobre a realidade. Assim, se para o
positivismo o conhecimento deve ser “neutro”, contrariamente para o
pensamento marxista trata-se de um conhecimento “engajado”.
No entanto, em antagonismo às correntes racionalistas modernas,
para o pensamento pós-moderno, a realidade não é material e ontológica,
mas vivencial e interpretativa, ou seja, subjetiva. Portanto, a realidade
(e a verdade) tem a ver com o significado que as coisas têm para cada
sujeito. Não havendo realidade objetiva nem teoria universal, para a razão
pós-moderna só se pode produzir conhecimento a partir da vivência, isto é, do
“lugar de fala”.
Ora, uma coisa é entender que não há discurso imparcial, neutro,
objetivo, e que todo discurso é ética e politicamente posicionado (cons-
ciente ou inconscientemente), por isso cada um fala a partir de seus
interesses, seus valores e sua visão de mundo. Porém outra coisa com-
pletamente distinta é afirmar que “o lugar” de onde falamos (o “lugar
de fala”), a nossa vivência, nossa condição social, definidas a partir de
uma única “identidade”, vão definir uma determinada (e uniforme)

128
CAPITULO 3

maneira de ver o mundo, ou até uma determinada (e uniforme) “pers-


pectiva”, ou ainda uma “epistemologia” específica.

C) “Lugar de fala” como “ponto de vista” comum a partir de


um “lugar social”
Em um livro recente sobre o termo “lugar de fala”, a filósofa e ati-
vista de direitos humanos, Djamila Ribeiro, visando confrontar as crí-
ticas ao “lugar de fala”, afirma que na verdade esse termo remete ao
“lugar social” que as pessoas ocupam (2019, p. 54, 59, 72). Essa assertiva
surge, a modo de hipótese, da teoria do “ponto de vista”, que Ribeiro
extrai de Patricia Hill Collins, sobre o “feminist standpoint” (ibidem, p.
57, 59, 60, 62, 72). Assim, afirma a autora: “Nossa hipótese é a de que, a
partir da teoria do ponto de vista feminista é possível falar de lugar de
fala” (ibidem, p. 59 e 72).
Conforme Collins, esse “lugar social” “é a localização social comum
nas relações hierárquicas de poder” (apud RIBEIRO, 2019, p. 61), repre-
sentando assim o lugar numa relação de poder, ou hierárquica, que de-
sencadearia uma relação de opressão. Assim, o “lugar de fala” surgiria
do “lugar social”, que remete ao lugar numa relação hierárquica e de
desigualdade de poder.
Visão semelhante parece ter Stuart Hall. Conforme Woodward,
esse autor “toma como seu ponto de partida a questão de quem e o
que nós representamos quando falamos. Ele argumenta que o sujeito
fala, sempre, a partir de uma posição histórica e cultural específica” (in
SILVA, HALL e WOODWARD, orgs., 2014, p. 28).
Por seu turno, essa “localização social”, ainda conforme Ribeiro e
Collins, não seria resultado da somatória de decisões individuais (como
apontariam seus críticos), mas produto das condições de “desigualdades
em que esses indivíduos se encontram” nas relações de poder (RIBEI-
RO, 2019, p. 60-63 e 67). Ou seja, o que determinaria a localização social
não seria a percepção individual, mas a real condição de desigualdade
que vive um determinado coletivo a partir da sua condição social.
Essas experiências comuns entre os grupos subalternos fazem com
que seus saberes e sua voz sejam silenciados ou subalternizados. Ainda,
também impede que essa população acesse certos espaços (ibidem, p. 63).

129
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

A partir disso, Ribeiro entende assim o “lugar de fala”: primeira-


mente, como forma não só de expressar a voz, mas de “poder existir”
(ibidem, p. 64) e em segundo lugar como forma de “refutar a historio-
grafia tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierar-
quia social” (ibidem, p. 64 e 69).
Porém, conforme a autora, ao tratar essa questão do ponto de vista
estrutural e não individual (como a abordagem pós-moderna faz) (ibi-
dem, p. 67), o “lugar de fala” “absolutamente não tem a ver com uma
visão essencialista de que somente o negro pode falar sobre racismo,
por exemplo” (ibidem, p. 64). Ainda, afirma a partir de Collins, “ocupar
localização comum em relações de poder hierárquicas não implica em
se ter as mesmas experiências” (ibidem). E continua, sustentando que
“o fato de uma pessoa ser negra não significa que ela saberá refletir
crítica e filosoficamente sobre as consequências do racismo” (ibidem,
p. 67). Portanto, conforme a autora, “o lugar social não determina uma
consciência discursiva sobre esse lugar”, mas “o lugar que ocupamos
socialmente nos faz ter experiências distintas de outras perspectivas”
(ibidem, p. 69).
Ora, por um lado, tudo isso parece negar o próprio conceito de
“lugar de fala”.
Por outro lado, se o “lugar social”, isto é, o lugar que os sujeitos
ocupam em uma dada situação de poder e que compartilham com
um coletivo, não significa que só esse grupo identitário possa tratar
do tema, nem que todos os indivíduos tenham a mesma experiência, e
nem que essa experiência (ou esse lugar de subalternidade que ocupam
numa relação de poder) determina uma consciência crítica, então o que
seria “lugar de fala”? Esse termo tão polêmico expressaria apenas que
se trata de “falar de um lugar”?
Definitivamente o uso desse termo, apropriado pela razão pós-mo-
derna, não se restringe a isso, particularmente quando se trata de trocar
o silêncio dos subalternos pelo silêncio dos dominantes, e caindo num
isolamento das falas (cada um fala para os “seus”), quando se trata ain-
da de fazer do “lugar social”, da experiência, uma fonte de consciência
homogênea (para todos os membros) e necessariamente crítica, como

130
CAPITULO 3

se a mera vivência bastasse para a compreensão dos fundamentos do


fenômeno em questão.
Porém compreender o “lugar de fala” como “falar desde um lugar”
parece ser o entendimento de Ribeiro quando, ao diferenciar o “lugar
de fala” (falar por si) da “representatividade” (falar por outro) (ibidem,
p. 82), ela afirma: “Uma travesti negra pode não se sentir representada
por um homem branco cis, mas esse homem branco cis pode teorizar
sobre a realidade das pessoas trans e travestis a partir do lugar que ele
ocupa […] A travesti negra fala a partir de sua localização social, assim
como o homem branco cis” o faz a partir da sua (ibidem, p. 82-83).
Então se trataria de afirmar que todos podem falar, mas cada um
falaria, sempre e irremediavelmente, do seu lugar, não podendo, na sua
fala, “sair” do mesmo. O homem branco cis sempre falará como tal, en-
quanto a travesti negra o fará inalteradamente desde o próprio lugar.
Não haveria como fugir disso. Portanto, o que ocupa o lugar dominan-
te sempre falará como dominador, opressor, enquanto o que ocupa o
lugar subalterno sempre falará como dominado, oprimido.
Isto é, a fala do dominante sempre será entendida como expressão,
manifestação e perpetuação dessa dominação, a qual o subalterno, que
visa combater essa relação de opressão, deverá necessária e permanen-
temente repelir.
Ora, e se o homem branco cis, por exemplo, tiver um filho transgê-
nero? Essa experiência não poderia mudar sua vivência, sua percepção,
sua compreensão, seus valores e seu posicionamento?
O “outro” nem sempre fala como dominador, opressor. E nem
sempre ignora a condição do sujeito em questão.
Um homem pode não vivenciar diretamente as mazelas do ma-
chismo, mas, com empatia, pode compreender teoricamente a discrimina-
ção de gênero – e isso pode se amplificar ainda mais quando ele perce-
ber os efeitos do machismo na filha, por exemplo. Um branco pode não
experimentar o racismo, mas pode compreender teoricamente a segrega-
ção racial. Isto é, um sujeito pode se pôr (teoricamente) no “lugar do
outro”, mesmo que não ocupe esse “lugar”, e compreender a condição
dele. É certo que a vivência (a partir do “lugar” que se ocupa) é uma
questão central e insubstituível; mas a presença dela não outorga me-

131
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

canicamente ao indivíduo uma compreensão crítica dos fundamentos e


da essência da realidade vivida – ao contrário, muitas vezes a vivência
obnubila a compreensão crítica –, tampouco a falta dela impede neces-
sariamente alguém de alcançar essa compreensão.
Trata-se, aqui, da diferença fulcral, no processo cognitivo, entre,
por um lado, a certeza sensível e a percepção (conforme Hegel, formas
de conhecimento imediato que devêm da mera experiência, de forma
vivencial, fenomênica e aparente; HEGEL, 1997, p. 63, 71 e ss.), assim
como o entendimento (tido por Hegel como “razão abstrata”, quando o
conhecimento intelectivo e racional procura o universal, mas sem sair
da sua aparência, não alcançando a essência das coisas, desenvolvendo
uma visão naturalizada delas; HEGEL, 1997, p. 82 e ss.), todas essas
formas de conhecimento tendo em geral como ponto de partida a vi-
vência / experiência (ou, poderíamos dizer, o “lugar de fala”) e, por
outro lado, a compreensão (que, segundo Weber, busca interpretar o real
“de maneira a obter uma explicação de suas causas, de seu curso e de
seus efeitos” [WEBER, 2008a, p. 11]) (ver item, 2.2). Ainda mais quando
a compreensão alcança o conhecimento crítico-dialético. Posso entender
um fato da realidade sem, porém, compreender seus fundamentos. Pos-
so, por exemplo, entender que “2+2=4”, como posso também entender
minha situação e condição, assim como a discriminação que paira so-
bre mim. No entanto, o entendimento dos fatos não me permite expli-
cá-los, interpretá-los, compreendê-los. É preciso, para tanto, ir além do
entendimento, além da vivência e da aparência dos fatos, e alcançar a
essência, as conexões causais. E isso pode ser alcançado tendo vivencia-
do os fatos ou não, tendo ou não o “lugar de fala” definido pelo “lugar
social”.
Portanto, a noção de “lugar de fala” leva, em primeiro lugar, à
absolutização da vivência ou do “lugar social”, como se essa experiência
fosse suficiente para a compreensão crítica dessa vivência, como se a
consciência crítica fosse um mero reflexo dela, numa clara apropria-
ção dos fundamentos pós-modernos sobre a relação entre vivência e
verdade.
Mas, ainda, em segundo lugar, o “lugar de fala” se aplica a uma
determinada relação (de uma “identidade” específica) dentre as diver-

132
CAPITULO 3

sas relações, “identidades”, lugares e circunstâncias que fazem parte


da vida dos sujeitos. E esse lugar garantiria um “ponto de vista” co-
mum. Assim, esse lugar único e específico estaria determinando toda
a compreensão do sujeito sobre um assunto. Por exemplo, em todo o
texto sobre o “lugar de fala”, não se menciona uma única vez a “classe
social” à que o sujeito pertence, como se ela não tivesse nada a ver tanto
com o “lugar social” quanto com a “compreensão” das pessoas, seja
como trabalhador assalariado ou como burguês, nas diversas outras
dimensões ou relações de sua vida: de gênero, de raça etc. É como se
ser operária ou burguesa em nada influenciasse o “lugar de fala” da
mulher.
Em terceiro lugar, o conceito de “lugar de fala” remete à noção
de identidade unidimensional, significando que a “localização social” de
onde falamos estaria constituindo uma compreensão única e absoluta
sobre as coisas, ignorando o papel da ideologia, da formação de cons-
ciência crítica, dos valores, das crenças religiosas, dos projetos sociais
universais, da capacidade de suspensão do cotidiano, dos meios e gru-
pos frequentados, do acesso ao conhecimento teórico crítico, das outras
vivências etc. Tudo isso, na verdade, pode fazer com que um “homem
branco cis” questione e até combata o machismo, o racismo, a LGBT-
fobia etc.
Isto é, ocupar o lugar dominante numa relação específica não im-
pede a compreensão crítica do processo, bem como ocupar o lugar
subalterno não garante essa compreensão. Há uma multiplicidade de
fatores, relações, visões de mundo, valores, ideologias, crenças, que
interferem na capacidade dos sujeitos de compreender a realidade, e
não apenas seu lugar na relação. Ser negro ou ser mulher, por exemplo,
significa viver a opressão, a discriminação e a desigualdade do racismo
e do machismo; porém a forma que essa vivência se traduz no saber
consciente é algo carregado de mediações.
O “ponto de vista” de uma pessoa não é resultado apenas do
“lugar que ela ocupa” numa única relação de poder. Muito pelo
contrário, ela pode estar numa posição subalterna e, por isso, sub-
metida a processos alienantes, a compreensões românticas, místicas,
mágicas e religiosas, à manipulação dos fatos etc., e apresentar uma

133
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

compreensão distorcida da própria realidade, funcional ao discurso


dominante. E vice-versa: ela pode ocupar um lugar privilegiado ou
dominante nessa relação, mas pela sua condição social ou de classe,
pela sua militância, pela sua ideologia etc., apresentar uma visão
crítica do fenômeno ou da relação de poder específica.
O “ponto de vista” é resultado de um processo multidimensio-
nal, e, portanto, o “lugar social” de uma relação de poder, que de-
terminaria o suposto “lugar de fala”, não produz necessariamente
um determinado “ponto de vista”, nem comum aos membros dessa
“identidade”, nem crítico da realidade.
Ainda mais, não basta a consciência ou autoimagem que o sujei-
to tem de si (ver item 2.2), por mais crítica e profunda que elas sejam,
para determinar o “lugar” e o “papel” que os indivíduos ocupam e
desempenham na sociedade. Não basta, portanto, a “identidade”
como autopercepção, como construção individual e coletiva do seu
ser, do seu lugar, da sua condição, da sua posição numa relação de
desigualdade e opressão.
Os “lugares” e as funções dos indivíduos na sociedade não são
autodeterminados; imaginar isso significa cair numa visão notoria-
mente voluntarista, que exacerba a força da autoconsciência e da au-
toimagem do sujeito sobre a determinação estrutural da realidade.
Pensar assim significa conceber que o indivíduo que se autopercebe
como sujeito, que constrói uma “identidade”, com isso se desvenci-
lha dos constrangimentos e das determinações sociais ao autorrefe-
rir-se e autoconstruir-se como sujeito.
O “lugar” (social) determina uma vivência específica, ou comum
a um grupo, porém não determina a consciência ou compreensão críti-
ca dos fundamentos dessa vivência, desse “lugar”, dessa condição.
Ao contrário, o “lugar” (social) pode produzir uma compreensão
alienada, ideologizada da condição do indivíduo, em que a subal-
ternização e dominação tendem a ser reproduzidos e naturalizados,
mesmo que gerem indignação (ver item 2.2). Assim, a “fala” a partir
do “lugar” (social), sem teoria crítica, jamais produzirá o pensamen-
to, a compreensão e a consciência crítica da realidade.
Como afirmaram Marx e Engels em A ideologia alemã (ver item

134
CAPITULO 3

4.3-A), “as ideias (Gedanken) da classe dominante são […] as ideias


dominantes”, ou seja, “a classe que tem à sua disposição os meios de
produção materiais, tem ao mesmo tempo os meios de produção
espiritual” para influenciar ideologicamente e transformar as ideias,
os valores e as visões de mundo próprios da classe e dos setores do-
minantes, em ideias, valores e visões de mundo socialmente aceitos
como “naturais”, como “normais”, como comuns. Assim, eles con-
tinuam, “as ideias dominantes não são mais que a expressão ideal
das relações materiais dominantes concebidas como ideias” (MARX
e ENGELS, 1993, p. 72).
Pensar, portanto, que a “identidade”, a partir do lugar social
que o indivíduo ocupa, constrói necessariamente um pensamento
crítico, comum, consciente da sua condição e situação, fundando
um determinado “lugar de fala” seu, significa desconsiderar as de-
terminações sociais não só do seu lugar, do seu papel e da sua fun-
ção social – ou da sua posição na relação de opressão –, mas também
desconsiderar as determinações da própria consciência e da capaci-
dade de compreensão do seu próprio ser.
Bastaria, nessa concepção voluntarista do “lugar de fala”, que o
sujeito criasse uma “identidade” para que ele tivesse a consciência
comum e homogênea (com seus semelhantes) do seu “lugar”, da sua
“fala”.
Assim, o “lugar de fala”, nessa concepção, seria determinado
pelo “lugar social”. Portanto, essa noção de “lugar de fala” implica
imaginar que do “lugar social” que o indivíduo ocupa emana um
determinado e comum (a todos os que compartilham o mesmo “lu-
gar social”) conhecimento crítico sobre sua situação particular, e so-
bre o mundo. Há, aqui, um claro determinismo absoluto do “lugar”
sobre a “fala”, sobre o sujeito. Nesse processo, o sujeito desvanece em
face do seu lugar, tornando-se um mero reflexo da sua posição / con-
dição social, um sujeito, comum, homogêneo, sem subjetividade.
O conhecimento e a fala seriam mero reflexo do lugar.
Enfim, para termos uma compreensão crítica, profunda e fun-
damentada da situação vivida, a mera vivência não basta. Ela ape-
nas nos proporciona as emoções, a experiência, a visão fenomênica,

135
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

aparente e, como diria Kosik (1976), pseudoconcreta. Para alcançar


o conhecimento crítico da realidade, dos seus fundamentos, da sua
essência – para alcançar a raiz do fenômeno (MARX, 2005, p. 151)
–, é essencial a superação ou “suspensão” teórico-científica da vi-
vência, do plano fenomênico, factual, saturando de determinações
e particularidades o fenômeno ou a situação em questão, desenvol-
vendo uma visão da totalidade (ver MARX, 1977, p. 218-221; LUKÁ-
CS, 1966, p. 50; KOSIK, 1976, p.73, 77; HELLER, 1991, p. 34; 2014, p.
41 e ss.).

D) Só quem vivencia uma situação ou pertence a uma


“identidade” tem direito à fala?
Outro aspecto em geral presente no conceito de “lugar de fala” é
a suposição de que só está habilitado a falar sobre uma condição ou situa-
ção aquele que está sob essa condição ou vivencia essa situação, a partir da
“identidade” que lhe é própria. Isto é, os “outros” não podem falar
a respeito do “nós”.
O equívoco do “lugar de fala” é chegar a pressupor que para
compreender a pobreza (ao tratar dela), o sujeito (pesquisador) deve
ser pobre. Compreender (teoricamente) seria equivalente a vivenciar
(empiricamente). Pressupõe-se aqui, muito ao gosto do irracionalis-
mo pós-moderno, que a vivência ou a experiência vivida produziriam
necessariamente a capacidade de compreensão e interpretação crítica
da realidade. E ainda mais, de que apenas quem possui essa vivência
pode falar sobre ela. Isto é, quem não tem essa experiência de vida,
quem não apresenta determinada “identidade”, não teria capacidade,
idoneidade e competência para compreender e interpretar a realida-
de alheia, e portanto não tem autoridade para falar.
O que se afirma com a noção de “lugar de fala” é que a capacidade
de conhecimento crítico e de interpretação da realidade resulta neces-
sariamente da vivência pessoal.
Ora, sentir e saber não são a mesma coisa, e nem necessariamente
confluem. Quem padece ou vivencia uma situação, uma condição social,
uma forma de opressão, discriminação ou desigualdade, certamente é
o único que pode falar sobre seus sentimentos, sobre como se sente e o

136
CAPITULO 3

que sente; porém isso não quer dizer que ele seja, pela mera condição
ou vivência, o melhor para compreender os fundamentos dessa realidade
de forma crítica. Para isso é necessário superar, ir além da realidade
vivida, atrelando-a à totalidade social que a contém e a determina his-
toricamente.
Contra essa noção de que todo sujeito que possuir certa vivência /
identidade (e apenas ele) é naturalmente capaz de conhecer e interpretar
sua realidade, citemos dois exemplos marx-engelsianos importantes:
Primeiramente, Engels faz uma opção pelo engajamento na luta
do proletariado, não pertencendo a essa classe nem a essa condição so-
cial, mas tendo nascido numa família burguesa industrial. Pelo alcan-
ce do “lugar de fala”, Engels nada poderia dizer sobre o proletariado,
pois apenas os trabalhadores podem falar por eles. Nem todo mem-
bro que pertence à “identidade” ou que possui uma “experiência de
vida” determinada mecanicamente alcançará o conhecimento crítico e
radical da sua realidade. E nem todo sujeito alheio à “identidade” ne-
cessariamente não tem nada a dizer sobre ela. O que a vivência nos dá
são sensações, percepções, sentimentos e o conhecimento imediato da
aparência, do manifesto, da realidade pseudoconcreta. Para alcançar
os fundamentos da realidade, para chegar à raiz dos fenômenos, para
superar a singularidade e a particularidade, e alcançar a totalidade, é
preciso ir além da mera vivência, superando e suspendendo a vivência
cotidiana.
Em segundo lugar, ao ser criticado pelos leitores alemães de que O
capital trataria apenas da realidade inglesa, em nada contribuindo para
o conhecimento da sociedade alemã, Marx lhes responde: “De te fabula
narratur!” [É de vocês que este texto fala!] (1980, p. 5), garantindo que,
mesmo não tratando da realidade empírica e concreta da Alemanha e
sim da inglesa, o livro trata dos fundamentos do capitalismo, ilumi-
nando o conhecimento d essa realidade. O conhecimento acumulado, e
não apenas o vivencial, o experimental, é fundamental para alcançar a
totalidade, os fundamentos e a essência da realidade.
Porém “totalidade” e fundamentos são questões expressamente
repelidas pela racionalidade pós-moderna!

137
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Aqueles que forem silenciados, pertençam a um grupo ou a outro,


finalmente se levantarão para dar voz às suas ideias e aos seus sen-
timentos, seja numa rebelião antiopressiva ou num surto protofascis-
ta, como o fenômeno do bolsonarismo no Brasil. Como afirma Idelber
Avelar (2020), em seu artigo “A rebelião do eles: Léxico, morfologia e
sintaxe do fascismo bolsonarista”: “Uma das características retóricas
essenciais do bolsonarismo é a necessidade permanente de uma estru-
tura antagônica”, pois “não há bolsonarismo sem a permanente produ-
ção de antagonismos”. Assim, conforme o autor: “O bolsonarismo se
cacifa e se legitima, em amplos setores da sociedade brasileira, como
uma rebelião dos eternamente designados como ‘eles’”.12

E) A vítima ou o oprimido sempre tem a verdade?


Francisco Bosco (2017) questiona em seu livro: “A vítima tem
sempre razão?”. A pergunta apresenta algo que costuma não ser ques-
tionado. Pressupõe-se, com costumeira frequência, que a vítima tenha
sempre razão. Assim, quando há uma vítima declarada, o direito de
defesa pareceria ser uma desnecessária perda de tempo, e a presunção
de inocência, um certo “vício de impunidade”.
Ora, em toda relação sempre há uma verdade e pelo menos duas
versões. E nem sempre a verdade contida na realidade corresponde ple-
namente a uma das versões. Mesmo a versão da denominada vítima
nem sempre, e nem plenamente, corresponde à verdade. Porém tende-
mos, não poucas vezes, a identificar liminarmente a versão da declarada
vítima com a verdade.
O devido processo – a presunção de inocência, o contraditório, o
direito à defesa e a constituir provas etc. – vem justamente para tentar
evitar a liminar identificação de uma das versões como sendo a verda-
de.
De forma alguma isto significa cair no relativismo ou fazer qual-
quer concessão à impunidade.
Ao contrário, o devido processo é uma conquista dos setores opri-
midos, populares, das classes trabalhadoras, como garantia de justiça
12 Disponível em: <https://estadodaarte.estadao.com.br/rebeliao-eles-fascismo-bolsonarista-
idelber-avelar/>, acesso em jul. de 2020.

138
CAPITULO 3

contra as condenações liminares por parte de quem controla o poder


(punitivo) do Estado: as elites, as classes e os setores socialmente do-
minantes. É contra o poder inquisidor da Igreja na caça às “bruxas”,
contra o poder absoluto do Estado monárquico, contra o poder da gui-
lhotina do Tribunal Revolucionário da Revolução Francesa, contra os
tribunais de justiça brancos no apartheid sul-africano e contra a justiça
burguesa na condenação de Sacco e Vanzetti etc. É contra tudo isso que
o devido processo se constituiu como uma conquista civilizatória das
lutas e demandas dos setores populares, dos de baixo.
Assim, mesmo quando tomamos o partido da vítima, condenar ou
esvaziar o devido processo representa uma profunda regressão e um
largo retrocesso na garantia, particular e principalmente, dos setores
menos poderosos, dos subalternos, das minorias.
Ainda mais, porquanto estamos falando de “identidades” – en-
quanto elaborações simbólicas e imagens subjetiva, coletiva, social e
culturalmente construídas –, como já vimos (STANLEY, 2019, p. 97 e
ss.; ECO, 2018, p. 49-50; ver itens 2.6-B e C), também setores dominantes
ou opressores muitas vezes constroem sua identidade a partir da autoi-
dentificação como “vítima”, vendo o outro como “ameaça” ou “risco à
ordem”.
Nesse sentido, se descartarmos a verdade material e objetiva da
realidade – se apenas concebermos a “identidade” como algo cultural
e subjetivamente construído, como uma autoimagem –, encontraremos
sujeitos de ambos os lados da relação que se entendem e se apresentam
como “vítimas”. A vitimização é um processo que serve também aos se-
tores dominantes / opressores das relações particulares: o trabalhador
local se sente ameaçado pelo imigrante, o religioso ortodoxo sente que
seus valores são ameaçados pelas conquistas sociais, o trabalhador da
“classe média” se sente ameaçado pelo aumento de tributos para finan-
ciar políticas focalizadas etc.
Isto é, a verdade (objetiva) não pode ser atribuída mecânica e au-
tomaticamente, nem sempre e plenamente, à declarada vítima, iden-
tificando liminarmente a verdade com a “versão” da vítima, com sua
“fala” a partir do seu “lugar”, a partir do seu “lugar de fala”.

139
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

F) Alguns argumentos críticos sobre o “lugar de fala”


Gomes (2019) apresenta alguns argumentos “contra a ferramenta
ideológica do ‘lugar de fala’”, dos quais destacamos:
Tratando o “lugar de fala” como um novo “fundamentalismo políti-
co” de “dogmáticos e intolerantes”, para o qual se concedem “prerroga-
tivas de superioridade moral”, ele sustenta que o “lugar de fala” de uns
constitui o “lugar do ‘cale-se’” daqueles que não pertencem à identidade
em questão, derivando no “monopólio da fala”. Conforme o autor, ain-
da, “a artimanha principal das reivindicações do ‘lugar de fala’ consiste
em punir ou recompensar indivíduos singulares em virtude da classe de
indivíduos em que eles se situam”, disfarçando a “intolerância” ao outro,
e levando ao patrulhamento da “identidade”. Nesse sentido, ele afirma,
“a ideologia do ‘lugar de fala’ virou adversária do pluralismo, das dife-
renças e da tolerância”. No debate, a verdade, as provas e os argumentos
ficam em segundo plano, pois “o que realmente importa” é a que “espé-
cie identitária” pertence cada um. A fala será ouvida e incorporada, ou
rejeitada, em função da “identidade” do falante. Finalmente, ele afirma,
se a esquerda criou a expressão “lugar de fala”, ela apenas é eficiente no
campo da própria esquerda, já que a “extrema-direita […] é imune aos
constrangimentos das reivindicações do lugar de fala”, concluindo que
“o ‘lugar de fala’ se transformou em mais uma das formas com que a es-
querda se autodevora”. É o que conclui o também professor Luis Felipe
Miguel (2017), ao afirmar que “o ‘lugar de fala’ serve para obstruir as
articulações entre [os diversos] grupos dominados e afastar, até mesmo
pintar com as cores do inimigo, aqueles que [mesmo não pertencendo
à identidade em questão, ao ‘lugar de fala’] poderiam ser seus aliados”.
Em síntese, alguns comentários críticos sobre a expressão “lugar
de fala” e seu uso político precisam ser apresentados.
Por um lado, como já mencionamos, se a origem da expressão visa
reivindicar o direito de voz e fala aos subalternos, hoje o mesmo sen-
tido, o de que apenas os membros de uma “identidade” podem falar
sobre um assunto relativo a ela, restringindo a palavra a todo ator ex-
terno, é empregado por grupos dominantes.
Por outro lado, se bem é verdade que a corrente pós-moderna sem-
pre tem reivindicado a necessidade de dar espaço às múltiplas e di-

140
CAPITULO 3

versas vozes – e há um aspecto extremamente positivo e progressista


nessa proposta política –, no entanto, essas vozes praticamente têm se
restringido à individualidade, à singularidade, sem qualquer possibili-
dade de construir uma teoria e uma ação de caráter universal.
Um terceiro aspecto a destacar é que o atual uso político da expres-
são “lugar de fala” foi além do direito à voz e fala dos subalternos, da
autorrepresentação, da autocompreensão, e passou a incorporar a no-
ção de que só o subalterno pode falar sobre sua condição (como trataremos
a seguir). Assim, do direito à voz e fala dos subalternos passou-se para a
proibição ou desqualificação da voz e fala do “outro”. Nesse sentido, confor-
me Gomes,
da reivindicação de falar por si mesmos, de não ser reduzidos
perenemente à condição de objeto ou assunto, chegou-se rapi-
damente à reivindicação de superioridade absoluta da autor-
representação, à interdição da fala que não se situa na minoria
[subalterna] (2019).

Dessa forma, o uso que foi dado à expressão “lugar de fala” se des-
locou da origem progressista – “é preciso que o subalterno tenha direito à
voz, para que fale em seu nome” – para uma compreensão tão extremista
como equivocada – “quem não tem a vivência particular subalterna não po-
derá compreender os meandros da mesma e, portanto, falar sobre ela”.
Esse pressuposto contido na compreensão do “lugar de fala” é,
ainda, politicamente errado, pois parte do princípio de que é só a partir
desse “lugar de fala”, ou seja, da presença de atributos identitários, que
a realidade específica poderá ser compreendida, desprezando qual-
quer conhecimento externo e impedindo qualquer forma de solidariedade,
de engajamento na luta particular e de articulação política. Isto é, desse
ponto de vista, o homem não só não poderá compreender a situação
da mulher numa sociedade patriarcal, como também não poderá falar
sobre essa questão, e, portanto, não poderá se somar à luta contra o ma-
chismo. O mesmo vale para qualquer outra “identidade”, em que o di-
ferente é tido como inimigo e não possui “lugar de fala”, não podendo
se somar à luta dos oprimidos. E ainda, as causas particulares, a partir
das diversas formas de opressão, de desigualdade e de discriminação,

141
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

também não poderão desenvolver uma solidariedade entre elas, não


podendo se articular numa luta conjunta.
Muitas vezes, o debate e o confronto sólido de ideias são elimina-
dos e substituídos pelo juízo moral, que anula o “outro”, em função
do não pertencimento ao “lugar de fala” exigido. Nesse caso, não só a
fala (os argumentos, as ideias) do outro é descartada, desmoralizada
e desautorizada – como a fala de uma “identidade” contrária –, mas
o próprio interlocutor é, em si, desmoralizado e descartado – trata-
do como “inimigo” a ser eliminado. Busca-se, em vez do debate, do
confronto de ideias, “lacrar” (expressão usada no campo progressista
para encerrar o debate mediante a desqualificação do “outro”, ape-
lando à emoção dos “semelhantes”) ou “mitar” (sinônimo do anterior,
mas usado no campo conservador). O conteúdo argumentativo nem
entra em questão, nem é objeto de polêmica, nem é submetido à críti-
ca – é simplesmente descartado pelo juízo moral que devém da lógica
e do uso do dito “lugar de fala”.
Dessa forma, a lógica que contém a noção de “lugar de fala” con-
dena a luta e a defesa das “pautas” particulares a permanecerem res-
tritas aos grupos identitários, sem jamais poderem se tornar uma causa
social ampla. Jamais a luta feminista pela igualdade de gênero poderia
ser abraçada por homens, jamais a luta contra o racismo poderia ser
desenvolvida por brancos etc.
É fundamental que os membros das ditas “minorias”, dos grupos
subalternos, daqueles que padecem das diversas formas de opressão,
dominação, desigualdade ou discriminação possam ter voz própria e
autônoma. Mas a luta pelas causas particulares que visam à igualdade
social em todas as dimensões não podem se restringir ao grupo parti-
cular, sob o risco de ser isolada. Ao contrário, ela deve constituir uma
bandeira civilizatória e humanista para o conjunto da sociedade. Sem
essa apropriação, jamais ela será uma luta universal, continuando a ser
eternamente uma luta restrita a um grupo, a uma minoria.
Outra questão derivada da anterior é como o “lugar de fala” anula
o debate de ideias, que é substituído pela destruição do “outro”. Não
o confronto com os argumentos do outro, não o debate ou a polêmica
entre reflexões, mesmo que ética e politicamente posicionados e diver-

142
CAPITULO 3

gentes, mas a destruição da credibilidade e da legitimidade do outro


como interlocutor. O debate, ou até a disputa de ideias, é substituído
pelo confronto, pela anulação e pela aniquilação do sujeito. Não se bate
nos argumentos, mas no interlocutor, na pessoa. Trata-se, portanto, de
um “debate sem debate”. O guru da extrema-direita brasileira, o astró-
logo Olavo de Carvalho, afirmou em seu curso de “filosofia” – confor-
me relata o jornalista Denis Russo Burgierman, que assistira suas aulas,
afirmou: “É aí que está o erro do pessoal conservador: imaginar que
existe uma luta de ideias e que temos de derrotar o marxismo. Temos
de derrotar é os marxistas”; e continuou: “Não puxem discussão de
ideias. Investiguem alguma sacanagem do sujeito e destrua-o”; com-
pletando: “Nós não discutimos para provar que o adversário está erra-
do. Discutimos para destruí-lo socialmente, psicologicamente, econo-
micamente”.13
Ao que tudo indica, esse método da extrema-direita vem sendo
amplamente usado pela esquerda pós-moderna. Aqui, o “cancelamen-
to”, o escracho, o linchamento público, virtual ou real (essas ações só
podem ser dirigidas a indivíduos ou pequenos grupos; não se “can-
cela” uma cultura), são métodos de destruição do indivíduo presentes
tanto no campo progressista (na polarizadora “lógica identitarista”
pós-moderna) como no conservador (voltaremos a isso no item 4.1-F).
Um último aspecto a destacar é que o sentido de “verdade” será
atribuído em função do “lugar de fala”. O efeito concreto disso é que
as pessoas repelirão ou aceitarão as falas de um interlocutor em função
do lugar dele; algo como: se o discurso é realizado por alguém do meu
“lugar” (da minha “identidade”), ele será aceito; porém se for realiza-
do por alguém de outro “lugar” (alheio à minha “identidade”), ele será
rejeitado. Em ambos os casos, a aceitação ou a rejeição, são feitas acriti-
camente. Esse processo, portanto, relativiza o sentido da verdade e sua
conexão com a realidade objetiva, material, desencadeando o que será
conhecido como “pós-verdade”.
Enfim, por um lado, o resultado teórico do chamado “lugar de fala”
é que no campo progressista não há mais diálogo, debate ou discussão
13 Ver em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-olavismo-a-ascensao-e-a-queda-do-
bolsonarismo/>; acesso em: out. de 2020.

143
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de ideias entre diferentes “identidades”, ficando cada uma com a sua


“verdade”, com a sua pauta, com a sua luta. Já, por outro lado, o re-
sultado político geral do “lugar de fala” é que a esquerda acaba sendo
esfacelada, rasgada, desarticulada e internamente enfrentada.

3.2- A “pós-verdade” como expressão da “realidade concebida”


e objeto de ação política

A noção de “pós-verdade” é recente e pouco conhecida, mas diz


muito sobre a forma que o irracionalismo pós-moderno concebe a
verdade, e ela impacta na compreensão do real e na ação política.
Trata-se de mais um dos fundamentos claramente atrelados à “lógica
identitarista”.

A) Verdade e “pós-verdade”
Da “alegoria da caverna” de Platão a Matrix, passando por Descar-
tes, Kant, Hegel, Marx etc., o conceito de verdade está em questão: o que
é o real? O que é o conhecimento verdadeiro?
O conceito de “verdade” remete a dois momentos, ou possui duas
dimensões fundamentais. Por um lado, representa a realidade objetiva,
material, a realidade dos fatos, o ser-realmente-existente; trata-se da “ver-
dade das coisas”, representando a dimensão concreta. Por outro lado, diz
respeito ao conhecimento que temos sobre essa realidade e a como esse
conhecimento expressa, reflete ou reproduz a realidade no nosso pen-
samento, ou seja, em que medida esse conhecimento é “verdadeiro”, fiel
ao real, representando aqui a dimensão cognitiva, intelectiva, subjetiva.
Essas dimensões objetiva e subjetiva constituem, portanto, dois
momentos da “verdade”, certamente relacionados, porém notoriamen-
te diferentes. E as diversas correntes filosóficas e cognitivas abordarão
diferentemente tanto uma como a outra, concebendo a existência da
objetividade do real (como as correntes modernas, do positivismo ao
marxismo), ou a sua recusa e a concepção do real como mera represen-
tação subjetiva, simbólica (como o irracionalismo pós-moderno), com-
preendendo o conhecimento desde o ceticismo e o relativismo cogniti-
vo, a neutralidade científica e axiológica, ou o conhecimento engajado.

144
CAPITULO 3

A noção de “pós-verdade” se opõe a essa diversa tradição filosófica


racionalista de “verdade”, dissociando o “conhecimento” e a “verdade”
da “realidade” material. Ela se funda no irracionalismo, de Nietzsche,
para quem “não há fatos, apenas interpretações” (apud D’ANCONA,
2018, p. 24), ao pensamento pós-moderno, que vincula a “realidade” à
“vivência” individual.
Na esteira dessa interpretação irracionalista (e antimoderna), a
noção de “pós-verdade” produzirá um hiato, um divórcio, uma au-
tonomização, uma dissociação entre a “verdade das coisas”, ou “rea-
lidade objetiva”, e o “conhecimento (considerado) verdadeiro”. Ou
seja, o último não precisaria estar de acordo com o primeiro – o co-
nhecimento não precisaria estar ancorado na realidade, mas na sua
“narrativa”.
E quando o conhecimento não está ancorado na realidade dos fa-
tos, a “verdade” cede lugar e é substituída ora pela falsidade (ou menti-
ra), ora pela ilusão, ora pela ficção.
Hoje, ainda, ocorre a substituição da realidade (material, empírica)
pela realidade virtual. A realidade cede lugar à virtualidade e, na mesma pro-
porção e em decorrência disso, a “verdade” cede lugar à “pós-verdade”.
Para Dunker (in DUNKER e TEZZA et alii, 2018, p. 18), enquanto
uma “nova expressão cognitiva” irracionalista, “a versão contemporâ-
nea da pós-verdade retoma, de maneira modificada, vários aspectos
pré-modernos da verdade, ou seja, uma verdade inflacionada de sub-
jetividade, mas sem nenhum sujeito”. Conforme o autor, o fenômeno
da “pós-verdade” é mais complexo do que uma “suspensão completa
da referência a fatos e verificações objetivas, substituídas por opiniões”,
pois ele “envolve uma combinação calculada de observações corretas,
interpretações plausíveis e fontes confiáveis em uma mistura que é, no
conjunto, absolutamente falsa e interesseira” (ibidem, p. 38), na medida
em que “transfere a autoridade da ciência ou do jornalismo sério para
a produção e as opiniões” (ibidem, 39).
A verdade, como conhecimento atrelado à realidade e alicerçado
na confiança da relação entre o real e sua representação cognitiva, passa a
ser concebida como algo desvinculado da materialidade, e agora, como
“pós-verdade”, sustenta-se na confiança com o interlocutor.

145
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, transmutada em “pós-verdade”, a “verdade” não será mais


alcançada a partir do conhecimento da realidade, mas da “narrativa” e da
confiança depositada no narrador. Prova material e argumento racional são
substituídos por crença e fé.
Não é mais preciso recorrer à realidade para buscar o dado com-
probatório, pois ele é encontrado na internet, o enorme mercado de
ofertas de “dados” (e opiniões) tão diversos e variados, onde se pode
escolher aquele mais conveniente ou mais agradável. Se a comprovação
da “verdade” é o resultado da equiparação do conhecimento com a
realidade (a partir de um método científico), a aceitação e plausibili-
dade da “pós-verdade” é o resultado da escolha entre “narrativas” (a
partir da fé, da conveniência e da confiança no narrador).
Na “pós-verdade”, pouco importa a materialidade ontológica ou
empírica dos fatos, pouco importa a existência real dos fatos, a verdade
da coisa-em-si. O que importa aqui é no que cada um acredita desses
fatos. Se uma afirmativa ou narrativa desperta a crença subjetiva das
pessoas, mesmo não sendo empiricamente comprovada (podendo ser
até bastante improvável), ela se torna “plausível”, aceitável.
É o caminho oposto do conhecimento científico. Trata-se de um
“conhecimento” da “verdade” mais próximo da crença religiosa, no
qual a verdade se sustenta na “fé” e não nas provas empíricas. Aliás,
a fé não só não precisa de provas materiais, como é incompatível com
elas. Na religião, quem exigir provas da existência de deus é um “ho-
mem de pouca fé”. De igual forma, quem exigir provas sobre as afirma-
ções de um membro do seu grupo identitário, será igualmente repreen-
dido. Em ambos os casos deve bastar a fé, a crença, a confiança.
Nesse sentido, como afirma D’Ancona, “muitas vezes, rejeitamos
[…] aqueles que se atrevem a discordar. A consequência é que as opi-
niões tendem a ser reforçadas, e as mentiras, incontestadas” (2018, p. 53).
Por tudo isso, e em função da relevância contemporânea desse
processo, o termo “pós-verdade” foi escolhido em 2016 como a “pala-
vra do ano” pelo Dicionário Oxford, da Inglaterra. Nele, a pós-verdade
é definida como “circunstâncias em que os fatos objetivos são menos
influentes em formar a opinião pública do que os apelos à emoção e à
crença pessoal” (D’ANCONA, 2018, p. 20). E é a partir daí que o jorna-

146
CAPITULO 3

lista britânico Matthew D’Ancona vai publicar o estudo crítico Pós-ver-


dade: A nova guerra contra os fatos em tempos de Fake News.

B) Os fundamentos da “pós-verdade”
É a partir dessa caracterização que o conceito de “pós-verdade”
ganha notoriedade e força, expressando um fenômeno que recen­
temente assumiu relevância cognitiva e política. Não se trata de um
termo pós-moderno, mas que certamente expressa como o irraciona-
lismo pós-moderno concebe e lida com a verdade, passando a consti-
tuir vivamente a sua “lógica identitarista”. Comecemos, pois, salien-
tando alguns aspectos dessa corrente de pensamento, para em seguida
tratar diretamente do significado e do alcance da “pós-verdade”.
a) O irracionalismo pós-moderno. Conforme aponta D’Ancona,
a “pós-verdade” tem “uma base na filosofia pós-moderna do final do
século XX” (2018, p. 84), claramente orientada para a “esquerda desi-
ludida” (ibidem, p. 88) ou para a “classe média frustrada” da qual fala
Umberto Eco (2018, p. 50). Já para Christian Dunker (in DUNKER e
TEZZA et alii, 2018), mesmo que para ele “fica claro que a pós-verda-
de não pode ser pensada apenas como expressão e desdobramento de
uma cultura pós-moderna” ‒ estando também presente em vertentes
neoliberais e ultraconservadoras ‒, no entanto, também afirma que “a
pós-modernidade é a condição ideológica a partir da qual a pós-verda-
de pode emergir como uma espécie de reação regressiva”, aproveitan-
do-se “de uma percepção social de que há um excesso de indefinições
contido em termos como: politicamente correto, relativismo, multicul-
turalismo, igualitarismo, coletivismo, ecologismo e secularismo” (ibi-
dem, p. 40-41). Para ele, “a pós-verdade é o falso contrário necessário
do pós-modernismo” (ibidem, p. 12), uma “espécie de segunda onda do
pós-modernismo” (ibidem, p. 13).
Portanto, os fundamentos da “pós-verdade” podem, em parte, ser
encontrados nos fundamentos da razão pós-moderna.
Existem vertentes pós-modernas tanto de orientação política pro-
gressista como de orientação conservadora, que D’Ancona chama de
“pós-modernismo bom e mau” (2018, p. 84), mas que confluem nos
seus fundamentos filosóficos e cognitivos. Vejamos.

147
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

A racionalidade pós-moderna, em relação ao conhecimento racio-


nal da realidade, apresenta um forte apelo ao “relativismo cognitivo”.
Nessa racionalidade não existe a realidade material, objetiva, mas so-
mente sua vivência; portanto, não existe a “verdade objetiva”, mas as
“verdades subjetivas”, motivo pelo qual, na contramão da Modernida-
de, trata-se efetivamente de um irracionalismo.
Porém esse relativismo acaba desaguando ou na negação ou na
total relativização do conhecimento científico moderno (isto é, susten-
tado na razão), tal como afirma Boaventura de Sousa Santos ao defen-
der que “a ciência em geral e as ciências sociais em especial atraves-
sam hoje uma profunda crise de confiança epistemológica” (2005, p.
14), concluindo sobre o suposto exaurimento do “paradigma da ciência
moderna” (ibidem, p. 25).
Dessa forma, dois pilares centrais sustentam o prédio filosófico do
irracionalismo pós-moderno. Por um lado, a negação da materialidade
objetiva do real, reduzido a uma interpretação ou representação sub-
jetiva. Por outro lado, a negação (ou descrença) das “metanarrativas”
ou “macroteorias” totalizantes, ou seja, das teorias universais, substi-
tuídas por conhecimentos fragmentários e transitórios de retalhos da
realidade (ver, por exemplo, LYOTARD, 1993).
Para Lyotard (1993), as metanarrativas, próprias do Iluminismo
e da Modernidade, como “razão”, “progresso” e “verdade”, e as teo-
rias “totalizantes”, não são mais adequadas à condição pós-moderna
da sociedade contemporânea, voltando-se para as pequenas narrativas
individuais.
Dessa forma, conforme afirma D’Ancona, em sintonia com diver-
sos críticos da pós-modernidade, “ao questionar a própria noção da
realidade objetiva, desgastaram muito a noção de verdade” (2018, p. 85). A
verdade, amparada no conhecimento científico sobre a realidade ma-
terial, e portanto a própria cientificidade, começam a ser minadas pelo
irracionalismo pós-moderno, desaguando na “pós-verdade”.
Assim, o “relativismo cognitivo” assume contornos e dimensões
centrais no irracionalismo pós-moderno, que vai confluir na atribuição
da “verdade”, não mais à materialidade objetiva do real, mas à interpreta-
ção vivencial dos sujeitos; por esse motivo, não haveria mais a verdade,

148
CAPITULO 3

mas as verdades de cada indivíduo. Dessa forma, para o mesmo autor,


“se tudo é um ‘constructo social’, então, quem vai dizer o que é falso?”
(2018, p. 85). Isto é, em face do absoluto relativismo cognitivo, não há
como afirmar o que é falso e o que é verdadeiro, a não ser a partir da
convicção individual. Essa verdadeira indefinição ou indiferenciação
entre “verdadeiro” e “falso” constitui fecunda base epistemológica
para o desenvolvimento da chamada “pós-verdade”.
Para Boaventura de Sousa Santos, “a verdade é a luta de verdades”
(1989, p. 95), havendo assim a disputa das teorias por uma “dupla ver-
dade”, entre a “verdade científica” e a “verdade social” (ibidem, p. 96).
Assim, esse autor afirma que “a verdade é a retórica da verdade”
(ibidem), sugerindo uma verdade muito mais sustentada na retórica,
na narrativa, do que na realidade material. Dessa forma, ao conceber a
“verdade científica” amparada não na realidade material, mas no con-
senso científico, Santos afirma que: “Se a verdade é o resultado, pro-
visório e momentâneo, da negociação de sentido que tem lugar na co-
munidade científica, a verdade é intersubjetiva e, uma vez que essa inter-
subjetividade é discursiva, o discurso retórico é o campo privilegiado
da negociação de sentido. A verdade é, pois, o efeito de convencimento
dos vários discursos” (ibidem, p. 96). Temos assim uma noção de “ver-
dade” completamente distanciada da realidade material, mas apenas
embasada em retórica, discurso, negociação intersubjetiva. É aqui que
o irracionalismo pós-moderno se expressa em todas suas dimensões.
Assim, conforme o marxista e crítico da pós-modernidade Fredric
Jameson, a teoria pós-moderna não visa à descoberta da verdade (do
real), ela é o resultado de uma “luta acerca de formulações puramente
linguísticas” (1991, p. 105).
A verdade (da coisa-em-si) passa a ser substituída pelo “signo”
(no discurso ou na comunicação).
O signo, no processo comunicacional, compõe-se do “significan-
te” (o “veículo material” da comunicação: a imagem, a voz ou a pala-
vra escrita) e do “significado” (a imagem mental que o receptor faz da
comunicação, o sentido atribuído à mensagem, a interpretação). Aqui,
segundo afirma Jameson, o “referente” ou objeto externo do signo, a
coisa-em-si, a realidade material, passa a ser excluído, “embora con-

149
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

tinue a rondá-la como pós-efeito residual fantasmagórico (ilusão ou


ideologia)” (ibidem, p. 108).
Para o autor, os “teóricos do signo” (os teóricos pós-modernos)
deslizam de uma concepção do referente como o “objeto real”, a coi-
sa-em-si, externa ao signo (unidade do significante e do significado),
para “uma posição em que o próprio Significado – ou o sentido […]
– torna-se de alguma maneira identificado como o referente” (ibidem,
p. 109). Isto é, a realidade material (o “referente”) já não importa mais na
elaboração da ideia (o “significado”, o sentido, a representação mental).
O significado se torna autorreferenciado. A ideia, o conhecimento, a
teoria, já não terão mais como referência a realidade material, mas a
própria ideia ou o próprio sentido do sujeito. A realidade objetiva per-
de importância para a subjetividade.
Dessa forma, como derivação dessa ruptura filosófica ou gnosiológica
com a realidade objetiva, a política pós-moderna passa a abandonar qual-
quer projeto de transformação da realidade social (objetiva), focando-se em
mudanças subjetivas, culturais, simbólicas: “Mude a si mesmo antes de
querer mudar o mundo!”, “A verdadeira transformação está em você!”.
Assim, o “signo”, conforme Jameson, passa a constituir “uma
imagem útil do processo de transformação da cultura em geral, que
deve, num primeiro momento […], separar-se do referente [realidade
objetiva] – o mundo existente e histórico” (ibidem, p. 109), e, num se-
gundo momento, chegar à completa autonomia do signo em relação
ao referente, fazendo o signo ser autorreferenciado (ibidem, p. 110), en-
quanto o referente passa a ser considerado como “um mito” inexistente
(ibidem, 113). Para o autor, “num primeiro momento a reificação ‘libe-
rou’ o Signo de seu referente”; o discurso, o conhecimento, a teoria, já
não têm referente na realidade, autonomizando-se o “signo”. Porém,
num segundo momento, o próprio “signo” (da comunicação) dissocia
as partes que o constituem, “libertando o Significante do Significado,
ou do próprio sentido” (ibidem, p. 113-114). Assim, como afirma, esse
“jogo” (a intercomunicação) já não é mais “de um domínio de Signos,
mas de Significantes puros ou literais, libertos dos lastros de seus Sig-
nificados, de seus antigos sentidos”, gerando um “novo tipo de textua-
lidade” e projetando a “miragem de linguagem última de puros Signi-

150
CAPITULO 3

ficantes que é frequentemente associada ao discurso esquizofrênico”


(ibidem, p. 114). Nesse segundo momento, da “cultura do Significante
ou do Simulacro” deriva “uma certa ‘autonomia’ da esfera cultural”
(ibidem).
Isto é, primeiramente o signo (composto de um significante e de
um significado) se dissocia do referente (da realidade material e objeti-
va). Mas, num segundo momento, o próprio signo passa a dissociar o
significado do significante. A comunicação e, portanto, todo o conheci-
mento se resume à troca de significantes, que não estão apenas libertos
da realidade material e objetiva, mas também dissociados do significa-
do. Só nos resta o significante, a palavra, a voz, a expressão, a narrativa.
A partir desse processo, Jameson caracteriza a pós-modernidade
como “uma sociedade do espetáculo, da imagem, ou do simulacro”,
onde finalmente tudo “tornou-se cultural, desde as superestruturas aos
mecanismos da própria infraestrutura” (ibidem, p. 115).
b) O papel da “narrativa” e do “relato” na “pós-verdade”. A
“pós-verdade”, portanto, não se funda no conhecimento (empírico,
racional) da realidade, mas nas “narrativas” (discursos ou versões) e na
crença ou identificação de cada um com elas.
Na esteira disso, Jean-François Lyotard (1993) distingue o “saber
científico” (ibidem, p. 59) do “saber narrativo” (ibidem, p. 49) – tal como
Santos diferencia a “verdade científica” da “verdade social” (SANTOS,
1989, p. 96). Lyotard admite tanto os “relatos populares” (LYOTARD,
1993, p. 52), como a “pluralidade de jogos de linguagem” (ibidem).
Isto é, a “verdade social” (para Santos) ou o “saber narrativo” (para
Lyotard) tratam de verdades / saberes que não se amparam na realida-
de objetiva, mas na retórica, na linguagem, na narrativa.
Como afirma D’Ancona, na “era da ‘pós-verdade’” a narrativa
passa a ser central, onde “a emoção [que cada narrativa provoca] está
recuperando sua primazia, e a verdade, batendo em retirada” (D’AN-
CONA, 2018, p. 38). Segundo sustenta o autor, “tudo o que importa
é que as histórias pareçam verdadeiras” (ibidem, p. 56), e não que elas
sejam verdadeiras.
Assim, o conhecimento (particularmente científico) – que dá sus-
tentação à concepção de verdade – é substituído pela “narrativa”, pelo

151
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

discurso. A reflexão racionalista (moderna) é substituída pela mera “con-


vicção”. Os argumentos e as provas são substituídos pela confiança e pela
fé no discurso de quem ocupa nosso “lugar de fala”. Enfim, a verdade ob-
jetiva, empírica, é substituída, bem ao gosto do irracionalismo pós-mo-
derno, pela “minha verdade”, pela “sua verdade” e pela “verdade dele”.
Nesse sentido, conforme Jameson, “observa-se […] um número
infinito de interpretações narrativas da história” (1991, p. 83). Portan-
to, teremos um número infinito de “verdades”, concebidas a partir da
convicção, da crença, da confiança ou da fé de cada um no discurso ou
no narrador.
Nesse mundo de narrativas, exponenciado pelas redes sociais e
pela internet, qual delas é a verdadeira ou a mais próxima da realida-
de? Em tempos de “pós-verdade” não há resposta para essa questão,
pois as verdades (de cada um) dependerão da convicção sobre uma ou
outra narrativa. No máximo, tudo fica numa “disputa de narrativas”
ou de “versões”.
Conforme análise de Lukács, diferentemente da “descrição”, feita a
partir do ponto de vista do espectador dos fatos, de um sujeito externo,
a “narrativa” é realizada a partir do ponto de vista do participante, do
indivíduo que participa do fenômeno, do contexto ou do fato narrado
(LUKÁCS, 2010, p. 150). A “narrativa” estaria, assim, associada a um
“lugar de fala”. Porém na era da “pós-verdade” pouco importa se o
interlocutor é externo ou interno, espectador ou participante dos fa-
tos, o que é relevante é que o discurso atinja a subjetividade, a emoção
do ouvinte. Isto é, o relevante não é o envolvimento do narrador com
os fatos (como participante ou como espectador), mas o envolvimento
emocional do narrador (ou do discurso) com o ouvinte ou receptor.
Porém, ao contrário do irracionalismo pós-moderno, que substitui
verdade por “pós-verdade”, a missão dos setores críticos e progres-
sistas, conforme afirma D’Ancona, deve ser a de repor o vínculo da
narrativa com a realidade material, objetiva; “a narrativa nunca deve
violar ou embelezar a verdade; deve ser seu veículo mais poderoso”
(ibidem, p. 119). Assim, a narrativa, fundada no conhecimento racional
(se possível científico), deve recompor sua articulação e embasamento
com a realidade.

152
CAPITULO 3

Um exemplo por demais eloquente do uso da narrativa como for-


ma de apresentar uma sua “verdade” (ou pós-verdade), mesmo contrá-
ria a qualquer evidência, é o discurso que o presidente brasileiro, Jair
Bolsonaro, proferiu na ONU em 21 de setembro 2020, apresentando
“versões” que não correspondiam à realidade do combate à pandemia,
da questão ambiental etc.14
c) A “pós-verdade” como resultado de escolhas a partir de crenças
/ sentimentos. Dado que a “pós-verdade” está desvinculada da mate-
rialidade ou de comprovações, a atribuição do status de “verdade” a
um discurso se dará a partir de escolhas dos sujeitos. Assim, por um
lado, a “verdade” (ou melhor, a “pós-verdade”) passa a ser o resultado
de “escolhas” pessoais.
A inundação na internet de informações e opiniões de todo tipo,
muitas vezes sem qualquer fonte, permite que as pessoas possam (ou
exige que as pessoas devam) “escolher” com qual delas ficar, em qual
acreditar; uma escolha feita em função de qual agrada mais ou é mais
útil. Temos então uma “verdade” que é o resultado de uma escolha
pessoal e subjetiva. A afinidade da “verdade escolhida” é com a subjetivi-
dade da pessoa, e não mais com a objetividade material da realidade. O
sujeito escolherá aquela “verdade” que estiver mais próxima dos seus
valores, das suas crenças, das suas emoções e da sua autoimagem, sem
se importar com a comprovação da mesma, nem com sua fidelidade
com a realidade objetiva.
Conforme D’Ancona, “a epistemologia da pós-verdade incita que
aceitemos que existem ‘realidades incomensuráveis’ e que a conduta
prudente consiste em escolhermos lados, em vez de avaliarmos evi-
dências” (2018, p. 90). A “verdade”, portanto, na era da “pós-verdade”,
seria o resultado de escolhas pessoais. Escolhe-se um lado (“lugar”), e a
partir dele escolhe-se quais discursos ou narrativas condizem com esse
lado, e quais não. Os primeiros (os discursos adequados ao lado esco-
lhido) serão aceitos como “verdadeiros”, enquanto os segundos serão
rejeitados e condenados.
É aqui que a disseminação de “fake news” (mentiras) e a forma
14 Ver: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2020/09/22/veja-o-que-e-fato-ou-fake-no-
discurso-de-bolsonaro-na-onu.ghtml>, acesso em: set. de 2020.

153
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

que são apreendidas pela população, como “pós-verdade”, como uma


“narrativa” que será aceita ou rejeitada segundo as emoções que des-
pertar e a fé e a confiança na fonte, encontra um ótimo caldo de cultivo
na era da internet e das “redes sociais” virtuais, que acabam facilitan-
do e estimulando a noção de que se trata de uma escolha entre várias
“narrativas” em um enorme mercado de informações, ou, como chama
D’Ancona, um “bazar digital” (ibidem, p. 50).
Para ele, essa tecnologia também foi um “motor muito importan-
te, primordial e indispensável da pós-verdade” (ibidem, p. 52). Aqui,
além do mais, o “anonimato” da internet amplia ainda mais a falta de
responsabilização pelas notícias falsas (ibidem, p. 54), seja para quem as
dissemina, seja para quem as “consome” e incorpora.
Dessa forma, as notícias não são mais selecionadas pelas “agên-
cias de notícia”, mas por cada consumidor, cada indivíduo. Isso pare-
ce um avanço para a liberdade individual e para a limitação do con-
trole corporativo da notícia. Afinal, é o próprio indivíduo, e não a
agência, quem define que notícias serão vistas e incorporadas. Parece,
mas não é bem assim, por dois motivos. Primeiramente, e sem igno-
rar o real controle da informação por essas “agências de notícia”, que
certamente são manipuladoras e estão a serviço dos interesses hege-
mônicos do grande capital, elas, porém, dependem de credibilidade,
e, portanto, limitam as possibilidades de manipulação. Em segundo
lugar, a internet é um oceano quase infinito de notícias, verdadeiras
e falsas, de opiniões fundamentadas técnica e cientificamente e opi-
niões sem embasamento, de julgamentos preconceituosos e visões
alienadas da realidade, tornando impossível uma seleção apropriada,
já que a maioria dos indivíduos são leigos e não têm possibilidade
de verificação, e acabam incorporando a informação mais destacada
na internet, ou a mais simpática à sua crença, independentemente de
sua veracidade. Conforme Dunker (in DUNKER e TEZZA et alii, 2018,
p. 29), “vivemos hoje com um acervo de instrumentos e meios que
excedem o limite de nossas faculdades mentais ‘em estado natural’”.
Assim, como afirma D’Ancona, “a web é o vetor definitivo da pós-
-verdade, exatamente porque é indiferente à mentira, à honestidade e
à diferença entre os dois” (2018, p. 55).

154
CAPITULO 3

Em 8 de julho de 2020 – depois de ter disseminado notícias falsas,


polarizando a sociedade e ajudando à eleição de Bolsonaro para a pre-
sidência do Brasil –, o Facebook removeu as contas falsas do chamado
“gabinete do ódio”.15
Enfim, essas escolhas, sustentadas não na verdade material, na reali-
dade concreta, objetiva, mas na aceitação ou rejeição da “narrativa”, são
realizadas a partir da afinidade subjetiva com ela, a partir de crenças e sen-
timentos. Ou, como afirma Dunker (in DUNKER e TEZZA et alii, 2018,
p. 28), “do ponto de vista das relações intersubjetivas […] a principal
característica da pós-verdade é que ela requer uma recusa do outro ou
ao menos uma cultura da indiferença que, quando se vê ameaçada, reage
com ódio ou violência”.
Dessa forma, por outro lado, a escolha de uma narrativa, que o sujei-
to adota como sua (pós-) “verdade”, funda-se nas “crenças” e nos “sen-
timentos”, e até na “conveniência” ou nos “interesses”, sendo o sentido
de “verdade” atribuído àquilo em que o sujeito “acredita” ou que lhe é
conveniente.
A ideia da “verdade” ser concebida em função das crenças ou dos in-
teresses do sujeito é antiga, e podemos encontrá-la no pragmatismo. Para
William James, pertencente ao Círculo de Viena, “uma ideia é verdadeira
na medida em que acreditar nela é proveitoso para a vida do sujeito” (JA-
MES, 1979, p. 59). Dessa forma, conforme James: “A verdade é o nome de
tudo o que prove ser bom em matéria de crença” (apud POGREBINSCHI,
2006, p. 44), de tal forma que podemos entender a verdade, conforme a
filosofia pragmatista, como “o que é melhor para acreditarmos” (apud
POGREBINSCHI, 2006, p. 127). Isso porque, nessa corrente de pensa-
mento, o conhecimento, além de ser considerado “verdadeiro” em função
de interesses e crenças, é considerado útil em função de emanar do con-
texto imediato, da realidade vivencial, e porque se orienta para a solu-
ção, também imediata, dos problemas do cotidiano (ver DEWEY, 2007).
Mesmo tendo sido influenciado por correntes filosóficas distin-
tas, nesse tópico o pensamento pós-moderno encontra suas fontes no

15 Ver em: <https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/08/facebook-remove-


rede-de-contas-falsas-relacionada-ao-psl-e-a-gabinetes-da-familia-bolsonaro.ghtml>, acesso
em 10/07/2020.

155
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

pragmatismo, construindo assim a noção de “pós-verdade” a partir


de escolhas em função de crenças, de conveniência momentânea ou
de interesses. Assim, a verdade universal, amparada na materialidade
do real, é substituída pelas “verdades” pessoais: cada um tem a sua
verdade.
Assim, a “pós-verdade” admite, por exemplo, que, contra a ver-
dade matemática universal de que 2+2=4, alguém possa afirmar que
2+2=22. Cada um com a sua “verdade”, na qual cada um acredita. Se-
ria arrogante e pretensioso querer que todos acreditassem igualmen-
te em uma verdade, mesmo que seja uma verdade matemática. Cada
um tem o direito e a liberdade de acreditar na “sua” verdade. É mais
simpático ser “uma metamorfose ambulante do que ter aquela velha
opinião formada sobre tudo”, dizia Raul Seixas.
O próprio Barack Obama, no seu discurso de despedida, em janei-
ro de 2017, afirmou: “Nós nos tornamos tão seguros em nossas bolhas
que começamos a aceitar apenas informações, verdadeiras ou não, que
correspondessem às nossas opiniões, em vez de basearmos nossas opi-
niões nas evidências que estão por ai” (apud D’ANCONA, 2018, p. 52).
Um exemplo concreto e gritante desse processo de “escolhas” en-
tre narrativas a partir de crenças, sentimentos e interesses, pode ser ve-
rificado na pandemia do “novo coronavírus” em 2020, quando, parti-
cularmente no Brasil, grandes contingentes populacionais acreditaram
que a Covid-19 era uma “gripezinha” sem grandes riscos para a saúde
e passível de tratamento mediante o uso de cloroquina; e que a doença
era exagerada pela mídia e pelos políticos. Apesar de toda a evidência
contrária dos dados, esses setores da população aceitaram essa narra-
tiva como a (pós-)verdadeira, seja pela crença no discurso negacionista
do presidente Bolsonaro, tido como “mito” pelos seus seguidores, seja
pela necessidade de voltar a trabalhar (e de reaver o salário e a renda)
ou de voltar a pôr o pequeno negócio ou a oficina em funcionamento.
A crença no narrador, ou a necessidade e conveniência de retornar à
atividade, fez com que os dados gritantes da realidade fossem ignora-
dos, e se adotasse uma narrativa estapafúrdia.
Assim, no racionalismo cientificista, do positivismo ao marxismo,
a “verdade” do discurso deve representar a realidade constatável (a par-

156
CAPITULO 3

tir de provas); contrariamente, na lógica da “pós-verdade”, o discurso


deve ser adequado às crenças ou convicções (a partir da “identidade”),
derivando numa realidade concebida.
d) A “pós-verdade” não é sinônimo de mentira ou “fake news”,
mas pode lhes dar status de “verdade”. “Pós-verdade” não é
equivalente a mentira. Como sustenta D’Ancona, “as mentiras, as ma-
nipulações e as falsidades políticas enfaticamente não são o mesmo que
pós-verdade” (2018, p. 34).
A expressão “pós-verdade” não é sinônimo de “fake news”. Ela re-
mete muito mais à forma como os sujeitos tomam as “narrativas” – se-
jam elas falsas e mentirosas ou verdadeiras –, prescindindo de provas
ou evidências empíricas, a partir das suas crenças, dos seus sentimen-
tos, das suas emoções, dos seus interesses, ou da confiança que você
tem na informação ou no informante, o autor da “narrativa”. O termo
expressa não o grau de veracidade ou de falsidade do comunicante
ou do comunicado, mas como o ouvinte se apropria emocionalmente
da narrativa. Como afirma D’Ancona, a “pós-verdade” não expressa a
mentira ou a “desonestidade dos políticos, mas a resposta do público a
isso”, que, apático e indiferente, acaba sendo conivente (ibidem, p. 34),
adotando uma “resignação cognitiva” (ibidem, p. 36) e, eu acrescentaria,
uma “conveniência cognitiva”. Essa apatia, “indiferença” e “resignação
cognitiva”, ou “conveniência”, que levam à conivência com as nar-
rativas “pós-verdadeiras”, estão ligadas ao que D’Ancona chama de
“colapso da confiança” nos políticos e nos cientistas, o que constitui a
“base social da era da pós-verdade” (ibidem, p. 42). E, como ele afirma,
“uma comunidade sem confiança acaba se tornando não mais do que
um atomizado conjunto de indivíduos” (ibidem).
Por sua vez, o “colapso de confiança” das pessoas está ligado às
crises institucionais e financeiras (ver ibidem, p. 45) e à consequente
desconfiança nos políticos, nas instituições, nos experts financeiros, nos
cientistas.
Assim, conforme o autor, na “pós-verdade” “o que importa não é
a ponderação racional, mas a convicção arraigada” (ibidem, p. 36), sus-
tentada na noção de que “a verdade é uma questão de crença. […] Essa
coisa de fatos não existe” (ibidem).

157
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Dessa forma, a chamada “pós-verdade” não é sinônimo de, nem


corresponde necessariamente a, mentira, falsidade ou fake news. Ela
diz respeito à forma subjetiva como os discursos são apropriados
pelos sujeitos, muito mais em função de suas convicções, crenças e
sentimentos, do que na veracidade comprovada dos fatos. Porém,
não sendo sinônimo de falsidade e fake news, a “pós-verdade” pode
outorgar à mentira o status de “verdade”, quando o sujeito acredita
e confia num discurso falso ou mentiroso; nesse caso, o falso será
aceito como (pós-)verdadeiro.
e) Conhecimento engajado da verdade não é “pós-verdade”.
Como já vimos, há em Marx, assim como em diversos outros auto-
res, a convicção de que todo conhecimento é fundado em valores,
perspectivas e visões de mundo, e orientado ideológica e politica-
mente.
Não há conhecimento desprovido de valores, de interesses, pois,
à medida que a realidade é material e objetiva, a apropriação dela
pelo conhecimento só pode ser carregada de subjetividade. A rea-
lidade é objetiva, pois diz respeito a uma existência concreta (o ser-
-precisamente-assim) que independe do conhecimento que se tem
dela, mas o conhecimento é permeado pela subjetividade, na medida
em que remete à apropriação, pelo sujeito, do real, transformando-o
em conhecimento, em representação intelectiva, ideal, sendo esse
conhecimento da realidade, portanto, um processo permeado pela
subjetividade, pelos valores, pelos interesses e pelas perspectivas do
indivíduo cognoscente.
Particularmente, o método de conhecimento materialista-his-
tórico e dialético, o método marxista, funda-se na “perspectiva de
revolução”, que visa conhecer a realidade para transformá-la. As-
sim, contrariamente ao conhecimento “objetivo” de Durkheim, à
neutralidade axiológica de Weber, ou ao conhecimento contemplativo
de Ludwig Feuerbach, para Marx o conhecimento é engajado, compro-
metido, orientado para a transformação social e para a emancipação
humana.
Porém conhecimento engajado não quer dizer que o sujeito deva
adequar seu discurso teórico e seu conhecimento científico aos inte-

158
CAPITULO 3

resses que tem, negando ou manipulando os dados da realidade ma-


terial, concreta, segundo seu interesse. Isso não constitui outra coisa
que não falseamento ou manipulação da realidade. O conhecimento,
mesmo que engajado e fundado no materialismo histórico e dialético,
deve ser veraz, deve representar e reproduzir o mais fielmente possível
a realidade. O conhecimento engajado, mesmo que ideologicamente
fundado, não corresponde à falsidade ou à manipulação da realida-
de, mas é a fiel reprodução do real no pensamento.
Contrariamente, na chamada “pós-verdade”, o “conhecimento”
é transformado em discurso, em “narrativa”, e esse não tem que ter
nenhuma relação ou correspondência necessária com a materialida-
de, com a realidade empírica, apenas com a convicção dos indiví-
duos, as crenças, as emoções, a partir da “identidade” ou condição
social, o que determinaria o “lugar de fala” deles. A “narrativa” (e
não o conhecimento) deve se adequar apenas e exclusivamente às
crenças e emoções dos sujeitos.
Porém só emoções, convicções, sentimentos, sem qualquer com-
provação empírica ou racional, não dá conta da “verdade”, mas de
uma “pós-verdade”. Para atingir a verdade dos fatos e o conheci-
mento veraz, é preciso combinar convicções com empiria, emoções
com razão. É por isso que D’Ancona afirma que “a batalha entre
sentimentos e racionalidade é, de certa forma, uma dicotomia falsa”
(2018, p. 114).
Para Marx, a emoção e o “coração” estão, sim, envolvidos no co-
nhecimento engajado da realidade, na medida em que o engajamen-
to significa o envolvimento do sujeito na realidade, não uma atividade
contemplativa, porém de forma nenhuma significa a substituição do
dado empírico, da realidade concreta, que devem ser apropriados
pela razão. O conhecimento engajado envolve, portanto, a emoção
e a razão.
Para ele, o conhecimento crítico funda-se na razão, no pensamento
racional, na capacidade reflexiva do conhecimento científico crítico, sem os
quais ele será meramente romântico, ingênuo ou moralista. Não se
trata de um conhecimento intuitivo, vivencial, místico ou moralista,
mas de um conhecimento racional e científico.

159
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Porém não basta a razão; o conhecimento meramente reflexivo


leva ao saber “neutro”, “desengajado”, a uma atitude “contempla-
tiva” do sujeito. O conhecimento crítico deve se alimentar da indignação,
da paixão, que levam ao comprometimento, ao engajamento do sujei-
to, à necessidade de conhecer a realidade para transformá-la. Dessa
forma, como afirma Marx:
[…] a crítica [o conhecimento crítico] não é uma paixão do
cérebro, mas o cérebro da paixão. Não é um bisturi anatômico,
mas uma arma. […] A crítica não é mais um fim em si mesmo,
mas apenas um meio; a indignação é o seu modo essencial de
sentimento, e a denúncia sua principal tarefa (2005, p. 147).

Desse modo, o ponto de partida do conhecimento crítico (seu objeto)


é a realidade; seu motor é a indignação (contra as formas de desigual-
dade, dominação, exploração, subordinação) e a teoria é a ferramenta
(que permite passar da indignação ao conhecimento verdadeiro do
fundamento e da essência dos fenômenos).
Razão e paixão, cérebro e coração, realidade e emoção, conhecimento
científico e ação política – essas são as combinações necessárias para o
conhecimento e o engajamento crítico.
O conhecimento crítico tem, assim, um início, um meio e um fim.
Ele tem como ponto de partida a realidade (não idealizada, não o “de-
ver ser”, mas o realmente existente). A razão e a paixão, a capacidade
científica de produzir conhecimento teórico veraz, o mais fiel possível
à realidade, mas um conhecimento engajado, comprometido, orien-
tado para a perspectiva de transformação. Enfim, a teoria crítica e a
indignação / engajamento constituem os meios, as ferramentas e o mo-
tor do conhecimento crítico (radical). Por último, por não se tratar de
um conhecimento “neutro”, “contemplativo”, o conhecimento crítico
e engajado tem por finalidade ser apropriado pelas massas, pelos traba-
lhadores, pelos subalternos, visando assim constituir-se em uma ferramenta
para a transformação social, já que, para Marx, “a arma da crítica não
pode substituir a crítica das armas, […] o poder material tem que ser
derrubado pelo poder material, mas a teoria se converte na força material
quando penetra nas massas” (MARX, 2005, p. 151-152).

160
CAPITULO 3

C) As formas de expressão ou manifestação da “pós-verdade”


Com a “pós-verdade” se materializam visões que antes eram
parcial ou completamente desqualificadas e marginais e que ago-
ra, com a ajuda das redes sociais e da internet, ganham “plausibili-
dade”, “credibilidade” e, perigosamente, ampla aceitação popular.
Podemos identificar algumas de suas mais notórias formas de ex-
pressão, a saber:
a) O negacionismo científico. Ao tratar, por exemplo, da ampla
abrangência negacionista sobre o efeito benéfico das vacinas nos EUA
e no Reino Unido, D’Ancona observa como “o recuo em relação à
ciência se torna perigoso quando ameaça a saúde pública ou a segu-
rança dos outros” (2018, p. 68). Nesse caso, como uma espécie de pre-
monição, essa observação pode ser constatada na tragédia das mortes
por Covid-19, a partir do negacionismo científico, fundamentalmente
presente nos governos de Bolsonaro no Brasil, e de Trump nos EUA.
As afirmações do mandatário brasileiro, de que se tratava de uma
“gripezinha”, que os cientistas e a OMS tinham criado uma “histeria”
na população, que as medidas de quarentena eram “exageros”, ou
até as acusações da autoridade norte-americana contra a OMS, ou a
“prescrição” de “cloroquina” que ambos faziam à população, tudo
isso levou a um afrouxamento da quarentena – por parte de quem
confiou na “pós-verdade” dessas lideranças –, o que colocou imedia-
tamente ambos os países no topo do “pódio” de mortes pelo novo
coronavírus, chegando a representar, só esses dois países, 50% dos
novos casos da doença no mundo.16
Mas o negacionismo científico vai muito além da questão sanitá-
ria da vacina ou da quarentena em face da Covid-19, atingindo o avan-
ço do conhecimento científico em diversas áreas.
Negando a “esfericidade” da Terra se afirma, contra qualquer
evidência científica ou até empírica, a teoria da “Terra plana”, ou
o “terraplanismo”, defendida, entre outros, pelo astrólogo Olavo de
Carvalho, e retrocedendo às épocas anteriores a Copérnico, Galileu
e Cristóvão Colombo. Negando a “teoria da evolução das espécies”
16 Ver em: <https://jornalggn.com.br/a-grande-crise/brasil-e-eua-representam-50-dos-novos-
casos-diarios-de-covid-19-diz-oms/>, acesso em jul. de 2020.

161
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de Darwin, promove-se o “criacionismo”, tal como ocorreu no gover-


no Bush, nos EUA, ensinando nas escolas ambas as “teorias”,17 retro-
traindo o conhecimento da origem e da evolução das espécies e do
ser humano ao século XVIII, numa proporção assustadora, em que
“ao menos um em três norte-americanos ainda rejeita a ciência darwi-
nista” (in D’ANCONA, 2018, p. 65). Contra toda evidência científica,
nega-se igualmente o “aquecimento global” ou o desmatamento da
Amazônia, afirmando que se trata de estudos manipulados que vi-
sam inibir o progresso produtivo.
Exemplos negacionistas são muitos, fazendo o conhecimento hu-
mano recuar até, ao menos, o obscurantismo medieval. O “Iluminismo”,
a era das luzes, que superou o “obscurantismo” medieval, agora parece
se reverter numa nova era obscurantista, na qual a razão, o conheci-
mento científico e o progresso, a partir das evidências, deixam de con-
duzir o saber, agora são a crença e a fé que definem o que é “certo” e
“verdadeiro” e o que não é.
Porém, não podemos imaginar que esse “negacionismo científico”
é algo ingênuo, sem propósito, vindo de pessoas alucinadas ou igno-
rantes. O negacionismo tem utilidade política central atualmente.18

17 Não podemos deixar de considerar que inclusive o Vaticano tem aceitado amplamente a
“teoria da evolução”. Vejamos:
Em sua encíclica “Humani Generis”, em 1950, o papa Pio XII já afirmara que o “magistério
da Igreja não proíbe o estudo da doutrina do evolucionismo, que busca a origem do corpo
humano em matéria viva preexistente”. Por outro lado, em 22 de outubro de 1996, o papa
João Paulo II, em discurso na Pontifícia Academia das Ciências, afirmou que a evolução “já
não era uma mera hipótese, mas uma teoria”. Já o arcebispo Gianfranco Ravasi, ministro da
Cultura do Vaticano, declarou, em 2008, sobre os 150 anos da publicação da obra A origem
das espécies de Darwin, que “a teoria da evolução é compatível com a Bíblia”. Atualmente, o
papa Francisco afirmou, em 27 de outubro de 2014, na Pontifícia Academia de Ciências, que
a teoria da evolução e o Big Bang são reais, e criticou a interpretação das pessoas que leem
o Gênesis, livro da Bíblia, achando que Deus “tenha agido como um mago, com uma varinha
mágica capaz de criar todas as coisas”.
Ver: <http://g1.globo.com/Noticias/Mundo/0,,MUL996835-5602,00-VATICANO+CONSIDERA+
NAO+HAVER+CONTRAPOSICAO+ENTRE+FE+E+EVOLUCAO.html>; <http://g1.globo.com/
Noticias/Ciencia/0,,MUL761923-5603,00-VATICANO+ACEITA+EVOLUCAO+MAS+NAO+SE
+DESCULPA+COM+DARWIN.html>; <http://g1.globo.com/ciencia-e-saude/noticia/2014/10/
papa-diz-que-big-bang-e-teoria-da-evolucao-nao-contradizem-lei-crista.html>; todos acessos
em maio de 2020.
18 Ver, por exemplo, sobre o “terraplanismo” o documentário da Netflix A Terra é plana (2018),
ou o documentário que deu origem ao movimento antivacina, DPT: Vaccine Roulette (1982).

162
CAPITULO 3

O “negacionismo científico” põe em pé de igualdade as opiniões


cientificamente fundadas (mesmo que controversas e polêmicas) e
o “achismo” vulgar e efêmero. O que encontra nas redes sociais um
campo fértil e um estímulo. Assim, da mesma forma que todo mundo
se sente “técnico de futebol” e opina sobre a escalação do time, todo
mundo sente que pode opinar sobre a pandemia do novo coronavírus,
sobre a eficiência de remédios ou de tratamentos médicos e sobre a ne-
cessidade de quarentena, se ela é resultado de uma “histeria coletiva”
criada por uma nação para “dominar o mundo”.
Tudo, conhecimento científico e senso comum, é posto no mesmo
lugar, como se fossem opiniões equivalentes. A manipulação política
que isso permite é evidente, estamos vivenciando-a no atual contexto
brasileiro e mundial.
b) O revisionismo histórico. Nesse caso, reconstruindo as “narra-
tivas” e disputando o lugar da “verdade histórica”, o “negacionismo
científico” assume sua particularidade no “revisionismo histórico”, vi-
sando reescrever ou reinterpretar a história. Até aí tudo bem. Podemos
e devemos reinterpretar a história constantemente; porém o problema
é quando isso é feito a partir da negação de dados e fatos comprova-
dos histórica e cientificamente, sustentando apenas interpretações
subjetivas, convicções e emoções, sem comprovação alguma, como se
a interpretação da história fosse apenas uma questão de opinião, de
convicção, de “narrativas”. Dois exemplos se destacam, um no plano
internacional e outro no brasileiro.
No primeiro caso, o exemplo mais destacado e impactante é, sem
dúvida, a negação do Holocausto na Alemanha nazista. D’Ancona
(2018, p. 75 e ss.) traz à tona o processo judiciário ocorrido na Ingla-
terra em 2000, no qual a acadêmica e historiadora Deborah Lipstadt e
sua editora responderam a uma denúncia por difamação promovida
por David Irving, escritor negacionista (ou revisionista) do Holocausto.19
D’Ancona também constata a impressionante presença negacionista do
Holocausto na internet (ibidem, p. 73-74).

19 O caso foi tratado no filme “Negação” (2016, dirigido por Mick Jackson e escrito por David
Hared).

163
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

O segundo exemplo, neste caso brasileiro, remete ao profundo re-


visionismo histórico promovido pelo “bolsonarismo”, negando tanto
a “ditadura militar de 1964” – com Bolsonaro definindo-a como “um
novo 7 de setembro”,20 ou, segundo o ministro e então presidente do
STF Dias Toffoli, como um “movimento”21 −, como a escravidão no Bra-
sil – com Bolsonaro afirmando que “os portugueses nem pisaram a
África”, e foram “os próprios negros que entregaram os escravos”,22
ou com o presidente da Fundação Palmares, Sergio Nascimento de Ca-
margo, ao sustentar que a escravidão foi “benéfica” para os descen-
dentes23 −, ou até reinterpretando o Holocausto − com a afirmação do
chanceler Ernesto Araújo,24 e confirmada pelo presidente25 (contra toda
evidência histórica), de que “o nazismo era de esquerda”, pois se deno-
minava “nacional-socialismo”, arrepiando até seus anfitriões em Israel.
O revisionismo histórico tem um sentido ideológico e político fun-
damental na interpretação da história e na manipulação política da
população.
c) O fundamentalismo religioso. Esse não é um fenômeno novo,
mas ele adquire particular relevância nesse contexto. Nesse caso, a
gravidade do impacto ideológico e político aumenta, na medida em
que se toma como “verdade divina” o discurso do líder religioso, e como
profano o das outras religiões.
Na vida social das pessoas isso já gera impactos profundos em
como os indivíduos interpretam desde fenômenos naturais até pro-
cessos políticos e econômicos, do plano pessoal, individual e familiar,
até a esfera social mais ampla. Mas quando o “fundamentalismo reli-
20 Ver em: <https://veja.abril.com.br/politica/doze-vezes-em-que-bolsonaro-e-seus-filhos-
exaltaram-e-acenaram-a-ditadura/>; acesso em: ago. de 2020.
21 Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/toffoli-diz-que-hoje-prefere-chamar-
ditadura-militar-de-movimento-de-1964.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
22 Ver em:<https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/07/portugueses-nem-pisaram-na-
africa-diz-bolsonaro.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
23 Ver em: <https://istoe.com.br/chefe-de-fundacao-palmares-fala-em-escravidao-benefica-
para-descendentes/>; acesso em: ago. de 2020.
24 Ver em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/03/ernesto-araujo-diz-a-canal-de-
youtube-que-nazismo-foi-movimento-de-esquerda.shtml>; acesso em: ago. de 2020.
25 Ver em: <https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2019/04/02/no-memorial-do-
holocausto-bolsonaro-diz-que-nazismo-era-de-esquerda.ghtml>; acesso em: ago. de 2020.

164
CAPITULO 3

gioso” chega à esfera da política, do Estado, o malefício é total. Não se


debate mais com argumentos, com dados, mas apenas se sustentam
as posições rígidas, doutrinárias, inalteráveis da fé. Não há mais ne-
gociação e busca de consenso. Não há mais tolerância para aquele que
não compartilha a mesma crença e a mesma fé, pois ele não é um “ho-
mem de deus”. A crença e a fé na verdade divina, na palavra de deus,
expressada pelo seu “representante na Terra”, dá um status especial à
“pós-verdade”.
No Brasil, após as eleições de 2018, a “bancada evangélica” do
Congresso passou a ser de 195 deputados federais (de um total de 513)
e 8 senadores (de um total de 81). Estes números não incluem repre-
sentantes católicos ou de outras religiões, apenas os evangélicos, que
têm uma especial inclinação a articular religião com poder de Estado.26
O uso político do fundamentalismo religioso é evidente e espe-
cialmente constatável no Brasil atual, quando “pastores” de igrejas
definem em quem os fiéis devem votar, quais tipos de valores ou posi-
ções devem defender, gerando uma intransigência incompatível com
a dinâmica da atividade política: como negociar com um político algo
que é tido como determinação divina, segundo expressa o “pastor”,
representante de deus na igreja?
d) A moralização dos fatos. Em parte derivada da questão religio-
sa, mas não restrita a ela, há uma profunda moralização dos fatos, em
que se condena, mediante a disseminação de fake news e criando uma
“pós-verdade” sobre esses fatos, desde a “educação sexual” na escola
– como se fosse uma forma de indução à vida sexual, à mudança de
sexo etc. –, a “ideologia de gênero” – como algo “contranatural” ou
pagão ‒, o “aborto na gravidez indesejada ou de risco” ‒ como algo
amoral ‒, entre tantos e infindáveis outros exemplos.
Novamente a internet e as “redes sociais” são exemplo do volume
de opiniões sustentadas apenas em juízos de valor, em moralismos.
Dessa forma, os detentores da “moral”, sejam eles de uma reli-
gião, de uma tendência política ou de um determinado grupo social,

26 Ver a matéria: “Domínio da fé e da política: O projeto de poder dos líderes evangélicos


no Brasil”, disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/01/17/dominio-da-fe-e-da-
politica-o-projeto-de-poder-dos-lideres-evangelicos-no-brasil>, acesso em maio de 2020.

165
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

irão determinar o pensamento, a opinião e o julgamento das pessoas,


comandando plenamente a “identidade” delas.
e) A ideologização dos fatos. Trata-se de uma das formas privile-
giadas de convencimento social. Até sobre afirmações inverossímeis,
infundadas, a ideologização dos fatos procura gerar adesão (doutriná-
ria, fanática) dos membros do campo ideológico, visando à extrema
polarização com o campo contrário.
Ao ideologizar as coisas, elas deixam de ser tratadas por seu con-
teúdo, pelas provas, pelas evidências, pelos argumentos, e passam a
ser vistas, “ideologicamente”, em função de serem consideradas, por
exemplo, de esquerda ou de direita, dessa ou daquela religião etc.
É a forma que, por exemplo, os presidentes Trump e Bolsonaro têm
tratado temas como a pandemia da Covid-19 de 2020 (como um vírus
criado na China visando à dominação mundial por esse país),27 a clo-
roquina (como o medicamento para o cidadão de “direita”),28 a vacina
(rejeitando a vacina da China, chamada por Bolsonaro de “vachina”),29
as queimadas na Amazônia30 etc.
Dessa forma, qualquer que seja o fato, a versão aceita (ou a pós-ver-
dade) será aquela apresentada como a do campo ideológico com que
os sujeitos se identificam. Por mais inverossímil que seja a versão do
próprio campo ideológico, e por mais plausível e comprovada que seja
a do outro campo ideológico, o do “inimigo”, a primeira será acritica-
mente aceita e a segunda veementemente rejeitada.

27 Ver matérias em: <https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/02/


principais-declaracoes-de-trump-sobre-coronavirus.htm>, e <https://www.gazetadopovo.com.
br/mundo/xi-jinping-politizacao-pandemia-do-coronavirus/>; acesso em: Nov. de 2020.
28 Como afirmou o presidente Bolsonaro, em 19 de maio de 2020: “Quem é de direita toma
cloroquina, quem é esquerda, tubaína”. Ver em: <https://veja.abril.com.br/politica/bolsonaro-
quem-e-de-direita-toma-cloroquina-quem-e-esquerda-tubaina/>; acesso em: Nov. de 2020.
O termo “tubaína”, fazendo um jogo de palavras com a “entubação” (como são tratados os casos
mais graves da doença, com deficiência respiratória), que remete a um refrigerante paulista, para
alguns é o jargão pelo qual a tortura por afogamento era conhecida durante a ditadura militar. Ver
em: <https://diplomatique.org.br/cloroquina-ou-tubaina/>; acesso em: Nov. de 2020.
29 Ver matéria em: <https://g1.globo.com/bemestar/vacina/noticia/2020/10/21/nao-
compraremos-a-vacina-da-china-diz-bolsonaro-em-rede-social.ghtml>; acesso em: Nov. de
2020.
30 Ver matéria em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/09/22/bolsonaro-culpa-indios-
caboclos-midia-e-ongs-por-queimadas-e-consequencias-da-covid>; acesso em: Nov. de 2020.

166
CAPITULO 3

Assim, “ideologizar” as coisas, os fatos, é uma eficiente forma de


gerar adesão, negando mesmo fatos comprovados, evidentes, cujos ar-
gumentos e provas são incontestáveis. A ideologização é uma forma de
confirmar a “pós-verdade”.
f) A expansão das teorias conspiratórias. D’Ancona, a partir do
texto de Richard Hofstadter, The Paranoid Style in American Politics [O
estilo paranoico na política norte-americana], publicado em 1964, tra-
ta das “teorias conspiratórias” como uma “paranoia” contemporânea
(2018, p. 61). Porém a paranoia conspiratória atual tem uma importante
novidade em relação àquela descrita por Hofstadter meio século antes,
nos anos 1960: a atual teoria conspiratória, da “era da pós-verdade”,
não é mais um “fenômeno psíquico” que afeta uma pequena “minoria
modesta da população” (ibidem, p. 62), ela atinge vastos contingentes
populacionais, tendo na internet e nas “redes sociais” um importante
vetor de propagação (ibidem, p. 64).
Assim, afirmações como “a existência de armas de destruição
em massa no Iraque” (em 2003), a afirmação das queimadas na
Amazônica serem organizadas por ONGs (em 2020), ou a de que “o
novo coronavírus foi produzido em laboratório para a China domi-
nar o mercado mundial” (em 2020), em tempos de “pós-verdade”,
mesmo considerando a inverossimilhança e a falta de provas, pas-
sam a ser apropriadas por parte da população passível de influên-
cia, dotando de legitimidade a ação dos governos em resposta a
essas “narrativas”.
Não podemos deixar de lado as “teorias conspiratórias” mais
excêntricas, como a dos extraterrestres da “Área 51”, a do “apoca-
lipse maia”, dentre tantas outras. Meras afirmações que são massi-
vamente aceitas como “pós-verdadeiras” por grandes contingentes
da população, porém com profundos impactos sociais, políticos e
econômicos.
Um dos exemplos mais notórios nos EUA, e com forte influên-
cia no Brasil e no mundo, é o da teoria conspiratória denominada
“QAnon” (aparentemente um desdobramento da teoria conspirató-
ria de 2016, chamada “Pizzagate”), iniciada em 2017 e hoje com mi-
lhares de seguidores, que apresentava a ideia de um plano secreto

167
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

e golpista de um suposto “estado profundo” contra o ex-presidente


Donald Trump, contra quem conspirariam desde Barack Obama e
Hillary Clinton a George Soros, envolvendo também atores liberais
de Hollywood, políticos democratas, altos funcionários, com a práti-
ca de satanismo e o suposto tráfico sexual de crianças em uma rede
internacional de pedofilia.31
Também, especialmente no Brasil da “era Bolsonaro”, mas com
abrangência global, há o ressurgimento de uma “teoria conspiratória”
sobre uma “ameaça marxista” ou “comunista” para dominar o mun-
do… Isso mesmo! Em pleno século XXI, com a derrota de quase toda
experiência do chamado “socialismo real”, com um espaço tão redu-
zido no espectro político em quase todas as nações para as correntes
marxistas e socialistas, a ideia de uma “conspiração marxista-comu-
nista” volta a provocar medo em setores da população, aceitando – ou
até clamando por – uma intervenção militar, para frear esse avanço.
Especificamente, no caso brasileiro, no contexto da eleição e do gover-
no de Bolsonaro, houve a teoria conspiratória, propagada por fake news,
da ameaça do “marxismo cultural”, da “doutrinação marxista e femi-
nista” de crianças nas escolas, do “satanismo” encoberto pelo rock etc.
A utilidade das teorias conspiratórias para os setores dominantes é
clara e contundente; por meio delas, disseminadas e aceitas pela popu-
lação, pode-se legitimar uma intervenção militar num país estrangeiro
(a exemplo da guerra do Iraque, em 2003) ou no próprio país, levando
a governos autoritários (a exemplo das ditaduras na América Latina
nos anos 1960, 1970, 1980, e os pedidos por um novo “AI-5” no Brasil),
pode-se manipular a vontade popular para definir uma eleição ou um
plebiscito (a exemplo das eleições nos EUA, em 2016, e as do Brasil, em
2018, ou dos plebiscitos / referendo do “Brexit”, em 2016, na Inglaterra,
ou do “desarmamento das FARC” na Colômbia, em 2016).32
31 Ver matérias em: <https://www.dn.pt/mundo/qanon-a-teoria-da-conspiracao-que-cresce-
no-facebook-e-vai-chegar-ao-congresso-dos-eua-12516449.html>; <https://g1.globo.
com/mundo/eleicoes-nos-eua/2020/noticia/2020/08/26/o-que-e-qanon-o-movimento-
conspiracionista-a-favor-de-trump-que-e-visto-pelo-fbi-como-ameaca.ghtml>; e <https://
g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2020/07/22/qanon-twitter-elimina-contas-de-grupo-
que-propaga-teoria-de-conspiracao-nos-eua.ghtml>; acesso em: ago. de 2020.
32 Ver, por exemplo, o filme Teoria da conspiração (1997, dirigido por Richard Donner, com
Mel Gibson e Julia Roberts).

168
CAPITULO 3

g) A disseminação de fake news. Falamos que “pós-verdade” não


é sinônimo de mentira ou de “fake news”. Porém, como forma de lidar
com a informação, dando credibilidade ou não, segundo a crença, a
confiança, os sentimentos e os interesses do sujeito, e não mais às pro-
vas, às evidências e aos argumentos sobre o informado, a “pós-verda-
de” é um campo fértil para a disseminação de “fake news”.
Os exemplos são milhares, milhões. A constatação de seu uso po-
lítico é evidente (do qual trataremos no item 5.2). Mencionemos aqui
apenas dois exemplos. Por um lado, a falsa notícia de Barack Obama
“pertencer à Al-Qaeda”, e o uso político que se fez disso. O outro, as
fake news no pleito eleitoral no Brasil, em 2018, que elegeu Jair Bolso-
naro para a presidência, notícias como o “kit gay” e a “mamadeira ‘eró-
tica’” supostamente dadas às crianças nas escolas durante a gestão do
ex-ministro da Educação do governo Lula e concorrente de Bolsonaro
no segundo turno, Fernando Haddad; a filiação ao PSOL de quem des-
feriu a “facada” contra o candidato Bolsonaro; a denúncia de incesto e
de pedofilia contra o candidato Haddad, dentre tantos outros.33
Assim, as fake news, tomadas sem hesitação como “pós-verdadei-
ras”, nos ouvidos atônitos de quem faz juízos moralistas, têm a enorme
utilidade e força de manipular vontades e definir eleições.
h) A “lógica identitarista”. Seja da direita ultraconservadora,
como no ultranacionalismo ou no “supremacismo branco”, seja da es-
querda pós-moderna, em ambos os casos antagonizando os discursos,
as “narrativas”, ou as (pós-) “verdades”, a partir de pertencerem ou
não ao grupo “identitário”, têm tido um peso cada vez maior na convo-
catória e na articulação de indivíduos, de oposição e de enfrentamento,
polarizando entre o “nós” e o “eles”, ao ponto da “lógica identitarista”
conformar a atual forma hegemônica de ação política. Mas tratar disso
é o objetivo deste texto.

D) A “pós-verdade” como ferramenta política da direita ultra­


conservadora e da “esquerda pós-moderna”

33 Ver matéria “Cinco ‘fake news’ que beneficiaram a candidatura de Bolsonaro”, disponível
em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/actualidad/1539847547_146583.html>,
acesso em maio de 2020.

169
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Por tudo que foi exposto, a “pós-verdade” serve como ferramenta


política tanto à direita ultraconservadora (de fundamentalismo religioso,
neofascista ou racial) como à esquerda pós-moderna.
Ao manipular o que as pessoas vão considerar como verdadeiro
ou falso, controlam-se os valores, os desejos, as adesões políticas e as
ações, ou como afirma D’Ancona, “a pós-verdade alimenta a aliena-
ção” (2018, p. 98), e um povo alienado é um povo controlado.
Nas redes sociais tanto se cria uma adesão ao “terraplanismo” ou
à inexistência do Holocausto, como também se condena e escracha
um indivíduo, em ambos os casos sem requerer de provas, sem deba-
te científico, sem espaço para argumentação, apenas permitindo uma
única “narrativa” que será aceita, por afinidade emocional ou por con-
fiança no narrador, como “pós-verdade”.
Assim, por um lado, D’Ancona (2018) mostra, com riqueza de
exemplos e dados históricos, na eleição de Trump nos EUA, em 2016,
no referendo do Brexit na Inglaterra, em 2016, e podemos complemen-
tar com o plebiscito sobre as FARC na Colômbia, em 2016, e a eleição
de Bolsonaro no Brasil, em 2018, como a direita ultraconservadora se
valeu da “pós-verdade” para desqualificar as “narrativas” contrárias,
mesmo que sustentadas em provas empíricas ou em avaliações cien-
tíficas, e assim impor sua própria (e a única) “narrativa”. A estratégia
da “pós-verdade”, disseminando “fake news” que serão apropriadas
pelo público “crente” como “verdade”, serviu politicamente porque
oferecia “à grande massa de eleitores brancos uma série de inimigos
contra quem eles poderiam se unir” (D’ANCONA, 2018, p. 26).
Essa estratégia se vale de uma multimilionária “indústria da de-
sinformação” (ibidem, p. 46) e do uso de robôs na disseminação de
notícias falsas (ver item 6.2).
No Brasil contemporâneo, os exemplos do uso político da “pós-
-verdade” por parte da direita ultraconservadora são inúmeros, mas
citemos apenas dois a modo de exemplo:
1) O astrólogo (guru do governo Bolsonaro) Olavo de Carvalho,
sobre um vídeo fake news atribuído às FARC na Colômbia, afirma:
“Pouco importa que, em si, o vídeo das FARC seja fake. O sentido do

170
CAPITULO 3

que ele expressa é verdade pura”.34 Isto é, mesmo reconhecendo a


inveracidade do vídeo, ele aceita a falsidade, a mentira, em nome de
uma suposta e abstrata (não comprovada por fatos, mas apenas aceita
pela fé, pela crença) “verdade maior”.
2) Na acusação contra Lula sobre o “triplex” (que levou à prisão e
à inelegibilidade do candidato com maior intenção de votos, abrindo
caminho, portanto, para o triunfo eleitoral de Bolsonaro), os procura-
dores da operação “Lava Jato” afirmaram: primeiramente, “não tere-
mos aqui prova cabal” (Roberson Pozzobon), porém manifestaram a
“convicção” sobre a culpabilidade de Lula (Deltan Dallagnol).35
Por sua vez, no campo da esquerda pós-moderna a “pós-verdade”
também se torna útil, a partir de discursos ou narrativas funcionais
aos objetivos (polarizantes e punitivistas) da “lógica identitarista”.
Assim, de igual forma, determinando o “inimigo”, antagonizando o
“nós” e o “eles”, a “identidade” e o “inimigo”, toda e qualquer nar-
rativa que pareça “favorecer” os interesses de um grupo será aceita
como “pós-verdade”, independentemente da sua veracidade. Pare-
ce existir, aqui, a mesma motivação de aceitar narrativas inverídicas
em nome de uma suposta e abstrata “verdade” (ou de um interesse)
maior.
Ainda mais, quando a “pós-verdade” se vincula à noção de “lugar
de fala”, cria-se um absoluto e total desinteresse pela verdade sustenta-
da nas provas, nas evidências ou na razão. Basta que alguém perten-
cente ao “nós”, com quem se compartilha a mesma “identidade”, a
partir de “nosso lugar de fala”, com interesses em comum, por quem
desenvolvemos, portanto, total confiabilidade e credibilidade, faça
qualquer afirmativa, para que ela seja aceita inquestionavelmente
como verdadeira, sem precisar de provas, e às vezes até contrariando
qualquer prova objetiva, como algo que todo o coletivo identitário
deve aceitar e cultuar, passando até a ser considerado uma bandeira
do coletivo e a representar a “verdade” desse grupo.

34 Ver em: <https://twitter.com/olavoopressor/status/1188167295773872129?lang=pt>,


acesso em: abr. de 2020.
35 Ver em: <http://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/2016/09/afinal-procurador-
da-lava-jato-disse-nao-temos-prova-temos-conviccao.html>, acesso em: abr. de 2020.

171
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

O “lugar de fala”, portanto, torna-se o pretexto e a base para, in-


dependentemente de evidências e provas, assumir um discurso como
“verdadeiro” ou “falso”, em função da crença e da confiança que se
tenha sobre o interlocutor a partir desse “lugar de fala”. Juntos, “pós-
-verdade” e “lugar de fala” tornam a realidade material, empírica, fac-
tual, uma mera questão de retórica, sem qualquer relevância para se
conceber uma “pós-verdade”, e para a ação política a partir dela.

172
capítulo 4

OS TRÊS INSTRUMENTOS E OBJETIVOS


CENTRAIS DA LUTA “IDENTITARISTA”
PÓS-MODERNA

C om esses fundamentos (a)políticos da esquerda pós-moderna e


sua “lógica identitarista”, três são os instrumentos de luta e os objetivos
centrais a alcançar nesse cenário: o punitivismo dos indivíduos (dos
“outros”), a representação e a inclusão social (do “nós”, os membros das
“identidades”), assim como o chamado “empoderamento”.
Não se trata de afirmar que o “punitivismo”, a “representação”
e “inclusão” e o “empoderamento” sejam apenas instrumentos e ob-
jetivos da razão pós-moderna; eles aparecem em variadas e diversas
perspectivas ideoteóricas. Trata-se, sim, de afirmar que, nessa raciona-
lidade, esses aspectos (instrumentos e objetivos da ação política) en-
contram um espaço fecundo para seu desenvolvimento, e que eles são
fundantes dessa racionalidade.
No pensamento pós-moderno, a análise da realidade se esgota na
representação, na dimensão fenomênica do real, no nível aparente, in-
dividual, singular. Por conta disso, sua proposta de enfrentamento e
luta social também se esgota no plano fenomênico, na esfera da repre-

173
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sentação, do aparente e do individual / pessoal, centrando assim suas


lutas no combate à linguagem, ao comportamento individual, e na mu-
dança de consciência. Combatem-se a consequências e não as causas,
as manifestações e não o fundamento, a aparência e não a essência, no
plano individual e não estrutural, na mera dimensão cultural e com-
portamental.
Na “lógica identitarista”, presa, como já afirmamos, à relação pes-
soalizada opressor / oprimido, sem conseguir dela fugir ou superá-la,
almeja-se, como objetivos da luta, a punição individual do opressor
como forma de reparação, ou o sucesso individual do oprimido como
exemplo a ser seguido, na fantasia de que todos o alcançarão mesmo sem
transformar o sistema social, ou até a garantia, mediante a ação estatal,
de certos direitos igualitários (como o “casamento igualitário”), fazendo
com que os oprimidos alcancem o status de cidadãos, ou ainda, de uma
ação compensatória do Estado, o que em nada, ou muito pouco, altera as
bases da relação de opressão e da cultura e ideologia discriminatória.
Três são, portanto, os objetivos centrais e prioritários das pautas
na “lógica identitarista”, a) a punição individual do “outro”, como um
tipo de reparação, b) o reconhecimento e a inclusão social do grupo
identitário, do “nós”, como uma forma de compensação, assim como c) o
chamado “empoderamento”.

Vejamos aqui o tripé da ação política pós-moderna.

4.1- O “punitivismo” (de esquerda) como um objetivo político

Um dos objetivos centrais da “lógica identitarista” pós-moderna


é a punição individual do “outro”, considerado ameaça ou inimigo.
Vejamos.

A) Punitivismo e a “lógica polarizadora”


A lógica do “punitivismo”, plenamente afinada com a “lógica
identitarista” pós-moderna, é a polarização social de indivíduos e
grupos, num processo de “vitimização” do semelhante (eu / nós) e “cri-
minalização” do diferente (ele / eles). Essa lógica – “vitimização / cri-

174
CAPITULO 4

minalização” – está presente independentemente de poder existir atos


criminosos concretos ou não. Ela existe como pressuposto da relação
“nós / eles” (ver item 2.6).
O apelo à sensação de medo, à vitimização, ao sentimento de que
a ameaça é o “outro”, o diferente, o considerado inimigo, que funda
a visão polarizada das relações sociais, levando ao ódio do “outro” e
ao anseio pela sua destruição e aniquilação, ou à compensação e repa-
ração, é a base e o sustento do punitivismo. Isto é, o punitivismo tem
por base o medo e o ódio em relação ao diferente, na polarização social
entre “nós” e “eles”, entre vítimas (reais ou não) e inimigos (virtuais e
potenciais ou reais).
Assim, a lógica sustenta-se primeiramente na criação de uma divi-
são, uma cisão, uma polarização entre “cidadãos de bem” e “bandidos”
(na visão ultraconservadora) ou entre indivíduos “politicamente cor-
retos” e “transgressores” (na perspectiva progressista). Ou, mais espe-
cífica e concretamente, uma polarização entre supostos contrários: ho-
mem / mulher, branco / negro, hétero / LGBT, local / imigrante, religião
A / religião B, conservadores / progressistas etc.
A partir daí, promove-se a sensação de insegurança, de ameaça, seja
em função de uma questão real ou induzida, em que o “nós” se sente
ameaçado pelos “outros”, pelo diferente, a partir do pertencimento ou
não a certa “identidade”. A partir daí, o “outro” é visto com receio, temi-
do, ele desperta o medo.
A seguir, afirma-se a frouxidão das medidas penais, ora culpando
os “direitos humanos”, induzindo à ideia de que esses direitos cons-
tituem mecanismos de garantia e defesa dos “bandidos” (na visão ul-
traconservadora), ora responsabilizando as leis e o Judiciário por seus
fundamentos “machistas”, “racistas” etc.
A solução, portanto, para ambas as tendências políticas, passaria a
ser o aumento radical das penas, seja nos processos judiciais / penais,
seja nas formas paralelas de “fazer justiça” das redes sociais e dos espa-
ços públicos, promovendo uma sensação de maior segurança social e/
ou de “justiça” e compensação à vítima.
A resposta ao medo, ao sentimento de ameaça e às perdas (reais ou
potenciais), passa, nessa lógica polarizadora, pela punição mais dura

175
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

possível. Isso supostamente afastará o medo e o sentimento de ameaça,


trazendo uma sensação de reparação pessoal.
Esse caminho punitivista é duramente questionado pela ex-de-
fensora pública e juíza aposentada do TJ-RJ, Maria Lúcia Karam,36 ao
tratar da “esquerda punitiva” (KARAM, 1996, 2015 e 2016), fundando
suas análises críticas na lógica polarizadora e punitiva que hoje coman-
da boa parte das lutas progressistas.
Ora, como já apontamos, a luta pela igualdade social entre os diferen-
tes (“identidades” diversas) não se ampara na lógica polarizadora nem
na opção punitivista.

B) Punitivismo à direita e à esquerda


O “punitivismo” tem sido há tempos uma das ferramentas prin-
cipais da direita moralista. Os anos 1980, particularmente, viram o
punitivismo aumentar, promovido por programas televisivos jorna-
lísticos de cunho moralista, nos quais expunham-se de forma espe-
tacular e sensacionalista casos individuais de crimes comuns, assim
como conflitos familiares e de vizinhança, manipulando emoções e
apelando para o sentimento de “insegurança social” das “pessoas de
bem”. A partir disso, o povo conclama pela pena de morte, pelo endu-
recimento das punições, pelo linchamento público, pela redução da
idade de imputabilidade penal, pela criminalização do aborto, apre-
sentando a máxima: “Bandido bom é bandido morto!”. O punitivismo
de direita se associa ao uso da violência do Estado; o que Weber chama
do “monopólio legítimo da coação física” (2012, p. 34), ou o que Marx
e Engels caracterizam como a função instrumental de dominação de
classe do Estado enquanto “comitê para gerir os negócios comuns de
toda a classe burguesa” (2010, p. 42). É, portanto, a expressão de dese-
36 Defensora pública no Rio de Janeiro desde 1979 e juíza penal de 1982 a 1990, conhecida
por absolver acusados de posse de drogas para uso pessoal, sob o fundamento da
inconstitucionalidade de leis criminalizadoras de condutas que não atingem direitos de terceiros.
Por esse motivo, foi transferida em 1990 para a Justiça de Família. Autora dos livros: De crimes,
penas e fantasias (Niterói, Luam, 1993), Competência no processo penal (SP, RT, 2005); Juizados
especiais criminais: A concretização antecipada do poder de punir (SP, RT, 2004). Membro
da diretoria do Law Enforcement Against Prohibition (LEAP) e presidente da Associação dos
Agentes da Lei Contra a Proibição (LEAP BRASIL); membro do Conselho Consultivo de Students
for Sensible Drug Policy (SSDP); membro do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim),
do Instituto Carioca de Criminologia (ICC) e da Associação Juízes para a Democracia (AJD).

176
CAPITULO 4

jo, instituída em leis e sistemas prisionais, orientada para a manuten-


ção dos privilégios (materiais e simbólicos) dos setores dominantes e
opressores.
Trata-se o diferente como inimigo, como ameaça, como expressão
da insegurança. Fomenta-se o ódio e o medo ao/do diferente. Não há
dúvida de que esse caminho fomentou as “guerras santas” (como se
a crença em outro deus, em outra religião, considerados “profanos”,
fosse uma ameaça ao que se entende como “sagrado”), fundou o “na-
zismo” (concebendo uma raça superior, ameaçada genética e cultural-
mente pelos seres “biologicamente inferiores”), legitimou o “combate
ao terrorismo” (mediante o medo induzido de que nossa civilização e
nosso modo de vida estariam ameaçados pelos “terroristas”), fomen-
tou as intermináveis guerras entre famílias ou clãs, como nos EUA do
século XIX (como as lendárias lutas entre os clãs Hatfield e McCoy; no
caso do Brasil dramatizado no filme Abril despedaçado, de Walter Salles).
Os grupos sociais dominantes e os Estados por eles comandados
sempre incentivaram o medo, a vitimização, a polarização e a oposi-
ção a um (suposto) inimigo, “satanizado”, interno ou externo, para
legitimar e fomentar o uso da violência e o controle social.
Por sua vez, mais recentemente, em especial a partir da segunda
década do século, o fundamentalismo religioso da ultradireita neofas-
cista sustenta-se também numa acirrada lógica de polarização a partir
do apelo a “identidades” – como o ultranacionalismo, o fascismo, o
“supremacismo” racial, o fundamentalismo religioso –, na qual o ob-
jetivo é ora a conversão (como no caso religioso), ora a busca de uma
“justiça paralela”, pela ação de “milícias”, sem os constrangimentos
da legalidade, ora a submissão e aniquilação do diferente, considerado
inimigo. A polarização, aqui, é elevada à sua máxima potência.
Assim, essa polarização criada entre “pessoas de bem” e “bandi-
dos”, fundada numa “lógica identitarista” de direita e moralista, tem
se orientado politicamente na direção do “punitivismo”. O identita-
rismo, que transforma o diverso e diferente em “inimigo”, alia-se ao
punitivismo, e o toma como objetivo imediato da ação política.
Porém, desde os anos 1990, com a expansão da “lógica identita-
rista” na esquerda pós-moderna – que em boa medida hoje define

177
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

uma visão hegemônica da realidade e das lutas sociais –, podemos


observar o desenvolvimento de um “punitivismo” de esquerda, como
forma de ação política e como um dos objetivos centrais dela, e como
mecanismo de luta e/ou de reparação dos setores excluídos, subalter-
nos, as chamadas “minorias”. É aqui que Maria Lúcia Karam (1996)
apresenta sua análise sobre o que denominou de “esquerda punitiva”.
Essa lógica “punitiva” e “criminalizadora” também aparece na
contemporaneidade em tendências de cunho progressista; a crimi-
nalização surge aqui como caminho para resolver manifestações de
discriminação e desigualdade, como o machismo, a homofobia, a xe-
nofobia, o racismo etc.
A razão (ou o irracionalismo) pós-moderna contida na “lógica
identitarista” vai ao encontro e funda a ação “punitivista” da esquerda.
Ou seja, o “identitarismo” pós-moderno cria os grupos ou “coletivos”
identitários, e os opõe a seus supostos antagonistas. Grupo contra gru-
po, indivíduo contra indivíduo, vítima contra vitimário.
Isto é, se em função da polarização “identitarista” os “idênticos”
são antagonizados com os “diferentes”, na lógica “nós” vs. “eles”, con-
cebendo o “outro” como “inimigo”, então a resolução das lutas passa a
ser a eliminação ou submissão desse “inimigo”. Surge assim, e se expan-
de rapidamente, a estratégia punitivista na esquerda.
Em síntese, encontramos um “punitivismo” tanto de direita (parti-
cularmente fundado na tese do “inimigo interno”, no qual sustentam
as ditaduras e a ação repressiva do Estado na criminalização das lutas
sociais), como de esquerda (fundado na tese da subalternidade, opressão
e vitimização das “minorias”, entendendo o “diferente” como opres-
sor), em que se criam os mecanismos de enfrentamento a partir da eli-
minação do “outro”, tido como o “inimigo”. Só que o suposto “inimi-
go”, nesse caso, não é o antagonista de classe, mas o diferente e o desigual
em relação ao credo, à orientação sexual, à raça, ao gênero etc., em geral
expressando uma relação de opressão (voltaremos a isso no capítulo 6).
Assim, a “lógica identitarista” gera polarização entre os membros
e os não membros dessa “identidade” específica, que somada ao “lu-
gar de fala”, à “pós-verdade” e ao “punitivismo” de esquerda, acirra
a polarização social entre “identidades”, concebendo cada indivíduo

178
CAPITULO 4

diferente como inimigo, e agindo, de ambos os lados, com o objetivo de


aniquilar e eliminar o indivíduo diferente: nesse processo estão tanto o
muro de Trump na fronteira mexicana, quanto o escracho nas redes so-
ciais do “condenado publicamente” como diferente (ou transgressor);
o primeiro sustenta-se na “identidade” nacional / patriótica e suprema-
cista da direita, no segundo exemplo está o punitivismo da esquerda
de várias “identidades” particulares (ou “minorias” oprimidas). Sem
confundir os fundamentos reacionários, xenofóbicos e fascistas de um
caso, e o caráter progressista e humanista do outro, em ambos os casos
o caminho, sustentado na polarização entre “identidades”, está na eli-
minação do diferente, tido como inimigo.
Nesse sentido, setores da direita e da esquerda, de conservadores
e de progressistas, ambos proclamam a mesma forma de defesa dos
seus valores; na mesma lógica de polarização e criminalização do com-
portamento diferente e contrário ao defendido por um ou outro setor
ideopolítico, a penalização mais severa é apresentada como o único
caminho e a melhor solução: uma “punição exemplar”. A solução para
tudo, a reparação e o combate à ameaça passam, para esses setores,
pelo castigo individual do “infrator”, mediante uma pena que, quanto
mais severa, melhor serve de exemplo, inibindo outros “potenciais in-
fratores”.
Não é possível ignorar ou relevar o fato de que os objetivos do puni-
tivismo de esquerda e de direita são essencialmente contrários: enquan-
to um quer enfrentar e superar a opressão e a desigualdade, e até obter
uma “reparação” por elas, a partir da ação das chamadas “minorias”,
grupos subalternos ou oprimidos, o outro visa à confirmação e ma-
nutenção do status quo, afastando aquilo que “ameaça” os privilégios,
representando os setores dominantes da sociedade.
Certamente, como nos ensina Malcolm X, não devemos confun-
dir “a reação do oprimido com a violência do opressor”.37 Novamente
afirmamos, o punitivismo de esquerda e de direita diferenciam-se por-
quanto o primeiro remete à ação dos grupos oprimidos, enquanto o
segundo à dos opressores.
37 Ver: <https://revistaforum.com.br/noticias/violencia-opressor-e-reacao-oprimido/>; acesso
em: set. de 2020.

179
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Porém o que estamos afirmando aqui é que ambos sustentam-se


na mesma “lógica identitarista” polarizadora e pessoalizada, conside-
rando o outro (o diferente) como “inimigo” e visando à sua aniquila-
ção individual ou grupal. A ação “punitivista” da esquerda funda-se
nos mesmos pressupostos que a da direita: a anulação ou o extermínio
do diferente, do contrário, do não pertencente ao grupo identitário, do
“inimigo”.
Ainda, o punitivismo, de ambos os lados, ignora igualmente todo
o contexto social, cultural e estrutural, no qual se circunscreve o ato
transgressor, dissociando-o dos aspectos macrossociais e individuali-
zando ou até psicologizando essas ações.
Assim, a pretensão punitiva sobre um indivíduo que furtou o cor-
dão de um turista desconsidera as condições de privação e penúria em
que esse sujeito vive, num sistema desigual, frente à ostentação de ri-
queza do outro. Da mesma maneira, a pretensão de punir o genitor que
atrasa o pagamento de “alimentos” ignora as condições de vida criadas
pela estrutura social. Nem um deve assaltar, nem o outro deve atrasar
o pagamento da pensão do filho, porém a análise crítica e de totalida-
de deve ter a capacidade de compreender integralmente os processos,
superando a mera visão fenomênica e individualizadora dos processos
sociais, e a visão da punição como única “solução”.
Para o conservador e moralista, é tão horroroso e ameaçador um
latrocínio ou um aborto – desconsiderando as determinações que o fe-
nômeno tem sobre a estrutura social extremamente desigual e vendo
apenas a responsabilidade do indivíduo –, como o é, para o progressis-
ta, um comportamento misógino ou racista – podendo tender também
à visão individualizada de um fenômeno que é estrutural e cultural-
mente determinado. Em ambos os casos, a resposta passa a ser a mera
criminalização e punição do indivíduo.
Esse afã polarizador (nós-eles; vítimas-agressores; inocentes-culpa-
dos; amigos-inimigos) e punitivista se apresenta como a opção e solu-
ção das questões contemporâneas, tanto para amplos setores da direita
como para da esquerda, tendências conservadoras e progressistas. So-
lução essa que trata essas questões de forma individualizada, exemplari-
zante, sem considerá-las como manifestações da “questão social”, o que

180
CAPITULO 4

demandaria uma ação muito mais estrutural e de consciência social do


que a punição individual.
Trata-se, portanto, na “esquerda pós-moderna”, assim como na
“direita ultraconservadora”, da mesma lógica polarizadora, transfor-
mando o diferente em inimigo, em ameaça, e do mesmo instrumento e
tática de enfrentamento: a aniquilação (individual ou coletiva) do (dito)
inimigo.
Enquanto a direita visa punir o pobre, o militante, pregando “to-
lerância zero”, promovendo o aumento das penas, a redução da idade
de imputabilidade penal, a criminalização do consumidor de drogas
ilegais e da mulher que realiza aborto etc., parte da esquerda tem em-
barcado numa lógica semelhante, visando punir exemplarmente o trans-
gressor daquilo considerado “politicamente correto”.
Assim, nessa época de extrema polarização, a criminalização e a pe-
nalização são apresentadas como a única ou principal solução para os
conflitos. Esse caminho, tão antigo para as tendências conservadoras,
revitaliza-se na contemporaneidade com a adesão de grupos das “es-
querdas”. Hoje, setores da direita e setores da esquerda aderem ao ca-
minho da polarização e da criminalização e punição como solução.
No contexto atual, ainda mais, amparados na “lógica identitaris-
ta”, no “lugar de fala” e na “pós-verdade”, a punição individual exem-
plarizante realizar-se-á a partir de uma condenação sumária, mediante as
redes sociais, sem requerer dos demorados processos judiciais, contro-
lados, segundo uns, por garantistas dos direitos humanos e, conforme
outros, por homens brancos cristãos. Para que provas? Para que garan-
tir a defesa e o contraditório? Que horror os “direitos humanos”! Que
horror a “presunção de inocência”! Qual o sentido de tudo isso quando
já estamos convencidos da culpabilidade do outro?
Pareceria, para a esquerda punitivista, que clama por linchamentos
pessoais, de igual forma que para a direita punitivista, que responsabili-
za os direitos humanos pelas penas brandas e pela insegurança públi-
ca, que para alguns o devido processo não deveria ser aplicado.
Trata-se, na verdade, em ambos os casos de punitivismo, à esquerda
e à direita, não do endurecimento geral das leis e dos sistemas punitivos,
mas do endurecimento seletivo, de dois pesos e duas medidas. Enquanto a

181
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

direita punitivista visa à garantia dos “direitos humanos para os humanos


direitos”, para os “cidadãos de bem” que possam ter cometido um “des-
lize”, porém clamando por penas mais duras e sem garantias proces-
suais para os “bandidos”; a esquerda punitivista, por seu turno, também
reivindica o amparo das leis e dos direitos humanos e processuais para
os “seus”, para os subalternos, pois esses atos representariam formas de
“reparação”, porém clamando por condenação pública sumária e pelo
linchamento daqueles indivíduos considerados inimigos, sem qualquer
garantia do devido processo judicial.
Se deixarmos de lado o grupo social e a ideologia que cada uma
representa, direita e esquerda punitivistas coincidem em suas propostas.
É disso que se trata a extrema polarização que vivemos hoje, da
qual a “lógica identitarista” pós-moderna representa um dos lados.
Não se pode combater o punitivismo de direita com o punitivismo
de esquerda. Isso, na verdade, legitima e reforça o punitivismo estatal,
o do Estado penal (conforme WACQUANT, 2004).

C) Havendo crime, deve ter punição, não impunidade


A crítica ao “punitivismo de esquerda”, como único ou principal
objetivo de luta, não significa afirmar que os crimes cometidos em
torno de causas identitárias devam permanecer impunes. Não se trata
em absoluto disso. Trata-se, sim, de que a esquerda não tenha a punição
como seu fim político, imaginando que com ela esteja se combatendo a
estrutura, a cultura e a ideologia que funda uma forma de desigualda-
de, opressão ou discriminação particular. Não o faz.A punição castiga
individualmente apenas alguns sujeitos, sem impactar nos fundamen-
tos estruturais da desigualdade em questão. A punição de indivíduos
como “exemplo”, se tem algum efeito nos outros, não impacta, no en-
tanto, nas formas em que essa desigualdade, opressão ou discrimina-
ção se sustenta. Pois ela é estrutural, faz parte de uma cultura, de uma
ideologia, de uma idiossincrasia social.
Claro que, havendo o crime, deve-se punir quem o praticou, porém
muitas expressões de desigualdade e discriminação são manifestações
de uma idiossincrasia arraigada na cultura e/ou expressões de questões
estruturais, e não de comportamentos individuais e isolados. O cami-

182
CAPITULO 4

nho da penalização pessoal pune os indivíduos e deixa intacta a idiossincrasia


e a estrutura. Com o punitivismo como principal ferramenta e objetivo
de luta, na verdade não se busca enfrentar efetivamente a estrutura
e erradicar as culturas e idiossincrasias machista, xenofóbica, racista,
homofóbica, preconceituosa e discriminadora contra o diferente, mas
apenas castigar algumas pessoas.
Como afirma Almeida, “o racismo é uma imoralidade e também
um crime, que exige que aqueles que o praticam sejam devidamente
responsabilizados” (2019, p. 37); isto é, “pensar o racismo como parte
da estrutura não retira a responsabilidade individual sobre a prática de
condutas racistas e não é um álibi para racistas” (ibidem, p. 51), porém,
conforme aponta (ibidem, p. 37), o caminho centrado no punitivismo
está sustentado na “concepção individualista” do racismo, e portanto re-
sulta frágil e limitado.
Em síntese, a crítica à lógica criminalizadora / punitiva não pode
ser interpretada como uma defesa da impunidade. Não se trata de afir-
mar, repetimos, que quem pratica algum ato criminoso ou infracional
não deve ser julgado em processo e punido; trata-se de apontar que
esse caminho deixa intactas as estruturas e as culturas que fundam es-
ses atos. Combater os fundamentos de atos criminosos / infracionais
mediante a “punição exemplarizante” impacta apenas em certos indi-
víduos, contudo jamais altera os fundamentos deles, punindo, de certo,
principalmente os sujeitos mais carentes. Vejamos.

D) Punitivismo remete a uma ação individualizada, e não


contra a estrutura, o sistema ou a cultura social
O punitivismo de esquerda visa criminalizar todo comportamento
fora do considerado “politicamente correto”, erradicando o máximo
possível os indivíduos que apresentam atitudes machistas, racistas, ho-
mofóbicas etc. Assim, a esquerda punitivista está voltada para o indi-
víduo, não para o sistema: pode-se penalizar o indivíduo infrator, mas
não se pode punir o sistema que promove esses comportamentos.
Dessa forma, a lógica polarizadora / criminalizadora se mostra efi-
ciente para casos individuais, mas é absolutamente ineficiente para alterar a
estrutura, a cultura e o sistema que fundam e promovem esses atos e comporta-

183
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

mentos. Servem apenas para o circo midiático que os grandes meios de


comunicação fazem desses casos individuais, e para reafirmar a lógica
do “Estado punitivo”.
A “punição” do indivíduo como objeto e tática política se super-
põe à luta estratégica contra a estrutura social e a cultura opressora e
discriminadora.
Pune-se o indivíduo, não o sistema. Não se enfrenta a cultura
machista, racista, homofóbica, nem o sistema capitalista, visando sua
transformação, mas apenas à punição dos indivíduos que representam
essas culturas. Trata-se de punir exemplarmente indivíduos, supondo
que dessa forma combater-se-á o sistema ou a cultura opressora / dis-
criminadora, em vez de combater e transformar o sistema, a cultura,
para eliminar essas formas de opressão, discriminação e desigualdade.
Como afirma Karam:
a imposição da pena […] não passa de pura manifestação de poder, desti-
nada a manter e reproduzir os valores e interesses dominantes em uma
dada sociedade. Para isso, não é necessário nem funcional acabar com
a criminalidade de qualquer natureza e, muito menos, fazer recair
a punição sobre todos os autores de crimes, sendo, ao contrário,
imperativa a individualização de apenas alguns deles, para que,
exemplarmente identificados como criminosos, emprestem sua
imagem à personalização da figura do mau, do inimigo, do peri-
goso, assim possibilitando a simultânea e conveniente ocultação
dos perigos e dos males que sustentam a estrutura de dominação
e poder (1996, p. 82).

Dessa forma, continua:


a monopolizadora reação punitiva contra um ou outro autor de
condutas socialmente negativas, gerando a satisfação e o alívio
experimentados com a punição e consequente identificação do
inimigo, do mau, do perigoso, não só desvia as atenções como afasta
a busca de outras soluções mais eficazes, dispensando a investigação
das razões ensejadoras daquelas situações negativas, ao provocar
a superficial sensação de que, com a punição, o problema já estaria
satisfatoriamente resolvido. Aí se encontra um dos principais ângu-

184
CAPITULO 4

los da funcionalidade do sistema penal, que, tornando invisíveis


as fontes geradoras da criminalidade de qualquer natureza, per-
mite e incentiva a crença em desvios pessoais a serem combati-
dos, deixando encobertos e intocados os desvios estruturais que
os alimentam (ibidem, grifos nossos).

Dessa forma, a ação punitivista, como arma e alvo principal da


luta, em vez de enfrentar uma dada cultura estruturalmente fundada
– a machista, a sexista, a racista, a homofóbica etc. – visa, como “ação
exemplarizante”, punir o indivíduo (o suposto “inimigo”), influenciando
ou inibindo a conduta dos outros, porém deixando intacto o sistema.
À direita e à esquerda, quando se abandona o projeto de
transformação estrutural, o objetivo passa a ser pessoal, individual, a
aniquilação da pessoa, do “outro”, tido individualmente como “inimi-
go”; relembremos a afirmação do astrólogo e conspiracionista da extre-
ma-direita brasileira, Olavo de Carvalho, aos seus alunos: “Investiguem
alguma sacanagem do sujeito e destrua-o […], nós não discutimos para
provar que o adversário está errado. Discutimos para destruí-lo social-
mente, psicologicamente, economicamente”.38
Como já foi dito (item 2.3), na medida em que o racismo é estrutu-
ral e o machismo sustenta-se numa estrutura patriarcal, determinan-
do a cultura e as instituições, que por sua vez sustentam os comporta-
mentos individuais, é preciso que a luta tenha como alvo central não o
indivíduo, mas a estrutura, a cultura e as instituições.
Assim, no caso da questão racial, Almeida afirma que, na medi-
da em que “o racismo é estrutural”, então os “comportamentos indivi-
duais e processos institucionais são derivados de uma sociedade cujo
racismo é regra e não exceção” (2019, p. 50). Assim, sustenta o autor, é
quando se concebe o racismo como um problema de ordem individual,
como “uma espécie de ‘patologia’” ou “fenômeno ético ou psicológico
de caráter individual ou coletivo”, e não como uma questão estrutural,
que se pensa na forma de combatê-lo mediante ações “no campo jurí-
dico por meio da aplicação de sanções civis […] ou penais” (ibidem, p.
38 Ver em: <https://www.cartacapital.com.br/opiniao/o-olavismo-a-ascensao-e-a-queda-do-
bolsonarismo/>; acesso em: out. de 2020.

185
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

36). Isto é, o “punitivismo” como estratégia central de luta sustenta-se


numa visão individualizada (centrada no comportamento de indiví-
duos), e não estrutural, da questão.
Ora, a análise crítica e de totalidade não individualiza ou psicologiza
as causas dos fenômenos sociais (como comportamentos individuais,
patológicos, ou disfuncionais), mas os concebe como manifestações da
“questão social” e, portanto, não individualiza ou pessoaliza as soluções
mediante a punição exemplarizante de indivíduos, pois os indivíduos
são a corporificação de determinantes estruturais. A luta não pode se
centrar no “exemplo”, na “punição exemplar”, na penalização indivi-
dual, mas no combate aos fundamentos das formas de preconceito, de
opressão e da desigualdade. Em concordância com isso, Karam afirma
que com o objetivo da “punição individual exemplarizante” há “um apelo
à natureza simbólica e à função comunicadora das leis penais criminaliza-
doras” (2015), portanto,
privar da liberdade; estigmatizar; causar sofrimento e acabar por
arruinar a vida de um indivíduo, para comunicar a mensagem
de que determinada conduta é negativa ou ‘má’, não parece ser
um comportamento harmônico com o conceito de direitos hu-
manos fundamentais. Ao contrário, tal comportamento se ajusta
perfeitamente à ideia do ‘bode expiatório’ a ser sacrificado no altar
do sistema penal – um ‘bode expiatório’ que, naturalmente, será
preferencialmente selecionado dentre os mais vulneráveis, os pobres,
os marginalizados, os não brancos e desprovidos de poder, even-
tuais autores daquela ‘má’ conduta (2015).

A “punição exemplarizante” não tem qualquer efetividade na alte-


ração do sistema ou da cultura opressora / discriminadora / desigual.
Basta dar uma olhada na punição de qualquer prática delituosa, que
muito pouco impacta nessa prática em geral, nem sequer reduz o índi-
ce de reincidência. A lógica punitivista seria efetiva se se alcançasse a
punição de todos os diferentes, os considerados “inimigos” (potenciais),
lotando as prisões com eles.
Assim, a ânsia quase fanática e irracional por destruir a vida de um
indivíduo machista ou racista (como se esses comportamentos fossem

186
CAPITULO 4

da mera responsabilidade do indivíduo, como se fosse uma patologia


psicológica) é a mesma que visa erradicar da sociedade um bandido
que furtou ou uma mulher que abortou. Num caso se busca o ostracis-
mo social, a morte em vida, no outro se clama pela pena de morte.
Porém nem sempre se reivindicam punições a partir de atos crimi-
nosos ou infracionais efetivamente praticados; muitas vezes, o clamor
por penas mais severas se sustenta em “pós-verdades” sem evidências,
baseadas apenas em “convicções”.
Nesse sentido, seja como objetivo central em face de atos infracio-
nais, seja fundada em pós-verdades sem evidências, a lógica punitivis-
ta visará ao castigo mais severo. Essa punição, a partir de um crime ou
de uma infração, com ou sem evidências, tenderá a seguir dois cami-
nhos centrais.
O “punitivismo” de esquerda, portanto, tem dois caminhos princi-
pais. Um deles está em encaminhar a punição para a ação institucional
repressora do Estado. O outro é a condenação sumária do diferente e
sua punição extrainstitucional, particularmente nas redes sociais ou
pela ação direta de grupos em espaços públicos.
Por um lado, quando o crime ou ato infracional é constatado a par-
tir de indícios, evidências e provas, via de regra, o caminho seguido
tende a ser a punição pela ação do Estado, mediante o sistema judiciá-
rio, policial e penal.
Porém, por outro lado, até quando não há indícios, provas ou evi-
dências, apenas a “convicção” sobre um eventual ato, tomado como
uma “pós-verdade”, em cuja narrativa se acredita, pela confiança de-
positada no, ou pelo “lugar de fala” do narrador, o caminho tende a ser
o da punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais. Veja-
mos a seguir.

E) O punitivismo fundado no Estado e no direito burgueses:


a despolitização da ação política
No caso de crimes ou atos infracionais, com indícios, evidências ou
provas, recorre-se à punição do Estado penal. Aqui, conforme afirma
Karam (1996 e 2015), “amplos setores da esquerda aderem à propagan-
deada ideia” que, em “perigosa distorção do papel do Poder Judiciário,

187
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

constrói a imagem do bom magistrado a partir do perfil de condena-


dores implacáveis e severos” (1996, p. 80). Para a autora, inebriados
pela reação punitiva, estes setores da esquerda parecem estranhamente
próximos dos arautos neoliberais […], não conseguindo perceber que,
sendo a pena, em essência, pura e simples manifestação de poder – e, no
que nos diz respeito, poder de classe do Estado capitalista – é necessária e
prioritariamente dirigida aos excluídos, aos desprovidos deste poder.
Parecendo ter se esquecido das contradições e da divisão da sociedade
em classes (ibidem, 81).
Karam sustenta ainda que “o sistema penal só atua negativamente
[…] no sentido de atuar proibindo condutas, intervindo somente após o
fato acontecido, para impor a pena como consequência da conduta crimi-
nalizada” já realizada (2015), sendo que os dispositivos garantidores dos
direitos humanos se orientam para a uma intervenção positiva dos Esta-
dos, de tal forma que “criem condições materiais – econômicas; sociais; e
políticas – para a efetiva realização daqueles direitos. São essas ações de
natureza positiva (ações que promovem direitos) – e não ações negativas
(ações que proíbem condutas) – que devem ser realizadas pelos Estados
para tornar efetiva a proteção dos direitos humanos fundamentais” (ibi-
dem), pois:
o sistema penal nunca atua efetivamente na proteção de direitos.
[…] na medida em que as leis penais criminalizadoras, na realida-
de, nada tutelam, nada protegem, não evitam a ocorrência das con-
dutas que criminalizam, servindo tão somente para materializar o
exercício do enganoso, violento, danoso e doloroso poder punitivo
(ibidem).

A ação punitiva é diferente, senão contrária, da ação preventiva, na


medida em que se dirige para a consequência e não para a causa da ques-
tão. Assim, continua, a autora:
a adesão de amplos setores da esquerda à ideologia da repressão,
da lei e da ordem, seu interesse por um implacável combate à cri-
minalidade, sua “descoberta” do sistema penal, surgem em um
tempo em que os sentimentos de insegurança e o medo coletivo difuso
[…] aliam-se à decepção enfraquecedora das utopias e à necessidade de

188
CAPITULO 4

criação de novos inimigos e fantasmas capazes de assegurar a coesão


em formações sociais […].
O quadro vivido neste novo tempo, proporcionando campo
extremamente fértil para a intensificação do controle social, pro-
porciona e alimenta o crescimento da demanda de maior repressão, de
maior rigor punitivo, de maior intervenção do sistema penal, trazendo
desmedida ampliação do poder punitivo do Estado.
Sofrendo mais diretamente aquela decepção enfraquecedora
das utopias, consequente ao desmoronamento das traduções reais
do socialismo, amplos setores da esquerda voltam-se para objetivos
mais imediatos, abandonando a perspectiva de construção de uma nova
sociedade e se entregando a um pragmatismo político extremamente dis-
tante dos princípios e ideais que a viram nascer (ibidem, p. 90-91, grifos
nossos).

Para Karam, “quando se aceita a lógica da reação punitiva, está se


aceitando a lógica da violência, da submissão e da exclusão, em típica
ideologia de classe dominante” (ibidem, p. 91-92).
Aceita-se o Estado burguês, e todo seu aparato repressor, como a
solução “progressista”.
Ora, Marx e Engels nunca manifestaram uma inclinação às lutas
de classes se desenvolverem prioritariamente mediante o poder punitivo
do Estado burguês contra o inimigo de classe. Aliás, há uma clara incre-
dulidade em Marx de que o Estado e o direito (burgueses) possam ser
instrumentos de garantia de “justiça” e “igualdade” − vejam o texto
do jovem Marx (2005), Crítica da filosofia do direito de Hegel. A “justiça”
é a justiça do Estado burguês, do Estado opressor, hegemonicamente
instrumentalizado pela classe e pelos setores dominantes.
Pareceria haver uma transformação das “lutas sociais” progressis-
tas, da esfera do que Gramsci chamou de “sociedade civil” (o espaço
privilegiado de luta e disputa pela direção social, ocupado pelos apare-
lhos privados de hegemonia) para a esfera estatal, que ele denominou
de “sociedade política” (o espaço ocupado pelos aparelhos de domi-
nação e coerção, orientados para a pura repressão e dominação) (ver
GRAMSCI, 2000b, p. 244).

189
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Isso torna-se mais evidente, porquanto sabemos que a “justiça”


não é realmente “cega”, observando a realidade a partir dos valores
que a fundam – os valores burgueses e judaico-cristãos, além de
fazer parte de uma cultura machista, racista etc. –, e, ainda mais, tra-
ta diferentemente as pessoas em função das condições econômicas,
dados os “custos operacionais” do devido processo na defesa dos
envolvidos. Os “pobres” não podem arcar com os altos custos desses
processos e acabam indo muito mais rapidamente para o cárcere.
Ainda mais, a lógica punitivista é realmente uma lógica particu-
larista, esvaziada da contradição de classe, “desclassada”. Pode-se,
efetivamente, punir um ato de discriminação e opressão racista, homo-
fóbico, xenofóbico, machista etc.; porém, nem a lei e nem a sociedade
punem a prática da exploração de classe.
Assim, essa tendência ou opção de enfrentar as manifestações da
“questão social” por meio do papel punitivo do Estado acaba vindo
ao encontro da “função punitiva” de que fala Loïc Wacquant (2004),
quando a instituição estatal (que de fato representa os interesses
hegemônicos do grande capital) se retira paulatinamente do trata-
mento social, operando “direitos sociais” para a “criminalização”
da “questão social”, indo do “Estado social” para o “Estado penal”.
Da mesma maneira que a indústria bélica se alimenta dos conflitos
bélicos, o sistema penal se alimenta da existência de apenados e a
“indústria jurídica do litígio” se robustece estimulando essa lógica.
O punitivismo de esquerda, em síntese, significa confiar e pôr
nas mãos do Estado burguês e das suas instituições (justiça, polí-
cia, sistema repressivo e prisional) o sucesso das lutas antiopressivas
para a superação das estruturas e culturas de opressão, discrimina-
ção e desigualdade. É quase a mesma coisa que acreditar e depositar
nas instituições burguesas a garantia do regime democrático, as lutas
e conquistas populares ou a superação da exploração do trabalho.
Ora, os grupos oprimidos, os setores subalternos, assim como o
conjunto da classe trabalhadora, devem possuir mecanismos de luta
para além das instituições propriamente burguesas.
Se é verdade que tanto a direita moralista e ultraconservadora
quanto esquerda punitivista clamam por punições mais rígidas e su-

190
CAPITULO 4

márias, por outro lado, as instituições nesse processo (polícia, judi-


ciário etc.) pertencem ao Estado burguês, motivo pelo qual as prisões
estão cheias de negros, de trabalhadores e de pobres, enquanto os
chamados crimes de “colarinho branco”, os crimes raciais etc. per-
manecem proporcionalmente impunes.
Isto é, além de equivocado, o caminho punitivista não parece ser
uma opção sensata para a “esquerda” e para os setores subalternos,
pois eles não controlam o poder punitivo do Estado (burguês).
Nesse processo, ainda mais, a “punição” deixa de ser uma ferra-
menta (legal, jurídica) de ação, um meio, para se tornar um objetivo,
uma finalidade. Enquanto objetivo ou finalidade, e não meio, a esquer-
da punitivista alcança sua meta quando o indivíduo transgressor, o
“diferente”, é punido. A luta alcança sua meta, mantendo-se apenas
para fiscalizar, patrulhar e punir outros transgressores, ou simples-
mente: os “outros”. A finalidade deixa de ser o combate ao sistema,
à cultura, à idiossincrasia, o fim é alcançado quando o indivíduo é
punido. É como se – seguindo a mesma lógica penal burguesa – pu-
nindo o(s) indivíduo(s) estivéssemos eliminando os fundamentos do
racismo, do machismo, da intolerância religiosa etc.

F) A punição fora do Estado, particularmente nas redes sociais:


a moralização da ação política
Como falamos, particularmente quando sobre o suposto crime/
infração, ou sobre o executor, não existem provas, evidências, se-
quer indícios, mas apenas “convicções”, convencimentos de uma
“pós-verdade”, em função da confiança ou conveniência na narrati-
va ou no narrador, seja por seu “lugar de fala”, seja pelas emoções
(a rejeição e até a repugnância) que mobilizaram o suposto ato; ou
quando não se confia na justiça – “branca”, patriarcal, cristã e bur-
guesa –, que, assim se entende, promoverá juízos e sentenças par-
ciais a partir dessas condições; ou até em função da lentidão dos
processos, do devido processo e todas suas instâncias e recursos,
e dos fundamentos processuais, como a presunção de inocência, o
direito à ampla defesa e ao contraditório etc.; a partir de alguma
dessas questões, ou de todas elas, o punitivismo (tanto de esquerda

191
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

como de direita) tende a seguir o caminho da condenação e punição


sumária, fora do Estado.
O devido processo, os direitos e os direitos humanos são despre-
zados e substituídos pela “convicção” (crença) que se tem da culpabili-
dade. Para que julgamento quando se tem convicção do crime? Por que
aceitar a lentidão do devido processo? Por que dar direitos a alguém e
presumi-lo inocente quando ele é considerado pós-verdadeiramente (e
antecipadamente) culpado? Como confiar numa justiça “branca”, ma-
chista, cristã e burguesa?
Com questionamentos como esses, o julgamento tende a ser subs-
tituído pela convicção, pela “pós-verdade”, e a pena e o castigo serão
aplicados fora do sistema estatal e das garantias do processo.
Geralmente apoiada e potencializada pelas redes sociais, onde os
“condenados” terão sua vida social destruída.
Os escrachos, reais (em praça pública ou espaços residenciais) ou
virtuais (nas redes sociais), que consistem em chamar a atenção públi-
ca para denunciar um sujeito por seus crimes ou abusos, são um dos
principais métodos de punição fora do Estado e dos processos penais
formais.
Outro método consiste numa espécie de moderno “ostracismo”,39
denominado hoje como “cancelamento”. O chamado “cancelamento”,
principalmente aplicado, com impactos devastadores, especialmente
em figuras públicas, consiste em literalmente “cancelar” ou anular a
pessoa como referente social, nas suas funções e representações, nas
suas relações sociais, mediante a destruição da imagem pública, quei-
mando ou descartando os livros, CDs ou filmes do “cancelado” etc., e
silenciando sua voz.
Em artigo sobre “Identitarismo: A nova cara do liberalismo”, Mou-
ra e Nascimento (2020) afirmam que o “cancelamento” consiste “tão
somente da eliminação por meio do constrangimento de adversários

39 O “ostracismo” tem origem na Grécia antiga, particularmente na Atenas do século V a.C.,


e consistia num tipo de punição especialmente a quem atentava-se contra a liberdade dos
cidadãos. Nesses casos, os atenienses votavam escrevendo o nome do cidadão a condenar
num pedaço de cerâmica, ou “óstraco”, que, alcançando o número de votos, levava o condenado
ao desterro ou exílio por dez anos. O procedimento foi abandonado quando começou a ser
utilizado contra os adversários de quem estava no poder, o que enfraquecia a democracia.

192
CAPITULO 4

ou potenciais perigos que possam causar dissonância na dinâmica in-


terna de um determinado segmento social / político”. Assim, conforme
os autores, “o cancelamento é não só um método perverso de ódio e
justiçamento, mas um meio eficiente de burlar a complexidade de de-
bates históricos e teóricos e, principalmente, os antagonismos entre as
linhas teóricas em disputa”. Dessa forma, continuam, “o cancelamento,
portanto, é um método de acusação feito ‘aos gritos’ onde não existem
argumentos, debates e espaço para o contraditório. O cancelamento é
uma prática de demonstração de poder, de influência pela ameaça e de
ação metódica na construção de párias sociais”, procurando “excluir
socialmente, recontar a história do cancelado – ressaltando todos os
seus pontos negativos”.
Conforme Wilson Gomes (2020), no campo liberal, o linchamen-
to pode ser cometido contra qualquer pessoa, porém o cancelamento
só pode ser praticado em sujeitos com visibilidade social, envolvendo
“ruptura e luto” de quem cancela porquanto o cancelado tinha alguma
significação para ele.
Outra forma de ação punitiva fora do Estado é a intimidação por
meio de ameaças, denúncias, acusações; independentemente de base
empírica ou real (baseado em verdade ou em pós-verdade), o método
visa macular a imagem pública do adversário, com vistas à anulação
política dele. Mas do que o “outro” é acusado? No fundo, de não per-
tencer ao “lugar de fala” em questão. Claro exemplo disso é o episódio
na sessão da Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do Senado, em 20 de
junho de 2017 – em pleno governo Temer, que assumiu a partir do gol-
pe parlamentar de Estado contra Dilma Rousseff em 2016 –, quando,
debatendo a lei de “terceirização” do trabalho estendida às atividades
fins, a presidenta da comissão, Marta Suplicy (ex-prefeita e ex-ministra
pelo PT, e então no PMDB, que apoiou o golpe), impedindo o ingresso
de dirigentes sindicais, intimidou e calou o senador da oposição Lin-
dbergh Farias (do PT) – que recordava o passado da senadora e de-
fendia o ingresso dos trabalhadores –, com a frase: “Olha o machismo
e se cuida!”. O resultado dessa intimidação foi: o silêncio do senador
acuado (ameaçado) e o não ingresso dos trabalhadores na sessão que

193
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

precarizou ainda mais os contratos de trabalho.40 Vejamos, o “lugar de


fala” aqui é a mera condição de mulher, e não a defesa de uma bandeira
feminista pela igualdade de gênero, área na qual a senadora Suplicy
não tinha qualquer histórico de lutas, tampouco na defesa dos(as) tra-
balhadores(as); a intimidação visa apenas anular ou cancelar o “outro”, o
discordante, ameaçando destruir sua imagem pública, com claros ob-
jetivos políticos, sejam eles de esquerda ou de direita, como o exemplo
em questão.
A destruição da imagem pública do “outro” já é secular e própria
dos setores autoritários, opressores e dominantes – basta dar uma olhada
nos processos da Inquisição, da colonização das Américas, do nazifas-
cismo, das ditaduras militares etc. –, assumindo novas determinações,
potencializadas pela internet e pelas redes sociais – como é claro o
exemplo do chamado “gabinete do ódio”, vinculado aos filhos de Bol-
sonaro, no Brasil, disseminando desde a campanha eleitoral de 2018, e
durante o governo, fake news para destruir socialmente os adversários.41
Porém, a partir da polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna,
fundada na “pós-verdade” e no “lugar de fala”, esses métodos punitivis-
tas, sumários e fora do Estado, particularmente nas redes sociais, assu-
mem dimensões relevantes agora também na ação de setores das esquerdas.
Assim, o fundamento desse tipo de ação punitivista na esquerda
(assim como na direita) está na enorme polarização social e na into-
lerância, e visa à anulação do debate de ideias e à eliminação sumária
do “adversário”, o que leva à transformação de questões políticas em
questões de ordem moral.
Esse processo se agravou de tal maneira, com profundos impac-
tos na vida social, cultural, intelectual, acadêmica e política, que le-
vou mais de 150 artistas e intelectuais nos EUA, de diversos espectros
políticos, dentre os quais o linguista marxista Noam Chomsky e a

40 Ver notícia em: <https://noticias.uol.com.br/videos/index.amp.htm?id=olha-o-machismo-e-


se-cuida-diz-marta-a-lindbergh-em-sessao-sobre-reforma-04024D1A3370D0916326>; acesso
em: ago. de 2020.
41 Sobre o “gabinete do ódio” ver: <https://istoe.com.br/o-cancelamento-do-gabinete-do-
odio/>, <https://www.gazetadopovo.com.br/republica/gabinete-do-odio-alvo-cpmi-fake-news/>;
<https://theintercept.com/2020/07/11/mbl-luciano-ayan-renan-santos-fake-news/> e <https://
harpers.org/a-letter-on-justice-and-open-debate/>; acessos em: ago. de 2020.

194
CAPITULO 4

jornalista e ativista feminista Gloria Steinem, a assinarem uma “Carta


sobre a justiça e o debate aberto”.42 A mesma, que inicia apoiando os
protestos, após o assassinato de George Floyd (nos EUA, em 2020),
contra a desigualdade racial e a brutalidade policial contra negros
nos EUA, em seguida passa a questionar o moralismo e a intolerância
que têm se instalado não só no campo da direita, mas particularmente
no da esquerda, e que tendem a “enfraquecer as normas do debate
aberto e da tolerância às diferenças em favor da conformidade ideoló-
gica” (VV.AA., 2020). Na carta, os signatários afirmam ter se instalado
uma “intolerância a pontos de vista opostos, uma moda de promover
a vergonha e o ostracismo públicos e a tendência de reduzir questões
políticas complexas a certezas morais cegas” (ibidem). Para eles, “a
forma de combater ideias ruins é pela exposição, debate e persuasão,
não por tentar silenciá-las”, e afirmando que, “como escritores, pre-
cisamos de uma cultura que nos deixe espaço para experimentação,
riscos e até erros” (ibidem).
Em síntese, o punitivismo, por tudo que foi exposto, transforma a
luta política ora em ação penal estatal – ao criminalizar a questão, tornan-
do a punição seu objetivo central, leva à despolitização da mesma –, ora
em ação sumária, direta e moral fora do Estado – por meio do ajuizamento
moral dos fatos e dos supostos atores, o que significa a moralização da
luta política.
Não se trata aqui, como já apontamos, nem de questionar a ação
penal, nem o escracho ou outros métodos de ação direta ou extraesta-
tal. O que estamos apontando aqui é o problema de tomar esses pro-
cessos como métodos e objetivos centrais ou exclusivos da luta política,
especialmente quando não baseados em fatos e evidências, mas em
convicções sobre uma “pós-verdade”.
É nesse sentido que, em entrevista, Haider afirma: “Se você tem
uma organização ou um movimento que é dominado por homens
brancos, isso é um problema político e estratégico. [Porém] se ele for
tratado como um problema moral, não haverá como resolvê-lo” (2018).
42 Publicada, em 7 de julho de 2020, na Harper’s Magazine. Disponível em: <https://harpers.
org/a-letter-on-justice-and-open-debate/>; <https://www.anj.org.br/site/exemplos/artistas-e-
intelectuais-assinam-manifesto-contra-silenciamento-e-a-favor-da-liberdade-de-expressao>;
acesso em: ago. de 2020.

195
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Dessa forma, a ação punitivista individualizada, como objetivo


central da luta política, deriva na clara moralização e despolitização de
uma questão que é essencialmente política, fazendo o mesmo com a
categoria de “identidade” e com as causas e lutas antiopressivas.
O escracho, real ou virtual, na praça pública ou nas redes sociais,
como uma forma de denunciar, desmoralizar e até “cancelar”, levan-
do ao “ostracismo” social, constitui uma das principais ferramentas
do “punitivismo de esquerda” (e de direita), justamente porque não
depende de processos judiciários, sustentados no princípio de “pre-
sunção de inocência”, do “contraditório”, da análise de provas, mas
depende apenas da convicção, do pré-julgamento, numa clara relação
com a chamada “pós-verdade”.
Ora, a partir da polarização moral, o linchamento público e o es-
cracho virtual nas redes sociais, com palavras de ordem, só impacta,
via de regra, nos sujeitos do próprio espaço político-ideológico, tornan-
do-se ineficiente quando o objetivo é atingir o outro campo político.
Como afirma Gomes (2020), “os identitários de esquerda, portanto, ata-
cam justamente onde podem machucar, ou seja, só arremetem contra
pessoas de esquerda ou pessoas com empatia. Afinal, ninguém pode
difamar uma outra pessoa se o alvo justamente desejar a ‘fama’ que se
quer imputar-lhe”.
Quando se “moraliza” a política, a ação só impacta naqueles que
compartilham a mesma moral, sendo inócua para os “outros”.
É tão inútil quando a esquerda chama de homofóbico, racista,
machista alguém que se inscreve conscientemente nesses valores, como
é igualmente carente de impacto quando a direita taxa de comunis-
ta, esquerdista ou defensor dos direitos humanos quem se identifica
com tudo isso. No Brasil, isso foi por demais visível quando setores
progressistas chamam Bolsonaro e seus aliados de fascistas, milicianos,
homofóbicos, racistas etc. Eles são tudo isso mesmo, nunca esconde-
ram e nem têm vergonha ou problema, sequer eleitoralmente, com essa
crítica. Ao contrário, têm um público e um eleitorado que os seguem e
os apoiam precisamente por isso.
Isto é, a esquerda desenvolveu uma tática “política” – despoliti-
zando a política e transformando-a em questão moral – que é inócua

196
CAPITULO 4

contra o adversário político maior, mas que internamente, na própria


esquerda, é terrivelmente destrutiva e divisionista.
Ainda mais, como já afirmamos, parece que na lógica punitivista
da esquerda, que visa ao linchamento sumário, e da direita, que con-
dena os direitos humanos de penas brandas, o devido processo só deve
existir para alguns (o “nós”, os “cidadãos de bem” ou os “politica-
mente corretos”) e não para outros (precisamente para os “outros”,
os inimigos).
Dessa forma, a lógica punitivista, via de regra, tende a fundamen-
tar a ação ou a “justiça” independentemente das (ou desprezando as)
garantias jurídicas do Estado, seja por entendê-lo marcado pelos “di-
reitos humanos” (na visão ultraconservadora), ou seja por entendê-lo
composto e controlado pelos setores opressores, machistas, racistas etc.
(na perspectiva identitarista do campo progressista), e, em ambos os
casos, rejeitando as garantias do devido processo. Ainda, quanto mais
repugnante aos nossos sentidos e às nossas emoções for o crime impu-
tado, menos interesse tendemos a ter nas garantias do devido processo
e dos direitos, nos princípios jurídicos da “presunção de inocência” e
do contraditório, no direito de ampla defesa, nas provas, enfim, na ver-
dade dos fatos, e mais tendemos a clamar por punições mais severas.
Nesse mesmo sentido, Karam condena:
a atitude de quem se intitula “garantista”, mas nega o mínimo de
garantias quando se vê diante de um alegado fato visto como es-
pecialmente ofensivo a suas crenças, sentimentos ou posiciona-
mentos políticos, revela clara adesão à antiga, nefasta e hipócrita
prática de trabalhar com “dois pesos e duas medidas”, sob o aé-
tico princípio de “fins justificam os meios”, não se incomodando
em manipular dores e tragédias (reais ou não), instrumentalizar
fatos, eleger e sacrificar “bodes expiatórios”, em nome de uma
suposta necessidade de fazer avançar suas justas (ou não) reivin-
dicações político-sociais (2016).

Assim, continua a autora, “silenciando ou até mesmo aplaudindo a


violação a normas constitucionais, quando esta atinge seus ‘inimigos’,
os setores progressistas comportam-se exatamente como seus adver-

197
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sários” (ibidem), “reivindicando direitos e garantias para uns [os ‘ami-


gos’] e desenfreado rigor punitivo para outros [os ‘inimigos’]” (ibidem).
Ora, primeiramente, o devido processo constitui direito de todos
os indivíduos, e se ele não é aplicado igualitariamente por um Estado
discriminador, devemos lutar para garantir esses direitos para todos,
por mais arrepiante que seja, para nós, o crime imputado, justamente
porque é “imputado”, e não “comprovado”. É nessa passagem da imputa-
ção para a comprovação que, particularmente, o devido processo deve
ser garantido, para evitar condenações judiciais sumárias, como a dos
imigrantes italianos nos EUA, Sacco e Vanzetti,43 condenados à morte
na década de 1920, ou para evitar linchamentos extrajudiciais, levando
ao ostracismo e, no limite, ao suicídio, como no caso do reitor da UFSC,
Luiz Carlos Cancellier de Olivo, em 2016.44
Em segundo lugar, e como já afirmamos, a defesa dos direitos e do
devido processo de forma alguma significa uma defesa da inocência ou
da impunidade do sujeito.
Dessa forma, a polarização da “lógica identitarista”, a pós-verdade
e o punitivismo se unem. Quando se confia e se acredita no discurso
da vítima (real ou não), parece que provas não são necessárias e que o
devido processo é visto como “perda de tempo” ou como sinônimo de
“impunidade”. Nesse caso, a (suposta) “justiça”, mediante a punição,
deverá ser direta, sumária e implacável.
O sentido de “justiça” se esgota e limita na punição. Assim, ambos
os conceitos, justiça e punição, passam a ser vistos como sinônimos. O
indivíduo é punido, mas a estrutura opressiva é poupada, e permanece
incólume.

4.2- O “reconhecimento” e a “inclusão” (mediante o direito, políticas e


acesso a bens e serviços) como outro objetivo político

Outra finalidade central da “lógica identitarista” são as demandas

43 Ver o filme Sacco e Vanzetti (1971), disponível em: <https://www.youtube.com/


watch?v=PdhIMUVfpPM>, acesso em: jul. de 2020.
44 Ver: <https://brasil.elpais.com/brasil/2017/10/04/politica/1507084756_989166.html>,
acesso em: jul. de 2020.

198
CAPITULO 4

pelo “reconhecimento” e pela “inclusão social”. Elas são reivindicações


históricas das lutas de classes e são certamente importantes como meios,
mas elas são destotalizadas pela “pauta” identitarista pós-moderna e
colocadas como uma finalidade. Vejamos.

A) A necessária (porém insuficiente) luta por “reconhecimento”


Por um lado, as demandas e as lutas pelo “reconhecimento” re-
ferem-se historicamente ao reconhecimento da sua humanidade (por
exemplo, a dos escravos), dos direitos igualitários (por exemplo, os
da mulher), de direitos específicos (como o de constituir matrimônio
legítimo, demandado pelo movimento LGBT), dos direitos civis (por
exemplo, os do imigrante), isto é, o reconhecimento de sua cidadania.
A noção de demandas ou lutas por “reconhecimento” já está pre-
sente nos debates políticos clássicos do século XIX, particularmente,
a partir de Hegel, em Marx. Conforme o marxista italiano Domenico
Losurdo, as lutas de classe expressam e reivindicam tanto a “redistribui-
ção de renda”45 (em torno da exploração e distribuição da riqueza) como
o “reconhecimento” (em torno da opressão). Para ele, “a luta proletária
promovida por Marx e Engels, além da vigente distribuição da renda [da
riqueza], tem como alvo as relações de coerção e os processos de de-
sumanização que constituem a sociedade capitalista. Ademais, não é
possível traçar uma linha clara entre a luta pela redistribuição e a luta
pelo reconhecimento” (LOSURDO, 2015, p. 112).
Losurdo, ao tratar da dupla dimensão das lutas de classes, expõe,
por um lado, a luta pelo “reconhecimento”, e por outro a luta pela
“redistribuição da renda”. Na verdade, neste último caso, a demanda
pode estar atrelada à esfera redistributiva, mas ela é fundada na distri-
buição econômica, não no mercado, mas na divisão de classe na esfera
produtiva, na desigual distribuição do valor entre os produtores dire-
tos e seus exploradores.
Isto é, na obra marxiana, conforme o autor italiano, ao tratar de lu-
tas por “reconhecimento”, em torno das relações de coerção e de opres-
são, está se falando de um aspecto das lutas de classes, complementar às
45 Losurdo trata, a nosso ver equivocadamente, a “distribuição da riqueza” como
“redistribuição da renda”.

199
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

lutas pela “distribuição/redistribuição da riqueza” (ou, no termos de


Losurdo, a “redistribuição da renda”), historicamente presentes nas
“três frentes emancipadoras da luta de classes”, a da “libertação das
‘nações oprimidas’” e coloniais, a da “emancipação política e social da
mulher” e a da “emancipação dos escravos afro-americanos” (ibidem,
p. 91-92).
Losurdo afirma que “a reivindicação do reconhecimento” aparece
entre aqueles que, “de uma maneira ou de outra, percebem estar sub-
metidos a cláusulas de exclusão, que humilham e esmagam sua digni-
dade humana” (ibidem, p. 94). Assim, sustenta ele, “em toda etapa da
luta de classes observamos emergir a reivindicação do reconhecimen-
to” (ibidem, p. 96). Para ele, o embate dos “povos coloniais, das classes
subalternas [e] das mulheres” representa “uma prolongada luta pelo
reconhecimento. O conflito social é ao mesmo tempo [uma luta pela
redistribuição e] uma luta pelo reconhecimento” (ibidem, p. 115).
Conforme aponta Losurdo, “na visão de Marx e Engels, os escra-
vos assalariados [o proletariado] dão o primeiro passo na luta pelo
reconhecimento entrando em relação entre si”, já que “entrando em
contato entre si, os membros de uma classe […] oprimida […] apren-
dem a se conhecer e sacodem o descrédito e o autodescrédito impostos
pela classe dominante” (ibidem, p. 116).
Na esteira disso, Vladimir Safatle defende a luta pelo igualitarismo
num projeto que numa primeira dimensão “diz respeito à luta contra
a desigualdade econômica”, e numa segunda dimensão “se refere à estru-
tura das demandas de reconhecimento da vida social” (2018, p. 26-27). A
partir dessa análise, Safatle também entende as demandas e lutas por
“redistribuição da renda” (ou da riqueza) e por “reconhecimento” como
componentes das lutas de classes (ibidem, p. 21).
No entanto, tudo isso, o tratamento pós-moderno do reconheci-
mento atrelado à “lógica identitarista”, retira do “reconhecimento” sua
condição de classe e sua vinculação com as demandas por “distribui-
ção / redistribuição” da riqueza (ou demandas econômicas), fazendo do
“reconhecimento” uma demanda autônoma, dissociada da questão da
exploração e distribuição da riqueza e arrancada da totalidade social,
transformando ainda essas demandas de meios em fins da ação política.

200
CAPITULO 4

Assim, como aponta a feminista Nancy Fraser, o feminismo, no


contexto do “capitalismo organizado pelo Estado” (pós-1945), arti-
culava nas suas lutas as três dimensões sob as quais se desenvolve a
desigualdade de gênero: a econômica (pela redistribuição), a cultural
(pelo reconhecimento) e a política (pela representação), entrelaçadas
por uma crítica ao “capitalismo androcêntrico” (FRASER, 2009, p.
14). Porém no contexto da crise capitalista e da hegemonia neoliberal
(pós-1973), essas lutas são desarticuladas e ressignificadas, porquan-
to “as reivindicações por justiça foram progressivamente expressadas
como reivindicações [meramente] pelo reconhecimento da identidade e
da diferença”. Assim, continua, “com essa mudança ‘da [luta pela] re-
distribuição para o reconhecimento’ vieram pressões poderosas para
transformar [o feminismo] em uma variante da política de identida-
de”, escorregando para o “culturalismo” (ibidem, p. 23). Dessa forma,
a questão cultural (demanda por reconhecimento) não apenas foi dis-
sociada da questão econômica (demanda por redistribuição) e política
(demanda por representação), como foi igualmente afastada da crítica
ao capitalismo (ibidem, p. 24).
Nessa perspectiva, desarticulam-se e autonomizam-se as duas es-
feras das lutas de classes:46 a) por um lado, as lutas pela “redistribuição
da renda”, lutas “econômicas” em torno da exploração, reduzindo as
lutas de classes a apenas essa dimensão, e consideradas relevantes até a
crise capitalista e o esgotamento do chamado socialismo real (nos anos
1970-1980); e b) por outro lado, as lutas pelo “reconhecimento”, desgar-
radas das lutas de classes, apenas “políticas”, em torno das relações
de opressão, e consideradas como de maior (ou de absoluta) relevân-
cia no processo de lutas a partir das crises mencionadas e da eventual
emersão de uma sociedade “pós-moderna” (ver LOSURDO, 2015, p.
91). Nas palavras de Losurdo, ocorre assim, “a partir da crise e do co-
lapso do ‘campo socialista’”, uma suposta “mudança de paradigma”,
do “paradigma da redistribuição (cujo intérprete seria o movimento
operário)” para o “paradigma do reconhecimento (que encontraria sua
encarnação em primeiro lugar no movimento feminista [e em seguida
46 Poderíamos, seguindo Fraser, adicionar uma terceira esfera nas lutas de classes: a esfera
das lutas por “representação” política.

201
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

se estendendo para os movimentos identitários em geral])” (ibidem, p.


312). O resultado é a “fragmentação da luta de classes” (ibidem, p. 313),
separando primeiramente as demandas econômicas (redistributivas)
das políticas (por reconhecimento), e em segundo lugar desarticulando
essas demandas políticas umas das outras.
Isto é, a luta pelo “reconhecimento” é apresentada por Marx e pela
tradição marxista como parte das lutas de classes, mas elas só podem
ser compreendidas em seu potencial político quando atreladas às lu-
tas por “redistribuição”; isto é, as lutas políticas e econômicas não são
processos isolados e dissociadas uma da outra, ambas são constitutivas
das lutas de classes.
Porém, na análise e na programática pós-moderna, o “reconheci-
mento” e as lutas por “reconhecimento” são arrancados e dissociados
da base econômica; isto é, a reflexão pós-moderna separa a luta política
da luta econômica, não mais como duas dimensões das lutas de classes,
mas como processos independentes e desarticulados, e até alternativos.
Ora, se desarticulada das lutas de classe, especificamente da de-
manda por igualdade econômica, a luta por “reconhecimento” consti-
tui uma demanda necessária, porém insuficiente.
Assim, nessa perspectiva (pós-moderna), o “reconhecimento”, au-
tonomizado das lutas de classe, tornar-se-á a mera inserção na socieda-
de capitalista.
A luta pelo reconhecimento, transfigurada pela razão pós-moderna,
representa, dessa forma, uma demanda e um objetivo meramente in-
clusivistas.

B) A demanda (imediata) por “inclusão” (dentro da ordem)


Assim, por outro lado, o conceito de “inclusão” parte, primeira-
mente, da ideia de que há sujeitos “excluídos”, seja do poder político ou
do acesso a bens e serviços, seja de direitos ou até da condição plena de
cidadania.
A noção de “exclusão” precisa ser bem ponderada, pois, por um
lado, ela faz referência a um processo real e concreto, quando setores
sociais são efetivamente excluídos dessas questões em algum grau. Po-
rém, por outro lado, esse conceito merece algumas observações. Pri-

202
CAPITULO 4

meiramente, quando as análises pós-moderna e liberal o empregam em


evidente substituição da categoria de “classe social”. Em segundo lugar,
por se tratar de um conceito amplo, ele pouco nos diz sobre cada uma
das expressões dessa exclusão. Em terceiro lugar, porque o pensamen-
to pós-moderno dissocia a questão da “exclusão” dos determinantes
estruturais do MPC. Finalmente, em quarto lugar, porque tende-se a
interpretar a “exclusão” como uma espécie de “marginalidade”, quando
na verdade se trata de uma forma particular de inserção no sistema social,
e não de uma plena marginalização (ver NUN, 2001). Sobre esse último
aspecto, Jaime Osorio afirma que:
a exclusão no capitalismo não é senão uma face particular da in-
clusão na valorização e domínio do capital, e expressa o excesso
de uma universalidade que integra expulsando. Por isso, quando
[…] pensam a exclusão como elemento exterior, com um algo
alheio, suas soluções passam por pensar em como incluir o que
de fato já está incluído (OSORIO, 2012, p. 109).

Trata-se, portanto, de incluir “plenamente” o que já está incluído


“parcialmente”, porém sem jamais superar a subordinação e a opres-
são estrutural. Conforme o autor, parte da população excedente “cum-
pre um significativo papel na valorização” do capital (ibidem, p. 111),
enquanto outra parte, mesmo que plenamente fora da economia, mal
chamada de “marginal”, tem um papel político importante (como mas-
sa de manobra) nos processos eleitorais (ibidem, p. 116).
Trata-se, portanto, da “inclusão excludente” de certos grupos (ibi-
dem, p. 121), que o capital, porém, assim como as análises pós-moder-
nas, tratam como alheios ao sistema, marginais, externos; e, a partir
dessa compreensão, a resposta passa pela elaboração de políticas orien-
tadas para “incluir o que de fato lhe pertence e já se encontra incluído”
(ibidem, p. 124).
Dessa forma, a programática pós-moderna fala de inclusão digital,
pela dança, pelo esporte, pela arte etc. A solução pareceria ser incluir os
indivíduos excluídos. Vejamos bem.
Nas dicotomias exclusão / inclusão, conforme a linguagem pós-
-moderna, semelhante ao disfuncional / funcional do positivismo, ou ao

203
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

marginal / integrado da teoria sistêmica, certamente partindo de pres-


supostos e perspectivas políticas diferentes, no entanto, todas essas
antinomias remetem a uma noção estável do todo, do sistema, no qual
o indivíduo precisa ser integrado, incorporado, incluído, refuncionaliza-
do. Assim, a superação da exclusão passa pela inclusão, a correção da
disfuncionalidade passa pela refuncionalização, a eliminação da mar-
ginalidade exige a integração.
Numa lógica totalmente diversa, a categoria exploração não tem
uma antinomia, pois não tem como ser superada ou “resolvida” den-
tro da ordem do capital. Exploração não remete a um sistema estável
e a um indivíduo a ser nele incluído, mas diz respeito a um sistema
(capitalista) que, para eliminar a exploração, deve ser transformado
(trataremos disso no item 6.3).
Ora, a inclusão como “meio” certamente é muito importante e em
muitos casos essas atividades representam avanços que não podem ser
desprezados, porém incluir significa necessariamente a aceitação do
lócus, do sistema, onde quer se incluir. Isto é, a “inclusão” significa
incluir dentro da ordem burguesa, da sociedade capitalista.
É também nesse sentido que Haider afirma que: “Reivindicar inclu-
são na estrutura da sociedade como ela é significa se privar da possibi-
lidade de mudança estrutural” (2019, p. 48). Isto é, o objetivo da inclu-
são na sociedade estabelecida, nas suas regras sociais, nos direitos civis,
pode, em algum grau e no imediato, representar um objetivo progres-
sista, estendendo os direitos aos setores subalternos, amenizando certos
aspectos da desigualdade, o que não pode ser desprezado ou desqua-
lificado; porém também não podemos ignorar que “incluir” tem como
pressuposto a manutenção da estrutura e, portanto, sua legitimação.
Não teria nenhum sentido, a não ser como algo transitório, reivindicar a
“inclusão” em algo que é rejeitado e se procura transformar.
Assim, conforme Wendy Brown,47 a política identitária visa à in-
clusão social, tendo na classe média “o ideal ao qual as identidades
que não são de classe” devem se orientar (apud HAIDER, 2019, p. 48).
Dessa forma, continua, “o que temos chamado de política identitária é
47 Cientista política norte-americana e autora, entre outros, de Regulating Aversion:
Tolerance in the Age of Identity and Empire e States of Injury, e companheira de Judith Butler.

204
CAPITULO 4

parcialmente dependente da perda de uma crítica do capitalismo e dos


valores culturais e econômicos burgueses” (apud HAIDER, 2019, p. 47),
complementando que, quando carentes de uma crítica ao capitalismo,
as políticas identitárias […] aparecerão não como um comple-
mento da política de classe, não como uma expansão das catego-
rias de esquerda de opressão e emancipação, não como uma am-
pliação enriquecedora de formulações progressistas sobre poder
e pessoas […], mas como vinculadas a uma ideia de justiça que
reinscreve um ideal burguês (masculinista) como sua medida
(apud HAIDER, 2019, p. 47).

Dessa forma, quando a inclusão deixa de ser um meio para se tor-


nar uma finalidade (o objetivo central), por um lado, a perspectiva de
transformação social é substituída pela aceitação, legitimação e repro-
dução da ordem, e com isso, por outro lado, produz-se a inclusão num
sistema que é estruturalmente excludente e desigual, reforçando o pró-
prio sistema social que gera essas formas de desigualdade e exclusão.
Com esse caráter aparentemente (ou momentaneamente) positivo
no plano imediato, no entanto, o grande ausente do processo de inclu-
são é a classe social, a esfera econômica (a distribuição da riqueza) e o
sistema capitalista.
É nessa direção que a historiadora brasileira Virginia Fontes ana-
lisa o processo de desenvolvimento desse tipo de ação ou de política
afirmativa. Conforme ela aponta, nos anos 1990, desde a destituição
do governo Collor, mediante o impeachment de 1992, e a transferência
de poder para o vice-presidente Itamar Franco, até os governos FHC,
podemos encontrar a origem dessas ações no Brasil. Elas têm, confor-
me a autora, uma clara conotação “apartidária” e “anticlasse”. Para a
autora, desde o Movimento Ética na Política, que exigia a destituição
de Collor, e que se converteria, depois do impeachment, em Ação da
Cidadania e finalmente no Movimento pela Ação da Cidadania contra
a Miséria e pela Vida (capitaneada pelo sociólogo Herbert de Souza, o
Betinho, mediante o Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômi-
cas, IBASE), o que se verifica é um movimento político que “eximia-se
da perspectiva de organização de classes, limitando-se a uma aborda-

205
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

gem moralizante” (FONTES, 2010, p. 274). Conforme a autora, “o tema


da desigualdade começava a travestir-se de pobreza. A miséria foi apre-
sentada sob um formato de grande impacto emocional e cultural, de
base mobilizadora e filantrópica (doações)” (ibidem, p. 274-275, grifos
nossos).
Em seguida, articulando ONGs com fundações de empresas pri-
vadas e ações do governo, mediante o programa Comunidade Solidá-
ria, coordenado pela então primeira-dama Ruth Cardoso, nos gover-
nos FHC, a ação social passa a desempenhar-se mediante um abstrato
“terceiro setor” (ver MONTAÑO, 2002), em que, novamente, o grande
sujeito ausente é a classe trabalhadora, e a grande questão ausente é a
exploração, como fundamento da desigualdade, da pobreza e particu-
larmente da fome. Como se a fome fosse autorreferenciada aos famin-
tos, e não uma manifestação da contradição que funda uma sociedade
estruturalmente desigual: a exploração de classe. Nessa visão, comba-
ter a fome passa por uma ação “solidária” que reúne todos os cidadãos
(independentemente de classe) e todas as instituições (ONG, fundação
empresarial e Estado) num objetivo e numa causa (supostamente) co-
mum. Inicia-se o processo de deseconomização e desclassamento da
ação (a)política.
Dessa forma, segundo afirma Fontes, surge a “nova tática burgue-
sa de ‘administração’ de conflitos”, que leva à transformação “da de-
manda de igualdade para o terreno da ‘inclusão’” (ibidem, p. 275).
Deixa de se pensar a pobreza como uma manifestação da desigual-
dade estrutural, que relaciona e opõe acumulação e pobreza (MON-
TAÑO, p. 278 e ss.), e portanto a ação passa a centrar-se no resultado
imediato – pois, como afirma o slogan da campanha “Quem tem fome,
tem pressa” –,48 abandonando-se a luta pela transformação estrutural e
perpetuando-se o fundamento da desigualdade, a exploração.
Nesse processo, as lutas sociais e de classe contra os fundamentos
da desigualdade são reduzidas à institucionalização de conflitos, orien-
tada para ações multiclasses em prol de (supostas) “metas comuns”;
assim, conforme Fontes, “a proposta da redução democrática à gestão
48 Ver site da ONG “Ação da Cidadania” em: <https://www.acaodacidadania.com.br/nossa-
historia>; acesso em: ago. de 2020.

206
CAPITULO 4

de conflitos imediatos se disseminava” (ibidem, p. 281). Nesse sentido, a


autora mostra que assim “deslocara-se a articulação entre as lutas, que
até então mantinham uma unidade tensa em torno da configuração das
classes sociais no Brasil, para o terreno mercantil-filantrópico […] vol-
tado para a pobreza […]. A pobretologia – e não um estudo da relação
entre as classes e destas com as formas específicas da acumulação de
capital – se difundia” (ibidem, p. 347). Conforme ela, nesse processo,
“aprofundava-se um ativismo estéril ao lado do apassivamento diante
da precarização das condições de trabalho” (ibidem).
Dessa forma, no plano imediato, a pauta inclusivista sustenta-se no
acesso, mediante direito e políticas compensatórias e/ou afirmativas, a
bens e a serviços, na maior presença institucional e na condição formal
de plena cidadania.
Por um lado, do ponto de vista institucional, o processo de inclusão
é realizado a partir das chamadas políticas e ações “afirmativas”.
Esse tipo de políticas ou de ações são “afirmativas” porque partem
do reconhecimento da desigualdade social a partir de diferenças de gê-
nero, de raça, de etnia, de religião etc. e, portanto, não trabalham com
conceitos abstratos de igualdade (de cidadania), somente com a reali-
dade concreta da desigualdade. A partir do reconhecimento factual da
desigualdade de raça, de gênero etc., as políticas ou ações afirmativas
– como pertencem à esfera estatal ou da sociedade civil e do merca-
do, e porque conformam políticas públicas ou ações pontuais – visam
compensar ou reparar as desigualdades históricas mediante mecanismos
institucionais, transitórios, que garantam a real igualdade de oportuni-
dades de acesso (ao ensino público, ao emprego, à representação etc.).
Isto é, mesmo que a Constituição (no seu art. 5o) e a legislação bra-
sileira tratem (formal e abstratamente) todo cidadão como igual, a rea-
lidade fática mostra uma enorme desigualdade social em função de
gênero, raça, etnia, religião etc. É justamente para reverter, ou compen-
sar, essa desigualdade fatual e garantir a igualdade constitucional, que
as ações e políticas afirmativas tratam desigualmente os desiguais (ver
item 6.1-B), como está implícito no conceito de “discriminação positi-
va”. Ou seja, a determinação jurídica da igualdade (formal) é importan-
te, mas não é suficiente para concretizá-la; num contexto de desigual-

207
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

dade estrutural e histórica, é preciso o estabelecimento de medidas que


visem combater a desigualdade.
O conceito de “ação afirmativa” surge nos EUA nos anos 1960, fun-
damentalmente orientado para questões de discriminação e desigual-
dade racial. Já no Brasil, ele é incorporado como política de Estado no
Estatuto da Igualdade Racial (Lei 12.288/2010), durante o governo Lula,
“destinado a garantir à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos individuais, coletivos e di-
fusos e o combate à discriminação e às demais formas de intolerância
étnica”,49 e acompanhado de diversas leis estaduais anteriores, funda-
mentalmente orientadas para a reserva de vagas ou cotas sociais (por
renda ou porque o indivíduo é proveniente da rede pública de ensino)
e/ou étnico-raciais para o ingresso em universidades públicas.50 Ainda
há precedentes, como o caso das cotas reservadas à contratação de pes-
soas reabilitadas ou portadoras de deficiência por parte de empresas,
conforme art. 93 da Lei 8.213/1991.51
Por seu turno, a noção de “discriminação positiva” se contrapõe à
discriminação, ou “discriminação negativa”. Isto é, num ambiente de
igualdade social real não há, em tese, discriminação; porém numa so-
ciedade estruturalmente desigual, mesmo com a afirmação da igual-
dade formal, a discriminação precisa ser combatida (ou revertida) com
medidas compensatórias e reparadoras que consigam compensar os
danos que ela causou, conformando a noção de “discriminação positi-
va”, que se constitui como fundamento e pilar das “ações afirmativas”.
Conforme aponta Silvio Almeida, “ações afirmativas são políticas
públicas de promoção de igualdade nos setores públicos e privados, e
que visam a beneficiar minorias sociais historicamente discriminadas”,
como a política de “cotas raciais” (ALMEIDA, 2019, p. 145).
Para o autor, se o racismo é um fenômeno estrutural (ver itens
2.3-A e 6.2), as instituições, entanto representam e reproduzem essas
formas de dominação e desigualdade, precisam sofrer mudanças nos
49 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2010/Lei/L12288.htm>;
acesso em: ago. de 2020.
50 Ver em: <http://gemaa.iesp.uerj.br/legislacao/>; acesso em: ago. de 2020.
51 Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8213cons.htm>; acesso em: ago. de 2020.

208
CAPITULO 4

seus “mecanismos discriminatórios […] inclusive atribuindo certas


vantagens sociais a membros de grupos raciais historicamente discri-
minados” (ibidem, p. 41). E, como o autor afirma, “um exemplo dessa
mudança institucional são as políticas de ação afirmativa, cujo objetivo
é, grosso modo, aumentar a representatividade de minorias raciais e alte-
rar a lógica discriminatória dos processos institucionais” (ibidem, p. 42),
como políticas compensatórias e reparadoras.
Porém, complementa Almeida, essas mudanças institucionais rea-
lizadas mediante as chamadas políticas ou ações “afirmativas”, que
do ponto de vista dos grupos subalternos representam conquistas, mas
para as instituições e os setores dominantes representam “concessões
[que] terão de ser feitas para os grupos subalternizados a fim de que
questões essenciais como o controle da economia e das decisões funda-
mentais da política permaneçam no grupo hegemônico” (ibidem, p. 41).
Ainda, não poucas vezes, as “ações afirmativas” são questionadas tan-
to por setores dominantes, como por grupos subalternos da população,
por não compreenderem o princípio de “discriminação positiva”, que,
para eles, representariam privilégios. Certamente é dessa maneira que
os fundamentos neoliberais o compreendem,52 porém, esse entendi-
mento aparece também em grupos sociais subalternos e precarizados,
nos estratos sociais mais baixos da população trabalhadora.
Nesse sentido, as políticas e ações “afirmativas” carregam uma
certa ambiguidade ou dualidade intrínseca: por um lado, elas visam
52 Para Hayek, qualquer intervenção estatal na economia, mesmo procurando a igualdade e
a justiça social, significaria uma afronta ao princípio da liberdade. Assim, conforme afirma, os
direitos individuais ou a igualdade de direito das minorias perdem “todo o valor num Estado que
empreende o controle integral da vida econômica” (HAYEK, 1990, p. 96), isto é, “a liberdade
econômica […] constitui o requisito prévio de qualquer outra liberdade” (ibidem: 107), e esta
não aceita intervenção estatal. Segundo ele, “se submeter a um poder capaz de coordenar os
esforços dos membros da sociedade com o objetivo de atingir determinado padrão de distri-
buição considerado justo” (idem, 1985, p. 82), “levará à destruição do único clima em que os
valores morais tradicionais podem florescer, ou seja, a liberdade individual” (ibidem, p. 86).
Segundo o autor, “é importante que, na ordem de mercado (enganosamente chamada
de ‘capitalismo’) os indivíduos acreditem que seu bem-estar depende, em essência, de seus
próprios esforços e decisões [e não do esforço de toda a sociedade através do Estado]. De
fato, poucas coisas infundirão mais vigor e eficiência a uma pessoa que a crença de que a
consecução das metas por ela mesma fixadas depende sobretudo dela própria” (ibidem, p.
93). Para ele, “qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva leva
à destruição do Estado de Direito”, já que, “para proporcionar resultados iguais para pessoas
diferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente” (idem, 1990, p. 91), o que é considerado
pelo nosso autor como um sistema de “privilégios” [sic].

209
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

compensar, reparar ou diminuir as desigualdades geradas a partir das


diferenças de gênero, de etnia, de raça etc., constituindo políticas ou
ações específicas orientadas para certos grupos historicamente subal-
ternos e desfavorecidos, mas, por outro lado, elas precisam afastar o
risco de reforçar os fundamentos dessa discriminação e desigualdade
que estão atrelados a essas diferenças.
Assim, as chamadas políticas ou ações “afirmativas”, enquanto pro-
cessos institucionais, táticos e compensatórios imediatos, são certamente
positivas, quando dentro de uma estratégia de luta estrutural mais ampla
contra a opressão e em prol da igualdade. Porém, se essas políticas fo-
rem transformadas em finalidades, elas podem vir a se tornar funcionais
à manutenção da ordem, perpetrando os fundamentos da desigualda-
de social. Por tal motivo, as políticas e ações afirmativas precisam ser
desenhadas com cuidado e zelo, para não induzirem à reprodução e
legitimação das discriminações e desigualdades que visam superar.
Por outro lado, do ponto de vista sistêmico, a inclusão tem por base
o direito e a norma jurídica, que venha a garantir a plena cidadania e o
pleno exercício dela.
Há aqui, por exemplo, as demandas pelo casamento igualitário do
movimento LGBT, pela descriminalização do aborto do movimento fe-
minista, pela legalização do imigrante etc.
Essas demandas, da mesma forma que as demandas trabalhistas
pela limitação da jornada de trabalho ou por melhores salários etc., só
podem ser garantidas por meio do direito… do direito burguês!
Falar de “direito burguês” não significa que o direito seja da “classe
burguesa”, mas da “ordem burguesa”, e, como tal, do direito que repre-
senta a correlação de forças sociais, as lutas de classes, dentro e a partir
da hegemonia burguesa (da “classe burguesa”), sendo portanto funcio-
nal a esse modo de produção e às relações de produção.
Dessa forma, não temos um direito “neutro”, imparcial, equidis-
tante (ver PACHUKANIS, 2017), nem uma justiça realmente “cega”.
Mas um direito constituído e funcional à base econômica, às necessida-
des do capital e à hegemonia burguesa.
Ora, para Marx, a “superestrutura jurídico e política” (MARX, 1977,
p. 24), na qual se situa o direito, eleva-se a partir e em função da “es-

210
CAPITULO 4

trutura” ou “base econômica” (ou infraestrutura), que ele chama de “so-


ciedade civil” ou “sociedade burguesa” – esfera na qual se criam as
“condições materiais de vida” e onde se desenvolvem as relações de
produção.
Nesse sentido, conforme afirma Engels, “o Estado, o regime po-
lítico [e jurídico: a superestrutura], é o elemento subordinado, e […] as
relações econômicas [ou de produção: a base ou estrutura econômica],
é o elemento determinante (in MARX e ENGELS, 1975, p. 111). Assim,
como ambos afirmam em A ideologia alemã:
A estrutura social e o Estado nascem […] do processo de vida
de indivíduos determinados […] tal e como atuam e produzem
materialmente e, portanto, tal e como desenvolvem suas ativida-
des sob determinados limites, pressuposto e condições materiais,
independentes de sua vontade (MARX e ENGELS, 1993, p 36).

Isto é, para Marx e Engels, “não é o Estado que molda a socieda-


de, mas a sociedade que molda o Estado. A sociedade, por sua vez, se
molda pelo modo dominante de produção e das relações de produção
inerentes a esse modo” (CARNOY, 1990, p. 66), em que pese se tratar
de uma “determinação em última instância” (ver item 5.3-C).
Silvio Almeida concorda com isso, ao afirmar que: “As relações
que se formam a partir da estrutura social e econômica das sociedades
contemporâneas é que determinam a formação das normas jurídicas”
(2019, p. 139). Nesse sentido, afirma, “se o direito é produzido pelas
instituições, as quais são resultantes das lutas pelo poder na sociedade,
[então] as leis são uma extensão do poder político do grupo que detém
o poder institucional” (ibidem, p. 135).
Para ele, as duas visões sobre o direito enquanto instrumento de
combate ao racismo coexistem: por um lado, “o direito é a forma mais
eficiente de combate ao racismo, seja punindo criminal e civilmente os
racistas, seja estruturando políticas públicas de promoção da igualda-
de”; mas, por outro lado, “o direito, ainda que possa introduzir mu-
danças superficiais na condição de grupos minoritários, faz parte da
mesma estrutura social que reproduz o racismo enquanto prática polí-
tica e como ideologia” (ibidem, p. 140).

211
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, não podemos apostar apenas em mudanças no Estado sem


também lutar por mudanças na base econômica da sociedade, já que
aquelas dependem em parte destas.
Ainda, apostar no direito (burguês) o destino das lutas sociais é,
decerto, entregar o projeto de transformação social para o guardião da ordem
social.
Dessa forma, mesmo reconhecendo o direito a ter direito das chama-
das minorias, dos excluídos, dos grupos subalternos, e em que pese às
demandas e conquistas por direitos representarem passos na direção
da “emancipação política” (voltaremos a isso no item 7.1-B), o projeto
que visa à “inclusão” pelo direito não constitui, em si mesmo, um pro-
jeto revolucionário; e, a não ser que essas conquistas estejam inseridas
num projeto de maior fôlego e alcance, num projeto anticapitalista que
vise à transformação social, a “inclusão” tende a perpetuar e a legiti-
mar a ordem social.
Isto é, quando a luta pelo direito deixa de ser o meio para se tornar
a finalidade, em que pesem às conquistas realizadas, o processo se torna
funcional à reprodução da ordem social vigente.
É por isso que Almeida afirma que o direito, nesse processo, deve
ser “meio e não fim”, orientado para a “consecução de objetivos políti-
cos e para a correção do funcionamento institucional, como o combate
ao racismo por meio de ações afirmativas, por exemplo” (2019, p. 135).
Assim, conforme afirma Almeida ao prefaciar o livro de Haider
(2019), a “armadilha” da esquerda não está na “identidade” em si, mas
no fato de reduzir as lutas e políticas às “identidades específicas” (ver
ALMEIDA, in HAIDER, 2019, p. 12), paralisando a esquerda e “tornan-
do-a refém da política identitária”, seja quando só se fala de “identida-
de”, seja quando se recusa a falar de “identidade” (ibidem, p. 14).
Quando só fala de “identidade”, como é o caso da pauta da esquer-
da pós-moderna, Almeida afirma que:
a esquerda restringe-se a movimentos dentro dos estreitos limi-
tes do sistema, esperando que ele [o sistema] atenda a suas rei-
vindicações na forma de “direitos”. No fim das contas, a política
identitária limita as organizações de esquerda ao figurino jurídi-
co da luta por “mais direitos” (ibidem, p. 14).

212
CAPITULO 4

Já quando se recusa a falar de “identidade”, como no caso das


correntes economicistas do marxismo, aparece “a incapacidade de se
conectar com o cotidiano de sofrimento, humilhação e privação” das
minorias e dos grupos identitários (ibidem, p. 15-16).
Em síntese, o projeto que tem por finalidade (e não meio) a inclusão
(dentro da ordem) é um projeto que abandona a perspectiva de trans-
formação, a luta anticapitalista e, portanto, a emancipação humana
(voltaremos a isso no item 7.1-A e B).
Na esteira dessa análise, Ellen Wood vai afirmar que a substituição
do projeto socialista, que supere o capitalismo,
por um sistema indeterminado de democracia [como o “outro
mundo possível”], ou a diluição das relações sociais diversifica-
das e diferentes em categorias gerais como “identidade” ou “di-
ferença”, ou conceitos frouxos de “sociedade civil”, representa a
rendição ao capitalismo e a todas as suas mistificações ideológi-
cas (2006, p. 224).

A esquerda identitarista (pós-moderna) se conforma em não trans-


formar a ordem, para transformar a sociedade civil. Projeto este afina-
do com a “descolonização do mundo da vida” de Habermas, com as
pautas hegemônicas do Fórum Social Mundial, com as propostas de
“empoderamento”, com as ações do chamado “terceiro setor”. É aqui,
conforme sustenta Wood,
que o culto da sociedade civil, a sua representação como a esfe-
ra da diferença e da diversidade, fala mais diretamente às preo-
cupações dominantes da nova esquerda. Se há algo que une os
vários “novos revisionismos” – desde as mais herméticas teorias
“pós-marxistas” e “pós-modernistas” até o ativismo dos “novos
movimentos sociais” – é a ênfase na diversidade, na “diferença”,
no pluralismo (2006, p. 219).

Enfim, como se depreende da análise anterior, a grande ausente


nas propostas da esquerda pós-moderna é a igualdade econômica. Pa-
receria que fosse possível e suficiente, no seu projeto “emancipador”,
uma sociedade culturalmente diversa, sem opressão política, sem dis-

213
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

criminação de nenhum tipo, mas persistindo a exploração como forma


e fundamento da enorme desigualdade econômica. Qualquer seme-
lhança com o projeto liberal burguês de igualdade cidadã e liberdade
econômica não é mera coincidência!

4.3- O “empoderamento” do indivíduo e o desempoderamento da classe

Poderíamos dizer que uma das formas de inclusão social, a par-


tir da retirada neoliberal da ação social estatal, é mediante o chamado
“empoderamento” dos grupos subalternos. Trata-se de uma forma de
inclusão à inversa, pois o dito “empoderamento” se funda no afastamen-
to da ação social estatal e, portanto, na retirada do direito do cidadão
de ter suas demandas respondidas pelo Estado, passando tais respos-
tas a ser uma atribuição dos próprios sujeitos carentes, numa auto-res-
ponsabilização pela resposta às suas necessidades.
Para uma análise crítica do alcance do conceito de “empoderamen-
to”, parece obvio e necessário determinar de que “poder” ele trata.
Um dos conceitos centrais vinculado às relações de opressão, do-
minação e desigualdade, é o de poder.
O poder, na sua dimensão social, não natural, pode ser primeira-
mente concebido de duas formas fundamentais: como “poder sobre os
outros” ou como “poder sobre si”; ou seja, como “dominação” ou como
“potência”. Nesse sentido, Erich Fromm afirma que “a palavra ‘poder’
tem um duplo sentido. Um é a posse de poder sobre alguém, a capaci-
dade de dominá-lo; o outro sentido é posse de poder para fazer algo, é
ser capaz, é ser potente” (1983, p. 133, ou 1980, p. 186).
A primeira forma de poder remete a uma relação social, uma relação
homem-homem. A segunda forma trata da relação do indivíduo (ou do
grupo) consigo mesmo, numa relação homem-necessidades.
O poder como “relação social” é o poder político. Já o poder “sobre
si” chamaremos de poder subjetivo, como “potenciação” ou autopoder.

A) O “poder político” ou relação de poder


Assim, o poder político, nas diversas e polêmicas perspectivas do
pensamento político, econômico, sociológico e filosófico, tem sido as-

214
CAPITULO 4

sociado à capacidade de tomada de decisão, à correlação de forças sociais, à


hegemonia ou à dominação. Sempre, portanto, o poder político foi concei-
tuado como uma desigual relação social, ou correlação de forças.
Sem pretensão de nos adentrarmos na concepção geral de poder
em cada um dos seguintes autores, mas apenas para salientar a questão
do “poder político” como “relação social”, vejamos alguns exemplos
disso:
Maquiavel (1996), iniciando a “ciência política” no estudo sistemá-
tico do poder, deu lições de como o príncipe (e o Estado) pode exercer
seu poder sobre os súditos, impondo o “temor” e/ou o “amor” (p. 97-
100): os súditos aceitarão seu poder na medida em que temerem e/ou
amarem seu soberano. O poder, como relação de dominação / subor-
dinação, pode ser exercido tanto pelo temor (dominação) como pelo
amor ao Príncipe (aceitação). Para o autor, o poder remete à relação do
Príncipe (o Estado) com seus súditos.
Por sua vez, Marx e Engels (2010), ao tratarem dos fundamentos
do capitalismo, debruçam-se na relação contraditória entre as classes
fundamentais: capital e trabalho. Essa relação expressa o desigual po-
der de cada classe, fundando as lutas de classes. No entanto, eles não
concebem o “poder” como uma categoria abstrata ou como um concei-
to universal, mas tratam dele como uma particularidade do Modo de
Produção Capitalista (MPC), ou seja, como uma relação entre as classes
sociais, envolvendo a exploração, a dominação, a alienação e a ideologia, as-
pectos constitutivos das relações de poder entre as classes. Para Marx o
poder envolve, assim, não apenas uma dimensão econômica (explora-
ção), mas também uma dimensão política (opressão) e, ainda, cultural
(alienação, ideologia).
Para Marx, o fundamento da desigual relação de poder econômico
entre as classes, no MPC, radica na separação da força de trabalho dos
meios de produção, cada um de propriedade de uma classe. A reunião
dos dois, no processo produtivo, dá-se mediante a venda da força de
trabalho ao capital, constituindo uma relação salarial, que funda a pro-
dução (pelo trabalhador) e a exploração (pelo capitalista) de mais-valia
(MARX, 1980). Essa desigual relação de exploração determina, por um
lado, a apropriação privada da riqueza, a acumulação capitalista, fun-

215
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

damento primeiro da dominação (econômica, política e ideológica) da


classe burguesa,53 e, por outro, a pauperização absoluta ou relativa do
trabalhador, e a subordinação dele ao capital.
Essa relação envolve também, como consequência, um poder político
desigual: primeiramente pela “subsunção real do trabalho ao capital”
(MARX, 1969), em que o próprio processo produtivo é cada vez mais
controlado pelo capital, fundando a alienação do trabalhador do con-
trole da produção de valores, transformando-o numa mera extensão
da máquina; em segundo lugar, pelo controle hegemônico do Estado
(instrumentalizado para a dominação de classe) pelo capital, de onde
promove a opressão de classe (MARX e ENGELS, 2010). Ainda, a relação
de poder entre as classes envolve também uma dimensão cultural, me-
diante a formação de uma ideologia que transforma as ideias e os valo-
res dominantes (da classe dominante) em ideias e valores socialmente
aceitos. Assim, segundo Marx e Engelsn’A ideologia alemã:
as ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as
ideias dominantes, isto é, a classe que é a força material dominante
é, ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante. A classe que
tem à sua disposição os meios de produção materiais, tem ao
mesmo tempo os meios de produção espiritual, o que faz com
que a elas sejam submetidas, ao mesmo tempo e em média, as
ideias daqueles a que faltam os meios de produção espiritual.
As ideias dominantes não são mais que a expressão ideal das
relações materiais dominantes concebidas como ideias; portan-
to, a expressão das relações que tornam uma classe a classe do-
minante; portanto, as ideias de sua dominação. Os indivíduos
que constituem a classe dominante possuem, entre outras coisas,
também consciência e, por isto, pensam; na medida em que do-
minam como classe e determinam todo o âmbito de uma épo-
ca histórica, é evidente que o façam em toda a sua extensão e,
consequentemente, entre outras coisas, dominem também como
pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção
e distribuição de ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por

53 Nas palavras de Marx e Engels: “A condição essencial para a existência e supremacia da


classe burguesa é a acumulação da riqueza nas mãos de particulares” (2010, p. 51).

216
CAPITULO 4

isso mesmo, as ideias dominantes da época (MARX e ENGELS,


1993, p. 72).

Nessa tradição teórica e política, Gramsci, observando a “sociali-


zação da política” no século XX, amplia a noção de poder, ainda como
correlação de forças fundada nas relações de produção entre as classes,
mas não apenas como uma relação unidirecional de dominação e coerção
(na esfera da “sociedade política”), e sim desenvolvendo também uma
relação de direção, de hegemonia, de consenso (na esfera da “sociedade ci-
vil”), na qual a relação desigual de poder envolveria certa troca entre
as partes, resultado da correlação de forças (ver GRAMSCI, 2000b, p.
254 e ss.).
Referência no pensamento político moderno, Weber (2012 e 2012a)
caracteriza o poder como “toda probabilidade de impor a própria von-
tade numa relação social” (WEBER, 2012, p. 33); enquanto a domina-
ção, “no sentido muito geral de poder”, é conceituada como a “possi-
bilidade de impor ao comportamento de terceiros a vontade própria”
(WEBER, 2012a, p. 188 e 191) ou a “probabilidade de encontrar obe-
diência a uma ordem de determinado conteúdo” (2012, p. 33). Por seu
turno, a dominação, quando remete a um “poder legítimo”, pressu-
põe certo grau de aceitação por parte do “dominado”; essa legitimação
pode ser do tipo “legal”, “tradicional” ou “carismática” (2012a, p. 193
e ss.). Poder e dominação, portanto, para esse autor, sempre remetem a
uma relação social.
Um outro exemplo bem diferente é que, na chamada “teoria dos
jogos” (oriunda da matemática aplicada, mas depois incorporada pela
teoria econômica, política e militar), o poder é entendido como um jogo
de “soma zero”, que expressa claramente uma relação de poder, no qual o
ganho de um jogador representa necessariamente, e na mesma propor-
ção, a perda de outro(s) jogador(es) (ver FIANI, 2006).
Já Hannah Arendt (2009), claramente influenciada pelo terror do
Holocausto nazista, diferencia a força e o poder. Para ela, “enquanto
a força é a qualidade natural de um indivíduo isolado, o poder passa
a existir entre os homens quando eles agem juntos e desaparece no
instante em que eles se dispersam” (ibidem, p. 212). A força, quando

217
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

exercida por um indivíduo sobre as massas, expressa a dominação.


Já o poder, exercido mediante a ação na qual os “homens agem e fa-
lam em conjunto” (ibidem, p. 214), é expressão da “condição humana
da pluralidade”. Para a autora, “o único fator material indispensável
para a geração do poder é a convivência entre os homens” (ibidem, p.
213), mostrando claramente a concepção do poder como relação so-
cial. Arendt, assim, ao diferenciar a força do poder, distingue a ação
isolada da ação mancomunada, relacional, na medida em que, confor-
me ela aponta, “o que mantém unidas as pessoas depois que passa o
memento fugaz da ação […] e o que elas, por sua vez, mantêm vivo
ao permanecerem unidas, é o poder”, porém, “todo aquele que […]
se isola e não participa dessa convivência, renuncia ao poder e se tor-
na impotente, por maior que seja a sua força e por mais válidas que
sejam suas razões” (ibidem, p. 213).
Num outro caminho, Michel Foucault faz uma inflexão na sua dis-
cussão sobre o poder. Diferentemente da concepção institucionalista-
-estatista do poder – como dominação, como poder de negação, como
assim o concebera no tratamento da prisão, do hospício, do hospital
–, em sua Microfísica do poder (FOUCAULT, 1985) ele trata de um po-
der que não nasce do Estado nem necessariamente a ele se orienta; um
poder periférico, local, existente em toda a capilaridade social. Aqui,
distanciando-se do que chama de “concepção jurídica ou liberal” e da
“concepção marxista” (ou, como reconhece, “uma certa concepção cor-
rente [vulgar?] que passa como sendo a concepção marxista”) (ibidem,
p. 174), tidas por ele como visões economicistas, Foucault desenvolve
a ideia de um poder existente em todos os microespaços e localidades.
Se essa concepção abre caminho para se pensar um “poder” que ema-
na dos microespaços e pequenos grupos, o “poder local”, sem alterar
a correlação de forças macrossociais – o que certamente subsidiaria o
debate sobre “empoderamento” –, ainda não parece haver em Foucault
uma concepção plenamente subjetivista do poder, de um poder apenas
“sobre si”, que não represente uma relação social entre forças sociais dis-
tintas, por mais locais, micro ou singulares que elas sejam.
Enfim, sem prejuízo de se tratar de concepções realmente diversas,
diferentes e divergentes, e por que não antagônicas, o poder político é

218
CAPITULO 4

sempre concebido como uma relação social, macro ou micro, consen-


suada ou não. Vejamos, agora, a noção de poder subjetivo.

B) O “poder subjetivo” ou autopoder, e o projeto de “empodera-


mento”
Entretanto, o poder subjetivo, como autopoder ou “poder sobre si”,
trata de um poder pessoal, interno, psicológico, considerando o indiví-
duo fora (ou independentemente) das relações sociais: o indivíduo (ou
grupo) consigo mesmo. Um “poder” que não remete à relação homem-
-homem (poder político), mas à relação homem-necessidade, à relação
de cada indivíduo (ou grupo) com suas necessidades diretas. Como
alcançá-las não depende da correlação de forças sociais, mas apenas e
simplesmente da potencialidade ou da capacidade de cada um.
É aqui que se insere o chamado “empoderamento”.
No mesmo viés que da “autoajuda”, da “motivação”, da “autoes-
tima”, do “empreendedorismo”, do “desenvolvimento subjetivo”,
do “autoemprego”, o dito “empoderamento” se orienta a potenciar
subjetivamente o indivíduo (ou grupo), sem qualquer perspectiva de
mudança da correlação de forças, nem local, nem sistêmica. Nos ter-
mos de Arendt, é o desenvolvimento da “força” individual, mas não
do “poder”.
Coloca-se o indivíduo, grupo ou comunidade para tratar autono-
mamente de seus assuntos específicos, tarefa para a qual precisam ser
“empoderados”. É nesse sentido que Petras e Veltmeyer afirmam que
os organismos multilaterais, como o BM (Banco Mundial) e o BID (Ban-
co Interamericano de Desenvolvimento), promovem a implementação
de projetos de nível local, desviando primeiramente “a atenção da
necessidade de uma mudança ‘estrutural’”, assim como, em segundo
lugar, produzindo “um foco programático sobre as capacidades indi-
viduais, minimizando a preocupação pelas causas ‘estruturais’ (sociais
e políticas) da pobreza” (2004, p. 340). Para eles,
esse enfoque, antes apolítico (social?) e gerencial (microprojetos)
do desenvolvimento da comunidade, implica a noção liberal de
“empowerment” [empoderamento] na qual os pobres são estimu-
lados a encontrar uma solução empresarial a seus problemas.

219
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Nesse contexto, a OCDE define seu enfoque em termos de “aju-


dar os povos do mundo a desenvolver suas destrezas e capacida-
des para resolver seus próprios problemas”. […] o BM adotou uma
estratégia do “empoderamento” e “participação” (ibidem, p. 340).

Esses autores apontam ainda que a noção (neoliberal) de “empo-


deramento” é completamente diferente da noção de poder alternativo ou
da de contrapoder. Assim, “neste discurso neoliberal sobre o ‘empower-
ment’, o indivíduo, como reserva de recursos humanos […] é posicio-
nado ao mesmo tempo como o problema e a solução ao problema da
pobreza” (ibidem, p. 341).
Dessa forma, o conceito ideológico de “empoderamento” e os pro-
jetos a ele ligados remetem à segunda forma de “poder” (subjetivo). Ou
seja, não se trata do poder político, não se trata da correlação de forças,
mas do poder subjetivo, psicológico, do poder sobre si, da força individual.
Concebido assim, como “empoderamento”, o conceito de poder não
atinge (nem pretende atingir) as relações de dominação, de opressão,
de subalternidade e de exploração. Aqui, o poder e o “empoderamen-
to” remetem a processos de “conscientização”, “motivação”, “autocon-
trole”, “crescimento pessoal”, numa lógica de autorresponsabilização
do indivíduo (ou grupo) pela solução das próprias necessidades ou
carências.
Trata-se, como afirmamos (MONTAÑO, 2014, 38 e ss.), da ideolo-
gia do “terceiro setor”, em que confluem os projetos neoliberais (pre-
sentes nos documentos e nas propostas do BM, do FMI etc.) e os da
“esquerda possibilista”, de forte base pós-moderna, sustentados no
tripé da “autorresponsabilização dos sujeitos por suas próprias condições
de vida e pela solução de seus problemas e satisfação de suas necessi-
dades”, da desresponsabilização do Estado sobre a ação social e da desone-
ração do capital no seu financiamento (ibidem, p. 41).
Ainda mais, como projeto, o chamado “empoderamento” visa à
conquista individual de poder pelos membros da comunidade ou do
grupo subalterno. Essas conquistas individuais representariam sim-
bolicamente uma conquista de todo o coletivo, servindo ainda como
exemplo para os demais.

220
CAPITULO 4

Ora, ocupar individualmente um espaço de poder, em si, não sig-


nifica combater esse poder (dominação ou opressão). A história está
cheia de casos como Margaret Thatcher (Primeira-Ministra do Reino
Unido, de 1979 a 1990), Condoleezza Rice (Secretária de Estado dos
EUA no governo George W. Bush, entre 2005 e 2009), Angela Merkel
(chanceler da Alemanha desde 2005), Marine Le Pen (Deputada da
extrema-direita francesa), Kamala Harris (Vice-presidente dos EUA
de Joe Biden, desde 2021), Lloyd J. Austin (Secretário de Defesa dos
Estados Unidos no governo de Joe Biden), Okonjo-Iweala (diretora-
-geral da Organização Mundial do Comércio – OMC, desde 2021), ou
mais perto de nós, Joice Hasselmann, Damares Alves, Aline Midlej.
Suas conquistas pessoais em posições de poder, nada representaram
na mudança da desigualdade de gênero ou racial para a população
em geral, reforçando ainda mais a desigualdade econômica e o pro-
jeto neoliberal.
A não ser que o poder seja ocupado coletivamente para destruir
o poder, e a opressão e a desigualdade decorrentes dele, o poder que
alguns indivíduos alcançam apenas reforça e legitima essa mesma es-
trutura de opressão e desigualdade. Dessa forma, trata-se de uma con-
quista individual, que em nada altera a estrutura de poder, opressão
e desigualdade de raça, de gênero etc., significando para o conjunto
dos setores oprimidos e subalternos, no máximo, uma representação
simbólica (e romântica) de que é possível a conquista individual, a as-
censão pessoal, tendendo a reproduzir e a legitimar política e ideologi-
camente a estrutura de poder, na medida em que substitui a luta contra
a estrutura pela conquista pessoal / individual.
Quando individualizado e destotalizado, o chamado “empodera-
mento” de fato diz respeito a conquistas individuais, sem causar mu-
danças na estrutura do poder opressor, tendendo, ao contrário, à sua
reprodução e legitimação.
Portanto, mais do que um projeto que altera a correlação de forças,
ampliando o poder dos de baixo, dos subalternos, dos que ocupam a
base da pirâmide social, trata-se de um projeto que confirma e amplia a
desigual correlação de forças, retirando ainda os direitos e as políticas
conquistadas historicamente por esses segmentos sociais.

221
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, o dito “empoderamento”, mais do que “poder”, remete a


uma “potencialidade” ou “potenciação” individual. O conceito asso-
ciado a esse projeto não deveria ser “empoderamento” (relação de po-
der), mas “potenciação” (poder subjetivo).
Trata-se de um processo de crescimento pessoal (ou grupal) subje-
tivo que em nada altera os fundamentos do poder político, nem a cor-
relação de forças. Muito afinado com discursos do tipo: “Não mude o
mundo, mude a si próprio”. Vejamos.
Qualificar um grupo de desempregados pode permitir que esses
indivíduos tenham melhores condições de acesso ao mercado de tra-
balho, porém isso não criará postos de emprego, sendo que o sucesso
destes é o insucesso de outros trabalhadores. Não cria novos postos de
emprego, nem tampouco altera o controle do capital sobre o mercado
de trabalho. Ou ainda, qualificá-los para atividades produtivas autô-
nomas (como o “empreendedorismo” ou a “economia solidária”, ver
MONTAÑO, org., 2014) não constitui um aumento do poder da classe
trabalhadora, mas sim fornece força de trabalho precarizada para o
capital, numa relação de terceirização. Seria outra coisa se, por exem-
plo, mediante as lutas de classes, os trabalhadores conquistassem uma
redução na jornada de trabalho para obrigar um aumento de contrata-
ções, impactando no grau de exploração do capital.
Por outro lado, organizar uma comunidade para construir cis-
ternas, ou responsabilizá-las pela sua manutenção, pode efetivamen-
te permitir “resolver” o problema da falta de água, no entanto, isso
confirma e consolida o esvaziamento de um direito humano essencial,
o de garantia de acesso a água potável, promovendo a aceitação da
desresponsabilização estatal na garantia desse direito. Diferente é or-
ganizar-se para lutar pela efetivação do acesso a água como direito
humano fundamental que deve ser garantido pelo Estado.
Claro que para quem não tem fonte de renda, ou para quem não
tem acesso a água potável, toda ação que gere renda ou acesso a água
potável, mesmo que de forma paliativa, precária e transitória, é impor-
tante. O problema é “vender” esse processo como “empoderamento”,
como aumento de poder dos pobres, dos subalternos, dos “de bai-
xo”, como se isso ainda significasse um caminho para “um mundo

222
CAPITULO 4

melhor”, quando na verdade só consolida a subordinação, confirma


a dominação e amplia a hegemonia e a acumulação do capital, sob
o comando neoliberal, retirando ainda o Estado da efetivação desses
direitos.
Essa ideologia leva a apostar / acreditar num dito “empoderamen-
to” (como potenciação subjetiva, individual ou grupal) abandonando
as lutas que visam tencionar a correlação de forças sociais e os funda-
mentos do poder econômico, político, cultural. Com o dito “empode-
ramento” funda-se na verdade a ideologia da autorresponsabilização
do indivíduo, em que confluem o projeto neoliberal e o projeto da “es-
querda possibilista”, particularmente pós-moderna (ver MONTAÑO,
2014, p. 37).
Dessa forma, se a máxima da ação política é “divide e reinarás”,
a proposta de “empoderar o indivíduo” (ou grupo), na medida em que
separa indivíduos e grupos (retirando a unidade de classe), e segmen-
ta as diversas questões a tratar (retirando os fundamentos da contra-
dição de classes), acaba, no fundo, “desempoderando a classe”. Assim, o
“empoderamento” de indivíduos / grupos por quanto desagrega a classe
trabalhadora e não altera a correlação de forças com seu antagonista,
o capital; promove, na verdade, um “desempoderamento” da classe traba-
lhadora e dos setores subalternos.

223
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

224
capítulo 5

A INVASÃO PÓS-MODERNA
(NA IDEOLOGIA E NA POLÍTICA)
DA ESQUERDA, E A NECESSIDADE
DA CRÍTICA E SUPERAÇÃO DA
“LÓGICA IDENTITARISTA” PARA
O ENFRENTAMENTO DO AVANÇO
ULTRACONSERVADOR E PARA A
EMANCIPAÇÃO

T ratamos até aqui da “identidade” como categoria política e da


sua apropriação pós-moderna, que funda uma “lógica identitarista”.
Cabe agora verificar como ela, desde o remoto Maio de 1968, tor-
nou-se hoje uma vertente hegemônica no campo das esquerdas, co-
mandando a visão de mundo e a ação política a partir do identitarismo
pós-moderno.
É, por sua vez, a partir dessa visão de mundo e dessa ação política,
emolduradas na “lógica identitarista”, que a esquerda do Brasil e do
mundo enfrenta, internamente dividida e enfraquecida, o crescimento
e o avanço da ultradireita.
Para isso, consideramos extremamente necessário contribuir para
a crítica à “lógica identitarista” pós-moderna.
Não se trata, como já deixamos claro em diversos momentos, de
uma negação ou secundarização da “identidade” enquanto categoria
social, submetida a formas de opressão, desigualdade ou discrimina-

225
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

ção, a partir das quais os sujeitos se identificam com categorias e se or-


ganizam para reivindicar e lutar por seus direitos e contra a opressão.
Trata-se, sim, de uma crítica à visão construída a partir do pensamen-
to pós-moderno, transformando “identidade” em “identitarismo”, numa
lógica polarizadora e pessoalizada, desconectada da totalidade social.
Esta reflexão crítica se faz necessária, primeiramente, em termos
gerais, pelas profundas deformações operadas na compreensão da
realidade, das formas de opressão e desigualdade, não como formas
particulares e manifestações da “questão social” ou como fenômenos
estruturais, mas entendidas nessa perspectiva como processos de pola-
rização interpessoal.
Ainda, pelas transformações nas lutas políticas, não mais voltadas
para a emancipação política e/ou humana, mas para “pautas” pontuais,
enfrentando internamente o campo progressista a partir da polarização
entre sujeitos nessa “lógica identitarista”.
Porém, em segundo lugar, na particularidade do caso brasileiro
contemporâneo, a crítica a essa lógica polarizadora pós-moderna se
torna imperiosa em função da desarticulação do campo progressista,
internamente enfrentado, em face do avanço do ultraconservadorismo
e do neofascismo, articulados no “bolsonarismo”.
A crítica e superação dessa “lógica” é essencial para reconstruir o
projeto revolucionário, anticapitalista, que, no caminho para uma so-
ciedade emancipada, combata toda forma de discriminação, opressão e
desigualdade, e no particular, rearticule o campo progressista para en-
frentar e reverter o retrocesso ultraconservador e a ameaça neofascista.

5.1- A hegemonia da “lógica identitarista” pós-moderna na esquerda

A chamada esquerda pós-moderna tem se tornado, decerto, hege-


mônica no campo progressista, pautando a forma de ver a realidade, os
conceitos empregados na análise da realidade, e portanto orientando
as lutas sociais, em torno de “pautas” de ação.
Variados processos confluem na crise ou perda de protagonismo
da “esquerda classista”, particularmente de matriz marxista, e no cres-
cimento paulatino da “esquerda identitarista” pós-moderna.

226
CAPITULO 5

Como já vimos, o grande ausente da análise e das pautas pós-mo-


dernas é a igualdade econômica. Pareceria bastar uma sociedade mul-
ticultural, mesmo com desigualdade na distribuição da riqueza. Como
se garantindo o igualitário status de cidadania política, a emancipação
social também já estivesse garantida, mesmo existindo exploração e
desigualdade econômica. Nisso, o projeto emancipador pós-moderno
pouco tem a se diferenciar da igualdade liberal burguesa e da liberda-
de econômica.
Bosco lembra que, como tratamos no capítulo 1 deste livro, “os mo-
vimentos identitários […] têm uma história” que “remete à década de
1960, notadamente ao momento político de Maio de 1968” (2017, p. 71).
Podemos situar nesse contexto político uma guinada teórica, ideológi-
ca e política que retira paulatinamente o foco da “classe” (e da explora-
ção) e o orienta para a “identidade” (e para os processos de “exclusão”
e “opressão”), com ênfase na subjetividade e no “multiculturalismo”.
No começo, esse processo tem raízes teóricas claramente neoweberia-
nas, por via do estudo acionalista dos NMS, mas vai assumindo uma
dimensão ideologicamente hegemônica a partir da expansão do pensa-
mento pós-moderno no campo das esquerdas, ou melhor, a partir do
surgimento de uma “nova esquerda” (a “New Left”) – hoje se fala em
“renovar a esquerda” –, posteriormente orientada para o que não hesi-
tamos em chamar de “esquerda possibilista” (MONTAÑO, 2014, p. 36,
ver também PETRAS, 1999, p. 17-20).
Conforme periodiza Jameson, o surgimento e a expansão da razão
pós-moderna, e seus desdobramentos na cultura, na arte, na arquite-
tura, na filosofia e na política, vincula-se, inicialmente, ao processo da
virada dos anos 1960, articulando movimentos contraculturais como o
festival de Woodstock e o movimento hippie, protestos pacifistas contra
a guerra do Vietnã, manifestações políticas e culturais como o Maio de
68, na França, e as lutas independentistas / descolonizadoras na África
e na América Latina (JAMESON, 1991, p. 84, 89-90).
Como movimentos progressistas, porém, não mais pautados na
classe operária e nas lutas de classe, esses processos e “novos movi-
mentos sociais” dos anos 1960-1970 encheram os olhos de ativistas e
teóricos, por darem voz e protagonismo político a sujeitos antes não

227
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

presentes na cena política, pelo menos não de forma autônoma (es-


tudantes, mulheres, gays, negros, imigrantes etc.), “as ‘minorias’, os
marginais e as mulheres” (ibidem, p. 85). Esses processos poderiam ser
vistos como um capítulo da “história da liberdade humana”, da “con-
quista da autoconsciência de si”, da “emergência de novos ‘sujeitos da
história’” e da “conquista do direito de falar” (ibidem).
Constituem-se, aqui, conforme aponta Jameson, “novas ‘identida-
des’ coletivas” (o “colonizado”, a raça, a marginalidade, o gênero e si-
milares), a partir de “uma crise daquela categoria mais uniforme que
até então parecia subsumir todas as variedades de resistência social,
qual seja, a concepção clássica de classe social” (ibidem, p. 86).
Com a mesma tônica, Eric Hobsbawm (1995) defende que as ma-
nifestações estudantis de 1968, centradas no Quartier Latin, em Paris,
foram marcadas mais pela emersão de uma cultura individualista e he-
donista do que pela crítica anticapitalista, substituindo a “revolução so-
cialista” pela “revolução cultural”. Essa revolução cultural, segundo o
historiador marxista, não se orientava para um novo projeto societário,
mas para a defesa da autonomia da subjetividade e das escolhas de
vida pessoais, perfeitamente compatíveis com os valores individua-
listas e consumistas do capitalismo (HOBSBAWM, 1995, p. 327; ver
MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 260 e ss.).
Temos, nas lutas do Maio francês de 68 e na formação de novos
atores sociais, o estopim que acende a faísca do “identitarismo” no seu
viés pós-moderno.
Paralelamente a isso, há algum tempo setores da esquerda em ge-
ral, e particularmente do marxismo, questionavam-se sobre a contradi-
ção fundante da nossa sociedade, sobre o sujeito da transformação social e
sobre a centralidade ou não da “classe”.
Do debate dos marxistas franceses, presente nas teorias do “capita-
lismo monopolista de Estado” (ver BOCARA, 1976, 1977, 1977a, 1977b),
que opuseram os setores “monopolistas” aos “não monopolistas”,
relegando a segundo plano a contradição capital / trabalho (ver LO-
JKINE, 1981, p. 111), passando pelas reflexões de Jean Lojkine (1990),
que estuda a “classe operária em mutação”, chegando ao conceito de
“multidão” de Michael Hardt e Antonio Negri (2005), até à ilusão de

228
CAPITULO 5

“mudar o mundo sem tomar o poder”, de John Holloway (2003), para


citar só alguns do campo marxista. Nesse sentido, o marxismo, em face
das mudanças estruturais do capitalismo e do “socialismo real”, vem
debatendo essas questões, a nosso ver, nem sempre da forma correta,
deixando às vezes a impressão de que a categoria “classe” tivesse es-
gotado seu poder heurístico, precisando ser substituída. Uma fragiliza-
ção, entendemos nós, do protagonismo do marxismo na análise e nas
lutas de classes. Um erro teórico, político e histórico.
É assim que – a partir dessa fragilização de alguns setores do mar-
xismo em torno da centralidade da “classe”, do impacto do Maio fran-
cês de 68, das fortes mudanças nas relações de produção no cenário de
crise capitalista, do fim da experiência soviética e do avanço das ne-
cessárias e fundamentais “lutas antiopressivas particulares” no cami-
nho para a emancipação política – o pensamento pós-moderno passa
a comandar cada vez mais a compreensão da realidade e a orientar as
lutas sociais a partir da transformação da categoria de “identidade” em
“identitarismo”, sustentado numa polarizadora e autonomista “lógica
identitarista”.
Surgem e se expandem cada vez mais, até alcançar um patamar de
hegemonia ideológica e política, os chamados movimentos ou coletivos
“identitários” que, sustentados na “lógica identitarista” pós-moderna,
rompem seu lastro com os fundamentos estruturais do capitalismo e
das lutas de classes.
Como Bosco aponta, a partir de Safatle (2018), “o que todos esses
movimentos têm em comum é uma luta contra o poder e pelo reconheci-
mento” (BOSCO, 2017, p. 74), que encontra nas “redes sociais digitais
[…] um meio ótimo para a luta por reconhecimento” (ibidem, p. 78).
Uma luta (justa e necessária) por “reconhecimento”, porém não arti-
culada, mas substituindo (como alternativas) as lutas econômicas, em
torno da contradição de classes e da exploração.
Dessa forma, o debate acadêmico e as disputas políticas foram sen-
do substituídos por uma defesa exclusiva e, por vezes, quase funda-
mentalista das “identidades”, em clara substituição (ou equiparação) da
categoria de classe social, visando à literal “aniquilação” do contrário,
do diferente, tido como inimigo.

229
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

No debate pós-moderno não se trata de articular e complementar


as categorias classe e “identidade”, mas de substituir a primeira pela
segunda, assim como de ofuscar as lutas de classes com as lutas “iden-
titárias”.
Nesse sentido, é a “lógica identitarista” pós-moderna que vai ga-
nhar terreno, até se constituir como uma força e uma perspectiva hege-
mônica no campo das esquerdas.
Vários são os autores que afirmam o avanço de uma “esquerda
pós-moderna”, com sua “lógica identitarista” (pautando as “políticas
identitárias”), tomando o lugar das tendências da esquerda mais orien-
tadas para a contradição e para as lutas de classes, particularmente do
marxismo, como Ellen Wood (2006, p. 205 e ss. e 227 e ss.), Kenan Malik
(in WOOD e FOSTER, 1999), Guillermo Stábile (in WOOD e FOSTER,
1999), Antonio Risério (2019, esp. p. 11, 40-41, que inclui o “pós-estrutu-
ralismo”), Vladimir Safatle (2018), Asad Haider (2019), Antônio Flávio
Pierucci (1990, 2000), Angélica Lovatto,54 entre outros.
Assim, o avanço paulatino da esquerda pós-moderna, chegando
à atual hegemonia da “lógica identitarista” no campo progressista (na
compreensão da realidade e nas lutas sociais), dá-se, como vimos, a
partir de alguns eventos históricos, a saber: o Maio de 1968, a extinção
do bloco soviético, as transformações no capitalismo, a ofensiva ideoló-
gica e as transformações neoliberais, as crises do movimento operário,
a funcionalidade da razão pós-moderna.
Nesse cenário, conforme aponta Risério, “de repente, a esquerda
pós-moderna deu meia-volta […], assumiu o que a direita norte-ameri-
cana sempre quis [… e] rebatizou o pluralismo de multiculturalismo”
(2019, p. 41). A expansão e adesão dos movimentos sociais à esquerda
pós-moderna se deu quando, segundo Risério (ibidem, p. 41), os chama-
dos novos movimentos sociais vieram se afastando da esquerda clas-
sista, marxista – particularmente a partir do Maio de 68 e da New Left,
até chegar ao identitarismo (ibidem, p. 74) –, e foram migrando para o
discurso, a organização e a ação política pós-moderna, e foram cada
vez mais abandonando o projeto revolucionário (totalizante) (ibidem, p.
54 Ver palestra em: <https://www.youtube.com/watch?v=AgS-SVHe37A&t=30s>, acesso em
abr. de 2020.

230
CAPITULO 5

41) e se orientando para as mudanças pontuais, fundamentalmente em


torno de direitos, dentro da ordem.
Assim, continua Risério, com a “lógica identitarista” (que substitui
a classe), o multiculturalismo (que substitui o pluralismo) e o “politica-
mente correto” (que pretende uma transformação a partir do linguajar
considerado “correto”) ocorre a “erosão” e até o “abandono” da centra-
lidade da categoria de classe social (ibidem, p. 73-75).
Lembremos, como já afirmamos, que falar de “identidades” é diferente
de falar da “lógica identitarista” (ou de “política identitária”).
Assim, como afirma Almeida, ao prefaciar o livro de Haider, ao
distinguir “identidade” e “política de identidade”, a “identidade” se
torna uma armadilha quando se converte em uma política, ou, mais
precisamente, em “política de identidade” ou “identitarismo” (in HAI-
DER, 2019, p. 9).
O autor sustenta, ainda, que a “identidade” não constitui “uma
armadilha em si”, mas “a armadilha antirrevolucionária apresenta-se
quando a política se reduz à afirmação de identidades específicas” (in
HAIDER, 2019, p. 12). Nesse sentido, ele aponta como o “identitarismo
paralisa a ‘esquerda’”, ao torná-la “refém da política identitária”, o que
pode acontecer de dois modos: “1) quando a esquerda só fala de iden-
tidade; 2) quando a esquerda se recusa a falar de identidade” (ibidem, p.
14). Ou seja, é tão problemático que a esquerda negue as identidades e
as causas identitárias, tratando apenas de “classe”, como o é quando a
esquerda trata apenas de “identidades”, negando a “classe” ou a redu-
zindo a mais uma “identidade”.
Na compreensão e na ação pós-moderna contra as formas de dis-
criminação, opressão e dominação, alguns aspectos ideológicos e polí-
ticos da análise pós-moderna precisam ser salientados.

● Primeiramente, um elemento central é a linguagem, mobilizadora e


representativa de todo um universo simbólico. Assim, por um lado, cria-se a
expectativa de que os sistemas de discriminação, opressão e dominação
podem ser superados se a linguagem que carrega e expressa esses siste-
mas for mudada. Por outro lado, investe-se na mudança de linguagem,
na criação de um novo linguajar: uma linguagem (dita) “politicamente

231
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

correta”. Começa a ditadura do “politicamente correto”.55


O sujeito que empregar uma linguagem fora do que é considera-
do “politicamente correto” será tratado como preconceituoso e dura-
mente penalizado e punido socialmente, numa espécie de “tolerância
zero” de esquerda. Acirra-se, com isso, a polarização social entre os
“oficialmente corretos” e os “incorretos”, objeto da punição. Porém o
problema maior não é esse, mas a pretensão – pós-moderna, romântica
– de que com a mudança da linguagem e a punição individualizada do
transgressor do “politicamente incorreto” superar-se-ia todas as estru-
turas sociais de preconceito, desigualdade, dominação e opressão.
Nesse sentido, Risério aponta como “as pessoas se dispuseram a
agir sobre a língua para mudar o mundo”, em vez de “agir sobre o
mundo para mudar a língua” (2019, p. 117).
Também Haider menciona o fato de que, por um lado, na acade-
mia e nos movimentos sociais não houve uma reação séria às tentativas
de cooptação do legado de certas causas e lutas sociais, mas, por ou-
tro, “intelectuais e ativistas permitiram que a política fosse reduzida ao
policiamento da linguagem […] enquanto as estruturas institucionais de
opressão racial e econômica permanecem” (2019, p. 45-46). E o autor
complementa: como resultado dessa aparente “ação política” focada
no novo linguajar, considerado “politicamente correto” e isento de pre-
conceitos, “as linguagens progressistas dos novos movimentos sociais,
desenraizadas de sua base popular, seriam apropriadas como nova es-
tratégia da classe dominante” (ibidem, p. 132).
Assim, como já afirmamos (ver MONTAÑO, 2014, p. 28 e ss.),
“substituem-se termos considerados ‘preconceituosos’ por outros con-
siderados ‘politicamente corretos’” (ibidem, p. 28). No entanto, sem
questionarmos o fato inegável das palavras portarem e legitimarem
preconceitos e discriminações, “a mudança de termos pouco altera a
questão de fundo, mas, ao contrário, acaba por ocultá-la” (ibidem, p.
28-29). E esse “ocultamento” dos preconceitos, das formas de opressão
e discriminação, camuflado pelo uso do termo “politicamente corre-

55 Vejam a cartilha Politicamente correto & direitos humanos, elaborada pelo Governo Lula
(PT), em 2004. Disponível em: <http://www.dhnet.org.br/dados/cartilhas/a_pdf_dht/cartilha_
politicamente_correto.pdf>, acesso em: abr. de 2020.

232
CAPITULO 5

to”, paradoxalmente, torna-se funcional à perpetuação da mesma dis-


criminação, dominação e opressão que visa superar. É muito fácil os
dominantes perpetuarem a relação de dominação: basta apropriar-se
dos termos “politicamente corretos” para satisfazer e pacificar os domi-
nados; assim a apropriação de categorias e termos progressistas passa
a ser funcional para os projetos de direita. Exemplo evidente disso é
a Rede Globo e suas novelas, seus jornais, incorporando a linguagem
“politicamente correta”, supostamente abraçando causas identitaristas;
as fundações empresariais (como as fundações Bradesco, Ronald Ma-
cDonald etc.); os documentos e projetos do Banco Mundial, da ONU e
demais organismos multilaterais. Hoje, a esquerda e a direita parecem
falar os mesmos termos. A pergunta que cabe fazer é: essa mudança de
linguagem representa um primeiro passo na superação das relações
de opressão e discriminação social, ou se trata de uma concessão dos
dominantes para camuflar e perpetuar a estrutura de dominação?
Essa tem sido, segundo Petras, a terceira forma de cooptação da
intelectualidade de esquerda por parte dos setores hegemônicos no
século XX (PETRAS, 2000, p. 89 e ss., in MONTAÑO, 2014, p. 31-32).
Hoje, muitos “pós-marxistas” (que abandonaram o pensamento crítico
e o projeto revolucionário há tempos) promovem e festejam o “iden-
titarismo” atual. Porém muitos outros “marxistas impenitentes” ficam
calados, inertes ou oportunamente se valem dele. Adaptação e/ou opor-
tunismo,56 dois caminhos seguidos por muitos!
Nesse sentido, parafraseando Lukács em A teoria do romance, cria-
-se “uma linguagem de esquerda escondendo um projeto de direita” (ver
MONTAÑO, 2014, p. 29). As palavras, assim, tem hoje mais a função
de esconder do que de desvelar, constituindo assim o que chamamos
de “cantos de sereia” (ibidem, p. 30).
Essa substituição conceitual / categorial envolve, primeiramente,
uma significativa alteração heurística; ou seja, não se trata apenas de
“linguagem”, de “termos”, mas do arsenal heurístico, dos instrumen-
tos de que dispomos e usamos para compreender a realidade (ver item 2.6-
A). Em segundo lugar, essa substituição projeta uma alteração signifi-
56 Oportunismo contra o qual lutaram, entre outros, Marx, Engels, Lênin, Luxemburgo e
Lukács.

233
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

cativa nos objetivos e nas finalidades militantes: renunciando ao projeto


socialista, aos objetivos anticapitalistas ou até trabalhistas, e se reorien-
tando para o campo das ideologias subjetivistas, para as necessidades
imediatas e pontuais (ibidem, p. 32).
Funda-se aqui aquilo que denominamos de “ideologia do ‘Terceiro
Setor’”, oriunda da esquerda pós-moderna, caracterizada pela orien-
tação para uma ação social centrada no indivíduo ou nos pequenos
grupos, no âmbito de uma abstrata sociedade civil (ibidem, p. 38), sem
remeter à estrutura e à totalidade social (ibidem, p. 39), sustentada num
tripé conceitual e programático: a) a autorresponsabilização dos indivíduos
pelas próprias condições de vida, pela solução dos próprios problemas
e pela satisfação das próprias necessidades, b) a desresponsabilização so-
cial do Estado com as respostas das políticas sociais, e c) a desoneração do
capital nessa tarefa (ibidem, p. 41).
Nesse tripé se materializa a programática dessa “esquerda possi-
bilista” (que vem ao encontro das programáticas neoliberais), como o
“empoderamento”, a “economia solidária” ou “social”, a participação
na “sociedade civil organizada”, a solidariedade do “terceiro setor”, o
“empreendedorismo”, entre outros (ver MONTAÑO, org., 2014).

● Um segundo aspecto ideológico e político da análise pós-moder-


na sobre as formas de opressão a partir da “lógica identitarista” consis-
te em não tratar as “identidades” e as “causas identitárias” como complemen-
tos da questão de classe e das lutas de classes, mas como substitutivos delas:
“identidade” em vez de classe. Isso porque, como já foi dito, a análise
pós-moderna (e nisso ela é herdeira da acionalista) afirma que a “iden-
tidade” é um elemento aglutinador e mobilizador muito mais forte do
que a classe social.
É nesse sentido que Haider afirma que
as políticas identitárias […] aparecerão não como um comple-
mento da política de classe, não como uma expansão das cate-
gorias de esquerda de opressão e emancipação, não como uma
ampliação enriquecedora de formulações progressistas […], mas
como vinculadas a uma ideia de justiça que reinscreve um ideal
burguês […] (2019, p. 47).

234
CAPITULO 5

Assim, a “lógica identitarista” tem como resultado, por um lado,


afastar o projeto revolucionário do horizonte político e, por outro, pul-
verizar os grupos sociais em “identidades” particulares, enfrentando
internamente, como adversários, a classe trabalhadora. Dessa forma,
a polarização da “lógica identitarista” contribui para a divisão interna
da classe trabalhadora e, assim, seguindo a máxima romana “Divide e
reinarás”, fragiliza a capacidade de luta dos trabalhadores.
Parece muito mais uma clara, e muito efetiva, estratégia dos setores
dominantes de promover a autodestruição, a “implosão” da unidade e
do movimento dos trabalhadores.
A Casa Grande, para perpetrar seu poder e dominação absolutos,
promove o conflito na Senzala!
Haider também aponta como a política identitária, contrariamente
aos seus objetivos pretendidos, passa a constituir “uma parte integral
da ideologia dominante” (2019, p. 68), fragilizando qualquer tipo de
análise e luta não afinados à “lógica identitarista”.
Ela é intrínseca e funcional à ideologia dominante justamente por ser
fortemente divisionista do campo progressista, pulverizando a “maioria
da classe trabalhadora” em diversas “minorias identitárias”. A ação política
derivada disso será um fracasso anunciado.
O pós-estruturalista Stuart Hall aponta um exemplo bem eloquen-
te sobre esse processo. Conforme descreve:
Em 1991, o então presidente americano, Bush, ansioso por res-
taurar uma maioria conservadora na Suprema Corte americana,
encaminhou a indicação de Clarence Thomas, um juiz negro de
visões políticas conservadoras. No julgamento de Bush, os elei-
tores brancos (que podiam ter preconceitos em relação a um juiz
negro) provavelmente apoiaram Thomas porque ele era conser-
vador […], e os eleitores negros (que apoiam políticas liberais em
questões de raça) apoiariam Thomas porque ele era negro. Em
síntese, o presidente estava “jogando o jogo das identidades”.
Durante as “audiências” em torno da indicação, no Senado, o
juiz Thomas foi acusado de assédio sexual por uma mulher ne-
gra […]. As audiências causaram um escândalo público e polari-
zaram a sociedade americana. Alguns negros apoiaram Thomas,

235
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

baseados na questão da raça; outros se opuseram a ele, tomando


como base a questão sexual. As mulheres negras estavam dividi-
das, dependendo de qual identidade prevalecia: sua identidade
como negra ou sua identidade como mulher. Os homens negros
também estavam divididos, dependendo de qual fator preva-
lecia: seu sexismo ou seu liberalismo. Os homens brancos esta-
vam divididos, dependendo, não apenas de sua política, mas da
forma como eles se identificavam com respeito ao racismo e ao
sexismo. As mulheres conservadoras brancas apoiavam Thomas,
não apenas com base em sua inclinação política, mas também
por causa de sua oposição ao feminismo. As feministas brancas,
que frequentemente tinham posições mais progressistas na ques-
tão da raça, se opunham a Thomas tendo como base a questão
sexual. E, uma vez que o juiz Thomas era um membro da elite
judiciária […], estavam em jogo, nesses argumentos, também
questões de classe social.
A questão da culpa ou da inocência do juiz Thomas não está
em discussão aqui; o que está em discussão é o “jogo de identida-
des” e suas consequências políticas (HALL, 2006, p. 18-20).

Hall não consegue “resolver” essa equação, pois ele mesmo assu-
me que não há, na complexa sociedade contemporânea e pós-moderna,
um “dispositivo” ou uma categoria aglutinadora, nem a classe social
(ibidem, p. 20-21), mas consegue apontar claramente o problema e o im-
pacto político dessas “‘políticas’ da fragmentação ou ‘pluralização’ de
identidades” (ibidem, p. 18).
Com isso, podemos observar o desdobramento desse divisionismo,
próprio da “lógica identitarista” pós-moderna, nos seguintes aspectos:
Em primeiro lugar, o dito “lugar de fala” impede que alguém não
pertencente a esse “lugar” possa falar sobre uma questão que em tese
“não o envolve” – assim, impede que um branco pense a questão racial,
que um homem fale sobre a questão de gênero, que um heterossexual
analise a questão LGBT, que um europeu estude as sociedades latino-a-
mericanas. Nessa lógica, o conhecimento só poderia ser produzido pelo
membro da “identidade”, pelo pertencente ao “nós”, descartando todo

236
CAPITULO 5

conhecimento alheio, elaborado por “eles”. Com isso há um descarte de,


e/ou um desprezo por, todo conhecimento “alheio”. Marx, por exem-
plo, enquanto homem branco e europeu, deveria ser prontamente des-
cartado. Ora, isso parece ser tudo o que os grupos dominantes querem!
Assim, imaginemos se Marx tivesse rejeitado os textos e as análises
de Smith e de Ricardo por pertencerem a outro “grupo identitário”,
porque não ocupavam o mesmo “lugar de fala” de Marx. Imaginemos
se a classe trabalhadora inglesa tivesse rejeitado a obra de Marx porque
ele não pertencia à classe trabalhadora, porque não tinha o “lugar de
fala” dado pela condição de classe, porque não tinha a mesma “iden-
tidade” dos operários, do proletariado. Imaginemos a rejeição à obra
marxiana simplesmente por se tratar de um pensador de origem judai-
ca. Imaginemos, ainda mais, se os trabalhadores e intelectuais latino-
-americanos rejeitassem a obra de Marx por não ter essa “identidade”
regional.
Porém ao vincular o “lugar de fala” (que descarta a “fala”, o conhe-
cimento do “alheio”, dos “outros”, do “eles”) com a chamada “pós ver-
dade” (que afinca a noção de verdade não nas provas, na materialidade
e na objetividade, mas na crença, na opinião e na afinidade identitária),
cada grupo, o “nós” e o “eles”, terá a própria versão da realidade, a
própria “verdade”. Funda-se aqui um “diálogo de surdos”! Cada um
fala para os “seus” e ignora / rejeita a fala dos “outros”. Não só você
não pode falar a meu respeito, como ainda, tudo o que você falar será
ignorado ou rejeitado. Com essa base, jamais os conhecimentos se so-
marão, jamais o entendimento será alcançado.
Essa lógica não está presente apenas na esquerda, dividindo-a em
múltiplas frações enfrentadas, mas também no campo da direita, a
exemplo do atual governo, no qual o presidente Bolsonaro não articula
com partidos, não fala nem responde à imprensa e não governa para
toda a nação, apenas se comunica unidirecionalmente por meio das re-
des sociais, falando suas “verdades” (sobre a pandemia, sobre as quei-
madas, sobre as milícias etc.) apenas para o público de seguidores, para
os “seus”.
Porém esse divisionismo não fica só no plano teórico, no discurso,
na “fala”, ele opera também no plano da ação política.

237
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, em segundo lugar, a “lógica identitarista” também faz com


que no plano da ação política a maioria, articulada à classe, pulverize-
-se em diversas minorias desarticuladas. Dessa forma, por exemplo,
uma mulher branca e uma mulher negra, uma mulher trabalhadora
e uma mulher empresária, podem se reunir para lutar pela questão
de gênero, pelos direitos igualitários das mulheres contra a violência
de gênero. Porém, na polarização operada pela “lógica identitarista”,
um homem não pode se somar à luta feminista, pois ele é o “outro”, o
adversário, o alvo dessa luta. Uma pessoa branca não pode se somar
à luta contra o racismo e pela igualdade racial. De igual forma, um
heterossexual não pode se fazer presente na luta LGBT. E nessa lógica,
não teria sentido que Marx e especialmente Engels, não pertencendo ao
proletariado, pudessem fazer parte da luta operária. Nessa lógica, a so-
lidariedade entre as diversas “identidades”, dentro da classe trabalha-
dora, por parte daqueles que se somam às diversas causas civilizatórias
e emancipatórias, torna-se impraticável.
Assim, a “lógica identitarista” pós-moderna, atrelada ao “lugar
de fala”, à “pós-verdade” e ao “punitivismo” da esquerda, fragiliza
ao extremo a necessária unidade (na diversidade) da classe trabalha-
dora, que passa a se enfrentar internamente, a se multifragmentar e
a destruir a vida dos indivíduos (trabalhadores militantes) que, nessa
racionalidade, passam a ser considerados “inimigos” (antagonizados
com essa ou aquela “identidade”), comprometendo e abalando assim
a unidade e o poder de luta da classe trabalhadora. É o paraíso dos
setores dominantes.
Não é estranho, ao perceber isso, entender por que o “identitarismo”
é fortemente promovido pelas corporações multinacionais, pela grande
mídia (a exemplo da Rede Globo), por atores e atrizes de Hollywood
etc., que incorporam a linguagem identitarista, certamente não porque
tomaram consciência da importância de combater as diversas formas de
desigualdade, opressão e segregação social. A Globo facilmente pode
adotar uma linguagem e promover ações identitaristas; o que não pode
é adotar um discurso a favor da classe trabalhadora e das lutas de clas-
se. Risério também aponta como “o canal de televisão Globonews […] é
hoje o grande porta-voz de massas do identitarismo” (RISÉRIO, 2019, p.

238
CAPITULO 5

79). Aqui vale a máxima do velho Brizola: “Quando vocês tiverem dúvidas
quanto a que posição tomar diante de qualquer situação, atentem… Se a Rede
Globo for a favor, somos contra. Se for contra, somos a favor!”.57
● Um terceiro aspecto ideológico e político está na desarticulação
da questão identitária da totalidade social e o correlato abandono do projeto
anticapitalista.
Assim, a ação “política identitarista” pós-moderna tem, por um
lado, o “punitivismo” do “outro” como objetivo e finalidade, via de
regra buscando a eliminação pessoal daquele visto como inimigo. Esse
objetivo tático constitui sua finalidade e seu horizonte político. Assim,
não há estratégia política, ou ela é deixada em segundo plano e subsu-
mida pela ação tática.
Ora, até a eliminação da exploração, que poria fim à classe capita-
lista e exigiria a superação da ordem burguesa, não é feita por meio da
eliminação dos indivíduos que compõem a classe. Com a superação da
ordem burguesa, a condição de “burguês” (dono dos meios de produ-
ção) desaparece. Há que suprimir a condição de burguês (socializan-
do os meios de produção), e não aniquilar os indivíduos e as pessoas
que hoje têm essa condição. Da mesma forma, eliminar o machismo, o
racismo, a homofobia etc., exige enfrentar a estrutura, o sistema, a cul-
tura machista, racista, homofóbica etc. Porém a “lógica identitarista”,
ao criar uma polarização individual entre os sujeitos, tendo o “puniti-
vismo” como ação política central, visa à eliminação (ou subjugação)
dos indivíduos contrários à “identidade” em questão. Como se não fosse
possível suprimir a relação de opressão, mas apenas alterar as posições
do dominante e do dominado.
Por outro lado, o objetivo e a finalidade da “lógica identitarista”
pós-moderna se esgota no “reconhecimento” e na “inclusão”, na con-
quista de direitos, no dito “empoderamento” dos sujeitos, nas políticas
inclusivas ou compensatórias.
Tratam-se, portanto, de objetivos necessários e urgentes, certamente
progressistas, e dentro do horizonte da “emancipação política”, mas que não
corroem a ordem burguesa, antes pressupõem a manutenção da mesma.
57 Ver em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/A-Globo-sequestrou-a-democracia-
e-urgente-uma-Rede-da-Legalidade-contra-o-Golpe/4/35724>, acesso em: abr. de 2020.

239
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

A partir de tudo o que foi exposto até aqui, podemos identificar


uma múltipla funcionalidade da “lógica identitarista” com a reprodu-
ção da lógica do capital. Vejamos.
a) Funcionalidade política. Primeiramente, a “lógica identitaris-
ta” pós-moderna, a partir dos fundamentos apontados, apresenta uma
funcionalidade política com o capital, e particularmente seu projeto
neoliberal.
Por um lado, ela conduz à desarticulação das lutas de classes. Dessa
forma, ela fragiliza, e muito, a luta e resistência contra os avanços do
neoliberalismo e do ultraconservadorismo.
Assim, a desarticulação da classe e a fragilização das lutas de classe
têm como corolário o fortalecimento da classe dominante; isto é, com
a redução do poder do trabalhador há a consolidação e ampliação da
correlação de forças favorável ao grande capital. Nesse sentido, num
exercício analítico, Trótski afirma que
se admitirmos – e vamos fazê-lo por um momento – que a classe
operária deixe de se levantar numa luta revolucionária, e permita
que a burguesia dirija os destinos do mundo durante numerosos
anos, […] então certamente alguma espécie de novo equilíbrio será
estabelecida. A Europa será violentamente lançada num retroces-
so. Milhões de operários morrerão de desemprego e desnutrição.
Os Estado Unidos serão compelidos a se reorientar no mercado
mundial, a reconverter sua indústria e a sofrer restrições durante
considerável período (in MANDEL, 1982, p. 153-154).

Para Trótski, isto é excessivamente abstrato e unilateral, na medida


em que é impossível especular com a ausência das lutas de classes. Po-
rém, não ignorando a real presença dessas lutas, mesmo num contexto
de tensão social interclasses, o fato é que no período pós-1970 o poder
político, o nível de organização e a adesão das classes trabalhadoras
têm diminuído significativamente, particularmente a partir dos anos
1990 e especialmente nos anos 2000, as lutas de classe têm sido paula-
tinamente substituídas (e não complementadas) pelas lutas parciais ou
particulares, numa “lógica identitarista” sob orientação pós-moderna;
nessas condições, a afirmação de Trótski resulta profética.

240
CAPITULO 5

Ainda, como afirma Petras, “o declínio ou avanço dos direitos so-


ciais variam com o nível e intensidade da luta de classe, as mudanças
no poder político e o compromisso dos líderes em tomar ações decisi-
vas. O retrocesso dos direitos trabalhistas e sociais não é o resultado de
processos globais abstratos, mas o resultado de políticas de Estado, re-
lações de classes e liderança política e social” (1999, p. 66). Para o autor,
“onde o poder de classe do trabalhador permanece coeso, a retirada
[dos direitos conquistados] é menos evidente” (ibidem, p. 54).
Como já questionamos, se não for a classe trabalhadora, quem luta-
rá para garantir ou conquistar direitos sociais universais?
Por outro lado, ela transforma o objetivo / alvo das lutas: elas deixam
de se orientar contra o sistema (burguês) ou contra os sistemas (pa-
triarcal, racista etc.) e se concentram em lutas orientadas contra os in-
divíduos (portadores dessas culturas), contra o “diferente”, contra o
“inimigo”.
Ainda, orienta (e, via de regra, esgota) suas demandas na direção
dos direitos burgueses. Portanto, o projeto político é basicamente de
inclusão (no sistema burguês).
Assim, a “lógica identitarista”, como já afirmamos, ao priorizar o
aspecto tático (a conquista a curto prazo de direitos e da punição de
indivíduos) em vez da estratégia, acaba abandonando os objetivos mais
mediatos, finalistas, voltados à transformação social, e inclusive os de
médio prazo, como a necessária unidade da esquerda contra o avan-
ço do ultraconservadorismo e do fascismo, aglomerado, no caso bra-
sileiro, no “bolsonarismo”. Nesse sentido, como sustenta Ortellado, se
por um lado “as identidades oferecem […] uma comunidade política e
uma visão comum de mundo […, por outro] elas às vezes se mostram
obstáculos incontornáveis para a ação estratégica” (2019, p. 3).
A funcionalidade política da “lógica identitarista” manifesta-se,
ainda, como uma polarização, tanto dentro da esquerda identitarista,
como da direita. Como foi tratado, se há um “identitarismo” de esquer-
da (e certamente de orientação progressista), há também um “identita-
rismo” de direita (centrado no ultranacionalismo, no fundamentalismo
religioso, no machismo e no racismo, todos eles expressando uma iden-
tidade conservadora, até reacionária). Assim, a “lógica identitarista”

241
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

existe nos dois lados, na esquerda e na direita, no “nós” e no “eles”; se


há uma “identidade” que unifica o “nós”, o “eles” também se aglutina
a partir de uma outra “identidade”.
Isso é claro e expressivo na realidade brasileira contemporânea, o
que explica o surgimento e a expansão do “bolsonarismo” (e a ver-
tente militarista-fascista, a vertente evangélica, a vertente “olavista”
ou “ideológica”) é a reunião, a partir do antipetismo e do combate ao
“marxismo cultural”, fanatizada porém tensa, de “identidades” diver-
sas em torno dessas vertentes. É o que afirma o colunista da Revista
Cult, Wilson Gomes: “O bolsonarismo […] é também um movimento
importante no jogo da política identitária” (2018), sendo que “ambos os
lados, o bolsonarismo ou a esquerda identitária, satanizam o seu inimi-
go predileto” (ibidem). Isto é, na direita ou na esquerda, a lógica polari-
zadora do “identitarismo” pós-moderno sustenta-se na satanização do
outro, tido como inimigo, o qual precisa ser exterminado.
Politicamente, ainda, a “identidade” cumpre uma função eleitoral,
organizando nichos eleitorais para os quais os candidatos devem orien-
tar seus discursos e as propostas pré-eleitorais, como, nos EUA, os elei-
tores latinos, os negros, as mulheres etc. Mas, como aponta Lilla (2018),
fazer uma campanha dirigida a um público (de certa “identidade”)
acaba afastando os outros, o que, segundo ele, favoreceu a eleição de
Donald Trump contra Hillary Clinton. No caso brasileiro, porém, essa
questão é superada, na medida em que o processo eleitoral é sobre pes-
soas, e não chapas ou listas eleitorais, podendo cada candidato escolher
seu nicho eleitoral, aquela “identidade” para a qual vai direcionar seu
discurso e suas propostas; aqui, cada partido, através de candidatos
individuais, poderá direcionar sua campanha aos mais diversos setores
da sociedade: os taxistas, os garçons, os portadores de necessidades
especiais, os aposentados, os torcedores de um time etc.
Finalmente, o apelo à “identidade” é muitas vezes usado para jus-
tificar e legitimar algumas posturas contrárias aos interesses universais
ou de classe. Podemos relembrar o caso da senadora Marta Suplicy
que, quando presidia a Comissão de Assuntos Sociais (CAS) do sena-
do, em 20 de junho de 2017, sessão que tratava da terceirização dos
trabalhadores, intimidou seu opositor Lindbergh Farias afirmando:

242
CAPITULO 5

“Olha o machismo e se cuida!” (ver item 4.1-F); o apelo identitarista certa-


mente buscava calar o opositor e facilitar o projeto de precarização do
trabalho. Ou ainda, outro caso emblemático, quando a jovem deputa-
da Tabata Amaral, contrariando a posição da bancada do PDT, partido
pelo qual fora eleita e ao qual pertencia, votou a favor da reforma da
previdência em 7 de agosto de 2019. Tempo depois, ela declara em um
programa de TV (14 de outubro de 2019) que era criticada “por ser
‘mulher e jovem’”;58 sem desconsiderar a notória constatação de que
o fato de ser mulher e jovem certamente representa fonte de discrimi-
nação e desigualdade, nesse caso o apelo identitarista buscava abafar
as críticas sobre sua posição favorável à aprovação dessa impopular e
regressiva reforma, e ao fato de ter traído seu eleitor e seu partido, bus-
cando a solidariedade em função da sua condição identitária.
Para a direita, para os setores dominantes e para o projeto ultracon-
servador, trata-se de uma potencial ferramenta que pode ser usada tan-
to para anular ou inibir qualquer liderança ou militante oposicionista,
popular, progressista, como para gerar legitimidade e aceitação de pro-
postas impopulares e contrárias aos interesses da classe trabalhadora.
b) Funcionalidade ideológica. Em segundo lugar, podemos obser-
var uma funcionalidade ideológica da “lógica identitarista”.
Por um lado, ela tende a eliminar a centralidade da classe, segmentan-
do, ainda mais, a classe em várias “identidades” opostas.
Cria a sensação ideológica, em primeira instância, de que é a “iden-
tidade”, mais do que a classe, o que determina e conforma os principais
aspectos da autopercepção e da constituição da personalidade do indi-
víduo, e, em segunda instância, de que essa “identidade” é constituí-
da em total independência da esfera econômica. É nesse sentido que
Wood afirma que, para a razão pós-moderna, ao operar uma radical
separação entre “a exploração econômica e as forças e identidades ex-
traeconômicas”, cria-se a sensação de que haveria “uma ampla gama
de relações sociais externas à estrutura de produção e exploração, que
criam uma variedade de identidades sociais sem ligação imediata com
58 Ver matérias: <https://www.camara.leg.br/noticias/567178-camara-aprova-texto-base-da-
reforma-da-previdencia-em-2o-turno-por-370-votos-a-124/>; e <https://capricho.abril.com.br/
comportamento/deputada-diz-que-e-criticada-na-politica-por-ser-mulher-e-jovem/>, acesso
em Nov. de 2020.

243
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

a ‘economia’” (WOOD, 2006, p. 239), e de que “as identidades de clas-


se” teriam “importância limitada […] na experiência de vida dos seres
humanos” (ibidem, p. 240).
Ainda mais, para o projeto ultraconservador e neoliberal, o apelo
ao identitarismo e à polarização identitária é ideológica e politica-
mente funcional. Efetivamente, focar o debate político na contradição
de classes e nas pautas econômicas – reforma da previdência, precari-
zação dos direitos trabalhistas, redução de direitos e políticas sociais
etc. –, mostrando às claras o projeto da elite burguesa, industrial e
financeira, certamente despertará enorme resistência ou rejeição das
massas populares. Para o campo neoliberal, política e ideologicamen-
te, o melhor é focar na polarização identitarista – combater a legalização
do aborto, a “ideologia de gênero”, o “marxismo cultural”, o homos-
sexualismo, a “cristo-fobia” etc. Isto é, o abandono das pautas econô-
micas e das lutas classistas por parte da esquerda pós-moderna em
favor da polarização identitarista é extremamente funcional à direita
neoliberal e ao projeto da burguesia financeira, que visa esconder seu
projeto econômico para levar ideologicamente o debate ao “confronto
entre identidades”, congregando os trabalhadores brancos, homens,
héteros, cristãos, nacionais etc., que não mais pensarão nos seus in-
teresses enquanto classe trabalhadora, mas enquanto “identidades”
opostas. Este parece ser o argumento de Ciro Gomes (2017), para
quem a direita está “querendo trocar o ambiente do debate, de economia,
de saúde, de segurança etc., para o ambiente de costumes”,59 pois desta
forma a direita pode congregar o apoio popular de setores conserva-
dores, moralistas, pentecostais, evangélicos etc. Ao retirar o debate
da esfera das questões econômicas e sociais (em torno de questões
trabalhistas, orçamentárias, da produção e o consumo, do papel das
empresas e serviços públicos etc.) e levá-lo para o campo cultural,
moral e comportamental, dos costumes, o neoliberalismo consegue
base, apoio e legitimidade para projetos antipopulares, pois a contra-
dição de classe é substituída pela polarização identitarista.
Assim, a estratégia ultraconservadora encontra seu respaldo na aná-
lise e o discurso pós-modernos: estabelecer uma polarização “nós / eles”
59 Ver em <https://www.youtube.com/watch?v=cjDDUNgi77U>; acesso em jan. de 2021.

244
CAPITULO 5

fundada no campo da cultura, na esfera comportamental, abandonan-


do as dimensões econômicas e políticas das lutas pela igualdade social.
Ainda, ideologicamente, a análise pós-moderna, se por um lado
“sataniza” o “outro”, por outro produz uma visão romântica e “santifi-
cada” da “identidade”, do “nós”.
Ela, primeiramente, tende a conceber a “identidade” como uma
construção absolutamente determinada pelos setores subalternos, e, por-
tanto, genuinamente subalterna e antiopressiva. Ora, já vimos (item 2.1)
que a “identidade” tem aspectos individuais e subjetivos, de autoimagem,
e que ela responde a uma construção coletiva, a partir da comunhão de
pessoasnuma mesma situação, condição ou atributo, mas que também é
produto de uma construção social, atribuída. Isto é, a “identidade” de mu-
lher, de negro, de índio, de gay, carregam também aspectos atribuídos
pelas estruturas e culturas patriarcais, machistas, racistas e homofóbi-
cas. A imagem, portanto, de uma “identidade” “pura”, autoconstruída
e, portanto, cem por cento antiopressiva e livre de preconceitos, é uma
visão romântica do limitado pensamento pós-moderno.
Porém, em segundo lugar, e em decorrência do anterior, esse ro-
mantismo se expressa também, amparado nas noções de “lugar de
fala” e de “pós-verdade”, no fato de que, assim como tudo que vem
do “outro” deve ser sumariamente considerado falso, preconceituoso,
expressão de uma dominação, e portanto rejeitado, tudo que vem do
“nós”, da “identidade”, do “nosso lugar”, será também automatica-
mente considerado “verdadeiro”, potencialmente contestatório e trans-
formador. A noção de verdadeiro ou falso, de correto ou incorreto, de
conservador ou crítico, a partir dessa “lógica identitarista”, parece ser o
resultado direto do “lugar” de onde o “nós” e o “eles” falam.
Finalmente, uma outra funcionalidade ideológica da “lógica iden-
titarista” pós-moderna está no que chamamos de “ideologia do terceiro
setor” (MONTAÑO, 2014, p. 38 e ss.), isto é: a autorresponsabilização
dos indivíduos pelas respostas às suas necessidades, a desresponsabi-
lização social do Estado e a desoneração do capital. Processos próprios
da ortodoxia neoliberal, mas que a esquerda pós-moderna torna pala-
tável e transfere para o campo progressista mediante seus “cantos de
sereia” (ibidem).

245
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

c) Funcionalidade econômica. A “lógica identitarista” não apenas


se mostra funcional ideológica e politicamente (dimensão imaterial)
para os interesses dos setores dominantes, particularmente para os
interesses do projeto neoliberal. Essa funcionalidade assume também
uma dimensão material concreta. Ao dividir, enfrentar e fragilizar in-
ternamente a classe trabalhadora e os setores subalternos, a “lógica
identitarista” acaba tendo uma funcionalidade econômica para o capital
e suas reformas contemporâneas.
Várias são as utilidades dela para o capital:
Primeiramente, criando nichos de mercado a partir dos perfis identitários.
Assim, citando Žižek, Risério afirma que nesse sentido as sociedades ca-
pitalistas tiram proveito do “identitarismo”, criando nichos de mercado
segmentados e orientados para cada grupo específico (2019, p. 78).
Os processos de toyotização, automação, robotização e terceiri-
zação da produção, levam a uma grande transformação das antigas
indústrias fordistas, de produção padronizada e em massa, para uma
indústria que subcontrata uma enorme rede de empresas ou traba-
lhadores (ver ANTUNES, 1999). Com isso, dentre outras significati-
vas e novas particularidades da produção pós-fordista, uma é visível
e contundente: as indústrias não restringem mais sua produção a um
conjunto limitado de produtos padronizados, nem sequer a um ramo
de produção, como era o fundamento da indústria fordista. Com es-
sas transformações tecno-organizativas, uma indústria pode, a partir
da uma rede de empresas e de trabalhadores terceirizados, produzir
e comercializar uma vasta variedade de produtos. Exemplo disso é a
empresa Pierre Cardin, que produz / comercializa artigos nos ramos de
vestimentas, roupas, perfumes, colchões, bijuterias, relógios, impossí-
veis de serem produzidos num único espaço industrial, exigindo uma
rede de micro e pequenas empresas (ver MONTAÑO, 1999, p. 28 e ss.).
Nesse sentido, essa nova empresa, diversa e diversificada na pro-
dução e na oferta de produtos variados, pode atender simultaneamen-
te múltiplos e variados nichos identitários do mercado, o que, além
de ampliar o consumo de mercadorias de uma mesma empresa, pode
compensar a queda de demanda de certos produtos pela ampliação do
consumo de outros.

246
CAPITULO 5

Em segundo lugar, há uma utilidade econômica para o capital


como mecanismo de redução dos custos da força de trabalho, a partir da
“inclusão” de determinadas categorias no mercado de trabalho.
Se no século XIX, como Marx aponta (1980, p. 449 e ss.) ao anali-
sar a “apropriação pelo capital das forças de trabalho suplementares”,
eram as mulheres e as crianças aquelas que brindavam o capital com
uma força de trabalho mais barata, hoje, com as conquistas laborais das
mulheres e com os limites legais do trabalho infantil, são particular-
mente o trabalhador de baixa instrução, o negro, o indígena, o imigran-
te (principalmente irregular) ou o refugiado, o retirante, o portador de
necessidades especiais, o ex-presidiário, o jovem aprendiz etc., os que
proporcionam ao capital mão de obra barata, seja para substituirem
trabalhadores “mais caros”, seja para desempenharem atividades de
maior periculosidade ou insalubridade ou de menor qualificação, im-
próprias para o trabalhador “padrão”.
O capitalismo requer de segmentos sociais de baixa remuneração;
precisa dessa distinção identitarista para obter força de trabalho mais
barata para aquelas atividades de menor complexidade tecnológica ou
piores condições de salubridade e segurança, pagando salários mais
baixos e criando ainda uma tendência decrescente do valor da força de
trabalho em geral.
Assim, do ponto de vista econômico, a raça, o gênero, a nacionali-
dade etc., proporcionam ao capital uma classificação, uma estratifica-
ção, uma distinção, fornecendo força de trabalho diferencial e remu-
nerando menos aqueles(as) trabalhadores(as) de determinados grupos
(ou “identidades”) mais suscetíveis à precarização.
E como a classe está dividida (e desarticulada), a luta comum,
mancomunada, unitária, está igualmente (e por derivação) fragilizada
e secundarizada.
Tratam-se, portanto, de nichos de consumo, perfis identitários de
mercado e força de trabalho barata para o capital.
Não que a inclusão dessas categorias no mercado de trabalho, assim
como no mercado específico de consumo, não represente, pelo ponto de
vista dessas categorias, uma conquista para esses segmentos; certamente
representam conquistas importantes no plano imediato. Mas o que que-

247
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

remos ressaltar é que, contraditoriamente, essa inclusão representa um


enorme benefício para o capital, pois fornece força de trabalho “suple-
mentar” mais barata e cria espaço para escoar a produção variada.
Trata-se de um processo contraditório. Marx, ao tratar da explora-
ção da mais-valia a partir da compra e da venda de força de trabalho,
afirmou: “O que de teu lado [do capitalista] aparece como valor do
capital [a mais-valia], é do meu lado [do trabalhador] dispêndio exce-
dente de força de trabalho [trabalho excedente]” (1980, p. 263). No nos-
so caso, diríamos: o que do lado dos grupos identitários representa inclusão
no mercado de trabalho e no mercado de consumo, do lado do capital significa
redução dos custos da força de trabalho e criação e ampliação de nichos especí-
ficos de consumo.
Se tudo isso, toda essa funcionalidade, já é profundamente bené-
fico para a burguesia e seu projeto neoliberal, fragilizando política e
ideologicamente a classe trabalhadora na correlação de forças sociais,
torna-se muito mais grave e dramático no cenário de recrudescimento
do ultraconservadorismo, e particularmente do neofascismo, como é o
caso recente do Brasil.

5.2- O avanço do ultraconservadorismo no Brasil e a esquerda


pós-moderna

A guinada ultraconservadora no Brasil tem diversos motivos que


não exploraremos aqui: os erros do governo do PT, com Lula e Dilma
(corrupção, aliança com setores conservadores, abandono de pautas
trabalhistas, concessões ao capital financeiro etc.); a fragilização das
organizações classistas e das lutas sociais e de classe, secundariza-
das por esse governo em face dos interesses do projeto neoliberal; a
manipulação das mobilizações de 2013 pela grande mídia, que as di-
recionou exclusivamente para o combate à “corrupção petista”; a in-
satisfação popular, cooptada pelo discurso antipetista, supremacista,
racista, machista e neofascista de Bolsonaro; o interesse dos EUA e das
grandes corporações pelo petróleo do “pré-sal” no Brasil; o avanço do
ultraconservadorismo em outros países, como na Inglaterra, na França
e nos EUA etc.

248
CAPITULO 5

Aqui, partiremos do golpe institucional de Estado de 2016, que põe


fim à “era PT”. Mas, por que pôr fim à era petista se ela garantiu re-
formas de interesse do grande capital (como a da previdência), se ela
permitiu lucro recorde ao capital financeiro, se ela não fez as reformas
política, tributária, midiática, constitucional etc.?
Ora, o problema do Brasil para o grande capital financeiro interna-
cional, ao promover o golpe institucional de Estado em 2016, não era
o Lula ou a Dilma, ou sequer o PT. O problema era a, mesmo formal e
limitada, “democracia”. Era ela que permitia manifestações, resistência
e oposição (do movimento social e trabalhador), e mesmo que forte-
mente controlada pelas grandes corporações internacionais e nacionais
de notícia, a necessidade / possibilidade de acesso à informação, ini-
bindo a agenda de privatizações do pré-sal e da Embraer (e de tudo o
que restou de lucrativo nas empresas no âmbito do Estado brasileiro),
o desmatamento da Amazônia para construir terra cultivável, assim
como a reforma trabalhista, previdenciária etc., e o fim da gratuidade
da educação (particularmente universitária) e da saúde.
Em termos gerais, o capital, após cinco décadas de crise cumulativa
(ver MÉSZÁROS, 2011), precisava afastar ainda mais a atividade regu-
ladora estatal e os limites impostos pelo regime democrático.
Portanto, a continuidade / ampliação da agenda neoliberal, ago-
ra radicalizada, não podia mais ser aplicada em governos (por mais
funcionais que fossem) democráticos.
O golpe de Estado institucional, após as mobilizações de junho de
2013, não foi contra o governo, mas contra a democracia. E ele foi o pri-
meiro passo para, em seguida, instituir um governo autocrático, mili-
tarizado, uma “ditadura por via eleitoral”: o governo Bolsonaro. Aqui,
como se estivesse falando da realidade brasileira, D’Ancona afirma que
“tornou-se corriqueiro empregar a palavra ‘mito’ como sinônimo de
‘mentiras rotineiras’” (2018, p. 114).
Há, a partir da segunda década do século, o recrudescimento do
ultraconservadorismo no mundo inteiro e particularmente no Brasil;
não só os governos de Donald Trump, Mauricio Macri, Emmanuel
Macron, Sebastián Piñera, Jair Bolsonaro e o Brexit de Theresa May
(ou Boris Johnson), para citar só alguns, mas o ressurgimento de uma

249
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

idiossincrasia e de uma ideologia neofascista, supremacista e funda-


mentalista – assim como o aparecimento de expressões de extremo ma-
chismo e misoginia, de ultranacionalistas, de “supremacistas brancos”
e de novas Ku Klux Klan, de fanatismo e fundamentalismo religioso,
de grupos de extermínio de moradores de rua, de novas perseguições
aos “marxistas culturais”, de ataques à população LGBT etc. – e que
perpassam boa parte da população de diversos e variados setores e es-
tratos sociais, econômicos e culturais.
Pierucci caracteriza esse avanço ultraconservador como uma “nova
direita”, que “prima por diagnosticar a crise geral do mundo contem-
porâneo como uma crise primeiramente cultural, uma crise de valores,
de maneiras, crise moral” (2000, p. 85), de forte apelo moral e religio-
so, opondo-se a todos os avanços sociais (união homoafetiva, aborto,
igualdade de gênero, educação sexual etc.) e “visando à conservação
de valores morais convencionais” (ibidem, p. 84).
Portanto, esse avanço ultraconservador no mundo, e particular-
mente no Brasil, vai muito além de um projeto econômico conservador,
tendo fortes conotações neofascistas. Podemos encontrar rapidamente
na figura de Steve Bannon um articulador desse processo. Bannon, ex-
-banqueiro e produtor de filmes, esteve à frente do site da extrema-di-
reita Breitbart News, que passou a ser o espaço de uma plataforma da
“Alt-Rigth”, uma proposta de “direita alternativa”, ultranacionalista,
antiestablishment, crítica ao (tímido) “conservadorismo tradicional”,
passando a adotar uma postura “supremacista” e racista, sexista e an-
tifeminista, xenofóbica, ultranacionalista e antimigratória, homofóbica,
anticomunista e antissemita. Ao lado do bilionário ultraconservador
Robert Mercer, Bannon fundou em 2013 a Cambridge Analytica, vin-
culada à Strategic Communication Laboratories (SCL), empresa dedi-
cada à mineração, à análise de dados e à comunicação estratégica para
fins eleitorais, com sede na Inglaterra e escritórios hoje espalhados pe-
los EUA, pela Malásia e pelo Brasil. Em 2016, a Cambridge Analytica
participa dos processos eleitorais de Donald Trump, nos EUA, e do
“Brexit”, na Inglaterra, dentre outros acontecimentos, como o plebisci-
to sobre as FARC, na Colômbia. Seu enorme sucesso eleitoral em todos
esses casos teve como eixo o uso (criminoso) dos dados de perfis do

250
CAPITULO 5

Facebook (perfis de 50 milhões de pessoas só nos EUA), a partir de um


supostamente “inocente” teste de personalidade chamado “thisisyour-
digitallife” [Esta é a sua vida digital], elaborado pelo professor de psi-
cologia Aleksandr Kogan, a partir de um aplicativo. Mediante esse
aplicativo, os usuários forneciam à Cambridge Analytica seus dados
pessoais, como identidade, localização, preferências, costumes, valores,
consumos etc., além de sua lista de contatos. Em posse desses perfis, a
Cambridge Analytica passou a relacionar esse “estudo de personali-
dade” com as preferências ideológicas, políticas e, por fim, eleitorais.
Com isso inicia-se o caminho para influenciar o voto da população-
-alvo (considerada passível de ser manipulada e direcionada para o
campo da direita ultraconservadora) através de: a) uma onda de fake
news, b) “teorias conspiratórias” e c) indução do “medo” e do “ódio”,
a partir da extrema polarização social e da sensação de ameaça. Toda
essa operação criminosa foi revelada, na delação de um dos principais
técnicos diretamente envolvidos nela, Christopher Wylie, e, num es-
forço conjunto dos jornais The New York Times e The Observer (do The
Guardian), foi apresentada no documentário Privacidade hackeada (2019).
Assim, conforme aponta D’Ancona, para compreender o proces-
so eleitoral nos EUA não basta “registrar as mentiras contadas por
Trump”. Devemos atentar para o fato de que ele “não recorreu a da-
dos verificáveis, mas a ressentimentos e medos” (2018, p. 115). Isto é,
a mentira do comunicador deve ter um receptor, uma pessoa disposta
a acreditar nela, para quem a frustração, o ressentimento e o medo são
vetores fundamentais.
No Brasil de 2018, após o golpe institucional de Estado que depôs a
presidenta eleita Dilma Rousseff em 2016, pondo fim ao “ciclo do PT”,
a disputa política parece coincidir com a mesma estratégia descrita an-
teriormente. Vejamos: temos Jair Bolsonaro, um irrelevante deputado
do “baixo clero” por quase três décadas, que fora capitão do Exército
antes de ser expulso e mandado a retiro, que de repente surge com
enorme força eleitoral, representando a ultradireita e o neofascismo.
Temos o ideólogo das “teorias conspiratórias”, Olavo de Carvalho, um
blogueiro, ex-jornalista e um astrólogo “terraplanista”, que vê o mundo
ameaçado pelo “comunismo cultural”. Temos um pool de grandes em-

251
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

presários, liderado por Luciano Hang (da empresa Havan), dispostos a


financiar com até R$ 12 milhões (dinheiro, ao que tudo indica, produto
de “caixa dois”) o exército de robôs de propagação “microdirecionada”
de fake news por WhatsApp (hoje investigado em CPI no congresso)
– como as “mamadeiras eróticas” e o “kit gay”, que estimulariam a
homossexualidade entre crianças nas escolas públicas, e ainda a dou-
trinação ideológica comunista no ensino público etc. Temos o anúncio
do Facebook, em 25 de setembro de 2018, do hackeamento (em pleno
pleito eleitoral) de 400 mil perfis, obtendo informações pessoais de 30
milhões de brasileiros. Temos um escritório da Cambridge Analytica
no Brasil desde 2017, associado à empresa Ponte Estratégia do mar-
queteiro André Torretta, que mantinha relações com o ex-deputado
Roberto Jefferson. E finalmente, coroando o processo no Brasil, temos
a participação do próprio Steve Bannon, que se reúne com Eduardo
Bolsonaro, filho de Jair Bolsonaro, em agosto de 2018, em Nova York.60
O que vemos é a inegável semelhança do processo eleitoral no Bra-
sil, que levou à vitória de Bolsonaro, com o processo do Brexit na Ingla-
terra e com a eleição de Trump nos EUA.
É a partir daí que avança hegemonicamente no Brasil, e no mundo,
a “lógica identitarista” pós-moderna, moldando as visões de mundo,
as pautas e as ações ou lutas sociais da esquerda. A visão pós-moderna
do mundo e a “lógica identitarista” como forma de organização das
lutas, encontram terreno fértil na polarização ultraconservadora que
avança sobre o mundo inteiro e particularmente sobre o Brasil. Nessa
direção, Bosco sustenta que
Os fatores causadores da sistematização e intensificação das lutas
identitárias foram, portanto, além do fator indireto do colapso do
lulismo e das revoltas de junho [de 2013] – enquanto marcos de
tensionamento social generalizado –, o bloqueio permanente do
sistema político […] e a relação […] entre a natureza das lutas

60 Ver: <https://oglobo.globo.com/mundo/as-figuras-chave-do-escandalo-da-cambridge-
analytica-22512997>; <https://tecnoblog.net/236612/facebook-cambridge-analytica-
dados/>; <https://www.cartacapital.com.br/politica/as-pistas-do-metodo-201ccambridge-
analytica201d-na-campanha-de-bolsonaro/>; <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/10/18/
opinion/1539892615_110015.html>; <https://www.brasildefatopr.com.br/2018/11/05/bannon-e-
bolsonaro-a-democracia-hackeada>; acessos em: maio de 2020.

252
CAPITULO 5

identitárias e a natureza do novo espaço público (que tem como


núcleo as redes sociais digitais): um e outro operam no âmbi-
to do reconhecimento, mais do que naquele das transformações
institucionais diretas (2017, p. 71).

A partir daí, a sociedade brasileira – que iniciara esse processo nas


marchas de junho de 2013 e, ainda mais, no golpe institucional de Esta-
do de 2016 – vem se polarizando dramática e fanaticamente, mas não a
polarização em classes sociais. Polarizou-se de forma multifragmentá-
ria, extremista e fundamentalista, numa clara generalização da “lógica
identitária”, seja pós-moderna, seja ultraconservadora. Polarização esta
que encaixou perfeitamente, como lados contrários mas com a mesma
racionalidade e forma de ação, no “identitarismo” e no “punitivismo”
de esquerda, por um lado, e no ultraconservadorismo e neofascismo,
fundados na noção do “inimigo interno”, por outro.
Só que a polarização no campo da ultradireita confluiu e se arti-
culou no “bolsonarismo”, enquanto a esquerda permaneceu cada vez
mais dividida, fragmentada, desunida e internamente enfrentada.
Nesse sentido, Risério aponta o recrudescimento da polarização so-
cial entre a direita ultraconservadora e “fascista” (hoje representada no
Brasil pelo “bolsonarismo”) e a “esquerda identitarista” (2019, p. 140).
A esquerda, sob hegemonia pós-moderna, não tinha um método e
uma lógica antagônicos aos da direita ultraconservadora, igualando-se
assim nos métodos e objetivos (porém de conteúdos diferentes) nessa
polarização e pessoalização das lutas. A esquerda, assim, não conseguiu
enfrentar o projeto ultraconservador e neofascista porque se concentra-
ra no enfrentamento e conflito (particularmente interno), polarizado e
pessoalizado, a partir da “lógica identitarista” pós-moderna.
Isto é, se tirarmos o caráter progressista e a origem subalterna de
um, e o caráter conservador e opressor do outro, o que fica é a mesma
“lógica” polarizadora, os mesmos métodos de aniquilação do “outro”,
os mesmos objetivos punitivistas, os mesmos catalisadores: o medo, o
ódio, a sensação de ameaça e insegurança.
Assim, a radical polarização da sociedade promovida pelo ódio
bolsonarista ao diferente, àquilo que não é considerado “normal” ou

253
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

“do bem” (branco, cristão, moralmente aceitável), tem seu correlato na


lógica do “politicamente correto” presente na “esquerda pós-moder-
na”. A polarização da “lógica identitarista” entre “nós” e “eles” encon-
tra, necessariamente, dois lados. A extrema polarização social que a so-
ciedade brasileira vive hoje não se deve apenas ao “bolsonarismo”; ele,
na verdade, encontra seu correlato funcional na polarizadora “lógica
identitarista” pós-moderna.
A base social do chamado “bolsonarismo” não se constituiu de seg-
mentos dominantes ou da elite da sociedade brasileira, mas notadamente
de setores populares, inclusive amplamente integrados por indivíduos e
grupos sociais que foram a base do “lulismo”. É por esse motivo, e ape-
nas esse, que a dita “elite” nacional (e internacional) apoiou alguém como
Bolsonaro, pela capacidade que ele tinha de aglutinar uma massa popu-
lar de insatisfeitos, que não encontram lugar na esquerda (identitarista):
o trabalhador, seja operário, seja de “classe média”, homem, branco, “cis”
e/ou cristão. Assim, a polarizadora “lógica identitarista” pós-moderna
abandonou o(a) trabalhador(a) médio(a), que não encontrara espaço nas
pautas identitárias e cujos interesses de classe (trabalhadora) não ocu-
pavam mais espaço central nas lutas progressistas. Não contemplado(a)
nas pautas identitaristas que agora comandam as reivindicações e as lu-
tas progressistas (retiradas da totalidade social e da questão de classe),
os(as) trabalhadores(as) brancos(as), particularmente homens, “cis” e/
ou cristãos, foram seduzidos pelo discurso de ódio do outro extremo da
polarização identitarista, o do bolsonarismo, que atraiu esses(as) traba-
lhadores(as) para suas fileiras.
Isto é, quando as “pautas identitárias” não complementam, mas subs-
tituem as reivindicações de classe, e se tornam as únicas bandeiras do
movimento e da luta progressista, então o trabalhador homem, branco,
“cis” e/ou cristão não encontra mais espaço na esquerda. Ele é empur-
rado para as fileiras da direita, chegando até a repudiar os movimentos
(e as pautas “identitárias”) da esquerda, que passará a ser vista como
inimiga. Ao ver esse indivíduo – homem, branco, cis, cristão – como
(necessária e individualmente) opressor da mulher e do negro, ele deixa
de ser visto como trabalhador, submetido à exploração, à miséria, ao do-
mínio burguês; assim, o antagonismo de classe – entre a classe burguesa e

254
CAPITULO 5

a trabalhadora – cede lugar aos antagonismos identitários – entre homem


e mulher, branco e negro, “cis” e LGBT etc.
Dessa forma, o homem branco e/ou “cis” e/ou cristão não encon-
tra mais na esquerda um espaço para suas legítimas reivindicações en-
quanto trabalhador e explorado, e sua condição (identitária: de homem
branco) passa a ser antagonizada com a das trabalhadoras mulheres,
dos negros(as), LGBTs etc. As organizações de esquerda (partidos, sin-
dicatos, movimentos sociais) deixam de ser vistas como ferramentas
adequadas para a luta pelos interesses desses trabalhadores, sejam eles
operários, precarizados, desempregados, e particularmente daqueles
de “classe média”, mais facilmente seduzidos pelo medo de perder sua
condição atual. Esse trabalhador, mesmo vivendo as mazelas da socie-
dade capitalista, podendo estar até em condições de pauperização ou
discriminado em função da sua origem, cultura, crenças etc., dada sua
condição de homem, branco e/ou “cis”, passa a ser visto individual-
mente como “privilegiado” e “opressor”.
Nessas condições, migrar para a direita (ultraconservadora e até
neofacista) não é uma escolha ou uma opção, mas uma imposição.
O bolsonarismo completou esse processo: enquanto a esquerda
identitarista exclui das suas pautas e lutas as reivindicações da classe
trabalhadora, passando a conceber o trabalhador homem e/ou branco
como privilegiado / opressor, a direita ultraconservadora (e neofas-
cista) faz um discurso para atrair esse trabalhador homem, branco,
“cis”, cristão. A esquerda, tomada pela “lógica identitarista” pós-
-moderna, expulsa o trabalhador homem, branco, “cis”, cristão (des-
pojando-o de sua condição de classe subalterna), enquanto a direita
ultraconservadora o atrai e o recebe de braços abertos. Dessa forma,
se a direita tradicional (neoliberal) não representa a classe trabalha-
dora, mas a elite brasileira, e eleitoralmente não tem viabilidade, o
bolsonarismo, ao contrário, representa a parcela do povo trabalhador
que não pertence às “identidades” subalternas: assim, essa parcela se
sente atraída pelo discurso bolsonarista, encontrando lá seu espaço e
migrando para o campo do ultraconservadorismo (e até do fascismo,
do racismo, da homofobia etc.), chegando a desenvolver um repúdio
quixotesco pela esquerda, exacerbando assim a polarização fanatiza-

255
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

da da sociedade. A esquerda identitarista trata individualmente esses


trabalhadores (independentemente de sua condição socioeconômica
e até de seu posicionamento ideopolítico) como privilegiados, opres-
sores e, enfim, “inimigos”, enquanto a direita neofascista (do bolso-
narismo ou do trumpismo) reforça seu discurso de ódio, pregando o
supremacismo branco e o racismo, a misoginia, a homofobia, o na-
cionalismo e o “patriotismo” etc. A polarização se completa: não en-
tre burgueses e trabalhadores, sequer entre ricos e pobres, mas entre
homens e mulheres, brancos e negros, cristãos e não cristãos, “cis” e
LGBTs, enfim, entre uma esquerda e uma ultradireita identitaristas.
Esses trabalhadores, muitos dos quais haviam votado no PT, assumir-
-se-ão agora não só antipetistas, mas anticomunistas também, fazen-
do a satanização da esquerda assumir níveis de fanatismo.
Mais ainda, ao fragmentar os setores progressistas e enfrentá-los
internamente, as possibilidades de a esquerda se contrapor ao projeto
representado pelo bolsonarismo são fortemente reduzidas a expres-
sões e manifestações de grupos identitários, com pouquíssimo impacto
político. Essa lógica, que ao que tudo indica é hegemônica nas esquer-
das hoje, levou, por exemplo, a uma dinâmica de crítica e oposição à
“reforma da previdência” em 2019, a partir do impacto para “identida-
des” (o impacto para o aposentado, para a mulher, para o trabalhador
jovem etc.), dificultando a visão universal de que ela é prejudicial para
o conjunto da classe trabalhadora, fragilizando assim a articulação para
resistir a essa reforma.
Assim, o recrudescimento da direita ultraconservadora, em boa
medida resultado da mesma “lógica polarizadora”, encontra a classe
trabalhadora fragilizada, multifragmentada, autodigladiando-se, sem
qualquer unidade para enfrentar o avanço ultraconservador.
É essa esquerda – orientada hegemonicamente pela “lógica identita-
rista” (polarizando e pessoalizando a luta, e secundarizando ou elimi-
nando a contradição de classe) e pela ação tática “punitivista” e “inclu-
sivista” (também secundarizando ou deixando de lado a luta contra a
estrutura econômica e política e contra os sistemas culturais e ideológi-
cos) – que se defronta hoje com o crescimento e o avanço do ultracon-
servadorismo.

256
CAPITULO 5

Conforme Malik, a “louvação pós-moderna da indeterminação é


reforçada pela hostilidade à teoria universalizante, ou a ideias de tota-
lidade” (in WOOD e FOSTER, 1999, p. 129), porém, afirma ele, para que
as questões de “identidades / diferenças” sejam respeitas e valorizadas,
elas devem ter “alguns princípios universalistas, totalizantes, de igual-
dade ou justiça social”, por exemplo (ibidem, p. 132).
O que temos, a partir dessa breve reflexão, é a evidência da necessi-
dade de uma crítica e superação da “lógica identitarista” pós-moderna,
a partir de uma visão de totalidade e universalidade, para entender o
momento atual e organizar as lutas contra o avanço ultraconservador,
contra as diversas formas de opressão, dentro do horizonte da luta an-
ticapitalista. É o que discutiremos no item a seguir e nos dois capítulos
finais deste livro.

5.3- Os principais tipos de crítica ao identitarismo

Para uma crítica ao “identitarismo” (e não à “identidade”), deve-


mos apresentar sucintamente as diversas críticas esgrimidas desde va-
riados campos filosóficos, ideológicos e políticos.
Como aponta Haider, há críticas tanto da “direita” como da “esquer-
da economicista” (ver HAIDER, 2019, p. 46), dentre outras. Vejamos al-
gumas das principais críticas desses campos diversos, para finalmente
apresentar os fundamentos de uma crítica radical, sustentada a partir
do “marxismo histórico-dialético”.

A) A crítica da ultradireita ao identitarismo


Primeiramente, há uma crítica (na verdade, uma veemente rejei-
ção) ao “identitarismo” oriunda da direita ultraconservadora, pro-
veniente em parte dos grupos e setores dominantes, supremacistas,
opressores, e em parte de grupos sociais, mesmo que de estratos so-
cioeconômicos baixos ou de setores subalternos, que se filia a funda-
mentalismos religiosos e/ou tendências de ideologia ultraconserva-
dora e da extrema-direita.
Conforme Haider, as críticas da “direita” são oriundas de “homens
brancos”, “desinteressados pela experiência dos outros”, as ditas “mi-

257
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

norias”, os setores subalternos que reivindicam direitos igualitários


(ibidem, p. 46).
Na verdade, a direita ultraconservadora não faz uma crítica ao
identitarismo ou à “lógica identitarista”, pois ela se funda na exaltação
da diferença (ver item 6.1-A).
Nem poderia, pois a extrema direita tem, ela mesma, sua própria
base identitária – o ultranacionalismo, o “supremacismo branco”, o fun-
damentalismo religioso, o “antimarxismo”, a defesa da “família tradi-
cional” e das “tradições etc. –, a qual está também inserida numa lógica
polarizadora e de aniquilação e/ou submissão do diferente, considerado
o “inimigo”, a ameaça.
Ao tratar da crítica, ou melhor, da rejeição e do combate da direita
ultraconservadora, devemos ter clareza, portanto, que ela não nega ou
ataca a noção de “identidade” em si, nem a polarizadora “lógica iden-
titarista”, pois essas duas aglutinam indivíduos que se identificam em
ambos os lados da polarização identitarista. Isto é, se as causas e pau-
tas feministas convocam as mulheres de um lado, do outro estão os ho-
mens identificados com o machismo e o patriarcalismo; se de um lado
as causas antirracistas convocam a população negra, do outro estão os
“supremacistas” brancos; se de um lado a luta pela liberdade de orien-
tação sexual e igualdade de direitos identifica os grupos LGBT, do outro
estão reunidos os moralistas, os homofóbicos etc. A “identidade” tem,
por definição, ao menos dois lados, sem os quais ela não teria sentido.
Portanto, em função do exposto, o que a direita faz, na verdade, é
rejeitar e combater não a “identidade” em si ou a “lógica identitarista”,
mas a “identidade dos subalternos”, as causas progressistas, as “pautas
identitárias” da esquerda, principalmente aquelas mais distantes das
“pautas conservadoras”, que questionam os privilégios dos grupos
dominantes: assim, as identidades e as pautas feministas, LGBT, antir-
racistas, que pregam a descriminalização do aborto e do consumo de
maconha, que defendem os direitos humanos etc.
Temos, portanto, à esquerda (pós-moderna) e à direita (ultracon-
servadora) a mesma polarizadora “lógica identitarista”, antagonizan-
do com absoluta intolerância os diferentes e os colocando como inimi-
gos, visando à aniquilação e ao extermínio do “outro“, numa polari-

258
CAPITULO 5

zação entre o “nós” e o “eles”, fundada no medo, no ódio, na sensação


de ameaça.
Enfim, essa crítica da direita se baseia na mesma lógica polariza-
dora identitarista pós-moderna. Isto é, não se trata, portanto, de uma
crítica à noção de “identidade”, pois a direita também possui “identi-
dades”; trata-se, isso sim, de uma crítica à “identidade” das minorias,
dos grupos subalternos, à organização e às pautas progressistas e an-
tiopressivas deles. Trata-se de uma rejeição à “identidade subalterna”.

B) A crítica liberal ao identitarismo


Como foi tratado anteriormente (item 1.3-B), o “liberal democrata”
Mark Lilla apresenta uma análise crítica ao que ele chama de “liberalis-
mo identitário”, no qual, conforme analisa, o Partido Democrata teria
paulatinamente ingressado a partir da era Reagan, nos anos 1980.
O autor compara o discurso e a pauta do “movimento das mino-
rias da década de 1960 com o atual”, afirmando que o primeiro “dizia
‘somos todos iguais e queremos ser tratados com igualdade’. Já essa
segunda política identitária se baseia na afirmação da diferença e na
exigência de respeito à singularidade” (LILLA in PINHEIRO, 2018).
Segundo ele, essa mudança no discurso e na política dos liberais
propiciou, por um lado, o abandono dos projetos universais, em tor-
no da nação e do cidadão, e o ingresso no terreno do discurso e dos
projetos por “identidades”. Assim, afirma o autor, “todo progresso da
consciência identitária liberal tem sido marcado por um retrocesso da
consciência política liberal” (LILLA, 2018, p. 15). O autor sustenta que
“não pode haver política liberal sem uma consciência de coletividade –
do que nós somos como cidadãos” (ibidem, p. 18).
Por outro lado, essa guinada ideológica e programática, ainda con-
forme o autor, seria responsável pela derrota de Hillary Clinton e, por-
tanto, pelo triunfo de Donald Trump nas eleições de 2016 dos EUA.
Conforme aponta o jornalista liberal, esse seria “o motivo de os demo-
cratas estarem perdendo terreno” eleitoral (ibidem, p. 15). Segundo o
autor – e esse é o alicerce da sua crítica ao “liberalismo identitário” –,
para defender os direitos das “minorias” em uma democracia é preciso
“ganhar eleições e exercer o poder no longo prazo […]. E o único jeito

259
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

de conseguir isso é ter uma mensagem com apelo para o maior número
possível de pessoas e assim uni-las. O liberalismo identitário faz exata-
mente o oposto” (ibidem, p. 16).
Isto é, Lilla não só responsabiliza a política identitária que tomou
corpo no Partido Democrata pela derrota eleitoral contra Trump, como
diz que o “liberalismo identitário” é o responsável pelos retrocessos em
torno das causas das “minorias”.
Para o autor, como já foi apontado, “se os liberais [o Partido Demo-
crata] esperam algum dia recapturar o imaginário dos Estados Unidos
e se tornar uma força dominante […] deverão oferecer uma visão do
nosso destino baseada numa coisa que todos os americanos, de qual-
quer condição, de fato compartilhem. E essa coisa é a cidadania. Pre-
cisamos reaprender a falar aos cidadãos como cidadãos” (ibidem, p. 18),
como nação.
Assim, para esse cientista político e jornalista liberal, a superação da
“identidade” passaria pela retomada do (homogeneizador e indiferencia-
dor) conceito (abstrato) de “cidadania”, em torno do qual os discursos
e as políticas universais deveriam se reconfigurar, para o conjunto da
cidadania (ou da nação). A crítica é correta, mas parcial e limitada, pois,
na esteira do pensamento liberal, põe como algo superior às (e/ou aglu-
tinador das) “identidades” uma abstrata noção de cidadania e de nação.
Ora, a cidadania e a nação certamente remetem ao tratamento
igualitário de pessoas e cidadãos, porém ela esconde as diferenças in-
ternas, e portanto essa igualdade é meramente formal; e ainda mais,
em idêntico sentido, a cidadania esconde as desigualdades de classe,
diluídas na mesma rubrica e condição formal.
Ainda, se o identitarismo penetrou o pensamento liberal, isso em
boa medida se deve à enorme funcionalidade da racionalidade pós-
-moderna como liberalismo, que permeia toda a razão burguesa.

C) A crítica do marxismo “economicista” e “estruturalista” ao


identitarismo
Já no campo progressista, encontramos a crítica à noção e às lutas
identitárias a partir das tendências economicistas da esquerda, em geral,
e do marxismo, em particular.

260
CAPITULO 5

Segundo Haider, as críticas da “esquerda economicista”61 ao identi-


tarismo acabam descartando ou secundarizando “qualquer demanda
política que não esteja alinhada com o que é considerado um programa
puramente ‘econômico’” (2019, p. 46).
Essa crítica, particularmente do “marxismo economicista”, e de
alguma forma “estruturalista”, conforme aponta o autor, sustenta-se
na “recusa apriorística da identidade” (ibidem, p. 15), descartando sua
existência ou compreendendo-a como uma questão secundária e sem
importância política. Haider afirma que essa crítica é marcada pela “in-
capacidade de se conectar com o cotidiano de sofrimento, humilhação
e privação” (ibidem, p. 16), apenas reconhecendo a exploração do tra-
balhador e desconsiderando, ou retirando, a importância de qualquer
outra forma de opressão, discriminação ou desigualdade.
É verdade que desde os últimos anos de vida de Marx, no contex-
to da Primeira Internacional, tem surgido tendências “marxistas” que
desvirtuam seus fundamentos, enveredando para o economicismo, isto
é, para a absolutização da dimensão econômica sobre as demais. Ain-
da mais no período compreendido pela Segunda Internacional: Paul
Lafargue, por exemplo, no livro O determinismo econômico de Karl Marx
(publicado em 1909), atribuía equivocadamente a Marx uma visão eco-
nomicista, perdendo a dimensão dialética na concepção da história (ver
KONDER, 1999, p. 150); ou Karl Kautsky, que tendia a assimilar a rea-
lidade social aos fenômenos biológicos, reduzindo a teoria marxiana
a uma espécie de “darwinismo social” (ibidem.); ou até Eduard Berns-
tein, que promoveu “um abandono da dialética, da herança hegeliana
do marxismo, e um retorno a Kant” (KONDER, 2003, p. 63). Mas as
principais deformações dos fundamentos da obra marxiana situam-se
no cenário da Terceira Internacional, a partir da “autocracia stalinis-
ta” e da (de)formação do “marxismo-leninismo” como uma doutrina
para orientar a ação política. Assim, para Lukács, segundo ele atesta

61 Haider a denomina como “tradicional” ou “classista”. Discordamos dessa caracterização,


pois ela confunde ou identifica o “marxismo economicista” com o “tradicional” ou “classista”.
Ora, estes últimos, que podemos identificar na obra de Marx e Engels e no “marxismo ortodoxo”
– que conforme Lukács está na fidelidade com o método de Marx (LUKÁCS, 1974, p. 15) –,
são claramente opostos ao “economicismo”, como veremos a seguir. Por esse motivo, tratamos
esta corrente do marxismo como “economicista”, e não “classista ou tradicional”.

261
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

na “Carta sobre o Stalinismo” (redigida em 1962), além de “um culto


à personalidade”, sob o stalinismo “as necessidades táticas imediatas
subordinaram a elaboração teórica e paralisaram o pensamento mar-
xista, submetendo-o a exigências rasteiramente pragmáticas e oportu-
nistas” (apud NETTO, 1983, p. 72-73; ver também LUKÁCS, 2008, p. 134
e LUKÁCS in PINASSI e LESSA, orgs., 2002, p. 126), influenciando boa
parte da ação política e da produção teórica afinada a essa “doutrina”,
incidindo até, como ainda observa Lukács na “Contribuição ao debate
entre a China e a União Soviética” (1963), no “maoismo”, tido como
“uma derivação sectária neostalinista” (NETTO, 1983, p. 73).
É por esse tipo de questões ditas / feitas em nome do “marxismo”
que Engels, em carta a J. Bloch (1890), tratando desse economicismo
excessivo, afirma que “não pode eximir desta crítica a muitos dos mais
recentes ‘marxistas’, pois também deste lado tem surgido os lixos mais as-
sombrosos” (in MARX e ENGELS, 1987, p. 381), enquanto Marx, de for-
ma ainda mais contundente, comentara com o genro, Paul Lafargue
(expoente do economicismo marxista): “Ce qu’il y a de certain c’est que
moi, je ne suis pas Marxiste” [O que eu tenho certeza é que eu não sou
Marxista].62
Ora, para Marx e Engels, bem como para o “marxismo histórico-
-dialético” – ou “ortodoxo”, conforme caracterização de Lukács a par-
tir da fidelidade com o método de Marx (LUKÁCS, 1974, p. 15) –, as
relações de produção e toda a base econômica determinam o Estado,
a superestrutura jurídica e política, e o conjunto das relações sociais,
mas numa determinação “em última instância” (sobre essa questão ver
COHEN, 2013, p. 173 e ss.). Conforme Engels afirma: “Segundo a con-
cepção materialista da história, o fator que em última instância deter-
mina a história é a produção e a reprodução da vida real. Nem Marx
nem eu temos afirmado nunca mais do que isto. Se alguém o distorce
dizendo que o fator econômico é o único determinante, ele transfor-
mará aquela tese em uma frase vazia, abstrata e absurda” (in MARX e
ENGELS, 1975a, p. 520).
62 Tal como registra Engels em cartas a Bernstein (em 3 de novembro de 1882) e a Schmidt
(em 5 de agosto de 1890). Ver em: <http://www.marxists.org/archive/marx/works/1882/
letters/82_11_02.htm> e <https://www.marxists.org/archive/marx/works/1890/letters/90_08_05.
htm>, acessos em: jun. de 2020.

262
CAPITULO 5

Dessa forma, concordando com Bosco, devemos “problematizar a


hipótese de que a desigualdade econômica é a fonte exclusiva dos pre-
conceitos sociais e consequentes assimetrias de reconhecimento, e que,
abolida aquela, desapareceriam também esses” (2017, p. 83).
Não se trata de primeiro transformar a base econômica, cons-
truindo um socialismo apenas nas relações de produção, e só depois
pensar na eliminação das formas de opressão. Também não se trata
de imaginar que esse “socialismo econômico” eliminaria automati-
camente essas formas de opressão, como constitui a hipótese central
da esquerda e do marxismo economicistas, usando isso como motivo
para ignorar ou secundarizar a “identidade” e as lutas identitárias e
antiopressivas.

D) Para uma crítica ao identitarismo fundada no “marxismo


histórico-dialético” (ou ortodoxo)
Nossa análise crítica ao “identitarismo” (não à “identidade”, como
viemos afirmando), distancia-se nos seus fundamentos e projetos das
críticas expostas anteriormente. Ela se funda, ao contrário, no “marxis-
mo ortodoxo”, isto é, no materialismo histórico e dialético.
Conforme Lukács, em notória distinção dos reducionismos econo-
micistas ou politicistas, o “marxismo dialético” ou
marxismo ortodoxo não significa, pois, uma adesão sem críti-
ca aos resultados da pesquisa de Marx, não significa uma “fé”
numa ou noutra tese, nem a exegese de um livro “sagrado”. A
ortodoxia em matéria de marxismo refere-se, pelo contrário, e
exclusivamente, ao método. Implica a convicção científica de que,
com o marxismo dialético, se encontrou o método de investiga-
ção justo (LUKÁCS, 1974, p. 15).

Não faremos, portanto, nesta nossa análise crítica ao identitarismo


e à “lógica identitarista”, qualquer concessão à crítica da direita, nem à
crítica liberal, sequer à crítica da “esquerda economicista”.
Nos casos anteriores, a “crítica” constitui antes uma forma de rejei-
ção ou negação da “identidade” ou a secundarização dela, do que efeti-
vamente uma análise crítica.

263
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Visamos aqui apresentar uma crítica radical, tal como caracteriza-


da por Marx. Para ele, a crítica radical visa alcançar a raiz dos fenômenos,
superando a aparência, a manifestação, e atingindo a essência e os fun-
damentos dos fenômenos, compreendendo suas causas e não apenas
suas consequências. Como afirma Marx: “Ser radical é tomar as coisas pela
raiz” (MARX, 2005, p. 152).
A crítica que faremos aqui, portanto, não consiste em negar ou re-
jeitar as diversas formas de opressão, discriminação ou desigualdade
social. Ela também não afirma que essas questões sejam secundárias ou
menos importantes do que a questão de classe. Nossa análise crítica,
finalmente, não se orienta para a secundarização das lutas antiopressi-
vas, particulares ou “identitárias”, deixando-as em segundo plano ou
para “depois” da grande transformação social.
Nossa crítica parte do reconhecimento e da importância dessas
questões, e da necessidade e urgência dessas lutas para a emancipa-
ção humana. Nossa crítica se direciona à apropriação e à compreensão
que a racionalidade pós-moderna faz dessas questões, transmutadas
em “identitarismo”, fundando uma “lógica” polarizadora de enfrenta-
mentos pessoais.
Ora, os conceitos e as categorias teóricas não têm uma determi-
nação meramente objetiva, eles são capturados pela razão e, portanto,
apresentam um importante espaço para a subjetividade dos indiví-
duos. Subjetividade atribuída a partir dos valores, dos interesses, da
ideologia, do lugar que ele ocupa no mundo, das visões de mundo ou
das perspectivas teórico-metodológicas dele etc. Isto é, cada categoria
da realidade, ou cada conceito teórico, será incorporada subjetivamen-
te pelos indivíduos a partir dessas questões. Portanto, cada categoria e
cada conceito terá um significado e uma forma de compreensão para
cada sujeito. Assim, a categoria “classe social” de Marx tem uma com-
preensão notoriamente divergente daquela de Weber; o “trabalho” em
Lukács é, na sua dimensão ontológica, totalmente diferente do conceito
habermasiano de trabalho; a compreensão do alcance e do significado
da categoria “liberdade” no pensamento marx-lukacsiano e na tradição
liberal são distintas; a “democracia” é compreendida de forma diferente
na tradição marxista e na tradição liberal etc.

264
CAPITULO 5

Isto é, toda categoria e todo conceito tem um significado e uma


compreensão a partir da apreensão subjetiva de cada indivíduo, em
função dos valores, das perspectivas, dos interesses dele etc.
Os conceitos de “identidade”, de “causa identitária” e de “luta
identitária” não poderiam fugir dessa regra. Eles são diferentemente
compreendidos e apropriados intelectualmente, como vimos, a partir
da análise liberal, pós-moderna ou marxista (ortodoxa).
Isto posto, cabe afirmar que não se trata, aqui, de uma crítica à
categoria de “identidade”, mas de uma crítica à sua apropriação
pelo pensamento pós-moderno como “identitarismo”, em função
do que chamamos de “lógica identitarista”, uma “lógica” que põe a
“identidade” no plano da oposição e do antagonismo pessoal com o
diferente, pelo menos aquele que se encontra no polo oposto: homem
e mulher, negro e branco, heterossexual e LGBT, nacional e imigrante
etc. Lógica estaem que a “luta” se transforma em “pauta”, em que a
“ação política” é levada ao plano do indivíduo, e em que o horizonte
político é a inclusão dos grupos identitários, não mais a luta contra o
sistema, contra a estrutura, em prol da superação da ordem social.
Já mostramos as semelhanças, nessa questão, da ultradireita e da
esquerda pós-moderna, em torno da polarização operada por uma “ló-
gica identitarista”, a qual, alicerçada no incentivo ao medo e/ou ao ódio,
faz com que se assuma como “inimigos” os indivíduos diferentes ou
não pertencentes à “identidade” em questão, tendo como objetivo ime-
diato a destruição pessoal, individual ou grupal do “outro” (item 2.6).
Mostramos também como o objetivo punitivista, seja para punir o dife-
rente, seja para punir o infrator, aparece igualmente na ultradireita e na
esquerda pós-moderna (item 4.1). Mostramos ainda como a pós-verdade
tem se tornado uma ferramenta central para fazer política, tanto na ul-
tradireita – no neofascimo, no fundamentalismo religioso –, quanto na
esquerda pós-moderna, como forma de aglutinar os indivíduos em tor-
no de uma narrativa considerada “verdadeira”, sempre visando à po-
larização mediante o apelo emocional e moral de uns indivíduos sobre
outros (item 3.2). Mostramos também como o chamado “lugar de fala”
da esquerda pós-moderna guarda muitas semelhanças com o uso que
a ultradireita – o fanatismo e o fundamentalismo religioso, o fascismo e

265
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

os grupos da direita “moralista” que constroem uma visão moral sobre


os fatos e a realidade – faz do seu “lugar”, da sua posição, da sua con-
dição, da sua crença, do seu líder, da sua moral, como forma de gerar
adesão incondicional a discursos ou “narrativas” próprios, repelindo
sumariamente aqueles de outra origem, em função do “lugar” de onde
partem e não da verdade dos fatos (item 3.1).
Ora, quando a esquerda (ou setores dela) apresenta métodos, fun-
damentos, lógicas, metas ou objetivos semelhantes aos da ultradireita,
quando a intimidação e aniquilação (física ou social) do “outro” se tor-
nam os principais métodos e objetivos da luta de uma esquerda pós-
-moderna, ao igual que o som paraa extrema-direita fundamentalista,
então alguma coisa está errada.
Essa lógica polarizadora que, como já vimos, fragmenta o campo
progressista e o enfrenta internamente, fragilizando sua capacidade de
luta por uma sociedade emancipada, quando compartilha os métodos
e as metas com a direita ultraconservadora, fragiliza ainda mais a es-
querda como campo alternativo, distinto, diferente da direita, em face
do avanço ultraconservador sobre a realidade contemporânea, como é
o caso emblemático, e dramático, do Brasil atual.

266
SEGUNDA PARTE

A ANÁLISE
MARXISTA E A
NECESSÁRIA
ARTICULAÇÃO
DAS LUTAS
DE CLASSES E
ANTIOPRESSIVAS

267
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

268
capítulo 6

CONTRADIÇÃO (DE CLASSE) E


DESIGUALDADE (IDENTITÁRIA) NA
ANÁLISE MARXISTA

T emos afirmado recorrentemente que esta reflexão crítica não


pretende rejeitar ou secundarizar a categoria da “identidade” ou das
chamadas lutas identitárias (antiopressivas), nem ignorar o valor dessa
categoria para a análise da complexidade e diversidade de processos
e relações sociais ou a importância dessas lutas para o projeto de uma
sociedade real e plenamente emancipada.
É nesse sentido que se torna fundamental, nesse momento, distin-
guir as categorias de “identidade” e de classe – sem no entanto colocá-las
como alternativas mutuamente excludentes –, assim como diferenciar
os significados de desigualdade e contradição. Em seguida, trataremos
das “identidades” concretas e suas relações de opressão, discriminação
e desigualdade, como processos historicamente determinados e mani-
festações da “questão social”. Finalmente, nos debruçaremos sobre as
relações de exploração, opressão e desigualdade.

269
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

6.1- Duas dialéticas diferentes: “identidade / diferença” e “igualdade


/ desigualdade”

Apesar de serem geralmente tratadas como equivalentes, “igual-


dade” e “identidade” não são sinônimos, pois representam dialéticas
diferentes.
Aqui, há duas dialéticas geralmente confundidas. Por um lado, a
dialética igualdade / desigualdade (social), e, por outro, a dialética iden-
tidade / diferença (individual / grupal). Vejamos bem.
O antônimo da “diferença” não é a “igualdade”, mas a “indiferença” (a
inexistência de diferença), ou seja, a “identidade”. Temos assim a dialética:
identidade x diferença, que remete às esferas individual ou grupal.
Sendo assim, se a “igualdade” não tem como antônimo a “diferen-
ça”, sua antítese é a “desigualdade”. Aqui temos a dialética: igualdade x
desigualdade, que diz respeito à dimensão social.
Dessa forma, por um lado, a “identidade” entre os membros de um
grupo tem como correlato a diferença com os não membros. Nessa dialé-
tica, que se expressa na dimensão individual ou grupal, os contrários
(o “nós” e os “outros”) coexistem; isto é, não existe a noção de “iden-
tidade” sem o contraste com o diferente: a “identidade” e a diferença
existem necessária e simultaneamente.
Por outro lado, igualdade e desigualdade dizem respeito a um siste-
ma social, à dimensão estrutural da sociedade, na qual os antônimos
não são complementários ou correlatos, e sim excludentes, e podem
conformar, mesmo que em termos relativos, um sistema socialmente
igualitário ou estruturalmente desigual.
Assim, contrariamente ao equívoco apontado inicialmente, a “igual-
dade” – que remete à dimensão social – supõe a “diferença” – que remete
ao plano individual ou grupal. Isto é, uma sociedade igualitária pressupõe
a coexistência, em igualdade de condições, de indivíduos diferentes.
Em sentido inverso, a “identidade” no interior de um grupo exclui
o (ou se opõe ao) “diferente”.
A confusão entre “igualdade” e “identidade” é tão elementar
quanto comum. Portanto, ela será questionada com um exemplo ele-
mentar e comum: o documento de registro oficial de uma pessoa física

270
CAPITULO 6

é a “identidade”, ou “carteira de identidade” (através da qual nos apresen-


tamos como pessoa única, diferenciada de todas as demais), e não a
“igualdade” (que expressa a comunhão de direitos, condições e acessos).
No nosso cotidiano, portanto, mesmo que imperceptivelmente, temos
a compreensão do que representa uma identidade, como aquilo que nos
diferencia dos outros, e a igualdade sendo aquilo que nos unifica.
Assim, tratam-se de duas dialéticas de ordens diferentes: por um
lado, a identidade pressupõe a diferença – nesse par dialético um só
existe porque o outro existe –, por outro lado, e contrariamente, a igual-
dade pressupõe a supressão da desigualdade – nesse par dialético um
só existe quando o outro é eliminado.
Conforme Marx e Engels descrevem em A sagrada família, a “igual-
dade”, então bandeira dos revolucionários franceses, expressa a “cons-
ciência” e o “comportamento do homem em relação ao outro homem
como seu igual”, assim, a égalité
é a expressão francesa para a unidade essencial humana, para a
consciência de espécie e para o comportamento de espécie pró-
prio do homem, para a identidade prática do homem com o ho-
mem, quer dizer, para a relação social ou humana do homem
com o homem (MARX e ENGELS, 2003, p. 51).

A partir da clara compreensão dessas duas dialéticas, podemos ti-


rar algumas conclusões importantes para nossa discussão.

A) Há que diferenciar o “igualitarismo” do “identitarismo”


No plano dos projetos societários, ou dos sistemas sociais, de-
vemos distinguir os projetos e as lutas por uma sociedade igualitária
daqueles orientados para uma sociedade indiferenciada, isto é, há que
diferenciar o “igualitarismo” do “identitarismo”. Como mencionamos, a
igualdade remete ao plano do sistema ou da estrutura social, e o pro-
jeto de construção da igualdade constitui um projeto “igualitarista”.
Contrariamente, como também viemos afirmando, a “identidade” re-
mete ao plano individual ou grupal, porém o “identitarismo”, como
projeto social, representa a apropriação pós-moderna da “identidade”
(e da “diferença”), a partir da multipolarização social. Isto é, o identita-

271
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

rismo, como projeto social, funda-se ora na anulação do diferente, ora


na primazia da diferença.
Em sentido semelhante, Celso Frederico, em artigo crítico às “po-
líticas identitárias”, aponta para a “oposição entre o universalismo e o
culto às diferenças”, distinguindo “de um lado, os defensores do secula-
rismo, do racionalismo, dos direitos universais do homem e de seu co-
rolário político (a democracia) e filosófico (o pensamento totalizador)”,
e “de outro, os críticos modernos do universalismo [que] apelarão para
a particularidade, a diversidade, o direito à diferença, o pluralismo, a
tolerância e seu corolário político (o liberalismo) e filosófico (o nomina-
lismo)” (2020; ver item 7.2-B).
Já segundo o cientista político liberal Norberto Bobbio, o igua-
litarismo, que ele opõe ao liberalismo, é caracterizado pelo “acento
colocado no homem como ser genérico […] e, por conseguinte, nas
características comuns a todos […] e não tanto nas características in-
dividuais pelas quais um homem se distingue de outro (que é, ao
contrário, o que caracteriza as doutrinas liberais)” (1996, p. 37). Para
esse importante pensador italiano, “conforme o acento seja colocado
nas desigualdades econômicas ou nas políticas […] as doutrinas igua-
litárias se distinguem em socialistas (ou comunistas) [de base marxis-
ta] e anarquistas” (ibidem). Para Bobbio, “enquanto a liberdade [que
se centra no direito à diferença] é em geral um valor para o homem
como indivíduo […], a igualdade é um valor para o homem como ser
genérico” (ibidem, p. 13). Dessa forma, ele afirma, se “é possível exis-
tir uma sociedade na qual só um é livre (o déspota), [no entanto] não
teria sentido afirmar que existe uma sociedade na qual só um é igual”
(ibidem). A instigante reflexão de Bobbio, no entanto, apresenta um
problema de fundo: opõe, como valores antitéticos, a igualdade (en-
quanto fundamento do igualitarismo) à diferença individual (enquan-
to fundamento do liberalismo); oposição incorreta, por se tratarem de
duas dialéticas diferentes.
Um projeto social “igualitarista”, portanto, pressupõe a igualdade
social entre os diferentes. Um projeto “identitarista” exige ora a elimina-
ção do diferente, do “outro”, ora a exaltação da diferença, não fundada
na igualdade entre eles. No projeto em que se exalta a diferença (entre

272
CAPITULO 6

grupos), a igualdade (social) é considerada uma forma de ofuscar a


diferença. Assim, paradoxalmente, o “identitarismo” (no interior dos
grupos) é a exaltação da diferença (entre indivíduos e grupos).
O projeto social “igualitarista” exige a igualdade tanto econômica
quanto política, sem exploração, sem opressão e sem desigualdade, em
uma sociedade, porém, culturalmente diversa. O modelo “identitaris-
ta” centra-se na diversidade cultural, no multiculturalismo, sem se fo-
car na questão da igualdade econômica.
Dessa forma, a luta pela “igualdade” (social) é, paradoxalmente,
contrária à luta pela “identidade” (individual ou grupal).
O igualitarismo, a política igualitarista ou as lutas igualitaristas (pela
igualdade social), que visam enfrentar e superar a desigualdade econô-
mica, política e social, pressupõem a diferença (sujeitos individualmente
diferentes); assim, o igualitarismo contempla a presença de “identida-
des” diversas no mesmo projeto societário. Porém ele pressupõem que
a “identidade” não seja definida a partir de uma relação de opressão,
de discriminação ou de desigualdade, mas a partir de “identidades”
enquanto expressões de diferenças pessoais, de características indivi-
duais e grupais, eliminado o fator da desigualdade entre elas.
Já o identitarismo apresenta um caminho, no campo político da di-
reita e dos grupos dominantes, fundado na anulação ou submissão do
diferente, daquele considerado fora da norma, e outro caminho, no cam-
po da esquerda (pós-moderna), fundado na defesa do direito à diferença.
Assim, por um lado, a postulação pós-moderna contida na “lógica
identitarista” centra-se (ou se esgota) no direito à diferença (como corre-
lato da “identidade” individual ou grupal). Contrariamente, e por ou-
tro lado, a postulação marxista presente nas lutas de classes se orienta
pelo direito à igualdade (o contrário de desigualdade social). Ambas as
lutas se fundam em pressupostos, e perseguem objetivos, completa-
mente distintos, mesmo que não antagônicos. As lutas pós-modernas
se centram no binômio identidade / diferença (individual ou grupal),
enquanto as lutas orientadas pelo marxismo (dialético) se centram no
binômio igualdade / desigualdade (social).
Porém os embates pela igualdade econômica e social não se contra-
põem às lutas contra a opressão política e pela igualdade nas relações

273
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sociais. A “lógica identitarista” se contrapõe ao projeto “igualitarista”.


Lembremos como Losurdo apresenta as lutas de classes no pensamento
marxiano, como que respondendo a duas questões: a) a demandas pela
“redistribuição da riqueza” (lutas de cunho econômico, em torno da
exploração) e b) a demandas pelo “reconhecimento” (lutas de caráter
mais político, em torno das situações de opressão) (LOSURDO, 2015;
ver item 4.2).
É nesse sentido que Vladimir Safatle, seguindo a distinção marxis-
ta entre demandas e lutas pela “distribuição / redistribuição da riqueza”63
e pelo “reconhecimento” (ver item 4.2), ao propor para a esquerda a “de-
fesa radical do igualitarismo” (2018, p. 21), afirma que “a esquerda deve
ser ‘indiferente às diferenças’” e, assim, “de certa forma, a política atual da
esquerda só pode ser uma política da indiferença” (ibidem), não se cen-
trando nas diferenças / identidades (pessoais), mas nas desigualdades /
igualdades (sociais).
Para ele, “a luta contra a desigualdade social e econômica é a prin-
cipal luta política. Ela submete todas as demais” (ibidem), e o papel do
Estado, na implementação de políticas redistributivas, é central e único,
motivo pelo qual “em nome do combate à desigualdade econômica, a
esquerda não pode abrir mão do fortalecimento da capacidade de inter-
venção do Estado” (ibidem, p. 23). Porém, afirma o autor, contrariamente
a isso, o que os movimentos sociais “identitaristas” fazem é “transformar
o problema da tolerância à diversidade [ou à diferença] cultural, ou seja,
o problema do reconhecimento de identidade cultural, no problema po-
lítico fundamental” (ibidem, p. 27), desconsiderando a questão da distri-
buição e redistribuição da riqueza, isto é, deixando a desigualdade eco-
nômica em segundo plano e transferindo a responsabilidade estatal do
processo de redistribuição para a sociedade civil. Conforme o autor afir-
ma: há no identitarismo uma certa “secundarização de questões marxis-
tas tradicionais vinculadas à centralidade de processos de redistribuição
e de conflito de classe na determinação da ação política” (ibidem, p. 28).
O projeto político da esquerda (radical e emancipatória), contraria-
mente à lógica polarizadora do “identitarismo” pós-moderno, deve ser
63 Como já apontamos (item 4.2), tanto Losurdo como Safatle tratam, equivocadamente,
como “redistribuição da renda”.

274
CAPITULO 6

lutar contra as desigualdades que estão presentes nas relações opressivas


entre “identidades” opostas, superando as desigualdades e a opressão,
mas mantendo as diferenças pessoais e grupais. Isto é, o projeto político
da esquerda deve ser “igualitarista”, e não “identitarista”.
O que é preciso combater e eliminar é a relação de opressão entre
“identidades” opostas ou diferentes, e não suprimir / eliminar essas
“identidades”, nem ssumbmeter uma delas à outra.
Nesse sentido, conforme Safatle, o igualitarismo, como projeto so-
cial e como processo (ou luta), numa primeira dimensão “diz respeito à
luta contra a desigualdade econômica”, e numa segunda dimensão “se re-
fere à estrutura das demandas de reconhecimento da vida social” (2018,
p. 26-27). Ou seja, estruturalmente, e a longo prazo, ele centra-se na
superação da desigualdade econômica e de toda forma de desigualdade política
e social, mas no curto e médio prazo ele remete tanto às demandas eco-
nômicas por “distribuição / redistribuição” da riqueza, quanto à “ne-
cessidade de uma política da indiferença” (ibidem, p. 27), obviamente
não eliminando as diferenças pessoais, mas superando a noção da “di-
ferença como valor maior para a ação política” (ibidem), o que permite
superar a opressão e a desigualdade (não apenas econômica) presentes
nas relações sociais identitárias.
Isto é, o direito à igualdade (social) e o direito à diferença (interpessoal)
não são direitos contrapostos, mas complementares. Apenas quando
são apresentados como alternativos – como o “marxismo economicis-
ta” absolutiza o primeiro, e como a “lógica identitarista” pós-moderna
absolutiza o segundo –, é que um parece excluir o outro.
As lutas antiopressivas particulares pelo reconhecimento e pela
igualdade nas relações sociais (para além do econômico) constituem
demandas que, do ponto de vista dos setores subalternos, são noto-
riamente necessárias. Afinal, esses setores reivindicam sua “iden-
tidade”; e o corolário da reivindicação da própria “identidade” (do
“nós”) é a manifestação da “diferença” (em relação ao “eles”). As
demandas e as lutas pelo direito à diferença são, em essência, de-
mandas e lutas pelo reconhecimento da “identidade” e, portanto, pelo
reconhecimento da voz, dos direitos e dos interesses particulares
dos subalternos.

275
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, a demanda pelo direito à diferença ou pelo reconhecimento da


“identidade” é justa e necessária.
Justa e necessária, sim. Porém quando o projeto societário e as lutas
se centram ou se esgotam nela, como é o caso da “lógica identitarista”
pós-moderna, ela resulta política e estrategicamente errada.
Ora, justamente o grupo dominante – em geral ou de uma relação es-
pecífica de opressão – quer preservar a diferença, e sobre ela sustentar e
perpetuar a desigualdade, a discriminação, os privilégios e a opressão.
O supremacista branco, por exemplo, quer manter e explicitar a dife-
rença racial, e não superá-la. Lembremos como os nazistas marcavam
os judeus para diferenciá-los e, a partir daí, comandar o Holocausto. Os
imperadores maias deformavam os crânios da sua prole para diferen-
ciá-la dos súditos, e assim poderem reinar. O apartheid, na África do
Sul, sustentava a discriminação a partir das diferenças raciais. As rou-
pas, a linguagem, os hábitos, são símbolos que diferenciam dominan-
tes e subalternos. Pierucci e Rodrigues relatam ainda o “caso Sears”,
no final dos anos 1970, quando a justiça deu ganho de causa à empresa
Sears, demandada por diferenças salariais pelas trabalhadoras mulhe-
res. O empresa justificou a desigualdade de salários e de condições de
trabalho alegando a diferença entre os sexos (PIERUCCI, 1990, p. 18 e
ss.; 2000, p. 35 e ss.; e RODRIGUES, 2014, p. 369).
Isto é, se há alguém que quer perpetrar as diferenças, esse alguém são os
dominantes, os privilegiados, os opressores, os socialmente “superiores”!
As diferenças, para os dominantes, têm a função de dar suporte
para a desigualdade, a discriminação e a opressão dos subalternos. Os
dominantes “usam a diferença para hierarquizar e organizar a vida so-
cial” (PIERUCCI, 1990, p. 15; 2000, p. 30; também em RODRIGUES,
2014, p. 369), e a partir daí garantir o status quo, os privilégios e as rela-
ções de poder e dominação.
Dessa forma, a defesa do “direito à diferença” não contribui para a
eliminação da desigualdade, sequer para sua diminuição, mas, ao con-
trário, tende, em tese, a reforçá-la.
É o que afirma Antônio Pierucci, para quem “a bandeira da defesa
das diferenças, hoje empunhada à esquerda […] foi na origem – e per-
manece fundamentalmente – o grande signo das direitas […]. Pois,

276
CAPITULO 6

funcionando no registro da evidência, as diferenças explicam as de-


sigualdades de fato e reclamam a desigualdade (legítima) de direito
(PIERUCCI, 1990, p. 11; 2000, p. 19). Conforme sustenta,
para a direita […] o discurso que afirma as diferenças […] é o
discurso inaugural, a enunciação fundante, a evidência primeira
[…]. Os mecanismos que se seguem a esta constatação […] das
diferenças […] é que vão transformá-la numa tomada de posição
racista […] excludente e destrutiva da(s) diferença(s) seleciona-
da(s) como alvo (1990, p. 13; 2000, p. 27).

Citando a pesquisa de Pierucci na sua resenha do livro de Safatle


(2018), Carla Rodrigues sustenta que o campo conservador é “devoto da
diferença” (2014, p. 369). Contrariamente ao que pensamos, o racismo
não é a rejeição, “mas a obsessão com a diferença” (PIERUCCI, 1990, p.
12; 2000, p. 26). Trata-se, no racismo como qualquer outra forma hierar-
quização de direita, da própria defesa e exaltação dessa diferença (como
relação social), mas da repulsa e submissão do diferente (o indivíduo)
(1990, p. 13; 2000, 27). Ainda mais, a defesa da diferença é a base para a re-
jeição do diferente. Aqueles que rejeitam o diferente e visam submetê-lo ao
seu domínio são os que mais defendem e enaltecem a “diferença”.
O que a direita e os opressores rejeitam não é a constatação da di-
ferença (sob a qual justificam a desigualdade), mas o “diferente”, no
fundo rechaçando a ideia de igualdade entre diferentes. Dessa forma, a
defesa da “diferença”, em detrimento da defesa da “igualdade”, via de
regra, vem fundar o combate do “diferente”. Quem enfatiza e exalta as
diferenças tende a abandonar, ou até a condenar, a luta pela igualdade,
focando na manutenção ou na alteração dos polos da desigualdade e
da opressão.
Ainda mais, conforme Pierucci (1990, p. 13; 2000, p. 27-28), a direita
e os opressores radicalizam a diferença, e a desigualdade nela justifica-
da, ao concebê-la de forma “essencialista”, ou seja, fundada em bases
biológicas (como o racismo e o sexismo) ou culturais (como a homofobia
e a xenofobia).
Dessa forma, a “exaltação da diferença” pela direita espelha-se na de-
fesa do “direito à diferença” ou do “respeito às diferenças” pela esquerda

277
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

(pós-moderna). Num lado ou noutro do espelho, a igualdade e a dife-


rença são apresentadas como alternativas. A direita escolhe a diferença
rechaçando a igualdade; a esquerda (pós-moderna) prioriza o direito à
diferença secundarizando a luta pela igualdade (ver PIERUCCI, 1990,
p. 14-15; 2000, p. 29).
Funda-se aqui, à direita e à esquerda, um (falso) antagonismo en-
tre diferença e igualdade, em que o campo da direita moralista, conser-
vadora ou reacionária enfatiza a diferença para justificar a desigual-
dade, enquanto no campo da esquerda identitarista pós-moderna
exalta-se a “identidade” (corolário da diferença). Nesse caso, a defesa
da diferença envolve, no caso da direita, um projeto anti-igualitário, en-
quanto no caso da esquerda envolve um projeto “identitarista”. Dessa
forma, segundo Pierucci, “a focalização na diferença acaba roubando
perigosamente a cena da igualdade, posta sempre já como antítese”
(1990, p. 27; 2000, p. 47).
A esquerda, fundada na “lógica identitarista” pós-moderna, esco-
lhe o caminho da luta pela defesa do direito à diferença contida no
projeto “identitarista”, deixando em segundo plano o projeto “iguali-
tarista”. Esse é, conforme Pierucci, o “efeito perverso por excelência do
enfoque na diferença […] como bandeira de luta dos movimentos de
esquerda” (1990, p. 14; 2000, p. 28). E, continua,
daí que esta atmosfera pós-moderna que hoje muitos de nós res-
piramos nos ambientes de esquerda, essa onda de celebração neo-
barroca das diferenças, de apego às singularidades culturais, de
apologia da irredutibilidade das particularidades e especificida-
des culturais, sociais e ambientais, tudo isso assusta muito pouco
as cabeças de direita […].Trata-se de um discurso absolutamente
palatável e familiar à direita popular (1990, p. 14; 2000, p. 28-29).

É dessa forma, como afirma Bosco, que “a lógica identitária [aca-


ba] servindo, aqui, para a legitimação do mais tradicional discurso dos
preconceitos. Assim, a defesa da identidade [como corolário da dife-
rença] corre o risco de realimentar a desigualdade, pois [como afirma
Rodrigues a partir de Pierucci] ‘a rejeição da diferença vem depois da
afirmação enfática da diferença’” (BOSCO, 2017, p. 84).

278
CAPITULO 6

Porém, conforme aponta a historiadora Joan Scott (apud PIERUC-


CI, 1990, p. 19; 2000, p. 36; BOSCO, 2017, p. 85 e RODRIGUES, 2014, p.
369), “é falsa a disjuntiva entre igualdade e diferença”, portanto, “não
se deve nem abandonar o direito à diferença, nem o direito à igualdade”
(BOSCO, 2017, 85). Afirma Scott que se a igualdade e a diferença acaba-
ram se “cristalizando nos termos de uma disjuntiva ‘ou…ou…’ […], na
verdade, a própria antítese (igualdade-versus-diferença) oculta a inter-
dependência dos dois termos, porque a igualdade não é a eliminação
da diferença, e a diferença não obsta a igualdade” (apud PIERUCCI,
1990, p. 19; 2000, p. 36). Para ela, é necessário “que se desconstrua a
oposição binária igualdade / diferença”, pois “uma vez desconstruída
a antítese igualdade-versus-diferença, será possível não só dizer que os
seres humanos nascem ‘iguais, mas diferentes’, como também susten-
tar que ‘a igualdade reside na diferença’” (apud PIERUCCI, 1990, p. 26;
2000, p. 46).
Assim, os grupos ou movimentos subalternos, e a esquerda (radi-
cal) em geral, mais do que reivindicar o direito à diferença, deveriam
canalizar suas energias para combater a desigualdade que se expressa
tanto nas relações de opressão como nas de exploração. Não se trata de
abandonar o direito à diferença, trata-se de eliminar sua centralidade
ou exclusividade, focando na igualdade, pois as lutas exclusivamente
identitárias, a partir da “lógica identitarista”, que demandam exclusiva
ou centralmente o direito à diferença, mesmo sendo uma demanda jus-
ta e necessária, acabam, no entanto, contribuindo para a manutenção
da desigualdade e da opressão.
O “igualitarismo” se funda numa sociedade de indivíduos diferen-
tes sob condição de igualdade social.
Já o “identitarismo” se funda no direito à “identidade”, que é o di-
reito à “diferença”. Assim, garantir o direito à “identidade” (e à “dife-
rença”) passaria por eliminar a opressão que a “minoria” sofre; porém,
na medida em que numa lógica “essencialista” (como a assumida pela
“lógica identitarista” pós-moderna) se concebe a “identidade” a partir
de uma necessária e natural relação de opressão com “diferente”, então,
paradoxalmente, para garantir o direito à “identidade” seria necessário
eliminar (ou submeter) o “diferente”. Paradoxalmente, a afirmação do

279
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

“direito à diferença” se funda, no projeto identitarista, na eliminação do


diferente, concebido como necessariamente opressor, inimigo, ameaça,
ou na submissão do diferente, perpetrando a opressão (considerada da
natureza da relação polarizada) mas no sentido contrário.
Ora, contrariamente a esse “essencialismo identitarista”, por um
lado, a luta do movimento feminista foi historicamente travada justa-
mente em torno da superação da diferença dos papéis sociais atribuídos a
cada sexo, visando à igualdade de gênero. Por outro, boa parte do movi-
mento antirracista tem lutado pela superação das diferenças raciais, ou até
pela superação do próprio conceito de “raças”.
Claro que os grupos ou coletivos “identitários” podem ter neces-
sidades específicas, seja pelas suas próprias condições – como o período
de amamentação de uma mãe –, seja justamente pela situação ou relação
de opressão, fundando uma secular desigualdade – como o trabalhador
negro numa sociedade que escravizou o negro por séculos –, exigindo
medidas especiais (direitos especiais ou políticas e ações corretivas,
compensatórias ou reparadoras), tratando desigualmente os desiguais (o
que veremos em seguida). Assim, as lutas particulares pelo direito à
diferença, reforçamos, são justas e necessárias; porém constituem lutas
parciais e de curto prazo, que a esquerda (radical e emancipatória) pre-
cisa articular numa luta estrutural e de longo prazo.
Nesse sentido, afirma Rodrigues, ao se referir às lutas feministas,
que “ao mesmo tempo que pretendia garantir a universalidade dos di-
reitos entre homens e mulheres, também lutava para que se reconhe-
cessem as diferenças, a fim de atender às ‘necessidades específicas’”
(2012, p. 369). Dessa forma, na medida em que “igualdade” e “diferen-
ça” não são expressões antitéticas, portanto alternativas, e sim comple-
mentares, a autora entende que “o direito à diferença […] não deveria
ser incompatível com o direito à igualdade” (ibidem). Ao contrário,
continua, “antes de se reivindicar a diferença, tem sido preciso que as
mulheres reivindicassem igualdade – de direitos civis, como o voto que
mobilizou as sufragistas, de direitos trabalhistas, como salários equiva-
lentes para funções iguais” (ibidem).
Não se trata, portanto, de anular as diferenças (pessoais ou cole-
tivas), mas de focar as lutas em um projeto societário baseado na

280
CAPITULO 6

igualdade (social). Não o projeto pós-moderno do “identitarismo” que


pressupõe focar na diferença, mas o projeto igualitarista que preserva as
diferenças numa condição de igualdade (suprimindo tanto a desigualdade
econômica quanto a opressão).
Uma luta pela universalidade de direitos, ou seja, pela igualdade
social, não deve excluir as lutas particulares por direitos que atendam
a certas especificidades ou visem compensar certas desigualdades de
determinados coletivos (“identitários”). No mesmo sentido, a luta por
esses direitos específicos não deve se dissociar da luta por direitos uni-
versais, pela igualdade social, pela transformação estrutural.
É nesse sentido, a partir do questionamento das políticas da di-
ferença, que Safatle afirma “a urgência da esquerda em colocar nova-
mente suas lutas sob a bandeira da igualdade radical e da universalidade,
abandonando qualquer tipo de veleidade comunitarista ou de entifica-
ção da diferença” (2018, p. 34).
Podemos dizer, então, que uma coisa é a defesa da igualdade (social)
entre diferentes – diferentes sexos, etnias, religiões, nacionalidades etc. –
e o combate à opressão e à discriminação; porém, outra muito distinta
é a eliminação / submissão do diferente, como promove a lógica (ou tática)
polarizadora e punitivista (numa infundada equiparação com a contra-
dição de classes, o que veremos no capítulo 7). Superar a desigualdade
não equivale a eliminar os diferentes (ou as diferenças). Deve-se supe-
rar a desigualdade (social) sem eliminar as diferenças (pessoais) e sem
submeter o diferente. A luta antiopressiva deve ser uma luta pela igual-
dade, não pela eliminação ou submissão do diferente – mesmo que esse
“diferente” ocupe o lugar de opressor, é preciso visar à eliminação da
relação de opressão.
As lutas e o projeto igualitarista, que visam a uma sociedade de
igualdade social entre os diferentes, combinam elementos e aspectos
específicos das lutas particulares (antiopressivas, ou até identitárias)
e um horizonte universalista. O projeto e as lutas igualitaristas por
uma sociedade emancipada não só permitem como exigem lutas es-
pecíficas, particulares, antiopressivas ou “identitárias”, que no curto
prazo tenham o objetivo de reparação e de compensação, de acesso a
bens e serviços pelos grupos subalternos. Porém, esse projeto iguali-

281
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

tarista e as lutas dele não se sustentam na “lógica identitarista” pós-


moderna, de polarização social em “identidades”, nem no processo
de pessoalização e autonomização das ações, de antagonização dos
diferentes.
A questão central é que as diferenças entre sujeitos em torno de “iden-
tidades” não devem nem podem ser suprimidas. Os diferentes sempre per-
manecerão diferentes em relação às suas preferências afetivas, sexuais,
religiosas, políticas, em relação às suas raízes e origens culturais, lin-
guísticas, regionais, em relação às suas condições de etnia e raça, de
gênero etc. As lutas identitárias não devem, e nem podem, eliminar as
diferenças entre os sujeitos. Portanto, se não podem eliminar as dife-
renças entre os sujeitos, elas não deveriam ver o diferente como natu-
ralmente inimigo, antagonista e adversário natural, pois isso exigiria
eliminá-lo, o que não tem qualquer relação com uma luta humanista e
emancipatória. O que é preciso eliminar é a opressão, a discriminação,
a desigualdade, a cultura segregacionista, não o indivíduo diferente.
Pode e deve haver igualdade entre os diferentes, entre as diversas “identi-
dades”, se eliminado o sistema de opressão, discriminação e desigual-
dade, se eliminada a cultura segregacionista.
Isto é, as diferenças naturais, culturais, pessoais, nacionais, bioló-
gicas, religiosas e os valores que existem (alguns irremediavelmente)
entre as pessoas não devem constituir pretextos e fonte para a desigual-
dade social e para relações de opressão. Trata-se de garantir o direito à di-
ferença num cenário de igualdade social. Uma sociedade emancipada,
formada por sujeitos (individualmente) diferentes e (socialmente) iguais.
Uma sociedade igualitária (sem desigualdade social) não equivale
a uma sociedade sem diferenças entre os sujeitos.
Porém, enquanto a desigualdade (econômica, política e relacional)
persistir, a diferença (quando a partir dela se produz desigualdade)
entre grupos sociais requer um tratamento diferenciado. Vejamos.

B) Há que tratar desigualmente os desiguais, mas não os diferentes


Como vimos, devemos focar as lutas emancipatórias na desigualda-
de, não na diferença. Assim, quando há desigualdade, devemos buscar
mecanismos para revertê-la ou compensá-la.

282
CAPITULO 6

Nesse sentido, conforme ensina o jurista e escritor Rui Barbosa, no


seu Oração aos moços:
A regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigual-
mente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta
desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é
que se acha a verdadeira lei da igualdade. O mais são desvarios
da inveja, do orgulho, ou da loucura. Tratar com desigualdade
a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade fla-
grante, e não igualdade real. Os apetites humanos conceberam
inverter a norma universal da criação, pretendendo, não dar a
cada um, na razão do que vale, mas atribuir o mesmo a todos,
como se todos se equivalessem (1999, p. 26).

Na formulação de Barbosa, os iguais devem ser tratados igualmen-


te, porém quando há desigualdade exige-se, em nome da igualdade
superior e geral, um tratamento específico desigual: tratar desigualmente
os desiguais. A legislação trabalhista é exemplo notório disso.
Por seu turno, em aparente tensão com Rui Barbosa, o filósofo Vla-
dimir Safatle sustenta que
uma nação ou um Estado devem ser assim absolutamente indi-
ferentes às diferenças, no sentido de aceitá-las todas e esvaziar a
afirmação da diferença de qualquer conteúdo político.
O espaço do político não deve ser marcado pela afirmação
da diferença, mas pela indiferença absoluta em relação a qual-
quer exigência identitária (SAFATLE, 2018, p. 31).

Ora, se ponderados os alcances e os limites de ambas as sentenças,


não há antagonismo nas formulações de Barbosa e de Safatle.
Por um lado, concordamos com a afirmação do renomado jurista
de tratar desigualmente os desiguais, porém, não os diferentes.
Por outro lado, concordamos também com a afirmação do filóso-
foapenas nestes dois sentidos: a) quando falamos da prioridade dada,
nos processos de organização, articulação e lutas emancipatórias, à
igualdade social (econômica e política), sobre a “identidade” individual e
grupal; b) quando falamos do ideal social a alcançar, do projeto societário,

283
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

como o de uma sociedade de igualdade social na diversidade e multi-


culturalidade de indivíduos diferentes – como afirma o autor: “Uma so-
ciedade verdadeiramente multicultural é uma sociedade radicalmente
universalista e indiferente às diferenças” (ibidem, p. 35). Porém, discor-
damos da afirmação se ela não considerar que a nossa sociedade, capi-
talista, machista, patriarcal, por ser estruturalmente desigual, obriga-
-nos a ir além do tratamento igualitário do Estado, já existente, formal
e juridicamente, nas determinações constitucionais de muitas nações,
estabelecida como “igualdade cidadã”.64 Para além dessa igualdade for-
mal e jurídica de cidadania, a real desigualdade econômica, política, racial,
de gênero, cultural e religiosa é gritante. Assim, nesse contexto, não basta
o Estado ser “indiferente às diferenças” quando essas diferenças são
a base e o suporte da desigualdade. É preciso que o Estado e a nação
tratem “desigualmente os desiguais”, porém, sem tornar essa questão
o eixo central da luta política, e sem tornar essa demanda, que deve ser
transitória e tática, numa demanda permanente, estrutural e estratégi-
ca – ou seja, sem transformar algo que deve ser um meio e um instru-
mento numa finalidade.
Isto é, tratar desigualmente os desiguais não significa, por um lado,
eliminar as diferenças, mas superar (reparando ou compensando) a de-
sigualdade realmente existente. Também não significa, por outro lado,
uma ação que oponha indivíduos uns contra os outros, eliminando o
diferente, mas que procure eliminar ou diminuir a desigualdade.
Porém, sempre distinguindo a contradição de classe (em torno da ex-
ploração) das diferenças identitárias (nas quais existem relações de opres-
são), não há melhor exemplo de tratamento desigual das partes de uma
relação do que a legislação trabalhista. Efetivamente, os direitos traba-
lhistas visam proteger o trabalhador do empregador, caracterizando
um tratamento desigual nas relações de trabalho, que são estrutural-
mente desiguais – motivo pelo qual o neoliberalismo e o empresariado
condenam tão duramente esses direitos. Mas essa desigualdade entre

64 O Aart. 5ºo da Constituição brasileira estabelece que “Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no
País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Ver em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm>; acesso em ago.
de 2020.

284
CAPITULO 6

trabalhador e patrão, entre empregado e empregador, entre a classe


trabalhadora e a burguesia, é insuprimível no âmbito da sociedade ca-
pitalista. Jamais, no atual ordenamento social, poderá haver igualdade
entre a classe burguesa e a trabalhadora, pois a condição de existência
delas se funda na exploração de uma pela outra. Não se trata de uma
diferença de gênero, de raça, de orientação sexual, de nacionalidade
ou de religião etc., cujas relações de opressão e desigualdade podem
em tese ser superadas no interior da ordem burguesa, trata-se de uma
contradição (a relação de exploração) que é estruturalmente fundante
do modo capitalista de produção. A eliminação da exploração significa
a eliminação das próprias classes sociais. Assim, os direitos trabalhistas
representam um tratamento desigual de classes estruturalmente con-
traditórias.
Cabe assim observar uma importante questão nesse processo. A
formulação significa “tratar desigualmente os desiguais”, não “tratar
desigualmente os diferentes” (por “identidades”).
Isto é, o tratamento especial, diferenciado (na legislação, nas polí-
ticas e nas ações especiais), que suspende a universalidade do direito
e da política, deve ser aplicado em função não da “diferença”, mas da
“desigualdade”.
Não é a mera “diferença” entre as pessoas (“identidades” diferentes) o
que deve justificar o tratamento desigual. Essa é a opção conservadora, a
dos grupos dominantes: justificar um tratamento desigual (no salário,
no acesso ao estudo, na tomada de decisões etc.) em função da mera
diferença (de gênero, de raça ou etnia, de religião, de nacionalidade
etc.). Ao contrário, o tratamento desigual deve ser justificado pela existên-
cia de “desigualdade”. Nesses casos, onde há desigualdade, justifica-se
superpor ao direito universal o direito específico, “identitário”, pelo
“tratamento desigual”.
Porém, como também vimos, a partir de certas diferenças (de raça,
de gênero, de orientação sexual, de cultura, de religião etc.) se fundam
relações de opressão e desigualdade. Decerto pode haver desigualdade a
partir das diferenças (entre “identidades”), quando por exemplo a “dife-
rença” entre os sujeitos se expressa numa situação ou relação de opres-
são. Nesses casos, a diferença (pessoal) traz consigo a desigualdade (social)

285
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

e, portanto, a diferença deve ser objeto de ações e políticas específicas,


tratando desigualmente os diferentes / desiguais, mediante leis, políti-
cas e ações orientadas para compensar ou diminuir as desigualdades
estruturais.
Isto é, quando (e apenas quando) as diferenças (identitárias) são o
suporte das desigualdades, nestes casos “tratar desigualmente os desi-
guais” significasimultaneamente, “tratar desigualmente os diferentes”.
A desigualdade, portanto, tem origem e é sustentada tanto na con-
tradição de classes e nas relações de exploração, quanto nas diferenças
identitárias em que há relações de opressão.
Atualmente, essa abordagem é chamada por Silvio Almeida de
“discriminação positiva”, que consiste em um “tratamento diferenciado
a grupos historicamente discriminados com o objetivo de corrigir des-
vantagens causadas pela discriminação negativa”, como é o caso, segun-
do o autor, das “políticas de ação afirmativa” (2019).
Dessa forma, conforme vimos (item 4.2), as ações ou políticas “afir-
mativas”, fundadas no princípio da “discriminação positiva”, visam
reverter ou compensar a desigualdade real, mesmo no contexto de uma
abstrata e formal igualdade jurídica, procurando a igualdade real median-
te mecanismos que garantam o acesso igualitário a estudos, saúde, em-
prego, participação política etc. Em outras palavras, é para garantir a
igualdade (constitucional) que, num contexto de desigualdade, opres-
são e discriminação reais, desenvolvem-se ações fundadas no princípio
da “discriminação positiva”, ou no tratamento desigual dos desiguais
/ diferentes.
Porém, essas “ações afirmativas”, compensatórias ou reparadoras,
certamente importantes e necessárias no curto prazo, não devem, no
entanto, substituir ou se sobrepor à luta pela igualdade, pela elimina-
ção da discriminação e da opressão estrutural. É preciso, como já afir-
mamos, ter cuidados para que a política de tratamento desigual dos de-
siguais não acabe confirmando e legitimando os mesmos fundamentos
da desigualdade que visa combater.
A partir das reflexões de Safatle (2018) sobre um “Estado indiferen-
te” em relação às diferenças, Rodrigues distingue dois tipos de situa-
ções: uma em que o Estado deve ser mais presente e ativo, e outra em

286
CAPITULO 6

que ele deve ser mais indiferente em torno das diferenças. Assim, por
um lado, no caso do casamento entre pessoas do mesmo sexo, a “in-
diferença” do Estado, não regulando e não impedindo a liberdade de
escolha, universalizando o direito ao matrimônio, independentemente
de orientação sexual, possibilitaria garantir essa demanda específica.
Por outro lado, e como questão datada em função da especificidade da
realidade, em casos de violência doméstica contra a mulher, o Estado,
por via da “Lei Maria da Penha”, deve interferir e regular um direito
não universal para atender essa questão específica (RODRIGUES, 2014,
p. 372).
Isto é, o tratamento desigual de pessoas desiguais / diferentes,
substituindo o direito (e as políticas) universal pelo direito (e pelas po-
líticas) orientado para grupos particulares, “identitários”, deve existir
quando a circunstâncias exigirem, quando a desigualdade for oriun-
da das diferenças. Trata-se, portanto, de um processo necessariamente
datado (durante a existência da desigualdade). Trata-se de uma ação
compensatória (desigual em sentido contrário), mas que tem como ho-
rizonte e fim último a igualdade social e a universalidade do direito.
Assim, por um lado, essa prática, certamente importante no enfren-
tamento a curto prazo, em relação às seculares desigualdades de raça
e de gênero, por exemplo, precisaria ser estendida para outros grupos
sociais oprimidos ou subalternos, tais como os povos originários e os
imigrantes, além da população trabalhadora de precárias condições so-
ciais etc. E, por outro lado, essa prática, importante como mecanismo
compensatório no curto prazo, não pode constituir a longo prazo uma
forma de naturalização e reprodução das desigualdades que pretende
combater.
Isto é, se é preciso tratar desigualmente os desiguais,65 como propõe
Rui Barbosa, isso deve ser feito com cuidado e sabedoria, para não

65 Registremos que, para Hayek, principal “fundador” do neoliberalismo, tratar desigualmente


os desiguais representa um privilégio, por um lado, e uma forma de inibir a liberdade, por outro.
Segundo o autor, “qualquer política consagrada a um ideal substantivo de justiça distributiva
leva à destruição do Estado de Direito”, na medida em que “para proporcionar resultados iguais
para pessoas diferentes, é necessário tratá-las de maneira diferente”, constituindo assim um
“privilégio” (HAYEK, 1990, p. 91; também em MONTAÑO, 2002, 82), complementando que “um
governo que vise a assegurar a seus cidadãos posições materiais iguais […] teria de tratá-los
muito desigualmente” (HAYEK, 1985, p. 103; também em MONTAÑO, 2002, p. 83).

287
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

reforçar o fundamento da relação estrutural de opressão e desigualda-


de. Ou seja, para não constituir um mecanismo compensatório que, no
entanto, reproduza e consolide a desigualdade estrutural que ele almeja
superar.
As desigualdades sociais têm aspectos específicos (particulares a
cada “identidade”), mas têm também uma dimensão estrutural e uni-
versal.
Na desigualdade social, na distribuição desigual de riqueza e, por
derivação, no acesso desigual ao conjunto de bens e serviços, há aspec-
tos próprios da desigualdade entre “identidades” – de gênero, de raça,
de religião, de orientação sexual etc. –, mas há também uma dimensão
universal, que reúne todos eles num mesmo lado: no lado que não acu-
mula riqueza e que portanto se vê privado do acesso a bens e serviços
produzidos socialmente. E esse caráter universal é dado pelo lugar que
cada um ocupa nas relações que, na nossa sociedade – o MPC –, são es-
tabelecidas para produzir riqueza, e que determinam a parte com que
cada um vai ficar: as relações de produção, a relação capital-trabalho
(da qual trataremos no item 6.3).
O que vamos priorizar – os aspectos específicos ou a dimensão uni-
versal, ou a combinação de ambos – é que é a questão central da política
e do direito, para não absolutizar a diferença (ou “identidade”) e nem
desprezá-la.
Assim, uma política ou um direito cujos fundamentos são univer-
sais podem sim conter, mesmo que pontual e transitoriamente, ques-
tões específicas que atendam aos grupos (ou às “identidades”) subalter-
nos e que exijam esse “tratamento desigual”.
Isto é, o “tratamento desigual para os desiguais”, quando é neces-
sário como elemento compensador ou como forma de alcançar (ou se
orientar para) a igualdade, não é incompatível com o princípio univer-
salista. Ou seja, tratar especialmente a “identidade” subalterna, quan-
do necessário, não se antagoniza a um projeto igualitarista.
Porém a “lógica identitarista”, que absolutiza a dimensão específi-
ca, isolando-a tanto das outras dimensões específicas como da dimen-
são universal, transformando os meios em fins, ela sim é incompatível
com o igualitarismo, com a luta por políticas e direitos universais.

288
CAPITULO 6

6.2- As “identidades” são historicamente determinadas, conformando


manifestações da “questão social”

Nenhum fenômeno, nenhuma opressão, desigualdade ou discri-


minação e nenhuma “identidade” são a-históricas, a não ser quando
são consideradas de forma abstrata. Todas elas, quando abordadas
como questões concretas, mesmo preexistindo ao longo de diversas ci-
vilizações, não são independentes do sistema social no qual existem e
se desenvolvem: a ordem burguesa e o modo de produção capitalista.
Contrariamente a isso, conforme o autor pós-moderno Boaventura
de Sousa Santos, “a opressão e a dominação têm muitas faces” e “nem
todas são diretamente um efeito do capitalismo global, como a discri-
minação sexual, a discriminação étnica ou a xenofóbica” (2005, p. 23).
Ora, é evidente que elas existem antes da sociedade capitalis-
ta, mas o capitalismo certamente as refuncionaliza e as determina.
É o que sustenta Almeida, quando afirma que os “conflitos raciais,
sexuais, religiosos, culturais e regionais […] podem remontar a pe-
ríodos anteriores ao capitalismo”, porém nesse sistema eles “tomam
uma forma especificamente capitalista” (2019, p. 97).
Pensar essas formas de opressão sem situá-las e determiná-las
historicamente constitui uma representação abstrata dos fenômenos.66
Para superar essa visão abstrata e lhes atribuir concretude histórica, es-
sas formas de opressão precisam ser historicamente situadas, com-
preendidas dentro e em função de um sistema social específico. Veja-
mos alguns exemplos disso.
A pobreza decerto existia bem antes do capitalismo, mas enquanto
nas sociedades pré-capitalistas ela era relacionada fundamentalmente
à escassez, no capitalismo, no entanto, a pobreza não é mais determi-

66 Marx trata a abstração como uma das particularidades mais simples da realidade (1977,
p. 218). Não porque essas particularidade não existam. Elas são reais, como a “mercadoria”,
a “população”, o “dinheiro” etc. Mas porque elas não existem isolada e independentemente
da totalidade social. Não há mercadoria, dinheiro, mais-valia, fora da realidade como um todo,
fora da sociedade que a contém e a determina. Assim, por exemplo, “a população é uma
abstração se desprezarmos […] as classes sociais de que se compõe […] se ignorarmos os
elementos em que repousam” (ibidem). Nesse sentido, considerar as identidades de gênero,
de raça, de religião etc., sem considerar a totalidade social concreta que a contém e a
determina, constitui uma abstração.

289
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

nada pela escassez, dada a abundância produtiva desse sistema, mas


pela exploração e acumulação capitalista (ver MONTAÑO, 2012).
Também a questão racial existe muito antes da sociedade burgue-
sa, constituindo o fundamento das sociedades escravistas, das relações
de escravidão e das relações de produção desse período (a raça de-
terminando quem é o escravo e quem é o proprietário de escravo). Já
na sociedade capitalista (em que, nos países da América que passaram
pela escravidão, o trabalhador negro ingressa na classe trabalhadora
assalariada portando toda a herança de opressão e preconceito do es-
cravismo), a questão racial assume um fundamento inteiramente dife-
rente, ampliando e complexificando a exploração e outras formas de
desigualdade e opressão, mas sem fundá-las (ver ALMEIDA, 2019).
A discriminação sexual, própria das sociedades patriarcais, também
é bem anterior ao capitalismo. No entanto, como é sabido a partir do
debate feminista, o “gênero” é uma construção social e, desse modo,
jamais pode ser concebido como algo a-histórico, independente do ce-
nário, do contexto, do sistema social em que ele hoje se desenvolve; na
sociedade capitalista a questão de gênero assume contornos particula-
res (ver ENGELS, 2002).
O problema ambiental também é um desafio muito anterior ao capi-
talismo – que o digam os habitantes de Rapa Nui (Ilha de Páscoa) e os
maias que povoaram as grandes cidades de Tikal, Chichén Itzá etc. Mas
na sociedade capitalista assume níveis dramáticos e claramente rela-
cionados à produção e à circulação de bens de consumo e mercadorias
voltados para o lucro e para a acumulação capitalista (ver FOLADORI,
1996; e FOSTER, 2010).
Esses fenômenos não evoluem autonomamente ao longo dos
tempos, independentemente dos contextos históricos, das relações
econômicas, dos regimes políticos, dos Estados etc. Ao contrário, é
dentro de cada cenário histórico e em função do modo de produção e
do tipo de organização econômica e política – das classes sociais fun-
damentais e das relações de produção e distribuição de riqueza – que
todas essas questões de raça, de gênero, de meio ambiente etc., são
refuncionalizadas e reconfiguradas, funcional e instrumentalmente
adequadas a cada contexto histórico.

290
CAPITULO 6

Assim, podemos afirmar que a pobreza e as atuais questões de


raça, de gênero, de meio ambiente etc., não se sustentam nos mesmos
fundamentos em que se baseavam nas sociedades pré-capitalistas. Elas
não são, portanto, uma evolução autodeterminada e independente da
estrutura social, mas uma reconstituição a partir da nova sociedade
capitalista, uma refuncionalização a partir das configurações dessa so-
ciedade (ver MONTAÑO, 2013, p. 392-397).
O mesmo acontece com as classes sociais e as relações de produ-
ção. Também as classes fundamentais na sociedade capitalista não
correspondem às, nem evoluem das, classes de sociedades pré-capita-
listas. O trabalhador assalariado não é uma evolução do trabalhador
escravo, por exemplo, mesmo que em contextos como o brasileiro um
trabalhador escravo possa ter se tornado assalariado. São classes dife-
rentes em sistemas e relações de produção diferentes, que desempe-
nham papéis e funções diferentes (ver MARX e ENGELS, 2010, p. 40 e
ss.; e DOS SANTOS, 1987).
Isto é, não é a evolução real das categorias e dos fenômenos (ou,
nesse caso, das “identidades”) ao longo dos diferentes modos de pro-
dução e organizações política (e independentemente deles) o que vai
jogar luz sobre essas categorias e esses fenômenos; ao contrário, é o
lugar que eles ocupam e a função que desempenham no modo de pro-
dução capitalista aquilo que os determina concretamente, aquilo que
nos permite compreendê-los claramente. Ou dito de outra forma: não
é a fase anterior do fenômeno, mas o lugar e a função desse fenômeno
na sociedade atual o que permite a compreensão de seus fundamen-
tos. O fundamento de cada fenômeno ou categoria, conforme Marx,
não é dado pela fase ou estágio anterior, mas pelo “lugar diferente que
estas mesmas categorias [ou fenômenos] ocupam em diferentes estágios
de sociedade” (MARX, 1977, p. 226; e 2011, p. 61).
O ponto de partida da análise das categorias ou fenômenos (ou até
das “identidades”) é, portanto, a realidade concreta, o sistema social
(geral), o modo de produção e de organização política, que contêm e
determinam todas as categorias, os processos e os fenômenos que se
desenvolvem no seu interior. Para Marx, não é a evolução autônoma
de cada categoria ou fenômeno ao longo da história, mas sua inserção

291
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

na totalidade do sistema social (concreto), o que constitui o ponto de


partida da análise histórica: a “análise concreta da situação concreta”,
conforme afirmou Lênin (1989, p. 284).
Aqui, cada categoria (fenômeno ou “identidade”), se desarticula-
da da totalidade, do sistema social, das relações com outras categorias
e determinações, enfim, se separada da história concreta, ela expressa,
conforme Marx, uma abstração. Se tomarmos, por exemplo, o “traba-
lho”, enquanto categoria simples e abstração veremos que ele existiu
em todas as sociedades e que, portanto, constitui uma categoria ou
fenômeno abstrato, sem concretude histórica.
Assim, da mesma maneira que o pensamento pós-moderno conce-
be as “identidades” de forma abstrata, sem concretude histórica, para
Marx a chamada “economia nacional” do pensamento burguês trata
o trabalho de forma abstrata, sem concretude histórica, ao longo das
épocas e ignorando as particularidades de cada modo de produção,
como se ele tivesse um desenvolvimento linear e autodeterminado.
Segundo o autor:
A produção em geral é uma abstração, mas uma abstração ra-
zoável, na medida em que efetivamente destaca e fixa o ele-
mento comum poupando-nos assim da repetição. Entretanto,
esse Universal, ou o comum isolado por comparação, é ele
próprio algo multiplamente articulado, cindido em diferen-
tes determinações. Algumas determinações pertencem a todas
as épocas; outras são comuns apenas a algumas. [Enquanto
certas] determinações serão comuns à época mais moderna e
à mais antiga. Nenhuma produção seria concebível sem elas
(MARX, 2011, p. 41).

Conforme ele afirma, tiradas as particularidades do processo de


produção de cada época histórica, de cada modo de produção,
a diferença entre o capitalista e o rentista fundiário (Grundrent-
ner) desaparece, assim como entre o agricultor e o trabalhador
em manufatura, e […], no final das contas, toda a sociedade tem
de decompor-se nas duas classes dos proprietários e dos trabalha-
dores sem propriedade (idem, 2004, p. 79).

292
CAPITULO 6

Porém, “as assim chamadas condições universais de toda produção


nada mais são do que esses momentos abstratos, com os quais nenhum
estágio histórico efetivo da produção pode ser compreendido” (idem,
2011, p. 44). Dessa forma, a visão histórica do pensamento burguês so-
bre o trabalho nada nos diz sobre os fundamentos do Modo de Produ-
ção Capitalista (MPC). E assim sendo, a exploração da mais-valia fica
oculta, não compreendida (idem, 2004, p. 82).
Contrariamente a isso, para Marx, é importante estudar a categoria
“trabalho” (e os fenômenos ligados a ele) a partir do modo de produ-
ção concreto, do sistema social que o determina e nele está inserido,
das múltiplas relações que ele estabelece com outras determinações e
categorias. É nesse sentido que o autor afirma:
Este exemplo do trabalho mostra com toda a evidência que até
as categorias mais abstratas, ainda que válidas – precisamente
por causa da sua natureza abstrata – para todas as épocas, não
são menos, sob a forma determinada desta mesma abstração, o
produto de condições históricas e só se conservam plenamente
válidas nestas condições e no quadro destas (idem, 1977, p. 223,
grifos nossos).

Como categoria abstrata, o trabalho é visto como processo ao lon-


go e independentemente de sistemas sociais específicos, do modo de
produção determinado: o trabalho, aqui, é uma abstração. Como cate-
goria concreta, o trabalho é historicamente determinado pelo modo de
produção específico. Dessa forma, se o “trabalho”, enquanto categoria
abstrata, existe em todas as sociedades, justamente por isso essa ca-
tegoria nada nos diz sobre o processo de produção, sobre as relações
de produção e as formas específicas de apropriação e distribuição da
riqueza no capitalismo. Para entender os fundamentos da sociedade
capitalista é preciso compreender o “trabalho” como uma categoria in-
serida e determinada pelo Modo de Produção Capitalista (MPC), como
uma categoria que assume assim concretude histórica. O “trabalho”,
quando visto por suas múltiplas determinações na sociedade concreta
e no MPC, enriquece-se assim de sentido histórico. O “trabalho”, de-
senvolvido e compreendido na ordem burguesa, é despojado de seu

293
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

caráter de categoria abstrata e assume concretude histórica: passa a ser


“trabalho assalariado”, “trabalho produtor de mais-valia”, “trabalho sub-
sumido ao capital”, “trabalho explorado”, “trabalho alienado”, “trabalho
fundado na mercantilização da força de trabalho” etc., e, portanto, válido
apenas para o “trabalho” no MPC; essa categoria (agora concreta e his-
tórica) assume assim força heurística para explicar os fundamentos da
ordem social burguesa.
Para o autor, são as condições que o trabalho assume no MPC o
que determina seus fundamentos atuais, e não a evolução de formas
sociais anteriores. Assim:
Um dos pressupostos do trabalho assalariado e uma das condi-
ções históricas do capital é o trabalho livre e a troca de trabalho
livre por dinheiro [salário] […]. Outro pressuposto é a separação
do trabalho livre das condições objetivas de sua efetivação – dos
meios e do material de trabalho [dos meios de produção] (idem,
2006, p. 65).

Portanto, só podemos compreender o sentido e a função do traba-


lho na atualidade se conhecermos os fundamentos do atual MPC (que o
funda e o determina); da mesma forma, compreender tais fundamentos
exige a clara caracterização do sentido do trabalho (livre, assalariado,
mercantilizado, vendido ao capital, produtor de mais-valia, explorado,
alienado etc.) que peculiariza esse modo de produção específico. Como
poderíamos compreender o trabalho se não a partir das determinações
estruturais que o fundam? Como poderíamos compreender um deter-
minado modo de produção sem caracterizar as formas concretas que
assumem o trabalho e as relações de produção e apropriação do valor?
Dito de outra forma, o caráter “assalariado”, “explorado” e “pro-
dutor de mais-valia” que o trabalho no capitalismo assume não está
contido (nem de forma embrionária) no trabalho escravo ou no feudal,
que o precedem, nem é uma consequência direta e evolução deles. O
trabalho escravo não evolui para trabalho assalariado! Eles são duas
formas diversas de trabalho e de relações de produção, constituídas
a partir de dois diferentes modos de produção, apresentando – para
além do lugar-comum de que ambos produzem valores, mercadorias

294
CAPITULO 6

– fundamentos diferentes em cada ordem social. O trabalho escravo


só pode ser compreendido plenamente no interior do modo de pro-
dução escravista, e o trabalho assalariado só pode ser compreendido
integralmente no contexto do modo de produção capitalista, nos quais
assumem todas as determinações do seu fundamento.
Por outro lado, assim como o “trabalho assalariado” (fundado na
mercantilização da força de trabalho) não devém, como uma conse-
quência necessária, do “trabalho escravo” (fundado na posse e mercan-
tilização do trabalhador), tampouco o “burguês” (enquanto classe so-
cial) é a derivação inevitável do “senhor de engenho”. É o que sustenta
Florestan Fernandes (2006). Conforme ele esclarece, é um equívoco afir-
mar que o “burguês” e a “burguesia” do Brasil tenham “surgido e flo-
rescido com a implantação e a expansão da grande lavoura exportado-
ra, como se o senhor do engenho pudesse preencher, de fato, os papéis
e as funções socioeconômicas” do capitalista na ordem burguesa (2006,
p. 32). Para o pai da sociologia crítica brasileira, “não se pode associar,
legitimamente, o senhor de engenho ao ‘burguês’ (nem a ‘aristocracia
agrária’ à ‘burguesia’)” (ibidem). Essa associação, sustenta Fernandes,
representa “uma espécie de historicismo anti-histórico […], como se a
história fosse uma cadeia singular de particularidades” (ibidem, p. 33).
Cada um tem uma função diferenciada e uma forma de apropria-
ção do valor, a partir da formação socioeconômica, do modo particular
de produção e da organização política a ele funcional. O valor apro-
priado pelo senhor de engenho, como excedente econômico, “nada ti-
nha a ver com o ‘lucro’ propriamente dito” do burguês (ibidem, p. 33).
Seus fundamentos, suas funções sociais, são essencialmente distintos.
Portanto, ele afirma, “nada justificaria assimilar o senhor do engenho
ao ‘burguês’, e é um contra-senso pretender que a história da burguesia
emerge com a colonização” (ibidem).
Um não é o resultado da evolução do outro.
Se no plano individual, um sujeito singular que fora trabalhador
escravo, com a “Lei Áurea” pode ter se tornado um trabalhador assala-
riado, ou um indivíduo que fora “senhor de engenho” pode ter virado
um industrial, contrariamente, no plano estrutural das categorias so-
ciais, a escravidão (como modo de produção) não evoluiu para o capi-

295
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

talismo, nem o trabalhador escravo (como categoria socioeconômica)


evoluiu para o assalariado!
Nesse sentido, para Marx, não são as categorias ou os fenômenos
mais simples e abstratos (porque isolados da totalidade) que explicam
o desenvolvimento histórico dessas categorias, partindo do cenário
mais antigo até chegar à sociedade moderna. Ao contrário, é na socie-
dade contemporânea que essas categorias assumem concretude, onde
elas se complexificam e expressam determinações históricas, articula-
das à totalidade social.
Assim, o que acabamos de dizer sobre o trabalho, a classe traba-
lhadora e as relações de produção, vale também para analisar as “iden-
tidades”, os grupos sociais, as formas e as relações de opressão; eles
devem ser compreendidos a partir e em função da totalidade social, do
sistema e da estrutura social que os contêm e os determinam.
Isso quer dizer que esses fenômenos, que constituem verdadeiras
manifestações da “questão social” (fundada na contradição capital-tra-
balho), ou – no caso que ora nos ocupa – essas “identidades”, mesmo
tendo suas particularidades e especificidades, não podem ser com-
preendidos, e nem serem objeto de embates e lutas políticas, à mar-
gem e independentemente dos fundamentos da sociedade capitalista
(ver RISÉRIO, 2019, p. 61). Ou seja, se, por exemplo, os gêneros e as
questões de gênero são histórica, cultural e socialmente construídos,
é essa “construção” (a totalidade social) que deve ser combatida e
superada, e não apenas os indivíduos que são meras expressões dela.
Em síntese, não é apenas o secular patriarcado que funda o ma-
chismo e a desigualdade de gênero hoje. Não é apenas a escravidão
que explica a questão racial hoje. Não é apenas a relação necessidade
/ consumo que determina a crise ambiental hoje. O que explica todas
essas questões é muito mais como a sociedade capitalista as absorve
e as refuncionaliza, determinando seus novos fundamentos, aqueles
que serão funcionais à ordem burguesa, ainda mais em contexto de
crise e de transformações neoliberais.
Almeida, ao prefaciar a edição brasileira do livro de Haider, afir-
ma que para o autor, a “armadilha” do “identitarismo” não está na
constatação das “identidades” realmente existentes, mas em tratá-las

296
CAPITULO 6

como se fossem independentes e exteriores às “determinações mate-


riais da vida social” (in HAIDER, 2019, p. 9). Assim, agora nas palavras
de Haider, a “‘identidade’ é um fenômeno real” que “corresponde ao
modo como o Estado nos divide em indivíduos, e ao modo como for-
mamos nossa individualidade em resposta a uma ampla gama de re-
lações sociais”, porém, ele continua, a “identidade” é uma verdadeira
“abstração” “que não nos diz nada sobre as relações sociais específicas
que as constituíram” (ibidem, p. 35). Assim, ao tratar do movimento dos
Panteras Negras nos EUA, o autor afirma que, para eles, “falar de racis-
mo sem falar de capitalismo é esconder o que é necessário para que o
povo tenha de fato o poder em suas mãos” (ibidem, p. 44).
Em sentido semelhante, Malik afirma que “se tratarmos a raça
[como qualquer outra ‘identidade’ particular] como sendo apenas
uma ‘identidade’ separada de quaisquer determinantes sociais, então
ela se torna não uma relação social historicamente específica, mas um
aspecto eterno da sociedade humana” (in WOOD e FOSTER, 1999, p.
125). Na verdade, ele complementa, as “diferenças raciais” são e ex-
pressam “relações sociais”, não como meras “preferências pessoais”,
mas como relações historicamente determinadas (ibidem, p. 128). Des-
sa forma, conclui, “o pós-modernismo termina efetivamente por ne-
gar por completo relações históricas determinadas – e, dessa maneira,
abandona de todo seu princípio original de que a identidade e o sujei-
to humano são socialmente construídos” (ibidem), arrancando os fatos
“de seu contexto vivo” e compreendendo-os “apenas em isolamento”
(ibidem, p. 131).
Quando a centralidade de classe é retirada da questão identitária,
o que fica é exatamente isso: uma “identidade” abstrata, existente in-
dependentemente do modo de produção capitalista, uma “identida-
de”, portanto, a-histórica, perene, natural.
A questão racial no Brasil, por exemplo, não é igual no contexto
do capitalismo e no contexto da sociedade escravista. Hoje, os fun-
damentos que refuncionalizam essa questão devem ser encontrados,
em que pese a herança cultural e ideológica da escravidão, na socie-
dade capitalista, na qual o trabalhador negro se tornou assalariado
e está submetido à exploração capitalista, mas preservando a antiga

297
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

opressão e o antigo preconceito do branco, como bem trata Florestan


Fernandes em sua análise sobre “Brancos e pretos em uma sociedade
de classes” (FERNANDES, 1976, p. 305 e ss.).
Por exemplo, a reforma trabalhista de 2017, que estendeu a ter-
ceirização do contrato de trabalho para as atividades fins, impacta
sobremaneira o trabalhador negro, assim como a trabalhadora mu-
lher. Temos aqui um exemplo de como a questão particular, a “iden-
tidade”, é atravessada e refuncionalizda, e só pode ser compreendida
em todas suas determinações a partir dos fundamentos históricos da
estrutura social em que efetivamente existe e se desenvolve: o modo
de produção capitalista e seus fundamentos e dinâmicas. Do mesmo
modo, a questão de classe é complexificada e assume concretude his-
tórica a partir da análise da sua múltipla composição identitária.
Assim, compreendemos a “identidade” e suas relações de opres-
são, discriminação e desigualdade, como manifestações da chamada
“questão social”.
Apesar de ser oriundo do pensamento conservador do século XIX,
que visava tratar o “social” como algo isolado dos fundamentos políti-
cos e econômicos,67 o conceito de “questão social” é apropriado dialeti-
camente pelo pensamento marxista para designar os fundamentos do
capitalismo, expressos na contradição central entre capital e trabalho,
no processo de produzir valor e na contradição de interesses e lutas de
classes (ver NETTO, 2001; IAMAMOTO, 2001 e SANTOS, 2012).
Dessa forma, a central “questão social” constitui o fundamento das
suas diversas formas de manifestação ou expressões: a pobreza, o de-
semprego, a fome, a violência, as relações de opressão etc. Compreen-
der esses fenômenos como manifestações ou expressões da “questão
social” significa, como viemos considerando neste item dedicado à ca-
tegoria trabalho e às relações de produção, concebê-los a partir e em
função dos fundamentos da contradição capital-trabalho, ou, o que dá
no mesmo, dos fundamentos do MPC. Isto é, todos os fenômenos e
relações sociais na sociedade capitalista são refuncionalizados, reconfi-
gurados, reconstituídos conforme o capitalismo, e portanto constituem
67 Compreensão essa que trata as “questões sociais” como fenômenos ou problemas
autônomos e diversos, a qual reaparece em pensadores contemporâneos como Robert
Castel e Pierre Rosanvallon, ao falar de uma “nova questão social”.

298
CAPITULO 6

manifestações particulares, expressões diversas e concretas dos seus


fundamentos, da contradição fundante entre capital e trabalho. Essa
contradição central com certeza não esgota a compreensão dos fenôme-
nos e relações particulares, nem as explica ou as determina plenamen-
te, mas certamente as constitui, as determina e as explica “em última
instância”, nos seus fundamentos, na sua inserção e articulação como
o universal.
Assim, como vimos, as questões de raça, de meio ambiente, de gê-
nero, de nacionalidade etc., mesmo preexistindo à sociedade capitalista,
são reconfiguradas no capitalismo. Portanto, as “identidades” são his-
toricamente determinadas e, dessa forma, manifestações da “questão
social”.

6.3- A centralidade da contradição de classe: exploração, opressão e


desigualdade no pensamento marxista

Antes de passar, no nosso último capítulo, à consideração da ar-


ticulação das lutas identitárias e antiopressivas e as lutas de classes,
torna-se fundamental tratar da centralidade da contradição de classes,
o que ela significa e o que não significa, assim como do alcance das ca-
tegorias de exploração, opressão, contradição e desigualdade.

A) Classe não é “identidade”, e exploração não é diferença


A primeira distinção a ser feita é entre classe e “identidade”, assim
como entre exploração e opressão, e entre contradição e diferença.
a) Classe não é “identidade”. Como vimos (item 2.5), o pensamen-
to pós-moderno identifica a classe como uma “identidade” específica,
e a exploração é reduzida a uma determinada forma de opressão ou de
diferença social.
Na análise crítica marxista, porém, a classe não corresponde a uma
“identidade”. Não é pelos seguintes motivos:
Primeiramente, porque o real pertencimento a uma classe social (a
“classe em si”) independe inteiramente da identificação ou percepção
que o indivíduo possa ter desse fato. O sujeito (por estar desempregado,
por se sentir integrante da dita “classe média”, por ser um “empreende-

299
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

dor” ou um trabalhador autônomo etc.) pode não se sentir pertencente


à classe trabalhadora, não se identificar com ela, não ter essa autocom-
preensão; e no entanto, para além de sua eventual autopercepção, o seu
pertencimento à classe trabalhadora é uma condição social objetiva.
Isso acontece com o camelô, com o trabalhador “uberizado” e sub-
contratado, com o chamado empreendedor, com o “autônomo”, com
indivíduo da “classe média”, com o desempregado – eles em geral não
se entendem como membros da classe trabalhadora, não têm a “iden-
tidade” ou a autopercepção de trabalhador, não têm o sentimento de
pertencimento à classe trabalhadora.
O pensamento marxista diferencia claramente a autoimagem e a
autopercepção subjetivas e o fato real. Isto é, mesmo o indivíduo não
se sentindo e não se identificando com a classe trabalhadora, a sua condi-
ção – dado que ele precisa vender sua força de trabalho (seja de forma
direta ou indireta) em troca de um salário (seja por tempo ou por peça,
ver MARX, 1980, p. 626-647), para sua sustentação – é objetivamente a
de trabalhador, pertencente à ampla e variada classe trabalhadora.
Assim, por um lado, a “identidade” remete a uma forma de cons-
ciência ou autopercepção que os indivíduos ou coletivos têm de si, em
função de alguma característica ou de algum atributo que possuem e
reconhecem conscientemente como central na sua vida. Contrariamen-
te, e por outro lado, a classe remete a uma condição social, fundada na
necessidade que o indivíduo tem de vender sua força de trabalho para
participar do processo produtivo e de distribuição da riqueza social,
que independe da consciência ou percepção que ele tenha de si.
Um segundo aspecto é que a classe social, diferentemente das cas-
tas e dos estamentos, remete a uma forma de estratificação tipicamente
econômica da sociedade, tanto para Marx (1985, p. 1012 e ss.) como para
Weber (2012a, p. 175 e ss.); enquanto a “identidade” representa uma
diversidade de aspectos, condições, atributos, com os quais o indiví-
duo ou coletivo geram sua autoimagem e representação social, via de
regra a partir de uma determinada relação de desigualdade, opressão
ou discriminação.
Em terceiro lugar, a classe não pode ser tratada como uma “identi-
dade” que está em oposição ao “diferente”, como acontece nas identi-

300
CAPITULO 6

dades de gênero, de raça, de orientação sexual, de nação, de religião etc.


Na questão da classe não há uma “identidade” de trabalhadores oposta
aos “diferentes”, os burgueses. Entre a burguesia e o proletariado não há
uma diferença, mas uma contradição. Uma contradição estrutural funda-
da não na diferença ou na desigualdade (de riqueza ou patrimônio, de
poder político, ou cultural subjetiva), mas na exploração da mais-valia
produzida por um (o trabalhador) e apropriada por outro (o burguês).
E essa contradição entre as classes trabalhadora e burguesa é ineliminá-
vel e insuprimível na sociedade capitalista: uma classe existe porque a
outra existe, uma existe em relação com a outra, e essa relação é de ine-
xorável antagonismo, a partir da exploração de uma classe pela outra.
Dessa forma, a análise marxista certamente mostra uma substanti-
va distinção entre a contradição entre as classes e as formas de opressão,
desigualdade e/ou discriminação existentes em torno das diversas “identi-
dades”. A exploração envolve uma contradição, um antagonismo entre as
classes, que é insuprimível na sociedade capitalista, enquanto as dife-
renças em torno das “identidades” particulares, envolvendo formas de
opressão, discriminação e desigualdade, podem ser superadas no interior
da ordem comandada pelo capital.
b) Porém, se a classe não é uma “identidade”, pode existir no
entanto “identidade” ou identificação do sujeito com a classe, que
ainda está atravessada por diversas “identidades”. Enquanto “classe
para si” o sujeito não tem uma identificação com sua classe, porém ele
pode passar ao que Marx chamou de “classe para si”, quando tomar
consciência de sua condição e de seus interesses, se identificando com
a classe (ver MONTAÑO, 2010, p. 97-98).
E ainda, mesmo não sendo uma “identidade”, a classe é atravessa-
da por diversas “identidades” e composta de uma gama de condições e
atributos das pessoas que a formam.
Marx, para mostrar a importância de saturar as categorias de de-
terminações, superando sua apropriação abstrata e dotando-as de con-
cretude histórica, usa a população como exemplo (já referenciada em
nota anterior), e afirma:
A população é uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as
classes sociais de que se compõe. Por seu lado, essas classes são

301
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

uma palavra oca se ignorarmos os elementos em que repousam,


por exemplo, o trabalho assalariado, o capital etc. Estes supõem a
troca, a divisão do trabalho, os preços etc. O capital, por exemplo,
sem o trabalho assalariado, sem o valor, sem o dinheiro, sem o
preço etc., não é nada (MARX, 1997, p. 218).

Se substituirmos a categoria “população” pela de “classe”, pode-


ríamos, seguindo o mesmo caminho metodológico, afirmar: a classe é
uma abstração se desprezarmos, por exemplo, as “identidades” de que se com-
põe. Por seu lado, essas “identidades” são uma palavra oca se ignorarmos as
relações a partir das quais se estabelecem: relações de gênero, de raça, de cul-
tura, de religião, de nação etc., a partir das quais se desenvolvem formas de
opressão, discriminação, desigualdade.
A classe trabalhadora é, portanto, pluri-identitária. Ela é composta e atra-
vessada por múltiplas “identidades”, sendo integrada por indivíduos de
ambos os gêneros, negros(as), brancos(as), pardos(as), asiáticos(as), in-
dígenas etc., dos mais variados credos e orientações sexuais, de diversas
culturas, nações etc. Silvio Almeida, nesse sentido, afirma que
as classes quando materialmente consideradas também são com-
postas de mulheres, pessoas negras, indígenas, gays, imigrantes,
pessoas com deficiência, que não podem ser definidas tão so-
mente pelo fato de não serem proprietários dos meios de produ-
ção. […] Para entender as classes em sentido material, portanto,
é preciso, antes de tudo, dirigir o olhar para a situação real das
minorias [que as compõem] (ALMEIDA, 2019, p. 98).

Isto é, a classe social, na sua concretude histórica, é composta das


mais diversas “identidades” e setores da sociedade. Falar de classe sem
perceber que ela se compõe de mulheres e homens, de trabalhadores
de raças e etnias diferentes, de grupos sociais distintos etc., representa
uma abstração da mesma.
Marx já mostrou como o capital emprega mulheres e crianças para
usar uma força de trabalho de mais baixo custo e menor organização
política (1980, p. 449 e ss. – cap. XIII-3-a). Na atualidade, particular-
mente no Brasil e região, países marcados pela escravidão de pessoas

302
CAPITULO 6

de origem africana e, em algum grau, de povos originários, podería-


mos adicionar o trabalhador negro e o nordestino, assim como, nos
EUA, o “latino” etc. Estamos, portanto, no entrecruzamento da classe
com a questão étnico-racial, de gênero, de idade, de procedência etc.,
articulando a questão de classe com as variadas condições e/ou “iden-
tidades” particulares dos seus membros.
Não só dentro de uma nação, ou de uma indústria específica, o ca-
pital, para baratear a produção e aumentar o lucro, conta com força de
trabalho mais precarizada e pior remunerada – a mulher, o trabalhador
negro, o imigrante etc. –, mas também, no contexto atual de internacio-
nalização da produção – onde partes componentes do produto podem
ser produzidas em países com maior ou menor acesso a tecnologia e
qualificação–, o barateamento da produção conta com a força de traba-
lho mais barata e desorganizada dos países periféricos, ou de regiões
desindustrializadas, como o nordeste brasileiro.
Assim, alicerçado nessa análise marxiana sobre o papel dos seg-
mentos populacionais como forma de fornecimento de força de tra-
balho mais barata e precarizada, Almeida afirma que o “racismo nor-
maliza a superexploração do trabalho, que consiste no pagamento de
remuneração abaixo do valor necessário para a reposição da força de
trabalho”, a qual “ocorre especialmente na chamada periferia do capita-
lismo” (2019, p. 172).
É claro que a questão de gênero ou de raça, por exemplo, não exis-
tem como meros desdobramentos ou como formas de manifestação da
classe. Mas, assim como a classe é composta de “identidades” – de gê-
nero, de raça, de orientação sexual etc. –, essas diversas “identidades”,
por sua vez, são refuncionalizadas e determinadas, elas são atravessa-
das pela questão de classe, assumindo novos fundamentos e determi-
nações no interior da sociedade capitalista. Há, por exemplo, entre as
mulheres e a população negra, aqueles que integram a classe trabalha-
dora e aqueles que pertencem à burguesia.
Dessa forma, precisamos compreender e afirmar que, se bem é im-
portante dar concretude histórica à categoria classe, dotando-a de to-
das as “identidades” que a compõe, a classe social só deixa de ser uma
categoria abstrata quando é posta no contexto histórico concreto, no

303
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

momento em que a classe trabalhadora estabelece uma relação de com-


pra e venda de sua força de trabalho com a classe burguesa, fundando
uma relação de produção historicamente determinada, uma relação sa-
larial, que constitui uma relação de exploração da mais-valia.
c) Exploração não é diferença. Como afirmamos, a classe não é
“identidade”. Assim, como as classes, no MPC, representam relações
de exploração, e a “identidade” tem como corolário a diferença, é mister
afirmar que, no mesmo sentido, a exploração não é diferença.
Para esta análise vamos nos remeter, brevemente, às concepções de
classe social em Weber e em Marx.
● Classe social em Weber, como diferença de poder aquisitivo. Um
dos autores mais referenciados, que desenvolve seu conceito de classe
em oposição ao de Marx, é Max Weber. O autor pensa a estratificação
social em três dimensões: da riqueza (determinando as classes), do pres-
tígio (caracterizando os estamentos ou status) e do poder (conformando
os partidos políticos) (2012, p. 185).
Para o autor, a primeira determinação para a constituição das clas-
ses na sociedade capitalista divide a população entre “proprietários” e
“não proprietários”, os que possuem algum tipo de bem − distinguindo-
-se pelo tipo de propriedade que possuem: indústrias, máquinas, capi-
tais, terras, conhecimentos etc. − e os que não possuem bens − diferen-
ciados pelo tipo de serviço que prestam. Portanto, a classe está ligada à
riqueza (ibidem, p. 176-177). Conforme afirma:
Falamos de uma classe quando 1) uma pluralidade de pessoas
tem em comum um componente causal específico de suas opor-
tunidades de vida, na medida em que 2) este componente está re-
presentado, exclusivamente, por interesses econômicos, de posse
de bens e aquisitivos, e isto 3) em condições determinadas pelo
mercado de bens ou de trabalho (ibidem, p. 176).

Para Weber, o conceito de classe remete, portanto, à situação dos


indivíduos no mercado − possuir ou não bens determina o acesso ao
consumo no mercado. As classes sociais, para o autor, constituem-se
do conjunto de indivíduos que partilham de uma determinada posição
no mercado.

304
CAPITULO 6

A concepção weberiana coincide com uma compreensão corri-


queira de classe social, determinada em função do acesso ao mercado,
da capacidade de consumo, diferenciando as classes segundo o poder
aquisitivo: ricos e pobres, classe alta, média e baixa etc. Um conceito tão
generalizado quanto inócuo para a clara compreensão dos fundamen-
tos da sociedade capitalista.
Em clara oposição à compreensão marxiana, Weber concebe uma
noção de classe social que não se funda no capitalismo, nem joga luz
sobre ele. Trata-se de uma estratificação econômica, no mercado, em
função das posses e do poder aquisitivo, do tipo classes “rica”, “mé-
dia” e “pobre”, ou “alta”, “média” e “baixa”. Essa caracterização de
classe social passa incólume por, e independe de, todos os sistemas
econômicos e modos de produção. Assim, conforme Weber, por exem-
plo, “as lutas salariais acontecem na Antiguidade e na Idade Média,
até a Época Moderna” (ibidem, p. 179). Dessa forma, do ponto de vista
teórico-conceitual, trata-se de uma concepção abstrata e anistórica de
classe, centrada na diferença de poder aquisitivo, e do ponto de vista
ideopolítico, ela tem como efeito a naturalização das desigualdades de
classe e, por conseguinte, a legitimação da ordem burguesa, que não
teria fundado essas desigualdades.
● Classe social em Marx, como contradição, a partir do lugar e do
papel do indivíduo no processo produtivo, que funda a exploração de
um pelo outro. O conceito de classe surge teoricamente, para Marx,
como concreção da análise de um determinado modo de produção (ver
SANTOS, 1987, p. 15). Nesse caso, o autor trata as classes sociais mo-
dernas como expressões do modo de produção capitalista, no qual “as
pessoas só interessam [na reflexão teórica] na medida em que repre-
sentam categorias econômicas, em que simbolizam relações de classe
e interesses de classe” (MARX, 1980, p. 6). Sendo assim, é próprio do
capitalismo a separação do trabalhador e dos meios de produção, exi-
gindo a venda da força de trabalho daqueles para o proprietário destes,
fundando uma relação salarial (idem, 1985, p. 1012).
Para Marx, diferentemente de Weber, as classes sociais não corres-
pondem, a não ser à primeira vista, ao tipo e ao volume de suas ren-
das (ibidem, p. 1013), nem se fundam no mercado, mas se determinam

305
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

geneticamente na esfera produtiva, onde os sujeitos desempenham uma


determinada função ou um determinado papel no processo produtivo (ver
SANTOS, 1987, p. 41 e ss.).
Essa função ou papel desempenhada no processo de produção da
riqueza remete a três aspectos: (1) ela se funda no tipo de propriedade que
as pessoas possuem para a atividade produtiva, (2) ela determina as
relações de produção e (3) ela condiciona as formas de enfrentamento que,
a partir de interesses diversos, os sujeitos de uma classe desenvolvem
contra as outras. Vejamos.
(1) A propriedade que os indivíduos possuem, com a qual partici-
pam do processo produtivo próprio do MPC, remete basicamente a
três tipos fundamentais: a) a propriedade da força de trabalho, b) a pro-
priedade dos meios de produção, e c) a propriedade da terra. Conforme
Marx, esses tipos de propriedade caracterizam as “três grandes classes
da era moderna, fundada no regime capitalista de produção”: “os pro-
prietários de simples força de trabalho, os [proprietários] de capital e os
[proprietários] de terra”, ou seja, a) a classe trabalhadora (operária), b) a
classe capitalista (burguesia), e c) a classe proprietária da terra (ibidem, p.
1012). Como aponta Marx em O capital (ibidem, p. 1012-1013), a cada
uma dessas classes, dada sua propriedade específica no processo pro-
dutivo, corresponderá um tipo de remuneração ou renda particular; as-
sim “o salário, o lucro e a renda fundiária”.
Assim, não é a renda do indivíduo que determina a classe, mas é o
tipo de propriedade no e para o processo produtivo que determina o tipo
e o volume da renda dos indivíduos e, consequentemente, as classes. É
essa propriedade (da força de trabalho, do capital ou da terra) que vai de-
terminar o lugar que os sujeitos ocupam, o papel que desempenham e as
relações que tendem a desenvolver no processo de produção de riqueza.
À medida que a terra se transforma em meio de produção, apro-
priada pelo capitalista, essas duas classes (proprietários de terras e de
capital) tendem a se fundir numa só. Assim, Engels, em nota à edição
inglesa do Manifesto comunista, caracteriza as duas classes fundamen-
tais do MPC:
Por burguesia compreende-se a classe dos capitalistas modernos,
proprietários dos meios de produção social, que empregam o

306
CAPITULO 6

trabalho assalariado. Por proletários compreende-se a classe dos


trabalhadores assalariados modernos que, privados de meios de
produção próprios, se veem obrigados a vender sua força de tra-
balho para poder existir (in MARX e ENGELS, 2010, p. 40).

(2) Aparece aqui o segundo aspecto em questão: as relações de pro-


dução próprias da produção capitalista. A nota de Engels dá a entender
que o capitalista (proprietário de terra, de meios de produção, de con-
sumo ou financeiros) precisa empregar o trabalhador, ou seja, comprar
sua força de trabalho, enquanto o trabalhador necessita vender sua for-
ça de trabalho, constituindo assim a relação de compra-venda da força
de trabalho, uma relação salarial.
É a partir dessa relação salarial, de emprego, que se funda a exploração:
o valor produzido por um (o trabalhador, que alienou sua força de tra-
balho em troca do salário) é apropriado pelo outro (o capitalista). Há,
portanto, aqui, uma relação de opressão e desigualdade, mas centrada na
exploração, e não na diferença.
Trata-se não de uma relação de desigualdade entre diferentes, mas
de uma relação contraditória: o valor (a mais-valia) produzido por um é
apropriado (explorado) pelo outro. E essa contradição, a exploração de
uma classe pela outra, é constitutiva e ineliminável da ordem burguesa.
(3) É a partir dessa contradição, que constitui o antagonismo de
interesses de classe, da capacidade de percepção e compreensão e das
formas de organização coletiva, que os sujeitos de uma classe (ou de
uma fração de classe) desenvolvem formas de enfrentamento, de lutas,
entre as classes antagônicas.
Assim, a análise marxiana de classe social não se sustenta numa di-
ferença (naturalizada) entre graus distintos de poder aquisitivo, mas na
ineliminável (no âmbito do capitalismo) contradição entre uma classe
que acumula riqueza a partir da exploração do valor produzido pela
outra, que tende à pauperização absoluta ou relativa (ver MARX, 1980,
p. 717 e ss.).
Dessa forma, contrariamente à noção weberiana de classe como
uma diferença de poder aquisitivo, que sempre existiu em todas as
organizações sociais e é passível de mudança individual, a categoria

307
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

classe social de Marx, fundada na exploração de uma classe pela ou-


tra, mostra que a transformação social e a superação da ordem capi-
talista não constituem uma questão ideológica, mas uma necessidade
histórica para a emancipação humana, já que não há capitalismo sem
exploração.
Ainda mais, a classe trabalhadora é composta, diversamente, de
todos aqueles que têm sua força de trabalho como único ou princi-
pal meio de acesso ao processo produtivo e, portanto, como fonte de
renda. Dessa forma, a classe trabalhadora não se limita à população
empregada. Trabalho não é sinônimo de emprego, nem trabalhador é
sinônimo de empregado. A classe em si é composta de trabalhadores
empregados, subempregados e desempregados. O que dá a condição
de pertencimento à classe não é o emprego, mas a necessidade de ven-
der sua única posse, a força de trabalho.
Portanto, toda a argumentação de que a classe trabalhadora teria
perdido centralidade dado o elevado índice da população que está de-
sempregada, fora do processo produtivo e, portanto, sem ser submeti-
da diretamente à exploração, resulta da equivocada equiparação entre
trabalho e emprego.
Assim, a classe trabalhadora, empregada ou não, constitui a enor-
me maioria da população; e sua articulação, uma força revolucionária.
Como afirma Marx: “Todo entendimento entre empregados e desem-
pregados perturba o funcionamento” (1980, p. 743) do comando do
capital. Assim, introduzir na classe uma divisão na percepção de inte-
resses entre trabalhadores empregados e desempregados é a primeira
tarefa do capital para dividir essa classe que é a maioria. O segundo
passo é segmentar os trabalhadores empregados a partir de uma plu-
ralidade de modalidades contratuais e salariais. E, em seguida, secun-
darizar a condição de classe em face das outras dimensões da vida,
promovendo seu conflito internamente a partir da contraposição iden-
titarista. Isto é, o objetivo do capital é reduzir o poder e a unidade da
classe trabalhadora promovendo a divisão interna a partir da condição
de empregado / desempregado, do vínculo contratual e salarial, e da
primazia das identidades (polarizadas) sobre a condição de classe.
Isso nos põe diante da centralidade da classe social.

308
CAPITULO 6

B) A centralidade da contradição de classes


Em posse das reflexões anteriores, é mister nesse momento tratar-
mos da centralidade da contradição de classe.
Ao falar de centralidade precisamos apontar o que ela significa e o
que não significa, para não cair novamente nos equívocos próprios dos
dois lugares-comuns dessa questão: por um lado, o lugar-comum de
entender por “centralidade” uma determinação exclusiva e absoluta
da exploração que funda a contradição de classes sobre outras formas
de relação e dominação, negando ou secundarizando as “identidades”,
as relações de opressão, de desigualdade etc.; por outro lado, o lugar-
-comum de equiparar a classe a qualquer forma de “identidade”, e a
exploração a qualquer forma de opressão, ou até de negá-la ou secun-
darizá-la em face das “identidades”.
Afirmar a centralidade da exploração de classe requer determinar
seu alcance e sua articulação com a “identidade” e as relações de opres-
são e desigualdade. Vejamos.
a) A centralidade da exploração de classe não significa primazia
ou maior importância sobre as outras formas particulares de desi-
gualdade / opressão. Ao tratar a exploração de classe como “central”,
em contraste ou comparação com a “não centralidade” da opressão e
da “identidade”, é necessário primeiramente descartar aquilo que a
“centralidade” não significa.
Primeiramente, centralidade não quer dizer maior “importância”; a
questão da exploração de classe não é mais importante do que qualquer
forma de opressão, discriminação ou desigualdade.
Centralidade não significa também uma primazia ou hierarquia da
classe em relação às formas de opressão. Por outro lado, a centralida-
de da exploração de classe não significa uma precedência, seja teórica ou
histórica, a partir da qual suponhamos que é a exploração que cria e
explica plenamente todas as formas de opressão e desigualdade, sendo
estas meras “manifestações” decorrentes da exploração.
Ainda, centralidade de classe não significa uma relação de prece-
dência política, em que primeiro deveríamos resolver a contradição de
classe, em torno da exploração, para só depois tratar das relações de
opressão e desigualdade (ou “identidades”).

309
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Isto é, falar da centralidade da exploração de classe não pode nos


obrigar a escolher entre classe e “identidade”, ou entre exploração e
opressão, mesmo que esse seja um erro frequente (especialmente nas
abordagens “economicistas” e estruturalistas ou “identitaristas”). Elas
não são categorias excludentes ou alternativas, mas mutuamente articu-
ladas epresentes na dinâmica da heterogênea realidade cotidiana.
Dessa forma, como afirma Almeida, a escolha entre raça (ou ou-
tras “identidades”) e classe é “um falso dilema” (2019, p. 185). Assim,
sobre o “dilema ‘luta de classes / luta de raças’” o autor cita Florestan
Fernandes, para quem “uma não esgota a outra e, tampouco, uma não
se esgota na outra”, já que, conforme o sociólogo marxista, “ao se clas-
sificar socialmente, o negro adquire uma situação de classe proletária”,
embora continue “a ser negro e a sofrer discriminações e violências” (in
ALMEIDA, 2019, p. 188).
Como sustenta o autor, em torno da questão racial, “a negação da
classe como categoria analítica não interessa à população negra” (2019,
p. 188).
Assim, não se trata nem de desprezar as causas e as lutas parti-
culares, antiopressivas, das diversas “identidades”, em nome de uma
suposta superioridade da questão de classe, nem de renunciar às lutas
de classe em nome do maior impacto imediato na vida das pessoas que
as lutas identitárias possam trazer. Trata-se, sim, de articular ambas as
formas de luta num projeto emancipatório comum e complementário
(voltaremos a isso no item 7.1-C).
Tendo visto o que não significa “centralidade”, cabe agora analisar
o efetivo alcance da centralidade da exploração de classes.
b) A “centralidade” da classe remete ao fato de constituir um fun-
damento da sociedade burguesa, do modo de produção capitalista,
que o distingue de outras formações sociais. Como afirmamos ante-
riormente, classe e “identidade”, exploração e opressão, não são cate-
gorias excludentes ou alternativas, porém também não são equivalentes.
Vejamos por quê.
Toda sociedade, mesmo que complexa, diversa e formada por
múltiplas relações e processos sociais, na medida em que a primeira e
fundamental necessidade é a produção de meios de vida, organiza-se

310
CAPITULO 6

a partir de um determinado “modo de produção”. Dessa forma, confor-


me Marx e Engels, “o primeiro pressuposto de toda história humana
é naturalmente a existência de indivíduos humanos vivos” (MARX e
ENGELS, 1993, p. 27). Nesse sentido, afirma Marx, “na produção so-
cial da sua existência, os homens estabelecem relações determinadas,
necessárias, independentes da sua vontade, relações de produção que
corresponde a um determinado grau de desenvolvimento das forças
produtivas materiais” (MARX, 1977, p. 24).
Assim, “o modo pelo qual os homens produzem seus meios de
vida” constitui seu “modo de produção”, que se trata não só da “re-
produção da existência física dos indivíduos”, mais do que isso, trata-
-se “de uma determinada forma de manifestar sua vida, determinado
modo de vida dos mesmos” (MARX e ENGELS, 1993, p. 27).
Porém o “modo de produção” não diz respeito apenas ao pro-
cesso de produção, mas às relações de produção. É através delas que
os indivíduos não somente se relacionam para produzir a riqueza,
mas como essas mesmas relações (de produção) são o que determina
quem produz e quem se apropria da riqueza, e por quais processos se
dá a usurpação dela.
Assim, em toda sociedade de classes há quem produz a riqueza
e quem se apropria da maior parte dela. Saber quem produz e quem
usurpa a riqueza nos mostra as classes fundamentais dessa sociedade;
entretanto, conhecer a partir de quais relações essa riqueza é produ-
zida e expropriada nos mostra o modo de produção específico: assim o
senhor feudal e o produtor, numa relação de proteção / pagamento de
impostos, no modo de produção feudal; o dono da terra e o escravo,
mediante propriedade do trabalhador, no modo de produção escravo;
e o burguês e o proletário, através da relação salarial, no modo de pro-
dução capitalista. Essas são as classes fundamentais nesses modos de
produção.
É por esse motivo que o fundamento que distingue um do outro, e
que peculiariza cada “modo de produção” é um elemento central para
compreender o conjunto das relações sociais de cada época. Esse “modo
de produção” (formas de produzir, classes fundamentais e as relações
entre elas) condiciona, mesmo que em última instância, todas as demais

311
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

relações sociais. Todas elas são refuncionalizadas de acordo com os fun-


damentos desse “modo de produção”, que rege o modo de produção da
riqueza e o fundamento de apropriação e distribuição dela.
Dessa forma, como afirma Marx, “é importante distinguir as deter-
minações que valem para a produção em geral [comum a todas as so-
ciedades], a fim de que a unidade […] não nos faça esquecer a diferença
essencial” entre as diversas formas de organização social (1977, p. 203).
Então, o que é que distingue cada “modo de produção”, consti-
tuindo o fundamento daquilo que peculiariza cada organização social,
determinando e condicionando (mesmo que não plenamente) o con-
junto das relações sociais?
Conforme afirma Marx em O capital, “o que distingue as diferen-
tes épocas econômicas não é o que se faz, mas como, com que meios
de trabalho se faz” (idem, 1980, p. 204). Isto é, não é o tipo de produto
ou de mercadoria o que caracteriza cada sistema social, mas, primeira-
mente, os meios utilizados para produzi-los.
Por outro lado, e em segundo lugar, são fundamentalmente as re-
lações de produção / usurpação o que diferencia uma sociedade da ou-
tra. Como afirma Marx, “só a forma em que se extrai do produtor imediato,
do trabalhador, esse trabalho excedente distingue as diversas formações
econômico-sociais, a sociedade da escravidão, por exemplo, da socie-
dade do trabalho assalariado” (ibidem, p. 242-243).
No feudalismo é o pagamento de impostos, na escravidão é a pro-
priedade e a posse do trabalhador, no capitalismo é a exploração a par-
tir da compra e venda da força de trabalho, a partir da relação salarial.
Isto é, a exploração é o mecanismo central e fundante do MPC,
através do qual o capitalista (que compra a força de trabalho median-
te pagamento do salário) se apossa de parte de valor (a mais-valia)
produzido pelo trabalhador assalariado. A exploração é, assim, o
componente central das relações de produção, o fundamento da so-
ciedade capitalista, aquilo que distinguee peculiariza esta sociedade
das outras.
A exploração, ainda, é insuprimível, ineliminável na sociedade
capitalista. Sem a exploração de mais-valia não há capitalismo. Isto
é, o MPC se funda na exploração da mais-valia produzida por um (o

312
CAPITULO 6

trabalhador) e apropriada por outro (o capitalista), a partir da relação


salarial, na qual o trabalhador aliena sua força de trabalho (e o produ-
to dela) em troca de um salário.
Sendo insuprimível, a exploração, por último, não expressa uma
mera “diferença” entre as classes, mas uma contradição entre elas:
uma produz valor, enquanto a outra o usurpa. Com base nessa relação
de produção / usurpação (ou exploração) do valor, o burguês acumula
riqueza, enquanto o trabalhador (que a produz) é submetido à pauperi-
zação, seja absoluta (carência de meios para sua subsistência) ou relativa
(relação entre o valor que produz e o valor que recebe como salário,
representando o grau de exploração) (ver ibidem, p. 717 e 747).
Assim, a contradição de classe diz respeito não a uma diferença, mas
a um antagonismo entre as classes, entre a burguesia e o proletaria-
do: a exploração. Essa questão, diferentemente de todas as formas de
discriminação, desigualdade, opressão, preconceito etc., não pode ser
superada sem que a sociedade comandada pelo capital seja superada.
A exploração é constitutiva da ordem burguesa. Não há modo de pro-
dução capitalista sem exploração, sem que o valor produzido pelo tra-
balhador seja apropriado pelo capitalista. Eliminar a exploração exige
a superação, a transformação da sociedade capitalista.
Isto não acontece com as formas de desigualdade social, tratadas
ora como “identidades”, ora como “minorias”, ora como formas de
“exclusão social”, ora como grupos subalternos etc. As lutas pela su-
peração dessas formas de desigualdade e opressão não pressupõem
a superação da ordem burguesa. Ao contrário, como já observamos,
essas lutas, quando desarticuladas da totalidade, são orientadas para a
superação da “exclusão”, ou seja, para a “inclusão”, fundamentalmen-
te mediante direitos e políticas, e portanto, passíveis de ser alcançadas
dentro da sociedade capitalista.
“Contradição” não é equivalente à, ou sinônimo de, “desigualda-
de”, portanto, a contradição de classes não é equivalente às diversas
formas de desigualdade social e de opressão: de gênero, de raça, de
religião etc.
Portanto, entre as “identidades” e as “classes” há lógicas e funda-
mentos essencialmente diferentes: a questão de classe envolve uma con-

313
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

tradição e um antagonismo (enquanto houver classes, esse antagonismo,


a exploração, continuará a existir); já as questões (e pautas) identitárias
envolvem formas de opressão, discriminação e desigualdade (e não con-
tradição entre os sujeitos) que podem ser superadas dentro da ordem
burguesa e sem a eliminação do sujeito, do diferente.
A contradição (de classe) se expressa como fundamento estrutural
da sociedade capitalista, enquanto a desigualdade (em todas suas for-
mas particulares) é expressão, manifestação, desdobramento daqueles fun-
damentos contraditórios.
Isto, em primeiro lugar, não quer dizer que as questões particulares
(ditas identitárias), enquanto manifestações da “questão social”, esgo-
tem-se na – ou sejam mero reflexo da – contradição capital-trabalho. A
contradição de classes (centrada na relação de exploração) não explica
nem determina completamente as relações sociais em geral, tampouco
as relações de opressão, discriminação e desigualdade.
Cada uma delas tem sua especificidade e sua particularidade. A
desigualdade de gênero, a discriminação racial, o preconceito homofó-
bico ou xenofóbico, cada um deles tem suas particularidades que vão
muito além da contradição de classes. É nesse sentido que Petras afirma
que “a opressão de gênero não é uma mera manifestação do Capitalis-
mo”, e complementa: “Metodologicamente, admitiremos a existência
de um certo grau de ‘autonomia’ entre as esferas” socioeconômicas e
as relações de gênero (1999, p. 411, grifo nosso), como qualquer outra
relação de opressão (identitária).
Porém a opressão de gênero constitui um fenômeno particular, es-
pecífico, que não se reduz a mero reflexo da questão de classe, mas em
nada autodeterminado, autônomo, independente ou desarticulado da
totalidade social, que o contém e o determina. Não são apenas manifes-
tações (meros reflexos) da contradição de classes, eles são, sim, perpas-
sados, fundados, parcialmente determinados e refuncionalizados pelos
fundamentos da sociedade capitalista.
Dessa forma, em segundo lugar, isso também não quer dizer que
as formas de desigualdade (de gênero, de raça, de religião, de orienta-
ção sexual etc.) tenham surgido no capitalismo. Claro que não: a desi-
gualdade de gênero tem raiz no patriarcalismo (ver ENGELS, 2002); a

314
CAPITULO 6

de raça e de etnia, nas guerras, invasões e conquistas, sejam bélicas ou


“guerras santas”; e a escravidão dos povos conquistados, em toda a
história da humanidade.
Porém, como já foi tratado, em cada organização social as desi-
gualdades assumem novos contornos, novos fundamentos. Assim, na so-
ciedade capitalista elas são reconfiguradas segundo os fundamentos
do ordenamento social capitalista. A questão racial, por exemplo, na
sociedade escravista, funda-se na “propriedade” do escravo, enquanto
na sociedade capitalista, mesmo com heranças do escravismo, ela tem
outros fundamentos. A questão de gênero no contexto da Inquisição
medieval tem fundamentos claramente diferentes dos contornos que
ela assumiu na atualidade. O capitalismo refunda e refuncionaliza todas
as questões a partir dos seus fundamentos sistêmicos.
Em terceiro lugar, não quer dizer que a contradição de classes seja
mais importante do que as desigualdades particulares. Como afirmamos
anteriormente, “não é mais importante a desigualdade de classe que a
desigualdade de gênero ou de raça etc.” (ver MONTAÑO e DURIGUE-
TTO, 2010, p. 126-127), assim como “a exploração […] não é mais impor-
tante que a discriminação racial, sexual ou qualquer outra” (ibidem, p.
126). Quem padece de qualquer forma de desigualdade, discriminação
ou opressão não aceitará que sua condição seja menos importante, e
tem igual direito de se rebelar e lutar contra ela, pela igualdade de di-
reitos. Isso também não quer dizer que a exploração (de classe) explique
e determine plenamente toda forma de opressão, discriminação e desi-
gualdade. A exploração diz respeito apenas à relação capital-trabalho.
Porém, para além do fato de que todas as formas de opressão, dis-
criminação e desigualdade são importantes, e de que as lutas para su-
perá-las são necessárias, a classe tem uma dimensão central na análise
social, na organização política e na luta antissistêmica, por representar
um fundamento da sociedade capitalista. A exploração de uma classe
por outra constitui um fundamento da ordem burguesa; isto é, a clas-
se “não é mais ‘importante’, mas é ‘fundamento’. O fundamento que
explica a sociedade e que lhe confere caráter central na(s) luta(s) pela
emancipação […]. É central porque é fundamento do MPC, porque pecu-
liariza e caracteriza esta formação social” (ibidem, p. 127).

315
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Em quarto lugar, também não quer dizer que a luta contra as di-
versas formas de desigualdade (“lutas particulares”) não sejam neces-
sárias e válidas. Ao contrário, lutar contra toda forma de desigualdade
constitui o “bom combate”, necessário no caminho para a igualdade e
para a emancipação política, visando à emancipação humana.
Porém é preciso dizer que essas lutas, quando isoladas, não
constituem ameaça aos fundamentos do MPC, antes tendem a perpe-
tuá-lo. Se isoladas, essas lutas ficam na esfera das manifestações, e não
dos fundamentos da sociedade capitalista.
Podemos afirmar que, constatando a existência de uma estrutura
machista e patriarcal, ou de uma estrutura racista, isso não faz de cada
homem o opressor e o inimigo natural de cada mulher, assim como não
faz de cada pessoa branca o opressor e o inimigo natural de cada pessoa
negra – a relação de opressão de gênero ou de raça não é natural, mas
histórica. Porém a estrutura de classes sociais faz, sim, necessariamente
e por sua natureza e condição social, com que cada burguês explore
cada trabalhador assalariado; nesse caso, a exploração é constitutiva e
insuprimível (no capitalismo) da condição de classe e da relação entre
uma classe e outra – isto é: a própria existência da burguesia e do tra-
balho assalariado está indissoluvelmente atrelada à exploração de um
pelo outro. Relações não opressivas entre homens e mulheres podem
existir, bem como entre indivíduos de diferentes origens étnico-raciais;
mas uma relação sem exploração entre burguesia e proletariado não
existe: ela é constitutiva e expressão das classes antagônicas: sem ex-
ploração não há burguesia nem proletariado.
Na análise marxista da “questão social”, há uma contradição, um
antagonismo entre burgueses e proletários, na medida em que um exis-
te pela/para a exploração do outro, fundando a contradição de classes.
O burguês, pela sua própria condição e natureza, antagoniza-se com
os interesses do proletariado, dado que o burguês só existe entanto e
porquanto explora a força de trabalho alheia, constituindo-se em “ini-
migos de classe”, e a solução para esse conflito de interesses (a exploração de
um pelo outro) passa necessariamente pela eliminação das classes. No entan-
to, na questão de raça (racismo), de gênero (machismo), de orientação
sexual (homofobia), de procedência (xenofobia) etc., um “grupo” não é,

316
CAPITULO 6

por definição e por natureza, inimigo, antagonista ou contrário a outro:


o branco não é inimigo do negro, o homem não é inimigo da mulher,
o heterossexual não é inimigo do homossexual, o sulista não é inimigo
do nordestino, o residente não é inimigo do imigrante – são a estrutura
e a cultura que fazem com que um grupo seja dominante e o outro, su-
balterno. O alvo a combater e a destruir, portanto, não é o indivíduo ou
o grupo diferente, mas a estrutura, a cultura e a idiossincrasia (machista,
racista, xenofóbica, homofóbica etc.) que fundam o preconceito, o pri-
vilégio e a desigualdade social entre os indivíduos.
A distinção, portanto, entre as lutas de classes contra a explora-
ção e as lutas contra as diversas formas de discriminação e opressão
(incrível que os pós-modernos ainda não tenham percebido isso) está
nos próprios fundamentos. Se extinguir a exploração exige superar o
“capitalismo” e a “sociedade burguesa” – o que levaria à extinção da
própria classe burguesa, do capitalista e de todas as classes –, erra-
dicar o “machismo”, ao contrário, não supõe acabar com os homens,
eliminar o “racismo” não significa exterminar os “brancos”, combater
a “homofobia” não pressupõe eliminar os “heterossexuais” etc.
Não se trata de que todos sejam iguais, idênticos (nas suas condi-
ções, suas opções, seus comportamentos, seus pensamentos etc.), mas
que haja igualdade entre os diferentes.
A conquista da igualdade em torno das “identidades” pode e deve
ser alcançada, a partir da igualdade de direitos. Porém não há como
alcançar a igualdade ou conciliar os interesses das classes antagônicas
(burguesia e proletariado), pois elas se fundam na insuprimível (dentro
da ordem capitalista) exploração da mais-valia, que é produzida por
um e apropriada por outro.
Ainda mais, as lutas antiopressivas particulares (“identitárias”),
contrariamente às lutas contra a exploração, tem seu horizonte de rea-
lização possível dentro da ordem capitalista, sem impactar ou precisar
transformar a ordem burguesa. Assim, como afirma Wood,
Embora o capitalismo possa usar e faça uso ideológico e econô-
mico da opressão de gênero [de raça, de nações etc.], essa opres-
são não tem status privilegiado na estrutura do capitalismo. Ele
[o capitalismo] poderia sobreviver à erradicação de todas as

317
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

opressões específicas das mulheres, na condição de mulheres –


embora não pudesse, por definição, sobreviver à erradicação da
exploração de classe (2006, p. 232).

Obviamente duas observações se fazem necessárias para evitar in-


terpretações apressadas dessa afirmação de Wood.
Primeiramente, como ela mesmo esclarece, “isto não quer dizer
que o capitalismo tenha passado a considerar a libertação das mulheres
[ou de outras categorias sociais subalternas] necessária ou inevitável”
(ibidem). Significa, isso sim, “que não há necessidade estrutural especí-
fica de opressão de gênero [ou racial etc.] no capitalismo, nem mesmo
uma forte disposição sistêmica para ela” (ibidem).
Em segundo lugar, é necessário assinalar que a afirmação de que
“essa opressão” (das mulheres, dos negros, dos imigrantes, dos LGB-
Ts etc.) não tem “status privilegiado na estrutura do capitalismo”, não
quer dizer que, para a autora, essas formas de opressão sejam desim-
portantes ou secundárias. Quer dizer, isso sim, que para os fundamen-
tos e a estrutura do capitalismo elas não são essenciais. O capitalismo
subsistirá sem essas formas de opressão.
Portanto, quando classe e “identidade” são vistas como equivalen-
tes, tende-se a substituir ou equiparar a contradição de classe por/com as
desigualdades a partir das “identidades”, e as lutas de classes passam a ser
secundarizadas ou abandonadas pela ação identitarista. Note-se, reafir-
mamos, que não estamos falando que as lutas particulares e suas cau-
sas não sejam importantes e fundamentais, mas que elas devem ser tra-
vadas para superar uma cultura, e não para eliminar o suposto “inimigo”.
É preciso, portanto, apontar o erro conceitual e político de, na me-
lhor das hipóteses, equiparar a desigualdade oriunda das “identidades”
com a contradição de “classes”, e, na pior das hipóteses, substituir a pri-
meira pela segunda.
Ora, como apontamos, entre a classe burguesa e a proletária não
há apenas diferenças, também não há somente uma desigualdade; há,
na verdade, uma contradição. Contradição esta insuprimível no MPC.
Trata-se, portanto, não de um aspecto cultural, mas de um aspecto fun-
dante da ordem burguesa. Contrariamente, apesar de todas as diferen-

318
CAPITULO 6

ças e desigualdades existentes em uma cultura racista, homofóbica e


machista, não há uma contradição insuperável nas questões de gênero,
de raça, de orientação sexual etc.
É por isso que, se para superar a contradição de classes (fundada
na exploração) é preciso a superação da ordem capitalista, contraria-
mente, a superação das formas particulares de opressão (arraigadas
nas culturas racista, machista etc.), pode sim ser realizada ainda dentro
da ordem social vigente. As “lutas particulares” constituem, portanto,
embates fundamentais no caminho da emancipação política e no avan-
ço civilizatório e dos “direitos humanos”, mas não realizam a plena
emancipação humana.
Porém se as “lutas antiopressivas” particulares são fundamentais
e confluem com as “lutas de classe”, a “lógica identitarista”, no en-
tanto, fragmenta a classe trabalhadora e desarticula e pulveriza sua
luta, criando uma lógica internamente devastadora, opondo e enfren-
tando a classe em torno de “identidades”, antagonizando os indiví-
duos: homem vs. mulher, negro vs. branco, heterossexual vs. LGBT,
pressupondo que eles constituam relações de antagonismo na mesma
base que as classes constituem uma relação contraditória: capital vs.
trabalho.
A contradição de interesses entre o burguês (o capitalista) e o traba-
lhador depende basicamente da estrutura econômica – um indivíduo,
por sua condição, explora o outro, constituindo assim o antagonismo
de classe. E dessa forma, superar a contradição exige superar a ordem
que constituiu essa relação, eliminando assim as classes sociais. Con-
trariamente, nas formas de desigualdade e opressão machista, racista,
homofóbica, xenofóbica, de intolerância religiosa etc., o que deve ser
enfrentado, diferentemente da contradição de classes, são as culturas
em questão, conquistando a igualdade entre homens e mulheres, en-
tre raças, entre imigrante e local, enfim, entre indivíduos diversos. Do
antagonismo de classe deriva um (suposto) antagonismo em “identidades”
diferentes, o que leva a conceber o “diferente” como inimigo, não em
função da cultura ou estrutura, mas em função da sua própria condição
de indivíduo “diferente”,. O resultado dessa lógica é a pulverização da
classe trabalhadora, sem unidade, sem um projeto comum e, portanto,

319
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sem possibilidade de enfrentar a ofensiva burguesa, os programas neo-


liberais e o avanço atual do ultraconservadorismo.
Não podemos pensar, portanto, as relações sociais de opressão
(identitárias) a partir do mesmo antagonismo com que as relações de
classe social se estruturam.
O antagonismo de classes, na sociedade capitalista, tem base na
exploração fundada na relação de compra e venda da força de trabalho,
na relação salarial. Assim, a supressão da desigualdade fundada no an-
tagonismo de classe exige a superação do sistema social, da ordem, do
modo de produção em questão, e a extinção dos próprios sujeitos –
não dos indivíduos, mas dos sujeitos enquanto categorias econômicas: do
trabalhador escravo e do proprietário de escravos, no escravismo; do
trabalhador assalariado e da burguesia industrial, no capitalismo. Por
quê? Porque a constituição dessas categorias econômicas, a burguesia
industrial e o trabalhador assalariado, existem na medida em que haja
exploração capitalista; a burguesia industrial e o trabalhador assala-
riado não podem existir sem a exploração; portanto, para extinguir a
exploração é preciso eliminar os sujeitos (como categorias sociais, não
os indivíduos) que a compõem: a burguesia e o assalariado industriais.
Isso não ocorre em outras relações sociais. Em relações desiguais
e opressivas não há antagonismo entre pessoas negras e brancas, entre
homens e mulheres, entre praticantes dessa ou daquela religião; há di-
ferença, desigualdade, opressão, mas não há antagonismo, contradição entre
eles. O que precisamos superar, nesses casos, para eliminar a desigual-
dade e a opressão (preservando as diferenças), é a estrutura e a cultura
machista, patriarcal, racista, xenofóbica etc., mas não necessariamente o
sistema social capitalista, nem os sujeitos em questão. Não é necessário,
por exemplo, e nem razoável, eliminar ou submeter o homem para
conquistar a igualdade de gênero. Os sujeitos permanecem, mas a
relação de opressão e desigualdade é suprimida. Superar o racismo
tampouco significa eliminar o homem ou a mulher branca, mas des-
truí-los nos fundamentos do sistema de privilégios e de opressão racial.
Portanto, não podemos tratar como relações equivalentes o anta-
gonismo e a contradição de classes, a desigualdade e a opressão de

320
CAPITULO 6

gênero, de raça etc. Assim como a superação do antagonismo de classe,


que exige a eliminação dos próprios sujeitos e do modo de produção,
não é equivalente à supressão da desigualdade e da opressão identi-
tária, que pressupõe a presença igualitária dos sujeitos, destruindo a
estrutura e as culturas opressivas.
Só na relação contraditória entre classes, a supressão da desigual-
dade resultante exige a eliminação dos próprios sujeitos (categorias
econômicas), a burguesia industrial e o trabalhador assalariado.
Porém é isto o que a polarizadora “lógica identitarista” pós-mo-
derna faz: tratar o “outro”, o diferente, como inimigo, como antagonis-
ta, buscando sua aniquilação pessoal.
Dessa forma, devemos equalizar a importância da supressão de
toda forma de desigualdade, opressão e exploração. Mas equiparar as
formas de relação de gênero, de raça, de cultura etc. com as relações
de classe representa um reducionismo monumental na capacidade de
compreensão das relações sociais em geral. Equiparar classe, gênero e
etnia representa um equívoco teórico enorme, com sequelas na organi-
zação e na ação política.
A igualdade de classes só é alcançada quando é eliminado o fun-
damento que as torna desiguais, e com isso a eliminação das próprias
classes e a superação da própria ordem social.
Em síntese, a contradição de classe não explica tudo de todas as
relações sociais, ela não dá conta de todas as formas de opressão, de
discriminação e de desigualdade. Assim, afirmar que a contradição de
classes é central e perpassa todas as dimensões, todas as questões e to-
das as relações no âmbito da sociedade capitalista, não quer dizer que
ela explica plenamente todas essas dimensões, questões e relações, todas
as formas de opressão e todas as “identidades”. Quer dizer apenas que
ela as dota de particularidades e determinações no âmbito da socieda-
de capitalista.
Dessa forma, parafraseando Engels, podemos afirmar: segundo a
concepção materialista da história, a exploração do trabalho pelo capi-
tal constitui um fator central que, em última instância, funda e determina
o conjunto das relações na vida social burguesa. Não afirmamos mais
do que isso. “Se alguém o distorce dizendo que o fator econômico é o

321
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

único determinante, ele transformará aquela tese em uma frase vazia,


abstrata e absurda” (ver ENGELS in MARX e ENGELS, 1975a, p. 520).
Podemos pôr a questão da centralidade dessa forma: a “identida-
de” é central para o indivíduo ou grupo, que tem sua vida marcada
por essa condição a partir de uma relação de desigualdade, opressão
ou discriminação, fazendo da luta antiopressiva algo de suma impor-
tância e urgência no caminho para a emancipação. Enquanto a classe é
central para o sistema capitalista, que se funda na exploração da força
de trabalho. Por conta disso, a contradição estrutural de classe é central
para a superação da ordem. Assim, representa um profundo equívoco
tratar a classe como mais uma “identidade”.

322
capítulo 7

LUTAS DE CLASSES E LUTAS


ANTIOPRESSIVAS PARTICULARES
(“IDENTITÁRIAS”) NA ANÁLISE
MARXISTA

N esse último capítulo, a partir das discussões precedentes, visa-


mos, distantes de ambos os “lugares-comuns” – a rejeição sumária da
“identidade” e das lutas antiopressivas particulares (ou “identitárias”),
por um lado, e a substituição ou equiparação da classe e das lutas de
classes por/com aquelas, por outro lado –, tratar da necessária articula-
ção, em relação de complementaridade, e não de exclusão ou equipara-
ção, das categorias classe e “identidade” na análise da complexidade so-
cial, e das lutas de classes e antiopressivas ou “identitárias” no processo
de construção de uma sociedade efetiva e plenamente emancipada.
Para isso, partiremos inicialmente de alguns pressupostos teórico-
-políticos da análise marxista.

7.1- Alguns pressupostos teórico-políticos no debate marxista:


as dialéticas reforma / revolução, emancipação política / humana,
exploração / opressão, estrutura / superestrutura.

Apresentaremos aqui, mesmo que sucintamente, alguns debates da


tradição marxista em torno das dialéticas reforma / revolução, eman-

323
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

cipação política / humana, exploração / opressão, estrutura / superes-


trutura, que a nosso ver subsidiarão nossa discussão a seguir. Vejamos.

A) Reforma e/ou revolução (em Rosa Luxemburgo), e as guerras


de posição e de movimento (em Gramsci)
Nesse primeiro momento, cabe discutir a diferença entre os obje-
tivos e os meios da finalidade das lutas políticas. Isso porque os ne-
cessários objetivos imediatos, cotidianos ou particulares, podem ser os
meios de uma finalidade mais ampla, a transformação social, ou eles
mesmos podem ser a finalidade da luta em si, esgotando-se ao alcançar
esses objetivos particulares dentro da ordem vigente, sem visar à sua
transformação.
Para esse debate, vamos recorrer às análises de dois pensadores
marxistas, Rosa Luxemburgo (2003), no seu livro Reforma ou revolução?,
e as reflexões de Antonio Gramsci (2000b) sobre a guerra de posição e
de movimento.
a) A disjuntiva ou a complementaridade entre a reforma e a revo-
lução no debate de Rosa Luxemburgo. Em 1898 e 1899, Rosa Luxem-
burgo publica dois artigos, depois reunidos em livro, editado em 1900,
cujo nome (questão) é Reforma ou revolução?. Neles, a autora enfrenta o
revisionismo reformista de Eduard Bernstein, que abandona o projeto
revolucionário socialista pelas reformas graduais no/do capitalismo.
Já no prefácio a autora apresenta a questão central do livro: pode o
projeto revolucionário ser contra e se opor às reformas cotidianas? À qual ela
responde: “Certamente que não” (2003, p. 17).
E complementa, de forma taxativa e elucidativa:
A luta cotidiana pelas reformas, pela melhoria da situação do
povo trabalhador no próprio quadro [contexto] do regime exis-
tente, pelas instituições democráticas, constitui […] o único meio
de travar a luta da classe proletária e trabalhar no sentido de sua
finalidade […] a superação do assalariado [do MPC] (ibidem, p.
17, grifos nossos).

Grifamos aqui que se trata precisamente de um meio – as lutas coti-


dianas por reformas que melhorem a situação e as condições de vida da

324
CAPITULO 7

população trabalhadora – e uma finalidade – que está na superação da


ordem burguesa e das relações de exploração próprias dela, fundadas
nas relações salariais entre capital e trabalho. Isto é, as reformas e a re-
volução não são necessariamente alternativas excludentes, elas podem
representar uma relação entre meios e fins. Ou, nos termos da autora:
“Existe um laço indissolúvel entre as reformas sociais e a revolução,
sendo a luta pelas reformas o meio, mas a revolução o fim” (ibidem).
Conforme Luxemburgo, é justamente Bernstein que opõe pela pri-
meira vez, como alternativas, a reforma e a revolução, quando ele re-
nuncia “à transformação social”, fazendo “da reforma social – simples
meio na luta de classe – o seu fim”, ou quando não mais se importa com
a finalidade, apenas com o movimento (o processo) em si (ibidem, p. 18).
Isto é, a oposição e disjuntiva entre reforma e revolução constitui
um caminho “pequeno burguês” (ibidem, p. 19), que quase inexoravel-
mente deriva na renúncia do projeto (da finalidade) socialista, ficando
apenas nas reformas cotidianas.
Para Luxemburgo, quando, na esteira do revisionismo bernstei-
niano, se reduz a luta de classes aos seus objetivos imediatos, sindi-
cais, como o aumento de salários e a redução da jornada de trabalho,
abandona-se a luta anticapitalista e adota-se uma luta orientada “uni-
camente à regularização da exploração capitalista” (ibidem, p. 44) na
esfera do mercado (compra e venda de força de trabalho, enquanto
mercadoria), sendo “vedada a ação sobre o processo de produção”
(ibidem), como as greves e as ocupações de fábrica etc., o que significa
uma luta que, “do ponto de vista econômico, não é um golpe contra
a exploração capitalista, [mas] é simplesmente uma regulação dessa
exploração” (ibidem, p. 49). Assim, continua a autora, “a teoria de Ber-
nstein tira da terra firme o programa socialista, colocando-o em base
idealista” (ibidem, p. 58).
Na verdade, o que seriam os meios (as reformas, as conquistas den-
tro da legalidade, da democracia, do mercado) de uma luta revolucio-
nária, o revisionismo reformista de Bernstein transforma em finalidade.
De acordo com Luxemburgo:
Segundo a concepção revisionista, dados a [suposta] impossibi-
lidade e inutilidade dessa conquista de poder [revolucionária],

325
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

devem a luta sindical e a luta parlamentar [e hoje poderíamos


acrescentar a luta da sociedade civil] ter em vista exclusivamente
resultados imediatos, isto é, a melhoria da situação material dos
operários, além da redução por etapas da exploração capitalista e
extensão do controle social (ibidem, p. 58-59, grifos nossos).

É a partir dessa necessidade reformista de tornar a luta política


uma luta que visa a resultados imediatos, que “a luta cotidiana […]
perde, em última análise, toda relação com o socialismo” (ibidem, p.
60) e com a luta anticapitalista. Como afirma a autora, “se se fizer das
reformas um fim em si, não só estas não conduzem à realização do ob-
jetivo final socialista, mas precisamente conduzirão ao seu contrário”
(ibidem), a saber, a legitimação e a reprodução da ordem social vigente.
É aqui que o marxismo, como método de análise científica dos
fundamentos do capitalismo, e como base do “socialismo científico”
(não utópico) (ver ENGELS, in MARX e ENGELS, 1975, p. 5 e ss.) e
do “ponto de vista da classe” trabalhadora, tornar-se-á cada vez mais
enfrentado ao projeto reformista, em função e “a partir do momento
em que os resultados práticos imediatos venham a constituir a finalida-
de principal. A consequência direta será a adoção de uma ‘política de
compensações’ […] uma ‘política de barganha’, e uma atitude concilia-
cionista” (LUXEMBURGO, 2003, p. 61).
O objetivo reformista, transformado em finalidade, não está mais
na superação das contradições do capitalismo, particularmente da ex-
ploração, mas na atenuação dessas contradições, como uma espécie de
paliativo para as sequelas do capitalismo (ibidem, p. 63 e 68). Ainda con-
forme a autora, as reformas, no fundo, “não tendem elas à realização da
ordem socialista, mas unicamente à reforma da ordem capitalista, não à
supressão do assalariado, mas à diminuição da exploração, em suma,
[à] supressão dos abusos do capitalismo, e não do próprio capitalismo”
(ibidem, p. 97).
Esse abandono do projeto socialista, da luta anticapitalista, trans-
formando meios (reformas) em finalidades, sustenta-se no concomitan-
te abandono da contradição de interesses de classe. Isto é, se a fina-
lidade é melhorar, “humanizar” o capitalismo, então o que era uma

326
CAPITULO 7

contradição de classes – a exploração de uma pela outra (insuprimível


na ordem burguesa) –, agora são diferenças entre as classes (passíveis de
serem alteradas mediante reformas dentro da ordem).
Dessa forma, como se estivesse concordando com o conceito de
classe em Weber (ver item 6.3-A-c), assim como com o “identitarismo”
pós-moderno (ver item 2.6), “Bernstein não entende por capitalista uma
certa categoria da produção, mas sim do direito de propriedade, não
uma unidade econômica, mas uma unidade fiscal, e por capital, não
um fator da produção, mas simplesmente certa quantidade de dinhei-
ro” (ibidem, p. 72), “transportando a noção de capitalista, das relações
de produção para as relações de propriedade […], da relação entre o
Capital e o Trabalho, para a relação entre ricos e pobres” (ibidem, p.
73). Isto é, as lutas deixam de se centrar na contradição de classes, fo-
cando-se na diferença entre elas. Bernstein, como afirma Luxemburgo,
apenas busca a “transformação dos pobres em ricos” (ibidem, p. 74);
uma “transformação” de indivíduos em torno de suas diferenças, sem
qualquer impacto estrutural. Assim, as políticas, o direito e o acesso a
bens e serviços constituem e esgotam a finalidade do projeto reformista
de Bernstein, tanto quanto do “identitarismo” pós-moderno.
Para Bernstein, as lutas sociais visam alcançar, dentro do capita-
lismo, “um modo de repartição ‘justo’” (ibidem, p. 85). Não se trata de
uma transformação na esfera das relações de produção (exploração),
mas na esfera do mercado e da distribuição da riqueza. Ainda, trata-se
de um projeto, claramente fundado no que Marx e Engels chamaram
de “crítica romântica” ao capitalismo, visivelmente moralista, sustenta-
do na avaliação do que seria uma distribuição considerada “justa” ou
“injusta”. Um projeto sustentado na moralização da realidade e dos
objetivos, tal como (conforme vimos nos capítulos 2 e 3) a “lógica iden-
titarista” pós-moderna moraliza as relações e as lutas sociais.
Conforme aponta a marxista polonesa, realmente a injustiça pro-
duto da desigual distribuição da riqueza é o que impacta diretamente
na vida das pessoas, levando-as a lutar por melhores condições de
vida (ibidem, p. 85). Porém as análises de Marx nos permitem alcançar
a compreensão de que “o modo de repartição de determinada épo-
ca não é mais [do] que uma consequência natural do modo de pro-

327
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

dução dessa época” (ibidem). A distribuição da riqueza é produto da


exploração pelo capital do valor produzido pelo trabalho, gerando
acumulação em um lado e pauperização (absoluta ou relativa) no ou-
tro. A exploração que funda as relações de produção no capitalismo
é a causa que determina a distribuição da riqueza; assim, as lutas cen-
tradas na distribuição, mas que abandonam a perspectiva das relações
de produção, são meramente paliativas. Dessa forma, ao contrário do
projeto reformista de Bernstein – assim como da inclusão identitarista
pós-moderna (ver item 4.2) –, o projeto revolucionário emancipatório
“não luta contra a repartição [distribuição] nos quadros [contexto] da
produção capitalista, e sim tendo em vista a supressão da própria
produção capitalista” (ibidem, p. 86).
Com tudo isso, Luxemburgo chega à sua conclusão sobre o revi-
sionismo e o reformismo de Bernstein. Conforme ela afirma, no seio
do capitalismo não pode existir produção cooperativa (ibidem, p. 107)
(a não ser subordinada à lógica capitalista), o que faz com que Berns-
tein renuncie à socialização dos meios de produção e aspire apenas à
reforma do comércio, mediante o acesso a bens e serviços (ibidem, p.
107-108), isto é, o reformismo dele se satisfaz com mudanças jurídicas
(e não econômicas) na esfera do consumo, deixando intacta a esfera das
relações de produção. Com tudo isso, como ela sustenta, Bernstein aca-
ba abandonando a própria “luta de classe e proclama a reconciliação
com o liberalismo burguês” (ibidem, p. 108).
É assim, conclui, que “Bernstein desce de A a Z”: “Começou por
abandonar o objetivo final do movimento”, a revolução social e a su-
peração da ordem burguesa, e, como não pode haver movimento re-
volucionário “sem finalidade socialista, vê-se forçado a renunciar ao
próprio movimento” (ibidem, p. 109).
Dando continuidade à dissecação do reformismo bernsteiniano,
quase como se estivesse tratando do ecletismo pós-moderno, disfar-
çado de pluralismo, Luxemburgo afirma que Bernstein trabalha com
vários autores, incluindo Marx e os marxistas, e que “de cada um tirou
ele um pouco”, porém, “ao abandonar o ponto de vista de classe, per-
deu ele o compasso político; ao abandonar o socialismo científico” ele
só conseguia ver “fatos isolados” (ibidem, p. 110), trocando a dialética

328
CAPITULO 7

pela “gangorra intelectual do ‘por um lado – pelo outro’” (ibidem, p.


111-112), e finalmente trocando “a linguagem histórica do proletaria-
do pela da burguesia”, “classificando de ‘cidadãos’, indistintamente, o
burguês e o proletário” (ibidem, 112).
Assim, em síntese, o projeto reformista, que renuncia à finalidade
anticapitalista, sustenta-se na “noção moral da justiça”, não na desi-
gualdade social fundada na exploração capitalista, “na luta contra o
modo de repartição” ou distribuição, não nas relações de produção em
que se funda a distribuição da riqueza, não na distinção “entre pobres
e ricos”, não na contradição de classes (ibidem, p. 115).
Contrariamente, o projeto revolucionário, que incorpora todas
as reformas no caminho para a construção do socialismo, envolve “a
união de grandes massas populares para uma finalidade que ultrapassa
toda a ordem social existente, a união da luta cotidiana com grande reforma
mundial” (ibidem, 117).
Não se trata, portanto, de optar entre reforma ou revolução, mas de
articular: reformas e revolução. De igual forma, não se trata de escolher
entre lutas antiopressivas ou contra a exploração, mas de apostar na
articulação de ambas, no caminho para a plena emancipação humana.
b) As “guerras” de posição e movimento, a partir da análise do Es-
tado ampliado de Gramsci.68 Para Gramsci, com a socialização da políti-
ca no cenário do capitalismo monopolista, o Estado “integral” ou “amplia-
do” se forma na conjunção de uma sociedade política (Estado strito sensu ou
Estado-coerção) com uma sociedade civil (esfera da disputa da hegemonia
e do consenso) (ver COUTINHO, 1994, p. 56). Assim, diz Gramsci:
na noção geral de Estado entram elementos que devem ser reme-
tidos à noção de sociedade civil (no sentido, seria possível dizer,
de que Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hege-
monia couraçada de coerção) (GRAMSCI, 2000b, p. 244).

A natureza de classe do Estado e sua função de conservar os inte-


resses particulares dessa classe por meio da repressão, como registrado
por Marx e Engels e depois por Lênin, são afirmações conservadas por
Gramsci. Ele denomina de “sociedade política” a esfera estatal cuja fun-
68 Baseado em MONTAÑO e DURIGUETTO (2010, p. 42-49).

329
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

ção é a dominação de uma classe, conformada pelo conjunto de aparelhos


de coerção e repressão através dos quais as classes dominantes impõem
coercitivamente sua dominação (mediante o aparato policial e militar,
o sistema judiciário e administrativo).
No entanto, para o autor, nesse novo cenário do século XX, o Esta-
do não era mais somente o aparelho repressivo da burguesia, passan-
do a incluir uma nova esfera, uma nova função, a de direção social, de
consenso, de hegemonia, no âmbito do que chamou de sociedade civil, que
seria composta de aparelhos privados de hegemonia, ou seja, organismos
sociais aos quais a população adere voluntariamente e que represen-
tam os diversos interesses dos atores (particularmente das classes) que
a compõem. Esse é o espaço por excelência, na nova fase do capitalis-
mo, de socialização da política, das lutas de classes.
Porém, como afirma Virginia Fontes,
não há isolamento da sociedade civil com relação ao mundo da
produção. Este constitui o solo da sociabilidade a partir da qual se
produzem interesses e antagonismos, se forjam as agregações de
interesses e vontades, se produz a subordinação fundamental [...].
O conceito de sociedade civil liga-se ao terreno das relações
sociais de produção, às formas sociais de produção da vontade
e da consciência e ao papel que, em ambas, exerce o Estado. [...]
A sociedade civil é o momento organizativo a mediar as re-
lações de produção e a organização do Estado, produzindo orga-
nização e convencimento (FONTES, 2007, p. 211-212).

Esse consentimento, ou consenso, que garante a direção social do


setor hegemônico, não exclui, para Gramsci, o conflito, o antagonismo,
o dissenso entre as classes e os grupos sociais; eles são, antes, parte
constitutiva do consenso. O consenso, para este autor, pressupõe o con-
flito, é o resultado deste.
Ou seja, a sociedade civil gramsciana faz parte do Estado (a su-
perestrutura), que por sua vez é permeado pelos interesses e conflitos
das classes sociais conformadas na estrutura econômica. A sociedade
civil expressa a articulação dos interesses das classes pela inserção eco-
nômica, mas também pelas complexas mediações ideopolíticas e so-

330
CAPITULO 7

cioinstitucionais (COUTINHO, 1992, p. 73). Essa articulação da socie-


dade civil, como momento superestrutural, com a base econômica e os
interesses oriundos dela invalida qualquer leitura (liberal, formalista,
politicista ou pós-moderna) da obra de Gramsci.
É a partir da distinção e da articulação entre sociedade política e
sociedade civil, conformando um Estado ampliado, que Gramsci vai
formular os fundamentos da sua original teoria revolucionária de tran-
sição ao socialismo.
Para tanto, ele distingue dois tipos de formação social: as “socieda-
des de tipo oriental” e as “sociedades de tipo ocidental”.
A sociedade de tipo “oriental” (a exemplo da Rússia czarista) é
aquela onde não se desenvolveu uma sociedade civil forte e articulada,
mas “primitiva e gelatinosa”, comandada pela sociedade política e pela
lógica da dominação e coerção; nela, as lutas de classes são travadas
tendo em vista a conquista (pelos setores dominados) ou a conservação
(pela classe dominante) do Estado em sentido estrito. O processo re-
volucionário nessas sociedades, em conformidade com as concepções
de Marx e de Lênin, dá-se, segundo Gramsci, mediante a “guerra de
movimento” (ou “guerra de manobra ou frontal”), um choque frontal,
explosivo, com vistas à tomada do Estado, a partir da qual se operará o
conjunto de transformações sociais e econômicas. Isto é, numa relação
de precedência, primeiro lutar-se-ia pelo controle do Estado, para só
depois operar o conjunto de transformações sociais e econômicas.
No entanto, o tipo de sociedade denominada “ocidental” é aque-
la onde a política sofreu significativa socialização, com uma relação
equilibrada entre a “sociedade política” e a “sociedade civil”, sendo a
sociedade civil o terreno das lutas de classes, a partir do crescimento
dos “aparelhos privados de hegemonia”. Nela, as lutas de classes po-
dem se orientar para uma classe dar a direção social, para a obtenção
do consenso, para a hegemonia, mesmo antes da tomada do poder do
Estado – é necessário, afirma Coutinho, “que a classe que se candidata
ao domínio político já seja previamente hegemônica no plano ideoló-
gico” (1994, p. 59). Nesse caso, diferentemente do anterior, o centro do
processo revolucionário dar-se-á como uma progressão de conquistas
de espaço no seio e através da sociedade civil numa “guerra de posição”

331
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

(GRAMSCI, 2000b, p. 261-262; ver também COUTINHO, 1994, p. 57-


58). Isto é, primeiro se assumiria a hegemonia ideológica da sociedade
civil, antes mesmo de se transformar a base econômica.
Certamente o identitarismo pós-moderno faz uma apropriação
tergiversada da “guerra de posição”, centrando a luta numa abstrata
“sociedade civil”, sem se preocupar com o Estado nem com as relações
econômicas de produção. Ora, para Gramsci, não só a sociedade civil
pertence à esfera estatal (e não independentemente dela), como seus
grupos e interesses se constituem a partir do interesse de classe oriun-
do das contraditórias relações de produção.
Assim, a noção de hegemonia como “direção intelectual e moral”
assume relevância central na estratégia da “guerra de posição”. O con-
ceito se refere tanto ao processo em que uma classe se torna dirigente,
quanto à direção que a classe no poder exerce sobre o conjunto da
sociedade. A hegemonia (que não se confunde com mera dominação)
expressa a direção e o consenso ideológico (de concepção de mundo)
que uma classe consegue obter dos grupos próximos e aliados. Ou
seja, constituir-se como classe hegemônica significa construir e organi-
zar interesses comuns e “tornar-se protagonista das reivindicações de
outros estratos sociais” (GRUPPI, 1991, p. 59). A conquista progressiva
de uma unidade político-ideológica – de uma direção de classe – re-
quer, assim, a busca do consenso dos grupos sociais aliados, alargan-
do e articulando seus interesses e suas necessidades na superação dos
seus limites corporativos.
Esse é o processo e o momento que Gramsci denomina de “catar-
se”, isto é, “a passagem do momento meramente econômico (ou egoís-
tico-passional) ao momento ético-político, isto é, a elaboração superior da
estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI,
2001, p. 53).
Estamos nos referindo aqui aos processos de formação de uma
contra-hegemonia; pois hegemonia significa o predomínio ideológico
das classes dominantes sobre a classe subalterna na sociedade civil:
“A hegemonia compreende as tentativas bem-sucedidas da classe do-
minante em usar sua liderança política, moral e intelectual para im-
por sua visão de mundo como inteiramente abrangente e universal,

332
CAPITULO 7

e para moldar os interesses e as necessidades dos grupos subordina-


dos” (CARNOY, 1990, p. 95).
Para Gramsci, a constituição da hegemonia das classes subalternas
requer a intensa “preparação ideológica das massas”, a construção de
uma nova concepção de mundo, de uma nova forma de pensar (“refor-
ma intelectual e moral”). Nesse sentido, a hegemonia, como “direção in-
telectual e moral”, incorpora uma dimensão educativa, na medida em que
a formação de uma consciência crítica é um dos alicerces da ação política que
procura conquistar a hegemonia.
A construção do consenso é, para Gramsci, a busca das aspirações e
das demandas que estão dispersas no largo arco das classes subalternas;
é saber direcioná-las em um programa e uma direção política concre-
tos, numa perspectiva universal. Significa saber convencer, persuadir,
ganhar adesão pelo envolvimento ativo e não pela manipulação e pas-
sividade. Daí a importância que Gramsci atribui ao trabalho ideológico
dos intelectuais orgânicos na construção ou manutenção da hegemonia.
Desse modo, a própria ação (contra-)hegemônica exige, como seu
pressuposto material-organizativo, uma práxis política consciente, co-
letiva e articulada com as classes subalternas. Como afirma Coutinho
(2006, p. 55), há uma “dimensão nitidamente política” no “conceito
gramsciano de sociedade civil, revelando sua articulação dialética com
a batalha pela hegemonia e pela conquista do poder por parte das clas-
ses subalternas”.
Pelo exposto, para Gramsci (2002, p. 62-63), a classe que se propõe
uma transformação revolucionária da sociedade (de tipo ocidental)
pode e deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governamen-
tal, sendo que essa é uma das principais condições para a própria con-
quista do poder. No entanto, ser dirigente no campo da sociedade civil,
ainda que necessário, não implica a completa realização política, con-
tinua sendo fundamental a tomada do poder político estatal por parte
das classes subalternas, criando no Estado um novo “bloco histórico”.
● A partir do exposto, podemos observar que, no campo progres-
sista, ou da “esquerda” (em sentido muito amplo), temos que diferen-
ciar não dois, mas três projetos societários: o projeto a) revolucionário, b)
o reformista revolucionário e c) o reformista (conservador).

333
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Mesmo se confundindo, o primeiro e o segundo projetos, nas suas


finalidades, o socialismo, e nos seus fundamentos anticapitalistas, no en-
tanto, eles se diferenciam no caminho e no meio: enquanto o projeto “re-
volucionário”, visa a uma transformação abrupta e violenta, mediante
a tomada do Estado (numa “guerra de movimento”, conforme Grams-
ci) e o exercício da chamada “ditadura do proletariado” (isto é, a ins-
trumentalização do Estado pelo proletariado para promover as trans-
formações na base econômica e na superestrutura jurídica e política);
por sua vez, o “reformismo revolucionário” adota a via pacífica, legal,
democrática, numa “guerra de posição” (Gramsci), dentro da ordem,
para ir conquistando objetivos, alcançando a “emancipação política”
(Marx) mediante reformas (Luxemburgo) que visem à construção pau-
latina do socialismo. Porém, é preciso frisar, ambos constituem cami-
nhos, processos e meios diferentes para a mesma finalidade, a supe-
ração da ordem burguesa, e portanto ambos são projetos finalmente
anticapitalistas e revolucionários.
Por seu turno, mesmo se confundindo no caminho, nos meios, nas
táticas de luta, nos objetivos imediatos, o processo de reformas, no entan-
to, o segundo e o terceiro se diferenciam substancialmente no projeto
e na finalidade. Assim, enquanto o projeto “reformista revolucionário”
constitui um projeto anticapitalista, visando à transformação social e
à construção de uma sociedade socialista, a finalidade do projeto “re-
formista” se esgota nos seus próprios objetivos imediatos, dentro da
ordem burguesa, e por isso ele é essencialmente “conservador”. Tra-
ta-se, este último, de um projeto liberal, uma democracia liberal que
regule as relações sociais e “melhore” a distribuição da riqueza, mas
perpetuando a ordem, sendo assim um projeto dentro e reprodutor da
ordem burguesa.
Nesse sentido, podemos claramente pensar nas lutas antiopres-
sivas particulares, ditas “identitárias”, como processos do reformismo
revolucionário, como certamente também o são as lutas sindicais eco-
nômicas (por melhora salarial, redução da jornada de trabalho, con-
dições contratuais, direitos trabalhistas etc.), fundadas na perspectiva
anticapitalista, no projeto emancipatório, na construção de um novo
ordenamento social, no socialismo. A questão fulcral aqui radica em

334
CAPITULO 7

quão revolucionárias ou reprodutoras essas reformas são, o quanto


elas contribuem para a superação do capitalismo e para a construção
de uma nova ordem social, ou o quanto elas reforçam e legitimam a
ordem burguesa; a linha divisória aqui é tênue, móvel e sujeita a longas
e acaloradas polêmicas.
No entanto, a “lógica identitarista” pós-moderna, sem qualquer
sombra de dúvida, insere-se no projeto (meramente) reformista, que es-
gota sua finalidade nos próprios objetivos imediatos, na conquista di-
reta de reformas no plano jurídico, no acesso a bens e serviços, na inclu-
são, tudo dentro e legitimando a ordem burguesa. Por isso ela é “reformista”
em questões pontuais, mas conservadora em relação à estrutura social.
Nessa lógica, que polariza sujeitos na ação política, mas abandona
a luta estrutural de classes, o fundamento utópico desse projeto refor-
mista está na crença de que os benefícios da sociedade capitalista – o
bem-estar, o sucesso, a riqueza, o acesso a bens e serviços, o lazer – po-
dem ser generalizados, a tal ponto que deixariam de existir privilégios
e privilegiados, opressão e opressores. Ora, o fundamento da socieda-
de capitalista não é a opressão, mas a contradição da exploração, que
gera uma profunda desigualdade econômica, a qual se expressa em
diversas formas e relações sociais. Sem superar a exploração, portanto,
a eliminação da opressão não passa de uma utopia ilusória.

B) Emancipação política e humana: a questão (da “identidade”)


judaica em Marx
A sociedade capitalista, por ser uma sociedade de classes, é es-
truturalmente e irremediavelmente desigual, envolvendo múltiplas
formas de opressão e discriminação. A supressão da desigualdade
exige a superação das determinantes estruturais dessa sociedade, ou
seja, a transformação da ordem. Porém há um conjunto de alterações,
reformas e conquistas realizadas a partir do embate das lutas sociais,
de classe e antiopressivas, ainda dentro da ordem capitalista, que po-
dem (e devem) ser realizadas em prol de melhores condições de vida
para a classe trabalhadora e para os setores subalternos. Isso nos põe
diante da questão da emancipação, tanto como um fim quanto como
um processo.

335
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Uma rápida observação mostra-nos um uso indiscriminado desse


termo, remetendo a questões diversas: emancipação jurídica, emanci-
pação pela educação, pela cidadania, pela descolonização do “mundo
da vida”, pela “inclusão social”, emancipação da mulher, de uma na-
ção, de um grupo particular etc. Parece, assim, que a emancipação seria
o resultado de praticamente qualquer conquista de direitos sociais ou
políticos, ou da redução de certas formas de desigualdade. Por esse
motivo, vários autores – como Boaventura de Sousa Santos (1995, 2007)
– falam de uma abstrata “emancipação social”, sem caracterizá-la con-
cretamente. Afinal, o que é e em que consiste a emancipação?
Para não cair no equívoco de imaginar que qualquer conquista
representaria a emancipação em si, precisamos recorrer à diferenciação
que Marx faz entre emancipação política e humana em A questão judaica
(2010) e em Manuscritos econômicos e filosóficos (2001).
Como é sabido, A questão judaica de Marx é uma resposta a Bruno
Bauer, para quem o judeu na Alemanha constituía um “gueto” discri-
minado social e politicamente, que para se emancipar politicamente (e
adquirir a cidadania plena) deveria antes se emancipar da sua religião,
ou seja, abandonar suas crenças religiosas, renunciando assim à sua iden-
tidade como judeu. Dessa forma, conforme Marx aponta, a solução de
Bauer para o antagonismo religioso está na eliminação da religião (2010,
p. 34). Logo, afirma nosso autor: “Bauer exige, portanto, por um lado,
que o judeu renuncie ao judaísmo, [e] que o homem em geral renuncie à
religião, para tornar-se emancipado como cidadão” (ibidem, p. 36). Ou seja,
a solução de Bauer para a discriminação do judeu, ou para a relação de
opressão e discriminação, passaria pela renúncia daquele atributo que o
torna diferente: a religião. Para serem “cidadãos”, Bauer propõe que os
sujeitos renunciem àquilo que os diferencia, nesse caso, sua religião.
Questionando e problematizando essa “solução” apresentada por
Bauer, Marx propõe então distinguir a “emancipação política” da “eman-
cipação humana”.
Assim, o autor entende que a questão judaica (e religiosa em geral)
tem a ver com o tipo de Estado, se é religioso (como na Alemanha),
constitucional (como na França) ou político (como nos EUA) (ibidem, p.
37). Porém, como nesse último caso, mesmo não havendo um Estado

336
CAPITULO 7

religioso, mesmo existindo a emancipação do Estado em face da reli-


gião, trata-se, a sociedade norte-americana, de uma “terra da religiosi-
dade” (ibidem, p. 38). É a partir daí que nosso autor diferencia os dois
tipos de emancipação.
a) A emancipação política. A emancipação política, nessa questão,
constitui a emancipação do Estado da religião, mesmo que o homem con-
tinue sendo religioso. Segundo afirma Marx: “A emancipação política
do judeu, do cristão, do homem religioso de modo geral consiste na
emancipação do Estado em relação ao judaísmo, ao cristianismo, à reli-
gião como tal” (ibidem, p. 38).
A emancipação política, portanto, é a emancipação no âmbito do
Estado, no plano jurídico e político, mesmo que o homem ainda não
tenha se emancipado. O Estado se emancipa antes que o homem o faça.
Esse é, portanto, “o limite da emancipação política”, expresso “no fato
de o Estado ser capaz de se libertar de uma limitação sem que o homem
realmente fique livre dela, no fato de o Estado ser capaz de ser um Estado
livre […] sem que o homem seja um homem livre” (ibidem, p. 38-39).
Ou seja, o Estado pode ser livre, ainda que o cidadão não o seja;
o Estado pode se emancipar da religião (formando um Estado laico),
mesmo que os homens e as mulheres tenham e pratiquem sua religião;
o Estado anula a propriedade privada, constituindo a propriedade pú-
blica, mesmo que a propriedade privada ainda exista na sociedade civil
(ibidem). Dessa forma, continua Marx:
A emancipação política de fato representa um grande progresso;
não chega a ser a forma definitiva de emancipação humana em
geral, mas constitui a forma definitiva da emancipação humana
dentro da ordem mundial vigente até aqui. Que fique claro: esta-
mos falando aqui de emancipação real, de emancipação prática.
O homem se emancipa politicamente da religião, banindo o
direito público para o direito privado. Ela não é mais o espírito
do Estado (ibidem, p. 41).

Quer dizer, a emancipação política radica no fato de que, se essas


questões – a religião, a propriedade privada, as diferenças – persistem
entre as pessoas, dentro da sociedade civil, da esfera econômica, da

337
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

vida privada – do Estado, no entanto, elas foram banidas. A emanci-


pação política é a emancipação do Estado das questões particulares que
diferenciam as pessoas. Dessa forma, os indivíduos emancipam-se po-
liticamente, em relação às diferenças, quando o Estado trate indiferen-
ciadamente os sujeitos, sem distinção de raça, sexo, religião, orientação
sexual etc. A emancipação política, nesse sentido, não elimina as dife-
renças entre os sujeitos, mas elimina o tratamento desigual do Estado
(aqui nos remetemos às questões tratadas no item 6.1).
Emancipação política significa, portanto, o tratamento igualitário
por parte do Estado a todos os indivíduos de diferentes religiões.
A emancipação do Estado da religião, afirma Marx, é o “modo po-
lítico de se emancipar da religião” (ibidem, p. 42), e complementa: “A
emancipação do Estado em relação à religião não é a emancipação do
homem real em relação à religião” (ibidem, p. 46). Para nosso autor, o
“Estado consumado”, o Estado plenamente desenvolvido, é o “Esta-
do ateu [o Estado laico], o Estado democrático”, contrariamente o “assim
chamado Estado cristão nada mais é do que o não Estado” (ibidem, p. 42),
um “Estado incompleto” (ibidem, p. 43), não emancipado.
A “emancipação política” do judeu, do religioso, não exige, por-
tanto, o abandono individual da crença (ou de qualquer “identidade”)
(como sustenta Bauer), mas exige que o Estado, esse sim, renuncie e
não possua uma religião ou “identidade” específica, tornando-se um
Estado laico, que trata igualmente todas as religiões e todas as formas
de “identidades”. Nessa luta (da emancipação política), o alvo não é
o indivíduo diferente, mas a estrutura jurídica e política que funda a
cultura segregacionista, discriminatória, opressora e desigual.
Dessa forma, Marx mostra claramente que a emancipação dos ju-
deus não é uma questão (apenas) dos judeus, mas do Estado, caracte-
rizando não a emancipação de um grupo específico (os judeus) mas de
toda a sociedade.
Marx destaca, ainda, a importância civilizatória da emancipação
do Estado, representando “um grande progresso” e constituindo uma
forma de emancipação dentro da ordem, uma emancipação política. Po-
rém, afirma, se ela constitui um importante “progresso”, no entanto,
não tenhamos ilusões quanto ao limite da emancipação política. A ci-

338
CAPITULO 7

são do homem em público e privado, o deslocamento da religião do Estado


para a sociedade burguesa [sociedade civil], não constitui um estágio,
e sim a realização plena da emancipação política, a qual, portanto, não
anula nem busca anular a religiosidade real do homem (ibidem, p. 42).
Marx compreende claramente que a emancipação política não se
identifica e não se confunde, como causa e efeito, com a emancipação hu-
mana, e nem deriva mecanicamente dela. Assim, ele afirma: “A emanci-
pação política não é por si mesma a emancipação humana” (ibidem, p. 46),
nem uma fase para alcança-la mecanicamente.
Marx avança distinguindo duas dimensões ou partes dos direitos
humanos, afirmando que: os “direitos humanos são em parte direitos
políticos” (ou do cidadão) que no entanto são “exercidos em comunhão
com outros […] na comunidade política, no sistema estatal” (ibidem, p.
47). A outra parte dos direitos humanos são os “direitos do homem” –
distintos dos “direitos do cidadão”, dos “direitos políticos” –, que abran-
gem, por exemplo, a liberdade de consciência e de participar de algum
culto (ibidem), ou seja, direitos de foro íntimo, individuais, pertencentes
ao “membro da sociedade burguesa”, isto é, o “homem egoísta […] separa-
do do homem e da comunidade” (ibidem). A liberdade (enquanto direi-
to do homem), por exemplo, é a liberdade individual, desde que não pre-
judique o outro; constituindo a essência da ordem burguesa: o outro é
o limite da minha liberdade (ibidem, p. 49).
Portanto, complementa o autor, “nenhum dos assim chamados di-
reitos humanos transcende o homem egoísta” (membro da sociedade
burguesa, recolhido à sua individualidade e distante da comunidade);
“não o homem como citoyen [cidadão]; assim, o homem como burgeois
[burguês] é assumido como homem propriamente dito e verdadeiro (ibi-
dem, p. 50). Esse homem, ele continua, membro da sociedade burguesa,
é que passa a ser “a base, o pressuposto do Estado político” (ibidem, p.
52). Consequentemente, afirma Marx:
O homem não foi libertado da religião. Ele ganhou a liberdade
de religião. Ele não foi libertado da propriedade. Ele ganhou a
liberdade de propriedade. Ele não foi libertado do egoísmo do
comércio. Ele ganhou a liberdade de comércio (ibidem, p. 53).

339
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Pois bem, a análise sobre a particularidade da “questão judaica”


pode ser estendida a outros aspectos dos direitos humanos, sociais,
trabalhistas, políticos, como direitos do cidadão, expressando a eman-
cipação política na garantia política, no âmbito estatal, de tais direitos,
mesmo que ainda, no âmbito privado, da sociedade burguesa, não al-
cancem a esfera privada, a sociedade civil, o mercado.
Assim, as conquistas de direitos civis e políticos (direito de ir e vir,
de organização, de representação etc.), de direitos trabalhistas e sociais,
o desenvolvimento da cidadania (ver MARSHALL, 1967) e da democra-
cia (formal ou liberal), constituem e representam avanços em torno da
“emancipação política”. Em igual sentido, a conquista de igualdade nas
lutas antiopressivas contra o machismo, o racismo, a xenofobia, a LGB-
Tfobia, a intolerância religiosa etc., representam, sim, formas de eman-
cipação política.
Porém elas não expressam a superação das diferenças entre os
sujeitos, mas o tratamento indiferenciado do Estado em face delas,
assim como o controle estatal sobre as formas de opressão e discrimi-
nação, mediante a garantia legal de que a liberdade de um indivíduo
não represente a supressão da liberdade do outro. Isto é, mesmo re-
presentando importantes avanços civilizatórios, em tanto formas de
emancipação política, por exemplo, as conquistas das “cotas raciais” e
do “casamento igualitário” (hétero e homoafetivo), ou a criminaliza-
ção da violência doméstica, elas, no entanto, não significam o fim do
racismo, do machismo ou da “homofobia”; não atingem a emancipação
humana.
A emancipação política remete, portanto, ao conjunto de direitos po-
líticos e sociais que garantem a “liberdade” e a “igualdade” formais (ju-
rídicas) dos cidadãos. Dessa forma, ela sem dúvida representa conquis-
tas importantes no progresso dos direitos e das (formais) igualdades
humanas , mas realiza-se no interior da ordem social comandada pelo
capital (assim como da estrutura patriarcal, racista etc.), e portanto na
manutenção de um sistema e de uma cultura estruturalmente desiguais.
A emancipação política não é incompatível com o MPC. A luta pela
emancipação política não é necessariamente uma luta anticapitalista,
nem contra o sistema de desigualdade e opressão.

340
CAPITULO 7

A “emancipação política” é, portanto, fundamental para atingir a


“emancipação humana”, mas não corresponde a ela, nem é garantia
para sua conquista.
b) A emancipação humana. Por seu turno, a emancipação humana
é a emancipação do sujeito, do ser humano, não do homem e da mulher
egoísta, burguês (membro da sociedade burguesa), mas do cidadão, ou
melhor, do gênero humano. Nesse sentido, Marx afirma que a eman-
cipação política é a redução do homem, por um lado, a membro da so-
ciedade burguesa, a indivíduo egoísta independente, e, por outro, a
cidadão, a pessoa moral.
Mas a emancipação humana só estará plenamente realizada quando o
homem individual real tiver recuperado para si o cidadão abstrato e se
tornado ente genérico na qualidade de homem individual na sua vida em-
pírica, no seu trabalho individual, nas suas relações individuais, quan-
do o homem tiver reconhecido e organizado suas “forces propres” [forças
próprias] como forças sociais e, em consequência, não mais separar de si
mesmo a força social na forma da força política (MARX, 2010, p. 54).
Assim, a “emancipação humana” só pode existir na superação da
ordem burguesa (e do seu Estado) e das estruturas e culturas de do-
minação e opressão; ela exige, portanto, a eliminação de toda forma
de desigualdade, opressão, dominação e exploração, reunindo novamente o
produtor e os meios de produção.
Nesse sentido, mesmo que persistam as diferenças pessoais, de
orientação sexual, de gênero, de etnia, de religião etc., sim superar-
-se-á a desigualdade, as relações desiguais, de dominação e opressão,
entre eles. Nesse sentido, sobre a particularidade das relações de pro-
dução, Marx afirma nos seus Manuscritos econômico-filosóficos, que “A
supra-sunção [supressão] da propriedade privada é, por conseguinte,
a emancipação completa de todas as qualidades e sentidos humanos […]
(idem, 2004, p. 142). E continua: “o comunismo é a posição [a fase] como
negação da negação, e por isso o momento efetivo necessário da eman-
cipação e da recuperação humanas para o próximo desenvolvimento
histórico” (ibidem, p. 114).
E se a “emancipação política” é compatível com a ordem burguesa,
a “emancipação humana” supõe sua superação.

341
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Mas a construção da “emancipação humana” também pressupõe a


confirmação da “emancipação política”. Não há oposição, portanto, en-
tre “emancipação política” e “emancipação humana”, porém também
não há vinculação mecânica entre ambas. A primeira é pressuposto da
segunda, mas não a garante. Conforme já foi dito, emancipação política
não implica emancipação humana (idem, 2010, p. 46), e mais: a emancipa-
ção política não avança para além da emancipação no campo político,
na esfera estatal (ibidem, p. 42). Contrariamente, conquistas em torno da
“emancipação política” não só não combatem o sistema, como podem
ajudar na sua legitimação e reprodução.
Todas as conquistas, no âmbito dos direitos garantidos no Estado,
sobre as diversas formas de desigualdade, de opressão, de exclusão, tor-
nam-se, assim, importantes e fundamentais para o processo da “eman-
cipação política”, mas isso não garante a “emancipação humana”. Para
alcançarem a emancipação humana, essas conquistas devem ir além
do mero espaço estatal e passar a constituir determinações humanas e
universais do ser social.
Não haverá emancipação da “trabalhadora-mulher” numa socie-
dade machista e patriarcal, assim como não haverá emancipação da
“mulher-trabalhadora” numa sociedade capitalista.
Não haverá emancipação do “trabalhador-negro” numa sociedade
racista e xenofóbica, assim como não haverá emancipação do “negro-
-trabalhador” na sociedade capitalista.
A luta anticapitalista não deve caminhar separada da luta contra o
machismo e a desigualdade sexual, da luta contra o racismo e a desi-
gualdade racial e étnica, da luta contra as diversas formas de opressão,
segregação, desigualdade e preconceito. Ela deve reunir todos esses
campos de batalha, voltados no curto prazo contra a forma específica
de desigualdade (para a emancipação política específica) e no longo
prazo contra a ordem burguesa, a sociedade de classes (para a eman-
cipação humana). Curto e longo prazo, aqui, remetem aos resultados,
não aos processos; não se trata de um antes-e-depois, de uma luta que
preceda a outra, mas de lutas e processos concomitantes, alguns com
impactos e resultados de curto prazo, outros representando uma finali-
dade mais distante no tempo.

342
CAPITULO 7

Por seu turno, não se trata (erroneamente) de interpretar a eman-


cipação política como resultado das lutas antiopressivas particulares
(“identitárias”), e a emancipação humana como resultado das lutas de
classe. Ambas as formas de luta (de classe e “identitária”) são constitu-
tivas dos processos de conquistas tanto da emancipação política como
da humana.
A emancipação política exige, portanto, tanto as lutas de classes
como as lutas antiopressivas particulares (“identitárias”). Por seu tur-
no, a emancipação humana, também envolvendo ambas as formas de
luta, visa não só à supressão da desigualdade de classes, a supressão das
classes, como também à manutenção das diferenças individuais, das dife-
rentes “identidades”, porém num contexto de igualdade social, ou seja,
preservando as diferenças / identidades e eliminando a desigualdade. Re-
lembrando as distinções entre as duas dialéticas: diferença / identidade
e igualdade / desigualdade (item 6.1).
As lutas identitárias (ou particulares) são urgentes e fundamentais.
Mas elas em geral operam dentro do horizonte do “direito burguês” e
são, portanto, lutas pela “emancipação política”.
Nesse sentido, Haider afirma que,
quando os direitos são concedidos a indivíduos “vazios”, abs-
tratos, eles ignoram as formas sociais reais de desigualdade e
opressão que parecem estar fora da esfera política. No entanto,
quando as especificidades das identidades lesadas são trazidas
ao conteúdo dos direitos, [Wendy] Brown aponta que elas são
“mais propensas a se tornar lugar de produção e regulação da
identidade como lesão do que veículos de emancipação” (HAI-
DER, 2019, p.140-141).

Essas lutas representam, assim, conquistas pontuais importantes


contra as desigualdades, mas que não impactam na estrutura que as
gera. É o que aponta Wood, ao sentenciar:
A indiferença estrutural do capitalismo pelas identidades so-
ciais das pessoas que explora torna-o capaz de prescindir das
desigualdades e opressões extraeconômicas. Isto quer dizer que,
embora o capitalismo não seja capaz de garantir a emancipação

343
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

da opressão de gênero ou raça, a conquista dessa emancipação


[quando alcançada] também não garante a erradicação do capi-
talismo (WOOD, 2019, p. 241).

E a autora complementa afirmando que, embora as lutas antirracis-


tas e antissexistas se constituam a partir de “identidades” sociais espe-
cíficas, que geram “forças sociais vigorosas”, as conquistas da “igual-
dade racial e de gênero” não são antagônicas ao capitalismo, e nem o
capitalismo é incapaz de tolerá-las (ibidem, p. 229). Ainda, mostrando a
capacidade do capitalismo de conviver com as lutas identitárias, com
a igualdade de direitos e com a superação das formas de opressão e
discriminação em torno dessas “identidades”, a autora sustenta que “a
primeira característica do capitalismo é ser ele incomparavelmente in-
diferente às identidades sociais das pessoas que explora” (ibidem), não
se importando se a origem da mais-valia explorada é de um(a) traba-
lhador(a) homem ou mulher, negro ou branco, nacional ou estrangeiro.

C) Exploração e opressão
O debate político, particularmente de esquerda, muitas vezes tentou
contrapor a categoria de exploração e a de opressão, como se a primei-
ra estivesse meramente vinculada à questão econômica, concebendo uma
superioridade da classe social, enquanto a segunda fosse representante
apenas de fenômenos políticos, representando uma supremacia de outros
sujeitos, como movimentos sociais, família, partidos e “identidades”.
Essa é, certamente, uma falsa e nociva contraposição, já que, na
ordem burguesa, exploração e opressão são fenômenos necessária e
constantemente complementares. Um não pode ser compreendido sem
referência ao outro. Só de forma abstrata podemos conceber, na socie-
dade capitalista, um sem o outro.
Ainda mais, e como já tratamos (item 6.3), falar na centralidade da
classe não significa que ela tenha mais importância do que as outras di-
mensões e relações sociais. Da mesma forma, e em decorrência disso, a cen-
tralidade da exploração não deve secundarizar a relevância das diversas
formas de opressão social. Trata-se, com a centralidade da exploração,
bem como a da classe social, delas constituírem os fundamentos que

344
CAPITULO 7

peculiarizam o modo de produção capitalista, que são, portanto, as fer-


ramentas heurísticas com maior poder explicativo.
Assim, vejamos em que consistem a “opressão” e a “exploração”,
para em seguida tratarmos de seus nexos e articulações.
● Opressão. Como conceito sociológico e político, a “opressão” re-
mete ao ato de oprimir, submeter, subordinar ou dominar os outros. O
conceito é amplamente referenciado a diversas formas de relação, mas
pouco aprofundado como categoria de análise.
Efetivamente, quanto mais abrangente é o conceito, mais abstrato
ele é; e quanto mais abstrato, menos poder conceitual ele tem para es-
clarecer em profundidade e essência os fatos concretos. Isto é, a “opres-
são” é apresentada como fenômeno presente nas diversas e variadas
relações de gênero, de raça, de religião, de classe, de cultura, de polí-
tica, de trabalho, de segurança, entre nações, entre regiões, por status
social etc. Como conceito associado a um conjunto tão vasto e diverso
de relações, a opressão é ampla e abrangente, mas pouco profunda.
A opressão diz respeito às diversas formas de relações sociais de
desigualdade.
Quando se trata a “opressão” nesse sentido tão vasto e abrangente,
ela assume uma forma abstrata, não concreta, e pouco nos diz em que
consiste e como se dá essa relação de opressão. Na reflexão pós-moder-
na, no entanto, o que já era uma categoria abstrata se torna um conceito
indefinido e vago, assim, particularmente nas relações de opressão em
torno de “identidades”, o conceito é empregado indefinidamente para
representar qualquer relação de desigualdade.
Assim, a “opressão” aparece como sinônimo de dominação (esta
sim uma categoria sociológica mais aprofundada, a exemplo de WE-
BER, 2012, p. 141 e ss.), de submissão, de subalternização, de autoritarismo,
de violência, de maltrato, de discriminação, de segregação etc., e ela aparece
igualmente associada a relações interpessoais, entre grupos e segmen-
tos sociais, ou entre nações e regiões.
Já em Marx e na tradição marxista, a “opressão” aparece geral-
mente como categoria abstrata, porém não indefinida, isto é, ela está
presente nas relações entre classes, gêneros e nações, atravessando as
diversas formações sociais.

345
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Para Marx, ao analisar a opressão de classe, toda sociedade de classe


tem produtores de riqueza e usurpadores de riqueza; a relação entre ambos,
que peculiariza cada modo de produção, funda-se num tipo de opressão
que garante, pela força e/ou pela lei, essa usurpação. Em A miséria da
filosofia, ele afirma que “uma classe oprimida é a condição vital de toda
sociedade fundada no antagonismo entre classes” (1985a, p. 159).
Porém, conforme afirma Marx, a produção capitalista diferencia-
-se da pré-capitalista, em parte, em função de que,enquanto a produ-
ção pré-capitalista baseia-se em relações diretas de dominação, servidão e
escravidão, a produção capitalista pressupõe um trabalhador assalariado
livre que vende sua força de trabalho ao capital (1980, p. 383). Na ordem
burguesa, a opressão direta não é central (como na escravidão ou no
feudalismo) para garantir a usurpação do valor, já que o trabalhador,
despojado de todo meio de produção, aceita livremente (compelido
pela necessidade) vender sua força de trabalho, cedendo todo o resul-
tado de sua produção em troca de um salário.
Isto é, a exploração (ou usurpação do valor) do trabalhador assa-
lariado, no MPC, dá-se a partir de um “livre”69 contrato de compra e
venda de força de trabalho, e não de uma relação típica de opressão.
Que a opressão está presente nas relações de exploração é certo, mas
ela não é, no capitalismo e nas relações salariais, fundamento para a
exploração.
Por outro lado, Engels, ao tratar das relações de gênero (para usar-
mos a linguagem atual) próprias da família monogâmica, desde a anti-
guidade até o presente, citando A ideologia alemã, afirma que “a primei-
ra divisão do trabalho é a que se fez entre o homem e a mulher para a
procriação dos filhos” (2002, p. 65), sendo que “o primeiro antagonismo
de classes que apareceu na história coincide com o desenvolvimento do

69 Mesmo que se trate de uma liberdade meramente “formal” ou “negativa”. Conforme


Erich Fromm, trata-se de uma “liberdade de”, desprovida de amarras, constrangimentos ou
obrigações (1983, p. 90 e ss., ou 1980, p. 127 e ss.), ou, segundo Norberto Bobbio, aquela
liberdade “na qual um sujeito tem a possibilidade de agir sem ser impedido, ou de não agir
sem ser obrigado” (1996, p. 48, 49). Porém, sem que esse “livre” contrato salarial envolva
a outra dimensão da liberdade, a “positiva”, que Fromm chama de “liberdade para”, como
realização do eu (FROMM, 1983, p. 205, 209, 210, ou 1980, p. 284, 289, 291), e Bobbbio
entende como aquela “na qual um sujeito tem a possibilidade de orientar seu próprio querer”,
como “autodeterminação” (BOBBIO, 1996, p. 51).

346
CAPITULO 7

antagonismo entre o homem e a mulher na monogamia” (ibidem, p. 65-


66), e completa que, portanto, “a primeira opressão de classes [coincide]
com a opressão do sexo feminino pelo masculino” (ibidem, p. 66).
A “opressão” ainda aparece como categoria nas análises marxis-
tas sobre a questão racial (Florestan Fernandes), sobre a teoria da de-
pendência (Caio Prado Jr., Theotônio dos Santos, Ruy Mauro Marini,
André Gunder Frank, Vânia Bambirra), sobre as funções do Estado
(Lênin, Gramsci), dentre tantas outras questões, relações e fenômenos
sociais.
● Exploração. Por seu turno, a categoria exploração tem basica-
mente duas acepções, e inclusive dois usos em Marx: como conceito
abstrato, por um lado, e como categoria que adquire concretude histó-
rica no MPC, por outro. Vejamos.
Enquanto conceito abstrato, o termo “exploração” remete a uma
diversidade de formas, relações e ações; assim, a “exploração” do tra-
balho escravo, do servo, da mulher, a “exploração” do solo, das minas,
dos recursos naturais, a “exploração” de uma região virgem, a “explo-
ração” da colônia, a “exploração” das capacidades do aluno etc. Nesse
caso, o conceito tem enorme abrangência e muitas vezes está relacio-
nado a juízos morais e de valor, ou, ainda, a uma mera descrição da
utilidade (a ser explorada) que tenha algo ou alguém.
Já como categoria concreta, a exploração é historicamente determi-
nada no seio do MPC, sendo uma categoria heurística central para a
compreensão dos fundamentos da sociedade capitalista.
Trata-se, nesse caso, exclusiva e unicamente de uma relação de pro-
dução, sustentada na particular relação de compra e venda de força de
trabalho, a relação salarial. Portanto, ela constitui uma relação fundante
do modo de produção capitalista.
Assim, a “exploração” propriamente dita remete apenas ao proces-
so peculiar do capitalismo pelo qual o burguês (possuidor dos Meios
de Produção) compra a Força de Trabalho (FT) (de propriedade do tra-
balhador), em troca de um salário. Nessa relação salarial, livremente
acordada entre comprador e vendedor de FT, entre patrão e emprega-
do, entre capitalista e trabalhador, este último produz um excedente,
um valor superior ao seu próprio valor (ao seu salário), uma mais-valia,

347
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sem a qual não haveria interesse do empregador em contratar o traba-


lhador, nem capitalismo industrial.
Aqui, a “exploração”, como categoria concreta do MPC, como fun-
damento das relações capitalistas de produção, representa expressa-
mente o processo mediante o qual o capitalista extrai e se apropria do valor
produzido pelo trabalhador (ver MARX, 1980).
Porém, como já foi dito, se em sociedades pré-capitalistas o pro-
cesso de usurpação da riqueza das mãos de quem a produziu precisa
que os usurpadores oprimam os produtores – pela força ou pela lei,
pela escravidão ou pelos impostos e tributos, como no escravismo,
no feudalismo etc. –, na sociedade capitalista o fundamento e o me-
canismo através dos quais o capitalista usurpa (“explora”) o traba-
lhador não são opressivos. Não o são porque o trabalhador, mesmo
que compelido pela necessidade, vende livremente sua força de tra-
balho em troca de um salário, e ao fazê-lo aliena todo o resultado do
seu labor.
Assim, a exploração de mais-valia não se funda, a princípio, na
opressão, mas no contrato (livre) entre patrão e empregado, compra-
dor e vendedor de FT.
Porém, mesmo a opressão não sendo fundamento da exploração,
esta última não está isenta de formas opressivas sobre o trabalho, seja
na duração extenuante da jornada de trabalho, nas condições de preca-
riedade, insalubridade e insegurança, nas formas de organização mais
intensivas da produção, na definição de salários abaixo do valor da FT
(ficando aquém das necessidades de reprodução pessoal e familiar),
além do comando e controle opressivos dos representantes dos interes-
ses patronais, como capatazes, inspetores, fiscais, gerentes, e certamen-
te o poder opressivo do Estado.
Certamente, a exploração envolve também uma forma de opressão,
que Marx vincula à passagem da subsunção formal à subsunção real
do trabalho ao capital (1969, p. 87 e ss., 1980, p. 379-380). Para Marx,
nessa passagem, o aspecto novo “é a coação que se exerce, isto é, o méto-
do pelo qual o sobretrabalho [do trabalhador] é extorquido” pelo capi-
talista (1969, p. 94). Em outras palavras: “O capital transforma-se, além
disso [do comando sobre o trabalho], numa relação coercitiva, que força

348
CAPITULO 7

a classe trabalhadora a trabalhar mais do que exige o círculo limitado


das próprias necessidades” (1980, p. 354).
Isto é, a exploração envolve uma forma particular de opressão,
mas ela não é propriamente uma (e não se esgota numa) mera rela-
ção de opressão. A opressão aqui está voltada diretamente para uma
questão puramente econômica: o comando e controle (pela burgue-
sia) da produção e da apropriação (usurpação) da riqueza (produzida
pelo trabalhador assalariado).
Em síntese, no MPC, de um lado, a opressão (mesmo que represen-
te formas e relações alheias à produção, como a de raça, de gênero, de
religião etc.) só pode ser compreendida como uma particularidade da
ordem burguesa, assumindo novos contornos e nova funcionalidade
nessa sociedade – sendo portanto, uma categoria atravessada e par-
cialmente determinada pela exploração. Igualmente, de outro lado, a
exploração também não pode ser entendida na sua complexidade, nas
suas múltiplas determinações, sem considerar as diversas formas de
opressão presentes não apenas entre capital e trabalho, mas também
no interior da classe trabalhadora, composta de diversos gêneros, et-
nias, nacionalidades, religiões etc.
Isso nos impõe a necessidade de analisar que tipo de relações e
conexões há entre a opressão e a exploração no MPC.
a) Exploração e opressão: duas categorias diferentes, porém não
excludentes. A partir do que vimos anteriormente, podemos afirmar
que as relações opressivas e discriminatórias entre “identidades”, e as
relações de exploração entre classes, remetem não só a fundamentos
diferentes, mas também a manifestações e representações sociais dis-
tintas. Distintas sim, mas não excludentes ou alternativas.
Assim, nem toda relação de opressão ou dominação se caracte-
riza simultânea e diretamente como exploração, mas a exploração as
determina em última instância no MPC. De igual forma, toda relação
de exploração certamente vem acompanhada de formas de opressão
e dominação. A exploração da mais-valia exige formas ideológicas,
institucionais e estatais de dominação e opressão, além das relações
de opressão que existem no interior das classes.
Porém, como foi mencionado, dados os fundamentos próprios do

349
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

capitalismo – o “trabalhador livre” –, e contrariamente às relações de


produção anteriores, sustentadas direta e explicitamente em relações
de dominação e opressão, as relações capitalistas de produção, a rela-
ção salarial entre capital e trabalho, na medida em que o trabalhador
vende “livremente”, e a partir de seus desejos e suas necessidades,
sua força de trabalho, não haveria nesse caso, diretamente e como
fundamento, uma relação de dominação e opressão. Como afirma
Marx (1980, p. 383), a produção capitalista se diferencia das formas
pré-capitalistas de produzir, em parte porque enquanto a produção
pré-capitalista se sustenta em relações (produtivas) de dominação, ser-
vidão e escravidão, a produção capitalista pressupõe o “assalariado li-
vre”, o trabalhador livre, porém disposto e necessitado (compelido
pela necessidade) de vender sua força de trabalho.
Isto é, tudo parece como se a exploração capitalista fosse um
processo tranquilo, bem aceito pelas partes, “justo”, e portanto sem
a necessidade de mecanismos de opressão e dominação de classes.
Parece, mas não é.
Ora, a princesa Isabel não promulgou a “Lei Áurea” no Brasil,
nem os legalistas do Norte (os yankees) lutaram na Guerra Civil dos
EUA para abolir a escravidão apenas por mero humanismo. Esses
processos foram resultado, por um lado, das lutas da população ne-
gra contra a escravidão e, por outro lado, da necessidade e conveniên-
cia da lógica capitalista de contar com trabalhadores livres, ávidos
para vender sua força de trabalho, passando agora a se autossusten-
tar com seus salários.
Mas por que o capitalismo se funda no “trabalho livre” e, portan-
to, numa relação (de produção) em tese livremente estabelecida entre
o trabalhador e o patrão? Porque o trabalhador no MPC, por ser “li-
vre” e autossustentado, pode ser rapidamente substituído sem qual-
quer custo ou perda para o capitalista, permitindo que os capitalistas
reduzissem os salários aquém das necessidades de sobrevivência e
reprodução do trabalhador individual.
Conforme Marx e Engels sustentam no Manifesto Comunista, “a
história de todas as sociedades […] é a história das lutas de classes”
enfrentando “opressores e oprimidos” (2010, p. 40). No entanto, há um

350
CAPITULO 7

diferença central no fundamento dessa relação de opressão entre as


sociedades pré-capitalistas e a ordem burguesa. Assim, segundo eles
afirmam,
Todas as sociedades anteriores […] se basearam no antagonis-
mo entre classes opressoras e classes oprimidas. Mas para oprimir
uma classe é preciso poder garantir-lhe condições tais que lhe
permitam pelo menos uma existência servil (ibidem, p. 50).

Isto é, nas relações opressivas de produção pré-capitalistas, o


opressor e usurpador do valor produzido precisava garantir a sobre-
vivência do trabalhador (do escravo, por representar patrimônio, ou
do pequeno produtor, por pagar impostos e tributos).
Porém, no capitalismo, o trabalhador assalariado, entanto “livre”,
terá que garantir seu próprio sustento, mediante a venda da sua força
de trabalho. Dessa forma, continuam os autores,
a burguesia é incapaz de continuar desempenhando o papel
de classe dominante e de impor à sociedade […] as condições
de existência de sua classe. Não pode exercer o seu domínio
porque não pode mais assegurar a existência de seu escravo [o
trabalhador assalariado] (ibidem).

É a partir disso que Rosa Luxemburgo vai afirmar que, contraria-


mente à opressão de classes em sociedades pré-capitalistas, nas quais
“este antagonismo encontrava expressão em relações jurídicas” (2003,
p. 98), na ordem burguesa a relação de opressão e dominação de clas-
se não repousa mais “em ‘direitos adquiridos’, e sim em verdadeiras re-
lações econômicas, [pelo] fato de não ser o salário uma relação jurídica,
e sim uma relação puramente econômica” (ibidem, p. 97), na medida
em que “não é o proletariado obrigado por lei alguma a submeter-se
ao jugo do Capital e sim [é levado] pela miséria, pela falta de meios
de produção” (ibidem, p. 99) a seu dispor, sendo assim compelido a
vender sua força de trabalho ao proprietário desses meios.
Ainda mais, ela continua, no capitalismo, especialmente no mo-
nopolismo, além da opressão não repousar em relações jurídicas mas
econômicas (já que a igualdade formal é garantida juridicamente),

351
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

também “a exploração no interior do sistema do salariato não repousa


tampouco em leis”, mas “no fato puramente econômico, de desempe-
nhar a força de trabalho o papel de mercadoria” (ibidem, p. 99) sujeita
a compra e venda, a qual o trabalhador aliena em favor do capitalista
e em troca do salário.
Assim, a partir dessa constatação, Luxemburgo afirma que ne-
nhuma relação de dominação e opressão de classe pode, portanto, ser
passível de “transformação” meramente por meio de reformas legais
(ibidem), pois elas precisam impactar na base econômica, as relações
de produção, simultaneamente a opressão e a exploração.
Ainda, a diferente natureza entre as relações de opressão e de
exploração exige mais uma ponderação. A opressão e a desigualdade
raciais, por exemplo, expressam uma relação entre brancos e negros;
assim como a opressão e a desigualdade de gênero representam uma
relação entre homens e mulheres. Porém pode existir uma relação
sem opressão entre brancos e negros, e entre homens e mulheres, a
partir de uma igualdade social entre os diferentes. Aliás, essa é ban-
deira central das lutas pela igualdade de raça e de gênero. Isto é, ho-
mens e mulheres, e pessoas brancas e negras, não existem em função
da opressão de uns sobre os outros. Mas se existe sim uma relação de
opressão, ela pode ser superada.
O mesmo não ocorre com a questão de classe. A exploração e a
desigualdade de classe expressam uma relação entre a burguesia (do-
nos dos meios de produção) e o trabalhador assalariado (vendedor
de força de trabalho). Porém, por sua natureza, não pode existir nem
o burguês e nem o assalariado (como classes sociais) se eliminada a
exploração de um pelo outro. No capitalismo, a existência de ambas
a classes fundamentais, burguesia e proletariado, só é possível em
função da exploração de um pelo outro. Se eliminada a exploração, a
classe burguesa e a assalariada deixam de existir.
Isto é, enquanto os indivíduos de diferentes “raças” ou etnias,
gêneros, orientações sexuais, crenças religiosas, nacionalidades etc.
podem existir se as relações de opressão que estabelecem entre si fo-
rem superadas, a classe burguesa e a trabalhadora (assalariada) de-
saparecerão no exato momento em que a exploração for suprimida.

352
CAPITULO 7

Mas é preciso frisar que exploração e opressão, além de terem


natureza e fundamentos diferentes, mobilizam de forma diferente as
vivências e representações ideológicas da sociedade.
Isto é, em geral, pelo menos no campo progressista e de certa for-
ma na social-democracia liberal, relações de opressão e discriminação
como o racismo, a misoginia, a LGBTfobia etc., tendem a nos repug-
nar de tal forma que nos convocam à manifestação ou à rejeição; po-
rém a exploração de um trabalhador tende a ser ocultada, ignorada ou
naturalizada, dando-nos a impressão de que é aceitável e normal. Por
esse motivo, muitos autores afirmam que a contradição de classes,
em torno da exploração, não é mais o elemento aglutinador das lutas
sociais, e sim as diversas formas e relações de opressão entre “iden-
tidades”. No entanto, para além das formas ideológicas com que li-
damos com a opressão e a exploração, mobilizando diferentemente
as emoções e vivências, que variam culturalmente, e das formas de
consciência que tenhamos delas, ambas as categorias são fundamen-
tais para pensarmos a realidade no capitalismo, e para organizarmos
as lutas de classes e antiopressivas.
Por tudo o exposto, podemos reafirmar que se tratam de duas
categorias, opressão e exploração, diferentes, mas não alternativas ou
excludentes.
b) Exploração e opressão, lutas de classes e antiopressivas: ca-
tegorias complementares e não hierarquizadas. Não há na realidade
concreta, nem pode haver na análise teórica e na ação política, uma
hierarquização entre exploração e opressão.
Trata-se de duas formas de expressão de relação de desigualda-
de: exploradores e explorados; opressores e oprimidos; dominado-
res e dominados; hegemônicos e subalternos. Ainda mais, trata-se de
questões mutuamente relacionadas e complementares, não tendo ja-
mais, no capitalismo, uma expressão “pura”, unidimensional, como
um “tipo ideal”. Exploração e opressão não são alternativas, ou uma
ou outra, mas são formas complementares de relações de desigualda-
de, que aparecem articuladas e concomitantes.
Assim, por um lado, toda exploração envolve certas formas de do-
minação e opressão que adensam e complexificam seu entendimento,

353
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

dando a ela maior concretude histórica. Não só formas de opressão


entre classe, mas também no interior das classes, entre “identidades”
diversas.
Por outro lado, nem toda forma de opressão, dominação e desi-
gualdade pressupõe a exploração, porém no capitalismo elas só po-
dem ser compreendidas como categorias concretas, não como abs-
trações, a partir da articulação com a exploração de classes, que as
atravessa, as refuncionaliza e as determina em última instância.
Afirmar a centralidade da classe, portanto, também não significa
hierarquizar a relação de exploração por sobre as formas de opressão
e dominação, e nem a classe por sobre as “identidades”. Não se trata
de uma relação hierárquica, mas complementar.
Portanto, se opressão e exploração não são categorias hierárquicas,
mas complementares, o que podemos afirmar em relação às lutas de
classes e antiopressivas?
Por um lado, na medida em que a opressão remete a uma forma
de relação de poder e de desigualdade fundamentalmente de ordem
política, ideológica e/ou cultural, em torno das quais se desenvolvem
as chamadas “identidades”, é sobre essas relações de poder e desi-
gualdade que ocorrem as lutas antiopressivas (“identitárias”).
Por outro lado, enquanto a exploração representa a relação me-
diante a qual parte da produção de riqueza (mais-valia) de uma classe
é apropriada por outra, as lutas de classes se centram e se orientam
nessa relação de exploração, portanto, naquilo que constitui o funda-
mento da sociedade capitalista.
Assim precisamos fazer alguns apontamentos.
● A opressão, em cada fase histórica, desenvolve-se a partir de
um dado modo de produzir e expropriar a riqueza, a partir de de-
terminadas relações de produção. É a partir desas dimensão que a
opressão ganha concretude histórica. Assim, a opressão racial, por
exemplo, no modo de produção escravista, em que pese a tantas he-
ranças desse período, tem determinações e formas de expressão dife-
rentes na sociedade capitalista.
É claro, é preciso frisá-lo, que um trabalhador negro não está, via
de regra, nas mesmas condições sociais que um trabalhador branco.

354
CAPITULO 7

O primeiro, além de sofrer o processo de exploração e subjugação


próprio das condições de trabalho, enfrentando o efeito da pauperi-
zação, é também alvo da discriminação, da desigualdade e da opres-
são racial, que pode ainda (e via de regra assim acontece) diferenciar
as formas e os graus da própria exploração e opressão. Da mesma
forma que uma trabalhadora mulher, além da exploração própria das
relações capitalistas de produção, recebe em média menor salário que
o homem, e ainda em muitos casos enfrenta a chamada “dupla jorna-
da” de trabalho, no emprego e no lar.
Porém se é preciso reconhecer que essas questões de raça e de
gênero diferenciam as condições de vida (e de trabalho) de um(a) e
outro(a) trabalhador(a), não podemos ignorar que, no entanto, am-
bos(as) são trabalhadores(as) e que são submetidos(as) de forma se-
melhante à exploração capitalista.
● As lutas de classes e antiopressivas não representam um antes-
-e-depois, não se trata de uma priorização ou prelação temporal.
É preciso, mais uma vez, afirmar que as lutas antiopressivas não
podem esperar o sucesso das lutas contra a exploração ou a superação
da ordem burguesa. Suas causas exigem conquistas urgentes. Não
são lutas para ser travadas na sociedade pós-capitalista, depois da
“grande virada” (como questiona Alain BIHR, 1999), mas são lutas
do processo de construção do socialismo. Elas constituem momentos
táticos e objetivos de curto prazo, mas representam também aspec-
tos estratégicos, atrelados à finalidade; formam parte do processo de
emancipação política, mas também do da emancipação humana.
● As lutas antiopressivas particulares (ou “identitárias”), mes-
mo sendo de extrema relevância e urgência, mesmo constituindo
lutas justas e necessárias, a caminho da emancipação política e hu-
mana, justamente por constituírem lutas contra as formas de opres-
são, não apontam, e portanto não impactam diretamente a base eco-
nômica da sociedade capitalista, as relações de produção, salariais
e de exploração. Elas representam um potencial transformador da
relação particular de opressão e desigualdade, mas, se afastadas da
questão de classe, não constituem uma ferramenta de transforma-
ção social geral.

355
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Dessa forma, mesmo que ressaltemos a relevância, a importância,


a necessidade e a urgência das lutas antiopressivas (particulares), que
envolvem as chamadas “identidades” (item 2.3), essas formas de luta,
por si só, não impactam a base econômica e as relações de produção
e exploração da riqueza.
Se isoladas as lutas antiopressivas da esfera econômica, se retira-
das dos fundamentos da sociedade capitalista, nos quais repousam
todas as formas de produção e expropriação da riqueza, determinan-
do estruturalmente a desigualdade social que perpassa e atravessa
todas as formas de opressão, de gênero, de raça etc., essas lutas antio-
pressivas particulares, ao não impactarem na esfera econômica, con-
centrarão-se na esfera política dos direitos no âmbito do Estado, na
esfera do consumo e cultural da sociedade civil, de forma claramente
deseconomizada.
Esse é, claramente, o projeto habermasiano de descolonização do
“mundo da vida”, deixando intacto o “sistema” (econômico e do po-
der político) (ver MONTAÑO, 2002, p. 88 e ss.). Esse é o projeto hege-
mônico do “Fórum Social Mundial”, deixando o “Fórum Econômico
de Davos” nas mãos dos magnatas e governantes das potências im-
perialistas, e se concentrando na diversidade e multiculturalidade da
sociedade civil. Esse é o projeto (atual) de John Holloway (2003), que
visa “mudar o mundo sem tomar o poder”. Esse é, enfim, o projeto do
chamado “terceiro setor” (ver MONTAÑO, 2002 e 2014).
● Enfim, o elemento demarcador de uma perspectiva efetivamente
revolucionária orientada para a emancipação humana, por um lado, e
de uma perspectiva pós-moderna sustentada na “lógica identitarista”,
por outro, está na articulação ou não das duas dimensões: a presen-
ça, no projeto e nas lutas socialistas (anticapitalistas), das lutas pela
igualdade de gênero, de raça, de orientação sexual etc.; assim como a
presença, nas lutas contra a desigualdade, a discriminação e a opres-
são de raça, de gênero, de orientação sexual etc., em um horizonte (de
longo alcance) anticapitalista.
O projeto socialista certamente não pode conviver com o racismo,
o sexismo (machista), a homofobia e outras formas de discriminação,
opressão ou desigualdade social. Não há um projeto verdadeiramen-

356
CAPITULO 7

te revolucionário que, transformando as bases econômicas, não trans-


forme essa realidade política, social e cultural. Mas, contrariamente,
quando o combate ao machismo, ao racismo etc., é fundado na lógica
polarizadora do “identitarismo” pós-moderno, certamente também
acaba-se esvaziando o projeto socialista, abandonando assim qualquer
perspectiva verdadeiramente revolucionária e emancipatória.
Não existe, portanto, uma hierarquia sólida e definida entre causas
e lutas de classe, entre causas identitárias e lutas antiopressivas.
A hierarquia é móvel e dinâmica, transitória e tática, depende das
condições e circunstâncias do momento. Por exemplo, no contexto do
apartheid sul-africano, as lutas contra a opressão branca são hierarqui-
camente prioritárias; enquanto a presença colonial dos EUA em Porto
Rico atribui às lutas independentistas um grau de importância maior
sobre as demais; por seu turno, o aumento do feminicídio no Brasil,
assim como da violência policial contra os negros nos EUA, faz das
consignas “Nenhuma a menos” e “Vidas negras importam” demandas
hierarquicamente prioritárias; por outro lado, a gritante desigualda-
de social no Brasil coloca a distribuição de renda como uma questão
hierarquicamente prioritária etc.; já no cenário da pandemia do “novo
coronavírus” de 2020, em face do desgoverno e da minimização do
problema pelo presidente Bolsonaro, as lutas por maior investimen-
to em saúde e garantia de renda da população assumem prioridade
hierárquica. A questão ambiental se põe como prioritária em face do
aumento devastador das queimadas durante o governo Bolsonaro.
A hierarquia entre causas e lutas é essencialmente dinâmica e con-
juntural.
Existe, sim, centralidade da classe (e da exploração) (ver item 6.3-B),
mas não hierarquia.
Ao falar da “hierarquização das lutas de classe”, o marxista ita-
liano Domenico Losurdo não trata dessa hierarquia como a de uma
categoria (a exploração de classe) sobre a outra (a opressão identitária),
nem como algo rígido e fixo. Ao contrário, apontando a complexidade
dessa questão, o autor afirma que
uma situação histórica sempre é caracterizada por uma multi-
plicidade variegada de conflitos, e, por sua vez, cada conflito

357
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

registra a presença de uma multiplicidade de sujeitos sociais,


os quais expressam interesses e ideais diferentes e contrastantes
(2015, p. 141).

Dessa forma, continua, “no geral, nos deparamos com um con-


junto de reivindicações e de direitos que, tomados separadamente,
resultam todos legítimos e até mesmo sacrossantos” (ibidem). Porém,
é fundamental não desarticular todas essas reivindicações e lutas em
torno das lutas de classes, pois, como anuncia, “é necessário rejeitar a
mutilação das lutas de classes, o que não significa ignorar o problema
de que uma situação histórica […] pode impor uma hierarquização das
lutas de classes” (ibidem, p. 143). Isto é, as lutas de classe, tal como o au-
tor as entende, envolvem todas essas lutas e reivindicações, das quais,
em função de determinadas situações históricas, uma ou outra podem
assumir prioridade hierárquica transitória.
Só a articulação das lutas antiopressivas (lutas particulares ou “iden-
titárias”), contra as desiguais relações de poder, com as lutas contra a
exploração (lutas de classes), em torno das relações de produção, conduz
a um processo de superação das formas opressivas e de desigualdade
particulares, no caminho de superação da ordem social capitalista.
Assim, por um lado, as lutas antiopressivas precisam ser também
lutas anticapitalistas. Por seu turno, e em idêntico sentido, as lutas de
classes também precisam incorporar as lutas antiopressivas (voltare-
mos a isso no item 7.3).

D) Estrutura (econômica) e superestrutura (Estado e sociedade civil)


No célebre “Prefácio” de 1859, à “Contribuição para a Crítica da
Economia Política”, Marx apresenta brevemente sua análise sobre a base
econômica e de Estado, ou a estrutura e a superestrutura. Diferentemente
da compreensão comum dos autores liberais, e inclusive de Gramsci, o
termo “sociedade civil” em Marx (1977, p. 24), que ele toma de Hegel,
expressa os fundamentos da “sociedade burguesa”, representando a es-
fera em que se desenvolvem as “condições materiais de existência”, as
“relações de produção” da riqueza e dos bens necessários para a vida,
conformando assim a “estrutura econômica” ou a “base” da sociedade.

358
CAPITULO 7

É sobre essa base que “se eleva uma superestrutura jurídica e políti-
ca”, isto é, o corpo institucional do Estado (ibidem).
Para Marx, “o modo de produção da vida material condiciona o de-
senvolvimento da vida social, política e intelectual em geral” (ibidem),
ou, como já mencionamos (item 4.2), as relações econômicas de produ-
ção e a estrutura econômica são o elemento determinante, enquanto o
Estado (a superestrutura) é o elemento determinado (ENGELS in MARX
e ENGELS, 1975, p. 111), mesmo que represente uma “determinação
em última instância” (ver item 5.3-C).
Isto é, é em função das necessidades, dos interesses, das relações e
correlações de forças na esfera produtiva, das condições materiais da
vida, que todo o corpo jurídico e político do Estado se desenvolve. Não
como um mero reflexo, mas certamente funcional e determinado em
parte por eles.
Ainda, afirmam Marx e Engels (2010, p. 42), o Estado assume
uma função coercitiva para garantir os interesses da classe hege-
mônica.
Já no monopolismo, conforme analisa Gramsci, o Estado se am-
plia, e além da função coercitiva (“sociedade política”), ele também
assume com relativa autonomia a função de direção social, consenso e
hegemonia (“sociedade civil”) (2000b, p. 244, 331).
Ainda mais, Losurdo afirma ser possível que as “classes subal-
ternas” se tornem hegemônicas na “sociedade civil”, mesmo sem
ainda ter revolucionado a base econômica. Na verdade, isso é uma
possibilidade apenas nas sociedades do “tipo ocidental” (conforme
vimos no item 7.1-A.b).
Porém é uma interpretação completamente tergiversada atribuir
a Gramsci uma compreensão da transformação social sem alterar os
fundamentos da base econômica, apenas se orientando na transfor-
mação da “sociedade civil”, ou “mundo da vida”, de Habermas ao
multicultural Fórum Social Mundial, passando por toda a reflexão e
proposta de “emancipação” pós-moderna.
Abandonar a transformação da base econômica é abandonar
as lutas de classes e as lutas pela igualdade econômica; em suma,
abandonar o socialismo apostando em um capitalismo mais “hu-

359
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

manizado”, “autossustentável”, “solidário”, com “responsabilidade


social”, “verde” ou em um “ecocapitalismo”, enfim, preservando o
mesmo sistema capitalista, mas com outra sociedade civil.
Ao retirar da análise sobre o conjunto de fenômenos e relações
no âmbito da sociedade capitalista, a centralidade e a determina-
ção, mesmo que em “última instância”, da base econômica e das
relações de produção, retira-se, da ação política, a centralidade das
lutas de classes, das lutas que impactam a economia, a produção e
a apropriação de valor, que derivam no empobrecimento constante,
por um lado, e na acumulação de riqueza, por outro. Basta nos lem-
brarmos do divisor de águas da história da humanidade em 2016:
naquele ano, o 1% mais rico do mundo passou a deter a mesma ri-
queza que o 99% restante.70
É nesse sentido que Ellen Wood mostra como o que aqui chama-
mos de “esquerda pós-moderna” abre mão do projeto socialista e o
substitui pela mais inclusiva noção de democracia, que trata a classe
como outra forma de opressão ou de “identidade” qualquer (2006, p.
220). Dantas, ao tratar da particularidade da reforma sanitária, tam-
bém identifica esse recuo do socialismo à democracia formal, na qual
a tática acaba se sobrepondo à estratégia (2017).
Porém devemos reconhecer, sem cair no abandono do projeto so-
cialista, a importância, para o campo da emancipação política, da con-
quista do que Wood chama de uma “comunidade democrática ideal
[que] una seres humanos diferentes, todos livres e iguais, sem suprimir
suas diferenças nem negar suas necessidades especiais” (2006, p. 221), e
que “reconheça todo tipo de diferença, de gênero, cultura, sexualida-
de, que incentive e celebre essas diferenças, mas sem permitir que elas
se tornem relações de dominação e de opressão” (ibidem, 221).
Entretanto, a emancipação humana só será possível indo além dessas
conquistas identitárias na esfera da democracia formal e no âmbito da
ordem burguesa, combatendo e superando essa ordem social e cons-
truindo o socialismo, no qual, além de uma efetiva igualdade social
entre os diferentes, a exploração de classe seja suprimida.
70 Ver: <https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_
fn>, acesso em: abr. de 2020.

360
CAPITULO 7

Porém é de vital importância compreender e saber distinguir que


o enfrentamento à desigualdade e à opressão que existem entre os di-
ferentes (entre homens e mulheres, entre brancos e negros, entre pra-
ticantes de uma ou outra religião, entre nacionais e estrangeiros etc.)
pressupõe a persistência dos diferentes (das “identidades” diversas),
e não a eliminação ou submissão do “outro”; significa portanto alcan-
çar a igualdade social entre os diferentes. Contrariamente, a superação
dos fundamentos da contradição de classes, a exploração – sob a qual
se constituem classes sociais capitalistas, a burguesia e o proletariado
–, pressupõe e impõe a eliminação das classes.
Assim, em relação às classes sociais, para a supressão da contra-
dição entre elas, para a construção da igualdade social, devemos ne-
cessariamente eliminar as próprias classes sociais. Nesse sentido, con-
trariamente às “identidades”, por meio das quais podemos alcançar a
igualdade entre os diferentes, não pode haver igualdade entre as classes,
entre a burguesia e o proletariado, porque a própria existência delas
remete inexoravelmente à exploração que uma exerce sobre a outra;
eliminar a exploração (fundamento da desigualdade de classe) supõe
eliminar as próprias classes. Sujeitos de diferentes gêneros, raças, cre-
dos, nacionalidades, podem ser socialmente iguais, eliminando toda
forma de opressão, discriminação e desigualdade; porém a existência
de classes sociais (a capitalista e a trabalhadora) pressupõe a explora-
ção de uma pela outra. Ou seja, mesmo eliminando a opressão de gênero
e de raça, as diferenças de gênero e de raça continuarão existindo (agora
em condições de igualdade); mas ao se eliminar a exploração, as classes
burguesa e proletária deixarão necessariamente de existir. Como ques-
tiona Wood, é impossível imaginar “as diferenças de classe sem explo-
ração e dominação”, sendo a relação (ou contradição) de classe, por sua
natureza, uma relação de desigualdade. Uma desigualdade distinta
daquela oriunda das diferenças de ordem sexual, racial, cultural (2006,
p. 221). Assim, nas palavras de Wood:
a igualdade de classe significa algo diferente e exige condições
diferente das que se associam à igualdade sexual ou racial. Em
particular, a abolição da desigualdade de classe representaria
por definição o fim do capitalismo (idem, p. 221).

361
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Conforme aponta a autora, “o desaparecimento das desigualdades


de classe é por definição incompatível com o capitalismo” (ibidem); isto
é, a eliminação das desigualdades de classe exige a superação do capi-
talismo, e, portanto, a própria supressão das classes. Porém, continua,
o fim do capitalismo não é condição para a “abolição da desigualdade
sexual ou racial”, já que elas “não são incompatíveis com o capitalis-
mo” (ibidem).
Em síntese, novamente afirmamos, não se trata de encarar alterna-
tivas excludentes: ou lutas no âmbito da sociedade civil (lutas “identi-
tárias” e dos movimentos sociais), ou lutas na esfera do Estado (lutas
políticas, partidárias, parlamentárias), ou lutas na base econômica (lu-
tas de classes). Trata-se de articular as lutas emancipatórias nessas
três esferas da sociedade, como três frentes de lutas articulados: na
base econômica, na sociedade civil e no Estado.

7.2- Lutas antiopressivas particulares não equivalem à “lógica


identitarista” (pós-moderna)

Nosso propósito, e o temos reafirmado em diversos momentos, é


apontar a importância, a necessidade e a urgência das lutas antiopres-
sivas particulares, ou “lutas identitárias”, no campo da emancipação
política, da superação de muitas formas de desigualdade e relações de
opressão particulares. Porém, cabe aqui mostrar que a afirmação da
importância dessas lutas antiopressivas não significa adotar a “lógica
identitarista” pós-moderna.
Falar de lutas antiopressivas não corresponde nem equivale à po-
larizadora e pessoalizada “lógica identitarista” da interpretação pós-
-moderna.
Ao contrário da compreensão pós-moderna, na análise marxista
histórico-dialética há uma complementaridade entre as lutas de classes
e as lutas antiopressivas, no caminho para a emancipação política e hu-
mana. Vejamos.

A) Lutas de classe e lutas antiopressivas (identitárias)


Primeiramente trataremos das distinções e dos vínculos entre am-

362
CAPITULO 7

bas as formas de luta, a de classes e a antiopressiva. Faremos isso a


partir das seguintes afirmativas.

1o Lutas de classe (em torno da exploração) e lutas “identitá-


rias”particulares (em torno das formas particulares de opres-
são) respondem a formas diferentes de relação social.

Vimos anteriormente (item 7.1-C) que opressão e exploração repre-


sentam dois tipos de relação social. A primeira, a opressão, é um con-
ceito abstrato que expressa uma relação de dominação, subordinação,
desigualdade etc., entre indivíduos ou coletivos sociais diversos. A se-
gunda, a exploração, é uma categoria que assume concretude histórica
no capitalismo e representa o processo mediante o qual uma classe ex-
trai e se apodera do valor produzido por outra classe, a partir da rela-
ção de compra e venda da força de trabalho.
Dessa forma, ao falar de lutas de classes e lutas sociais, ou antio-
pressivas (“identitárias”), estamos nos referindo a fundamentos dife-
rentes de cada uma delas, respondendo umas e outras a formas dife-
rentes de relações sociais.
As lutas de classes, por um lado, fundam-se na contradição capi-
tal-trabalho, a partir da relação de exploração de uma classe por outra.
Falamos, assim, não de uma “diferença” entre as classes (como a com-
preensão weberiana, sustentada na diferença de poder aquisitivo entre
as mesmas), mas de uma contradição entre as classes, a partir da insu-
primível (no capitalismo) relação de exploração (ver item 6.3-A.c). Nes-
se sentido, como vimos anteriormente, eliminar a exploração (funda-
mento da existência das classes) exige a eliminação das próprias clas-
ses sociais. Por essa motivo, essa luta é essencialmente anticapitalista e,
portanto, revolucionária, adquirindo assim uma dimensão universal no
processo de emancipação política e humana.
As lutas antiopressivas, por outro lado, chamadas por muitos de “lu-
tas sociais”, e mais recentemente de “identitárias”, orientam-se basica-
mente nas (e a partir das) diversas relações de opressão (como vimos,
incorporando uma ampla gama de formas e modalidades de opres-
são, desde a dominação e a violência, até a discriminação etc.). Nesse

363
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

caso, o fundamento, sob o qual se desenvolve a relação de opressão


e a desigualdade, é a diferença entre indivíduos e grupos, de gênero,
etnia, religião, nacionalidade etc. Tratam-se de diferenças que fundam
uma relação de opressão, não de uma contradição; dessa forma, supe-
rar a opressão e a desigualdade decorrente dela não exige a superação
das diferenças, as quais persistirão num ambiente de igualdade social,
quando a relação de opressão for superada. Essas lutas são particulares,
específicas e, por si só, não têm uma dimensão universal.
Por tudo isso, podemos afirmar que as lutas de classe (em torno da
exploração) e as lutas “identitárias” particulares (em torno das formas de
opressão) respondem a formas diferentes de relação social.

2o Porém, as lutas de classe (em torno da exploração) e as lutas


“identitárias” particulares (em torno das formas de opres-
são) não são alternativas excludentes, mas complementares.

Dessa forma, como são fundadas em relações diferentes, parece-


ria, equivocadamente, que tivéssemos que optar entre uma ou outra
forma de luta, entre as lutas de classe ou as lutas identitárias. Pareceria
que ambas fossem incompatíveis. Diversos argumentos (ou “lógicas”)
promovem essa visão de incompatibilidade, obrigando-nos a escolher
uma opção entre as duas formas de luta. Vejamos.
● Por um lado (numa lógica antes-e-depois), como se as duas res-
pondessem a momentos diferentes da história: a) antes, as lutas de clas-
se, durante o capitalismo industrial – desde meados do século XVIII,
com o desenvolvimento tecnológico que levou à industrialização da
produção, até o final do século XX, momento em que o trabalho e a
contradição de classe teriam centralidade; e b) hoje, as lutas identitárias,
a partir da crise capitalista na virada dos anos 1960-1970, e no suposto
advento do que alguns intelectuais chamam de fim da modernidade ou
modernidade “líquida”, que alguns chamam de sociedade pós-moder-
na, pós-industrial ou informacional, ou de fim da história (de Robert
Castel a Pierre Rosanvallon, de Daniel Bell a André Gorz, de Jürgen
Habermas a Alain Touraine e a Zygmunt Bauman, de Jean-François
Lyotard a Boaventura de Sousa Santos, de Milton Friedman a Fran-

364
CAPITULO 7

cis Fukuyama), agora não mais centrada no trabalho ou na questão de


classes (a exploração), mas no multiculturalismo e nas ações interco-
municacionais da sociedade civil, do “mundo da vida” (nas “identida-
des” e diferenças).
● Por outro lado (numa lógica possível / utópico), resignados com
a “impotência” das lutas de classes, com a falta de adesão aos movi-
mentos sindicais e trabalhistas, com o reduzido impacto dessas lutas
na economia, com o utópico fundamento e finalidade anticapitalista,
e otimistas com as organizações multiculturais e com os movimentos
“identitários”, na sociedade civil, uma “esquerda possibilista” parece
ser levada à substituição das lutas de classe e dos movimentos sindi-
cais na esfera produtiva pelas lutas antiopressivas e pelos movimentos
(“identitários”) na esfera da sociedade civil. Aqui aparece, como um
exemplo dentre tantos, a noção de Marcio Pochmann de que a “inclu-
são social [é] uma utopia possível” (POCHMANN et alii, 2006). Assim,
conforme afirma Safatle:
Tudo se passaria como se, dada a impossibilidade de implemen-
tar políticas efetivas de redistribuição e luta radical contra a desi-
gualdade, nos restasse apenas discutir políticas compensatórias
de reconhecimento (apud BOSCO, 2017, p. 82).

Na medida em que parece impossível transformar as estruturas


sociais de exploração, as lutas de classes são abandonadas e a ação e
militância são orientadas para o “empoderamento” dos estratos mais
pobres da população; na medida em que parece impossível alterar
a estrutura de empregos, controlada pelo capital, a ação política é
orientada para a criação de “nichos” de “economia solidária” (para
uma crítica da economia solidária, ver WELLEN, 2012, e WELLEN in
MONTAÑO, org., 2014).
● Por seu turno (numa lógica melhor / pior), como se, por se tra-
tar de relações de tipo diferentes – a contradição e as lutas de classes,
em torno das relações de produção, uma relação de exploração, e a desi-
gualdade e discriminação em torno das “identidades”, significando uma
relação de opressão –, tivéssemos então que optar por lutas de classe ou
por lutas antiopressivas. Ou optamos pelas lutas anticapitalistas, por-

365
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

que só elas têm um potencial transformador, secundarizando as lutas


antiopressivas ou qualificando-as como “pequeno-burguesas”; ou en-
tão optamos pelas lutas identitárias, porque hoje elas teriam um maior
poder mobilizador das pessoas, desprezando as lutas de classes e qua-
lificando-as como “ultrapassadas” e “bolcheviques”.
● Derivado do anterior, por outro lado (numa lógica da relação
direta / indireta com as pessoas), para uns deveríamos escolher entre
lutas diretamente vinculadas com nossas vidas, com nossos problemas
cotidianos, com nossa vivência (as “identidades”, as formas de opres-
são, discriminação e desigualdade que vivenciamos cotidianamente),
deixando de lado – e sob o comando daqueles que controlam as estru-
turas da dominação política e econômica – aquilo que parece não estar
diretamente vinculado com as nossas vidas (a exploração, o antagonis-
mo de classes); ou então, para outros, deveríamos orientar as lutas para
o combate contra o sistema, porque só após sua transformação pode-
remos obter mudanças significativas no nosso cotidiano. Ou lutamos
para transformar o conjunto da sociedade, e desprezamos as questões
particulares; ou lutamos para mudar aqueles fenômenos e aspectos
que nos afetam diretamente no nosso cotidiano, mas renunciamos à
transformação social.
● Em decorrência do anterior (numa lógica de resultados imediatos
/ mediatos, ou de curto / longo prazo), pareceria, para uns, que tivés-
semos que optar por aquilo que traga resultados imediatos para a vida
das pessoas (como afirmava o sociólogo e ativista Herbert de Sousa,
o “Betinho”, criador da “Ação da Cidadania contra a Fome, a Miséria
e pela Vida”: “Quem tem fome, tem pressa”; ou como o economista
marxista Paul Singer, que passou a se dedicar àquilo que era possível
de alcançar no curto prazo, a “economia solidária”), e, em claro prag-
matismo, relegando as lutas cujos resultados não forem imediatos; ou
então, para outros, devemos orientar as lutas para aquilo que produza
transformações mais estruturais e estáveis, secundarizando aquilo que
traz resultados imediatos, mas não estruturais.
● Por outro lado (numa lógica de lutas revolucionárias / reformis-
tas), há quem afirme que apenas temos que investir naquelas lutas
“verdadeiramente” revolucionárias, pois as outras formas de lutas se-

366
CAPITULO 7

riam “pequeno-burguesas” e portanto meramente funcionais aos inte-


resses do capital. Nesse caso, apenas as lutas de classes são vistas como
efetivamente revolucionárias, na medida em que elas se centram na re-
lação de exploração, tipicamente capitalista. Assim parece que apenas
essas lutas devem se fundar numa orientação anticapitalista e, portan-
to, revolucionária, como se as lutas antiopressivas, ou “identitárias”,
por tratarem de relações de opressão existentes antes do capitalismo
(relações de desigualdade e discriminação racial, sexual etc.), fundadas
nas sociedades escravocratas, patriarcais etc., não tivessem (ou não de-
vessem) ter uma orientação antissistema, anticapitalista.
● Como efeito disso (numa lógica de causa / efeito), para alguns,
numa espécie de descontextualizada “guerra de movimento”, deve-
ríamos primeiramente lutar pela transformação estrutural econômica,
a “grande transformação socialista”, mediante a tomada do Estado, a
partir da qual todas as formas particulares de opressão seriam poste-
rior e consequentemente resolvidas; ou, para outros, numa espécie de
também descontextualizada “guerra de posição”, deveríamos primei-
ramente lutar pelas reformas e mudanças pontuais, particulares, que,
consequentemente, e de forma cumulativa, iriam construindo uma
“nova sociedade emancipada”.
Ora, ambas as formas de lutas, as de classe e as antiopressivas, res-
pondem a tipos de dominação e desigualdade, e portanto as lutas em
torno de uma (a exploração, fundando a desigualdade econômico-polí-
tica) e de outra (a opressão, fundando formas particulares de desigual-
dade social, que Safatle e Bosco, assim como Losurdo, chamam de “de-
sigualdade de reconhecimento”, SAFATLE, 2018; BOSCO, 2017, p. 82; e
LOSURDO, 2015, p. 91 e ss.) não são incompatíveis, mas, ao contrário,
necessariamente complementárias. Como afirma Bosco, “a igualdade
econômica é uma condição necessária, mas não suficiente para eliminar
os preconceitos e, com eles, as assimetrias de reconhecimento” (BOSCO,
2017, p. 83), e continua, afirmando a complementaridade de ambas as lu-
tas: “O melhor meio para atingir os seus objetivos [das lutas identitárias]
seria a promoção de uma radical igualdade socioeconômica” (ibidem).
Assim, se as lutas de classe e identitárias se expressam concreta-
mente em formas diversas de relação social, no entanto, como também

367
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

observamos anteriormente, no capitalismo não dá para compreender,


na riqueza e na complexidade das suas múltiplas determinações, as
diversas formas de opressão, assim como as lutas antiopressivas, sem
a referência à exploração enquanto fundamento do MPC (é ela que lhe
dá concretude histórica e a dota de uma dimensão universal). Nem dá
para analisar a exploração, assim como as lutas de classes, sem saturá-las
da diversidade de formas de opressão e desigualdade que configura essa
relação entre classes e que compõe internamente cada classe social (é
essa diversidade que satura as classes de determinações, fazendo da
exploração um fenômeno complexo e dando concretude e complexi-
dade à categoria de classe social, internamente composta de diversas e
variadas “identidades” e múltiplas relações de opressão).
Na verdade, quando se fala da questão de classe, devemos tra-
tar, simultaneamente, da questão da mulher, do negro, do imigrante
etc. Mesmo com suas particularidades, o(a) trabalhador(a) negro(a),
o imigrante e a mulher trabalhadora, todos eles são submetidos à
exploração capitalista (quando empregados) ou ao desemprego
(quando compõem a superpopulação relativa) (ver MARX, 1980, p.
730 e ss.).
Isto é, não pesa sobre a “identidade” da mulher apenas a opres-
são machista e patriarcal, nem sobre a “identidade” do negro apenas
a opressão racista; pesam sobre eles também a exploração, a desigual-
dade e a pauperização à qual são submetidos pela sua condição de
trabalhadores(as) assalariados(as).
Vale dizer, por exemplo, que o trabalhador negro hoje é decerto
submetido aos desígnios herdados do passado escravocrata – além da
discriminação, ele em média trabalha em condições piores e recebe sa-
lários mais baixos que o trabalhador branco –, mas hoje ele é explorado
como trabalhador assalariado. Isto é, se de fato há uma desigualdade
de condições entre o trabalhador branco e o negro, no fundo, ambos
são explorados pelo capital, o que continua sendo central na sua con-
dição de trabalhador (negro). Desconhecer essa condição (de classe) na
questão racial é reduzir a compreensão dessa questão e focar apenas
num aspecto dela. É tão reducionista e limitada a análise que ignora
a questão (de desigualdade e opressão) de raça ou de gênero, do(a)

368
CAPITULO 7

trabalhador(a) negro ou mulher, quanto o é a análise que ignora a con-


tradição de classe e a questão da exploração a que são submetidos.
Isso faz da discussão que opõe raça e classe uma discussão bizanti-
na. Apenas útil para os interesses da classe dominante e para a perpe-
tuação da ordem social vigente. A questão racial não exclui a questão
de classe. A “identidade” do negro envolve simultaneamente a opressão
do racismo, a exploração de classe e, ainda, a opressão de gênero etc. Assim
como a questão de classe, especialmente num país como o Brasil e seu
passado escravocrata, envolve também, e simultaneamente, a ques-
tão de raça, de gênero etc.
O jovem Engels, ao tratar do trabalhador escravo e do assalaria-
do, escreve:
O escravo é vendido de uma vez por todas; o proletário tem que
se vender a si mesmo a cada dia e a cada hora. O escravo indi-
vidual, propriedade de um senhor, tem, por interesse desse se-
nhor, uma existência assegurada, por mais miserável que seja; o
proletário individual […] que só tem seu trabalho vendido quan-
do alguém [o capitalista] necessita, não tem a existência assegu-
rada […]. O escravo é considerado um objeto […]; o proletário é
reconhecido […] como pessoa (apud LOSURDO, 2015, p. 92-93).

Engels, com essa passagem, está comparando o trabalhador escra-


vo ao trabalhador assalariado (proletário); não compara trabalhadores
negros e trabalhadores brancos, mas dois modelos de expropriação do
valor, a partir dos modos de produção. É um reducionismo inconcebí-
vel imaginar que quando ele fala de escravo estaria tratando de uma
raça e quando se refere ao proletário remeteria a outra. No Brasil e arre-
dores, o negro foi tanto no passado um trabalhador escravo como é na
atualidade um proletário (assalariado). Sim, um proletário que carrega
a herança do passado escravocrata, mas proletário ao fim.
Em idêntico sentido, a mulher submetida à “dupla jornada de tra-
balho”, o é porque não apenas ela é sujeita à desigualdade de gênero
e ao trabalho não remunerado do lar, mas porque também é explo-
rada pelo capital enquanto trabalhadora assalariada. Assim, reduzir
a “identidade” da mulher apenas à opressão de gênero é reduzir a

369
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

questão da mulher a apenas uma das suas dimensões, esquecendo


sua condição de classe, enquanto trabalhadora assalariada submetida
à exploração.
Assim, classe e “identidade”, exploração e opressão, lutas de
classes e lutas sociais ou antiopressivas (“identitárias”), precisam ser
mutuamente referenciadas e compreendidas de forma articulada, comple-
mentar, e não excludente.
Para a articulação e a mútua complementaridade das lutas de
classes e antiopressivas, devemos superar as lógicas “antes / depois”,
“possível / utópico”, “melhor / pior”, “relação direta / indireta”, “re-
sultados imediatos / mediatos”, lutas “revolucionárias / reformistas”,
“causas / efeitos”.

3o As lutas “identitárias” particulares (em torno das formas de


opressão) não equivalem à “lógica identitarista” (pós-mo-
derna).

Vimos que as lutas de classe e antiopressivas se fundam em tipos


diferentes de relações sociais; vimos também que apesar disso elas não
são alternativas excludentes, mas necessariamente complementares.
Assim, resta-nos agora responder se o conceito de lutas antiopressivas
(identitárias) equivale necessariamente à interpretação pós-moderna
contida na polarizadora e pessoalizada “lógica identitarista”.
Não havendo uma relação de exclusão entre as duas lutas, certa-
mente o projeto emancipatório revolucionário deve articular ambas,
tanto em torno da exploração como das diversas e variadas modalida-
des de opressão e desigualdade social.
Ocorre que o pensamento pós-moderno, por um lado, ora abando-
na a luta de classes, como algo ultrapassado teórica e politicamente, ora
a reduz a mais uma questão de opressão e “identidade”, promovendo
assim uma clara desarticulação e deseconomização da análise e da luta.
Por seu turno, a “lógica identitarista” pós-moderna, como já tra-
tamos, funda-se numa polarização “nós / eles”, que representa tanto
uma moralização e despolitização das análises e lutas, como uma pessoa-
lização dessa relação, arrancando-a da totalidade e da estrutura social;

370
CAPITULO 7

assim, o que é particular é ideológica e abstratamente transformado em


universal. O que se combate, nessa lógica, não é a estrutura opressora
e desigual (o racismo, o machismo etc.), mas o indivíduo diferente, o
“outro”, a outra “identidade” da relação.
O problema, portanto, no campo do projeto emancipatório e revo-
lucionário, não são as lutas por interesses particulares, antiopressivas
ou identitárias, mas a polarização pessoalizada que promove a “lógica iden-
titarista” pós-moderna, na qual por definição polarizam-se homens e
mulheres, negros e brancos, heterossexuais e homossexuais, cristãos,
judeus, evangélicos, islamitas e umbandistas, nacionais e imigrantes
etc., como se fossem inimigos, antagonistas. Vejamos.
● Nessa lógica de polarização pessoalizada entre “identidades” e
diferenças, a unidade das lutas políticas torna-se algo inalcançável, porque
sempre existirá o antagonismo entre elas. Dessa forma, como criar um
movimento de trabalhadores, se há polarização entre trabalhadores
homens e mulheres? Como alcançar a unidade das trabalhadoras mu-
lheres, se entre elas há negras e brancas? Como atingir a unidade das
mulheres negras, se umas são originárias e outras, imigrantes? Como
unir a luta das mulheres negras imigrantes, se umas são latino-ameri-
canas e outras, de origem africana? E assim a polarização caminha na
direção da multissetorialização e fragmentação.
A polarização contida na “lógica identitarista” levará necessaria-
mente à fragmentação da classe trabalhadora, transformando uma
maioria social em diversas e enfrentadas minorias. É o paraíso para o
domínio burguês, seguindo a máxima romana “Divide e reinarás!”. Ve-
jamos bem, se em relação à identidade racial, pessoas negras e brancas
são tidas como inimigas, como um trabalhador negro poderia ocupar
o mesmo espaço político e compartilhar a mesma plataforma política
com um trabalhador branco? Igualmente, se nessa “lógica identitaris-
ta” o homem e a mulher se polarizam como inimigos, como uma tra-
balhadora-mulher se articularia na luta comum com um trabalhador-
-homem?
Mas a divisão da classe que é a maioria, pulverizada em minorias,
segue o caminho da hiperfragmentação: como uma mulher-trabalhado-
ranegra poderia compartilhar sua luta com uma mulher-trabalhadora-

371
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

-branca? Ainda mais: como uma mulher-trabalhadora-negra imigrante


poderia se unir na luta com uma mulher-trabalhadora-negra local? Se-
guindo nessa direção multifragmentadora: como uma mulher-traba-
lhadora-negra-imigrante-muçulmana poderia desenvolver uma luta
comum com uma mulher-trabalhadora-negra-imigrante-evangélica?
É como se dois trabalhadores, que ocupam cargos diferentes
na mesma empresa, ou cujos salários e condições contratuais são
diferentes, em vez de se articularem na luta comum contra a explora-
ção capitalista, enfrentassem-se por causa das diferenças pontuais que
há entre eles.
É nesse sentido que Wilson Gomes, em artigo jornalístico, afirma
que “o mundo da luta identitária acaba se tornando um conjunto de
peças que nunca formam um mosaico, porque há superposições e há
colisões, em que cada pauta identitária tende a se fragmentar em um
processo infinito” (2018).
● A “lógica identitarista” assume que se há opressão e desigualda-
de em um grupo identitário então todos os indivíduos do grupo contrário
são opressores. Assim, todo homem é necessariamente visto como opres-
sor das mulheres, todo heterossexual é considerado discriminador dos
grupos LGBTs, toda pessoa branca é por definição tida como racista e
“supremacista”. A “lógica identitarista” identifica o “diferente” como
necessariamente inimigo.
Como já foi afirmado, a constatação de uma estrutura machista e
patriarcal, ou racista etc., não faz de cada homem o inimigo natural da
mulher, nem de cada indivíduo branco o inimigo natural da pessoa
negra. As desigualdades e a opressão nessas relações são históricas,
e não naturais ou constitutivas dos sujeitos; gêneros, etnias e orienta-
ções sexuais diversas podem conviver e se relacionar sem opressão ou
desigualdade, desde que essas estruturas e culturas sejam superadas.
Porém o sujeito (personificação de categorias econômicas) burguês e o
trabalhador assalariado têm a exploração de um pelo outro como fun-
damento constitutivo dos seus seres; se tirar a exploração, elimina-se
tanto o burguês como o assalariado.
Ora, a partir da polarização promovida pela “lógica identitarista”
pós-moderna, combatemos o indivíduo em vez de enfrentarmos a cul-

372
CAPITULO 7

tura machista, homofóbica, racista etc. O inimigo da mulher não é o


homem, mas a estrutura patriarcal e a cultura machista; o inimigo do
homossexual não é o heterossexual, mas a cultura homofóbica; o ini-
migo do negro não é o branco, mas a estrutura e a cultura racista. A es-
trutura e a cultura (ou sistema cultural), que certamente se expressam
nas instituições e nos indivíduos, promovem a segregação, a opressão
e a desigualdade, que precisam ser combatidas. Combate que pode (e
deve) unir negros e brancos, homens e mulheres, cristãos, umbandistas
e islamitas etc. numa luta conjunta contra a homofobia, o racismo, a
misoginia, a xenofobia, a intolerância religiosa etc.
Numa guerra entre nações, o objetivo político-militar é a elimina-
ção do inimigo, ou sua subjugação a partir da rendição. Nas lutas de
classes, o objetivo final é a superação da contradição entre as classes: a
exploração – que na sociedade capitalista é insuprimível, portanto, a
finalidade da luta está na eliminação das próprias classes, superando o
capitalismo. Porém, diferentemente, nas lutas por direitos civis e con-
tra a desigualdade, a opressão e a discriminação em relação às “identi-
dades” subjugadas e subalternas, o objetivo jamais está na eliminação
do diferente, mas no combate à estrutura e à cultura, às normas e aos
valores discriminatórios. Não se combate o machismo eliminando os
homens; não se combate a homofobia eliminando os heterossexuais;
não se combate o racismo eliminando os brancos etc.
Isto é, ao tratar dos fundamentos da classe social e das “identida-
des”, e suas formas de enfrentamento e superação, estamos falando de
relações, lutas e objetivos essencialmente diferentes.
● Ainda mais, a polarização pós-moderna da “lógica identitaris-
ta” só vê uma relação de opressão. Certamente existe uma estrutura
opressiva na relação homem e mulher, negro e branco, nacional e imi-
grante etc.
Porém não há apenas opressão nessas relações: por um lado, a re-
lação homem e mulher também é uma relação afetiva, amorosa e/ou
familiar (de casal, de parentalidade, de irmandade etc.); por outro lado,
a relação entre trabalhadores negros e brancos também é uma relação
de membros da mesma classe trabalhadora, sujeitos à exploração pelo
mesmo patrão, assim como é igualmente uma relação de vizinhança

373
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

nas comunidades; o mesmo também ocorre na relação entre o nacional


e o imigrante etc.
Ver apenas e exclusivamente uma relação de opressão é extrema-
mente reducionista e leva à polarização “nós / eles”. Contrariamente,
entender a diversidade de aspectos contraditórios nessas relações mos-
tra a necessidade de combater e superar a opressão que funda a desi-
gualdade, preservando não só as “identidades” e as diferenças de cada
um, mas também as diversas dimensões presentes na relação entre os
diferentes.
● Por outro lado, a diversidade de “identidades” e subidentida-
des de cada indivíduo faz com que seu lugar nas diversas relações
de opressão seja variado e dinâmico. Assim, por exemplo, uma mulher
branca ocupa o lugar do sujeito subalterno nas relações de gênero, e o
do dominante nas relações raciais; de igual forma, um homem negro
se situa no espaço dominante das relações de gênero, enquanto repre-
senta o lado oprimido das relações raciais; outro exemplo é o de uma
mulher empresária, que é oprimida enquanto mulher, mas explora e
oprime seus empregados. Nesse sentido, Domenico Losurdo aponta
como,
explorado na fábrica, o trabalhador (por exemplo, o inglês) pode
ser indiferente ou até mesmo aprovar a submissão da Irlanda ou
da Índia e, portanto, nesse sentido, tornar-se cúmplice dos opres-
sores […]. No caso de uma mulher trabalhadora e irlandesa, três
vezes oprimida – no âmbito da família, na fábrica e por pertencer
a uma nação oprimida – […] ela também é partícipe da “explora-
ção dos filhos por parte dos pais” […].
Em outros termos, todo indivíduo (e até mesmo um grupo)
é colocado em um conjunto contraditório de relações sociais,
atribuindo a cada uma delas um papel diferente. Longe de basear-
se em uma “relação de coerção” singular, o sistema capitalista
mundial é o entrelaçamento de múltiplas e contraditórias
“relações de coerção”. O que decide a colocação final de um
indivíduo (e de um grupo) no campo dos “oprimidos” ou no dos
“opressores” é, por um lado, a hierarquização dessas relações
sociais segundo sua relevância política e social em uma situação

374
CAPITULO 7

concreta e determinada; por outro, a escolha política do singular


indivíduo (ou grupo) (LOSURDO, 2015, p. 137).

Isto é, reafirma o autor, “até a classe revolucionária por excelência,


o proletariado, pode sucumbir à sedução da sereia colonialista” (ibidem,
p. 313), participando da opressão de um povo colonizado.
● Em síntese, não se trata de ignorar a importância das “lutas par-
ticulares”, claramente civilizatórias e emancipatórias em termos “po-
líticos”. Sem o sucesso delas não haverá emancipação política, muito
menos humana.
Trata-se, sim, de perceber que atribuir uma “lógica identitarista” às
lutas sociais e antiopressivas transfigura completamente essas lutas e
pulveriza a unidade das lutas de classes, moralizando, pessoalizando e
despolitizando as importantes, necessárias e urgentes lutas identitárias
e antiopressivas.
Diferenciamos aqui, portanto, as “lutas antiopressivas particulares”
(ou identitárias) da interpretação pós-moderna contida na “lógica iden-
titarista”. Defendemos a importância das primeiras, mas questionamos
os fundamentos da interpretação polarizadora que delas faz o pensa-
mento pós-moderno.

B) A relação dialética: singular / particular / universal


Ao tratar das lutas “particulares” e da dimensão “universal” das
lutas precisamos discorrer brevemente sobre o singular, o particular e
o universal, e suas relações. Vejamos.
Para Lukács, o pensamento dialético marxiano reproduz “a liga-
ção existente na realidade, e que é inseparável, entre universalidade
e singularidade” (LUKÁCS, 1968, p. 110). Assim, conforme afirma, “o
movimento dialético da realidade, tal como ele se reflete no pensamen-
to humano, é assim um incontrolável impulso do singular para o uni-
versal e deste, novamente, para aquele” (ibidem).
Contrariamente, como afirma nosso autor, por um lado, o “em-
pirismo grosseiro” e o “apriorismo formalista”, presentes na razão
formal-abstrata, realizam uma “divinização do universal”, desprezan-
do ou secundarizando o singular, o fenômeno específico, e operando

375
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

“generalizações vaziamente analógicas e completamente carentes de


conteúdo” (ibidem, p. 121). Por outro lado, como no irracionalismo
pós-moderno, reduz-se o conhecimento do real a uma absolutização,
autonomização e isolamento do fenômeno singular, desprezando sua ar-
ticulação com o universal, tendendo a “excluir da história todos os
momentos que vão além da singularidade dos fenômenos históricos
(e, portanto, toda particularidade e universalidade)” (ibidem).
Assim, conforme Lukács, “apenas o materialismo dialético [de-
senvolvido por Marx, a partir da apropriação / superação crítica da
dialética hegeliana] está em condições de colocar com justeza e de de-
senvolver este problema”, a saber, a relação dialética entre o singular,
o particular e o universal (ibidem).
Como fazer isso? Inserindo os fenômenos singulares e suas parti-
cularidades na totalidade social, e saturando esta última de suas par-
ticularidades e singularidades. É a perspectiva de totalidade, em pri-
meira instância, a que permite superar a limitada razão formal-abs-
trata e o irracionalismo pós-moderno. Nesse sentido, contrariando o
que sustenta o chamado “marxismo economicista”, segundo afirma
Lukács:
Não é o predomínio de motivos econômicos na explicação
da história que distingue de maneira decisiva o marxismo da
ciência burguesa, mas o ponto de vista da totalidade. A categoria
totalidade, o domínio universal e determinante do todo sobre
as partes, constitui a essência do método [marxista] (LUKÁCS
apud MÉSZÁROS, 2013, p. 57).

Porém não basta o apelo à “totalidade” para o conhecimento críti-


co-dialético. Há um tipo de “totalidade” no positivismo durkheimia-
no, tratado como um “todo orgânico”, ou no neopositivismo, como o
“funcionalismo estrutural” de Talcott Parsons ou como o “sistema”
de Ludwig von Bertalanffy.
Dessa forma, o “ponto de vista da totalidade” do pensamento
marxista opera, em segunda instância, uma determinada “relação
entre o todo e as partes”, entre o universal, o particular e o singular
(LUKÁCS, 1974, p. 189), diferente da relação orgânica entre o todo e

376
CAPITULO 7

as partes estabelecida no positivismo e neopositivismo. Assim, afirma


nosso autor:
O método dialético não se distingue do pensamento burguês ex-
clusivamente por ser o único susceptível de conhecer a totalida-
de: este conhecimento também só é possível porque a relação entre
o todo e as partes se tornou fundamentalmente diferente daquela
que existia no pensamento reflexivo (LUKÁCS, 1974, p. 189).

Essa não é uma relação que resulta da mera soma de partes au-
tônomas, numa espécie de “multidisciplinaridade” (que mantém a
divisão disciplinar, seguido de sua justaposição), mas uma relação
de mútua implicância, muito mais na lógica “transdisciplinar” (que
assume a perspectiva de totalidade superando a segmentação disci-
plinar, e numa mútua determinação entre o singular, o particular e o
universal). Assim, conforme Lukács, há na teoria marxiana uma re-
lação dialética entre o singular, o particular e o universal, definindo
uma “tríade” lógica (ibidem, p. 112).
Dessa maneira, temos na realidade dialética, por um lado, o “sin-
gular”, que remete a um indivíduo ou fenômeno específico, único,
irrepetível, ou, como Lênin descreve: a “coisa-em-si” (LÊNIN, 2011,
p. 137), sendo que “todas as coisas são diferentes” (ibidem, p. 127). O
singular é toda realidade concreta e específica que vivenciamos espe-
cialmente na nossa vida cotidiana; portanto, nossa vida está cheia de
momentos, fenômenos, situações, coisas e pessoas, todos eles singula-
res. Assim, conforme Lukács, “é óbvio que em nossas relações diretas
com a realidade tropeçaremos sempre diretamente com a singulari-
dade”, na medida em que “tudo o que nos oferece o mundo externo
como certeza sensível é imediatamente e sempre algo singular, ou
uma conexão única de singularidades; é sempre um Isto singular, um
Aqui e Agora singular” (LUKÁCS, 1967, p. 203).
Por outro lado, temos o “universal”, que diz respeito à totalidade,
ao geral, à lei universal que determina e contém o singular, ou nos ter-
mos de Lênin: a “substância”, o “Ser-em-todo-o-Ser” (LÊNIN, 2011,
p. 144), expressando tanto a dimensão estrutural da realidade, como
a generalidade do fenômeno, numa dimensão abstrata.

377
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Finalmente, completando a “tríade”, e como instância de arti-


culação e mediação entre o singular e o universal, temos o “parti-
cular”, que tanto dá concretude ao universal, como articula o sin-
gular com a universalidade. Nas palavras de Lukács: “O particular
representa aqui, precisamente, a expressão lógica das categorias de
mediação entre os homens singulares e a sociedade” (1968, p. 93).
Dessa forma, ainda segundo o autor húngaro, “o movimento do sin-
gular ao universal e vice-versa é sempre mediatizado pelo particular”
(ibidem, p. 112).
Em síntese, para Lênin, segundo aponta Lukács, existe uma “uni-
dade dialética” e uma “conexão contraditória” entre “singular e uni-
versal” (LÊNIN apud LUKÁCS, 1968, p. 109). Assim, a relação entre
universal e singular não é unívoca, unidirecional, mas mutuamente
determinada e dinâmica. É o que aponta Lênin a seguir:
os opostos (o singular é o oposto do universal) são idênticos: o
singular não existe senão em sua relação com o universal. […]
Todo singular é (de um modo ou de outro) universal. Todo
universal é (partícula ou aspecto, ou essência) do singular. […]
Todo singular faz parte, incompletamente, do universal etc.
Todo singular está ligado, por meio de milhares de transições,
aos singulares de um outro gênero (objeto, fenômenos, proces-
sos) etc. (apud LUKÁCS, 1968, p. 109).

Trata-se, portanto, de uma relação dinâmica e multideterminada,


entre o singular, o particular e o universal, que, dependendo do contex-
to histórico e do objeto em questão, pode variar a relação e o lugar do
que seja o universal e o particular. Nesse sentido, como afirma Lukács,
opera-se na dialética marxiana uma “relativização dialética do univer-
sal e do particular” (LUKÁCS, 1968, p. 92). Para ele,
em determinadas situações concretas eles se convertem um no
outro, em determinadas situações concretas o universal se es-
pecifica, em uma determinada relação ele se torna particular,
mas pode também ocorrer que o universal se dilate e anule a
particularidade, ou que um anterior particular se desenvolva
até a universalidade ou vice-versa (ibidem).

378
CAPITULO 7

Assim, por exemplo, a questão racial, no contexto histórico do


modo de produção capitalista, é uma particularidade do capitalismo
brasileiro, quando este último constitui nosso objeto de estudo. Aqui,
o capitalismo brasileiro expressa a dimensão universal, enquanto a
questão racial constitui uma particularidade dele. Porém, por sua vez,
se nosso objeto de investigação for a questão racial no Brasil contem-
porâneo, as relações capitalistas de produção e reprodução cons-
tituem uma particularidade da questão racial, que a diferencia, por
exemplo, da questão racial na sociedade escravocrata (notadamente a
relação salarial, e não de propriedade, que o trabalhador negro esta-
belece com o patrão) ou em países escandinavos.
Dessa forma, por um lado, isolar a dimensão universal das suas
particularidades e, ainda, das situações e dos fenômenos singulares
representa uma evidente abstração. Precisamos dotar o universal de
concretude, mediante a saturação de suas particularidades, ou seja, do-
tando o universal de mediações, na sua relação com o singular. Assim,
conforme Marx alerta: “Deve-se evitar […] fixar a ‘sociedade’ como
uma abstração em face do indivíduo” (apud LUKÁCS, 1968, p. 93).
A sociedade, assim como a classe social, sem os indivíduos e suas
“identidades” (a partir das questões de raça, de gênero, de religião, de
orientação sexual, de cultura, de nacionalidade etc.), é certamente uma
abstração.
Porém, por outro lado, tratar do indivíduo ou da “identidade” –
ou seja, do sujeito ou do fenômeno singulares – de forma desarticu-
lada do universal, da sociedade que os contém e os determinam – a
sociedade burguesa –constitui também uma abstração – concebendo-se
o indivíduo e/ou a “identidade” isolados da totalidade social, portanto
abstratos, representando, nos termos de Marx, uma verdadeira “robin-
soneada” (MARX, 1877, p. 201).
A razão pós-moderna é refém da singularidade. Prisioneira do singular,
ela não supera o dado específico, a dimensão singular da realidade, e
não alcança o conhecimento universal, como é próprio da teoria social
da modernidade. O fato singular, o fenômeno isolado, a subjetividade
individual são seu único e máximo horizonte. É por isso que ela é pós-
-moderna, é por isso que ela é antimoderna e, mais ainda, é por isso que,

379
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

no campo das esquerdas, ela se torna antimarxista; ela é abstrata porque


é uma singularidade destotalizada. Assim, a particularidade, como me-
diação entre o singular e o universal, é transformada em mera singulari-
dade – nada além do singular. O universalismo esvai-se no particularismo.
Segundo Celso Frederico, ao diferenciar o “universalismo” do “culto
às diferenças” (2020), “uma coisa é [algo] ser particular [como a ‘iden-
tidade’], outra é pregar o particularismo” (ibidem). Para ele, “o princí-
pio universalista e a igualdade entre os homens foram bandeiras do
Iluminismo que informaram a Declaração dos Direitos Humanos. Na
sequência, o marxismo passou a lutar pela igualdade econômica entre
os homens” (ibidem). Assim, citando Eric Hobsbawm:
O maior perigo político imediato, que ameaça a historiografia
atual, é constituído pelo “anti-universalismo” para o qual “a
minha verdade é tão válida quanto a sua, sejam quais forem os
“fatos”. O anti-universalismo seduz, naturalmente, a história dos
grupos identitários, nas suas diferentes formas, para os quais o
objeto essencial da história não é o que aconteceu, mas de que
modo o que aconteceu diz respeito aos membros de um grupo
particular (apud FREDERICO, 2020).

Para o historiador marxista inglês, “em geral, o que conta para esse
tipo de história, não é a explicação racional, mas ‘o significado’”; assim,
“o fascínio do relativismo impactou a história dos grupos identitários”
(ibidem). Dessa forma, continua Frederico:
Relativismo; recusa do universal; a interpretação ao invés do
acontecimento histórico; a desmaterialização da realidade – são
esses os ingredientes principais que compõem o repertório dos
Cultural Studies e dão vida ao mau-infinito das proliferantes di-
ferenças. Esse movimento cultural, como acreditamos, ganhou
considerável impulso com a “derrota da igualdade”. Este é o seu
aspecto regressivo (ibidem).

A “identidade”, por conseguinte, quando desarticulada da totali-


dade social, que a contém e a determina, torna-se assim uma “identi-
dade” abstrata.

380
CAPITULO 7

Os indivíduos não são a somatória das suas “identidades”, não são


a soma de partes ou de particularidades. Eles são uma totalidade com-
posta de particularidades, porém integrantes dessa totalidade. Isto é,
não posso pensar a “identidade” da mulher, do negro ou do gay disso-
ciada da totalidade que é o indivíduo.
Devemos, portanto, saturar as categorias abstratas de classe social
das diversas particularidades e “identidades” que a compõe e lhe dão
concretude histórica, tornando-a uma classe composta de homens e
mulheres, de trabalhadores negros e brancos, de indivíduos de nações
e religiões diversas etc., expressando variadas relações no interior da
classe.
Devemos também contextualizar e articular as situações, relações
e “identidades” singulares com a universalidade, com a estrutura que
as contém e as determina, saturando-as de múltiplas determinações
e particularidades, fazendo de cada processo identitário e de cada re-
lação de opressão um processo no interior da sociedade capitalista e
por ela reconfigurado e determinado.

C) Causas, lutas e “pautas” identitárias: retomando a questão


Retomemos, a partir de nossa discussão até aqui, os conceitos de
causas, lutas e pautas identitárias (ver item 2.6).
Por um lado, as chamadas causas identitárias são justas, neces-
sárias e urgentes, pois são fundadas em reais e concretas relações de
opressão e desigualdade. São as causas do sexismo ou machismo, do
racismo, da homofobia, da xenofobia, da intolerância religiosa, da de-
fesa do meio ambiente etc., que se expressam ou se manifestam como
discriminação racial, sexual etc., como violência de gênero, policial,
racial etc., como assédio, como desigualdade salarial e de acesso a
oportunidades no trabalho, na universidade etc. Essas causas identi-
tárias, como vimos anteriormente (item 6.2), são expressões e manifes-
tações da “questão social” e são, portanto, fundadas nesta última. Em
torno delas, os grupos e movimentos (identitários) precisam travar
lutas contra a estrutura opressiva e contra a cultura discriminatória,
que se fundam em padrões societários: o patriarcado, a herança es-
cravocrata e colonial, a condição de periferia e, por fim, o modo de

381
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

produção capitalista, que refuncionaliza e reconfigura tudo a partir


da sua lógica e da sua dinâmica.
São causas particulares, a partir de situações singulares, dentro de
uma universalidade.
Dessa forma, por seu turno, as chamadas lutas identitárias re-
presentam uma forma de embate contra os sistemas particulares de
opressão, discriminação e desigualdade, aos quais são submetidos
certos grupos – chamados por alguns de “minorias” e por outros de
“grupos identitários”; na verdade, são os setores subalternos e/ou
oprimidos –, que não podem (não devem) dissociar suas lutas das
lutas contra o sistema capitalista – que contém, reconfigura e deter-
mina (mesmo que em última instância) todas as formas de relações e
de processos sociais.
São, nesse mesmo sentido, lutas justas, necessárias e urgentes. Es-
sas lutas particulares precisam, assim, estar articuladas às lutas mais
universais.
Por outro lado – e quase poderíamos dizer: “contrariamente” –,
as chamadas “pautas” identitárias são a interpretação e a ressignificação
(tergiversadas) que o pensamento pós-moderno faz daquelas causas,
agora em geral dissociadas e desarticuladas da totalidade social, trans-
formadas em “causas específicas” ou “exclusivas” de um grupo deter-
minado, separadas das outras lutas particulares e dos fundamentos
universais, agora transformadas em “ações específicas”, compensatórias,
afirmativas, inclusivas, agora transformadas em finalidades.
As causas particulares são assim reduzidas à singularidade e trans-
formadas em causas específicas, autônomas, e as lutas particulares são
desconectadas das lutas mais universais, tornando-se também, dessa
forma, ações específicas orientadas exclusivamente para atender a gru-
pos específicos.
Ora, como aponta Frederico, “enquanto essas políticas identi-
tárias permanecem prisioneiras de uma concepção de cultura auto-
nomizada que glorifica os indivíduos híbridos, a crise estrutural do
capitalismo segue em ritmo frenético, desorganizando a solidarieda-
de social e neutralizando o potencial revolucionário das chamadas
minorias” (2020).

382
CAPITULO 7

Assim, ao falar de questões, causas e lutas particulares (antiopressivas),


estamos claramente diferenciando-as tanto da “lógica identitarista” pós-mo-
derna, quanto das pautas e ações isoladas “identitaristas”. Vejamos bem.
Por um lado, elas não são questões, causas ou lutas meramente
identitárias. Não são apenas “identidade”, autopercepção, autoimagem,
mera subjetividade. Elas fundamentalmente representam atributos e
condições reais dos sujeitos, em face de determinadas relações concre-
tas de opressão, discriminação ou desigualdade. Relações estas deter-
minadas pela estrutura social mais ampla e universal.
Por outro lado, elas também não remetem a questões, causas e
lutas singulares. Elas não são isoladas, autônomas, autodeterminadas,
independentes da totalidade social.
Tratam-se, na verdade, de questões, causas e lutas particulares. São
“particulares”, porque representam particularidades do sistema que as
contém e as determina, porque são aspectos constitutivos e constituídos
da/pela totalidade social.
Em síntese, as causa e lutas particulares podem e devem fazer par-
te das causas e lutas mais universais. E vice-versa.

7.3- O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e


articular todas as lutas de classe e antiopressivas particulares
(“identitárias”)

Chegamos ao momento em que podemos, à luz das reflexões até


aqui apresentadas, tratar do projeto emancipatório revolucionário e da
necessidade imperiosa de incorporar e articular todas as lutas, no âmbi-
to da sociedade civil, do Estado, do mercado e da esfera produtiva em
torno da exploração e das diversas formas de opressão, a partir da clas-
se trabalhadora e das variadas “identidades” ou grupos subalternos, de
curto, médio e longo prazos, visando as reformas no interior da ordem
vigente, em torno da emancipação política, e no caminho revolucionário
para a transformação social, para alcançar a emancipação humana.
Já afirmamos que reformas e revolução não são questões alternativas,
pois as primeiras (quando não isoladas e transformadas em fins últimos)
constituem objetivos de curto prazo, enquanto a revolução representa a

383
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

finalidade de longo alcance; as reformas são meios para o fim revolucio-


nário. Ainda, a partir de Marx, vimos que a emancipação humana não é
uma decorrência mecânica e direta da emancipação política, mas aquela
tem esta como condição necessária.
Também vimos que exploração e opressão representam formas di-
ferentes de relações sociais, a primeira expressa uma contradição entre
as classes em função da apropriação do valor produzido por uma e
usurpado pela outra, contradição que é insuprimível no capitalismo,
enquanto a segunda aponta desigualdades sociais, as quais podem ser
efetivamente superadas no âmbito da sociedade burguesa. Porém, no
MPC, nem a exploração nem a opressão podem ser compreendidas nas
suas múltiplas determinações sem a recorrência de uma à outra forma
de relação.
Chamamos ainda a atenção para o fato de as classes sociais e as cha-
madas “identidades” de grupos subalternos não serem a mesma coisa
(classe não é “identidade”, nem a “identidade” se resume a classe), mas
também não serem excludentes. A classe (trabalhadora) é composta de
diversas “identidades”, enquanto as “identidades” são atravessadas
pela questão de classe. Os indivíduos reais e concretos pertencem a
uma classe social (mesmo que “em si”) e simultaneamente possuem
diversas “identidades”.
Em função de tudo isso, observamos que as lutas de classes e as lutas
antiopressivas (ou identitárias) envolvem processos, relações, situações e
objetivos os mais diversos, porém, ao contrário do que aparece na “ló-
gica identitarista” pós-moderna, também não são incompatíveis nem
excludentes.
Por tudo isso, é mister neste nosso último item considerar a capaci-
dade e a necessidade de articulação das lutas de classes e antiopressi-
vas num projeto efetivamente emancipatório e revolucionário.

A) As lutas antiopressivas (identitárias) devem se articular,


como particularidades, à totalidade social
A “lógica identitarista” pós-moderna, como temos apontado, des-
totaliza as lutas identitárias, as quais passam a ser autonomizadas e
postas numa polarização pessoalizada entre o “nós” e o “eles”.

384
CAPITULO 7

Assim, ao retirar das reivindicações, causas e lutas antiopressivas


(identitárias) o fundamento capitalista e a centralidade da classe, su-
primindo assim o substrato anticapitalista e revolucionário, o que fica
é apenas a “questão particular”, reduzida à sua própria singularidade,
como se fosse uma questão autônoma, independente, desconectada da
totalidade social: uma questão de raça, ou de gênero, ou de orientação
sexual etc.
Dessa forma, essa “causa particular” e “identitária”, levada à singu-
laridade (em tese e na realidade), poderá estar presente em movimen-
tos, organizações e pautas tanto de esquerda como de direita. Assim,
há frações do movimento negro, feminista, LGBT etc., pertencentes ao
espectro político de esquerda e de direita, ou às classes trabalhadoras e
burguesa. Basta registrar, a modo de exemplo, o chamado “feminismo
burguês” representado, por exemplo, pelas atrizes “globais”, ou as po-
sições racistas do presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo,
nomeado por Bolsonaro, e, ainda, os chamados “gays de direita”, re-
presentados nas posições do ex-senador Clodovil sobre as paradas do
orgulho gay e sobre a ditadura militar.71
Podeá se afirmar, das fileiras da esquerda, que eles não pertencem
aos movimentos, ou que este é um “negro embranquecido”, ou aquela
é uma “mulher machista”, ou aquele outro é um “gay conservador”.
Mas o fato é que, se retirarmos a centralidade de classe, e isolarmos
a questão particular da totalidade social, como o faz a racionalidade
pós-moderna e o pensamento liberal, isso dá margem a uma diversi-
dade de formas de interpretação e “identificação” em todo o espectro
ideopolítico, da esquerda até a direita. Uma mulher “empoderada”, di-

71 Ver, sobre “feminismo burguês”: <https://anovademocracia.com.br/no-34/322-a-


atualizacao-do-feminismo-burgues>; <https://www.cartacapital.com.br/blogs/sororidade-em-
pauta/emancipacao-dos-corpos-femininos-a-superacao-do-feminismo-burgues/>; <http://
revistaprincipios.com.br/artigos/15/cat/2245/as-diferentes-concep%C3%A7&otildees-no-
movimento-feminista.html>; <https://noticiasanarquistas.noblogs.org/post/2016/06/10/
chile-a-cumplicidade-do-feminismo-burgues-com-o-capitalismo-e-o-estado-policial/>; <http://
novaresistencia.org/2017/09/06/o-feminismo-e-burgues/>.
Sobre “gays de direita”: <https://epoca.globo.com/mundo/noticia/2018/06/como-
extrema-direita-francesa-conquistou-o-apoio-de-grande-parte-da-populacao-gay.html>;
<https://epoca.globo.com/politica/noticia/2018/06/gays-de-direita.html>; <https://epoca.globo.
com/politica/noticia/2018/06/gay-de-direita-clodovil-e-lembrado-por-polemicas-no-plenario.
html>. Acessos de todos em maio de 2020.

385
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

rigente empresarial, que submete as mulheres operárias à opressão e à


exploração de classe, pode se reivindicar como “feminista”, e sua con-
quista pessoal será vista como uma conquista das mulheres. Um ho-
mem negro que conquistou um lugar na elite do futebol, da cultura, da
política ou do mundo empresarial, e submete os(as) trabalhadores(as)
negros(as) a um tratamento semelhante ao que o senhor do engenho
dispensava aos escravos, poderá mesmo assim se reivindicar como al-
guém que conquistou o sucesso no “mundo branco”.
Como já foi dito, ocupar individualmente espaços de poder não
constitui em si um caminho para a destruição desse poder. Vejamos:
uma mulher empresária, ou que ocupa um cargo de comando numa
multinacional, que explora outras mulheres e homens trabalhadores;
ou um(a) político(a) negro(a) que chega ao topo do poder de uma
nação servindo aos interesses imperialistas, como Barack Obama ou
Angela Merkel; ou uma mulher no comando de um ministério, como
Tereza Cristina Dias, a ministra do governo Bolsonaro que defende os
interesses do agronegócio – todos eles, para além da questão simbólica,
não representam conquistas da luta pela igualdade de gênero, racial ou
de classes.
Destituído da totalidade, o indivíduo de uma comunidade su-
balterna, se não emprega esse poder para combater o poder, não traz
benefícios para os demais membros do coletivo, não diminui a desi-
gualdade e a opressão que eles vivem, servindo mais para legitimar o
poder, criando uma ilusão simbólica, romântica e extremamente con-
servadora de que o caminho individual, aquele que deixa as estruturas
do poder intactas, seria mais factível que a luta contra o sistema de
opressão e exploração.
É preciso retotalizar as questões, as causas e as lutas identitárias,
antiopressivas e particulares no interior da totalidade social.
Ao fazer isso, até as causas particulares que impactam diretamente
num grupo específico, numa “identidade” particular, dizem respeito,
mesmo que de forma diferenciada, ao conjunto da sociedade. O com-
bate ao racismo, por exemplo, é um problema civilizatório, universal.
Assim, as lutas particulares, antiopressivas ou “identitárias” não
pertencem apenas ao grupo (identitário) em questão, mas devem ser

386
CAPITULO 7

travadas por todos aqueles que defendem a igualdade social, a justiça


e a emancipação humana. Trata-se de uma luta particular, que impacta
diretamente num grupo específico, mas que constitui uma luta huma-
nitária e, portanto, podem e devem envolver todos os sujeitos compro-
metidos com a emancipação, para além dos grupos, das minorias ou
das “identidades” das causas específicas, as quais certamente detêm
um importante papel. É o que afirma Haider, citando Noel Ignatiev e
Theodore Allen:
“o fim da supremacia branca não é unicamente uma reivindi-
cação dos negros, separada das reivindicações da totalidade da
classe trabalhadora”. Não podia ser deixado aos trabalhadores
negros lutar contra a supremacia branca como sua causa “espe-
cial”, enquanto os trabalhadores brancos fariam pouco mais do
que expressar simpatia e “lutar por suas ‘próprias’ reivindica-
ções”. A luta contra a supremacia branca era central à luta de
classes num nível fundamental (2019, p. 77).

O sucesso de uma causa particular, identitária, está não apenas


em congregar e mobilizar os membros do próprio grupo, mas na ca-
pacidade de convocar e envolver os “outros” nessa causa, a partir
da mobilização da alteridade e da empatia. E isso se alcança mais
facilmente a partir da articulação de diversas causas particulares num
movimento e num objetivo mais amplos e universais, anticapitalistas,
antissistemas, emancipatórios. Esse é o caminho para a hegemonia
política da classe trabalhadora e dos grupos subalternos, no caminho
para a emancipação, no combate a toda forma de opressão, discrimi-
nação e exploração.
A luta antiopressiva, ou identitária, não deve restringir – ao con-
trário, ela deve pressupor a solidariedade entre diversos sujeitos, diver-
sas causas e diversas condições sociais: negros, brancos, amarelos, ho-
mens, mulheres, heterossexuais, LGBTs, de todas as nações, de todos
os credos, de diversos estratos socioeconômicos, comprometidos com a
emancipação. O que os une, em cada uma das lutas particulares, não é
a “identidade” específica, mas o desejo de justiça e de igualdade social,
a luta pela emancipação humana, a solidariedade de classe.

387
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Nesse cenário, só a articulação de todas essas causas e de todas


essas lutas, atravessadas pela questão de classe, permite um horizon-
te anticapitalista e uma perspectiva de transformação social que exija
a superação da ordem burguesa.
Assim, por um lado, as lutas identitárias (ou antiopressivas par-
ticulares) não podem ser desarticuladas ou dissociadas da questão de classe,
sob risco de se tornarem “pautas” isoladas da totalidade. Se assim
fosse, estaríamos tratando de lutas alternativas, dissociadas, desar-
ticuladas umas das outras. Por outro lado, também estas lutas antio-
pressivas particulares não podem ser reduzidas e secundarizadas na/pela
questão de classe, pois elas têm suas particularidades e uma relativa
autonomia. Dessa forma, conforme sustenta Petras ao tratar das ques-
tões de classe e gênero no processo de luta revolucionário, devemos
enfrentar as duas “falsas alternativas: o feminismo burguês e o reducio-
nismo classista” (PETRAS, 1999, p. 407); ou seja, devemos tanto recusar
a alternativa que isola completamente a questão de gênero – desarti-
culada da classe, juntando numa mesma “identidade” as mulheres
patroas e as mulheres operárias, como se a realidade delas enquanto
mulheres fosse equiparável –, assim como também devemos rechaçar
a alternativa que reduz e secundariza a luta pela igualdade de gênero,
subordinando-a à questão de classe – como se a desigualdade entre
gêneros não fosse relevante.

B) As lutas de classes devem incorporar as bandeiras das


lutas antiopressivas (identitárias)
Como já afirmamos, a classe trabalhadora é pluri-identitária, sendo
ela composta de diversas “identidades” de gênero, étnico-racial, de
religião, de orientação sexual, de cultura, de nacionalidade etc.
Portanto, a classe trabalhadora é perpassada por todas essas ques-
tões. Ela não pode ignorá-las, não pode secundarizá-las e não pode
deixá-las para depois da “grande revolução socialista”. Ela precisa re-
conhecê-las, tratá-las internamente e incorporá-las, mesmo que com
certa autonomia, como particularidades e formas complementares das
lutas de classes. Pois não haverá sociedade verdadeiramente emanci-
pada sem a superação tanto da contradição de classes, sustentada na

388
CAPITULO 7

exploração, como das variadas formas de desigualdade e discrimina-


ção social, sustentadas nas diversas formas de opressão.
As lutas de classes, centradas na exploração da força de trabalho,
são lutas emancipatórias. As lutas antiopressivas, chamadas de “lutas
identitárias”, são particularidades das lutas pela emancipação, tanto
política como humana.
Portanto, as lutas de classes devem incorporar todas as bandeiras,
causas e “pautas” identitárias como lutas particulares de um embate
universal.
“Nenhuma a menos” e “Vidas negras importam” são consignas e causas
que devem constituir bandeiras das lutas de classes! E não apenas dos
respectivos grupos identitários, porque são bandeiras emancipatórias
particulares.
Ainda mais, essas pautas pontuais e conjunturais devem ser am-
pliadas numa luta contra toda forma de opressão, discriminação e de-
sigualdade, e suas causas devem ser bandeiras constitutivas e consti-
tuintes das lutas de classes, alcançando a luta pela igualdade social em
todas suas dimensões.
A luta de classes deve ser uma luta pela igualdade social, pela
emancipação e deve, portanto, impactar em todas as esferas da realida-
de social onde houver opressão e desigualdade.
Nesse sentido, como afirma Florestan Fernandes, mesmo que to-
dos os trabalhadores, enquanto tais, apresentem os mesmos interesses
gerais, no entanto, “existem trabalhadores que possuem exigências di-
ferenciais, e é imperativo que encontrem espaço dentro das reivindi-
cações de classe e das lutas de classe”; já que entre classe e raça não há
contraposição, mas interpenetração (apud ALMEIDA, 2019, p. 188).
Mas essa interpenetração (entre classe e “identidade”) é diferen-
ciada, pois, mesmo não havendo maior importância ou relevância, mas
sim uma centralidade da questão de classe, em torno da exploração (ver
item 6.3), dado o fato de ela constituir um fundamento da sociedade
capitalista, sua superação, portanto, tem como condição a superação
da ordem burguesa.
Dessa forma, como viemos afirmando, se a contradição de classe –
mesmo que todas as formas de discriminação, opressão e desigualdade

389
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sejam igualmente importantes – tem uma clara centralidade, dado o fato


de constituir um fundamento da ordem burguesa, então, em idêntico
sentido e por derivação, as lutas de classes – mesmo que as lutas par-
ticulares (identitárias) sejam igualmente necessárias e urgentes – tam-
bém têm um lugar central, dado que elas têm a (exclusiva e imperiosa)
necessidade de superar a ordem capitalista, o que lhes confere um pa-
pel aglutinador e articulador de todas as lutas particulares.
A “identidade”, fundada na diferença e, via de regra, em relações
desiguais e de opressão, quando isolada da totalidade, tende a de-
sarticular e a fragmentar a organização e as lutas políticas, inibindo a
unidade de grupos identitários diferentes e/ou da classe trabalhadora.
Contrariamente, a classe social, fundada no antagonismo e na contradi-
ção entre capital e trabalho, quando penetrada por todas as formas de
opressão e desigualdade, permite a confluência no interior da classe
trabalhadora (no sentido mais amplo da palavra) de diversas “identi-
dades”, grupos sociais e setores oprimidos que, lutando por suas rei-
vindicações e demandas particulares, lutam contra a estrutura social e
por uma sociedade emancipada.
Assim, enquanto a “identidade / diferença”, se isolada (como o
faz a “lógica identitarista” pós-moderna), tem uma lógica segmenta-
dora, fragmentadora da unidade dos setores progressistas, contraria-
mente estes setores são potencialmente reunidos em torno da classe
trabalhadora quando ela incorpora todas as lutas antiopressivas a par-
tir de um projeto anticapitalista e emancipatório.
Isto é, quando articulada com a classe, a luta feminista pela igual-
dade de gênero se torna também uma luta anticapitalista pela igualda-
de social e pela emancipação humana. Aqui a igualdade de gênero é
entendida como uma particularidade da igualdade social. O particular
se integra ao universal, a tática se articula à estratégia, os objetivos ime-
diatos se orientam para as finalidades mediatas.
É nesse sentido que Petras afirma que “a partir de uma perspectiva
estratégica, a classe molda a política de gênero [e demais causas parti-
culares], mas não vice-versa” (1999, p. 414), o que “não exclui a possibi-
lidade de algumas alianças táticas entre as mulheres de ambas classes”
(ibidem). Esse “moldar” não significa subsumir uma à outra, mas uma

390
CAPITULO 7

articulação entre as lutas particulares e as lutas de classes, norteada


pelo horizonte anticapitalista, revolucionário.
Assim, as lutas particulares ampliam e enriquecem as lutas de clas-
ses no curto prazo, enquanto que as lutas de classes dão um horizonte
de longo alcance às causas particulares, para além das especificidades
delas. Dessa forma, como afirma Petras, “nem o essencialismo feminis-
ta [ou identitarista] nem o reducionismo de classe” (ibidem).
Isso não significa que o conjunto das lutas emancipatórias deva se
esgotar nem na contradição de classes, nem tampouco no campo estri-
tamente econômico. Nesse sentido, como aponta Wood,
Já não se admite sem discussão na esquerda que a batalha deci-
siva pela emancipação humana vai ocorrer no campo “econômi-
co”, o terreno da luta de classes. Para muitas pessoas, a ênfase se
transferiu para o que denomino bens extraeconômicos – emancipa-
ção de gênero, igualdade racial, paz, saúde ecológica, cidadania
democrática. Todo socialista deveria estar comprometido com
esses objetivos – na verdade, o projeto socialista de emancipação
de classe sempre foi, ou deveria ter sido, um meio para o objetivo
maior da emancipação humana (2006, p. 227).

Isto é, nem a supremacia do econômico, nem do político ou cultural.


Porém é necessário que esses “impulsos emancipatórios” consi-
gam agir “no centro da vida social, no coração da sociedade capitalista”
(ibidem), articulados com as lutas de classe e com um projeto anticapita-
lista. Assim, como sentencia a mesma autora,
não devemos confundir respeito pela pluralidade da experiência
humana e das lutas sociais com a dissolução completa da causa-
lidade histórica, em que nada existe além de diversidade, dife-
rença e contingência, nenhuma estrutura unificadora, nenhuma
lógica de processo, em que não existe o capitalismo e, portanto,
nem a sua negação, nenhum projeto de emancipação humana
(ibidem, p. 225).

Como viemos afirmando, as lutas de classes e o projeto revolu-


cionário socialista devem incorporar as bandeiras contra o racismo, o

391
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

sexismo ou machismo, a LGBTfobia etc. Sem elas não há verdadeira


emancipação humana.
O projeto socialista e as lutas de classes devem conter e incorporar
as causas e as lutas ditas “identitárias”, mas não o que aqui chamamos
de “lógica identitarista” pós-moderna. Não se trata apenas de que a
questão de classe seja incorporada no movimento feminista, no movi-
mento negro ou no movimento ecológico. Trata-se também de que as
causas e os movimentos contra o machismo, contra o racismo, contra
a homofobia etc. sejam incorporados e articulados ao movimento de
classe, socialista, emancipatório.
Mas isso não significa uma primazia da classe sobre as “identida-
des”, ou da exploração sobre a opressão. Não se trata de uma relação de
subordinação de uns (os movimentos antiopressivos) a outros (o mo-
vimento operário). Também não se trata de uma prioridade, do tipo:
antes (as lutas operárias) e depois (as lutas antiopressivas).
Trata-se do fato de a luta anticapitalista e socialista ser, pela pró-
pria natureza, uma luta universal, em dois sentidos.
Por um lado, no sentido de poder incorporar e articular todas as lu-
tas antiopressivas, que com suas particularidades passam a fazer parte
das lutas do conjunto dos(as) trabalhadores(as): anticapitalista e an-
tiopressiva.
E, por outro lado, no sentido de que as lutas de classes e o projeto
socialista e emancipatório não representam uma luta contra o indivíduo
burguês, mas contra a ordem burguesa. Eles visam suprimir as clas-
ses, e não inverter a relação de dominação. Trata-se de um projeto
não de emancipação dos trabalhadores, mas de emancipação humana.
O projeto socialista não se orienta para um sujeito particular (o traba-
lhador), mas para o conjunto da humanidade. É um projeto civiliza-
tório, emancipatório.
A organização e as lutas dos(as) trabalhadores(as) pode dar às lu-
tas particulares ou identitárias essa orientação universal, que no curto
prazo orientam-se para a eliminação das formas de opressão, discri-
minação e desigualdade, mas atreladas no longo prazo a um projeto
emancipatório para toda a humanidade.

392
CAPITULO 7

C) O projeto emancipatório revolucionário deve incorporar e


articular todas as lutas de classe e antiopressivas (“identitárias”)
Em síntese, um projeto efetivamente emancipatório deve incor-
porar todas as formas de lutas, as contra a exploração e as contra a
opressão, as de classes e as identitárias, as por “redistribuição” e as
por “reconhecimento”, orientadas para as conquistas particulares,
como um meio para alcançar a finalidade: a transformação social e a
emancipação humana, a partir da superação do capitalismo e a tran-
sição ao socialismo.
Assim, se por um lado o pensamento liberal dilui (ou esconde)
a contradição de classes na abstrata noção de “cidadão”, por outro o
pensamento pós-moderno escamoteia a contradição de classes atrás
do conceito de “identidade”, polarizando-a de forma autônoma e for-
mando uma relação de opressão, ou desigualdade, retirada da totali-
dade social.
É preciso devolver à categoria “identidade” a contradição de classe
que a atravessa, como é também necessário complexificar a compreen-
são da classe com a diversidade de “identidades” que a compõe e dão
concretude histórica a ela.
É preciso ver as “identidades” compostas de classes, assim como é
necessário ver as classes conformadas por “identidades”.
Não temos que optar, na análise ou na ação política, por uma ou
outra, pela classe ou pela “identidade”, temos que cruzá-las, articulá-
-las e interpenetrá-las.
Segundo Losurdo, “a luta de classes emancipadora tende a trans-
cender os interesses dos explorados e dos oprimidos que a promovem”
(2015, p. 91), alcançando uma dimensão universal. Isto é, a relação de
opressão aprisiona no seu interior, mesmo que desigualmente, tanto o
opressor quanto o oprimido. O opressor é opressor sim, mas isso não o
torna livre e emancipado. Assim, sustenta Losurdo, “observamos que em
diversas ocasiões Marx e Engels afirmam que ‘não pode ser livre um
povo que oprime outro’” (ibidem, p. 113). Portanto, superar a opressão
é uma demanda imediata do setor oprimido, mas representa no longo
prazo uma conquista humano-genérica, civilizatória.

393
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Losurdo afirma ainda que “não é possível traçar uma linha clara
entre a luta pela redistribuição [em torno da exploração] e a luta pelo
reconhecimento [em torno das formas de opressão]” (ibidem, p. 112).
Isto é, para Marx e Engels, conforme o autor italiano, as lutas de clas-
ses são simultaneamente lutas pela redistribuição de renda e lutas pelo
reconhecimento, isto é, contra a exploração e contra as diversas formas
de opressão.
Portanto, se, como afirmam os autores do Manifesto Comunista, “a
história de todas as sociedades até hoje existentes é a história das lutas
de classes” (MARX e ENGELS, 2010, p. 40), se “opressores e oprimidos,
em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta” (ibidem),
e se as lutas de classes são simultaneamente lutas redistributivas (ou
por distribuição da renda) e por reconhecimento, então resulta plena-
mente infundado atribuir a Marx uma primazia das lutas econômicas
(redistributivas, em torno da exploração) em detrimento das lutas polí-
ticas, antiopressivas (ou identitárias).
Ao contrário, podemos afirmar que na obra marxiana, e em boa
parte da tradição marxista, a história de todas as sociedades é a história
do conjunto de lutas emancipatórias, econômicas e políticas, por redis-
tribuição de renda e por reconhecimento, contra a exploração e contra
as variadas formas de opressão, sejam de classe ou identitárias.
É a partir da organização e da luta das classes “oprimidas e calu-
niadas” que “os ‘bárbaros’ e os ‘selvagens’ deixaram de ser tais porque
se reconheceram reciprocamente como membros de uma classe explo-
rada e oprimida, convocada a alcançar a emancipação pela luta” (LO-
SURDO, 2015, p. 117).
Conforme aponta Losurdo, “os momentos mais altos da história”
das lutas de classes “foram aqueles nos quais se fugiu da fragmenta-
ção, de modo que as diversas lutas confluíram em uma única poderosa
onda emancipadora” (ibidem, p. 312).
Nesse sentido, adotando a noção marxiana (tratada por Losurdo)
sobre as duas dimensões das lutas de classe, a luta por “redistribuição”
(em torno da desigual distribuição do valor oriunda da esfera produti-
va, fundada na exploração de classes) e luta por “reconhecimento” (em
torno do acesso à cidadania, fundado na opressão), Safatle afirma a

394
CAPITULO 7

necessidade da esquerda superar a primazia na organização do campo


social e político “a partir da equação das diferenças […], tão presen-
tes nas dinâmicas multiculturais” (2018, p. 29), insistindo no desafio
de centrar a organização e as lutas da esquerda no radical projeto do
“igualitarismo”, pois, para ele, “não há esquerda lá onde se abando-
nam ideias como a centralidade dos processos de redistribuição ins-
titucionalizados como política de Estado, a indiferença em relação às
diferenças identitárias, o universalismo” (ibidem, p. 83).
Como afirma Petras, devemos diferenciar dois tipos de luta: a luta
“violenta entre classes inimigas” (lutas centradas na contradição e na
exploração de classes) e a luta “não violenta entre homens e mulhe-
res, no âmbito da mesma classe” (centradas nas relações de opressão)
(1999, p. 404). Nós tratamos essa diferenciação como “lutas de classe” e
“lutas sociais” (ver MONTAÑO e DURIGUETTO, 2010, p. 117-120), ou
lutas antiopressivas (identitárias). Ali sustentamos que a multiplicidade
e variedade de questões particulares “não pode nos levar a ignorar o
fato de que elas se fundam na contradição capital-trabalho. Assim, as lutas
sociais [ou ‘particulares’] estão presentes diretamente nas contradições
estruturais (capital-trabalho) e nas suas manifestações (refrações da
‘questão social’), configurando [diversas] formas e espaços das lutas
de classes” (ibidem, p. 117). Estrutura e dinâmica, fundamento e mani-
festação, são duas dimensões constituintes da realidade social, que não
podem ser separadas nem na análise, nem na ação.
Nesse sentido, se as formas de opressão, desigualdade e discri-
minação devem ser compreendidas como manifestações e desdobra-
mentos da “questão social” (dos fundamentos da sociedade capitalis-
ta) ou serem por ela reestruturadas e, portanto, fundadas e/ou atra-
vessadas na/pela contradição de classes; em idêntico sentido, as lutas
antiopressivas, mesmo aquelas orientadas diretamente para as mani-
festações particulares e não para o cerne ou fundamento da “questão
social”, devem ser compreendidas em parte como desdobramentos
e articuladas às lutas de classe (ibidem, p. 119). É nesse sentido que
Lukács afirma que “o filósofo não tem, portanto, o direito de lançar
um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de as des-
prezar” (1974, p. 92).

395
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Assim, podemos, na esteira de Losurdo (2015) e a partir de Marx


e Engels (ver item 4.2), compreender as lutas de classe (em sentido
amplo) nas suas duas dimensões: como lutas por “redistribuição da
riqueza” (lutas fundamentalmente econômicas, centradas na explo-
ração) e por “reconhecimento” (lutas eminentemente políticas e an-
tiopressivas).
Lutas de classe (em sentido estrito) e lutas sociais ou antiopres-
sivas (particulares ou identitárias) não são expressões contraditórias,
alternativas, mas formam parte de um processo comum, no qual às
vezes estão em níveis diferentes. As lutas antiopressivas particulares
vêm para ampliar o campo político e complementar as lutas de classe,
e não para substituí-las como alternativas, como surge da análise e
programática pós-moderna, que retira as lutas antiopressivas da to-
talidade social. As lutas na esfera da sociedade civil não são alterna-
tivas, excludentes e independentes das lutas da esfera econômica, da
produção e do mercado, nem das lutas do âmbito estatal, mas com-
plementares a todas essas. As lutas de curto prazo não podem ser
dissociadas do horizonte de longo alcance.
No fundo, não se trata de uma escolha entre a classe ou a “identida-
de”, de forma excludente. Trata-se, sim, é de priorizar qual o elemen-
to aglutinador primário das lutas: uma classe – a classe trabalhadora,
composta de várias “identidades” de gênero, étnico-racial, de cultura,
de religião etc. – ou, ao contrário, uma “identidade” – de raça ou de
gênero, composta de várias classes sociais. Certamente a particulari-
dade da “identidade”, como a questão da violência de gênero, envolve
mulheres de várias classes sociais, e a reivindicação “nenhuma a me-
nos” não pode se restringir às mulheres operárias, deixando de fora
as pertencentes à burguesia. O mesmo ocorre com a particularidade
da discriminação e violência racial, em que a demanda “vidas negras
importam” não pode atender apenas a população negra trabalhadora.
A opressão de gênero ou de raça impacta (mesmo que não igualmente)
todos os membros desse grupo identitário, de todas as classes sociais.
Mas as lutas antiopressivas não se restringem a uma questão única,
envolvendo diversas dimensões e entrecruzamentos, visando à trans-
formação estrutural de toda forma de opressão e desigualdade, numa

396
CAPITULO 7

orientação antissistema e anticapitalista, inserindo as questões particu-


lares (identitárias) na totalidade social. A condição real e concreta da
mulher remete não apenas ao machismo, mas também à exploração de
classe. A condição real e concreta da população negra, particularmente
no Brasil, não remete apenas à opressão racial, mas também à explo-
ração econômica. Portanto, o combate ao machismo, assim como ao
racismo, deve ser também uma luta contra o capitalismo.
É preciso, portanto, articular as lutas de classe com as lutas
antiopressivas particulares, as lutas nas esferas da sociedade civil,
do Estado e do mercado, as metas de curto, médio e longo prazos,
os objetivos alcançáveis “aqui e agora” com as finalidades de maior
alcance. Nessa linha, Mészáros (2003, p. 122) argumenta que
enfatizar a importância de uma perspectiva de longo prazo não
significa que possamos ignorar “o aqui e agora”. Pelo contrário, a
razão pela qual devemos nos interessar por um horizonte muito
mais amplo que o habitual é para poder conceitualizar de manei-
ra realista uma transição para uma ordem social diferente a partir
das determinações do presente. A perspectiva de longo prazo é
necessária porque a meta real da transformação só pode estabe-
lecer-se dentro de tal horizonte. Ademais, sem identificar a meta
adequada, seguramente seria como viajar sem bússola e, portan-
to, as pessoas envolvidas poderiam desviar-se facilmente de seus
objetivos vitais. Por outro lado, a compreensão das determina-
ções objetivas e subjetivas do “aqui e agora” é igualmente impor-
tante. Pois a tarefa de instituir as mudanças necessárias se define
já no presente, no sentido de que ao menos comece a realizar-se
no “exatamente aqui e agora” (mesmo que o seja de maneira mo-
desta, mas com plena consciência das limitações existentes e das
dificuldades para sustentar a jornada em seu horizonte temporal
mais distante) ou não chegaremos a parte alguma […]. A verda-
de é que não se poderá conseguir nada se ficarmos esperando as
condições favoráveis e o momento adequado.
As pessoas que advogam por uma grande mudança estru-
tural devem estar sempre conscientes das limitações que terão
de enfrentar. Ao mesmo tempo, devem estar atentas para evitar

397
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

que o peso de tais limitações se congele e se transforme na força


paralisante […] (MÉSZÁROS, 2003, p. 122).

Assim, como foi afirmado, a perspectiva de “longo alcance” não deve


subsumir a compreensão dos fenômenos cotidianos, do “aqui e agora”; a luta
pela emancipação política e humana é tanto uma luta estrutural, em
torno da central contradição de classes, fundamento do capitalismo,
quanto também um conjunto de lutas em torno das diversas e varia-
das manifestações da “questão social”, das múltiplas formas de dis-
criminação, desigualdade e opressão na vida cotidiana das pessoas. O
pensamento crítico marxista deve ter, como afirmou Eduardo Galeano,
“um olho no telescópio” e o “outro olho no microscópio”,72 observando os
fenômenos e processos sociais singulares e atentos às estruturas sociais
que os condicionam e os determinam.
Exploração e opressão não são categorias nem expressam relações al-
ternativas e excludentes. Ao contrário, ambas remetem a formas parti-
culares de desigualdade e dominação. Portanto, as lutas antiopressivas
e as contra a exploração podem e devem se articular para formarem
parte de um mesmo projeto de emancipação.
No mesmo sentido, as categorias de classe e de “identidade”, que efe-
tivamente remetem a tipos de relação diferentes – relações de produção
(as classes) e relações de opressão e discriminação (as “identidades”) –,
também não são alternativas. Portanto, podemos e devemos articular a
organização e as lutas da classe trabalhadora com a organização e as lu-
tas das mulheres, dos negros, assim como de todo coletivo social subme-
tido a diversas formas de opressão, discriminação e desigualdade social.
É verdade, como já o afirmamos, que os fins das lutas antiopressivas
particulares, ou “identitárias”, podem em si ser alcançados dentro da
ordem. Constituem-se, por assim dizer, em lutas por reformas dentro
da ordem, num processo de emancipação política.
Isto é, o capitalismo subsiste sem discriminação racial, sem discri-
minação de gênero, sem homofobia, xenofobia etc. Porém é preciso al-
guns esclarecimentos.
72 Ver em: <https://ficcao.emtopicos.com/2017/04/escrever-geral-especifico-historia/>;
acesso em jan. de 2021.

398
CAPITULO 7

Primeiro, é necessário ter clareza que, se dentro da ordem burgue-


sa é possível conquistar a igualdade de gênero, de raça etc., superan-
do o machismo, o racismo etc., isso é necessariamente uma conquista
das lutas sociais, e não de um processo natural de desenvolvimento
civilizatório do capitalismo. Isto é, o sistema capitalista pode conviver
com a (e sobreviver à) superação do machismo / patriarcalismo, do
racismo etc., mas ele não promoverá esses movimentos emancipató-
rios. A emancipação política e a superação dessas formas de opressão
serão necessariamente resultado das lutas dos setores subalternos e
oprimidos.
Em segundo lugar, o capitalismo pode sobreviver e conviver com a
igualdade de gênero, de raça, de etnia ou de nacionalidade etc., mas não
sobrevive à total ausência de desigualdade. Isto é, a ordem burguesa não
permitirá que a igualdade seja alcançada em todas as formas de opres-
são, pois ela precisa de um diferencial, de uma massa populacional para
empregar de forma precária, com salários mais baixos e para realizar
tarefas desqualificadas, insalubres ou de elevado risco. Dessa forma, a
“conjunção” gramatical deve ser “ou”, e não “e”. Trata-se, nos limites do
capitalismo, de igualdade racial ou étnica ou de gênero ou nacional etc.;
mas não de igualdade racial e étnica e de gênero e nacional etc.
Em terceiro lugar, a igualdade etnico-racial, de gênero etc. nunca
será plena no capitalismo, pois no interior de cada uma dessas cate-
gorias ou “identidades” ainda vai persistir a desigualdade oriunda da
exploração capitalista, à qual é submetida a classe trabalhadora, com-
posta de todas essas “identidades”. Portanto, a emancipação não será
completa, mesmo se alcançarmos a emancipação política. Ou seja, a
mulher, por exemplo, mesmo quando emancipada da opressão patriar-
cal, do machismo, continuará sendo explorada enquanto trabalhadora.
Isto é, por todos esses motivos, um projeto efetiva e plenamente
emancipatório, mesmo que “identitário”, deve articular as lutas antio-
pressivas particulares com as lutas anticapitalistas, deve articular as
reformas, tanto econômicas quanto políticas (como meios), com a revo-
lução socialista (como fim).
Socialista? Sim! Um socialismo construído não apenas na trans-
formação das relações de produção, mas na plena emancipação hu-

399
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

mana, alicerçada na eliminação das formas de opressão e na constru-


ção da igualdade social entre os diferentes, mas fundada na supres-
são da exploração entre as classes. Enquanto a sociedade se pautar
pelo lucro capitalista, centrado na exploração do trabalho alheio, não
haverá plena e efetiva emancipação para homens, mulheres, negros,
brancos ou de qualquer outra etnia, crença, nação, ou cultura. Sempre
haverá reserva de força de trabalho barata.
Neste sentido, conforme Lukács, se Marx, por um lado, diferen-
cia as “revoluções materiais das condições econômicas de produção” (re-
voluções das relações de produção) das revoluções sobre as “formas
jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas” (revoluções “ideo-
lógicas” segundo o autor húngaro), por outro, tal diferenciação não
constitui uma “muralha chinesa separando de modo intransponível
as grandes crises sociais [de um lado] do funcionamento normal do pro-
cesso econômico da reprodução [de outro]” (LUKÁCS, 2013, p. 464).
Isto é, afirma Lukács, “o fato de Marx falar [...] de grandes revoluções
econômicas não deve nos demover de aplicar a sua determinação à
totalidade da vida social, do desenvolvimento social” (ibidem).
A possibilidade e efetividade da articulação das lutas antiopressi-
vas particulares (“identitárias”) com as lutas contra a exploração (de
classe) está na capacidade que as duas tenham de se interpenetrarem
mutuamente. Se, por um lado, as lutas contra o racismo e contra o
machismo, por exemplo, precisam ter como horizonte o fundamen-
to anticapitalista e a contradição de classes, por outro lado,as lutas
de classes precisam ser também uma luta pela igualdade racial e de
gênero.
Esta é uma luta e um projeto que envolve todos os gêneros, to-
dos os grupos étnico-raciais, os indivíduos de todas as orientações
sexuais, de todas as culturas e nacionalidades, enfim, todas as “iden-
tidades”, porém, não envolve todas as classes sociais, mas fundamen-
talmente a classe trabalhadora!
Um projeto que visa a superação das desigualdades sociais na pre-
sença das diferenças (e “identidades”) individuais, mas pressupondo a
supressão das classes sociais. A igualdade social não exige a eliminação
das diferenças, mas sim das classes.

400
CAPITULO 7

As organizações políticas revolucionárias, anticapitalistas, que visam a


emancipação humana, devem ter a capacidade, primeiramente, de convocar,
aglutinar e articular as diversas lutas particulares, em torno das “identidades”
específicas, relacionando os objetivos táticos dos direitos identitários, das lutas
contra as formas de opressão, discriminação e desigualdade particulares, com
a finalidade estratégica da transformação social, na superação do capitalismo
e a transição ao socialismo. Mas ainda, também devem ter a capacidade de
orientar o impulso identitário, não na direção da diferença, do antagonismo, da
polarização, mas na direção da solidariedade de classe, da cooperação dos
grupos oprimidos, e dos diversos sujeitos que lutam pela emancipação
humana, da articulação das lutas... das “lutas de classes”, nas suas duas
dimensões: redistributiva (fundamento econômico das lutas, atrelado à
desigual distribuição da riqueza entre as classes na esfera produtiva) e
por reconhecimento (em torno do acesso à cidadania e à igualdade de di-
reitos, fundamentalmente nas esferas estatal e da sociedade civil), con-
tra a exploração e antiopressivas, no caminho ao socialismo, e na construção de
uma sociedade plenamente emancipada e socialmente igualitária.

401
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

402
A Modo De Conclusão

V isamos, neste texto, ao aprofundamento crítico nas relações


entre classe e “identidade”, e entre as lutas de classes e antiopressivas
(identitárias). Nosso caminho foi na contramão tanto do lugar-comum
de rejeitar a “identidade” ou de entendê-la como algo secundário, que
pode esperar a grande transformação socialista, como do lugar-comum
que absolutiza esse conceito, apresentado como oposto e alternativo da
classe social.
No campo das esquerdas, o primeiro caminho é seguido funda-
mentalmente pelo economicismo e pelo estruturalismo, inclusive no
interior da tradição marxista. O segundo é aquele trilhado pela esquer-
da pós-moderna, que transforma a “identidade”, enquanto categoria
constitutiva da realidade simbólica social, num “identitarismo”, a partir
da polarização pessoalizada (individual e grupal) entre “nós” e “eles”,
entre a “identidade” e o “diferente”, a partir da qual o projeto pós-mo-
derno visa basicamente eliminar o diferente, o “outro”, como forma de
eliminar a opressão entre eles.
Nosso caminho, ao contrário dos lugares-comuns anteriores, foi o
de reconhecer as “identidades” e as diferenças, em função das quais

403
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

se desenvolvem relações de opressão, e de salientar a importância, a


necessidade e a urgência das lutas antiopressivas particulares (lutas
identitárias). Mas diferenciando a questão da “identidade” da “lógica
identitarista” pós-moderna.
Para isso, dividimos nosso texto em duas partes.
Na primeira, tratamos da “identidade”, enquanto categoria políti-
ca, e da “lógica identitarista” pós-moderna.
Aqui, partimos, no primeiro capítulo, das origens dessa categoria,
buscando-as nas análises acionalistas dos chamados Novos Movimen-
tos Sociais, a partir das reflexões de Alain Touraine e Tilman Evers. Em
seguida nos voltamos para autores pós-marxistas e pós-estruturalistas,
como Manuel Castells, Zygmunt Bauman e Stuart Hall. Finalizando
com a abordagem liberal das “políticas identitárias”.
No segundo capítulo, tratamos primeiramente da constituição da
“identidade” como representação e autoimagem construída a partir de
uma condição real ou simbólica, e como essa categoria contribui para a
análise complexa da realidade complexa, assim como para o processo
emancipatório. E, em segundo lugar, analisamos como a categoria “iden-
tidade” é transmutada em “identitarismo” a partir da vertente pós-mo-
derna, mediante a polarização pessoalizada entre “nós” e “eles”.
O terceiro capítulo completa o tripé da “lógica identitarista”, com-
posto pela polarização “nós / eles” e: pelo chamado “lugar de fala”,
enquanto referencial do discurso político, e pela dita “pós-verdade”,
enquanto expressão de uma “realidade concebida”.
O quarto capítulo é dedicado aos três principais instrumentos e ob-
jetivos políticos sustentados nessa lógica, a saber: o “punitivismo” de
esquerda, o “reconhecimento” e a “inclusão”, e finalmente o chamado
“empoderamento” dos sujeitos.
Fechando a primeira parte, no quinto capítulo consideramos a in-
vasão pós-moderna na esquerda, seu impacto no enfrentamento do
avanço ultraconservador no Brasil e no mundo, assim como as formas
de crítica ao identitarismo e a necessidade de uma análise crítica que,
reconhecendo a “identidade” como categoria teórica e política, supere
a “lógica identitarista” pós-moderna.

404
A MODO DE CONCLUSÃO

É isso que abre a segunda parte do texto, dedicada à análise mar-


xista (histórico-dialética) sobre a necessidade de articulação das lutas
de classe e das lutas antiopressivas.
Assim, no sexto capítulo nos voltamos para a contradição de classe
e as desigualdades identitárias, como campos de luta diferentes, mas não
alternativos ou excludentes. Nele, diferenciamos as dialéticas “identi-
dade / diferença” (individual e grupal) e “igualdade / desigualdade”
(social), o que nos permite distinguir o projeto “identitarista” do proje-
to “igualitarista”. Tratamos das “identidades” como manifestações da
“questão social”, historicamente determinadas. E finalmente conside-
ramos a centralidade de classe.
No último capítulo, dedicamo-nos a tratar das lutas de classe e das
lutas antiopressivas, a partir da análise marxista (dialética). Iniciamos
apresentando, mesmo que sintética e didaticamente, alguns pressupos-
tos marxistas presentes nas dialéticas: “reforma / revolução”, “eman-
cipação política / humana”, “exploração / opressão” e “estrutura / su-
perestrutura”. Voltamo-nos, a partir daí, para a diferenciação entre a
categoria “identidade” e a “lógica identitarista” pós-moderna. Finali-
zamos nosso estudo considerando a necessidade, para o projeto eman-
cipatório revolucionário, de incorporar e articular todas as lutas, as de
classe e as antiopressivas (identitárias).
Nesse percurso, pensamos ter dado os subsídios necessários e sufi-
cientes para sustentar que não se trata de ignorar a importância dessas
“lutas particulares” antiopressivas, certamente civilizatórias e emanci-
patórias. Sem o sucesso delas não haverá emancipação política, e muito
menos humana. Mas sustentamos que elas devem ser compreendidas e
inseridas num processo universal.
Trata-se, sim, de perceber que atribuir uma “lógica identitarista” às
lutas sociais transfigura completamente essas lutas e pulveriza a unida-
de do processo emancipatório.
Diferenciamos aqui, portanto, a “lógica identitarista” pós-moderna
das “lutas particulares”, antiopressivas (identitárias). Reconhecemos e
defendemos a importância dessas lutas, mas questionamos com a mes-
maveemência a “lógica identitarista”.

405
“IDENTIDADE” E CLASSE SOCIAL Carlos Montaño

Ora, quando se absolutiza e “essencializa” a “identidade”, e quan-


do ela é sub-repticiamente transmutada numa pessoalizada polariza-
ção “nós” e “eles”, o resultado tende a ser o isolamento da “identida-
de” da totalidade social e, com isso, o abandono de outras bandeiras,
particularmente as da luta universal, humano-genérica, assim como as
da luta anticapitalista.
O projeto emancipatório revolucionário tem que ter a capacidade
de aglutinar todas as lutas antiopressivas particulares (identitárias),
necessárias e urgentes, mas articuladas numa luta anticapitalista, an-
tissistema, na transição ao socialismo, na construção de uma sociedade
sem exploração e opressão, complementando (e não opondo) as lutas
de classes e antiopressivas.

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414
SOBRE O AUTOR

CARLOS MONTAÑO (Montevidéu,


Uruguai, 1962). Doutor em Serviço So-
cial pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ). Professor Titular e
Pesquisador da mesma Universida-
de. Graduado em Serviço Social pela
Universidad de la República (UdelaR,
Montevidéu-Uruguai). Realizou estudos de pós-doutorado
no Instituto Superior Miguel Torga (ISMT, Coimbra-Por-
tugal). Autor dos livros: Microempresa na era da globalização
(Cortez, 1997); A natureza do Serviço Social (Cortez, 1998 e
2007); Terceiro Setor e Questão Social (Cortez, 2002 e 2005); Es-
tado, Classe e Movimento Social (em co-autoria, Cortez, 2010)
e Alienação Parental e Guarda Compartilhada (Lumen Juris,
2016); e organizador, entre outras publicações, de: Coyun-
tura Actual, Latinoamericana y Mundial (Cortez, 2009); O Can-
to da Sereia. Crítica à ideologia e aos projetos do terceiro setor
(Cortez, 2014) e Expressões da ofensiva ultraconservadora na
conjuntura contemporânea (UFRJ, 2018). Professor visitante e
conferencista em diversos países da América Latina e Eu-
ropa. Foi membro da Direção Executiva de ALAEITS (As-
sociação Latino-americana de Ensino e Pesquisa em Traba-
lho Social, 2006-2008) e Coordenador Nacional de Relações
Internacionais da ABEPSS (Associação Brasileira de Ensino
e Pesquisa em Serviço Social, Brasil, 2008-2010 e 2011-2012).

415
Este livro foi impresso em maio de 2021, pela Gráfica RenovaGraf, em
São Paulo, para a Editora Anita Garibaldi. O texto foi composto com a
fonte Palatino Linotype corpo 11/15 e MyriadPro.
O papel do miolo é Polen Soft LD 80g/m² e o da capa Supremo Alta
Alvura LD 300g/m², com acabamento Soft Touch.
Tamanho do livro: 16x23cm Tiragem: 1.000 exemplares

EDITORA E LIVRARIA ANITA LTDA.


Endereço: Rua Rego Freitas, 249 - República
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Loja online: www.livrariaanita.com.br
“Carlos Montaño apresenta em “Identidade e Classe Social” uma
importante contribuição para um tema polêmico na esquerda, pois
assenta que um projeto emancipatório revolucionário deve acolher de
forma complementar as lutas antiopressivas (identidades) e a luta de classe,
ao tempo que rejeita a lógica identitarista – fonte de fragmentação e
desconstrução da classe social como categoria universal.” EDSON FRANÇA
- Historiador, ex-presidente da União de Negros pela Igualdade (Unegro)

“Este livro debate um tema espinhoso. Ao analisar criticamente a


‘lógica-identitarista’, Montaño explicita as armadilhas ideológicas
das subjetivações pós-modernas que pulverizam a construção coletiva
de um projeto emancipatório para o conjunto da classe trabalhadora.
Com clareza teórico-política, seu mérito está justamente em afirmar
que a luta revolucionária não deve prescindir das lutas antiopressivas
que, prospectivamente, devem estar articuladas às lutas anticapitalistas,
potencialmente emancipadoras da totalidade do gênero humano.”
GERSON DE SOUZA OLIVEIRA - Geógrafo, membro do Grupo de
Estudos “Terra, Raça e Classe”, do MST

“Pensadores de viés marxista apontam que alguns movimentos sociais


podem cair no equívoco do identitarismo, que mascara e no fundo não
ataca o racismo como dinâmica do capital, e que divide a real luta política.
Como totalidade, a luta do negro no Brasil deve ocorrer em diferentes
campos sem romper com a possibilidade mais ampla de destruição do
racismo e de construção de relações humanas que superem a exploração
e opressão de um grupo de seres humanos por outro. Por isso, a leitura
da presente obra é mais que oportuna, é urgente.” SORAYA MOURA -
Historiadora, divulgadora da obra de Clóvis Moura

ISBN 978-65-89805-05-2

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