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Os antigos regimes democráticos não podiam admitir qualquer ataque ao seu direito de
definir certas classes de humanos como não-pessoas, especialmente seus escravos. Com
as democracias modernas não é diferente. Para os antigos, a menor admissão perante a lei
de que um escravo fosse capaz de coisas como roubar ou cometer adultério seria tratá-lo
como um ser humano livre, um cidadão e, portanto, alguém com total proteção legal
contra a própria escravidão! Esta admissão teria derrubado todo o sistema escravocrata,
e é por isso que certos senhores excessivamente sentimentais podiam ser punidos pela lei
se ousassem considerar seus escravos em termos demasiadamente humanos. Cato comeu
e bebeu com seus escravos, sua esposa amamentou filhos de escravas, mas ele
rigorosamente os comprava e vendia de todo modo.
A importância das categorias legais (e da Psicologia com sua propaganda servil) para a
pureza ideológica de todos os sistemas políticos não deve ser subestimada. Os antigos as
usavam para justificar a escravidão e os massacres. Campanhas modernas de genocídio,
como no Camboja ou na África, usam-nas para liquidar raças inteiras. E, é claro, os
elaboradores das políticas nazistas, sofisticados e altamente instruídos, entendiam
intimamente o motivo pelo qual a não-humanidade era uma necessidade: possibilitava o
assassinato de pessoas com deficiência, o infanticídio e o extermínio de todos os
desprezados pelos cidadãos moralistas. As categorias legais de pessoas são uma técnica
destinada a transformar sujeitos humanos em objetos sem direitos (ou com direitos
especiais, subordinados apenas) com a finalidade de sustentar um tipo de regime
ideológico ou outro. Os liberais democratas modernos e seus irmãos liberais embarcaram
no mesmo curso.
Essa luta não é sobre bebês não nascidos. Trata-se de uma defesa febril e quase teológica
da ideologia democrática igualitária contra as reivindicações contrárias à biologia humana
e à sociedade natural que dela provém espontaneamente. Em suma, o argumento do
direito ao aborto possui a mesma relação imediata com a manutenção ideológica da
democracia igualitária que o direito de possuir escravos possuía com a manutenção da
velha democracia – ou o direito dos arianos de liquidar judeus. O paradoxo – e a ironia –
para a maioria dos liberais modernos (especialmente para os liberais judeus) é que,
enquanto eles condenam a escravidão com um desprezo unânime e orgulhoso,
vigorosamente defendem o direito de abortar com um zelo cego, comum a todos que
dependem desta lei.
A questão chave seria o conflito entre os direitos da mulher e os direitos do nascituro.
Mas isto é perder o ponto. O conflito não está entre os direitos de dois indivíduos, mas
entre o direito expresso da mulher e o direito superior da comunidade de defender o direito
não expresso de um cidadão não nascido. Na mulher grávida, esses dois direitos residem
fisicamente e simbolicamente no mesmo corpo. Mas como a democracia moderna
reduziu-se a uma luta simplista entre os direitos concorrentes dos indivíduos – neste caso,
a mãe e a criança – e não reconhece nenhuma autoridade moral mais elevada, a estratégia
tem sido invocar a lei para negar a humanidade do protagonista indefeso. Ora, esta é
justamente a metáfora do escravo de Platão (que descreve como cada um de nós corre o
risco de se escravizar às próprias paixões), em uma nova roupagem: esse escravo interior
não é uma paixão, mas o fruto da paixão convenientemente transformado pela lei em um
escravo.
Onde quer que a democracia tenha entrado em erupção, ela geralmente começa como uma
teoria política prática que defende um controle maior, para mais pessoas, e mais liberdade
das restrições externas, dentre as quais as piores são as restrições da natureza.
Inicialmente, a democracia significava liberdade dos reis, dos senhores feudais ou dos
senhores políticos. No passado recente, significava liberdade de leis opressoras, controle
de classe e tradições religiosas.
A moralidade antiga jaz de ponta cabeça. Para os antigos, a liberdade da alma decorria
somente do autodomínio e do autocontrole. O mundo externo, em maior parte constituído
por acidentes como nascimento, guerra e morte, era incidental e não poderia, em
princípio, influenciar esse poder de controle. Autocontrole é liberdade.
O mesmo vale para todo o monólogo político “progressista” moderno, no qual milhões
de vítimas negligenciadas do “condicionamento” social e econômico são consideradas
aptas à reeducação, à terapia, ou necessitadas de alguma outra “política” especial a ser
trabalhada e administrada por especialistas instruídos. Estes últimos formam a elite
intelectual do fundamentalismo secular moderno, e normalmente se concebem como
aqueles que escaparam – em virtude do seu conhecimento especial – da falsa
conscientização do estado mental condicionado que deploram (e que infalivelmente
caracterizam como uma forma de escravidão). Eles são elites – não mais escravos – salvos
por sua autodefinição pretensiosa.
O mesmo vale também para o Marxismo, a mais difundida e perniciosa das teorias da
conspiração, segundo a qual todo o mundo desenvolvido é uma vítima escravizada de um
processo histórico inevitável e de um sistema de classes capitalista opressor que explora
a maior parte do povo. A chamada teoria da “desconstrução” moderna, hoje uma sombra
intelectual debilitante e generalizada da história marxista, argumenta, basicamente, que
os sistemas de poder de um tipo ou de outro permeiam todos os níveis da sociedade
humana, e que até mesmo as motivações altruístas são, na verdade, jogadas estratégicas
para entrincheirar esses sistemas e manter massas humanas a eles escravizadas. Os
marxistas bradam pela “libertação” da humanidade, invadindo a sociedade com
programas caros e coercivos de justiça redistributiva e “substantiva”, destinados a reverter
os efeitos da natureza e da sociedade, exigindo o tratamento diferenciado de seres
humanos considerados juridicamente iguais.
Quão bizarro e irônico é o fato de que, nestes tempos de ampla celebração da liberdade
democrática, nosso homem supostamente livre imagina a si mesmo um produto
totalmente subordinado – ou vítima – dos processos e ordenamentos físicos do mundo,
muito mais do que em qualquer época da história.