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Referência do texto: MORDENTE, Giuliana Volfzon; CUNHA, Thiago Colmenero;

PORTUGAL, Francisco Teixeira. Capturas neoliberais e educação democrática: o mito


da educação “inovadora”. In: Flavia Lemos. (Org.). Psicologia Social, Educação e Análise
Institucional: Diálogos entre Paulo Freire, Gregório Baremblitt, Bell Hooks, Gilles
Deleuze e Félix Guattari. 1ed.Curitiba: CRV, 2023, v. 1, p. 289- 304.

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CAPTURAS NEOLIBERAIS E EDUCAÇÃO DEMOCRÁTICA: O MITO DA
EDUCAÇÃO “INOVADORA”

Giuliana Volfzon Mordente


Thiago Colmenero Cunha
Francisco Teixeira Portugal

Neoliberalismo Escolar: começando pelo meio

Neoliberalismo escolar caracteriza-se pela implementação da racionalidade do


capital em lei social geral, produzindo um modelo escolar que considera a educação um
bem privado, com valor econômico acima de tudo. É a sujeição da escola à lógica
econômica, como um serviço prestado às empresas1. Uma escola pautada em lógicas de
produtividade, competitividade, rentabilidade e eficiência. O grande objetivo é maximizar
resultados, esforços e produções: maximizar indivíduos concebidos como
“microempresas” e “empreendedores de si” 2 . No Brasil, esse movimento dialoga
diretamente com o discurso da chamada “educação inovadora”.

O chamado “movimento de inovação educacional” se destaca como uma rede de


relações entre diversas entidades que trabalham com “novas” abordagens de educação,
dentre elas: escolas, instituições, empresas, órgãos públicos, institutos, fundações,
coletivos sem fins lucrativos, rede de educadores, organizações da sociedade civil,
movimentos sociais e governos por meio de suas secretarias de educação. Para
Barrera3, inovação na educação é “um processo intencional de mudança de uma prática
educativa desenvolvida por um sujeito, grupo ou sociedade, que incorpora um ou mais
aspectos novos a esta prática”. Um processo relativo à educação - e não à uma ação

1
LAVAL, Christian. A Escola não é uma empresa: O neoliberalismo em ataque ao ensino público.
Londrina: Editora Planta, 2004.
2
BENEVIDES, Pablo Severiano; NETO, João Muniz. Educação, subjetivação e resistência nas sociedades
de controle. Estudos Contemporâneos da Subjetividade, Niterói. v 1, n. 1, p. 27-40, 2011.
3
BARRERA, Tathyana Gouvêa da Silva. O movimento brasileiro de renovação educacional no início
do século XXI. 2016. 274f. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2016, p.24.

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pontual da escolarização - que objetiva a alteração de uma prática social de determinado
contexto ou grupo, como mudanças de metodologias, objetivos e/ou recursos educativos.

Esta proposta de “inovação” não diz respeito, necessariamente, à noção de


melhoria, uma vez que sua valoração depende de cada grupo social: as mudanças podem
convocar tanto uma alteração privilegiada da condição de poucos, quanto transformações
de maior alcance para diversos sujeitos e possibilidades de ação 4 . Neste artigo,
contestamos as mudanças “inovadoras” que atendem exclusivamente a determinados
grupos dominantes, a partir de lógicas de progresso coloniais e eurocentradas. Mudanças
estas que se limitam apenas ao desenvolvimento de uma modernização tecnológica e
empresarial atrelada ao discurso neoliberal, continuando a perpetuar processos históricos
de escolarização desigual.

Assim, o objetivo deste artigo é articular reflexões sobre a filosofia e as práticas


de Paulo Freire com as discussões contemporâneas sobre educação “inovadora”.
Enquanto objetivos específicos, problematizamos os processos de captura e
sobrecodificação capitalística de metodologias de ensino progressistas, anunciando como
a política de inovação neoliberal se atualiza enquanto tática de controle subjetivo; e
analisamos os efeitos do crescente movimento de neoliberalismo escolar sustentando
pelos grandes conglomerados educacionais.

Investigamos as nuances destes discursos, a fim de nos posicionarmos no


horizonte de uma educação democrática e transformadora. Como podemos diferenciar
uma educação democrática, crítica e libertadora de uma educação neoliberal, em tempos
em que tudo parece o mesmo? Como podemos sustentar que mudar os métodos de ensino
não é o suficiente para mudar a dimensão ético-política da educação? 5 . Para essa
investigação, como metodologia de pesquisa, nos pautamos na pesquisa bibliográfica no
portal de periódicos acadêmicos da SciELO (Scientific Electronic Library Online), em
notícias de jornais de grande circulação e no levantamento de postagens, vídeos e
informações de sites e redes sociais do maior conglomerado de educação básica do país,
que visa a disseminação da ideologia neoliberal.

4
Ibidem.
5
BENEVIDES, NETO, 2011.

286
Observamos certos discursos que anunciam a política de reforma escolar apenas
como uma “modernização” que tornará a escola mais eficiente, recusando qualquer
dimensão ideológica e política nessa estratégia, a partir de uma suposta neutralidade. O
saber-poder dos “especialistas em educação”, com suas especificidades puramente
técnicas e tecnológicas, afirmam um caráter “nem de esquerda e nem de direita”, atentos
apenas ao “desempenho”. Ou seja, poderes tecnocráticos que não reconhecem a relação
das transformações escolares com o sistema econômico e político dominante6.

O discurso da educação inovadora surge para fazer frente à educação bancária


tradicional, problematizada por Paulo Freire. No entanto, não se admite que as mudanças
na “gestão” das escolas, a criação de mercados locais de educação e a incorporação das
lógicas da economia sobre a pedagogia são características de uma a escola tão desigual
quanto a “escola tradicional”, uma vez que permite uma intervenção muito mais direta
dos princípios da sociedade de classes na escola7. Se antes o modelo escolar dominante
se assemelhava às fábricas e quartéis, hoje se assemelha às novas configurações do
capital: escolas tão “inovadoras” quanto os escritórios Google.

Assim, diferenciamos aqui a escola neoliberal da escola democrática. A primeira,


propõe mudanças na educação a fim de capacitar indivíduos para o desempenho de papéis
sociais, visando a adaptação aos valores e normas da desigual sociedade de classes8. Não
visa a mudança social ou ruptura com a ordem vigente, mas o aperfeiçoamento do projeto
burguês de sociedade. Tal escola constitui um movimento educacional contemporâneo
pautado por uma ideologia de mercado, marcada pela hierarquização e por uma
competição que apresenta como parâmetro a seleção de entrada nas universidades9. A
segunda, por sua vez, se vincula aos movimentos pedagógicos progressistas que
convocam uma análise crítica das realidades sociais, questionando os atravessamentos
sociopolíticos da educação e desconstruindo formas hierárquicas de poder e privilégios10.
Faz parte de movimentos educacionais que buscam transformação social, construindo

6
LAVAL, 2004.
7
Ibidem.
8
LIBÂNEO, José Carlos. A importância da filosofia na construção da prática pedagógica. Revista do
Professor, Uberaba-MG, 1994.
9
BARRERA, 2016.
10
LIBÂNEO, op. cit.

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relações democráticas de poder, saber e organização, a partir da participação de novos
agentes 11 . Escolas democráticas potencializam a criação de uma sociedade com
participação direta e comunitária nas decisões, visando uma construção pedagógica
coletiva12.

Em seu desenvolvimento cada vez mais consolidado, o movimento de educação


inovadora neoliberal captura metodologias “progressistas” de escolas democráticas, mas
segue reproduzindo os efeitos de dominação e manutenção do sistema social da educação
dita “tradicional”. Ou seja, incorpora demandas historicamente da educação democrática
- como aulas em roda, inteligência socioemocional, pedagogia por projetos, aula de
cidadania global, horta, participação das famílias - porém sem qualquer perspectiva de
transformação estrutural. Usam novos formatos, inspirados na educação libertadora de
Freire, para atender às novas demandas do capital. Como resistir, quando tudo partilha de
um discurso aparentemente similar? Como poderemos diferenciar as práticas pedagógicas
libertadoras das neoliberais com enfeites progressistas?

Educação: o grande mercado século XXI

No Brasil, o setor de inovação educacional é marcado de forma intensiva pela


atuação de fundações e institutos de grandes empresários que, ao financiarem projetos e
buscarem parcerias com escolas e outras organizações, disseminam ideias alinhadas às
suas agendas. A educação virou um fator de atração de capital: tornou-se um mercado
promissor para as empresas, uma mercadoria com custo e retorno13. Destacamos aqui que
a série de corte de gastos impulsionadas pela chamada “PEC do fim do mundo” (emenda
Constitucional número 95, também conhecida como a Emenda Constitucional do Teto dos
Gastos Públicos/ PEC 55), que visa congelar gastos públicos em saúde e educação por 20
anos, tornou a educação brasileira alvo de negócios de vários grupos financeiros.

11
BARRERA, op. cit.
12
SINGER, Helena. República de crianças: sobre experiências escolares de resistência. Campinas, SP:
Mercado de Letras, 2010.
13
LAVAL, 2004.

288
Hoje no Brasil, esse mercado movimenta R$ 80 bilhões ao ano e atrai fundos de
participação e investidores da Bolsa14. Crescem propostas de redução dos gastos públicos,
com campanhas políticas para diversificar o financiamento do sistema educacional. A
esfera privada oferece o discurso de administração eficaz das escolas, a exemplo das
empresas – o famoso “salvacionismo” da privatização 15 . Assim, o “neoliberalismo se
apresenta à escola, e ao restante da sociedade, como solução ideal e universal para todas
as contradições e disfuncionalidades, mas na verdade é um remédio que alimenta o mal
que deveria curar”16.
Esse movimento é liderado por grupos como Eleva Educação (pertencente ao
homem mais rico do país, Jorge Paulo Lemann), Cognita, Bahema, Inspira e SEB. Como
exemplo, em fevereiro de 2021, a Eleva Educação realizou o maior acordo comercial da
história educacional brasileira, comprando 51 escolas da Cogna (valor de R$ 964 milhões
pelas escolas, mais ações) – em troca, a Cogna comprou por R$ 580 milhões o sistema de
ensino da Eleva. Esse ato consolida a Eleva como maior grupo de educação básica do
país, podendo se tornar o maior grupo de educação básica do mundo em número de
estudantes17.
Além da linha pedagógica, dos índices de aprovação em exames, provas e
vestibulares, da estrutura física, dentre outros critérios, a escolha do colégio dos filhos
tem agora um novo fator decisório: “os acionistas por trás da lousa”18. Esses investidores
chegam com novas tecnologias, metodologias “ativas”, gestão empresarial
profissionalizada, preços afrontosos, produzindo uma competição desleal aos colégios de
bairros, mais vulneráveis19. Esses grandes conglomerados têm escolas para diversos tipos
de estudantes, para todos os preços20 . Compram escolas com métodos construtivistas,
assim como escolas voltadas para o vestibular ou ainda para preparatórios militares. Não
interessa mais excluir, o lema é incluir para consumir.

14
https://oglobo.globo.com/economia/grupos-financeiros-saem-caca-de-escolas-de-educacao-basica-
15
LAVAL, Op. cit.
16
Ibid., p.21.
17
https://oglobo.globo.com/economia/2270-eleva-fica-mais-perto-do-maior-do-mundo-em-
educacaobasica-apos-compra-de-escolas-como-ph-pitagoras-24895779
18
https://oglobo.globo.com/economia/grupos-financeiros-saem-caca-de-escolas-de-educacao-
basica24986677
19
Op. cit.
20
https://oglobo.globo.com/economia/2270-eleva-fica-mais-perto-do-maior-do-mundo-em-
educacaobasica-apos-compra-de-escolas-como-ph-pitagoras-24895779

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Se por um lado, o surgimento destas escolas-empresas anuncia, com ainda mais
força, a necessidade de mudança da metodologia escolar hegemônica e tradicional que se
arrasta por tantos séculos, por outro, alimentam em seu disfarce “inovador” a manutenção
de um sistema social. Tanto as escolas “premium” criadas por estes grandes grupos,
quanto seus materiais e plataformas de ensino, apresentam metodologias diferenciadas e
debates aparentemente progressistas. Trata-se de instituições que abriram mão do formato
tradicional das salas de aula com carteiras enfileiradas, embora permaneçam operando na
manutenção da ordem social e das estruturas dominadoras de poder. Citam Paulo Freire e
bell hooks, mas sem o caráter revolucionário de suas teorias, sem questionar a base das
estruturas opressoras.

O novo padrão normativo não são os corpos dóceis da sociedade disciplinar, são
os corpos dóceis adaptados aos novos valores contemporâneos empresariais: corpos
flexíveis, criativos, empáticos, proativos, comunicativos, resilientes. Este modelo
controla as formas de ser, estar e agir, atreladas à sensação de espontaneidade e liberdade,
sendo formas muito mais totalitárias que as anteriores. As sociedades do controle
contemporâneas produzem dominações sutis e virtuais, a partir de um poder disperso e
difuso em rede planetária21. Uma vez que o controle se exerce de forma contínua, produz-
se a ilusão de uma maior autonomia e liberdade22. As expectativas do empregador não se
limitam mais à obediência passiva de instruções pelos assalariados, mas se direcionam à
iniciativa individual, à capacidade de adaptação, ao “seja você mesmo”, produzindo uma
individualização da responsabilidade e o constante sentimento de insuficiência23. E para
produzir tais assalariados, a escola convoca o modelo empresarial, aberto às ordens do
mercado.

Como resistir quando, ainda que completamente controlados, nossas ações


aparentam ser fruto de liberdade de escolha, nossas escolhas parecem representar um

21
BENEVIDES, NETO, 2011.
22
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 2007.
23
PRATA, Maria Regina dos Santos. Da norma disciplinar à iniciativa: os processos subjetivos e parâmetros
normativos contemporâneos. In: PEIXOTO JUNIOR, Carlos Augusto (Org.) Formas de subjetivação. Rio
de Janeiro: Contra Capa, 2004.

290
grande exercício de autonomia e liberdade, nossas criações parecem ser grandes projetos
autorais24?

Sobrecodificação capitalística: alteram-se os meios, conservam-se os fins

O conceito de sobrecodificação é pertinente para fazer ver e fazer falar lógicas de


capturas e ilusões contemporâneas: marca um processo de duplo registro, de
ressignificação através de aparelhos e máquinas transcendentes de poder 25 , isto é,
aparelhos e máquinas distantes das práticas e dos coletivos, vindos de fora, de maneira
objetificadora e colonializante. Pensemos subjetividade como uma produção,
distanciando da noção de sujeito psíquico individualizado e fechado, destacando aspectos
26
históricos, sociais, culturais, políticos e relacionais . O capitalismo opera
primordialmente nos agenciamentos coletivos que produzem essa subjetividade,
adentrando em níveis infra e supra pessoais e organizando nossos modos de ser, pensar e
agir. Neste sentido, nos processos de sobrecodificação, as pedagogias progressistas, assim
como toda e qualquer diferença, são capturadas e esvaziadas, sendo recodificadas e
27
reordenadas segundo os códigos dominantes . Práticas inventivas e libertárias
confeccionadas localizadamente nos coletivos agora viram manuais, cartilhas, vídeos de
treinamentos padronizados para sua rede de escolas, lives motivacionais para os
colaboradores da instituição educacional.

Quando o homem mais rico do Brasil cria um projeto educacional de tamanha


ambição28, sendo a maior rede de educação do país em tão pouco tempo, é necessário
problematizar o que está em jogo. Para além de uma ação benevolente ou do lucro por
meio das mensalidades, trata-se de investimento em produção de subjetividade por meio
de um controle micropolítico, isto é, dominação da produção desses sujeitos.
Conglomerados educacionais, coordenados por empresários e milionários 29 , que

24
BENEVIDES, NETO, 2011.
25
GUATTARI, Félix; ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografias do Desejo. Petrópolis, RJ: Vozes,
2013.
26
Ibidem.
27
Ibidem.
28
https://gq.globo.com/Prazeres/Poder/noticia/2017/02/eleva-jorge-paulo-lemann-quer-criar-
melhorescola-do-brasil.html
29
https://jornalggn.com.br/noticia/rio-aula-rica-aula-pobre-por-andy-robinson

291
objetivam a criação da “nova geração de líderes”30, seguindo os projetos dominantes de
sociedade.

Seus materiais didáticos são mais “refinados”, antenados com as exigências atuais.
Hoje em dia, todas as grandes marcas, emissoras de televisão, já não podem não tratar de
pautas sociais: os movimentos sociais, depois de anos de luta, tornaram estes discursos
fortes e vigentes. As redes sociais pressionam. Do mesmo modo, os conglomerados
educacionais vão tratar de pautas identitárias, como racismo, machismo e homofobia, mas
sem colocar em cheque a estrutura capitalista que sustenta e produz essas opressões. Se
apropriam das pautas identitárias ao nível superficial que não questione a dimensão
estrutural capitalista – que não incomode seus monopólios. Tratase de uma captura, para
controlar: uma tentativa de submissão de qualquer diferença, dentro de sua plataforma de
ensino, debaixo do seu guarda-chuva, uma vez que a lógica capitalista abarca tudo nos
seus braços, no exercício de máximo controle. Isso ocorre, pois trazer a temática do
capital, é apontar para os processos de mercantilização e sucateamento da educação
pública, que estas mesmas empresas são responsáveis.

Reconhecemos imensamente a importância de falar sobre essas temáticas: a


circulação destas pautas é fruto de muita luta. A proposta é localizar a forma como estes
conteúdos estão sendo capturados nessa engrenagem, uma vez que o capitalismo só
captura os discursos quando os mesmos estão presentes e começam a incomodar. A
proposta é localizar de onde estes discursos partem, para não cair na fé cega de que
bastaria mencionar tais pautas para produzirmos uma educação democrática e
emancipadora.

Ao navegarmos pelo site do maior holding de escolas do Brasil, alguns discursos


nos chamaram atenção. Ao convocar as “metodologias ativas” como pilar de suas escolas,
este conglomerado as define enquanto um conjunto de estratégias pedagógicas voltadas
para tornar o aluno ativo na sua aprendizagem.

Essas estratégias promovem uma mudança de foco do processo do ensino-


aprendizagem das práticas tradicionais centradas no professor – aulas
majoritariamente expositivas em que o aluno escuta a maior parte do
tempo – para práticas centradas no aluno, isto é, aulas majoritariamente
participativas, em que o aluno produz e o professor media na maior parte

30
https://escolaeleva.com.br/sobre-nos/missao-e-valores/

292
do tempo. Um dos principais pilares é que o objetivo da aula deixa de ser
medir o que o professor ensina e passa a ser medir o que o aluno aprende31

Não seria esta, aparentemente, uma das propostas de Paulo Freire32, quando se
debruça sobre as práticas da educação bancária e contextualiza situações em que o(a)
educador(a) assume uma posição de poder, de governo sobre o(a) estudante, onde a função
do discente é apenas receber o conteúdo paciente e passivamente, decorar e repetir?
Quando critica o saber entendido como uma doação, uma propriedade? Uma vez que tais
conglomerados também se valem destes discursos, o alicerce de luta de enfrentamento
das estruturas de poder, proposto por Freire, não é adotado, sendo, sobretudo, silenciado.

Seguindo às problematizações da educação bancária, bell hooks 33 , em seus


ensaios, ressalta que um dos pressupostos desse sistema de poder instituído é afirmar que
existem conhecimentos fragmentados e enciclopédicos a priori que precisam ser
ensinados hierarquicamente, no qual o(a) docente é o responsável por comandar o que e
como vai ser ensinado. Agora, em uma moderna aula em roda, modelos neoliberais
escolares questionam os padrões normativos teóricos da educação tradicional, sem uma
implicação real com a transformação social, uma vez que ainda dependem da passiva
aquisição de conhecimentos memorizados e usados em um momento futuro - nas tão
sonhadas boas notas no Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), para que a instituição
possa fazer outdoors com o rosto contente dos aprovados nos vestibulares mais
concorridos da cidade e do estado. A classificação hierárquica, através da avaliação, segue
enquanto dispositivo central. Associa-se a lógica de aprovação em exames seletivos
excludentes à produção de uma noção de “qualidade”, como se tais avaliações fossem
uma medida objetiva e neutra da qualidade de ensino da escola3435. Quais são os critérios
que definem esta qualidade? O que é uma boa escola?

Em um dos seus vídeos institucionais36, seus representantes dizem que os dois


grandes valores de suas metodologias de ensino são o foco no aluno e o entusiasmo: o

31
https://escolaeleva.com.br/academico/metodologia-ativa/
32
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005.
33
hooks, bell. Ensinando a transgredir: a educação como prática de liberdade. São Paulo: Editora
WMF Martins Fontes, 2018.
34
ESTEBAN, Maria Teresa. Avaliação: face escolar da exclusão social? Proposta, 83, 1999/00. pag.
35
-71
36
https://www.youtube.com/watch?time_continue=398&v=Qn6mKHukOGQ&feature=emb_title

293
brilho nos olhos e a paixão pela educação. Como diferenciar o entusiasmo neoliberal do
entusiasmo convocado por bell hooks37 - quando a autora afirma a importância de os
educadores serem sensíveis à emoção em sala de aula, uma vez que esta não exclui as
dimensões intelectuais de ensino, ao contrário, as potencializa?

Estas escolas afirmam a importância das “aulas de educação socioemocional" na


formação integral do aluno. Mencionam a importância do desenvolvimento de um
pensamento crítico, onde a ajuda de outros, assim como nossos erros, fazem parte dos
processos educativos38, a fim de criar pessoas capazes de lidar com estresse e ansiedade.
Será que Freire, ao convocar o amor nas relações de ensino-aprendizagem, o faz visando
adaptação ao estresse e ansiedade, fruto de uma sociedade do desempenho? Ou o faz
focando no amor enquanto um afeto revolucionário de conexão entre educadores e
educandos?

Suas plataformas de Ensino - materiais didáticos padronizados e vendidos em


larga escala por todo o Brasil - são apresentados enquanto materiais supostamente
contextualizados, vinculados a exemplos do dia a dia e a problematizações da vida real,
uma vez que esse engajamento produziria interesse no estudante, facilitando a
aprendizagem39. Esta ideia apresenta similaridades com as proposições de Freire40 sobre
um ensino que leve em consideração as condições sociais, culturais, econômicas de seus
estudantes, em um processo de construção de conhecimento integrado às práticas vividas
e em estreita relação com o contexto em que se está inserido. “Por que não aproveitar a
experiência que têm os alunos de viver em áreas da cidade descuidadas pelo poder público
para discutir, por exemplo, a poluição dos riachos e dos córregos
(...)?”41

Assim, convocamos aqui uma análise sobre o que seria esse movimento de
sobrecodificação de metodologias educacionais freireanas, denominado “educação
inovadora”, que produz uma educação que, ao fim, reproduz efeitos tão opressores quanto

37
hooks, 2018
38
https://www.inteligenciadevida.com.br/pt/liv/
39
https://elevaeducacao.com.br/plataforma-de-ensino/
40
FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia – Saberes necessários à prática educativa. Petrópolis:
Editora Vozes, 2018.
41
FREIRE, 2018, p. 15.

294
os da pedagogia tradicional. O caráter “progressista” das propostas educacionais
contemporâneas inovadoras é esvaziado e reduzido a um método42, um formato capturado
pelas atuais demandas do capitalismo. Esvaziam o campo político, base das propostas de
educação democrática, como se fosse possível pensar uma técnica pura, separada da
política.

Não há discursos e práticas educacionais que, por si só, podem ser consideradas
de resistência ou de dominação. As relações de saber e poder de tais discursos e práticas
são contingentes e ambíguas, não havendo uma essência libertadora ou opressiva: uma
prática educativa – como a Pedagogia por projetos - não é, em si mesma, libertária. Do
mesmo modo, uma aula frontal não é por si só conservadora. Temos que levar em conta
seu contexto micropolítico. Logo, para refletir sobre uma educação democrática, devese
levar em consideração não somente as “metodologias” de ensino e aprendizagem, mas
analisar: seus objetivos ideológicos; suas ações micropolíticas; os modos de subjetivação
engendrados nos atores presentes; sua articulação com os mecanismos de controle
contemporâneos; assim como os interesses políticos que sustentam tais modelos43.

Assim sendo, uma vez que grandes grupos empresariais estão criando escolas que,
aparentemente, fogem do modelo tradicional de ensino, é relevante marcar as diferenças
para além do “formato” escolar. Agora, mais do que nunca, é relevante um
posicionamento político e ideológico das escolas democráticas, marcando seu lugar de
potência de transformação social, deixando claro a sua intenção de rompimento com
estruturas sociais opressoras44, suas possibilidades enquanto linhas de fuga, pois mudar
os seus métodos de ensino não é o suficiente para mudar sua dimensão política45. bell
hooks46 ao trabalhar uma educação para a liberdade, inspirada em Paulo

42
BENEVIDES, NETO, 2011.
43
Ibidem.
44
MORDENTE, Giuliana Volfzon. Sobre voos e gaiolas: uma análise de processos de subjetivação em
escolas democráticas. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Instituto de Psicologia, Programa de Pós-
Graduação em Psicologia, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2020.
45
BENEVIDES, NETO, 2011.
46
hooks, 2018.

295
Freire, aponta para um ensino anticolonialista, critico, feminista - multiculturalista. Dentre
diversas contribuições para uma prática educacional libertadora, destaca o capitalismo
como um grande alicerce de sustentação do patriarcado.

Costumo criticar o feminismo baseado num estilo de vida


determinado, pois temo que qualquer processo de transformação
feminista que busque mudar a sociedade seja facilmente cooptado
se não estiver radicado num compromisso político com um
movimento feminista de massas. No patriarcado capitalista de
supremacia branca, já assistimos à mercantilização do pensamento
feminista (assim como assistima mercantilização da negritude) de
um jeito tal que a impressão de que alguém pode participar do
“bem” que esses movimentos produzem sem ter se de
comprometer com uma política e uma prática transformadoras.
Nesta cultura capitalista, o feminismo e a teoria feminista
rapidamente se transformam numa mercadoria que só os
privilegiados podem comprar. Este processo de mercantilização é
perturbado e subvertido quando, na qualidade de ativistas
feministas, afirmamos nosso compromisso com um movimento
feminista politizado e revolucionário que tem como objetivo
central a transformação da sociedade.47

Diante dessa rápida captura capitalística, como resistir por meio de uma educação
que produza relações de expressão e criação, na qual os estudantes participem de forma
coletiva? Como a educação democrática poderia se afirmar enquanto resistência em prol
de processos emancipatórios, produzindo processos singularizantes que criem diferenças
e garantam uma existência criativa?

Educação democrática: Paulo Freire e horizontes libertadores

Ainda que cada instituição escolar democrática, pública ou privada, tenha seu
modo de funcionamento e organização, há dois pontos que prevalecem na maioria delas:
liberdade curricular - autonomia dos estudantes sobre suas trajetórias de estudos, guiados
pelos seus interesses, sem currículos enrijecidos, valorizando as experiências vividas e
seus contextos sociais; e participação e construção coletiva – exemplificado por meio de
assembleias, onde estudantes, familiares e educadores constroem o processo coletivo e

47
Ibidem, p.98.

296
dialógico de discussão e tomada de decisões. Propõe-se uma formação de cidadãos crítica,
para que se possa viver em um regime democrático48.
Apesar de ser um movimento potente e ativo, seus ideais são invisibilizados ou expostos
sob a perspectiva de “sucesso” ou “fracasso” do modelo capitalista que, por sua vez,
oculta a produção do fracasso escolar enquanto projeto.

Mais do que reforçar um lugar romantizado/idealizado dessas experiências, é


importante riscar os limites entre escolas tradicionais e escolas democráticas. A proposta
é que as escolas democráticas sirvam de inspiração para valorizarmos práticas cotidianas
emancipadoras que podem ocorrer no dia a dia de salas de aulas convencionais também49.
Trata-se de assegurar uma educação significativa que não seja um privilégio de poucos,
mas um direito de todos. Uma educação que aposte na possibilidade de aprender através
do interesse e curiosidade – e não por um lugar de mercadoria: “aprender para trocar por
nota”50. Buscamos nos mobilizar para que a força de contestação dessas experiências nos
mostre que pensar outra educação é possível.

Neste sentido, Paulo Freire nos ajuda a pensar a educação enquanto prática de
liberdade, enfatizando o seu fundamento de uma prática voltada para transformação
social. Patrono da educação brasileira, Paulo Freire foi autor, educador e problematizador
da educação brasileira, procurando pensá-la para além dos muros da escola e inseri-la no
contexto sócio-histórico de seu tempo. Ao longo de suas obras “Pedagogia do Oprimido”
(2005), “Educação e Mudança” (2011), e “Pedagogia da autonomia” (2018), Freire
apresenta diversas propostas que aqui nos agenciam como práticas de liberdade a partir
do uso da crítica.

Nesta perspectiva, pensamos a educação como um processo que nunca se esgota


de suas possibilidades de ser o que ainda não é, um processo feito de possíveis momentos
de aprendizado e afeto que emergem em relação a realidade que se pode criar, frente às
mais diversas circunstâncias. Compreender, portanto, que no centro de toda educação há

48
SINGER, 2010.
49
MORDENTE, 2020.
50
FREITAS, Luiz Carlos. Ciclos, seriação e avaliação: confrontos de lógicas. São Paulo, 2003, p.28.

297
um potencial de transformação para o novo, para o que ainda não se conhece e, com isso,
para o que ainda não foi absorvido como uma utilidade ou normativa.

Educação é um processo indissociado do movimento de refletir sobre si mesmo,


de nos descobrirmos enquanto seres inacabados, em constante processo. E para isso,
51
Freire diz ser necessário aprender a situar-se em um determinado momento
históricosocial e entender sua realidade. Através de sua pedagogia crítica, que se efetiva
a partir do que chamou de curiosidade epistemológica, demonstra a importância de
ultrapassar a curiosidade do senso comum por meio de uma crítica capaz de atuar como
uma inquietude questionadora e superar falsas ilusões no campo educacional52.

Frente ao contexto histórico-político-social das instituições educacionais, Freire


aposta em uma forma de fazer educação a partir de posturas emancipatórias e libertadoras.
Alinhar o cuidado à educação significa validar o saber intelectual e emocional do(a)
estudante; o processo real de desenvolvimento humano. Muitas vezes os/as estudantes se
tornam apenas depósitos de narrativas que, em seguida, são reproduzidas por esses
sujeitos, sem passar pelo movimento de pensar53. Diante disso, como enxergar um caráter
transformador em uma educação neoliberal, que não problematiza, em seu percurso
pedagógico junto aos estudantes, o fato de ser ditada pelo capital?

Nítido está, que as demandas e problemas educacionais são relativos ao tempo


presente e com isso não se deve querer copiar modelos, mas sim problematizar processos
de subjetivação, a fim de se tornar mais singular e menos assujeitado. A partir do
referencial da Esquizoanálise 5455 , reitera-se a singularização como o movimento de
frustrar dispositivos de interiorização dos valores capitalísticos. Singularizar é desviar,
criar, ser plural, estar sensível ao caráter processual da vida. Trata-se de praticar a
docência a partir de nossos próprios referenciais, de acordo com nossos territórios e nossas
práticas, apostando no potencial de singularidade dos processos de aprendizagem. O
indivíduo deve ser o sujeito de sua própria educação e não objeto dela. Por isso, “ninguém

51
FREIRE, Paulo. Extensão ou Comunicação? Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
52
FREIRE, Paulo. Pedagogia e mudança. 34° ed. São Paulo: Editora Paz e Terra. 111 p., 2011.
53
FREIRE, 2005.
54
GUATTARI, Félix. Caosmose. São Paulo: Editora 34, 2006.
55
GUATTARI, ROLNIK, 2013.

298
educa ninguém, ninguém educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados
pelo mundo56”.

Para o educador57, é preciso conectar a pedagogia à luta pela justiça social e, para
isso, se faz necessário investir na abertura de práticas educativas-progressistas que
utilizem a crítica como aliada no combate a posturas dóceis e demasiadamente
racionalizadas. Freire 58 trabalha o conceito de conscientização como o processo de
transformação pessoal, coletiva e social que experimentam os oprimidos latinoamericanos
quando se alfabetizam em dialética com o seu mundo, não consistindo em simplesmente
aprender a escrever em papéis ou a ler a letra escrita. Alfabetizar-se é acima de tudo
aprender a ler a realidade que circunda e a escrever a própria história. O que importa é
menos saber codificar e decodificar palavras desconhecidas, mas sim aprender a enunciar
a palavra da própria existência, que é pessoal, mas, sobretudo, é pertencimento coletivo.
E, para pronunciar esta palavra pessoal, singular e comunitária, é necessário que as
pessoas assumam suas perspectivas, seus lugares, suas vozes, seus sons – se perguntem
“qual é a minha participação no mundo e o que eu faço com isso?”.

É interessante notar que a crítica é pensada por Freire como uma prática de
liberdade atrelada a uma perspectiva ética e estética. Submeter a curiosidade à crítica, em
sua visão, é necessariamente um exercício ético, no qual não se pode negligenciar o
objetivo fundamental que é pensar a formação ética do/a educando/a em sua relação com
o mundo. Não propomos pensar os seres humanos longe da ética, quanto mais fora dela.
Estar longe ou, pior, fora da ética, entre nós, é uma transgressão. É por isso que
transformar a experiência educativa em puro treinamento técnico e dominante - baseado
em “metodologias inovadoras” -, é amesquinhar o que há de fundamentalmente humano
no exercício educativo: o seu caráter formador59. A libertação é exatamente a briga para
restaurar ou instaurar a “gostosura de ser livre que nunca finda” 60, que nunca termina e
sempre começa.

56
FREIRE, 2011, p.35
57
Ibidem.
58
FREIRE, 1984, 2000, 2005.
59
FREIRE, 2011.
60
FREIRE, 2019, p. 41.

299
Como colocam Paulo Freire e Antônio Faundez 61 , a educação é um processo
universal e de muitas práticas e concepções diferentes, e algumas vezes antagônicas, que
a fazem existir: é preciso qualificá-la, descrevê-la, situá-la, dizer de que educação estamos
falando. Segundo os autores, conviver com a cotidianidade do coletivo constitui uma
experiência de aprendizado permanente, pois nela nos perguntamos, nos movemos, de
modo geral, dando-nos conta dos fatos, nos diferenciando e habitando o mundo.

Por que apostar na potência coletiva? Por que trabalhar a coletividade em


instituições educacionais? Entendemos como bússola ética, o fato de que uma educação
democrática que constrói regras e combinados comuns, compartilha a responsabilidade
do espaço escolar, produz suas próprias trajetórias de ensino, se integra com a comunidade
escolar, é uma forma de construção de ferramenta conjunta. A cada encontro com crianças,
jovens e educadores/as, poder expressar seus descontentamentos com o que lhes
incomoda, poder pensar suas trajetórias de vida e seus processos de escolhas frente a
tantas opressões, é agir singularmente. Essas escolas não são um modelo pronto e
acabado, são processos vivos, que se atualizam todos os dias: escolas que assumem uma
reflexão diária sobre suas práticas.

Apostamos aqui que a potência de agir emerge a partir da multiplicidade de


encontros de que um indivíduo é capaz e, por isso, não pode vir de um só indivíduo:
recusar concepções universais, ideias e sistemas de indivíduo pré-concebidos,
aprisionamentos e silenciamentos capitalísticos - recusar materiais pré-fabricados e
vendidos como moldes por todo o país. As subjetividades produzidas hoje nas escolas não
deveriam ser apartadas das grupalidades e coletivos - segregada, infantilizada,
inferiorizada, invisibilizada. Não se fala ou se fala muito pouco sobre questões estruturais
de racismo, gênero e classe nas escolas atualmente. Quem peita desindividualizar,
singularizar e criar linhas de fuga nessa esteira produtiva?

Considerações momentâneas

61
FREIRE, Paulo; FAUNDEZ, Antonio. Por uma pedagogia da pergunta. 7ª ed., São Paulo: Paz e Terra,
2001.

300
Apontamos a tentativa de apropriação das metodologias de Freire, descoladas de
seu caráter emancipador, nas propostas neoliberais “inovadoras”. Assim, as turmas
organizadas em roda, que poderiam aparentemente se assemelhar aos círculos de cultura
de Freire; as aulas de inteligência socioemocional, que poderiam se assemelhar à proposta
de produção de afetos no ato de educar; a pedagogia por projetos, que poderia remeter à
aprendizagem a partir dos interesses e contextos dos estudantes - operam na zona de ilusão
de semelhança e constituem um mito, um simulacro. Para que tal operação se realize, as
propostas de Freire são esvaziadas ao isolá-las de seu dispositivo crítico voltado ao
combate das lógicas sociais opressoras, que apresenta como horizonte a transformação
social rumo à autonomia coletiva, à solidariedade, à emancipação.

Os discursos, tomados fenomenicamente se assemelham pois discutem


"problemas sociais". Freire insiste que a educação crítica não se restrinja ao nível da
aparência e, assim procedendo, aprofundarmos o modo pelo qual esses dois atores
concebem os problemas sociais, destacamos as diferenças, uma vez que enxergam tais
problemas de formas diferentes, com causas diferentes e a partir de posicionamentos de
classe diferentes. Incorporam-se demandas historicamente progressistas, a partir de um
prisma neoliberal que não adentra em análises estruturais, além de negar a imersão destas
propostas em um campo político. Cria-se uma ilusão de que não há disputa de projeto em
jogo, apresentando soluções supostamente neutras, sem classe, sem interesses
econômicos, sem conflitividade, sem “ideologia”62.

No mais, há um forte movimento de significação e de produção de conexões


neoliberais de determinados termos, como por exemplo, “autonomia”. Este termo é
apresentado e operado na prática neoliberal como promotor liberdades calcadas em
individualismo “cada um por si” 63 . Tal individualismo conflita centralmente com a
proposta de autonomia de Freire, baseada em um sujeito histórico e político, responsável
pela condição individual e coletiva, voltado para a possibilidade de construção de suas
próprias concepções de mundo, atreladas à emancipação social e a uma leitura crítica do
mundo. Para Freire64, a autonomia constitui base para uma sociedade democrática, pois

62
https://www.youtube.com/watch?v=C0T-6CbqptI
63
CASTORIADIS, 1991 apud MARTINS, Angela Maria. Autonomia e educação: a trajetória de um
conceito. Cad. Pesqui., São Paulo, n. 115, p. 207-232, Mar. 2002.
64
FREIRE, 2018.

301
tem como condição as trocas entre educadores e educandos, os processos de
aprendizagem cooperativos e solidários. Não uma autonomia individualista e liberal, mas
autonomia enquanto prática coletiva. Assim, as concepções de Freire podem ser apontadas
como ferramentas de luta e inspiração contra os processos de captura neoliberais, pois
convocam o que há de mais basilar na função da educação: sua potência transformadora.

Lutar por escolas democráticas enquanto horizonte de disputas de narrativas, é


apontar processos educativos que de fato tenham os princípios de transformação social
em suas bases. É defender a autonomia da escola contra um neoliberalismo que, em
detrimento de finalidades emancipadoras, submete as instituições à máquina econômica65.
Assim sendo, devemos estar atentos para as mudanças pedagógicas liberais: falar sobre
temas “progressistas” não garante o caráter transformador desta educação. Como enxergar
um caráter transformador, aquele que luta contra os processos de opressão, em escolas
que são ditadas pelo capital? Como pensar em autonomia coletiva em escolas de
conglomerados educacionais que fazem lobbies por mudança de currículo e de legislação,
defendendo abertamente a privatização da escola pública?

A autonomia da escola em sua luta contra um neoliberalismo educacional que


subordina sua estrutura e reorganiza suas práticas às exigências das empresas, voltadas
para satisfação do interesse privado, é exercício cotidiano da pedagogia freireana. É claro
que queremos uma revolução na escola: mas revolução para construir que tipo de escola?
Escola para que tipo de sociedade? Uma reforma pautada no culto da inovação (sem
implicação política clara) ou um caminho para transformação social?66

Mesmo com tantos caminhos fechados, educar freireanamente nos leva a produzir
formas singulares e críticas de fazer educação nos cenários contemporâneos. Atento aos
povos, às ruas, às culturas que pulsam, as intensidades dos encontros e a qualidade dos
afetos é que nos dirão o que pode um(a) educador(a), e isto não está escrito muito menos
descrito em manuais e cartilhas da última moda educacional. É na prática, no chão da
escola, na experimentação que a educação se faz.

65
LAVAL, 2004.
66
Ibidem.

302
REFERÊNCIAS

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educacional no início do século XXI. 2016. 274f. Tese (Doutorado em Educação) –
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SINGER, Helena. República de crianças: sobre experiências escolares de resistência.


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subjetivos e parâmetros normativos contemporâneos. In: PEIXOTO JUNIOR, Carlos
Augusto (Org.) Formas de subjetivação. Rio de Janeiro: Contra Capa, 2004.

304

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