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NEOLIBERAL
INTRODUÇÃO
A formação do sujeito neoliberal tem sido produzida a partir dos mais diversos
canais, tais como as mídias e instituições religiosas, políticas, sociais e educacionais, ou
seja, a disseminação e propagação da racionalidade neoliberal, por meio da força
econômica e política dos seus defensores e interessados, tem ocupado intensamente um
extenso espectro social por meio de um dispositivo constituído por práticas discursivas e
não discursivas cujo objetivo é a produção da governamentalidade neoliberal.
Assim sendo, a escola tem sido chamada a desempenhar um importante papel na
legitimidade, materialidade e sucesso de tal governamentalidade. Considerando-se a
especificidade, a positividade e a abrangência da educação escolar, os processos de
objetivação e de subjetivação dos sujeitos escolares visam à condução de condutas dos/as
estudantes de modo a formá-los de acordo com específicas demandas do mercado de
trabalho e do mercado de consumo.
Neste sentido, a educação escolar tem sido fortemente afetada e reconfigurada
pelas reformas educacionais empreendidas no âmbito do Estado, em consonância com
outras reformas que vem afetando o campo do trabalho, da economia, da cultura, da
saúde, dos direitos sociais do conjunto dos trabalhadores e dos direitos civis de diversos
grupos sociais “minoritários”, atendendo às demandas dos imperativos da racionalidade
neoliberal. No caso específico da educação, suas reformas vêm sendo pensadas e
materializadas desde a década de 1990, a partir da construção e promulgação da LDB -
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 1996, e seu marco mais recente é a
construção e homologação da BNCC - Base Nacional Comum Curricular.
As reformas educacionais reconfiguram as políticas educacionais, os sentidos da
qualidade educacional, os formatos dos fazeres pedagógicos, os objetivos e as práticas
dos sujeitos escolares - gestores escolares, professores, estudantes e pais de estudantes.
Dessa forma, a educação escolar tem sido afetada pela racionalidade neoliberal, buscando
a sua conformação, em todos os seus sentidos: modos de subjetivação e objetivação;
formação docente e discente; práticas didáticas; modalidades de ensino e aprendizagem.
Acerca da construção das reformas educacionais brasileiras, de cunho neoliberal,
podemos asseverar a influência internacional ostentada pelos organismos multilaterais,
tais como o Banco Mundial, a Organização Mundial de Comércio, a Organização para
Cooperação e o Desenvolvimento Econômico e a UNESCO.
Em 1996, a UNESCO publicou o Relatório Jacques Delors: Educação – um
tesouro a descobrir, que apontou os quatro pilares básicos da educação que sustentaram
o novo conceito de educação: Aprender a conhecer; Aprender a viver juntos; Aprender a
fazer e Aprender a ser. Tal conceito ancorou de modo efetivo a proposta que vingou como
texto da LDB de 1996, bem como a construção dos Parâmetros Curriculares Nacionais
para o Ensino Fundamental (1997) e o Ensino Médio (1999). Esses dois documentos
ensejaram a renovação e a reelaboração de propostas curriculares para as escolas, a partir
de então, culminando nos processos de construção da BNCC.
A influência dos organismos multilaterais nas reformas da educação e a sua
guinada à perspectiva da racionalidade neoliberal na década de 1990 se deu em função de
diversos fatores, entre os quais destacamos dois: (1) O alinhamento estratégico, político,
econômico e ideológico a esses organismos por parte do governo de Fernando Henrique
Cardoso (1995-2002) e nos governos seguintes; (2) Esses organismos passaram a
conceber a educação como um campo a ser explorado economicamente frente à crise
estrutural do capitalismo dos anos 1970/80 e tomaram a sua funcionalidade para satisfazer
os anseios dos grandes capitalistas na formação dos trabalhadores, de acordo com as
demandas da reestruturação dos processos produtivos. Assim, conforme assinalam
Oliveira, Falk, Carvalho e Gonçalves (2000, p.44):
A reforma educacional dos anos 90 ocorre em um momento que há a crise do
Estado – Nação, no auge do processo de reestruturação do capitalismo. O
neoliberalismo emergiu paralelamente ao processo de reconstrução da
democracia no Brasil, esse argumento se estabelece na medida em que tal
ideologia se impõe sobre um discurso que explica a crise do capitalismo e
oferece não só respostas, mas estratégias bem definidas para superá-la. Essas
estratégias são elaboradas e hegemonicamente difundidas.
Assim sendo, a BNCC e a Reforma do Ensino Médio são dois exemplos de como
a racionalidade neoliberal vem agindo sobre e através das políticas públicas brasileiras
para a educação. A primeira realizou uma intervenção sobre os conteúdos ministrados em
toda a educação básica; a segunda modificou significativamente a forma como se
organiza o Ensino Médio. Sabe-se que o neoliberalismo opera fomentando a constituição
de subjetividades que se veem constantemente em concorrência com os outros sujeitos,
como se fossem empresas operando no mercado. Para que o sujeito neoliberal possa,
então, ser constituído, se faz necessária outra forma de subjetivação, não mais com o
objetivo único de produzir mão-de-obra qualificada e dócil para o mercado, pois a
racionalidade que opera na atualidade procura formar indivíduos concorrentes na vida
familiar, amorosa, social, espiritual, acadêmica, profissional, etc. Para tal feito, recursos
conceituais e objetivos de aprendizagem como as competências e habilidades se tornam
essenciais.
Desse modo, na construção da BNCC, a sua última versão apresentou as
competências e habilidades como objetos de aprendizagem, referenciando-as para os
processos de ensino e avaliação. A história recente da educação brasileira já havia
experienciado diretrizes curriculares que se assentavam nessas noções, presentes na LDB
e nos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1998, mas assumem formas mais
contundentes na BNCC, haja vista apresentar mudanças significativas e essenciais para a
formação, no âmbito da escola, de sujeitos neoliberais. Em tese, os conteúdos são
deslocados para segundo plano, tornando-se instrumentos para o desenvolvimento das
competências e habilidades.
Uma leitura sem conhecimento de como opera o neoliberalismo, pode ser
seduzida pela discursividade da nova base, pois as competências e habilidades dialogam
em vários sentidos com os conteúdos historicamente trabalhados pelos docentes nas
escolas da educação básica. Através do mecanismo da flexibilização curricular e da
suposta autonomia dos estudantes, proporcionadas pela lei do novo Ensino Médio
(BRASIL, 2018), o empreendedorismo, uma das mais importantes noções para a
formação do sujeito concorrente, individualista e avesso às questões sociais e coletivas,
torna-se eixo de aprendizagem da parte flexível do currículo, também chamado de
itinerário formativo.
Desse modo, para concluírem o ensino básico, os estudantes precisam ter aulas
fundamentadas e orientadas pelo empreendedorismo (BRASIL, 2018), independente do
itinerário formativo que escolheram. Assim, um estudante que preferiu cursar o itinerário
de humanas, vista como área que fomenta uma reflexão crítica da realidade, aprofundará
seus estudos a partir de objetos de aprendizagem permeados pela noção de
empreendedorismo.
A reforma do Ensino Médio possibilitou mudanças, como a entrada do poder
privado no ensino público, a chancela dos novos termos de competências e habilidades
presentes na BNCC e a retirada da obrigatoriedade de saberes considerados críticos e
reflexivos na escola, como é o caso da sociologia e da Filosofia. Essa reforma abre nas
escolas o espaço para a formação do sujeito neoliberal voltada para o empreendedorismo,
pois a parte não obrigatória substituirá os saberes “desobrigados”, incluindo-os nos outros
eixos que constituem a parte flexível (investigação científica, processos criativos,
mediação e intervenção sociocultural e o empreendedorismo).
A reforma do Ensino Médio também possibilitou às redes públicas firmar
parcerias com empresas privadas que, somada a oferta de educação à distância, pode
chegar nas mais distantes localidades do país. Além disso, a reforma definiu que o ensino
da BNCC só pode chegar a 1800 horas-aulas da carga mínima de 3000 horas-aulas que o
Ensino Médio deve ter. Destas, restariam 1200 horas para o itinerário, coincidentemente
a carga horária de um curso técnico, que pode ter “entre 800, 1.000 e 1.200 horas,
dependendo da respectiva habilitação profissional técnica” (BRASIL. MEC, [s.d.]).
A racionalidade neoliberal não fomenta, como já referido, a formação de sujeitos
para a constituição de uma mera sociedade nova, com valores diferentes da anterior, mas
a constituição de indivíduos que cooperam ativamente com a manutenção de uma lógica
que mensura os lucros das grandes corporações, reduz a potencialidade crítica e política
dos sujeitos, além de criar mecanismos de exclusão e eliminação dos sujeitos através de
uma lógica biopolítica (FOUCAULT, 2010). Neste contexto, a educação figura como
instrumento essencial para a operacionalização da racionalidade neoliberal, já que por
meio dela é realizada a abertura do espaço público para o poder privado e também para
os processos de subjetivação.
Considerações finais
Referências
CURY, Carlos Roberto Jamil; REIS, Magali; ZANARDI, Teodoro Adriano Costa. Base
Nacional Curricular Comum: dilemas e perspectivas. São Paulo: Cortez, 2018.
GALLO, Silvio; MENDONÇA, Samuel. Pensar a escola como problema filosófico. In.
GALLO, Silvio; MENDONÇA, Samuel (Orgs.). A escola: uma questão pública. São
Paulo: Parábola, 2020.
GHIRALDELLI JR, Paulo. História da Educação Brasileira. São Paulo: Cortez, 2006.