Você está na página 1de 8

1

A Mercantilização do Ensino e Desafios para uma Educação de Qualidade em


Moçambique: Uma reflexão conflitual de orientação em Michel Apple

Nesta pequena reflexão, Michael Apple é apresentado como um dos mais proeminentes
investigadores sobre currículo e como um crítico feroz ao impacto na educação de políticas
neoliberais (APPLE, 2005). Aqui, ele denuncia as mazelas do processo de imposição do
neoliberalismo que domina o mundo e como o mesmo vem se manifestando na educação escolar.

Para entendermos o problema em torno da mercantilização da educação de uma forma geral e do


Ensino Superior em particular, faz-se mister reflectir sobre algumas das transformações socio-
político-culturais que vêm ocorrendo nos últimos anos. O fenómeno da globalização mediatizado
pelas tecnologias de comunicação e informação (TIC), juntamente com os objectivos e
incentivos propostos pela ideologia neoliberal, principalmente no campo das políticas
educacinais (que vêm se agravando com as restrições impostas pela pandemia da Covid-19),
colocam em causa a natureza e o papel do Ensino Superior.

No mundo em que vivemos, com a chamada revolução informática e os avanços no campo da


comunicação, o conhecimento passou a ser altamente comercializável. Parafraseando Lyotard, o
saber é e será produzido para ser vendido e, é e será consumido para ser valorizado numa nova
produção. Nesta vertente, para Lyotard, o saber deixa de ser, para si mesmo, a sua própria
finalidade, perdendo o seu valor de uso. Assim, “como os estados-nações se bateram para
dominar os territórios, depois para dominar o acesso e exploração das matérias-primas e da
mão-de-obra barata, é pensável que eles se baterão no futuro para dominar as informações”
(LYOTARD, 2006, p. 20). Para poder explorar com mais intensidade o seu potencial lucrativo,
na década de 1990, abriu-se mais espaço para Instituições de Ensino Superior
privados/mercantis.

1. A Escola como produtora e reprodutora da cultura

Numa outra obra, Apple faz uma análise sobre importantes contribuições para as discussões
sobre o currículo, pois, apesar de o autor escrever e situar a realidade norte-americana, pode ser
efectivamente trazida para o contexto actual de muitos países, na medida em que situamos as
inúmeras reformas educacionais efectuadas no país, com tentativas de controle e padronização
2

dos currículos, feflectindo também nas práticas dos professores em sala de aula. A partir dos
estudos de Apple, compreendemos que as instituições escolares estão sendo cada vez mais
pressionadas a organizar seus currículos e ensino em conformidade com as necessidades
económicas.

No entender de Apple, o Estado é entendido como não neutro, e sim formado por diferentes
grupos que se aliam entre si a partir de objectivos comuns e lutam para que seus objectivos se
tornem hegemônicos. O Estado é onde se materializam as disputas entre as alianças
hegemônicas. No processo de construção de hegemonias na sociedade, alguns momentos são
dominados por forças progressistas e noutros momentos por interesses conservadores. Na
caracterização das forças de direita percebemos um forte apelo aos elementos neoliberais,
neoconservadores e neofundamentalistas. Estes grupos se articulam e constroem um conjunto de
ideologias procurando conservar ou até, voltar a um momento em que as ideologias representem
um tempo passado, construindo hegemonias que são facilmente controladas por seu caráter
religioso ou conservador.

Apple fala também da realidade das escolas da época, embora ainda hoje esta realidade seja
notória, diante de uma política cujos modelos de padronização e controle pedagógico e curricular
confirmam o papel excludente, selectivo e diferenciado do sistema educacional.

Segundo Apple (2001, p. 55), ocorreu uma mercantilização da educação onde os interesses
económicos de grandes grupos empresariais reduziram a escola a uma fábrica de profissionais
qualificados, onde quem não se adapta aos padrões pré-estabelecidos é rapidamente descartado,
ficando à margem do processo, tornando-se um estorvo social. Apple acrescenta ainda que, as
escolas não são "meramente" instituições de reprodução, onde todo o conhecimento ministrado,
explícito e oculto, transforma inexoravelmente os estudantes em seres passivos, aptos e ansiosos
para se inserirem numa sociedade desigual.

Esta perspectiva erra em duas questões fundamentais, a saber, em primeiro lugar, porque vê os
estudantes como interiorizadores passivos de mensagens sociais pré-concebidas. Em segundo
lugar, seja qual for o conteúdo veiculado pela instituição, quer ao nível do currículo formal, quer
ao nível do currículo oculto, este é assimilado sendo insensível às modificações efectuadas pelas
culturas de classe e à rejeição das mensagens sociais dominantes por parte da classe (raça ou
3

género). A verdade é que as escolas necessitam de ser vistas de um modo muito mais complexo
do que apenas através da simples reprodução.

Neste aspecto, Apple dá uma contribuição significativo na esfera curricular do sistema


educacional. Convencionalmente o Currículo nada mais era que uma série de temas que deviam
ser transmitidos no ambiente escolar, Apple traz uma nova visão, defendendo que o mais
importante é elaborar ideias passíveis de serem apreendidas nas suas repercussões. Nesta
perspectiva, de acordo com a teoria desenvolvida por Apple, o Currículo não é uma mera cópia
objectiva de informações, pois estas são sempre frutos de determinados agrupamentos sociais,
que decidem o que será transmitido nas salas de aulas. Desta forma, não é fundamental saber
como o conhecimento será disseminado, mas sim, qual saber e porque este e não o outro. Assim,
o educador propõe questionamentos alternativos e coloca em xeque o modelo tecnicista. Razão
pela qual para Apple o saber não é algo dado, mas sim uma realidade que deve ser criticamente
examinada.

2. Privatização das Instituições Educacionais

Nos últimos anos, a privatização tem sido utilizada com fim de reduzir a presença do Estado
tanto no campo da produção quanto na área social. Por via disso, as políticas sociais vêm sendo
direccionadas para as camadas de baixa renda de modo a reduzir a miséria dos excluídos, mesmo
assim, mantendo a desigualdade social e a pobreza. A privatização e descentralização da
educação, para o neoliberalismo, baseia-se na ideia de que a educação organizada pelo Estado
não consegue atingir a qualidade necessária. Este ponto de vista dá azo às instituições privadas
assim como aos agentes trans-nacionais na planificação e implementação das políticas públicas.

Depois que Moçambique se tornou independente, adoptou o regime de ideologia marxista-


leninista. Neste sistema de uma economia centralmente planificada, os serviços de saúde e
educação tornaram-se responsabilidade exclusiva do Estado. Por lei, podemos ver na
Constituição que a “educação reforça o papel dirigente da classe operária e a aliança operário-
camponesa, garante a apropriação da ciência, da técnica e da cultura pelas classes
trabalhadoras, e constitui um factor impulsionador do desenvolvimento económico, social e
cultural do País” (Nº 3, do Artigo 36 da Lei 4/83, do SNE). A Lei deixa bem claro que a
educação é planificada, dirigida e controlada pelo Estado, cujo papel é garantir a universalidade e
4

laicidade no mesmo quadro da realização dos objectivos fundamentais consagrados na


Constituição.

Com o fim da Guerra Fria e o consequente esmorecimento do sistema marxista-leninista, o


Estado passou por um série de transformações e o neoliberalismo penetrou em todas as
instituições públicas, o Estado abriu-se às entidades privadas. O neoliberalismo valeu-se do seu
poderio para se instalar em todos os sectores económicos e sociais. Segundo Apple (2004, p.
46), “Os neoliberais representam o elemento mais poderoso dentro da restauração. Eles são
conduzidos por uma visão de Estado fraco. Assim, aquilo que é privado é necessariamente bom
e aquilo que é público é necessariamente mau”.

Nesta linha, o neoliberalismo implantou-se na educação exigindo algumas condições, a saber: i)


a liberalização do mercado da educação; ii) a frexibilização dos processos burocráticos; iii) a
melhoria da qualidade de ensino e, iv) a alocação dos recursos públicos ao privado. No entender
de Cunha (1995), o neoliberalismo advoga a privatização do ensino e do interesse na
transferência de recursos públicos para o sector privado (CUNHA, 1995, p. 22).

Em Moçambique, as metamorfoses da educação de um modo geral, e do currículo em particular,


passaram por diversas fases. Se na primeira república o currículo baseiou-se nas directrizes da lei
4/83 que conferia ao Estado o único direito de prover a educação, com um currículo focado na
formação do Homem Novo, na segunda república, a lei 6/92 o Estado abre espaço que permite a
participação de outras entidades na gestão do processo educativo.

Partindo da ideia de que o neoliberalismo é uma corrente de pensamento hegemônico no


Ocidente a partir da segunda metade da década 80 do século XX, nos países industrializados, a
partir da década 1990 nos países em desenvolvimento. Estas mudanças reflectiram-se
concretamente nas seguintes medidas: i) A Educação é um direito e dever de todos os cidadãos;
ii) O Estado, no quadro da lei, permite a participação de outras entidades, incluíndo
comunitárias, cooperativas, empresariais e privadas no processo educativo; iii) O Estado
organiza e promove o ensino, como parte integrante da acção educativa, nos termos definidos na
Constituição da República, sendo o ensino público laico (BASTOS e DUARTE, 2016).

O actual estágio de crescimento e privatização do Ensino Superior no nosso país tem


transformado a educação em um mercadoria, isto é, uma unidade de negócios de cursos e
5

programas. Perante este cenário, o desenvolvimento científico e cultural da comunidade


académica tem somado prejuízos pelo facto de descartar ou colocar em segundo plano as
actividades que não acrescentam um valor económico imediato.

3. Formação humana na sociedade mercantil

Na obra Ideologia e Currículo (2006), Michael Apple faz um apelo à necessidade de investigar
a forma e o conteúdo do curículo, sua relação com a cultura de determinados grupos sociais, o
que nos leva a entender que as instituições de ensino distribuem valores ideológicos e
conhecimento como se fossem mercadoria, para atender às necessidades e exigências do sector
económico, político e cultural.

Deste modo, as disciplinas de formação humana e social vêm paulatinamente perdendo o seu
prestígio e, até mesmo extintas dos planos curriculares, visando toranar as mensalidades mais
acessíveis aos alunos (todos como clientes), o que possibilita uma saída para os cursos
universitários se tornarem mais competitivos perante o actual cenário educacional. Portanto, as
disciplinas de âmbito prático passam a ser mais valorizadas em prejuízo das disciplinas teóricas
ligadas à formação integral do ser humano.

Conforme aponta Sguissardi (2008), essa tendência capitalista de transformar tudo em


mercadoria, inclusive o conhecimento, abre a possibilidade de entender por que “os serviços
educacionais, como um direito e um bem público, possam ser considerados como uma
mercadoria, a educação-mercadoria, objecto de exploração de mais valia ou de valorização”
(SGUISSARDI, 2008, p. 1013).

Deste modo, quando mundam os objectivos da educação, mudam também as actividades


curriculares a serem realizada, ou seja, enquanto o escopo da educação for reduzido ao mero
aperfeiçoamento profissional (garantir pessoal para o mercado do emprego), as actividades
curriculares irão assumir apenas uma conotação prática, deixando os elementos teóricos para o
lado. Nesta óptica Thomas Kesselring (2007) sugere uma outra direcção sobre uma Educação
Superior ao afirmar que “a preocupação do ensino universitário é o esclarecimento e, para usar
um termo do século XX, a emancipação” (KESSELRING, 2007, p. 21). Este apelo prioriza o
desenvolvimento intelectual e moral do homem, é resultado da actual valorização da prática em
6

detrimento das ciências humanas. As reformas e a flexibilização dos currículos, de acordo com
as demandas do mercado educacional, têm vindo a ameaçar a formação integral do homem.

Das maiores transformações ocorridas ao longo destas metemorfoses na educação em


Moçambique foi a introdução do currículo local que representou um “revoluѯão epistemológica”.

Apesar de lamentáveis, as mudanças que ocorrem nos últimos anos, apresentam uma
oportunidade ímpar para uma séria reflexão crítica.

Apple afirma que é importante levar em conta o Estado nas análises em educação, pois o
processo educacional é justamente uma das responsabilidades do Estado.

Em Moçambique, a introdução de políticas neoliberais deu lugar à alterações significativas no


processo educativo em todos os subsistemas de ensino.

4. Mercantilização da educação nas Instituições do Ensino Superior

A ideia do neoliberalismo, associaada à economia de mercado, que apregoa o Estado mínimo,


criou condições para novas perspectivas na educação. O ensino superior, como subsistemma do
SNE, passou a ser o caminho para alcançar uma posição económica privilegiada. Deste modo, as
Instituições de Esnino Superior tornaram-se em mercado de concessão de diplomas e
certificados, o que garante a ascenção na carreira, a progressão, principalmente para os
funcionários de instituições públicas, e até mesmo uma garantia de pertencer a uma elite
intelectual ou estatuto social de maior prestígio.

Boaventura Sousa Santos (2004) é da ideia de que a mercantilização do ensino superior acontece
de formas diferentes e em diversos níveis. No que se refere aos níveis em que ela se concretiza,
eles seriam a indução da universidade pública a gerar receitas próprias, mediante parcerias com o
capital, com vista a superar a crise financeira gerada pela retirada do financiamento do Estado; o
segundo nível, que elimina a distinção entre universidade pública e universidade privada,
transformando a universidade, como um todo, numa empresa, em “uma entidade que não
produz apenas para o mercado, mas que se produz a si mesma como mercado, como mercado de
gestão universitária, de planos de estudos, de certificados, de formação de docentes, de
avaliação de docentes e estudantes” (SANTOS, 2004, P. 18).
7

É de notar que a massificação das Instituições do Ensino Superior privadas ajudou também a
responder a fraca oferta das instituições de ensino público. Porém, nem todas as condições foram
criadas por essas isntituições, de foram a que o produto final tivesse uma formação adequada de
modo a que o diploma atribuido conferisse competências suficientes. Maior parte dessas
instituições não foram apetrechadas de um pessoal docente capacitado para os níveis exigidos
pelos grraus conferidos. Outro constrangimento que foi verificado tem a ver com o
apetrechamento físico das infraestruturas em detrimento do acervo bibliográfico, laboratórios
entre outros equipamentos pedagógicos para a sustentação universitária.

. Nesse sentido, para que o trabalho docente não


fique atrelado exclusivamente às demandas do
mercado, a Universidade precisa criar condições que
venham a incentivar e a fortalecer o desenvolvimento
científico e cultural da comunidade acadêmica. Os
cursos superiores com dedicação exclusiva ao ensino,
em que a aprendizagem é o resultado do
armazenamento e da memorização de conteúdos, não
estão investindo significativamente no processo de
produção científica. Em meio a um mercado
educacional amplamente competitivo, a Universidade
é, atualmente, a principal responsável pelo
fortalecimento da pesquisa científica. Porém, o
processo de produção e de socialização dos
conhecimentos não pode ocorrer sem que, antes, sejam
levados em conta os problemas relacionados à
destruição do meio ambiente, à corrupção e a outras
questões ligadas à qualidade de vida do ser humano.
Esse processo formativo implica o surgimento de “um
modelo de aplicação da ciência alternativo ao modelo
de aplicação técnica, um modelo que subordine o
know-how técnico ao know-how ético e comprometa
a comunidade científica existencial ética e
profissionalmente com o impacto da aplicação”
(SANTOS, 2008, p. 224).

APPLE, 2005 – Para além do mercado – compreendendo e opondo-se ao neoliberalismo. Trad. Gilka Leite
Garcia, Luciana Axhe. R. De Janeiro: Dpe A)
8

___________; Ideologia e Currículo. 3. ed. Porto Alegre: Artmed, 2006.


SANTOS, B. S. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. São Paulo: Cortez,
2008.
SGUISSARDI, V. Modelo de expansão da educação superior no Brasil: predomínio
privado/mercantil e desafios para a regulação e a formação universitária. Educação e Sociedade,
v. 29, n. 105, p. 991-1019, 2008.

Você também pode gostar