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Este livro é uma introdução dirigida,

em grande medida, a pessoas que estão


iniciando seus estudos de direito ou a
juristas experientes que desejam ree-
xaminar os fundamentos de seu ofício.
A ciência do direito tem como fina-
lidade fundamental garantir que a so- O QUE É O DIREITO?
ciedade seja justa, com essa justiça real
e concreta que consiste em respeitar
cada homem e garantir seus direitos,
aquilo que é seu. Tarefa importante e de
incalculável transcendência social, em-
bora às vezes custe grandes esforços
consegui-lo.

Javier Hervada, professor titular de Filo -


sofia do Direito e catedrático de Direito Ca-
nônico, é autor de inúmeras publicações
científicas. Foi decano da Faculdade de Direito
da Universidade de Navarra. Fundou e dirigiu
as revistas Ju s Canonicum, Persona y Derecho,
Humana lura e Fidelium lura . Recebeu a nomea-
ção pontifícia de Cavalheiro Comendador da
Ordem de São Gregório Magno e a Cruz de
Honra da Ordem de São Raimundo de Penna-
fort do Ministério da Justiça espanhol.

Proj eto gr áfi co da capa Katia Harumi T erasaka


Imagem da capa Jacques- Louis David, lvla da me Récamier, detalhe.
Louvre , Pa1is.
O QUE É P DIREITO?
A moderna resposta do realismo jurídico
Uma introdução ao direito

Javier Hervada

Tradução
SANDRA MARTHA DOLINSKY

Revisão da tradução
ELZA MARIA GASPAROTTO

Revisão técnica
GILBERTO CALLADO DE OLIVEIRA

~
wmfmartinsfontes
SÃ O PAULO 2006
ÍNDICE

Esta obra foi publicada origina/mente em espa nhol com o título


lQUÉ ES EL DERECHO' - La moderna respuesta ai realismo jurídico,
por Ediciones Universidad de Navarra, Pa mplona, Espanha.
Copyright© 2002, Javier Hervada Xiberta.
Copyright© 2006, Livraria Martin s Fontes Editora Ltda. ,
São Paulo, para a presente edição.

1' edição 2006

Tradução
SANDRA MARTHA DOLINSKY

Revisão da tradução
Elza Maria Gasparotto Introdução............................... .. ............................ IX
Revisão técnica
Gilberto Cal/ado de Oliveira Prólogo .................................................................. XVII
Acompanhamento editorial
Luzia Aparecida dos Santos
Revisões gráficas
Célia Regina Camargo 1. Toda a verdade sobre o curso de Direito 1
Maria Regina Ribeiro Machado
Dinarte Zorzanelli da Silva
1. Introdução........... ... ................................ 1
Produção gráfica
Geraldo Alves
2. Ser jurista............................................... 3
Paginação/Fotolitos 3. Homem de leis....................................... 4
Studio 3 Desenvolvimen to Editorial

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) II. Por que existe a arte do direito .............. . 7
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
1. Saber direito é uma ciência prática ........ . 7
Hervada, Javier
O que é o direito? : a moderna resposta do realismo jurídi- 2. Determinar o justo ........... .... ... .... ... .... .... . 8
co : uma introdução ao direito / Javier Hervada ; tradução
Sandra Marta Dolinsky ; revisão da tradução Elza Maria 3. Por que existe o direito ........................... . 12
Gasparotto ; revisão técnica Gilberto Callado de Oliveira. -
São Paulo : WMF Martins Fontes, 2006. - (Justiça e direito)
4 . Ad.1stn.b mçao
. - d as cmsas
. ................ .... .... . 16
Título original: Qué es el d erecho7
ISBN 85-60156-08-9

1. Direito - Espanha 2. Direito - Filosofia I. Título. II. Série.


III. A justiça ... .. .. ...... ... ....... ......... .... ........ .. ... .... . 19
06-6734 CDU-340.12
1. A ordem social justa ... ........ ........ .... .... .... . 19
Índices para catálogo sistemático: 2. A justiça .................................... ..... .. ...... ... 21
1. Direito: Filosofia 340.12
3. Dar a cada um o que é seu .. ..... ...... ........ . 22
Todos os direitos desta edição para a língua portuguesa reservados à 4. A justiça sucede ao direito ..... ................ . 25
Livraria Martins Fontes Editora Ltda.
Rua Conselheiro Ramalho, 330 01325-000 São Paulo SP Brasil 5. A igualdade ............................................. . 28
Tel. (11) 3241.3677 Fax (11) 3101.1042 6. Um pequeno detalhe .... ...... .... .......... .. .. .. 32
e-mail: info@martinsfontes.com.br http://www. martinsfontes.com.br
7. Justiça e divisão ....................................... 35 VII. A lei na sociedade ................................... 101
8. O que é de cada um, nem mais nem 1. A regra da boa cidadania. ........... .. .. ....... 101
menos...... ... .. ... .... .... .......... ... .................... 39 2. Interpretação da lei e realidade social .. 104
3. A lei e o bem comum.. ............. ..... ......... 107
IV. O direito ..................................................... · 43 4. Racionalidade da lei .............................. 111
1. Esclarecimento sobre o direito subjetivo 43 5. Autoridade competente ........................ 118
2. As coisas externas....... ...................... ....... 48 6. O processo legislativo .. ......... ..... ... ....... . 122
3. A razão de dívida..................................... 49
4. Variedade de direitos... ............................ 51 VIII. As leis e o homem ................................... 125
5. O título e a medida do direito................. 52 1. Premissas .. ..... .... .. .. .... ... ........ .... ...... ....... 125
6. O fundamento do direito........................ 54 2. Natureza das coisas e natureza das
ciências ................................................... 12 7
V. Direito natural e direito positivo ........... 59 3. A realidade moral.................................. 129
1. Dois tipos de direito.......... .... ......... ......... 59 4. As ciências da realidade moral .... .. ... .... 133
2. O direito positivo .... ;..... .... ... .... ..... .... .... .. . 60 5. Lei e comportamento moral ................. 140
3. Os limites do direito positivo... ... ...... .. .. .. 61
IX. A lei natural e a lei positiva ... .. ............ .. 143
4. O direito natural...................................... 65
1. Introdução .............. .. ...................... .... .... 143
5. A medida natural do direito.... .. .. ..... ... .... 70
2. Verdade e opinião .................. ................ 14 7
6. Os direitos mistos ... ......... .. .... .. .... .... ... ..... 71
3. O conteúdo da lei natural ........ .... .. ... .. .. 150
7. A conexão entre direito natural e direi-
4. A índole normativa da natureza hu -
to positivo....... .. ....... ... ...... .. ............ ......... 74
mana .......... ............. .. ...... ....... .............. ... 152
5. Função da lei natural ... .......................... 154
VI. As leis.......................................................... 79
6. Quem diz o que é lei natural.. ............... 157
1. Saber sobre as leis. ... .. ... ... .... ....... ... ....... .. 79 7. Conhecimento da lei natural................ 161
2. Alei.......................................................... 83 8. O" esquecimento" da lei natural.. ........ 165
3. Norma social..... ............. ..... .. ... ........... .. ... 85 9. A universalidade da lei natural ........... .. 168
4. Lei e dever moral...... ............ ...... .... ......... 90
5. A relação entre direito e lei..................... 96 X. O direito canônico .................................. 171
6. Causa e medida do direito .. ....... .. .... ...... . 99
Bibliografia ........................................................... 175
INTRODUÇÃO

No atual ambiente de profusão teórica do con -


tratualismo revolucionário e tardiamente iluminista,
apresentado sob a roupagem do garantismo jurídi-
co, germinam tendências ideológicas e metajurídi-
cas que não podem passar despercebidas por todos
os que cultivam o conhecimento do direito. É que o
avanço dessa nova ideologia nos ambientes intelec-
tuais das universidades e dos tribunais vai corroen -
do progressivamente os elementos históricos fun-
damentais da doutrina clássica do direito natural,
desenvolvidos por Aristóteles, pelos juristas roma-
nos e por São Tomás de Aquino. Sem uma base jus-
naturalista todo o direito será uma quimera, porque
fundamentado em juízos de conveniência socioló-
gica, em uma política de aplicação utilitária, de uma
perigosa base subjetivista.
Caminhamos no século XXI embebidos da idéia
de que a mera declaração de uma norma pelo poder
estatal já é suficiente para criar um verdadeiro direito.
Propaga -se até a desaparição dos Estados nacionais
X O QUE É O DIREITO? INTRODUÇÃO XI

e a abolição da própria soberania, como forma de positivismo, o mote vanguardeiro das cátedras e dos
decompor as sociedades e de implantar a autoges - livros é ser política ou juridicamente correto, redefi-
tão entre os milhares de grupelhos políticos em que nindo aquela configuração doutrinária para uma po-
os direitos fundamentais da pessoa humana pouca sição mais radical e libertária.
importância teriam ou quase nenhuma. Mas, como Hoje o positivismo cedeu lugar a uma ideologia
adverte Pio XII, o critério do simples fato vale so-
/1
transformadora da atual dogmática aplicada pelos
mente para Aquele que é o Autor e a regra soberana de juristas, sugerindo para eles uma baldeação inadver-
todo o direito, Deus. Aplicar esse critério ao legisla- tida para uma juridicidade igualitária, autogestioná-
dor humano indistinta e definitivamente, como se a lei ria, que cubra de infâmias a verdadeira e eterna justi -
fosse a norma suprema do direito, é o erro do positi- ça que Deus fez gravar no coração de cada homem.
vismo jurídico no sentido próprio e técnico da pa- É, ao modo gramsciano, a transformação ideológica
lavra, erro que está na base do absolutismo de Esta- das mentalidades dos juristas como condição prévia
do e equivale a uma deificação do próprio Estado" 1. para a transformação das estruturas da sociedade.
Não faltaram propulsores do positivismo jurídi- Sempre haverá, nesse turbilhão ideológico, vo -
co, que, a partir do século XIX, levaram sua doutrina zes de fidelidade e obediência à ordem natural, re -
até as últimas conseqüências. Kelsen reinou durante fletida na alma humana pelos imutáveis decretos do
décadas com o seu positivismo doutrinário até que Redentor do mundo. A contra-revolução no campo
/1
a teoria pura" sucumbiu diante da realidade histó - das idéias nunca deixou de ter os seus propulsores,
rica dos países subjugados pelos totalitarismos de abrasados na certeza da existência de um direito na -
diversos matizes, da qual se sobressai a queda do muro tural, absoluto, universal, imutável, que representa
de Berlim. Não faltaram outras contradições das cor- o bem não só apetecível, mas também naturalmen-
rentes positivistas, cujas construções especulativas . t O.
t e JUS /
; j

abstratas, posto que divorciadas do mundo real, fo - Javier Hervada sempre foi um desses propulsores
ram postas em xeque pela necessidade de um ele- vibrantes, de idéias claras, que conseguiu expressar
mento civilizador por excelência, que é o direito na - sua vasta erudição jusfilosófica numa linguagem sim -
tural. Não obstante todas as contradições e artificia- ples, acessível a uma introdução ao direito e dirigida
lidades a que levam os fundamentos filosóficos do aos acadêmicos de direito ou aos juristas que dese-
jam recordar ou reexaminar os fundamentos do seu
1. Pio XII. "Con Vivo Compiacimento", em Doctrina Pontifi.cia (Documentos
ofício. Hervada nasceu em Barcelona em 1934, douto-
jurídicos). Madrid, Bac, 1960, p. 307. rou -se em direito pela Universidade Complutense
XII O QUE É O DIREITO? INTRODUÇÃO XIII

de Madri (1958) e em direito canônico pela Univer- O direito é a realidade nuclear, em torno da qual
sidade de Navarra (1962), em 2002 foi investido Dou- se movem os demais conceitos. Sendo também coisa
tor Honoris Causa pela Università della Santa Croce; (res), a substância essencial do direito apresenta-se
até 1999 exerceu as funções de Catedrático de Di- à inteligência humana tal como é, sem as subjetivi-
reito Canônico da Universidade de Saragoça e de dades e artificialidades tão caras às correntes atuais
Professor Ordinário de Direito Natural e Filosofia do do pensamento jurídico, as quais têm levado muito
Direito na Universidade de Navarra; e proferiu nu- longe a aventura dialética de resumir o mundo do
merosas conferências por diversas universidades da direito a uma dualidade concessiva do Estado ou da
Europa e da América Latina. sociedade. O justo, para aquele grande pensador da
Sua obra jusfilosófica sempre se pautou por uma Universidade de Navarra, não é o direito subjetivo,
doutrina ensinada desde Aristóteles, quando o rea- mas a coisa, aquela coisa que a virtude da justiça im -
lismo jurídico se desvencilhou das idéias platônicas pele a dar a outro por constituir o seu. O seu e o justo
para tomar assento no mundo das coisas, da natu- são dois modos de designar o direito. Não é, por ou-
reza das coisas, e agregar a verdade de que Deus est tro lado, somente o justo posto, cujo título e cuja me -
in omnibus rebus ut causans omnium esse, como assim dida devem sua origem à vontade humana, mas tam-
entendeu São Tomás de Aquino 2 • E permaneceu fiel bém é direito que tem por fundamento e por título a
a esse processo de amadurecimento da filosofia to- natureza humana, e cuja medida está na natureza das
mista, que expurgou do próprio aristotelismo os ele- coisas. Por isso faz ele destacar que a capacidade do
mentos inconciliáveis com o cristianismo, e pôs ter- homem para constituir e regular o direito não é ili-
mo definitivo às intermináveis disputas entre a racio- mitada, nem está subordinada a um mero juízo de
nalidade e a sobrenaturalidade. conveniência, de adaptar-se ao que é sociologicamen-
Os conceitos fundamentais do universo jurídi- te normal ou anormal. "Porque há um direito natural
co, como o direito, a lei e a justiça, não poderiam fu- que é justo por si mesmo, representando coisas - bens,
gir a essa concepção realista. Em O que é o direito? são poderes, faculdades etc. - atribuídas ao homem, não
eles desenvolvidos com grande maestria, acompa - por pacto ou consenso entre os homens, mas em ra -
nhados de exemplos práticos que, sem descurar do zão daquilo que é natural no homem, isto é, de fa-
nível filosófico de intelecção que exigem, proporcio- tores ou dimensões próprias do seu ser."
nam ao leitor sua fácil compreensão. Interessante observação é feita com relação à jus-
tiça. O segredo de sua fórmula está no direito natural,
2. São Tomás de Aquino, Summa Theologiae, I, q.8, a.1, ad 1. porque a insuficiência e a injustiça de uma lei são me-
XN O QUE É O DIREITO? INTRODUÇÃO XV

didas por sua adequação ao direito natural. Sem ele dade dos acadêmicos e dos profissionais do direi-
a justiça transforma-se em ideais inconcretos e rela- to, o que o realismo jurídico clássico sempre profes-
tivos, e terá perdido sua praticidade e seu realismo. sou na consideração da ipsa res iusta. São Tomás de
Outra perspicaz observação: a justiça segue o direito. Aquino representa, nesse realismo, a perfeição filo-
"Se a justiça é a virtude de dar a cada um o seu, o seu sófica perfilhada em um sistema científico magistral.
direito, para que ela possa atuar é preciso que exista o Hervada confessa, em outra obra, que levou aproxi-
seu de alguém, o seu direito; se não, como dar o seu, madamente vinte anos, em sua vida acadêmica, para
o seu direito? Daria outra coisa. Portanto, onde não entender que a ciência jurídica formalista continha
há um direito existente, a justiça não é invocável." apenas fórmulas vazias e cujo sentido não conseguia
Quando se trata da relação entre o direito e a captar. Segundo o insigne pensador espanhol, ne-
lei, o conceito desta aparece em um sentido analó- nhuma filosofia jurídica foi mais completa e esclare-
gico, ou, para usar a expressão de Hervada, por ana- cedora; prova-o sua história de mais de vinte séculos.
logia de atribuição. O direito é aquela coisa que está "Quem é hoje genuinamente kantiano, ou fiel he-
atribuída a um sujeito; é o justo, o seu de cada um. Já geliano, ou seguidor puro da filosofia dos valores, ou
a lei é outra coisa distinta: uma regra de conduta obri- marxista ortodoxo ?" 3
gatória. Em qualquer perspectiva que se queira dar Sua contribuição ao pensamento tomista sobre
a essa relação conceitua!, a lei é algo distinto do di- o direito vem respondendo, nos meios acadêmicos,
reito; ela é a causa e a medida do direito. Não se des- com clareza e eficácia, ao grande questionamento dos
conhece o atual sentido normativo do direito, mas jusfilósofos, nesse início do século XXI, sobre a si-
essa construção teórica despreza a própria essência tuação atual da ciência jurídica, e seu diagnóstico mais
do direito, segundo a visão do realismo jurídico clás- acurado, reavivando em todos os seus leitores a fé no
sico, como coisa justa, como objeto da justiça. Entre verdadeiro direito e nas realidades temporais da Ci-
ambas as realidades há duas proporções: entre a vilização que ele mesmo engendrou em uma tradi -
causa e o efeito, entre a medida e o medido. O ter- ção multissecular.
mo direito aplicado à lei é análogo (não quer significar
o justo, mas a causa ou medida do justo) e analoga- GILBERTO CALLADO DE ÜLIVEIRA
do (a lei chama-se direito somente por sua relação Do Ministério Público, autor de
com o justo) . A verdadeira face do direito alternativo
Neste ensaio que ora apresentamos ao leitor bra -
sileiro os conceitos manejados por Javier Hervada 3. Javier Hervada. Lecciones Propedéuticas de Filosofia dei Derecho (Prólo-
não têm outro objetivo senão reavivar, na mentali- go). Pamplona, Eunsa, 1992, p. XVIII.
PRÓLOGO

Este livro é uma introdução ao direito. Isso quer


dizer que está voltado, em grande parte, para pes-
soas que ou estão no início de seus estudos de direi-
to (seja em uma Faculdade de Direito, seja em uma
Faculdade de Direito Canônico) ou, sendo já juris-
tas ou canonistas experientes, desejam recordar e
reexaminar os fundamentos de seu ofício.
É, pois, um livro em certo sentido elementar,
porém está longe de ser de divulgação. Por isso ten-
tei ser claro, mas não garanto que seja sempre fácil.
Além disso, poderia atrever-me a dizer que não
é uma introdução usual. De certo modo, pode ser
classificada como original. É uma introdução ao di-
reito sob a perspectiva do realismo jurídico clássico
(o direito como o justo), que, embora seja uma pers-
pectiva tão antiga quanto os juristas romanos, foi
praticamente substituída a partir do século XIV pelo
subjetivismo (o direito como o direito subjetivo) e, em
seguida, pelo normativismo (o direito como a norma),
que é, ainda hoje, a perspectiva dominante. Por isso,
XVIII O QUE É O DIREITO?

voltar ao realismo jurídico é uma tentativa de re - Capítulo I


novação e modernização da ciência jurídica. Não é Toda a verdade sobre o curso de Direito
voltar atrás o olhar, mas despojar a ciência do direito
de uma visão caduca e antiquada, que mostrou sufi-
cientemente sua esterilidade e a deformação que im ~
primiu ao ofício de jurista. Nesse sentido, este livro
pode ser considerado uma exposição sintética e pro-
pedêutica do realismo jurídico clássico, uma forma
diferente da habitual de compreender o direito. Por
isso, creio que pode interessar juristas e canonistas
indistintamente. 1. Introdução
De tudo o que foi dito nesta introdução, penso
que o principal é que fique bem gravada uma idéia: O curso de Direito apresenta uma singularida-
a ciência do direito tem como finalidade fundamental de em relação a outros cursos. Quando se pergunta
que a sociedade seja justa, com a justiça real e con- a um estudante de Medicina o que vai ser quando
creta que consiste em respeitar cada homem e dar-lhe terminar o curso, ele responde sem titubear: médico.
seu direito, aquilo que é seu. Tarefa importante e de
É verdade que poucos dos que estudam Medicina
incalculável transcendência social, embora às vezes
não exercerão a função de médico - isto é, não se de -
exija grandes esforços conseguir isso. Em todo caso,
dicarão a atender e tratar doentes - , mas sim outras
é uma tarefa na qual vale a pena se empenhar.
atividades - principalmente de pesquisa - relaciona-
das com a Medicina. Conheço um pesquisador de
Pamplona, 9 de janeiro de 2002.
prestígio, catedrático de uma Faculdade de Medici-
na, que costuma se aborrecer quando alguém o apre-
senta como médico ou lhe pergunta o que fazer
para tratar essa ou aquela doença: não sou médi-
11

co", é sua invariável resposta. Esses casos são exce-


ções. A Faculdade de Medicina ensina seus alunos a
ser médicos, e embora seja verdade que é prudente
não tentar que um recém-formado trate alguém -
é melhor esperar que adquira um pouco de expe -
2 O QUE É O DIREITO? TODA A VERDADE SOBRE O CURSO DE DIREITO 3

riência - , não é menos certo que o graduado em Me - sina a ser advogado; entre outras coisas, estão au-
dicina tem os conhecimentos básicos para ser médi- sentes de seus currículos a dialética e a retórica, que
co. O mesmo ocorre com outros cursos, como o de são duas artes imprescindíveis para o advogado.
Arquitetura ou os diferentes ramos da Engenharia. Sobre o curso de Direito e o que se ensina em
Por outro lado, quando se pergunta a um estu~ uma Faculdade de Direito, deve-se saber de antemão
dante de Direito o que ele pensa ser ao terminar o toda a verdade: à Faculdade de Direito vai-se apren-
curso, pode-se receber uma infinidade de respostas, der a ser jurista. E que ninguém se alarme diante
tantas quantas saídas a carreira tem, e que passam dessa verdade; o significado do título de jurista é um
de uma centena. Isso, se o inquirido não der de om- saber ou uma arte que abrirá as portas de uma infi-
bros e responder, diante da surpresa de quem per- nidade de profissões, mais que qualquer outro curso.
gunta: "ainda não sei o que vou fazer". Algumas consistem em simplesmente ser juristas,
O que acontece, então? O curso de Direito é um juristas por excelência: juízes e magistrados; outras
conglomerado de conhecimentos com pouca cone- representam algumas facetas ou derivações, como ser
xão entre uma disciplina e outra? Ou será que ensi- advogado ou tabelião; e outras são profissões para as
na um pouco de tudo? Se isso fosse verdade, pode- quais é necessário ou conveniente ser jurista: diplo-
ria ser aplicado aos formados em Direito aquele pro- mata, político ou fiscal da Fazenda.
vérbio que diz: "homem de muitos ofícios, mestre
em nenhum". Porém, a experiência nos diz o con-
trário: entre os melhores de uma série de profissões, 2. Ser jurista
de políticos a diplomatas, encontram-se formados
em Direito. O curso de Direito não ensina muitos O que quer dizer jurista? Essa palavra vem do la-
ofícios ou saberes; ensina um único ofício ou saber, tim, língua dos juristas romanos, os quais transfor-
que habilita - isso sim - para uma grande diversidade maram o saber "direito" em uma arte ou ciência. O
de profissões. direito chamava-se, em latim, ius (ou jus; a letra "j"
Há pelo menos alguns anos, eram muitos os não é mais que um "i" alongado), daí denominarem -
que pensavam que a Faculdade de Direito ensina a se juristas os que se dedicam ao direito (ao ius), as-
ser advogado, que seria esse ofício ou saber do qual sim como são chamados futebolistas os profissio-
falamos. Essa idéia sobre o curso de Direito tem nais do futebol ou artistas os que se dedicam à arte.
apenas um pequeno inconveniente: nas Faculdades É possível (e permitido) que o leitor de língua espa-
de Direito - isso deve ficar muito claro - não se en- nhola, por exemplo, pense que, como usa a palavra
4 O QUE É O DIREITO? TODA A VERDADE SOBRE O CURSO DE DIREITO 5

derecho [direito], seria preferível que os juristas rece- gamos a uma sociedade tão pluralista que nós, se-
bessem um nome derivado dessa palavra e, assim, res humanos, questionamos até as idéias mais ele-
seriam evitados estranhamentos. O caso é que, na mentares.
Idade Média, quando a língua espanhola começou Porém, o que pretendemos neste livro é justa -
a se formar, já houve essa tentativa, mas a palavra mente mostrar que nem o direito se confunde com
que saiu foi derechurero, que ainda aparece em alguns a lei, nem o jurista é propriamente um homem de
dicionários desse idioma; a justiça foi chamada de leis, embora o conhecimento destas seja de primor-
derechuría, e assim ocorreu com outros termos deri- dial importância para ele.
vados de derecho . É compreensível que derechurero e Chegando a este ponto, cabe-nos passar a expli-
derechuría tenham sido palavras logo esquecidas, e car em que consiste o direito e, conseqüentemente,
que hoje sejamos gratos ao bom senso de nossos em que consiste ser jurista.
antepassados, falando de jurista e de justiça.

3. Homem de leis

Jurista é, simplesmente, o homem de direito, o ho-


mem que sabe direito. Também se diz com freqüên -
cia que é homem de leis . Essa segunda expressão, ho-
mem de leis, é mais compreensível para os não-espe-
cialistas, e não são poucos os juristas convictos de
que é a melhor. Esses juristas são ditos normativis-
tas, porque afirmam que o direito é a lei (também
chamada norma, de onde vem norma tivismo). Nas
páginas seguintes, veremos que a lei e o direito não
são a mesma coisa, mas o normativismo é a concep-
ção do direito dominante.
Não são de estranhar essas diferenças na pró-
pria noção de direito; é que a noção de direito de-
pende da noção do homem e da sociedade. E che-
Capítulo II
Por que existe a arte do direito

1. Saber direito é uma ciência prática

Saber direito, conhecê-lo, é uma ciência prática.


Hoje, é muito freqüente ter um conceito muito re-
duzido do prático. Chama-se prático ao que produz
uma utilidade imediata: dinheiro, prazer, bens de
consumo, um posto de trabalho ou - de forma mais
extrema - o que serve à reforma das estruturas ou à
revolução social. Isso é o prático, o resto são teorias,
filosofias ou, numa expressão menos acadêmica,
histórias. Com esse sentido tão restrito do prático, é
11
difícil entender o que se quer dizer com saber di-
reito é uma ciência prática". E não é estranho haver
estudantes que se queixem de que as explicações
11
dos professores são, às vezes, pouco práticas" . O
que não lhes serve diretamente para se preparar
para as provas ou os .exames, ou ganhar os futuros
pleitos, ou fazer as liquidações de impostos, eles
consideram coisa abstrata ou excessivamente teóri-
ca. O que precisamos, dizem, é de aulas práticas.
8 O QUE É O DIREITO? POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO 9

Pessoalmente, estou convencido de que não há até a direção de cada uma das pinceladas. Mas tudo
nada tão útil quanto as coisas inúteis. Nada tem mais isso é conhecimento especulativo; esses conheci-
utilidade nem serve tanto para se realizar plena- mentos não a habilitarão para pintar se não tiver a
mente na vida quanto a sabedoria que a metafísica arte da pintura. Essa arte consiste em saber pintar
oferece, a parte mais abstrata e menos "prática" da · quadros, e é uma ciência prática. Ciência prática e
pouco "prática" filosofia, para não falar da religião, arte são a mesma coisa; é arte toda ciência prática, e
que decide o destino eterno do homem. Mas não não apenas as chamadas Belas-Artes. É claro, pois,
vou continuar por esse caminho. Se medirmos o que uma coisa é conhecer os quadros (ciência espe -
prático por suas utilidades imediatas, não restará culativa) e outra coisa é saber pintá-los (arte ou ciên-
dúvida de que o curso de Direito é muito prático, cia prática). Um crítico de tauromaquia, que sabe
porque tem muitas saídas profissionais e é um dos distinguir uma boa chicuelina 1 de outra imperfeita,
que menos se ressentem com o problema do desem- pode ser incapaz de segurar bem a capa. O que é,
prego, embora não esteja livre dele. Não é nesse sen- pois, uma arte ou ciência prática? É saber fazer as di-
tido, porém, que dizemos que saber direito é uma versas coisas.
ciência prática. Por outro lado, para saber fazer uma coisa são
necessários, muitas vezes, conhecimentos que pa-
recem inúteis, isto é, que não são imediatamente
2. Determinar o justo práticos. Um exemplo bem claro é a matemática; a
matemática é uma ciência especulativa e das mais
As ciências - ou conhecimentos sistematicamen - abstratas: nada é feito de imediato com a matemáti-
te organizados - são ditas especulativas ou práti- ca; depois de uma operação aritmética, nada de
cas em um sentido que tem pouco a ver com o prá- novo acontece, simplesmente se conhece um dado.
tico a que acabamos de mencionar. A palavra espe- Até mesmo as cifras escritas no papel pertencem à
culativa vem de speculum ou espelho; quer dizer que arte de escrever, e não à matemática. Porém, são
se trata de um conhecimento que reflete a realidade muito poucas as coisas que podem ser feitas sem
sem a fazer ou construir. Se uma pessoa se dedicar usar a matemática. É o que eu dizia antes: nada mais
ao estudo da arte, chegará a conhecer os quadros dos útil do que o "inútil". Também para saber direito são
pintores estudados em seus mínimos detalhes; pode
ser que saiba tudo ou quase tudo sobre os quadros, 1. Lance aplicado com a capa nas touradas, quando o toureiro dá meia-
desde as substâncias que o pintor usou como tintas volta no momento da investida do touro. (N. da T.)
10 O QUE É O DIREITO? POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO 11
11
necessários conhecimentos especulativos - pouco sociedade justa e solidária". A justiça não terá sido
11
ou nada práticos" - , mas essencialmente é uma idealizada? Pode ser que tenhamos confundido o po-
arte ou ciência prática. E o que sabe o jurista de prá- pular frango ao alcance de todos os bolsos com um
tico? Sabe algo tão fundamental e tão importante para faisão dourado. Quem sabe se a justiça não é essa
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as relações sociais quanto o justo. O jurista dedica-se utopia própria do melhor dos mundos", ou é algo
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a desvelar o que é justo nas relações sociais, na socie- bem mais acessível que a sociedade justa e soli-
dade; é, por assim dizer, o técnico da justiça, o que sabe dária" . Pelo menos se admitirá que é duvidoso que
do justo e do injusto. os juristas romanos tivessem do justo e do injusto
É provável que algum leitor, diante dessas afir- um sentido tão utópico e idealizado como parecem
mações, tenha um impulso de ceticismo ou de pro- ter nossos contemporâneos, se for verdade - como
testo. Quem sabe o que é o justo? Essa questão tem dizem todos os historiadores - que os romanos,
mais a ver com política do que com direito. Além por causa de seu espírito prático, não legaram gran -
disso, alguns juristas - precisamente aqueles que de - des especulações, mas deixaram, sim - por seu es-
nominamos normativistas - , se chegarem a ler estas pírito prático -, uma decisiva contribuição para a ci-
páginas, afirmarão: pretensioso demais, o jurista já vilização ocidental: a arte do direito, ou seja, a ciên-
faz bastante averiguando o que é legal e ilegal. No cia do justo.
entanto, já dissemos que os que fizeram do saber Decerto que, depois de dizer que o jurista é o
direito uma arte foram os juristas romanos; e é de homem de direito, descrevemos seu saber como a
supor que - se realizaram tal façanha com o direito ciência do justo. Não é isso um exemplo de incon-
- o conheciam muito bem. Por outro lado, é sabido gruência? O saber do jurista é a ciência do justo ou
que o espírito romano foi eminentemente prático, a ciência do direito? Não é preciso precipitar-se em
pouco dado a especulações ou a utopias. Pois bem, procurar descobrir incongruências: o justo é justa-
foram os romanos que definiram a arte do direito mente o direito; dizer o justo é nomear o direito,
como a ciência do justo e do injusto. Talvez a justiça e porque são a mesma coisa. Quando, por exemplo,
o justo sejam menos pretensiosos ou utópicos do dizemos que é direito do inquilino ocupar o aparta-
que parece e não seja mais ou menos difícil conhe- mento alugado, estamos dizendo que isso é o justo,
cer o que é justo do que averiguar o que é legal. Ou de acordo com o contrato de locação. Analoga-
ocorre que a justiça é bem menos própria da políti- mente, se um direito é atacado ou sofre interferên-
ca do que pode dar a entender a freqüência com cia, dizemos que isso é injusto. O injusto é a lesão
que os políticos a usam e pronunciam o chavão da do direito .
12 O QUE É O DIREITO?
POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO 13
Talvez, com esse breve esclarecimento, seja pos- Qual é a necessidade que a arte do direito sa-
sível intuir que a justiça e o justo não são tão utópi- tisfaz, de que fato social ou fator da vida humana
cos quanto parecem, a menos que entendamos que depende?
o direito é uma utopia. Antes de mais nada - para que não nos percamos
na selva de opiniões nem desviemos do caminho - ,
vamos delimitar, com a maior precisão possível, o
3. Por que existe o direito aspecto da vida humana que é próprio do jurista.
Note-se bem, não do político, nem do cidadão, nem
Mas deixemos, por ora, a identificação entre di- do Parlamento. Juristas são os juízes, os advogados,
reito e o justo e comecemos a explicar o que são a os letrados do Conselho de Estado, os tabeliães etc.
justiça e o direito. Para isso, temos que remontar à Não são juristas - não é esse seu ofício próprio, em-
raiz do direito, a sua origem, resumindo a questão bora casualmente possuam a arte do direito por tê -la
nesta pergunta: Por que existe o direito? aprendido - nem os deputados, nem os governado-
Pode ser útil, para responder a essa pergunta, res, nem o presidente do país. Se, dentro das funções
enunciá-la de outra maneira, que não é equivalen- ou poderes do Estado, quisermos delimitar a arte do
te, mas que pode nos conduzir à resposta por um direito, não recorreremos ao Parlamento ou Poder Le-
caminho mais simples. Por que a arte do direito gislativo, nem ao Governo ou Poder Executivo; recor-
nasceu? reremos ao Poder Judiciário. Efetivamente, os juízes e
Toda arte responde a uma necessidade. Algu- magistrados são juristas, cuja missão é exercer a arte
mas vezes, trata-se desse tipo de necessidade cha- do direito. Essa arte também é exercida por aqueles
mada primária ou primeira; assim, existem os cha- que têm relação imediata com a função jurisdicional;
mados artigos de primeira necessidade. No pólo se a missão do juiz é resolver controvérsias, também
oposto estão necessidades que nós, seres humanos, são juristas aqueles que sustentam a controvérsia pe-
criamos, e das quais poderíamos prescindir com um rante o juiz como representantes ou procuradores das
pouco de bom senso ou, simplesmente, sendo mais partes: os advogados e o promotor de justiça.
equilibrados e moderados. Mas, em qualquer caso, Vamos nos concentrar, como exemplo mais re-
como a arte consiste em saber fazer, saber produzir e presentativo da arte do direito, naqueles que inter-
coisas afins, é claro que toda arte nasce para satisfa- vêm em um julgamento. As demais profissões ou
zer uma necessidade. Depende, pois, de fatos ou fa- ofícios, por mais que tenham aspectos jurídicos, não
tores da vida humana. E assim ocorre com o direito. passam de variantes.
14 O QUE É O DIREITO? POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO 15

O que propõe o letrado do ator, isto é, quem leva mente, o juiz dirá ao declarar a lei inconstitucional é
a juízo uma petição - uma demanda - perante o juiz que quem a determinou não tinha poder para pro-
ou tribunal? Afirma-se que recorre à tutela jurisdi- por uma lei contrária ou não congruente à Consti-
cional; bem, mas o que pede? É claro que não fala tuição. O juiz sentencia ou diz o que corresponde a
em termos de "sociedade justa e solidária"; os que cada um, sentencia sobre o seu de cada qual. O ad-
falam nesses termos - lembre sempre o leitor - não vogado também diz e defende o que crê que é de seu
recorrem aos juízes; recorrem ao Parlamento, à opi- cliente (o seu de seu cliente), embora procure - sem
nião pública ou ao Governo. Quando se recorre ao por isso desrespeitar a ética profissional - defender
juiz para pedir a tutela jurisdicional, os termos são a solução mais favorável. Do mesmo modo pode-se
muito mais modestos e, quando se quer, prosaicos. descrever a tarefa do promotor de justiça e, de uma
Pede-se ao juiz que declare que da herança de X forma ou outra, a dos demais juristas. Outra coisa
corresponde isso ou aquilo a Y, que é o autor; ou distinta é que, na realidade, não há ofícios puros, isto
que A deve a B tal quantidade de dinheiro e que, é, única e exclusivamente dedicados à função de
conseqüentemente, seja obrigado a pagar o devido; jurista. O juiz também regula o processo, determi-
que c tem direito de passar pela propriedade rural na providências e diligências, e ordena a execução da
(o campo) de D (o que se chama de servidão de sentença; em alguns casos é o encarregado do Re-
passagem); que o prefeito da cidade E ultrapassou gistro Civil.
os limites de seu poder ao ordenar a demolição do O seu, o de cada um, esse é o objeto do saber do
edifício construído por F e assim por diante. O que se jurista. A coisa de cada um - o seu - chamamos de
pede? Simplesmente pede-se que o juiz profira a sen- direito, o direito de cada qual; donde determinar o
tença, que diga com autoridade - uma sentença é seu, o de cada um, é determinar o direito. A arte do
um dito, e sentenciar equivale a dizer - o que corres- seu, do que é de cada um, é a arte do direito. E como
ponde a cada uma das partes do processo judicial. o jurista não é um benfeitor ou mecenas nem um
Pede-se a ele que sentencie ou diga que tal parte da mesquinho, o que determina não é o que convém a
herança de X corresponde a Y, que tal quantidade cada um, o que gosta ou deseja, ou o mínimo possí-
de dinheiro deve ser entregue a B por A, que o pre- vel ou qualquer outra coisa, mas sim seu direito,
feito de E não tinha o poder que se arrogou etc. Até nem mais nem menos, exatamente o que lhe está
mesmo em processos nos quais parece que se pede designado; o jurista indica o justo que deve ser dado
apenas para comparar duas leis entre si - v.g., a in- a cada um. Daí conclui-se que o seu, o justo e o direito
constitucionalidade de uma lei - , o que, decidida- são três modos de designar a mesma coisa.
16 O QUE É O DIREITO? POR QUE EXISTE A ARTE DO DIREITO 17

4. A distribuição das coisas tinado a ninguém? Cada cidadão, ao sair de sua


casa, pegaria o primeiro carro que encontrasse e iria
Mas, com isso, nos afastamos do discurso ini- ao local de trabalho; ao sair, faria o mesmo. A prin-
ciado. Estávamos tentando ver a que necessidade cípio parece uma situação paradisíaca, não fosse
atende a arte do direito ou a que aspecto da vida so- por pequenos detalhes; por exemplo, o que faria
cial deve sua origem. O aspecto da vida social ao com as malas que leva se, em vez de voltar para casa,
qual a arte do direito responde nos é dado pelo que precisasse ir diretamente ao aeroporto para fazer
acabamos de expor. Se há coisas que correspondem uma viagem? Como nada estaria destinado a nin-
a um ou a outro, se há coisas suas - de cada um - , se guém, não haveria problema: se alguém levasse o
o justo ou o direito são coisas que pertencem a deter- carro com as malas, pegaria as primeiras malas que
minados sujeitos, é claro que isso obedece ao fato encontrasse - supõe-se que os bens fossem supera-
de que nem tudo é de todos ou, dito de outra maneira, bundantes - e os objetos pessoais que outros tives-
as coisas estão repartidas. sem deixado aqui e ali e os levaria ... Para que conti-
Alguns afirmaram que esse fenômeno consiste, nuar? Isso não seria um paraíso, seria um manicô-
sim, na escassez das coisas, que faz com que os ho - mio. O seu, a atribuição das coisas - o direito - não
mens as disputem, ou que haja necessidade de de - deriva da escassez dos bens, e sim de outra coisa di-
signá-las a certas pessoas e não a outras. Mas essa ferente: o homem transita nas dimensões de quanti-
posição não nos parece correta. Por exemplo, mes- dade e espaço, e o mesmo ocorre com as coisas das
mo que houvesse superabundância de alimentos quais se serve. Em outros termos, o homem é finito e
e todos pudessem pegar o quanto quisessem, cada a sociedade humana implica uma divisão de funções
homem se apropriaria de uma determinada quan - e tarefas (nem todos podem ser ao mesmo tempo
tidade - logo, os alimentos estariam distribuídos - o Chefe de Estado, governador, coronel, juiz, padeiro,
fato de ninguém disputar sua parte indica unica- encanador etc.). A vida humana exige que as coisas -
mente que não haveria brigas e, no plano geral das bens, funções, obrigações etc. - estejam repartidas
coisas, quer dizer que os tribunais não existiriam, e, conseqüentemente, atribuídas a diferentes sujei-
assim como não existiriam os advogados etc.; mas tos; é de onde nasce o meu, o seu, o dele.
isso não significa o desaparecimento do direito. Po- Se as coisas estão repartidas, nem tudo é de to-
demos imaginar outro exemplo, a superabundân- dos. E isso é uma necessidade social. Suponhamos
cia de automóveis. O que aconteceria se por essa su- que tudo fosse de todos. Se isso acontecesse, o di-
perabundância nenhum automóvel estivesse des - nheiro que uma pessoa tem para seus gastos pode-
18 O QUE É O DIREITO?

ria ser arrebatado por outra, pois seria tanto de uma Capítulo III
como de outra. Se o próprio corpo pertencesse a to - Ajustiça
dos, diante de um doente dos dois rins, poder-se-ia
pegar o primeiro homem sadio que se encontrasse
e tirar-lhe um rim para transplantá-lo ao doente. Se
as moradias não estivessem distribuídas e repar-
tidas, cada qual poderia invadir a que bem dese -
jasse etc. A vida humana seria um inferno; o de -
senvolvimento normal da vida do homem pede que
exista certa atribuição das coisas, que nem tudo seja
de todos, pelo menos no sentido de respeitar o pa- 1. A ordem social justa
cífico uso das coisas; nem que seja esta mínima atri-
buição que pressupõe que se um cidadão se senta Já assinalamos que o direito surge com o fato de
em um banco público, outro cidadão não pode tirá-lo que as coisas estão repartidas. O que vimos chamando
de lá para sentar-se. O homem tem que, pelo menos, de direito é a coisa justa, a coisa atribuída a uma pes-
poder dizer que, enquanto está sentado em um banco soa. Mas não seria correto deixar de advertir que a
público, o estar sentado é algo seu, atribuído a ele e, lei também é denominada direito, por translação de
portanto, é direito seu. linguagem: esse fenômeno lingüístico em virtude
Que nem tudo esteja atribuído a todos é uma ne- do qual usamos a mesma palavra para designar duas
cessidade social, que origina o fato de as coisas es- coisas relacionadas entre si; por exemplo, dizemos
tarem repartidas. E, estando as coisas repartidas, há "uma televisão" para nos referirmos tanto à empresa
direitos. Havendo direitos, existe a arte do direito. que emite programas televisivos quanto ao aparelho
Do dito depreende -se que a necessidade que a receptor, ou chama-se "café" o local aonde se vai to-
arte do direito satisfaz é das chamadas primárias mar a infusão de café.
ou fundamentais. O direito é um artigo de primeira Quando o direito é tomado como lei, o princí-
necessidade. pio não é o da repartição das coisas, mas o da orde-
nação das condutas. O fato originário não é a repar-
tição, e sim a ordem do atuar humano; pois, efetiva-
mente, a lei tem por função própria ordenar racio-
nalmente as condutas humanas. Mas não se deve
20 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 21

esquecer que ordenar ou regular a vida social de 2. A justiça


acordo com critérios racionais não é próprio do ju-
rista, e sim do governante. Por isso, as leis não são Falamos repetidamente de justiça e do justo e
feitas pelos órgãos judiciais, mas pelos órgãos po- acabamos de nos referir à ordem justa. O que é,
líticos: o Parlamento, o Governo ou o próprio povo,· pois, a justiça?
por costume ou por plebiscito ou referendo. Fazer Diante dessa pergunta, os norma tivistas costu -
leis é uma arte que corresponde aos políticos; é par- mam se mostrar um tanto reticentes; poder-se-ia
te da arte da política, que é quem tem que construir dizer que a pergunta os incomoda. Não é estranho .
a sociedade conforme a justiça, a liberdade e a soli - Pretender definir a justiça a partir da norma - como
dariedade. valor ou dimensão original da lei - é tempo perdido.
Se o jurista diz qual conduta social é ordenada, Cada vez que se procurou definir a justiça sob a pers-
faz isso sempre em relação à ordem estabelecida pectiva da lei - e algumas tentativas vêm da Anti-
pela natureza ou pela política, e enquanto essa guidade grega - , caiu-se em uma nova torre de Ba-
conduta é a justa, isto é, pertence ao campo da li- bel. Nos últimos tempos, apareceram mais de du-
berdade ou do dever de alguém: agir ou não agir zentas definições da justiça, a ponto de ser possível
em um determinado sentido porque é o justo em observar uma crescente dose de ceticismo sobre a
relação a outro ou ao corpo social. Ordenar condu- noção de justiça. Isso porque se errou na perspecti-
tas sociais é, propriamente, arte política. Por isso, é va. A justiça nã.o é originariamente um efeito da nor-
preciso insistir que o conceito-chave da arte do di- ma, não nasce da lei, e, por isso, não é uma dimen-
reito é o da repartição, não o da ordem. Mas, cabe - são originária - nascida - da política. À política e,
ria objetar, não se diz que a finalidade da arte do portanto, à lei, é dada a justiça. E é dada pelo direito
direito é a ordem social justa? Sim, de fato, a finali- (as coisas justas). Não é algo disposto originaria-
dade da arte do jurista é a ordem social justa. No mente pela lei e pela política. Por isso, fazer todo di-
entanto, o que se quer dar a entender com ordem reito derivar da lei impede entender a justiça. Por-
social justa? É claro que não as utopias ou as prá- que a justiça depende do direito e, portanto, apenas
ticas políticas, mas aquele estado da sociedade em quando se admite algum direito preexistente à lei e
que cada qual tem o seu e o usa sem interferências. à arte da política, pode-se introduzir a justiça na lei
Mas aqui o conceito -chave continua sendo o da e na política. Mais adiante voltaremos a esse ponto.
repartição. Bastam, por enquanto, essas considerações prévias.
22 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 23

3. Dar a cada um o que é seu que, se a justiça é preservada, a sociedade humana


se conserva, e se é desprezada, a sociedade se cor-
Os juristas romanos - vamos lembrar que eles rompe. Essa justiça, que parece ·tão modesta e tão
transformaram o conhecimento do direito em arte - apegada an chão - parece que lhe faltam os grandes
definiram a justiça como dar a cada um o que é seu, · vôos do espírito - é aquela justiça cujo fruto é a paz,
ou também dar a cada um seu direito. Ambas as fór - tão almejada pelos homens de todas as épocas. E
mulas são idênticas, pois o que é seu e o seu direito quando há paz senão quando cada homem, cada
- dizíamos - são a mesma coisa. coletividade, cada povo e cada nação têm seus di-
Essa definição não tem nada de utópica, de im - reitos reconhecidos e respeitados?
precisa ou vazia de conteúdo. Muito menos é ab- Se para alguns de nossos contemporâneos pa-
surda ou tautológica como pretenderam alguns filó- rece pouco prática, pouco realista ou vazia de con -
sofos ou teóricos do direito (norma tivistas). É su - teúdo, é porque, para conjugar a simplicidade de sua
mamente prática e realista, está cheia de conteúdo, e fórmula com os resultados tão importantes que lhe
se quiserem encontrar nela algum defeito, será o de são atribuídos, é necessário estar em posse de um
não representar nenhum ideal ou messianismo po- segredo. A fórmula tem seu truque. Esse segredo
lítico. Para os partidários da "sociedade justa, livre e estava em posse de Aristóteles, dos juristas roma-
solidária", essa fórmula é incolor, inodora e insípi- nos e dos juristas em geral, até que no século XIX
da. Por outro lado, é reconfortante para o jurista e, apareceram os positivistas, ou seja, aqueles que ne-
sobretudo, para a infinidade de cidadãos que vivem gam que o homem tenha direitos inerentes a sua
de realidades cotidianas e não de grandiosos ideais condição de pessoa. Porque esse é o segredo, uma
sempre irrealizados. verdade patente, que foi transformada em oculta
Apesar de algumas incompreensões, a justiça - por aqueles que puseram sobre a ciência jurídica o
dar a cada um o que é seu - é tão prática quanto o véu da escuridão positivista (o positivismo é uma
cotidiano trabalho dos juízes e dos demais juristas; das mais sutis formas de estar voluntariamente cego
é realista o suficiente para ser acessível a todo ho- à luz). Sim, o segredo é o direito natural. Caso algum
mem de boa vontade. E está tão cheia de conteúdo leitor não tenha ouvido falar do direito natural, e
que Aristóteles disse dessa virtude que era mais bri- como agora não é o momento de explicar o que é -
lhante que a estrela da manhã (na boca de um gre - faremos isso em seu oportuno momento - , vou li-
go antigo essa expressão não tem nada de brega) e mitar-me a dizer que direito natural é todo direito
Dante afirmou - expressando um fato empírico - que o homem tem em virtude de sua natureza - de
24 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 25

sua condição de pessoa - , ou seja, aquele conjunto tiça terá perdido sua praticidade e seu realismo. Mas
de coisas suas, de direitos, que o homem tem por si não vamos imputar à fórmula os defeitos do posi-
mesmo e não por concessão dos Parlamentos, dos tivismo.
Governos ou da sociedade: sua vida, sua integrida-
de física e moral, suas liberdades naturais etc. Talvez ·
o leitor pense: os direitos humanos. Bem, por ora 4. A justiça sucede ao direito
podemos aceitar a equivalência; quando tiver vários
anos de estudo já será capaz de distinguir o que há Uma vez estabelecido em que consiste a justiça -
de comum ou de diferente entre os direitos naturais ª virtude de dar a cada um o que é seu -, é conve-
e os direitos humanos. niente passar a alguns detalhes. O primeiro deles
O segredo ou truque da fórmula da justiça está pode ser enunciado mediante uma proposição que
no direito natural, porque sem o direito natural res- é evidente por si só. Porém, para muitos soa escanda-
tam apenas os direitos dados pelas leis determina- losa quando a ouvem, o que dá razão a São Tomás
das pelos homens. Então, a justiça - consistindo em de Aquino quando dizia que nem sempre as propo-
dar a cada um seu direito - estaria reduzida a dar ao sições evidentes por si sós são evidentes para todos.
ser humano esses direitos. E isso ninguém tolera. E não são evidentes quando não foram totalmente
São tão evidentes as insuficiências e as injustiças ob- entendidos os termos da proposição.
servadas em tantas leis humanas, que ninguém pode A proposição mencionada é a seguinte: a justiça
admitir - salvo os marxistas, para os quais a justiça é sucede ao direito, não o antecede, é posterior a ele,
um produto burguês - que a justiça se reduza a isso. no sentido de que age em relação ao direito existen-
O direito natural é o segredo, porque a insuficiência te. Por que essa proposição é ~yidente por si só?
e a injustiça de uma lei são medidas por sua ade- Pelo motivo de toda proposição ser evidente: por-
quação ao direito natural, que é um direito tão con- que está contida na fórmula da justiça. Se a justiça é
creto quanto o direito positivo (aquele que deve sua a virtude de dar a cada um o que é seu, seu direito,
origem à concessão da sociedade); portanto, todo para que possa agir é preciso que exista o seu de al-
possível conteúdo da justiça é concreto, prático e guém, seu direito; do contrário, como dar o seu, seu
realista. Por outro lado, se o direito natural for es- direito? Daria outra coisa. Portanto, onde não há um
quecido ou rejeitado, o que a justiça representa em direito existente, a justiça não é invocável. Elemen-
relação a ele torna-se vazio ou transforma-se em tar. Vamos dar um exemplo: se patrão e empregados
ideais pouco concretos e relativos; a fórmula da jus- de uma empresa acordaram um salário mensal de
26 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 27

1.200 euros, a quem recorrerão os empregados se o Pode ser que haja, mas em tal caso trata-se de ver-
patrão lhes der apenas 720 euros? Recorrerão ao dadeiros direitos. Determiná-los é função do jurista
juiz, e este obrigará o patrão a dar aos empregados e, na hipótese de serem respeitados, o juiz pode e
o que é seu, o seu direito, que são 1.200 euros. E, para deve intervir. Não fazem isso? Aparecem, então, as
isso, se for necessário, confiscará os bens do patrão. figuras do juiz e do jurista que conhecem mal seu
O que acontecerá se, em vez disso, os empregados ofício ou são, pelo menos em parte, injustos. Se não
fizerem uma manifestação perante o Governo? O são pessoalmente injustos (injustiça formal), no mí-
governador lhes dirá, com toda a razão, que recor- nimo estão acorrentados a um sistema de garantia e
ram aos tribunais. O patrão, ao pagar somente 720 aplicação do direito que contém injustiças.
euros, comete uma injustiça. Quando as aspirações são verdadeiros direitos
Vejamos agora a situação contrária: o contrato e, em conseqüência, a justiça intervém, é obvio que
fixa o salário em 720 euros ao mês, e os empregados, se trata de direitos preexistentes e anteriores ao di-
alegando aumento do custo de vida, comparecem reito positivo; isto é, de direito natural. Com isso
perante o juiz e solicitam que o patrão seja obrigado deparamos com o tema da lei injusta. Indubitavel-
a elevar o salário. O juiz se absterá; não compete a mente há leis injustas, há coisas atribuídas (pode -
ele a questão, porque o direito dos empregados são mos chamá-las de direitos para entender) injusta-
720 euros, enquanto os 1.200 euros são uma aspira- mente. Mas isso significa apenas que a justiça pree-
ção. O meio para obter o aumento do salário é um xiste ao direito positivo, ao direito dado pelos ho-
novo dissídio coletivo, a greve, a ação sindical ou a mens, não que simplesmente preexiste ao direito.
manifestação. As aspirações não são questões de jus- Em outras palavras, existem - e como existem! - leis
tiça, e sim de política. Ninguém pode, a sério, apelar injustas; mas são injustas porque lesam o direito natu-
para a justiça nesse caso, porque não há nada em ral, ou seja, porque atribuem coisas a pessoas dife -
cuja virtude o estrito direito do empregado - o justo, rentes daquelas às quais foram atribuídas anterior-
nem mais nem menos - seja o salário de 1.200 euros. mente por direito natural, ou negam a titularidade
E se houver algo, v.g., uma cláusula do dissídio cole- de algo a quem o tem por direito natural, ou atri-
tivo ou um dispositivo legal que preveja as correções buem coisas a quem por direito natural é negado.
salariais automáticas, então é claro que a justiça in- Em suma, se existe um direito injusto não é por-
tervirá e será possível comparecer perante o juiz. que a justiça antecede o direito, mas sim porque
Mas podemos nos perguntar: não há aspirações existe um direito natural anterior ao direito positivo,
dos homens que sejam justas em sentido próprio? que este não pode debilitar ou anular. Ou, se quiser-
28 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 29

mos dizer a mesma coisa com outras palavras, a jus- clicam tanto a arte do direito como confundi-la ou
tiça antecede o direito positivo como conseqüência misturá-la com a política.
da existência do direito natural. A igualdade da justiça não é a igualdade à qual
aspiram os políticos igualitaristas. A igualdade, em
termos políticos atuais, designa, às vezes, a aspiração
5. A igualdade de dar a todos a mesma coisa. Aspiração que - pelo
menos em algumas matérias - podemos olhar com
A justiça costuma ser representada como uma simpatia - somos livres - em termos políticos, mas
mulher com os olhos vendados e uma balança nas devemos ter bem claro que essa não é a igualdade da
mãos com os pratos equilibrados. Os olhos venda- justiça (isso não quer dizer que seja sempre injusta;
dos e o fiel da balança reto são dois símbolos de que simplesmente quer dizer que é uma aspiração polí-
a justiça trata todos por igual. tica, não uma exigência de justiça). Qual é a igual-
A igualdade! Palavra mágica e mítica em nosso dade própria da justiça? É aquela contida em sua
tempo. O chavão político da "sociedade livre, soli- fórmula: dar a cada um o que é seu. Todos são trata-
dária e igual" volta, sem dúvida, a aparecer quan- dos igualmente porque a todos é dado o que lhes
do a justiça é vista como igualdade. E também aqui corresponde.
é preciso saber desligar-se do chavão. Que fique bem Talvez o leitor sinta-se um tanto decepcionado;
entendido que é preciso desligar-se dele não por- a igualdade da justiça parece ficar desmitificada e
que uma sociedade assim não seja uma meta dig- posta por terra. E por acaso não é justa - de estrita
na pela qual lutar (assunto no qual não entraremos, justiça - a eliminação das clamorosas e sangrentas
porque este livro não tem nada de político). A liber- diferenças sociais que existem em tantos lugares?
dade, a solidariedade e a igualdade podem ser va - Será justo que, nessas situações de tremendas desi-
lores pelos quais valha a pena se comprometer, se gualdades, continue sendo dado a cada um o que é
forem entendidos corretamente; e mais, para um ju- seu, o que dizem os títulos de propriedade, o que os
rista, são bens e valores especialmente queridos, decretos governamentais ou as situações consolida-
porque, além de serem suporte das ordenações jurí- das de privilégio determinam? É boa essa avalanche
dicas mais progressivas, sintetizam aspectos muito de perguntas, mas será melhor não se precipitar. Já
importantes do direito natural. Então, o que aconte- disse que a noção de justiça - dada pelos juristas ro-
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ce? Acontece que o chavão sociedade livre, solidária manos e que ninguém foi capaz de trocar por outra
e igual" é um chavão político, e poucas coisas preju- mais convincente - tem um truque. E esse truque é
30 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 31

o direito natural. Talvez ocorra que, nos casos aos quer outra forma de acepção de pessoa são uma in -
quais as perguntas se referem, e em virtude do di- justiça. Para mudar esse estado de coisas não é pre-
reito natural, os títulos, os decretos ou as situações ciso esperar pelas decisões dos políticos, se os juristas
privilegiadas sejam menos firmes do que se supõe e aplicarem o direito, que não só é o direito positivo,
não configurem uma coisa tão sua como parece. Tal- mas também o direito natural. Essas situações são
vez se, em vez de ficar no direito positivo como fa - injustas e está nas mãos dos juristas - especialmen -
zem os positivistas, os juristas interpretassem esse te dos juízes - mudá-las; basta que se proponham a
direito de acordo com o direito natural, se constitui- isso. Se os juristas apóiam as discriminações com o
riam em um fator dinâmico para uma sociedade pretexto de que as leis foram estabelecidas assim pe-
mais justa. Estou convicto disso, mas não se trata de los homens, não têm desculpa e não são leais a sua
falar desse aspecto. O que interessa destacar é que a arte ou ofício, exceto se eles próprios forem vítimas
igualdade da justiça aparece desmitificada e, por de um sistema injusto.
isso, é praticável e possível em qualquer tempo, lu- O outro aspecto da igualdade, representado
gar e situação, que não precisa esperar a vitória de pelo fiel da balança, é que a justiça - como dizíamos
um partido político ou a conquista do poder por al- antes - não dá a todos as mesmas coisas, mas sim a
gum redentor político. cada um o que é seu (o peso a ser posto em um pra -
A igualdade da justiça tem um primeiro aspec- to deve estar de acordo com a quantidade que se
to, representado pelos olhos vendados: a justiça não pôs no outro, para igualar o fiel da balança) . Talvez,
discrimina, não faz acepção de pessoa. Dito de ou- à primeira vista, isso não pareça igualdade, e, no
tra maneira, a justiça não presta atenção na pessoa, entanto, é. Vamos recorrer a um exemplo clássico.
presta atenção exclusivamente no direito de cada Quando se diz que em um hospital ou clínica é dado
um. Não atende mais ao rico que ao pobre, não de- a todos os pacientes o mesmo tratamento é porque
signa postos de trabalho por favoritismo, não deci- todos eles recebem os mesmos medicamentos ou
de por recomendações, não atende a simpatias ou cada um recebe o medicamento que sua doença e as
antipatias, não tem duas medidas etc. Será suficien- reações de seu organismo necessitam? É evidente
te perceber isso, que fica aqui simplesmente assina- que a igualdade que todos desejamos é a segunda, e
lado, para advertir quanto falta a nosso mundo para a desejamos porque a primeira é simplesmente ab-
ser justo e quanto pode fazer o jurista. A discrimi- surda. Tire o leitor suas próprias conclusões. O justo
nação racial e o apartheid, a discriminação por ra- é tratar todos igualmente no que são iguais, e de
zões de sexo, nacionalidade ou nascimento e qual- modo diferente - mas proporcional, essa é a chave -
32 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 33
no que são diferentes. Aparece, assim, um elemen- dar" os "opressores", isso não é uma seqüela da justi-
to que corrige os exageros do igualitarismo, que é ça popular? Que importa a vida dos opressores? Se
uma forma de injustiça. Dar a cada um o que é seu é para conseguir a justiça é necessário o "imposto re-
a expressão exata da igualdade justa: tratamento volucionário", o seqüestro, o terrorismo ou o saque,
igual no que for igual e tratamento proporcional no tudo isso não está justificado pela "causa da justiça"?
que for diferente. Pode-se avaliar, assim, quão sau- Às vezes, a forma de apresentar esse modo de
dável é desmitificar a igualdade da justiça; em sua pensar é mais sutil e civilizada". Fala-se, então, da
11

praticidade e realismo, essa igualdade é a que fun - necessidade de superar a contraposição entre liber-
damenta em bases sólidas a convivência humana. dade e igualdade Qustiça, conforme vimos). Não
sendo possível obter ambas, diz -se, é preciso sacri-
ficar a liberdade - e com ela certos direitos indivi-
6. Um pequeno detalhe duais - em prol de uma sociedade mais justa ou
igual. O que importa é a justiça para a classe social,
Pôde-se observar que a justiça leva a dar o que é para o povo, para os grupos e coletividades.
seu a cada um. Eis aqui um pequeno detalhe ao qual Pois bem, isso não é o justo, nem podem tais
não se costuma conceder a graça de um comentá- modos de pensar e de agir ser imputados à parte da
rio, como se carecesse de importância. No entanto, justiça. Pelo contrário, essas atuações procedem da
quantas vezes vêm desejos de chamar a atenção para injustiça. Falar da justiça nesses casos é uma mani-
ele! Não sei se o leitor percebeu a facilidade com pulação do termo.
que certos movimentos políticos e sociais, que fazem Aqui aparece o pequeno detalhe de dar seu di-
da justiça sua bandeira e sua justificativa, esquecem reito a cada um. Evidentemente que a justiça visa à
esse "pequeno detalhe". A mentalidade coletivista sociedade inteira. Vimos isso antes nas palavras de
foi se infiltrando tão fortemente que se pretende um dos maiores poetas da humanidade: a justiça
aplicar a justiça a grandes blocos, a classes sociais, a preservada conserva a sociedade, e sua destruição, a
grupos. E se esquece do indivíduo. arruína. Mas a justiça - que tende a edificar a socie-
Que importa uma pessoa diante dos interesses dade - dá seu direito a cada um, pessoa por pessoa,
das grandes massas? Clama-se e luta-se pela justiça indivíduo por indivíduo, coletividade por coletivi-
para os trabalhadores rurais ou para o povo, ou para dade. É como esses grandes pintores capazes de fa-
esse ou aquele grupo de marginalizados. Se para ob- zer quadros gigantescos, mas não a grandes pince-
ter a "causa justa" que se defende é preciso "liqui- ladas, e sim detalhe por detalhe, ponto por ponto.
34 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 35
É, digamos assim, uma virtude minuciosa; não se conceitos, nem os sistemas, nem as teorias gerais
conforma com os grandes traços, não se conforma servem, se não estiverem a serviço do que é justo
com o povo ou a classe social ou o grupo: edifica a em cada caso. Servem se ajudam a descobrir e de -
sociedade indivíduo por indivíduo, pessoa por pes- clarar o justo em cada relação social específica. São
soa. Em cada homem vê a dignidade humana, em abomináveis se dão rigidez à solução dos casos, se
cada homem contempla o ser exigente dotado de mascaram o justo em vez de descobri-lo.
direitos - a imagem e semelhança de Deus - e aten-
de cada homem. Por isso a justiça pede paciência, e
a injustiça é o vício dos impacientes. 7. Justiça e divisão
Eis aqui por que a justiça, que é também virtude
dos políticos, não está abandonada às realizações É possível - não creio - que a esta altura esteja
desses. Os políticos costumam gostar mais dos gran - passando pela cabeça de algum dos que tiveram a
des traços e da celeridade na obtenção dos frutos do paciência de ler as páginas anteriores uma pergun-
que da paciência da justiça. Em toda sociedade mi- ta: se a justiça consiste em dar a cada um seu direito
nimamente organizada, o controle da justiça e a e o direito preexiste à justiça, como dar algo a quem
função de garanti-la está nas mãos do Poder Judi- já tem? Se tem, como dá-lo? Essa mesma pergunta
ciário. Esse poder não age por meio de grandes di- foi feita por um dos maiores filósofos, Kant. Mas
retrizes ou planos mais ou menos ambiciosos. Ouve não se orgulhe esse hipotético leitor de coincidir em
os cidadãos um por um, controvérsia por controvér- se perguntar o mesmo que uma das maiores inteli-
sia, processo por processo. Atende cada um, pro- gências conhecidas. Como todos nós - seres huma-
nuncia sentença para cada caso, protege cada cida- nos - erramos, os mais inteligentes, quando se en -
dão. Isso é a justiça: dar seu direito a cada um. ganam, costumam se fazer, às vezes, as perguntas
Por isso é disparatada essa ''justiça do grupo" mais absurdas. E essa pergunta é um exemplo - digo
que não hesita em atacar direitos dos indivíduos. isso com todo o respeito - de escorregadela" men-
/1

Digamos isso com todas as letras: isso é hipocrisia tal. Essa pergunta deu motivo a Kant para dizer que
que encobre uma injustiça. a definição de justiça que estamos desenvolvendo -
/1
Mas esse pequeno detalhe" da justiça tem tam- dar a cada um o que é seu - era absurda, mas quem
bém sua lição para os juristas. A arte ou ciência do caiu no absurdo foi ele.
direito não é, em última instância, uma ciência de De fato, a justiça não consiste em criar ou outor-
conceitos, de sistemas ou de teorias gerais. Nem os gar direitos, mas em dar o que cabe a eles - isto é,
36 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 37

devolver, restituir, compensar - quando foram afeta- de um direito é - em relação à justiça - um ato pri-
dos ou lesados. Para expressar com mais exatidão a mário e, anterior, o originário do direito. Por outro
fórmula, vamos lembrar que o direito é uma coisa, lado, a justiça, como diz Pieper, é um ato secundário,
que recebe esse nome na medida em que é atribuí- porque pressupõe o ato primário que constitui o di-
da a uma pessoa. Por exemplo, minha propriedade - . reito. Por isso, sendo Deus criador do homem, o ato
meu direito de propriedade - é a casa que comprei de criação não é um ato de justiça para com o ho -
ou recebi de herança, é direito meu o uso eventual mem, assim como não são os benefícios recebidos
de um parque público para passear por ele, ou o di- Dele; a ação de Deus em relação ao homem é de
nheiro que possuo. Pois bem, as coisas - os direitos amor e misericórdia. O mesmo ocorre com os pais:
- podem deixar de estar dentro da esfera de poder ao colaborar para que os filhos sejam gerados, não
de seu titular. Por exemplo, um amigo pode me pe- cumprem um dever de justiça para com eles, mas de
dir um dinheiro emprestado, suponhamos cinco amor, que origina o dever de gratidão.
euros; esses cinco euros continuam sendo proprie- Esse ponto de que estamos tratando tem rela-
dade minha, e, no entanto, já não estão em meu ção com o fato básico ao qual o direito responde: as
poder, mas no de meu amigo. É claro que meu ami- coisas estão repartidas. A justiça atua em relação à
go não tinha direito a que eu lhe emprestasse os divisão já feita, mas fazer a divisão - atribuir coisas
cinco euros; foi, da minha parte, um ato de amiza - aos diferentes sujeitos - não é próprio da justiça: a
de. Porém, não sendo um presente - uma doação - , justiça não reparte originariamente as coisas. Essa afir-
e sim um empréstimo, esses cinco euros são devi- mação também é evidente por si só, pois está conti-
dos a mim por meu amigo; ao dá-los a mim, ao de- da na própria noção de justiça. Porém, pode sur-
volvê-los, não fará um ato de amizade, mas de jus- preender, porque percebemos perfeitamente - é tão
tiça. Quando, depois de passar num concurso pú- notório - que há coisas que estão mal repartidas,
blico, o Estado me der posse no cargo conquistado, injustamente distribuídas e, portanto, almejamos
estará fazendo um ato de justiça. coerentemente que se faça uma divisão justa. Certo,
Não se trata, pois, de criar ou outorgar um di- é verdade, mas vamos retomar o que foi dito: se a
reito, mas sim de dar o que cabe ao direito: respeito, atual divisão de bens tem aspectos injustos, isso se
devolução, compensação, restituição etc. O ato de deve ao fato de que nós, seres humanos, dividimos
criar ou outorgar o direito - o que pressupõe sua as coisas contrariando alguns direitos preexisten-
inexistência anterior - não é de justiça, mas de do- tes: os que compõem o direito natural. Isso supõe que,
mínio ou de poder. Esse ato criador ou constituinte no que cabe ao direito natural, há coisas que já estão
38 O QUE É O DIREITO? A JUSTIÇA 39

repartidas por natureza. Logo, a nova divisão não divisão primeira (feita por lei, costume, pacto ou obri-
será uma redistribuição primeira, mas segunda. Essà gação natural), que não é própria da justiça. A justiça
nova repartição, essa redistribuição, será obra da jus- por si só não reparte as coisas, mas pressupõe uma
tiça na medida em que existem direitos naturais, e divisão já estabelecida pela natureza, por lei huma-
nesse caso se tratará de um ato secundário. na ou por pacto.
Quando se fala de uma atual repartição injusta
de bens e se postula uma redistribuição justa, ao mes-
mo tempo que se nega o direito natural, das duas 8. O que é de cada um, nem mais nem menos
uma: ou trata-se de uma incongruência, ou repre -
senta uma tentativa de substituir o justo por ideolo- O último aspecto a ser considerado em torno da
gias. Em ambos os casos, a justiça fica prejudicada. justiça é o que diz respeito ao que é seu. A justiça dá
Para esclarecer mais o que acabamos de dizer, a cada um o que é seu, nem mais nem menos.
vamos apresentar um exemplo. Se a pessoa A, sem Dois são os comentários que podem ser feitos
ter obrigações legais ou naturais com seus possíveis sobre esse ponto. Em primeiro lugar, que a justiça
herdeiros, reparte seus bens por testamento entre B, dá o que é seu nos lembra, mais uma vez, que a jus-
C e D, essa divisão é uma divisão primária. Ao fazer tiça pressupõe que o que dá já seja de alguém, que
isso, A não exerce a justiça, pois nada deve a seus seja direito daquele a quem se dá. O direito preexis-
herdeiros. Uma vez morto A, os bens serão de fato - te à justiça. Disso já falamos suficientemente, e não
já o eram de direito - repartidos entre B, C e D, con- é o caso de voltar ao dito. Como diria um amigo
forme o testamento; essa divisão, que é o cumpri- meu: "é uma tese suficientemente proclamada".
mento da vontade do falecido, é de justiça, mas é Vale a pena, por outro lado, deter-se um pouco
um divisão segunda. no segundo comentário. A justiça não consiste em
Se A, ao fazer o testamento, tivesse com algum dar a cada qual o que n ecessita, nem o que leva à fe -
de seus herdeiros certas obrigações legais, naturais licidade, nem ao desenvolvimento, nem a ... A justi-
ou contratuais, sua divisão, no que se refere às obri- ça dá a cada qual o que é seu, e nada mais. Nem
gações, não seria primeira, mas segunda, porque an- menos, porque isso seria injustiça.
teriormente a parte da herança concernente às obriga- A conclusão que daí se tira é que não se obser-
ções já estava designada ao mencionado herdeiro. Por va, por nenhum lado, que a "sociedade justa" seja
isso, nesse aspecto, A, ao cumprir sua obrigação, es - um ideal de sociedade, nem que a justiça possa ser
tará agindo justamente. Mas sempre se chegará a uma a almejada meta que traga a felicidade aos homens.
40 O QUE É O DIREITO? AJUSTIÇA 41

Vamos entender bem: sem justiça a sociedade des - justo aparece como algo especial, capaz de justificar
morona. Certo, por isso é preciso lutar para que a um compromisso particular; seria uma sociedade
sociedade seja justa. E entre os meios dessa luta injustamente organizada, isto é, no mínimo. Não é
está a arte do direito, e quem mais pode e deve fazer a justiça que justifica um compromisso, e sim o amor
aos homens. O amor, a fraternidade, a doação aos ou -
com que a justiça seja implantada são - sem ser os ·
tros, com sacrifício de si mesmo, são compromissos
únicos - os juristas. Mas uma sociedade somente jus-
que vale a pena assumir, sobretudo se esse amor aos
ta é uma sociedade insuportável. Se à pessoa só é
homens tem sua raiz no amor a Deus. A justiça é o
dado o que é justo, não haverá amizade, nem cari-
mínimo a que todos estamos obrigados nas relações
nho, nem liberalidade, nem ajuda, nem solidarieda-
entre homens. E o mínimo não pode ser um ideal.
de, nem nada de quanto permite o desenvolvimen-
to normal e adequado da vida social. Por isso, aso-
ciedade justa, a justiça, são pontos de partida, não
metas políticas; são princípio ou base, não ideal.
A justiça é para a sociedade o que a estrutura de
concreto ou de aço é para os edifícios. Sem a estru-
tura, o edifício não se manteria, mas só com a estru-
tura seria inabitável. A sociedade, sem justiça, se
destrói, mas apenas com a justiça, é insuportável.
Nova desmitificação da justiça? Sim, porque é
preciso ser realista e fundamentar a ação na verda-
de. A justiça não é nenhum ideal, mas sim uma
base; é um princípio, não uma meta. Comprometer-
se com a justiça? Claro, mas esse compromisso to-
dos nós temos, porque a justiça é um dever - um
compromisso - que constitui um artigo de primeira
necessidade, não é nenhum ideal especial. É algo
assim como se alguém fizesse promessa de não as -
sassinar ninguém. Grande promessa! Pois o mesmo
podemos dizer do compromisso com a justiça. Gran-
de compromisso! Ou grande sociedade na qual ser
Capítulo IV
O direito

1. Esclarecimento sobre o direito subjetivo

Estas páginas não foram escritas principalmen-


te para os juristas, mas para os que estão pensando
em sê-lo e também para quem quer voltar a refletir
sobre o direito em breves traços. Mas, se por curio-
sidade algum jurista as ler, pode ser que pense que
me enganei ao descrever o direito nas páginas an-
teriores. Escrevi que o direito é a coisa justa, ou coi-
sa devida em justiça. Disse que a casa que me per-
tence, o uso da via pública, viajar livremente, o di-
nheiro que tenho à minha disposição - pouco, por
isso o exemplo do empréstimo de dinheiro que dei
não passava de uns modestos cinco euros - , recla-
mar perante os tribunais etc., são meus direitos. Se o
jurista curioso não se lembra do realismo jurídico ou
foi educado no normativismo, provavelmente se
sentirá tentado a me corrigir: a casa não é o direito
de propriedade, mas seu objeto, ou, em outros ter-
mos, deveria dizer que eu tenho o direito de pro-
44 O QUE É O DIREITO?
O DIREITO 45
priedade sobre a casa; o direito de usar um bem não palavras, o direito subjetivo não é direito de modo
é o próprio uso, e sim o direito ao uso, e assim suces- diferente de como é a coisa justa.
sivamente. Em outras palavras, a cada passo estive Pareceu-me razoável fazer esse esclarecimento
confundindo o direito com seu objeto. por quatro motivos. Um, por defender minha repu-
Não, não há tal confusão. O direito, o que é seu, tação; não me confundi e conheço a doutrina mo-
o justo são uma mesma e idêntica coisa. E o que é derna do direito subjetivo; simplesmente não com-
de cada um, o justo (seu direito), são coisas, bens ma- partilho dela, pelo contrário, acredito que a ciência
teriais e imateriais. Isso do direito sobre ou do direi- jurídica deve corrigir a perspectiva a partir da qual
to a não é o direito do qual venho falando, mas sim contempla o direito subjetivo.
o que se chama direito subjetivo. Outro é a lealdade para com os futuros estu-
O direito subjetivo é uma faculdade de fazer, dantes de Direito que lerem estas páginas. Ouvi-
omitir ou exigir algo. Sobretudo, diz-se, é uma fa - rão falar muito de direito subjetivo e, portanto, era
culdade de exigir. Para muitos juristas - desde o sé- conveniente que nesta introdução ele fosse men -
culo XIX até nossos dias - , direito não seria a coisa cionado.
justa - que seria objeto do direito - , mas a faculdade O terceiro motivo é para contribuir com a causa
sobre a coisa ou em relação a ela. Assim, por exem- dos marginalizados. O direito subjetivo - que teve
plo, o direito de propriedade sobre uma casa seria influência e vitalidade no século XN do espiritualis-
um conjunto de faculdades: de exigir sua devolução mo de um frade inglês, Guilherme de Ockham, o
se for ilegalmente confiscada, de vendê -la, de der- qual desejava ser tão pobre que nem o que comesse
rubá-la para construir uma nova casa, de viver nela poderia ser chamado de direito seu - é uma armadi-
etc. Pois bem, essas faculdades existem? Indubita- lha construída pelo individualismo do século XIX
velmente existem; mas, do ponto de vista do direito, para adormecer a consciência dos poderosos diante
não formam uma categoria própria - como quise - dos desprovidos. De fato, se o direito de uma pes-
ram tantos juristas a partir do século XIX -, não são soa é, radicalmente, o direito subjetivo, existe o di-
uma nova forma de direito e muito menos substi- reito à medida que se tem a faculdade moral, inde-
tuem a coisa justa como direito. São direito porque pendentemente de que na realidade se tenham ou
essas faculdades são coisas justas, o que é do titular não coisas sobre as quais exercê-la. Por exemplo, é
enquanto derivações do fato principal, constituído reconhecida a todo trabalhador liberdade para ne-
por ser - seguindo o exemplo dado - a coisa proprie- gociar. No entanto, o fato de esse trabalhador se en-
dade - um tipo de direito - desse titular. Em outras contrar em situação de inferioridade perante o patrão
46 O QUE É O DIREITO? O DIREITO 47
para discutir o salário - como ocorria no final do sé- Em termos semelhantes, é reconhecido o direito à
culo XVIII e começo do XIX - pela necessidade de liberdade de ensino quando o Estado - nas atuais
trabalhar e pela escassez de oportunidades, de modo circunstâncias não se vê outra solução - ajuda os pais
que tenha que aceitar o salário de fome oferecido, é e as instituições docentes a manter decentemente
indiferente em relação ao direito. Como o direito con- os centros de ensino por eles criados. E é reconheci-
siste na liberdade formal (isto é, na simples faculda - do a todos o direito à saúde quando os meios sani-
de moral), desde que as leis não imponham um sa- tários são colocados ao alcance de todos.
lário nem se exerça sobre o trabalhador uma coação Que o direito não fique no plano meramente
física, é reconhecida a liberdade dele de negociar. formal, mas que se realize no plano real, é uma ques-
Outro exemplo: a lei reconhece a liberdade de ensi- tão jurídica, o que, em outros termos, é afirmar que
no, ou seja, permite - e o Estado não impede - que se trata de uma questão de justiça. E constitui tarefa
os pais criem e dirijam centros de ensino. Que de- dos juristas, entre eles os juízes. Como o direito não
pois isso resulte proibitivo economicamente não é é simplesmente uma faculdade moral - embora haja
uma questão jurídica, de acordo com a doutrina do faculdades morais que são direito - , os juristas e, en-
direito subjetivo. Do mesmo modo, é reconhecido tre eles, os juízes devem interpretar as leis em fun -
o direito à saúde para todo homem; se um homem ção não do direito em sentido formal, mas do direi-
não tem dinheiro e não pode comprar os medica- to em sentido real (ou melhor, realista). De acordo
mentos necessários é uma desventura que deverá com essa interpretação, deve ser feito em função
ser atenuada com a beneficência, mas não é ques- das circunstâncias concretas, porém não é aceitável
tão de justiça. E assim indefinidamente. ficar em uma interpretação meramente formal. Por
O realismo jurídico rejeita tal concepção do di- exemplo, se a Constituição reconhece a liberdade
reito como falsa e injusta. Como o direito não é pri- de ensino, não é correto admitir como constitucio-
mariamente a faculdade moral, mas sim a coisa en- nal uma lei que permita criar centros de ensino e, ao
quanto for devida, é reconhecida ao trabalhador e mesmo tempo, impeça o Estado de outorgar as aju-
ao patrão liberdade de negociar quando são coloca - das pertinentes. As leis que regem o mercado de ali-
dos em situação de discutir os termos do contrato mentos devem ser interpretadas de modo que os ali-
em um real pé de igualdade e sem coações (o que, mentos cheguem a todos - alimentar-se é um direi-
ao mesmo tempo que defende o trabalhador, tam- to natural de todo homem - , e se acontece que a
bém defende o patrão - vamos lembrar que a justi- economia de mercado que está instaurada leva uns
ça não discrimina - ante as coações dos sindicatos). a passarem fome e outros a terem superabundância
48 O QUE É O DIREITO? O DIREITO 49

de alimentos, tais leis devem ser objeto de interpre- como a justiça consiste em dar o que corresponde ao
tação corretiva por parte dos juristas. Por outro lado, direito, apenas se a coisa própria de alguém puder
a greve é um direito dos assalariados, porém deve ser objeto de atividade por parte dos demais, pode-
ser interpretada de modo que, ao defender os direi- rá ser objeto da justiça. O que permanece no refúgio
tos deles, não suponha uma coação injusta para os da consciência ou dos pensamentos da pessoa, o
empresários etc. que se mantém dentro do segredo de sua intimidade
O quarto motivo é simplesmente que o direito é não entra nas relações com os outros e, conseqüen -
o objeto da justiça e o que a justiça dá - respeita, res- temente, não é objeto da virtude da justiça.
titui, compensa - são coisas.

3. A razão de dívida
2. As coisas externas
A coisa se constitui em direito por sua condição
O direito é, como dissemos repetidamente, a de devida, por recair sobre ela uma dívida em senti-
coisa que, por estar atribuída a um sujeito, lhe é de - do estrito. Poder-se-ia pensar que essa afirmação é
vida em justiça. pouco exata, já que parece que dever e direito são
Dedicados agora a analisar mais particularmen- coisas contrárias. Parece melhor que a coisa é direi-
te o direito, o que primeiro convém conhecer é que to porque está atribuída a um sujeito, independen-
tipo de coisas podem ser direitos. Em princípio, a temente de que outro lhe deva essa coisa. Por exem-
palavra coisa tem um sentido genérico, para indicar plo, meu isqueiro é direito meu tanto quando o tenho
que as realidades que podem constituir um direito em meu poder como quando, por tê-lo emprestado,
são de natureza muito diversa. Podem ser coisas ma - me é devido por outro.
teriais (res corporales), como fazendas, casas, produ - Para compreender esse aspecto do direito é pre-
tos agrícolas, objetos de arte, roupas etc.; e podem ciso lembrar que uma coisa é direito não sob a pers-
ser coisas imateriais (res incorporales), como cargos, pectiva do domínio, mas sob a perspectiva da justi-
poderes, faculdades etc. ça. Robinson Crusoé, solitário em sua ilha, tinha,
No entanto, todas elas devem ter uma caracte- sem dúvida, uma série de coisas suas, mas nessa si-
rística: ser coisas que tenham uma dimensão externa tuação o direito não tinha razão de ser. Chamares-
(res exteriores), que em si ou em suas manifestações sas coisas de seu direito era perfeitamente inútil.
saiam da esfera íntima do sujeito. A razão é óbvia: Quando começa a razão ou índole de direito dessas
50 O QUE É O DIREITO? O DIREITO 51
coisas? Começa no momento em que aparece Sex- Porque os outros me devem - embora seja em seu
ta-feira e, depois, quando Robinson se relaciona aspecto de respeito, e não interferência - , posso exi-
com outros homens. De fato, antes era inútil falar gir. Sem dívida não há exigência. Uma conseqüên-
de direito, porém no momento em que Robinson cia não desprezível disso é que, para ser justo, não é
trava relacionamento com Sexta-feira, as coisas que · preciso esperar que o outro exija o respeito, a resti-
Robinson tornou suas devem ser respeitadas por tuição, a compensação etc. A justiça não espera a exi-
Sexta-feira. Na perspectiva da justiça, as coisas atri- gência, dá as coisas quando deve dá -las, sem espe-
buídas a outro aparecem como devidas. Essa carac- rar que o titular do direito tenha que exercer sua fa -
terística é o que colore as coisas que, por sua relação culdade de exigi-las.
com o sujeito a que estão atribuídas, recebem o no-
me de direito. Observe-se bem que a justiça não é a
perspectiva do titular do direito diante das coisas
4. Variedade de direitos
que lhe estão atribuídas, mas a perspectiva dos ou-
tros perante essas coisas, e perante os outros o que
aparece é a dívida de respeito, de restituição, de As coisas estão atribuídas às pessoas de manei-
compensação etc. ras muito diversas. Quando na fórmula da justiça se
Nesse sentido, meu isqueiro é direito meu, tan- diz que essa virtude dá a cada um o que é seu, com o
to se está em meu poder como se o emprestei. Po- que é seu se quer dizer genericamente atribuição, en -
rém, se está em meu poder é direito meu, ao passo globando assim todas as formas de atribuição. Disso
que os outros devem respeitar meu domínio sobre decorre a linguagem vulgar na qual o pronome pos-
ele. Se perdesse toda possibilidade de relacionamen - sessivo designa muitas formas de relação entre uma
to com os outros, continuaria dominando o isqueiro pessoa e uma coisa, ou inclusive entre pessoas.
e usando-o, mas chamá-lo de direito seria uma de - Quando alguém fala de seu apartamento, não
nominação sem significado específico. Algumas gra- quer dizer necessariamente que seja o proprietário;
lhas poderão tirá-lo de mim, ou alguns macacos ou pode ter o apartamento por aluguel. O termo seu
outro animal, mas no que se refere aos animais não quando se refere ao nome, a alguns objetos ou a al-
estão em jogo os direitos. guns parentes não significa a mesma coisa.
Precisamente porque o direito se origina da pers- Pois bem, como as coisas estão atribuídas às pes-
pectiva da justiça e, em conseqüência, da perspecti- soas de maneira muito diferente, há muitos tipos
va dos outros, o direito é antes devido que exigível. de direitos. Não é o momento de enumerá-los. Bas-
52 O QUE É O DIREITO? O DIREITO 53

ta levar em conta que as coisas podem ser direito de jurista - para isso é quem sabe do justo e do injusto
alguém de acordo com diferentes possibilidades. - separa cuidadosamente o justo do desejável ou coi-
sas semelhantes. Já dissemos antes - o leitor não
pode reclamar de engano - que o desejável, o que
faz o homem feliz ou o conveniente não se identifi-
5. O título e a medida do direito
ca necessariamente com o justo. Poderá ser desejá-
vel que os trabalhadores ganhem mais, porém o jus-
A arte do direito tem por objeto dizer o direito
to é que ganhem o que está indicado na lei, nos dis -
(iuris dictio), determinar os direitos das pessoas e sua sídios coletivos ou no contrato de trabalho. Se o sa-
extensão. Em outras palavras, tem por objeto deter- lário é o que se chama o salário de fome, certamente
minar o título e a medida do direito. será injusto, embora esteja determinado por lei, por
O título é aquilo em que o direito tem origem, contrato ou por costume, porque, por título natural
ou, dito de outra maneira, é o que causa a atribuição (pela natureza humana), o salário deve satisfazer as
da coisa a um determinado sujeito. Há muitos tipos necessidades vitais do assalariado e de sua família.
de títulos, porém podem ser resumidos na natureza Porém, exceto nesse caso extremo - que felizmente
humana, na lei, no costume e nos pactos ou contra- acontece pouco em alguns países -, o justo é que
tos. Por exemplo, o título dos poderes e funções do cada um receba o estipulado. Dizer que o salário é
Defensor do Povo na Espanha é a Constituição de injusto porque essa ou aquela categoria deveria ter
1978. Muitos de nossos direitos têm por título um uma equiparação maior com outra, ou por qualquer
contrato: compra e venda, contrato de transporte, outra razão (salvo a indicada e alguma outra, como
arrendamento, empréstimo, contrato de uso etc. a desproporção entre os rendimentos do capital e os
A primeira coisa que se deve observar parasa- do trabalho), tem por objetivo confundir o justo
ber se algo é direito é o título. E, como o direito e o com o desejável ou com as lícitas aspirações a uma
justo são a mesma coisa - conforme vimos repetida - vida melhor. E sendo assim, a justiça é claramente
mente - , para saber quando algo é o justo, deve-se insuficiente para uma vida social mais humana?
chegar ao título. Se não houver título, por mais que Sem dúvida, a justiça sozinha - temos que repetir -
se diga que isso é o justo", não é verdade; o termo
11 torna insuportável a sociedade. Mas isso não legiti-
"o justo" está sendo utilizado em sentido inadequa- ma confundir as coisas. E o jurista sabe disso; por
do. Bem conhecida é a freqüência com que atual- isso, diante da invocação do justo, pede o título, e se
mente - e provavelmente sempre tenha ocorrido não se comprova o título, não toma parte - enquanto
assim - se diz que o justo é esta ou aquela coisa. O jurista - do assunto.
54 O QUE É O DIREITO?
O DIREITO 55
Junto com o título, o jurista deve conhecer a me- Borbón. Essa condição de sucessor é o fundamento
dida do direito. Não existe nenhum direito ilimita-' para ser rei, mas não é o título, o qual é, no direito
do, nem todos os direitos são iguais. A propriedade vigente, o citado artigo da Constituição.
compreende mais faculdades que o usufruto ou o A principal conseqüência das diferenças entre
uso. Tanto as leis como os contratos que outorgam · fundamento e título é que o fundamento possibilita
alguns direitos podem conter cláusulas que lhes ser titular de um direito, mas não outorga o direito,
dêem maior ou menor amplitude. Por exemplo, o
o qual nasce com o título. Ponto esse digno de con-
Parlamento não tem as mesmas faculdades em um
sideração, porque não falta quem, por ter o funda-
regime presidencialista e no regime parlamentar.
mento, julgue já ter o direito.
De acordo com as diferentes Constituições, o Chefe
Dispostos a tratar do fundamento dos direitos,
de Estado pode ter mais ou menos poderes. Na Es-
cabe perguntar qual é o fundamento mínimo de todo
panha, a liberdade de fazer um testamento não é
igual no direito comum e nos diferentes direitos fo- direito, isto é, o que possibilita ao homem ser sujeito
renses. E assim sucessivamente. de direito. Por que o homem pode ter direitos e, por
Com o título e a medida, o jurista descobre o que outro lado, os animais ou as pedras não os têm? Essa
é o justo, o que corresponde ao titular do direito, nem é uma pergunta elementar e, ao mesmo tempo, das
mais nem menos. mais profundas que podem ser feitas a respeito do
direito. Vale a pena tentar respondê-la. Tanto mais
quanto, em nossa época, há quem fale dos direitos
6. O fundamento do direito dos animais, algo tão plausível na intenção como ab-
surdo na expressão.
Uma coisa é o título e outra coisa diferente é o O direito pressupôe o domínio sobre as coisas.
fundamento do direito. O título é o que atribui uma De uma forma ou de outra significa que as coisas são
coisa a um sujeito como direito. Por outro lado, o do titular e que, portanto, estão sob seu domínio. Po-
fundamento é aquilo em cuja virtude um sujeito rém, além disso, o fato de as coisas estarem distribuí-
pode ser sujeito de direito ou de determinados direi- das e serem ao mesmo tempo devidas implica não só
tos. Por exemplo, para ser rei da Espanha, segundo um verdadeiro domínio, mas também que o titular
o art. 57 da atual Constituição, é preciso ser suces- das coisas não seja meramente uma parte do todo.
sor, de acordo com a ordem regular de primogeni- Vejamos o primeiro aspecto. Parece claro que
tura e representação de S. M. Dom Juan Carlos I de para poder dominar o entorno, primeiro é preciso
56 O QUE É O DIREITO? O DIREITO 57

ter domínio sobre o próprio ser. Pode-se pensar que jam repartidas de modo que essa atribuição gere
um ser tenha domínio sobre si e não sobre seu en- uma dívida, é preciso que o titular não seja simples-
torno, mas o contrário é impensável, porque, se não mente parte do todo. A parte, enquanto é parte,
tiver domínio sobre si, menos ainda dominará ou- tem razão de ser enquanto integrada no todo, está a
tros seres. Esse é o caso dos animais; há animais seu serviço. Em tal caso as coisas são do todo e a
que parecem dominar coisas de seu entorno, mas parte participa delas: a parte não tem esferas de apro-
isso não existe. Todo animal movimenta-se por meio priação autônomas em relação ao todo. Embora as
de forças e instintos dos quais não é dono; mais do partes tenham funções atribuídas, na realidade a
que dominar, é dominado. Tudo que o animal faz é função pertence ao todo. Por exemplo, quem vê é o
uma parte do movimento do cosmo, regido por um homem através do olho; o olho não tem essa função
conjunto de forças. O animal não pertence a si mes- como esfera de atribuição autônoma em relação ao
mo - pertence ao universo - e, por isso, nada lhe homem que vê. Daí que o olho não tem razão de ser
pertence, nada é propriamente seu. Entre os ani- separado do corpo humano. Ao ser pura matéria, os
mais não há ladrões nem assassinos; o que parece animais - e os demais seres - são meras partes do
pertencer a um é arrebatado por outro, e tudo isso universo. Sua razão de ser reside no bem do cosmo,
não é mais que o jogo do conjunto de forças que de modo que estão a serviço do conjunto. Por isso
movem o universo. O homem, por outro lado, do- há animais que se alimentam de plantas e animais
mina seu próprio ser, é dono de si, característica que se alimentam de outros animais. Para isso exis-
esta que o constitui em pessoa. O homem não se tem animais e plantas. Por não serem diferentes do
movimenta exclusivamente por forças e instintos universo nem outra coisa além de partes do univer-
biológicos; em última instância, o homem é respon- so, não cabe apropriação nem dívida, porque não
sável por seus atos pessoais, porque pela razão e pela cabe uma verdadeira divisão de coisas. Tudo é do
'
vontade decide livremente. Por isso é capaz de fazer conjunto.
ou não uma coisa, de escolher entre diferentes pos- O homem não é pura matéria; em virtude de
sibilidades. Domina seu próprio ser e, por isso, é ca- sua alma espiritual que o constitui como pessoa, não
paz de dominar seu entorno; logo, é capaz de se é uma mera parte do universo, porque no aspecto
apropriar de coisas que lhe são devidas. O funda- espiritual não se pode ser parte de outro ser ou con -
mento do direito é que o homem é pessoa. junto, pois o espírito é simples, não tem partes nem
Chega-se à mesma conclusão observando o se- pode se constituir em parte. Por isso se diz que a
gundo aspecto assinalado. Para que as coisas este- pessoa é incomunicável, palavra que significa aqui
58 O QUE É O DIREITO?

que não pode se tornar comum no ser com outros se- Capítulo V
res. A pessoa se abre em comunhão com os demais Direito natural e direito positivo
pelo conhecimento e pelo amor, mas não pela inte-
gração ontológica (confusão no ser). O resultado é
que o homem, não sendo uma mera parte do todo,
precisa da divisão das coisas do universo; projeta-se
sobre seu entorno também como incomunicável, e,
portanto, se apodera das coisas como suas, não do
conjunto. Com isso chegamos à mesma conclusão
que antes: o direito fundamenta-se no fato de que o
homem é pessoa, ou seja, é dono de si. 1. Dois tipos de direito
Pelo que acabamos de dizer, pode-se observar
que as posições materialistas não explicam suficien- Vários séculos antes da era cristã já se encon-
temente o direito, e, quando o materialismo se tor- tram testemunhos de uma tradicional divisão do di-
na radical - como ocorre com o marxismo - , o direi- reito: o direito é em parte natural e em parte positi-
to é entendido como uma superestrutura que deve- vo . Na realidade, o adjetivo "positivo" não foi usado
rá desaparecer quando o homem se desligar de suas até a Idade Média, mas anteriormente foram utili-
alienações. Por sua vez, o materialismo, dissipando zados, em seu lugar, outros adjetivos, como legal (o
a singularidade do homem e a originalidade do di- próprio das leis humanas); tal é o caso de Aristóte-
reito, termina por atribuí-lo também aos animais. les, que distinguiu o justo natural do justo legal. Os
Claro que o que se atribui a homens e animais, mais juristas romanos usaram uma divisão bimembre
que o direito, é uma sombra dele. Apenas assim é mi- (direito pessoal ou natural e direito civil) ou tri-
nimamente compreensível que se defenda, ao mes- membre (direito natural, direito pessoal e direito ci-
11
mo tempo, o direito" das focas e do aborto, que é vil). A partir do século XIX, propagou-se o positivis-
um homicídio. mo jurídico, conjunto de teorias para as quais só se-
ria propriamente direito o positivo. O direito natu-
ral, mais do que direito, seria ou moral ou valores
relativos, ou estruturas lógicas ou a natureza das
coisas etc., ou simplesmente não existiria. Não é
esse o espaço adequado para entrar em um assun-
60 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITNO 61

to que escapa a um livro elementar como este; basta Outro exemplo vivemos na elaboração da Cons-
que se faça constar a existência do fenômeno posi- tituição. Através dos meios de comunicação, pude-
tivista. mos assistir aos debates sobre os poderes e funções
que deveriam ser designados aos principais órgãos
do Estado e, antes, quais deveriam ser esses órgãos.
2. O direito positivo Discutiu-se sobre a divisão dos poderes e funções
estatais e sobre seus titulares, como se discutiu adis -
Por direito positivo entende -se todo direito cujo tribuição de funções entre o Estado e as Comunida-
título e cuja medida devem sua origem à vontade des Autônomas. Obtido o consenso e, em todo caso,
humana, seja pela lei, seja pelo costume, seja pelo depois das votações de praxe, estabeleceu-se como
contrato. Não é preciso repetir que estamos falando projeto a opinião prevalente, que, no fim, teve força
do direito em seu sentido próprio - a coisa justa, o jurídica após a entrada em vigor da Constituição.
que é seu - , não das leis ou, em geral, das normas. Esse mesmo fenômeno ocorre nas relações en-
O que significa a existência do direito positivo? tre particulares. Toda compra e venda supõe uma re -
Significa que há coisas divididas pelo próprio ho- distribuição do produto vendido e do dinheiro pago,
mem. Ou, dito de outro modo, que há coisas cuja que mudam de titular. Divisão é cada testamento,
atribuição é obra da vontade humana. Isso é uma cada contrato de trabalho etc. As relações humanas
experiência cotidiana. Quando uma prefeitura, ao comportam uma ininterrupta mudança de coisas,
regulamentar o trânsito, determina algumas ruas de que supõe uma contínua redistribuição de bens. Os
mão única e outras de mão dupla, põe semáforos, direitos originados ou modificados por essa ação
pinta faixas de pedestres etc., está dividindo o uso humana são os direitos positivos.
da superfície das ruas da cidade entre os diversos
usuários, está designando e regulamentando espaços
e tempos a quem circula, de carro ou sem ele, pela ci- 3. Os limites do direito positivo
dade . Está regulamentando direitos. Transitar pela
direita (ou pela esquerda, na Grã-Bretanha) é direi- Positivo significa posto, não dado ao homem, e
to do automobilista perante quem circula em dire - sim instituído -posto - pelo homem. Nesse sentido
ção contrária, como é direito do pedestre circular com cabe questionar os limites dessa capacidade do ho-
preferência em uma faixa de pedestres, as denomi- mem. A capacidade do homem para constituir e re-
nadas "zebras" etc. gular direitos é ilimitada ou, pelo menos, abrange
62 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITWO 63
todo o âmbito da vida social humana? Em caso con - justiça. Que os carros circulem pela direita ou pela
trário, qual é o critério que indica os limites? esquerda, desde que circulem por um ou outro lado, é
Quando querem mostrar esquematicamente em si indiferente . Os ingleses podem pensar que
quais são os poderes de que goza o Parlamento de transitar pela direita é uma teimosia do resto do
seu país, os britânicos costumam dizer que seu Par- mundo; e o resto do mundo está no perfeito direito
lamento pode fazer tudo, à exceção de tornar um ho - de pensar que transitar pela esquerda é uma extra-
mem em mulher ou uma mulher em homem; isto é, vagância dos ingleses. Ambas são opiniões respei-
pode fazer tudo o que é possível ao homem fazer. tabilíssimas, porque o fato certo é que transitar por
Embora os britânicos não digam, é evidente que há um ou outro lado não é, em si, nem bom nem ruim,
outras coisas, além de fazer um homem virar uma nem justo nem injusto: é uma livre opção. Porém não
mulher, que seu Parlamento não pode realizar. é uma livre opção que dois trens circulem, sem limi -
O dito é humorístico e precisa ser interpretado tações nem desvios, pela mesma via e em direção
em seu exato sentido. Não se refere ao fato físico de contrária, porque ou vão parar no ponto onde se
um homem ser transformado em mulher. Os britâ- encontrarem, e então terá sido lesado o direito dos
nicos não diriam isso de seu Parlamento nem de brin- usuários de viajar (que inclui chegar a seu destino),
cadeira, mas, talvez, de seus médicos. O que quer di- ou vão parar pela força do choque, em cujo caso terá
zer a anedota é que o Parlamento britânico não tem sido lesado o direito à vida e à integridade física dos
faculdades para dar um bill* em virtude do qual um viajantes. Aristóteles observava quatro séculos an-
homem seja tratado socialmente como mulher e vice - tes de nossa era: em direito há coisas que são indi-
versa. Para tamanho absurdo o Parlamento não tem
ferentes em si, e há coisas que não são.
poderes. Porém, observemos bem, seria uma tal lei um
d homem pode- entenda-se como justiça - criar
absurdo ou seria também uma injustiça? Não resta
direitos e regulamentá-los na esfera do indiferente.
dúvida de que esse absurdo seria uma injustiça.
O que quer dizer indiferente? Não quer dizer que
Há aí algo de que todos, no fundo, estamos con-
uma opção seja melhor ou pior que outra do ponto
victos: o homem não pode ser tratado como querem
de vista técnico; pode ser que um estudo técnico de -
e desejam os outros ou os titulares do poder, por-
monstre que transitar pela direita ou pela esquerda
que há coisas que são injustas em si. Em outras pa-
seja tecnicamente melhor que o contrário. Indiferente
lavras, há coisas que não são indiferentes em relação à
quer dizer que, em síntese, no que se refere à justiça e
* Qualquer projeto de lei proposto ao Parlamento inglês, que, depois de
à moral, dá na mesma adotar uma solução ou outra,
examinado e aprovado, torna-se lei ou ato legislativo análogo. (N. do R. T.) porque nenhuma delas lesa a justiça ou qualquer ou -
64 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITWO 65

tra esfera da moralidade. Que os escoceses usem Dissemos que a matéria possível do direito posi-
saia poderá ser mais ou menos chocante, mas é in- tivo é o indiferente. Fala-se de possibilidade porque
diferente; roubar dinheiro não é indiferente. a matéria é indiferente até ser instituída como direi-
A respeito disso convém saber distinguir duas to por um ato do homem. Uma vez transformada
coisas: uma é o justo ou injusto, o moralmente cor- em direito, já não é indiferente, mas sim o justo em
reto ou incorreto, e outra coisa é o padrão de com- relação a seu titular; v.g., é indiferente que tal parce-
portamento socialmente aceito. Em um ambiente la de terra, destinada à colonização, seja designada
pode ser marginal ou não aceita socialmente uma a este ou aquele colono; nada há em cuja virtude,
certa forma de agir; isso costuma originar uma cons- por natureza, essa parcela deva ser ocupada por tal
ciência de agir bem ou mal, que deve ser distingui- ou qual pessoa. Porém uma vez designada, passa a
da claramente da consciência do justo ou do injusto, estar atribuída a seu titular e já não é indiferente que
do bem e do mal moral. O padrão de ação socioló- outro colono invada essa parcela e se apodere dela:
gico produz a captação do sociologicamente nonnal seria injusto.
ou anormal e, conseqüentemente, o julgamento de
conveniência de se adaptar ao normal ou a reação de
inconformismo; por outro lado, a captação do justo 4. O direito natural
ou injusto, do bom e do mau, em sentido moral,
produz a consciência de conformidade ou descon - Acabamos de ver, em termos gerais, o que é o
formidade com o que a natureza do homem postu - direito positivo; vejamos agora o que é o direito na-
la. Em outras palavras, os padrões de comportamen - tural. Entendemos por direito natural todo direito
to socialmente aceitos pertencem ao campo do indi- cujo título não é a vontade do homem, mas sim a na-
ferente . Pelo contrário, o que corresponde à justiça tureza humana, e cuja medida é a natureza do ho-
nem sempre é indiferente. mem ou a natureza das coisas.
Portanto, o campo do direito positivo é delimi- Há pouco eu dizia que a matéria possível do di-
tado de um modo claro: sua matéria possível é o in- reito positivo é o indiferente. Ao explicar isso, vimos
diferente. Por isso mesmo, para distinguir se uma também que há coisas que não são indiferentes em
norma é de direito positivo ou de direito natural, é relação à justiça. Não é lógico pensar ou dizer que,
preciso observar seu grau de indiferença em relação em termos do justo, dá na mesma respeitar a vida
à natureza humana. O quanto tiver de indiferente de um homem inocente ou matá-lo, que é indiferen-
terá de direito positivo. te ludibriar o próximo ou ser honrado, que é igual
66 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITNO 67

criar e educar os filhos ou abandoná-los na rua ou são lógica impõe -se com toda a clareza e expressi-
maltratá-los. Quanto a essas coisas, certas mentali- vidade: os delinqüentes não cometem nada de ruim em
dades e ideologias modernas parecem pretender de- si, fazem sim coisas que outros acham que são más;
safiar o bom senso. em outras palavras, se são castigados com penas, o
Rogo ao leitor que faça um esforço para se es- castigo não é merecido em sentido próprio, mas ape-
quecer de tópicos e manipulações ideológicas e que nas representa uma reação violenta da maioria. Os
tente ser razoável. Pode alguém, a sério e em seu foro delinqüentes são, na realidade, marginalizados da so-
íntimo, pensar que é indiferente, que não é injusto ciedade, sem outra culpa além de praticar condutas
por si mesmo, ou que é apenas um valor relativo que que a maioria não vê com bons olhos. Se o leitor pen-
alguns pais, para poder sair de férias tranqüilos, ma- sa que quem assassina, assalta, insulta, calunia, fere
tem seus filhos e os joguem na lata de lixo? Não va- outros etc. é algo mais que um extravagante, que uma
mos nos precipitar, vamos usar a lógica: o que implica- pessoa que se comporta de modo diferente da maio-
ria afirmar que essas e outras condutas semelhantes,
ria, é evidente que percebe que há coisas que são jus-
mais ou menos graves que a mencionada, violam
tas em si e coisas, em si, injustas. Pois bem, esse é o
apenas um valor relativo (como diz o relativismo) ou
ponto-chave do direito natural.
um padrão de comportamento socialmente aceito
Pedi anteriormente ao leitor um esforço para ser
(conforme afirma a sociologia)? Um valor relativo,
razoável. De fato, dizer que há coisas em si mesmas
por definição, é algo que é bem ou valor, não em si
justas e coisas injustas em si significa, desde a Anti-
mesmo, mas tão-somente porque um homem ou um
conjunto de homens assim avalia ou estima. Um pa- guidade grega, que há coisas condizentes com os
drão social de comportamento é uma norma de con - postulados naturais da reta razão (condizentes com
duta, indiferente em si, mas aceita por consenso da a razão natural) e postulados contrários a ela. Por
maioria. Afirmar que condutas como a mencionada isso se diz que é de direito natural ou contrário a ele
só violam um valor relativo ou uma norma mera- o que a razão natural determina como justo ou como
mente sociológica implicaria - por definição - que injusto (determinados da reta razão ou razão natu-
tais condutas não são más ou injustas em si mes - ral). Assim falavam os estóicos vários séculos antes
mas, mas unicamente que os outros ou a maioria as de Cristo e assim continua sendo dito até hoje. O
vêem, as avaliam como más. Quem as pratica não direito natural não quer dizer outra coisa além de
faria nada de verdadeiramente ruim, mas sim reali- que, em determinadas esferas da ação humana, há
zaria uma coisa em si nem boa nem má. A conclu - condutas racionais e condutas irracionais, há con-
68 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO 69
dutas condizentes com a reta razão e condutas con- parasse a seu lado uma ambulância, descessem al-
trárias a ela. guns médicos e sem mais explicações o capturas-
Agora, como a razão tem por ato próprio conhe- sem, levassem -no a uma clínica e lhe tirassem uma
cer, é evidente que, se capta coisas justas ou injustas córnea para dar visão a um cego, ou para fazer um
em si, é porque conhece algo objetivo, com realida- experimento? Não se sentiria injustamente tratado?
de e consistência próprias, que é critério objetivo do Você se acalmaria se lhe dissessem que essa sensa-
justo e do injusto, em virtude do que há condutas que ção de ser objeto de injustiça não é mais que uma
respeitam ou lesam bens não indiferentes. Esse algo opinião sua - tão respeitável quanto a contrária - , e
objetivo é a pessoa, enquanto representa uma indi- que, portanto, nada verdadeiramente injusto come-
viduação da natureza do homem. Em outras pala- teram com você?
vras, o que a razão capta é que a pessoa é titular de Como não conheço o leitor, não sei o que res -
direitos e que a natureza é fundamento e critério ponderá a essas perguntas, mas presumo que dirá
desses direitos. Já dissemos que se as noções do jus- que é dono de seus olhos e que sem seu consenti-
to e do injusto captassem a consciência subjetiva, mento ninguém pode privá-lo deles. Isso é o que
tudo se reduziria a um jogo de opiniões, coisa - con- nós, seres humanos, costumamos dizer, e, o que é
forme vimos - não razoável. Por isso, é a razão e não mais importante, é o que se deduz da noção de pes-
a consciência subjetiva que conhece o justo e o in- soa. Dissemos antes: pessoa é o ser que é dono de
justo não indiferente. Isso é o direito natural (não a si. Portanto, não é apenas capaz de dominar seu en-
lei natural, da qual ainda não falamos). torno, mas também já é, por natureza, dono e pos-
É direito natural o que é justo por si mesmo, o suidor de si. Pelo menos tudo aquilo que constitui
não indiferente. E como é que existem coisas justas seu próprio ser está atribuído ao homem em virtude
por natureza, isto é, o justo natural, o direito natu- de ser uma pessoa. É evidente, por isso, que o ho-
ral? Se lembrarmos a noção de direito que demos, mem tem direitos naturais. Se o direito for devida-
que existe o justo natural, significa que há coisas - mente ensinado aos estudantes de Direito, eles
bens, poderes, faculdades etc. - atribuídas ao homem aprenderão que, além dos bens que constituem seu
não por pacto ou consenso entre os homens, mas ser e dos fins naturais do homem e que são seus di-
em virtude do natural ao homem, isto é, de fatores reitos naturais (a vida, a integridade física, a livre ma-
ou dimensões próprias de seu ser. Faça um exame o nifestação de seu pensamento, a religião - liberdade
leitor: existem tais coisas em sua pessoa? O que di- religiosa -, a saúde etc.), têm outros direitos natu-
ria o leitor se, passeando tranqüilamente pela rua, rais. Porém, este não é o momento de falar deles;
70 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO 71

simplesmente devíamos fazer constar que o direito de pensar que cinco euros são uma quantia igual a
natural existe, e acabamos de fazer isso. cinco euros porque a maioria dos homens acha isso
Como o direito natural tem por fundamento e - o que restaria, então, da matemática? - : ambas as
por título a natureza humana, não é indiferente, e quantias são iguais pela natureza das coisas. Aí te -
como todos os homens são pessoas igualmente e a mos um exemplo de medida natural, não conven-
natureza é a mesma em todos, o direito natural - cional nem indiferente. Há muitos outros exemplos
Aristóteles já observava - é o mesmo em todos os que com um pouco de esforço qualquer um pode
homens e em todos os lugares. encontrar.
Compreendo que as questões que o direito na- Pôde-se observar que, no que corresponde à me -
tural propõe à filosofia e à ciência do direito não são dida - não no que se refere ao título -, usamos duas
pequenas. Tudo o que se refere ao homem suscita expressões: a natureza do homem e a natureza das
muitas e muito profundas questões, mas este livro é coisas. Elas não devem ser confundidas: ambas po-
uma introdução, e não um tratado. dem ser, conforme o caso, medida dos direitos, porém
a primeira refere -se ao ser do homem e a seus fins; a
segunda, por outro lado, engloba o ser, as qualidades,
5. A medida natural do direito as quantidades etc. das coisas.

Tudo o que acabamos de dizer sobre o direito


natural referiu-se ao título dos direitos, não à medi- 6. Os direitos mistos
da. Digamos, pois, algumas palavras sobre ela.
Que há medidas naturais do direito não resta Como ocorre com freqüência nesta vida e so-
dúvida. Se os direitos naturais têm como título a na- bretudo nas ciências, à medida que se avança no co-
tureza humana, ela própria é o critério de sua ex- nhecimento de alguma coisa, surgem cada vez mais
tensão e de seus limites. Porém, além disso, todos perguntas e tudo se complica. Mas, nesta ocasião,
temos experiência de que há direitos cuja medida é deixamos as complicações para livros mais substan -
natural. Meu amigo, ao qual emprestei - conforme ciosos que uma simples introdução.
o leitor lembrará - cinco euros gratuitamente (isto Por enquanto vou me limitar a complicar a vida
é, com a obrigação de me devolver a mesma quan- do leitor só um pouco. Junto com os direitos natu-
tia de dinheiro sem juros), deve devolver-me exata- rais e positivos puros - aqueles cujo título e medida
mente cinco euros. Por quê? Ninguém teria a idéia são naturais ou pósitivos - existem os direitos mis -
72 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITIVO 73

tos, ou seja, aqueles cujo título é natural e sua medi- sões são uma forma positiva de cumprir um dever
da concreta é positiva, e vice -versa. Vamos dar alguns natural; portanto, a dívida é natural quanto a sua
exemplos: somos livres por natureza; o direito de via- raiz, porém é positiva quanto à forma como é paga.
jar por todo o mundo é um direito natural. Mas as Isso tem uma importante conseqüência. A medida
leis humanas podem regular esse direito, impondo- do direito de receber a pensão - a quantia exata de
lhe limites. Podem nos exigir o passaporte em dia ou dinheiro a receber - não é determinada pelo direito
o visto de entrada em um país, podem nos exigir natural, mas pelo direito positivo. Ou seja, é o Esta-
atestados de vacinação ou que não sejamos portado- do que determina a quantia de seus recursos desti-
res de uma doença contagiosa etc. Um direito de tí- nada às pensões e como dividir o dinheiro entre os
tulo natural tem uma medida de direito positivo. diversos pensionistas. O resultado é que o justo - o
Também ocorre o caso contrário; vale o exemplo que o pensionista deve receber - está determinado
apresentado anteriormente. Emprestar uma quan- pelo direito positivo. O pensionista tem direito a essa
tia é um contrato, logo os direitos e dívidas que daí quantia e nada mais. Então, o que acontece se essas
nascem são positivos; porém, se o empréstimo é gra- pensões são insuficientes? Ora, acontece que se o
tuito, a medida da quantia a ser devolvida está de - pensionista, fazendo um acordo com algum funcio -
terminada por uma medida natural. nário da Previdência Social, cometesse uma irregu-
Isso é de interesse para o jurista? É, e muito, laridade administrativa e recebesse mais do que o
porque com freqüência os que não são juristas con - determinado - embora não ultrapassasse o sufi-
fundem as coisas e vêem injustiças onde não há ou, ciente para viver - , funcionário e pensionista come-
pelo contrário, aceitam como justas coisas que não teriam uma fraude, uma verdadeira injustiça contra
são. Vamos analisar, como exemplo, a tão comenta- o Estado.
da questão dos aposentados. As pensões, diz-se Como fica, então, isso de que o pensionista deve
com razão, são em muitos casos escassas, são injus - receber o conveniente para viver? Fica como tem que
tas. O que é o justo nas pensões? Um jurista deve ficar: como essa obrigação não recai primeiramente so-
primeiramente decompor os elementos naturais e bre o Estado, mas sobre a sociedade, esta tem o dever de
positivos que há nelas. As pensões são de direito chegar aonde o Estado não chega, v.g., os familiares
natural? É de direito natural que quem trabalhou devem ajudar o pensionista. Se, apesar de tudo,
normalmente durante sua vida, ao chegar o mo - acharmos que é mais conveniente que a Previdência
mento de se aposentar do trabalho, receba o conve- Social assuma toda a carga, não se deve esquecer de
niente para viver. Isso é o que há de natural. As pen - que não há nenhuma forma de cumprir essa obriga -
74 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITNO 75

ção prescrita pelo direito natural; portanto, essa so- No entanto, não resisto a pedir a atenção para
lução de que a Previdência Social arque com ela é um tema que interessa, em minha opinião, aos ju-
uma legítima aspiração, não um direito em sentido ristas conhecer. A mentalidade positivista, propaga-
estrito. Logo, o modo para conseguir que essa aspi- da em certos ambientes, criou em alguns - sejam ou
ração se transforme em direito é o próprio das legíti- não positivistas - o hábito de ver com a maior natu-
mas aspirações: os meios políticos, isto é, petições, ralidade o direito positivo sem sua essencial refe-
manifestações, campanhas na imprensa etc. rência ao direito natural. Parece -lhes normal que se
Dizemos que atualmente, em nosso país*, mui- fale do direito positivo e que seja aplicado sem es-
tas aposentadorias são insuficientes. É verdade, mas treita conexão com o direito natural, sem perceber
a conclusão de tudo o que foi dito é que a injustiça que o direito positivo é inexplicável sem o direito
não recai apenas sobre o Estado, mas também sobre natural. Por que é inexplicável nesse caso? Ora, por-
a sociedade e sobre os familiares. Cada qual deve que sem o direito natural o direito positivo não tem
arcar com sua parte de injustiça. o pressuposto necessário de existência.
Está ao alcance de todos compreender que é im-
possível um fato cultural sem que tenha uma base
7. A conexão entre direito natural. Tudo o que o homem faz ou inventa requer
natural e direito positivo uma capacidade natural, o que os filósofos chamam
de potência. Para ver, o homem precisa ter olhos.
As relações entre direito natural e direito positi- Com base nesse fato natural, o homem pode edifi-
vo são um ponto central da ciência do direito. Limi-
car uma série de fatos culturais: escrita, pintura, es-
tar-se apenas ao direito positivo leva necessariamen-
cultura, televisão, cinema etc. Porém, se o homem
te à injustiça. E deixa o jurista na metade do cami-
não tivesse visão, todos esses fatos culturais não
nho de sua arte e de seu ofício.
existiriam. O homem é incapaz de voar por si mes-
Apesar de esse assunto ser muito importante -
mo; por mais que tente, nunca terá asas (não existe
tanto que, se não o ensinassem na Faculdade, o es-
em seu corpo a capacidade de tê -las). Pode, isso
tudante deveria estudá-lo por conta própria -, não
sim, com base em uma série de dados naturais (peso
vamos tratar dele nesta introdução, que não tenta
e resistência dos materiais, leis da aerodinâmica
ensinar a ser jurista (seria inútil pretensão), mas sim
descobrir as linhas gerais da profissão. etc.), construir alguns aparelhos (desde as asas-del-
tas até o mais complicado reator) com os quais voar.
*A Espanha. É axiomático que todo fato cultural depende dos dados
76 O QUE É O DIREITO? DIREITO NATURAL E DIREITO POSITWO 77

naturais. Por isso se diz que o homem inventa (pala- reito seu. Dizer que a condição de sujeito de direito
vra que significa achar, encontrar algo que já existia é dada pela lei humana é uma afirmação vazia por
pelo menos em potencial) e não que cria (tira algo sua radical impossibilidade: o homem daria a si mes -
do nada). O homem é inventor, não criador. mo a potência (a capacidade para o fato cultural) e o
Dado o axioma enunciado, pretender que só ato (o fato cultural), o que suporia nele um poder
exista o direito positivo, ou seja, que todo direito seja criador em sentido estrito (tirar algo do nada), coisa
estabelecido pelo homem, contradiz o mais elemen - impossível.
tar bom senso, pois se há algo jurídico cultural (po- Se existe o direito positivo, é evidente que o
sitivo), tem que partir necessariamente de algo jurí- homem é naturalmente sujeito de direito. E o que,
dico natural. Note-se bem que o axioma não signi- em seu ser, o torna sujeito de direito? Dizíamos em
fica que um fato cultural é possível dada qualquer páginas anteriores: para que o homem possua algo
potência ou capacidade, mas que o homem tem, pre- como seu, deve ser possuidor de seu próprio ser,
cisamente, uma potência da mesma ordem do fato isto é, deve ser pessoa. Agora, vamos lembrar o que
cultural; o ouvido, por exemplo, não é suficiente foi dito antes: se o homem é possuidor de seu pró-
para possibilitar os fatos culturais relacionados com prio ser, alguma coisa é naturalmente direito seu:
a visão. Portanto, é axiomático que, se existe o fato seu próprio ser. Logo, o homem, por ser pessoa, é
jurídico positivo (cultural), deve apoiar-se em uma ju- titular de direitos naturais. Note-se bem: a capaci-
ridicidade natural. Se nada houvesse de jurídico na- dade para ser titular de direitos positivos não é uma
tural, nada haveria de jurídico cultural. Por isso, a mera potência (capacidade), e sim a própria titulari-
melhor demonstração de que existe o direito natu- dade dos direitos naturais. Isso não deve causar sur-
ral é que existe o direito positivo. presa, já que todo direito positivo é edificado sobre
Qual é o mínimo de jurídico natural que deve algum direito natural.
existir para que possa existir o direito positivo? Se Esta é a irremediável aporia do positivismo: se não
lembrarmos que direito é a coisa sua, fica evidente existe o direito natural, é impossível que exista o di-
que o mínimo de jurídico natural que deve existir é reito positivo; e se existe o direito positivo, existe ne-
a condição de sujeito de direito própria do homem. cessariamente o direito natural.
Eis aí algo que é impossível vir do direito positivo. A
condição de sujeito de direito é a potência natural
necessária para que o homem possa atribuir a si
mesmo ou atribuir a outros alguma coisa como di-
Capítulo VI
As leis

1. Saber sobre as leis

Já vimos que o jurista - o homem do direito -


costuma ser chamado também homem de leis. Em-
bora não se deva confundir a lei com o direito, não
há por que rejeitar esse título; pelo contrário, o co-
nhecimento das leis - saber de leis - tem um papel
muito importante na tarefa do jurista.
Saber leis, que é conhecê-las e interpretá-las
corretamente, constitui uma arte, que não está ao al-
cance de todos. É muito fácil cair na figura caricatu-
resca do leguleio - aquele que não vê além da letra
da lei - , imitação fraudulenta do homem de leis que
o jurista deve ser. Não sei se o leitor vai se lembrar
de um filme chamado A lei é a lei, protagonizado
por Fernandel e Totó; seu humor é baseado nas si-
tuações incongruentes que surgem quando a lei é
seguida ao pé da letra. Lembre-se o leitor do que diz
a Bíblia ao falar da lei: a letra mata.
A dificuldade de interpretar a lei não se deve ao
fato de utilizar termos muito raros ou pouco conhe-
80 O QUE É O DIREITO?
AS LEIS 81

cidos; a maioria das leis está escrita de forma acessí- Felizmente, a segunda razão quase não conta
vel a pessoas de cultura média e, em todo caso, não hoje em dia. Depois dos excessos do dogmatismo e
é demasiadamente difícil familiarizar-se com sua do conceptualismo jurídicos, e uma vez falidas tam-
linguagem. Exceto se tratarem de matérias muito es- bém as não distantes tentativas de reduzir o raciocí-
pecializadas, as leis costumam ser feitas em lingua- nio jurídico a fórmulas matemáticas, a praticidade
gem bastante comum. Leia-se, então, nossa Consti- do saber jurídico voltou, cada vez mais, a recuperar
tuição; nela quase não se encontrará uma ou outra seu lugar. A primeira razão também não tem peso
palavra cujo significado tenha que se procurar no suficiente, pois está relacionada à segunda. Técnica
dicionário ou em uma enciclopédia. evoca a aplicação prática de um saber especulativo,
A dificuldade consite em que a interpretação das de modo que a técnica jurídica seria a aplicação ao
leis exige uma peculiar prudência, um tipo especial caso concreto dos conceitos e dogmas especulativa-
dessa virtude, que se chama prudência do direito; mente construídos pela ciência do direito (ciência es-
em latim, iuris prudentia, de onde vem a palavra em peculativa, de acordo com essa opinião). Isto posto,
espanhol jurisprudencia. Assim como para a lingua- dado que a ciência do direito, embora também seja
gem existe a Real Academia da Língua, também para composta de conhecimentos especulativos, é um
a ciência do direito há, na Espanha, uma Real Aca- saber essencialmente prático, deve consistir em um
demia: a Real Academia de Jurisprudência, que é o hábito - habilidade ou aptidão - da razão prática
nome clássico da ciência do direito (o nome com- pela qual possa chegar a conhecer - em cada caso -
pleto é Real Academia de Jurisprudência e Legislação). qual é o direito e como deve ser interpretada a lei.
Há muito tempo, é comum que a palavra juris- Mas acontece que o hábito intelectual de saber como
prudência seja reservada para designar a doutrina se age corretamente recebe o nome de virtude da pru-
jurídica que resulta das sentenças do Supremo Tri- dência. A ciência (prática) do direito é um tipo de
bunal e, de modo mais geral, das decisões dos de -
prudência. Portanto, a Real Academia tem toda a ra-
mais tribunais. O saber interpretar a lei é chamado
zão ao continuar se denominando Jurisprudência; o
de preferência de ciência jurídica ou ciência do di-
verdadeiro nome da ciência do direito - ciência prá-
reito. Isso obedece a duas razões. Uma consiste em
tica - é o de jurisprudência, tal como a denomina -
que se considera que, mais que uma virtude, aplicar
vam os juristas romanos.
a lei seria uma técnica, a técnica jurídica. A outra ra-
zão é que, com o aparecimento do dogmatismo ju- Talvez alguém ache tudo isso enfadonho e este-
rídico, pretendeu-se fazer do direito uma ciência es ja pensando que, em síntese, a lei é a lei, e quando
peculativa. diz algo, é esse algo, e nada além disso. E que tudo
82 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 83

isso são complicações de leguleios, porque é pão, tendo aplicado o exame ao referido estudante, deu-
pão, queijo, queijo. Sim, é verdade, mas vamos lem- lhe a sempre desagradável nota de reprovado. O es-
brar quantos tipos, qualidades e variedades existem tudante protestou, alegando que sabia todo o Código
de pão e de queijo, e talvez assim se vislumbre que Civil de cor. Façanha nada fácil e apenas possível,
onde se diz queijo é preciso ter o tino de saber qual após árduos esforços, a memórias pouco comuns.
queijo convém servir, para que não se sirva aos ami - O catedrático, porém, não se comoveu; depois de
gos um queijo do mais comum no dia do casamen- olhá-lo fixamente, respondeu-lhe entre sério e di-
to e um camembert da melhor qualidade em um dia vertido: "Pois o senhor sabe 2,50 de direito civil."
sem especial importância, numa refeição informal. Estava coberto de razão; saber de cor uma lei não é
A oportunidade e o tino fazem parte da prudência. ser jurista, como saber de cor a Bíblia não torna al-
O estudante de Direito não vai à Faculdade - guém um mestre da exegese bíblica. Não quero di-
principalmente - para aprender o texto das leis; vai zer com isso que o estudante de Direito não faça
para adquirir mentalidade jurídica, isto é, o hábito da bem aprendendo de cor alguns artigos das leis; isso
jurisprudência, da prudência do direito. Para isso, sempre causa boa impressão nos exames orais e em
deverá ter à mão, como material imprescindívet a certos concursos pode ser a chave do sucesso.
Constituição, os Códigos Civit Penal e do Comér-
cio, as Leis de Processo Civil e Criminal e outros
textos legislativos. Não creia, no entanto, que exigi- 2. A lei
rão dele que os saiba de cor; terá que estudar as leis,
mas os exames versarão de preferência sobre os ma - Na linguagem vulgar costuma-se chamar de lei
nuais e as explicações da aula, porque o que interes- ao que na linguagem mais especializada se chama
sa sobretudo é que saiba a interpretação das leis; o de nonna. O uso dessa última palavra é bastante
texto delas terá à mão sempre que quiser, em edi- moderno, pois foi introduzido como resultado do
ções baratas e fáceis de usar. É bom que se forme uma princípio de hierarquia de nonnas. Segundo esse
idéia clara sobre isso; que não ocorra o que aconteceu princípio, nem todas as normas têm o mesmo valor.
há muitos anos - quando o Código Civil custava dez Umas valem mais que outras, no sentido de que se
reais, 2,50 pts. - a um estudante que, pelo visto, es- as de categoria inferior contradizem as de categoria
tava meio perdido. Na ocasião, o catedrático de di- superior, são consideradas nulas ou anuláveis, con-
reito civil da Universidade de Barcelona era o prof. forme o caso e os diferentes sistemas jurídicos. Esse
Joaquín Dualde, conhecido e original civilista, o quat princípio é relativamente moderno, já que antes qual-
84 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 85

quer norma contrária a uma anterior a derrogava que são dados em forma de lei ou decretos, e outras
(derrogação parcial), ou a ab -rogava ou simples- coisas do gênero. Mas se o leitor não se importar,
mente umas e outras continuavam tendo validade e vamos deixar essas complicações e nos restringir ao
os juristas que se entendessem tentando conciliá- conceito de lei como regra obrigatória de conduta
las. Todas eram genericamente chamadas de leis, de caráter geral.
embora recebessem diferentes nomes, conforme a
forma do documento no qual estivessem escritas ou
de sua redação: Real Cédula, Ordenança etc. A par- 3. Norma social
tir da introdução da hierarquia de normas, o nome
reflete sua categoria, de maior a menor: Constitui- A lei regula e ordena as relações entre os ho -
ção (ou lei constitucional), lei (ou lei ordinária), de- mens; é, pois, uma regra social ou norma da vida
creto-lei, decreto, ordem ministerial etc. Todo esse em sociedade. Para compreender sua natureza é pre-
conjunto recebe o nome de normas e, na linguagem ciso considerar duas coisas. Em primeiro lugar, que
corrente, de leis. Aqui, para maior comodidade, fa- é uma regra obrigatória, com obrigação em sentido
laremos indistintamente de lei ou de norma. próprio., O que quer dizer obrigação em sentido pró-
prio? Quer dizer que não se trata simplesmente de
Uma lei é uma regra obrigatória que tem um ca-
uma regra de conduta cujo descumprimento produ-
ráter geral. Com geral não se quer dizer que se refe-
za uma rejeição social. Voltamos a deparar aqui com
re a todos os cidadãos, mas que está destinada a um
o padrão sociológico de comportamento, que deve
conjunto mais ou menos amplo de pessoas, em con-
ser claramente distinguido da lei.
traposição aos preceitos ou ordens, que se dirigem
É freqüente que nos imponhamos determina-
singularmente a uma pessoa ou a um determinado
das normas de comportamento social, das quais di-
grupo que forma uma unidade. Por exemplo, as re- zemos que é obrigatório segui-las, sem serem leis.
gras gerais de organização e de conduta dos milita- Por exemplo, ainda é obrigatório - pelo menos o era
res são leis ou normas (desde as Reais Ordenanças até há muito pouco tempo - em alguns hotéis usar
até os decretos governamentais); por outro lado, a gravata para entrar e permanecer em seus salões;
incumbência que o sargento dá ao soldado ou o ca- quem for sem gravata, mesmo que se trate de uma
pitão à sua companhia são ordens ou preceitos. celebridade, é convidado - e se for o caso, obrigado
Logo tudo isso se complica porque, por aplicação - a abandonar os salões do hotel. Não se creia que
do princípio de hierarquia de normas, há preceitos isso é próprio apenas de ambientes refinados; experi-
86 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 87

mente alguém apresentar-se de gravata e bem traja- se confessar, porque tinha trocado a caneta-tintei-
do em ambientes alternativos e provavelmente de - ro que seus avós haviam acabado de lhe presentear
morará menos a ser expulso do que se for sem gra- por uma besteira qualquer de que não me lembro,
vata a um dos mencionados hotéis. Em alguns am- ação que o havia deixado com a consciêricia pesa-
11

bientes é obrigatório ir nos trinques, em outros é da. Não se preocupe, meu filho - respondeu o pai,
obrigatório ir mal-ajambrado. Essas são verdadeiras para grande alívio do garoto - , isso não é um peca -
obrigações em sentido próprio? A resposta é nega- do, é um mau negócio."
tiva. Quebrar uma simples norma social de com- Na vida social, não se deve confundir o pecado -
portamento é apenas questão de desconformidade, o delito ou a injustiça - com o mau negócio, isto é,
de frescura ou - em caso extremo - de vontade de com a falta de educação, com o inconformismo pe-
irritar os outros ou de provocá-los. Mas, afora as in- rante hábitos sociais, a extravagância ou as condutas
tenções malévolas, descumprir essa norma não su - insólitas, coisas todas elas que provocam a rejeição so-
põe violar nenhum valor essencial da pessoa. É pos- cial (o que pode ser um mau negócio). A primeira coi-
sível ser um homem íntegro e completo com grava- sa refere -se a obrigações em sentido próprio; a se-
ta ou sem ela, e é possível ser um sem-vergonha gunda corresponde a obrigações impróprias. Uma
vestido de fraque ou de calça jeans. Estamos no coisa é o dever propriamente dito e outra a conve-
campo do que, em relação aos valores pessoais, é niência de agir conforme os padrões de conduta ha-
indiferente. bitualmente aceitos em um meio social. Não cum-
Se às vezes não vemos claramente a diferença prir o dever é uma imoralidade que pode constituir
entre uma obrigação em sentido próprio e essas injustiça, uma conduta que não corresponde à con-
obrigações impróprias é por um defeito de educação. dição de pessoa. Descumprir os chamados deveres
Pais e professores têm, às vezes, o péssimo costu - sociais é expor-se à rejeição social e, nesse sentido, é
me de corrigir com o mesmo tom e a mesma irrita- conveniente e oportuno cumpri-los; mas, em todo
ção a bofetada dada em um colega e o fato de pe- caso, seu descumprimento não viola nada funda -
gar os alimentos com as mãos. Lembro, a respei- mental da pessoa, de modo que pode ser um erro,
to disso, o bom tino e a habilidade educacional de porém não uma imoralidade nem uma injustiça. E
um pai. Esse pai estava com um de seus filhos as - mais: às vezes, descumprir os deveres sociais pode
sistindo à missa e, ao se aproximar o momento da constituir um dever de consciência.
comunhão, perguntou ao menino se pretendia co- Obedecer à lei pertence ao dever. Não é sim -
mungar; esse lhe respondeu que não podia ir sem plesmente uma coisa conveniente, embora às vezes
88 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 89

cumpramos as leis levados por motivos de conve- Embora com os deveres de justiça legal costu -
niência, por exemplo, para evitar uma multa. As leis memos ser igualmente detalhistas, somos ao con-
indicam o que em justiça devemos à sociedade. Aso- trário do que com a justiça distributiva. Buscamos o
ciedade tem alguns deveres para conosco, os cida- maior número de desculpas para nos sentirmos li-
dãos: é a chamada justiça distributiva; nós, os seres vres de tais deveres e discutimos o quanto podemos
humanos, ao fazer parte da sociedade, temos o es- os direitos da sociedade e do Estado. É uma forma
trito direito - é de estrita justiça - a que os bens so- de pouco amor à justiça. Por isso o homem que tem
ciais sejam desfrutados por todos segundo critérios verdadeiro amor à justiça, o homem integralmente
justos e de acordo com as regras legitimamente es- justo, é detectado por seu cumprimento da justiça
tabelecidas. Os bens da sociedade devem ser distri- legal. E mais, quando admiramos um homem como
buídos, pelo que se refere a seu uso ou conforme ou- justo - é um homem justo, dizemos - , reparamos so-
tras modalidades, entre todos os cidadãos. E a ver- bretudo, embora sejamos pouco conscientes disso,
dade é que costumamos ser zelosos desse direito. no fato de que cumpre a justiça legal sem mesqui-
Quantas reclamações! Quase não existe conversa nharia e, inclusive, com liberalidade.
na qual, de um modo ou de outro, não se critique o Nossos deveres para com a sociedade são de
Estado e a sociedade pelo que consideramos distri- natureza diversa: há os de justiça e há os de outras
buição de bens deficiente ou injusta. Nosso zelo por virtudes (solidariedade, por exemplo). Quais são os
essa justiça nos torna até detalhistas. deveres de justiça, aqueles que representam o justo,
Contudo, somos propensos a esquecer que nós, nem mais nem menos, que devemos à sociedade e
cidadãos, temos também deveres de justiça em re- ao Estado? Devemos à sociedade o que, sendo pró-
lação à sociedade e ao Estado. A sociedade tem di- prio da sociedade, depende de nossa colaboração e
reito a que nós, cidadãos, assumamos nossos deve- participação. A sociedade não é mais que a união de
res de justiça para com ela, a que respeitemos os di- todos nós em razão de determinados fins ou bens,
reitos da sociedade em relação aos cidadãos. Esse obtidos pelo esforço de todos (fim ou bem comum) .
tipo ou classe de justiça chama-se justiça legal. Não O que pertence à sociedade - isto é,- não o que é pro-
há, pois, somente deveres de justiça dos particulares priedade dela, e sim o que lhe é próprio - , aquilo que
entre si Qustiça que recebe o nome de justiça comu- deve obter e para o qual existe é o fim ou bem co-
tativa) nem da sociedade para com os cidadãos (jus- mum. Agora, como a sociedade é a união de todos,
tiça distributiva); também há deveres de justiça dos o que cada um deve à sociedade é - chamemos as-
cidadãos para com a sociedade (justiça legal). sim - sua cota de participação na obtenção do bem
90 O QUE É O DIREITO? AS LEIS
91
comum. A parte que cada um deve pôr para que a veremos a outra. O homem tem deveres que não
sociedade obtenha o bem comum é o direito da so- são os impostos pelas leis. Todos temos consciência
ciedade e o dever de justiça de cada cidadão. de que existem deveres morais: amar a Deus e ao pró-
Mas cabe nos perguntarmos: o que é que deter- ximo, dizer a verdade, ser castos, não caluniar etc.
mina essa cota, o que institui esse dever distribuin - a) Entre esses deveres morais, alguns nunca se -
do entre todos o esforço comum? Logicamente será rão incluídos nas leis, porque não são de sua com -
o que regula e ordena as condutas de todos os cida- petência. Há uma parte de nosso agir que está fora
dãos em razão do bem comum. Pois bem, tal função da jurisdição das leis da sociedade; pertence a nossa
é própria das leis. São elas que determinam o dever intimidade e a nossa autodeterminação, fato pelo
de cada cidadão ao regular e ordenar a vida social. A qual seria um abuso que as leis pretendessem ter
lei determina os deveres de justiça legal. Suponho acesso a elas. Quando o Estado se arroga a função
que a esta altura já foi possível adivinhar o motivo de penetrar naquilo que pertence a nossa intimida-
pelo qual essa justiça é chamada de legal: porque de e à esfera de nossa autodeterminação, torna-se
consiste em cumprir as leis. totalitário. Há totalitarismos de esquerda e de direi-
Obedecer às leis é, pois, um dever de justiça, ta; o que, no caso, dá na mesma: todos são inaceitá-
pertence ao dever, não ao que convém fazer para evi- veis por serem contrários à liberdade humana.
tar a rejeição social. A obrigatoriedade das leis ba- Nessas esferas a autodeterminação é livre, po-
seia-se na justiça. Sendo todos membros da socie- rém a liberdade refere -se ao fato de que as leis não
dade e estando obrigados a fazer o que nos corres- têm jurisdição, e não à ausência de deveres. Sabe-
ponde para obter o bem comum, estamos obriga- mos, por nossa consciência, que temos deveres e
dos a cumprir o que a lei determina, que é a regra de deveres graves: são os deveres morais, que se resu -
justiça dos cidadãos para com a sociedade. mem aos Dez Mandamentos da Lei de Deus.
Esses deveres representam exigências de nossa
natureza e de nossa condição de homens. Por ser-
4. Lei e dever moral mos pessoas, nosso ser é digno, e nem nós podemos
agir como nos apetece, nem os outros podem nos
Falávamos antes que era preciso considerar duas tratar a bel-prazer. Aí está a grandeza do ser huma-
coisas para compreender a natureza da lei. Vimos no. Por ser dotado de espírito e razão, deve compor-
uma: a lei pertence ao dever, não aos usos sociais ou tar-se de acordo com seu ser, em conformidade com
simples padrões sociais de comportamento. Agora o que é e com os fins que lhe são naturais. É o dever
O QUE É O DIREITO?
AS LEIS 93
92
que, nesses casos, o jurista é um moralista; moral e
de autenticidade, de se comportar como o que é. Se
direito são a mesma coisa? Há uma regra jurídica
o homem não age racionalmente - segundo a lei na-
muito fácil·de compreender: non bis in idem, não jul-
tural, ou seja, de acordo com os fins aos quais está
gar duas vezes a mesma coisa. Se uma pessoa co-
destinado por natureza - , se não vive a autenticida-
meteu um delito, é julgada e recebe a pena corres-
de (que não consiste em fazer sua própria lei, mas
pondente, e assunto encerrado. Não seria lógico jul-
em viver conforme o que objetivamente se é), degra-
gá-la outra vez no mês seguinte e depois outra vez,
da-se e ofende a si mesmo, ofendendo sua própria
e assim quantas vezes se queira. Uma vez julgado
dignidade. Nisso consiste a imoralidade.
um assunto, são concedidos os recursos convenien-
Em sua raiz mais profunda, o dever moral é lei
tes aos interessados e, esgotados os recursos, diz -se
de Deus. O homem foi criado por Deus, de modo
que o caso passa ao estado de coisa julgada e não se
que seu ser representa um dom divino e os fins na-
volta a ele. Pois bem, para quem comete um delito -
turais constituem a bênção divina, aquele bem ao
para continuar o exemplo apresentado - não é a
qual foi chamado para se realizar plenamente. O
mesma coisa estar em paz com sua consciência -
dever moral é dever perante Deus, e transgredi-lo,
com Deus, em síntese - e estar em paz com a socie-
ao mesmo tempo que ofende a dignidade humana,
dade. Não é a mesma coisa purgar o pecado come-
viola a lei de Deus e constitui uma ofensa contra
tido com sua ação e purgar o delito que essa ação
Ele. Essa ofensa a Deus é o que transforma a imora -
supõe contra a sociedade. A mesma ação tem um
lida de em pecado.
duplo aspecto e um duplo julgamento: o julgamen-
No entanto, não é o jurista que estuda tudo isso,
to da consciência (no caso, o julgamento perante o
mas o moralista (filósofo ou teólogo), e julgar o pe-
confessor) e o julgamento perante o Tribunal. Todos
cado não corresponde aos Tribunais, e sim à Igre-
já vimos no cinema algum caso de delinqüente que,
ja, particularmente ao confessor. Quando pecamos,
depois de uma vida de delitos, é apanhado pela po-
não recorremos, para restabelecer a paz de nossa
lícia, julgado e condenado à prisão. Ao sair dela, o
consciência, ao tribunal, mas sim ao sacramento da
indivíduo em questão afasta-se do crime e instala
confissão.
um negócio legal ou se dedica a descansar, após de -
b) Junto às esferas de intimidade e autodetermi-
clarar que está em paz com a sociedade. É verdade, está
nação das quais falamos, encontramos outras esfe-
em paz com a sociedade, já não será detido outra
ras de coincidência entre as leis e a moral. Roubar é
vez, nem julgado se não reincidir. Porém, está em
um pecado e ao mesmo tempo um delito; tal ação é
paz com sua consciência, está em paz com Deus?
julgada na confissão e no tribunal. ISso quer dizer
94 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 95

Certamente não; tal paz só é recuperada pela since- jam moralmente corretos. Mas atingir essa meta é
ra conversão de coração, pelo arrependimento. Não tarefa conjunta de educadores, políticos e moralis -
é a mesma coisa pecar e delinqüir. tas: em síntese, quem pode atingir melhor esse fim
O que nos mostra isso tudo? Mostra algo muito é a vivência religiosa. Ao jurista, por outro lado, cor-
importante. Mesmo coincidindo as leis e a moral em responde só um aspecto da justiça: a realização de
uma determinada matéria, o jurista não é um mora- seu objeto, o resultado que corresponde à virtude.
Em outras palavras, seu objetivo é determinar a obra
lista, porque o aspecto jurídico e o aspecto moral de
externa da justiça, sem entrar na intimidade do cora-
uma ação são diferentes. A realidade, a ação - a con -
ção de quem age, coisa que deixa para o moralista.
<luta - é única, mas a perspectiva pela qual é vista
Igualmente, as leis, no que se refere a seu cumprimen-
pelo jurista e pelo moralista não coincide. Por sua
to, limitam-se à ação externa; com isso se confor-
vez, as leis - estamos falando das leis que regem a
mam, e consideram o homem um bom cidadão em
sociedade, as que correspondem ao jurista - refe- relação à justiça legal e em paz com a sociedade.
rem-se à conduta humana em um determinado as- Conseguir o resto é próprio de outros recursos da co-
pecto: o da participação da pessoa no bem comum munidade humana, especialmente a educação e a
ou interesse geral. Às leis interessa o homem como vivência religiosa.
cidadão, e nisso esgotam sua ação reguladora. A lei Exatamente porque a sociedade precisa que os
destina-se a que o homem seja bom cidadão: o in- homens sejam moralmente corretos, as leis devem
terior do coração pertence ao homem e a Deus. As favorecer a educação, a moral e a religião. As chama-
leis são regra de justiça; sua obrigatoriedade específi- das leis permissivas - que não são aquelas que, para
ca - a que lhes corresponde como regras de condu - evitar um mal maior, toleram algum vício social, ou
ta, devidas à sociedade - fundamenta -se, como di- leis tolerantes, e sim as que elevam à categoria legal
zíamos, no dever de justiça de contribuir para o bem o que é imoral, aceitando-o como regra social - são
comum da sociedade. Essa é sua perspectiva. contrárias ao bem da sociedade e constituem um
Claro que essa perspectiva jurídica não abrange grave erro político. No entanto, a lei como tal não
tudo o que é próprio da virtude da justiça. A justiça exige a íntegra moralidade da conduta que a cum-
é uma virtude moral - uma das quatro virtudes prin - pre, mas sim se conforma com o cumprimento ex-
cipais, as virtudes fundamentais do homem íntegro terno. Está errado e constitui um ato imoral desejar
- e como tal compreende a retidão do coração hu- exageradamente os bens dos demais, mas à lei bas-
mano. Também é verdade que a sociedade, para se ta que o cidadão não passe à ação fraudando, enga-
desenvolver plenamente, precisa que os homens se- nando ou roubando.
96 O QUE É O DIREITO?
AS LEIS 97
5. A relação entre direito e lei Não são iguais, são diferentes, mas se parecem. Por
exemplo, se digo, sobre os quadros de uma exposi-
O jurista pode ser chamado - como já disse- ção, que eram uma explosão de cores, que entre o
mos - homem de leis. E também advertimos que as público houve uma explosão de entusiasmo ao vê-
leis não constituem o objeto primário da arte do los e que tudo acabou em desgraça porque ocorreu
jurista. A arte do jurista consiste em determinar o a explosão de uma bomba, usei a palavra explosão
direito, o justo. Portanto, se o jurista estuda as leis,
em três sentidos diferentes, porém parecidos, com
faz isso porque elas têm uma estreita relação com
um fundo comum. Em relação à cor, ao entusiasmo
o direito. Para conhecer o direito, é preciso conhecer
e à bomba, a explosão não é explosão do mesmo
as leis.
modo - não é a mesma coisa; contudo, existe uma
A relação entre o direito e a lei é tão íntima que
semelhança entre os três sentidos que o termo ex-
uma das primeiras coisas que se percebem é ocos-
plosão adquire ao ser aplicado à cor, ao entusiasmo
tume inveterado de chamar a lei de direito. Assim, fa-
la-se indistintamente de direito penal e leis penais, e à bomba. A relação de semelhança entre as três
direito administrativo e leis administrativas etc. E idéias expressas pela palavra explosão é a analogia
mais, quase toda vez que se ouve falar de direito, de atribuição.
logo se percebe que se está falando da lei. Nas primei- Observemos que, dos três significados semelhan -
ras páginas mencionávamos o normativismo, aquela tes da palavra explosão que nos vieram à memória,
postura que reduz o direito à lei; está claro que, para há um que é o que expressa o que é uma explosão
os normativistas, chamar a lei de direito é a coisa mais em seu sentido primário: os outros são aplicações
natural do mundo. Mas não se deve crer que os nor- que fazemos a outras coisas por sua semelhança com
mativistas têm culpa de a lei ser chamada de direito; esse sentido primário. Pois bem, a explosão propria-
muitos séculos antes era habitual essa forma de fa- mente dita é a da bomba, ou seja, o estouro de um
lar, usada inclusive pelos juristas romanos. Anterior- corpo ou recipiente pela transformação em gases da
mente fizemos referência à translação de linguagem substância nele contida. O termo utilizado de acor-
para explicar esse fenômeno; agora aprofundaremos do com esse sentido primário é chamado de analogan-
um pouco mais a explicação. te, e os outros são chamados de termos analogados 1 .
A culpa de se chamar a lei de direito é da analo-
gia de atribuição. É muito simples de entender. Há 1. Não ternos, em português, correspondentes para os termos analogan-
te e analogado. Porém, seu sentido está perfeitamente explicado pelo autor.
coisas que, sendo diferentes, têm uma semelhança. (N. da T.)
98 O QUE É O DIREITO? AS LEIS 99
Se as linhas anteriores foram entendidas, imedia- 6. Causa e medida do direito
tamente se compreenderá a seguinte afirmação: di-
reito no sentido de o justo é o termo analogante, e Mas já é hora de explicar a relação entre o direi-
direito no sentido de lei é o termo analogado. Mas to e a lei. A lei tem, no que se refere ao direito, duas
como pode acontecer de alguns leitores não estarem funções, as quais acabamos de mencionar. A primei-
muito habituados a essa forma de falar, vamos ex- ra delas é a de ser causa do direito. Embora haja ou-
plicar com outras palavras. tras coisas que também podem ser causa do direito
O direito, tal como dissemos antes, é aquilo que - v.g., os contratos e a natureza humana -, não res-
está atribuído a um sujeito; o direito é, dizíamos, o ta dúvida de que a lei escrita ou não escrita (nesse
justo, ou seja, o seu de cada um. A lei é outra coisa último caso chama-se costume ou direito consuetu-
diferente: é uma regra de conduta obrigatória. De dinário) é um meio pelo qual certas coisas são atri-
qualquer modo, a lei é algo diferente do direito. Mas buídas a determinados sujeitos. As leis repartem as
coisas com títulos de atribuição, que têm o caráter de
ocorre que a lei é causa e medida do direito, fato
exigibilidade e de dívida: criam direitos. Assim, por
pelo qual entre o direito e a lei há uma dupla pro-
exemplo, as leis constitucionais atribuem as respec-
porção: a que existe entre a causa e o efeito (v.g.,
tivas funções aos órgãos do governo.
todo homem deixa sua marca, seu estilo no que faz;
Não menos importante é a função que a lei de-
por isso os grafologistas, vendo a escrita, podem
sempenha como medida do direito. Ser medida equi-
conhecer certos traços do caráter de uma pessoa), e
vale a ser norma ou regra do direito; em outras pa-
a que há entre uma medida e a coisa medida (por lavras, a lei regula os direitos e o modo de usá-los:
exemplo, entre um molde e a coisa moldada). Já te- indica seus limites, prescreve os pressupostos de ca-
mos o fundamento da analogia: por analogia, a lei pacidade, estabelece os sistemas de garantias etc.
também é chamada de direito. Isto posto, o termo Facilmente compreende-se a importância que o
direito aplicado à lei é análogo (não quer dizer o jus- conhecimento das leis tem para o jurista. Por meio
to, e sim a causa ou medida do justo) e analogado (a da lei conhece-se o direito, embora a lei não seja o
lei se chama direito apenas por sua relação com o único dado que deva ser considerado. Por isso o ju-
justo). Aplica-se a palavra direito à lei por analogia rista pode ser chamado, com razão, homem de leis, e
de atribuição. costuma-se dizer que a carreira de Direito é a carrei-
ra de leis; do mesmo modo, antigamente as Facul-
dades de Direito eram denominadas Faculdades de
100 O QUE É O DIREITO?

Leis, e em vários países algumas ainda são chama- Capítulo VII


das assim. A lei na sociedade
Mas, ao mesmo tempo, o jurista deve ser cons-
ciente de que sua missão não é estar a serviço da lei
/1
- a lei é a lei" - , e sim a serviço do direito; não é
um funcionário da lei, mas um servidor da justiça
em favor da sociedade. Sem dúvida, o jurista deve
buscar o sentido da lei e deve ater-se ao que a lei
prescreve, mas necessita interpretá-la em função do
direito, isto é, do justo no caso específico.
Pouco mais é preciso dizer das leis - em uma in - 1. A regra da boa cidadania
tradução como esta - no que se refere a sua faceta
jurídica, no que diz respeito a sua relação com o di- É possível que, ao falar de faceta política" das
/1

reito; no entanto, também é interessante contem- leis, se pense logo nos partidos políticos, nas elei-
plá-las em sua faceta política, ao mesmo tempo que ções ou nas manobras dos homens da política para
são examinados outros aspectos das leis que o juris- atingir seus objetivos. É bom desfazer o engano. As-
ta deve conhecer. pecto político não se refere - pelo menos de modo
direto e principal - a essas coisas. Política é a arte de
governar a sociedade, de levá-la a seus fins, de con-
seguir o desenvolvimento pacífico da vida de povos
e nações, algo que está muito além do que, mais do
que política, é politicagem. A lei relaciona -se com a
política no mais nobre sentido da palavra: a arte de
conduzir a sociedade para o bem comum.
Dizíamos antes que a lei é uma norma ou regra
de conduta social obrigatória, que determina a par-
te que corresponde a cada um em relação ao bem
da sociedade. É a regra da boa cidadania no que diz
respeito à justiça legal. Quem é um bom cidadão?
Bom cidadão é quem se comporta de modo que coo-
102 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 103

pere para que a sociedade atinja seus fins, isto é, lo de sociedade provém da própria sociedade, me -
quem contribui para o bem comum conforme lhe diante o desenvolvimento da vida social, que se
corresponde. Estamos dizendo a mesma coisa que plasma em costumes. Outras vezes, trata-se de um
antes com outras palavras: é bom cidadão quem projeto social que tem sua origem em ideologias
cumpre com a parte que lhe cabe em relação ao bem minoritárias. Nesse segundo caso, as leis podem pro-
comum da sociedade. Pois bem, a regra da boa ci- vocar tensões, inclusive graves, se gerarem a resis -
dadania - no que se refere à justiça - é a lei. Isso tência do corpo social.
destaca a função das leis, que não é outra que fazer Por isso, a arte de fazer leis, que é uma parte da
dos homens bons cidadãos. prudência política, sempre considera a situação real
Não pensemos, contudo, que a lei faz bons cida- da sociedade, parte da realidade social. Não tenta mu -
dãos como faz a educação, isto é, formando -os mo- danças rápidas e espetaculares - que não costumam
ralmente, embora em parte cumpra também essa acontecer, exceto em muito raras circunstâncias his -
função. Uma lei não é uma sentença moral nem um tóricas - nem age com ímpeto. Restringe-se à lei do
Código é um tratado de ética. A lei faz bons cida- progresso e da mudança graduais. A razão consiste
dãos, segundo a justiça, regulando sua conduta social em que toda lei, ao ser cumprida, cria nos cidadãos
externa. Um bom motorista se faz com a aprendiza- os hábitos - os usos e costumes - correspondentes.
gem e com a prática; a lei, por outro lado, faz bons Nem criar esses hábitos nem introduzir outros no -
motoristas no sentido de determinar - mediante vos é coisa de um dia; custa tempo e esforço. Se a lei
mandatos - o que cada motorista deve fazer nas di- regula a vida dos cidadãos de maneira muito dis-
ferentes circunstâncias. Quando todos os motoris- tante da que até então vigorava, é produzido um
tas cumprem o Código de Trânsito, consegue-se um choque violento, que costuma terminar com o fra-
tráfego de veículos fluente e correto (uma ordem casso do legislador.
social nesse sentido) e, com isso, uma boa cidadania Em pequena escala, todos temos experiência de
no que se refere a esse aspecto. que as mudanças em regras de conduta consolida-
Isso significa, sem dúvida alguma, que as leis das causam no momento um certo desconcerto, e
modelam a sociedade e, conseqüentemente, os ci- até um tempo depois os novos hábitos não se fir-
dadãos, de acordo com um projeto de sociedade. As mam. Se, por exemplo, as linhas e os pontos dos ôni-
leis pressupõem no legislador uma idéia sobre a bus de uma cidade são alterados, é comum que nos
sociedade ou sobre a matéria específica que é obje - primeiros dias - mesmo tendo sido suficientemente
to de uma lei. Muitas vezes, esse projeto ou mode - divulgado - não sejam poucos os usuários <leso-
104 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 105

rientados e confusos; inclusive depois de alguns me - Faz parte da prudência jurídica - da arte do di-
ses podem ser encontrados distraídos que, pela for - · reito ou jurisprudência - aplicar as leis de acordo com
ça do hábito, esperam inutilmente o ônibus em um a realidade social. Trata-se de não burlar a lei e, ao
antigo ponto ou confundem os ônibus. O mesmo mesmo tempo, de não introduzir perturbações na
acontece quando são modificadas as mãos de tráfe - vida social. A lei regula e conforma a realidade so-
go dos carros, alguns trâmites burocráticos ou coi- a
cial, e, por isso, vida social deve acomodar-se à lei;
sas do gênero. Se isso acontece em pequena escala, do contrário, a lei seria descumprida. Mas diz asa-
é fácil imaginar o que ocorre quando as mudanças bedoria popular que "o melhor é inimigo do bom".
introduzidas afetam importantes aspectos do mo- O jurista deve ter a perspicácia de saber até onde se
delo de sociedade. Não podemos estranhar que, pode chegar na aplicação da lei, qual é o coeficiente
poucos anos depois de instaurada a democracia na de acomodação da realidade social para que, apli-
Espanha, fossem muitos os que se queixavam de que cando-se a lei, esta seja fator de ordem e progresso,
persistiam hábitos não democráticos entre os políti- e não de perturbação. Se chegasse a esse último
cos e os cidadãos. Em coisas desse estilo, só um lon- caso, a lei deixaria de ser razoável e se transformaria
go tempo dá consistência a mentalidades e formas em um fator espúrio da ordem social.
de agir. Essa acomodação da lei à realidade social supõe
O cumprimento das leis vai criando no cidadão uma acomodação progressiva da realidade social às
hábitos e mentalidades; muitas vezes sem que per- leis, de modo que podem ocorrer situações nas
ceba, o cidadão vai se conformando com as leis e se quais a lei passe à frente da realidade social. Porém
acomodando a elas, de forma que, assim, a lei faz não em poucos casos a realidade social é mais evo-
bons cidadãos (ou maus, se a lei for má). lutiva e progressiva que as leis. Quando isso acon-
tece, aparece a interpretação progressiva das leis; es-
sas vão sendo aplicadas de acordo com a evolução
2. Interpretação da lei e realidade social
da realidade social, permitindo que as mesmas leis
O fato social descrito evidencia quão necessárias sirvam ao bem da sociedade, sem defasagem entre
são a paciência nos políticos e a prudência nos juris- lei e realidade. Assim se explica que algumas leis te-
tas. Como esta não é uma introdução às Ciências nham conseguido durar séculos, sem necessidade
Políticas, mas à ciência do Direito, deixaremos a pa- de mudá-las.
ciência de lado e, em compensação, acrescentaremos Em nossa época estamos tão habituados às mu -
algumas palavras sobre a prudência dos juristas. danças que mal podemos apreciar o valor da estabi-
106 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 107

lidade das leis. No entanto, e sempre sem exagerar- tação das leis à realidade social. Não estamos dian -
º imobilismo não faz parte da prudência do jurista, te de duas coisas contrárias? O que deve se adaptar
antes, sim, de sua imprudência - , o fato de as leis a quê? A verdade é que não há contradição entre
serem estáveis é um grande benefício e costuma ser ambas as coisas. A realidade social é regulada pela
mostra de sabedoria dos legisladores e dos povos. lei, e, nesse sentido, é a vida social que se adapta à
Pense o leitor o que é mais invejável: a estabilidade lei; mas, por outro lado, essa regulação deve ser fei -
política norte -americana, que, apesar de os Estados ta de modo que a vida social se desenvolva de acor-
Unidos serem uma das sociedades mais evoluídas, do com seu estado e suas condições. Um exemplo
conheceu somente uma Constituição em duzentos pode servir de esclarecimento. Para corrigir os pés
chatos de uma criança é costume usar sapatos orto-
longos anos, ou a instabilidade espanhola, que des-
pédicos. É característica desses sapatos ter uma for-
de 1812 até hoje já teve oito ou dez Constituições -
ma tal que, ao andar, exercem pressão sobre a plan-
contando ou não algumas leis fundamentais como
ta do pé e vão curvando o osso correspondente até
constitucionais -, além de algumas reformas (e não
conseguir sua forma normal. A lei pode ser compa-
falta quem já deseje introduzir algumas mudanças
rada a esses sapatos ortopédicos; sua função é regu-
na de 1978). Quando se observam povos com gran-
lar, canalizar a realidade social e ir conformando-a
de estabilidade em suas Constituições, fala-se de
de uma determinada forma. Assim como o sapato
sua sabedoria política, e o mesmo ocorre com as ou - ortopédico dá forma ao pé, a lei deve dar forma à so-
tras leis. É verdade que chega um momento em que ciedade regulada. No entanto, não é menos certo
as leis devem ser emendadas, reformadas ou modi- que o sapato ortopédico deve se adequar ao pé. Se o
ficadas, e isso também faz parte da sabedoria de um paciente calça número 25, não pode usar sapatos nú-
povo ou do legislador, porém a instabilidade das mero 42, por mais ortopédicos que sejam; além de
leis ou sua freqüente emenda ou reforma não é boa. fazê-lo parecer um palhaço, mais o prejudicariam que
A adaptação das leis - quem duvidará que a Consti- curariam. Assim também a lei deve estar de acordo
tuição americana sofreu uma adaptação aos tem- com a situação própria da realidade social.
pos, além de terem sido acrescentadas algumas
emendas? - deve ser obra principalmente da inter-
pretação progressiva. 3. A lei e o bem comum
A essa altura é bem possível que uma pergunta
esteja rondando a mente do leitor. Falamos de uma Já vimos que as leis têm por função fazer bons
adaptação da realidade social às leis e de uma adap- cidadãos e mais adiante voltaremos a essa questão.
108 O QUE É O DIREITO?
A LEI NA SOCIEDADE 109
Mas agora, em vez de continuar com a boa cidada- quanto do exercício do governo em favor do bem
nia, será melhor expormos qual é a finalidade das comum. Quando um governo trabalha em favor do
leis. A quem se dirigem as leis? Para que se preocu- bem comum da sociedade e respeita os direitos na-
pam em fazer bons cidadãos? turais do homem, sua legitimidade de exercício é
As leis são um instrumento da arte política, que incontestável, e a questão da forma de governo ou do
consistem em regras ou normas gerais e obrigatórias regime situa-se na ordem das preferências políticas
que ordenam a vida social, regulando condutas e es- e não na da justiça.
tabelecendo ou organizando as diferentes estruturas Por sua vez, as leis devem se destinar ao bem
sociais. Pois bem, a arte da política é a arte de gover- comum, devem estabelecer aquilo que é de interes-
nar a sociedade, e governar consiste em conduzir as se geral para a sociedade. Isso não significa que as
coisas governadas a seu fim. O capitão governa a leis não possam àutorgar certos benefícios aos par-
embarcação, conduzindo-a do porto de partida ao de ticulares. Não poucas leis destinam-se a outorgá-los:
chegada. Por conseguinte, a finalidade da arte da po- v.g., subvenções a determinadas empresas, facilida -
lítica é a mesma que a da sociedade, aquela que co- des de crédito aos agricultores, isenções fiscais às
nhecemos com o nome de bem comum. Essa, e não fundações e obras não lucrativas etc.; porém deve
outra, é a finalidade das leis; as leis são regras que tratar-se de benefícios que revertam no bem comum.
ordenam a vida social em relação ao bem comum. Se, por exemplo, os preços agrícolas são subvencio-
Por ora, isso tem uma conseqüência importante: nados, deve ser porque é de interesse comum que a
as leis não existem para a utilidade particular dos agricultura do país não se deteriore; caso contrário,
políticos nem de alguns determinados grupos de ci- se trataria de um delito de malversação de fundos
dadãos. O governo que cai no vício de governar para públicos. Se não houvesse a razão do bem comum,
a utilidade privada de quem governa ou de grupos a finalidade das leis seria subvertida, de modo que
de particulares exerce ilegitimamente suas funções; as leis destinadas a satisfazer interesses particulares
é um governo ilegítimo com ilegitimidade de exercí- seriam injustas. Esse é um aspecto a ser muito con-
cio. Igualmente, as leis que têm esse vício são leis siderado, para evitar decepções; nós, cidadãos, acha-
injustas. Esse é um critério fundamental para avaliar mos, às vezes, que o governo e as leis deveriam re-
a legitimidade dos regimes políticos e dos governos. solver nossos problemas pessoais. Gostaríamos de
A legitimidade não depende tanto do regime políti- uma espécie de Estado providência que cuidasse
co adotado - que pode ser variável em função das de nossa felicidade particular, que atendesse a nos -
circunstâncias históricas que um país atravessa - sos desejos e esperanças pessoais, e muitas vezes
110 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 111

nos queixamos de que as coisas não são assim. entram em conflito; assim, por exemplo, declarar al-
Nossa queixa não é razoável. Os problemas pes- guns terrenos como área verde pode prejudicar os
soais, nossos interesses particulares nós mesmos de- interesses econômicos de seus proprietários, que ve-
vemos resolver e atender; para isso somos adultos rão diminuir muito o preço deles. São situações que
dotados de inteligência e sobretudo de autonomia e não têm outra solução a não ser sacrificar o interes-
liberdade. Buscar a tutela e a providência do Estado se particular pelo interesse geral; deve-se procurar,
para nossos assuntos particulares é ser displicente com naturalmente, que esse sacrifício seja o menor possí-
vel, mas não há alternativa.
nossa condição de pessoas livres, advogando por um
Contudo, pode ocorrer outra circunstância dife-
coletivismo que despersonaliza. As leis, como o Es-
rente, devida não à finalidade das leis, mas ao cará-
tado e o governo, existem para conseguir o bem-estar
ter geral da linguagem com que estão redigidas. O
geral, a felicidade comum ou, se preferir, as condi-
legislador não pode prever todos os casos possíveis
ções sociais necessárias e convenientes para que os ci- aos quais a lei será aplicada, e, portanto, ao redigi-la
dadãos obtenham seu desenvolvimento pessoal. Aca- considera o que normalmente acontece e não situa-
bamos de mencionar o desenvolvimento pessoal para ções particulares. Nessas situações particulares a lei
destacar que, em síntese, o bem comum e o interesse pode apresentar aspectos cuja aplicação leve a solu-
geral servem à pessoa; as leis e a sociedade não se de- ções que venham a ser excessivamente duras ou que
sinteressam do bem particular e pessoal. É verdade, prejudiquem o que a lei tenta defender. O que fazer
mas sua missão termina nessas condições sociais neces- nesses casos? O que se deve fazer é não cair no
sárias e convenientes; passando disso, é a pessoa, a fa- lema leguleio de a lei é a lei" ou dura lex sed lex".
/1 /1

mília e·as comunidades menores que devem assumir A lei deve ser interpretada e aplicada mais em seu
seu papel principal. Trata-se, pois, de que as leis e a espírito do que conforme sua letra. Essa forma de
sociedade visem o bem das pessoas, mas trata-se interpretar a lei chama-se eqüitativa e a virtude que
também de que não invadam campos alheios. leva a ela recebe o nome de eqüidade.
Uma conseqüência dessa finalidade das leis é
que, ao destinar-se ao bem comum, atendem ao que
é geral na sociedade, de modo que, em alguns ca- 4. Racionalidade da lei
sos, podem lesar interesses particulares. Quando
isso acontece, é preciso saber distinguir duas situa- O fundamento da eqüidade reside no fato de
ções diferentes. Algumas vezes ocorre que o interes- que as leis devem ser entendidas como regras razoá-
se geral e o interesse particular de alguns cidadãos veis. Essa é uma característica básica de tudo quanto
112 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 113

se refere à lei, a sua aplicação e ao uso dos direitos: mas apenas porque mandam. O chefe é o chefe. E
é preciso ser razoável. Por isso, um dos traços mais pode acontecer que quem manda adote também
necessários para o jurista é o de ter bom senso. Poder- essa atitude: os que estão sob seu comando devem
se-ia dizer que a arte do jurista é a arte do bom sen- obedecer, seja qual for o mandado, pela simples ra-
so aplicada às questões legais e de justiça. Por isso, zão de que os que mandam são eles. É preciso fazer
não é de estranhar que em tempos tumultuados a vontade do chefe. Essa atitude vital pode ser ge -
para a Universidade, os estudantes de Direito se dis- neralizada e elevada à categoria de filosofia ou teo -
tingam - em geral, sempre há exceções - por suas ria da conduta humana, do poder social e das leis.
posições equilibradas e sejam pouco dados aos ex- E, de fato, há séculos adquiriu a categoria de teoria
tremismos; costumam ser bastante razoáveis e ter o filosófica: o voluntarismo. Segundo o voluntarismo,
suficiente bom senso para não se deixar arrastar as leis expressam a vontade do legislador. Mandar
para posturas ilusórias ou desmedidas. A arte que consiste na capacidade - outorgada pela lei, con-
estão aprendendo lhes ensina que na vida social é quistada pela força ou espontaneamente aceita por
preciso agir conforme a razão e com mesura, com um grupo - de impor a vontade; é um ato de vontade,
racionalidade. que contém um querer. Em alguns casos, mandar
Há duas maneiras de se comportar na vida, tan- será legítimo e em outros não, mas sempre consiste
to no tocante à vida pessoal como no que se refere à em um ato de vontade .
vida política e social. Uma postura consiste em se Segundo o voluntarismo, as leis expressam a
guiar pelo que a pessoa quer: faço as coisas que que- vontade do legislador e valem como expressão des-
ro e porque quero. É a atitude voluntarista, que dá sa vontade. Isso tem conseqüências na forma de
prioridade ao que a vontade deseja. Costuma-se di- entender as leis e de interpretá-las? Tem, e muito
zer que as pessoas que agem assim não atendem a importantes. De acordo com o voluntarismo, o in-
razões. No fundo todos agimos, algumas vezes, des- térprete da lei deve se limitar a captar a vontade do
sa maneira; fazemos algo não porque está certo ou legislador, sem formular questões sobre sua razoa-
errado, mas porque nossa vontade está apegada a bilidade. Aquele que obedece deve cumprir o que
isso, e, se alguém nos critica, é provável que fique - quis o legislador, independentemente de ser bom ou
mos chateados e digamos que fazemos isso "por- mau. Mais ainda, levando a idéia ao extremo, na
que nos dá vontade". Essa atitude voluntarista é realidade não há coisas boas ou más em si mesmas,
aplicada não raras vezes aos que mandam. São obe- mas sim são boas enquanto são queridas por quem
decidos não porque seja razoável o que mandam, manda e más enquanto são rejeitadas por ele. Essa
114 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 115

mentalidade voluntarista é a que explica - é fato co- O voluntarismo - e seu fruto, o positivismo -
nhecido - que leis tão aberrantes como as nazistas não é apenas aliado de formas de governo totalitá-
fossem aplicadas pela totalidade dos juízes na Ale - rias. Já vimos que pode ser uma atitude pessoal e é
manha hitlerista, juízes, de resto, nem melhores uma teoria filosófica compatível também com um
nem piores pessoalmente que os de outros países. regime democrático. Na democracia de cunho vo -
Porém, não creia o leitor que o voluntarismo é teo- luntarista varia quem é o legislador em relação aos
ria de nossos dias ou aplicável apenas ao exemplo regimes totalitários, mas não o modo de entender
que apresentamos. É teoria muito antiga e nem se- as leis. Nesse caso, a peça-chave é o chamado dog-
quer faltaram autores medievais que a aplicassem ma da soberania popular. Nenhum critério do bem
aos Dez Mandamentos; mentir, roubar, matar etc. ou do mal existiria fora dos ditames da maioria, da
não seriam coisas más em si mesmas, mas tão-so- vontade do povo. A moral e o direito natural são
mente porque Deus as proibiu, de modo que Deus,
substituídos pela pesquisa; o que as pesquisas mos-
segundo seu livre-arbítrio, poderia mandar que
tram como opinião majoritária é o critério que o le-
odiássemos o próximo, que roubássemos ou matás-
gislador deve seguir.
semos etc. Para o voluntarismo, não há coisas boas
Como no fundo nós, seres humanos, gostamos
ou más em si mesmas, mas apenas coisas manda-
de fazer o que queremos, o voluntarismo nunca dei-
das ou proibidas por quem manda, sendo o Decálo-
xou de ter adeptos, e em nossos dias tem uma infi-
go a expressão de uma vontade livre de Deus. Com
essas idéias, se não se considera Deus, chega-se ne - nidade deles. Há apenas um "pequeno" detalhe: as
cessariamente ao positivismo jurídico. Toda lei, en- coisas não são como queremos, mas sim como são.
quanto vinda de um legislador - mesmo que seja Todos nós gostaríamos que o fogo, que serve para
absurda ou injusta, em palavras dos próprios positi- assar a carne quando fazemos um churrasco com os
vistas - , é válida e verdadeira lei. Por conseguinte, amigos, respeitasse nosso corpo se nos víssemos
não há verdadeiros direitos do homem preexisten - envolvidos em um incêndio. Quem põe uma fecha -
tes à lei, e toda a ordem jurídica tem por centro so- dura em uma porta acha muito boa a dureza e rigi-
berano os ditames da lei. Se duas pessoas fazem um dez do aço, que impede a entrada de indesejáveis
contrato, o contrato é válido porque a lei lhe dá efei- no quarto fechado, porém clama contra ela se fica
tos jurídicos; se o costume gera uma regra de direito fechado dentro do quarto por um descuido, e dese-
é porque o legislador aprova; e, decididamente, jaria com toda a alma que, em tal ocasião, o aço fos -
toda a arte do jurista resume-se a subsumir os fatos se mole como a manteiga. Nossa vontade é capri-
nos enunciados da lei. chosa (cega, dizem os filósofos), e as coisas não são,
116 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 117

elas têm algumas leis que as regem. As coisas são que emanam da índole pessoal do homem é o que
como são. Por isso, o homem deve agir segundo as constitui a ordem moral e jurídica natural, expressa
coisas, de acordo com as leis- com a ordem - que as na lei natural. A pessoa é um ser que, por sua natu-
regem. Quando faz assim, o homem pode dominar reza, se realiza no conhecimento e no amor; por-
seu entorno e as coisas lhe servem. Se respeitar as tanto, a verdade e o bem constituem seu norte e sua
leis do Universo, o homem poderá voar e inclusive meta objetivos, dos quais depende objetivamente -
chegar à Lua; se não as respeitar, provocará conse- por si, independentemente de querer ou não - que
qüências nocivas, se ferirá e até mesmo se matará. o homem se comporte como homem, ou se degrade
Agir conforme essa ordem que rege as coisas é com - se for contra eles. Do mesmo modo, depende deles
portar-se racionalmente, isto é, segundo a razão, que que a sociedade humana atinja seus fins ou, pelo con-
é a que conhece essa ordem e determina ao homem trário, se torne decadente e desumana. Essa ordem
o que deve fazer de acordo com ela. moral e jurídica natural é conhecida pela razão e ex-
Pois bem, o homem é como é, não só no plano fí- pressa em forma de enunciados ou sentenças, que
sico e biológico, mas também no moral. O homem contêm mandatos ("deve-se agir assim"), permissões
não é, no âmbito moral, capricho ou pura liberdade. ("pode-se agir desse modo") ou proibições ("não se
O homem é pessoa, e ser pessoa implica uma digni- deve fazer isso"). Seguindo essa ordem moral e jurí-
dade, um modo específico de ser, que faz com que dica, o homem comporta-se racionalmente.
haja coisas em seu agir - como já vimos antes - que As leis da sociedade (as quais temos chamado
sejam boas ou más em si mesmas, independente- de leis, sem mais especificações) também devem ser
mente de que ele goste ou não, de que queira ou não. racionais. E mais, existem e se justificam como dita-
Também aqui - e ainda com mais força do que nas mes racionais do legislador. Por sua natureza, são
coisas físicas - nossa vontade é caprichosa: acha- ditames da razão, que estabelecem uma ordem social
mos muito ruim que nos enganem, mas gostaría- determinada entre várias possíveis, conforme sejam
mos que nossas mentiras não fossem moralmente as coisas. Isso tem uma importante conseqüência:
más; as defensoras do aborto podem pedir aos gri- como nós, seres humanos, somos pessoas, cujo ser
tos o aborto, porém bradam com a mesma força se exige agir de alguns modos determinados e que seja
alguém mata uma delas ou simplesmente a maltra- tratado não de acordo com caprichos, mas confor-
ta. Perante essa atitude, vale aqui o dito popular: me seus direitos naturais - já falamos deles-, as leis
"ou jogamos todos ou rasgamos o baralho". Aque- ou são racionais ou se transformam em um fator es-
las exigências, em relação a si mesmo e aos outros, púrio da ordem social. As pessoas não são manda-
118 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 119

das ou tratadas como o legislador quer, mas como não entrar no jogo. Dito de outro modo, as leis são
pessoas; caso contrário, "rasgamos o baralho", e que passíveis de obediência quando seu conteúdo é legíti-
as "leis" sejam cumpridas pelo legislador. Somos mo. Porém a legitimidade das leis não se esgota com
pessoas antes de ser cidadãos. seu conteúdo; para que obriguem os cidadãos é ne -
Sem chegar ao caso extremo de ter que rasgar o cessário que procedam de uma autoridade compe-
baralho, o jurista sempre deve interpretar a lei racio- tente. Nem todo mundo pode determinar leis, bem
nalmente, de acordo com o que é racional e o que é sabemos. Todos gostaríamos de impor à sociedade
razoável em cada momento, precisamente porque as leis que quiséssemos, mas também sabemos que
assim exige a íntima índole racional das leis. Por isso, seria vã pretensão. Se um cidadão qualquer se de -
o intérprete da lei não olha apenas a lei, fixa também dicasse a promulgar leis, no começo despertaria a
seu olhar na realidade social e nas circunstâncias do curiosidade para conhecer quem seria esse extrava-
caso específico e aplica razoavelmente a lei ao caso. gante, e inclusive é possível que o entrevistassem
Daí que, quando a lei produz efeitos nocivos em um na TV, mas, no final, ou o trancariam em um hospí-
caso específico, recorre à eqüidade. Os juristas são cio ou ficaria como um tipo curioso, um tanto desa-
pessoas razoáveis e supõem sempre que o legisla- justado da cabeça. O que não ocorreria a ninguém
dor seja também (e se não for, procuram torná-lo ra- seria levar a sério tais "leis". Fazer as leis não é coi-
zoável, porque o bem das pessoas e da sociedade vem sa de particulares. Embora os particulares sejam
antes do capricho do legislador). muito sábios e muito capazes de fazer leis excelen-
Ah, já ia me esquecendo! Assim como a atitude tes, o máximo que podem fazer são projetos de lei.
de dar prioridade à vontade é chamada de volunta - Ao longo da história houve grandes pensadores que
rismo, quando elevada à teoria, a atitude de se com- apresentaram um sistema de leis, que julgaram ser-
portar racionalmente, se for feita uma teoria disso, é vir de modelo para a sociedade. Platão e Cícero têm
chamada intelectualismo. obras justamente célebres a respeito; e outros tam-
bém fizeram isso. Porém são isso livros de filosofia
ou pensamento político, não leis. Se o Governo de -
5. Autoridade competente cide construir rodovias, fazer pontes ou instalar vias
férreas, costuma contratar uma empresa para reali-
Vimos que se as leis não forem direcionadas zar essas atividades. Por outro lado, não pode - não
para o bem comum e não forem racionais, nós, ci- teria validade - encarregar uma empresa de fazer e
dadãos, estamos legitimados a "rasgar o baralho", a promulgar as leis. Com certa freqüência, quem tem
120 O QUE É O DIREITO? A LEI NA SOCIEDADE 121

que legislar encarrega o projeto de uma lei a juris- vo Ministro etc. Mas este não é o momento de en-
tas eminentes; assim foram feitos grandes textos · trar nesses detalhes, e sim de ver o ponto que esta-
legislativos, como o Dígesto ou as Pandectas de Jus- mos expondo de uma perspectiva geral.
tiniano, as Decretales de Gregório IX ou o Código Formular leis corresponde a quem tem sob sua
de Napoleão. Porém, os juristas fizeram e fazem o responsabilidade a direção da vida social. E como
trabalho material de recopilar ou redigir os textos. essa direção consiste na ordenação para o bem co-
O valor de lei vigente, no entanto, provém do le - mum, corresponde à própria sociedade, por si ou
gislador que promulga as leis. Por isso são conhe - por meio de seus órgãos de governo. Algumas vezes
cidas pelo nome do legislador - ele é seu autor -, e as leis são produzidas pelo conjunto da comunidade
não pelo do jurista ou juristas que materialmente de duas maneiras. Uma delas, através de atos for-
as redigiram. As Decretales foram recopiladas por malizados como atos legislativos: o referendo e o
São Raimundo de Pennafort, mas como texto le- plebiscito. Outras vezes as leis surgem da sociedade
gislativo seu autor foi o papa Gregório IX, e com pelo costume; quando, dados os requisitos estabele-
seu nome foram e são conhecidas, embora não te - cidos, cria-se o hábito ou costume de agir de um de-
nha feito mais que estampar sua assinatura na bula terminado modo, esse costume torna-se lei. A capa-
de promulgação. cidade de gerar leis que a comunidade humana tem
As leis são regras de conduta dos cidadãos e de
não surge - como pretendem certos autores moder-
organização da sociedade, cuja finalidade é o bem
nos - de uma lei prévia determinada por quem tem o
comum. São elas que assinalam a parte de cada um
poder na sociedade; é, ao contrário, uma capacidade
em relação aos fins sociais; portanto, formular leis
original, que corresponde à comunidade como sujei-
não corresponde aos particulares, mas a quem tem
to primário do poder de auto-regulação. Coisa dife -
por função ordenar à sociedade o bem comum, a
rente é que, assim como ocorre com os atos dos ór-
quem tem o governo da sociedade. Cada país pos-
gãos de governo, a faculdade de determinar leis pró-
sui seus próprios órgãos legislativos: o Parlamento,
o Rei ou o Presidente etc. Na Espanha, as leis são pria da comunidade seja regulada e se exijam alguns
aprovadas pelas Cortes e sancionadas pelo Rei, os requisitos específicos para seu exercício.
decretos-lei são assinados pelo Rei com o Presiden - O mais comum não é essa forma de se produ-
te do Governo, os decretos - além da assinatura real zir a lei. Cada comunidade tem seus órgãos espe-
- levam a assinatura do Ministro correspondente, as cíficos de governo, entre cujas faculdades destaca-
Ordens ministeriais são determinadas pelo respecti- se a de formular leis ou normas de diversas cate -
122 O QUE É O DIREITO? A LEl NA SOCIEDADE 123

gorias. Nesse caso, as leis emanam de quem go- fim, passa pelo Plenário do Congresso e do Senado.
verna a sociedade. Poderíamos dizer que a mais Em todo esse processo, a lei é projeto (esboço, ante-
importante função do governante é dar à socie- projeto, primeiro projeto, segundo projeto etc.). No
dade boas leis, porque são elas que indicam os pa- final, a lei é aprovada. Até aqui foi posto em jogo o
drões da sociedade, que conduzem os cidadãos ru- processo racional de encontrar e fixar o texto da lei e
mo ao fim social e que modelam ou cunham a vida a decisão de passar a ser lei. Porém ainda não é lei.
social. As leis organizam e estruturam a sociedade, Começará a ser no momento em que quem tem essa
de modo que se pode dizer que a sociedade será o função realizar o ato de intimação à sociedade, aque-
le ato ou procedimento pelo qual a lei passa a ser
que suas leis forem.
imposta à sociedade como lei. Esse ato chama-se
promulgação e é realizado através de alguns meios
6. O processo legislativo determinados de antemão, de modo que não reste
dúvida sobre sua existência e sobre o conteúdo da
As leis são instituídas - isto é, começam a ser lei. Na Espanha, as leis dos órgãos do Estado são
leis ou regras obrigatórias - quando são promulga- promulgadas mediante sua inserção no diário ofi-
das; por isso, o ato fundamental no processo de nas- cial chamado Gaceta de Madrid e também Boletín
cimento de uma lei é a promulgação. A lei, dizíamos, Oficial del Estado (B.O.E.).
procede da razão. Nossa razão, quando atua na or- Uma vez promulgada a lei, costuma-se deixar
dem prática (a razão prática), é capaz de descobrir e um prazo para que os interessados tomem conheci-
inventar as regras possíveis do agir humano e da or- mento e adotem as medidas pertinentes. Durante
ganização social. As leis, primeiramente, são proje- esse tempo, a lei - que já é lei - tem sua força de
tos e passam por um processo de elaboração, que obrigar suspensa; está, por assim dizer, de férias,
consiste em descobrir a norma possível, discuti-la, sem exercer sua função; esse prazo é denominado
aperfeiçoá-la etc. Todos somos informados, pelos vacatio legis ou vacância da lei. Terminado o prazo, a
meios de comunicação, desse processo. Os gabine- lei entra em vigor, começa sua vigência, isto é, obriga
tes de estudo dos órgãos públicos ou dos partidos para todos os efeitos. É habitual, em nosso país*,
políticos, as comissões nomeadas para isso ou outras que o prazo de vacância das leis seja de vinte dias,
instituições ou grupos do gênero redigem um pri- mas pode ser menor (ou maior), e com a pressa que
meiro projeto. Esse projeto, por sua vez, é estudado
pelas Cortes nas Comissões correspondentes e, por *A Espanha.
124 O QUE É O DIREITO?

às vezes acomete nossos políticos não é raro, nes - Capítulo VIII


tes últimos tempos, que as leis tenham vacância não As leis e o homem
superior a um dia, ou sejam deixadas - pelos cida-
dãos - sem esse merecido descanso, mesmo que
seja de um só dia, para que possam ser lidas e en-
tendidas.

1. Premissas

Já que vimos as leis em geral e as leis na socie -


dade, convém agora que digamos alguma coisa so-
bre a influência das leis na pessoa. Em outras pala-
vras, precisamos falar das relações entre as leis e a
moral. Com isso não nos descuidaremos do objeto
destas páginas; pelo contrário, entraremos em um
assunto de especial importância para o homem de
leis, de forma que dele terá que se ocupar mais ve -
zes do que à primeira vista pode parecer, a não ser
que faça o que bem quiser e só se interesse em ser
um perito em mecanismos legais, mas não um ju-
rista. O jurista é, por ofício, um humanista, possui
um saber cujo objeto é o homem em sociedade e,
portanto, possui uma arte que, decididamente, está
direcionada para o homem. Com isso, retomamos a
questão da boa cidadania e da função das leis.
Dizíamos anteriormente que as leis fazem bons
cidadãos, conformando -se com sua boa conduta
126 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 127

externa. Também dizíamos que o jurista não é um com o que a questão se apresentava de forma dife-
moralista, pois a ele interessa, por ofício, a obra da rente. Mesmo assim, os juristas nunca foram con-
justiça, sem entrar nas intenções de quem realiza fundidos com os moralistas, exceto em um período
essa obra. Tudo isso é verdade, mas é de primordial da Alta Idade Média dominado pela teoria do agos-
importância que não haja confusão a respeito. Foi tinismo político, no qual quase tudo se confundia (a
informado antes que, já que interessa conhecer a fa- Igreja e o Estado, as leis e a moral, os grêmios e as
ceta política das leis, entraríamos nela e, portanto, confrarias etc.). Em segundo lugar, deve -se estar in-
não nos restringiríamos estritamente ao que as leis formado de que Thomasius e seus seguidores, quan -
têm de direito, isto é, de causa e medida do direito do separaram o que eles entendiam por moral e por
(do justo). No entanto, a relação das leis, em sua direito (que não é o que antes se entendia como
vertente política, com a moral não é a mesma que tal), confundiram o direito com a lei e o jurídico das
a indicada; e política e ética não se relacionam de leis com o político dessas. Com o quê deixaram tão
igual maneira a que se relacionam a ciência do di- emaranhados os fios da meada que, a partir de en-
reito e a ciência da moral. Além disso, é freqüente tão, a questão das relações entre moral e direito
que os tratadistas de Filosofia do Direito não dife- transformou-se em um intrincado labirinto.
renciem o jurídico e o político das leis, e sim que Este não é o momento de tentar resolver tão ár-
com os termos direito e jurídico façam uma mistura dua questão, mas se o leitor se animar a me acom-
de ambos os aspectos da lei, razão pela qual é inte- panhar nas linhas que se seguem, procurarei pelo
ressante que façamos um esforço para entender e, menos fazer com que não fique preso nos fios ema-
na medida do possível, ver claramente a distinção. ranhados da meada e que passe pelo labirinto o
Quem tem oportunidade de ler manuais de his- mais satisfatoriamente possível. Vamos começar o
tória do pensamento jurídico e político - há excelen- percurso.
tes - fica com a idéia de que, antes do século XVIII,
moral e direito se confundiam, e que foi um autor
do Iluminismo - com precedentes em Hobbes e al- 2. Natureza das coisas e natureza das ciências
guns outros -, chamado Christian Thomasius, que
separou direito e moral. Porém, diante disso, é pre- A primeira precaução, elementar, que é preciso
ciso estar prevenido de duas coisas: a primeira é que, ter é lembrar que as ciências e as artes não totalizam
antes do século XVIII, a moral e o direito não eram seus objetos. Não tentam conhecê-los nem realizá-
entendidos como foram definidos por Thomasius, los em toda sua potencialidade, porque sabem que
128 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 129
não é possível. Limitam-se a contemplar os objetos do direito é uma parte da Filosofia ou da Teologia
ou a realizá-los em um aspecto ou em uma perspecti- morais - e se perguntar se o direito é ou não uma
va, deixando o resto para outros saberes. São mo- realidade moral.
destos por serem realistas. Para um médico - por A segunda precaução consiste em não confun-
exemplo - interessa o ácido acetilsalicílico enquanto dir o direito com a lei. Uma coisa é investigar se o
tira a dor de cabeça, mas, na qualidade de médico, direito é de natureza moral e outra é elucidar se as
não lhe compete nem saber a estrutura molecular, leis pertencem à ordem moral.
nem os processos de fabricação, nem os problemas
de mercado dessa substância; para isso existem os
físicos, os químicos e os empresários. O médico não 3. A realidade moral
é o químico, embora ambos estudem a mesma subs-
tância; um entende de como fabricar o ácido acetil- Feitas as advertências anteriores, a primeira ques-
salicílico e o outro de quando deve receitá-lo como tão a expor é a de se o direito e as leis são de nature-
remédio. Esse fato nos leva a não confundir a coisa za moral; estamos no plano não das ciências, mas
objeto do saber com a perspectiva pela qual se estu- das realidades.
da, nem a acreditar que uma ciência nos diz tudo O que chamamos de ordem moral ou ordem
sobre a coisa, pois nos fala apenas de um aspecto. das realidades morais? Há quem entenda que a or-
Como a mesma coisa pode ser estudada por di- dem moral é a ordem das condutas humanas em re -
ferentes ciências, não se deve confundir a natureza lação a Deus ou, de outro ponto de vista, a ordem
das coisas com a natureza das ciências. A conduta hu- da relação do homem consigo mesmo. Porém essa
mana, por exemplo, pode ser estudada por ciências definição é dada confundindo a realidade com a pers-
filosóficas, como a Filosofia moral, e por ciências pectiva da Filosofia e da Teologia morais. É o erro de
experimentais, como a Sociologia empírica. Então, a Thomasius no qual se cai com muita freqüência. De
vida moral - uma realidade de natureza moral - pode fato, a relação com Deus ou do homem consigo
ser objeto de ciências de caráter diverso. Nem toda mesmo - aspectos verdadeiros e até fundamentais
ciência que estuda a vida moral será parte da Filoso- da realidade moral - constitui as perspectivas últi-
fia moral, sendo um caso claro a respeito a já citada ma e próxima das ciências citadas, mas não esgotam
Sociologia empírica. Com isso chegamos a uma pri- toda a realidade moral. É sabido que essas perspec-
meira conclusão: não é a mesma coisa formular a tivas são as perspectivas da finalidade dos atos, isto
questão de se o jurista é um moralista - se a ciência é, referem-se à relação entre as condutas humanas
130 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 131

e seus fins. Pois bem, a realidade é mais que seus te se conclui que, nessa ordem, o homem age por
fins, fato pelo qual fica claro que tais perspectivas não sua razão (conhecimento intelectual) e por sua von-
esgotam toda a realidade de índole moral. Quando tade (amor). O plano da realidade moral ou ética é o
um moralista diz que a moralidade consiste na rela - plano da atuação do homem como pessoa. Nesse plano,
ção. dos atos humanos com seus fins e, portanto, o homem age livremente e suas potências são habi-
com as leis que os regem, está tomando a palavra litadas para agir bem mediante alguns hábitos pe-
moralidade como uma formalidade (logo, em sentido culiares chamados virtudes, dos quais uns são do en-
restrito), e não como uma nua realidade; isto é, fala tendimento e outros da vontade.
da realidade já vista de sua perspectiva científica (a Pois bem, essa realidade moral é objeto - entre
isso nos referimos ao dizer formalidade). Esse é um outras - de três ciências práticas, que entendem o
dos nós da meada que é preciso desfazer. agir do homem como pessoa de acordo com três
Na ordem da realidade, existe um plano do ser perspectivas diferentes: a ciência do direito Qurista),
do homem que é o que equivale à sua condição de a ciência moral (moralista) e a ciência da política (po-
pessoa, aquele no qual o homem se manifesta como lítico). Para as realidades não morais do homem exis-
ser dotado de razão, vontade e, conseqüentemente, tem outras ciências: medicina, biologia etc.
de liberdade. Esse plano é de natureza diferente da- O direito é uma parte da realidade moral? Indu-
quelas esferas de seu ser regidas pelas leis físicas e bitavelmente. A coisa justa, dizíamos, é algo devido;
biológicas. No plano da personalidade, o homem o dever pressupõe a liberdade e, portanto, o justo
atua segundo princípios próprios: os atos procedem ocorre por uma livre decisão da vontade. De igual
de sua autodeterminação, de sua livre decisão. Tra- maneira, o delito e a injustiça pressupõem a liber-
ta-se de um setor da realidade humana que tem dade (um demente não delinqüe nem é injusto).
uma índole peculiar. Essa ordem peculiar da condu- Dar a cada um o que é seu - o justo - é fruto de uma
ta humana recebeu, na Grécia, o nome de ethos, de virtude da vontade: a justiça. E saber determinar o
onde vem a palavra ética; e em Roma foi denomina- justo e quando e como deve ser dado é outra virtu-
da o próprio do costume ou mos (no plural, mores), e daí de: a prudência (do direito ou da jurisprudência). No
se originou a palavra moral. que se refere ao direito, o homem age como pessoa;
Esse plano da realidade humana é o que corres- e mais, o direito ou coisa justa pressupõe a ordem
ponde ao homem como pessoa, aquele no qual atua da ação livre. Quem pode duvidar que o direito per-
e se realiza como tal. Se considerarmos que a pes- tence à realidade moral? Do mesmo modo, o agir po-
soa se realiza no conhecimento e no amor, facilmen - lítico, a vida do homem em sociedade, pertence à
132 O QUE É O DIREITO ? AS LEIS E O HOMEM 133

ordem do agir pessoal, das ações livres. A realidade 4. As ciências da realidade moral
política é uma dimensão da realidade moral do ho-
mem. As leis são normas dessa ação livre; precisa- Supondo-se a unidade da realidade moral, a
mente seu caráter de mandatos pressupõe a liber- existência de relações diferentes implica princípios e
dade, pois o agir não livre não é mandado, é produ- regras peculiares do agir no que se refere a cada uma
zido ou induzido. Por definição, as leis pertencem à dessas relações, o que acarreta a diferenciação dos
realidade moral do homem. saberes práticos no que diz respeito às relações. Apa-
Como qualquer outra realidade deste mundo, a rece, assim, o elemento formal - principal - de dis -
realidade moral do homem não é simples, mas com- tinção de três saberes práticos sobre a realidade
posta; nela a composição ocorre na unidade. A compo- moral: a ciência do jurista (ciência ou arte do direi-
sição acontece porque cada ato de natureza moral afe - to), a ciência do político (ciência ou arte da política)
ta diversas relações do homem; concretamente, po- e a ciência do moralista (ciência ou arte da moral em
dem ser distinguidos, dentro da realidade moral, três sentido antonomástico). Por outro lado, como nem
tipos de relações: do homem com Deus, consigo mes- todos os atos morais ou pessoais (atos humanos)
mo e com os outros, pois as ações humanas têm rela- afetam todas as relações, ocorre um fator secundário
ção com a lei de Deus, com as exigências de realização de distinção ou elemento material: o moralista estu-
do ser pessoal do homem e com os outros homens. da todos os atos, o jurista os que se referem às rela-
Nesse último aspecto cabem, ainda, duas formas di- ções de justiça e o político os que se dirigem ao bem
ferentes de relação: a de justiça em si mesma (a jurí- comum da sociedade. Vamos delimitar, a seguir -
dica ou de direito) e a de membro da comunidade em linhas gerais - , cada uma dessas ciências.
humana (a política). A ciência moral - ou ciência do moralista - é
Isto posto, essa composição ocorre na unidade, chamada assim por antonomásia, não porque ela
pois é cada ação - como entidade una - que afeta al- estude a realidade moral em todos os aspectos, mas
guma ou todas as relações mencionadas. Pela com- porque cabe a ela analisar a conduta humana em
posição cabem ciências diferentes; pela unidade, há seu aspecto moral mais fundamental: segundo as
aspectos que são comuns a essas ciências. Por exem- exigências que emanam da condição de pessoa. Isso
plo, o tema da responsabilidade e de seus graus é costuma ser expresso dizendo que estuda a conduta
único em seu núcleo central. do homem em relação a si mesmo e a Deus. O estudo
próprio da Moral pode ser realizado com as exclusi-
vas luzes da razão, e então é denominado Filosofia
134 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 135

moral; ou pode ser feito contando com os dados da ciência de algumas determinadas e específicas rela -
Revelação divina, recebendo nesse caso o nome de ções sociais. Por causa de sua perspectiva, a ciência
Teologia moral. Embora o específico da Moral seja a do direito não é uma parte da Moral, e o jurista não
relação da conduta humana com o próprio homem ~ um moralista. Ambos, jurista e moralista, estudam

e com Deus, a ela cabe determinar os princípios e a justiça, mas suas perspectivas são diferentes: ao
regras comuns dos atos humanos, posto que os vê moralista interessa que os empréstimos não sejam
em seu aspecto moral mais fundamental. Assim, usurários, para que os homens se comportem como
por exemplo, analisar os elementos dos atos huma- pessoas e não cometam pecado (ofensa a Deus por
nos, os graus de responsabilidade etc. é próprio da violar sua lei); ao jurista interessa a mesma coisa
Moral, que, por isso, recebe esse nome por antono- em relação aos empréstimos, porém por outro mo-
másia. A Moral, dizíamos, não estuda a conduta tivo: para que os direitos de cada um sejam respei-
humana em todas as suas relações, mas apenas na tados, para que cada qual receba o que lhe cabe e
indicada; nesse sentido, não estuda a realidade mo- haja, assim, uma ordem social justa.
ral em todas as suas dimensões. Porém, como toda Moral e ciência do direito são ciências autôno-
conduta humana está relacionada com o próprio mas, isto é, uma não é parte da outra porque têm
homem e com Deus, a Moral tem por objeto mate- um objeto formal, uma perspectiva ou ponto de vista
rial todo ato humano, isto é, abrange, de sua perspec- diferente. Isso não é óbice para que a ciência do di-
tiva, toda a matéria moral, e também o direito e a reito receba da Moral determinados dados ou co-
atividade política. nhecimentos. Já dissemos que, por exemplo, os prin-
A ciência jurídica é mais limitada em seu objeto cípios e regras comuns dos atos humanos cabem à
material; engloba apenas os atos da virtude da justi- Moral, da qual a ciência jurídica os adota; e tam-
ça, pois restringe -se a determinar as obras próprias bém, se para decidir, em um determinado caso, o que
da justiça. Contudo, nem sequer estuda a virtude da é justo for preciso considerar as leis morais (v.g., efi-
justiça integralmente; limita-se, como dizíamos, à cácia dos contratos com causa imoral), o jurista re-
obra externa da justiça. Sua perspectiva é o direito ceberá esses dados dos moralistas etc.
como coisa devida e sua finalidade consiste em que Por sua vez, a ciência política estuda a conduta
cada qual tenha sua coisa. Seu objeto não consiste humana da peg;pectiva do bem comum da socieda-
em que o homem se realize como pessoa sendo jus- de, e não - como é próprio da Moral - do ponto de
to - isso cabe à Moral -, mas que cada homem te- vista do bem total da pessoa (que, em último termo,
nha seu direito respeitado; é uma ciência social ou é Deus), mas da perspectiva da ordem social ou or-
136 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 137
denação da sociedade para um bem comum. A po- prudência, em relação à razão prática, e justiça, for-
lítica se circunscreve ao bom funcionamento da so- · ça e moderação, por parte da vontade. O homem
ciedade, às condições gerais e específicas convenien- não tem outro modo de agir na esfera moral. Por
tes para o desenvolvimento e progresso da comuni- isso, a boa cidadania - embora não englobe todo o
dade humana. Nesse sentido, é uma ciência dife - necessário para a boa hombridade - repousa no exer-
rente da Moral, não é uma parte da Filosofia moral. cício, ao menos parcial, das virtudes. Por isso, tam-
Porém existe uma nítida relação entre Ética ou Mo- bém as leis, embora contenham aspectos técnicos e
ral e Política, relação que vamos estudar brevemen - organizativos, destinam-se, em último termo, a que
te no que concerne às leis. o cidadão exerça algumas virtudes determinadas.
A realidade política é um aspecto, como vimos, Apresentamos antes o exemplo do Código de Trân-
da realidade moral humana; o homem desenvolve sito; sem dúvida, as normas desse código têm mui-
sua projeção social enquanto pessoa, pondo em jogo tos aspectos técnicos, mas decididamente destinam-
o conhecimento e o amor. Por isso a relação social se a que o cidadão seja prudente e justo, isto é, que
não é uma mera coexistência de individualidades, dirija de modo que não ponha em risco sua própria
nem a política pode ser entendida apenas como pessoa nem a dos demais, ao mesmo tempo que con-
uma técnica delimitadora de esferas de liberdade e tribua para que cada um possa usar seu direito à li-
de fornecimento de bens materiais. Ser um bom ci- vre circulação. As leis regem a conduta moral (ou seja,
dadão, embora não coincida totalmente com ser um a própria da pessoa como ser livre e responsável) do
homem moralmente bom (v.g., é possível ser um gran- cidadão, embora se reduzam àquilo que tem relação
de benfeitor da sociedade por vaidade pessoal, o que, direta e imediata com o bem comum, sem ultrapassar
moralmente - do ponto de vista da Moral - , tem esses limites.
pouco valor), é resultado do exercício, pelo menos Isso tem uma série de conseqüências, que va-
em certo grau, de virtudes (o benfeitor do exemplo mos resumir - para não nos estendermos mais do
exercerá a liberalidade, embora às vezes seja vaido- que convém nesta pequena obra- a seguir:
so). Sendo a vida social uma realidade moral, ne- a) Como as leis regem a conduta moral, embo-
cessariamente a boa cidadania deve ser fruto de vir- ra apenas no aspecto de sua ordenação ao bem co-
tudes, embora só atinjam certo grau. A causa é sim- mum, são regras de moralidade e, conseqüentemen-
ples e clara: na esfera moral - a da liberdade - , o te, obrigam com consciência. Em que sentido obrigam
bom agir se consegue por hábitos das potências hu- com consciência? Obrigam com consciência en-
manas especificamente pessoais chamadas virtudes: quanto são regra ou medida, legitimamente estabe-
138 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 139

lecidas, de atos de algumas virtudes. Toda virtude vem partir do estado moral da sociedade. As leis,
obriga com consciência, e também a justiça legal; por- portanto, podem não exigir as virtudes em toda sua
tanto, como as leis regulam o exercício de uma vir- força e inclusive podem tolerar algumas condutas
tude e impõem deveres de justiça legal, são obriga- não boas.
tórias com consciência. Nesse sentido, é preciso saber distinguir muito
b) A arte da política direciona-se, em último bem as leis tolerantes das chamadas leis permissivas.
termo, para fazer bons cidadãos, o que é insepará- A lei tolerante parte da existência de um mal que
vel das virtudes. Conseqüentemente, as leis devem não é possível extirpar sem provocar um mal maior
se direcionar para promover e facilitar as virtudes e se restringe a regular essa situação contrária ao bem
m'orais, o que implica que as leis devem se funda- comum, procurando limitá-la tanto quanto consen-
mentar na ordem moral objetiva. tirem o estado moral e as circunstâncias da socieda-
c) Não cabe à política nem, portanto, às leis de. A tolerância das leis tem uma delimitação clara:
toda a moralidade humana, mas somente a verten- as leis não podem tolerar as condutas que atentem
te do bem comum social. Daí se conclui que as leis diretamente contra as instituições sociais básicas ou
não podem exigir nada além da boa cidadania, nem os direitos mais fundamentais das pessoas: o direito
penetrar no arcano da consciência. Por isso, diante à vida e à integridade física ou moral (homicídio,
das leis, o cidadão tem a liberdade de consciência, aborto, lesões etc.), à liberdade (seqüestro), ao casa-
como tem a liberdade de pensamento e a liberdade mento, à autoridade social etc.
religiosa. A lei permissiva, por outro lado, pressupõe ne-
d) Oportunamente dissemos que as leis devem gar a existência de regras objetivas de moral e, con-
se acomodar à realidade social, sem pretender atin- seqüentemente, legaliza, isto é, dá estatuto de nor-
gir de repente metas ideais. Ao mesmo tempo di- malidade social às condutas imorais, desde que se-
zíamos que as leis não podem se limitar a plasmar tores da sociedade suficientemente numerosos o pe-
por escrito o que acontece na realidade (isso não çam. Isso supõe uma inversão da função da lei, que
seriam leis, e sim constantes sociológicas). O que se transforma assim em veículo de má cidadania e
foi dito significa que as leis devem tender a melho- de imoralidade. Tais leis não só não obrigam com
rar e desenvolver a boa cidadania, o que implica que consciência, como agir segundo o que permitem é
conduzam os cidadãos para o exercício das virtu - contrário à moral.
des correspondentes, mas, no tempo próprio, de-
140 O QUE É O DIREITO? AS LEIS E O HOMEM 141

5. Lei e comportamento moral te neutro. As leis, por sua própria natureza, não são
nem podem ser neutras em relação à moral. Quan -
As leis, ao agirmos de acordo com elas, criam do se tenta construir um Estado neutro ou amoral e
hábitos e costumes. Por causa desse efeito, não se um sistema de leis igualmente neutro ou amoral, o
circunscrevem a fazer bons cidadãos do ponto de que na realidade ocorre é que se introduz um Esta-
vista da conduta externa; também influem na mora- do ou umas leis imorais, pois a amoralidade é uma
lidade do homem ao contribuir para a conformação forma particular de imoralidade. Não é preciso com-
de suas virtudes. Como a maioria das virtudes não é plicar as coisas claras: a política e as leis afetam a
inata, mas adquirida pela repetição de atos, as leis, ordem humana da liberdade e, nessa ordem, o ho -
compelindo a agir segundo uma virtude, acabam mem se inclina a agir por virtudes e vícios; não exis-
conseguindo que quem as obedece adquira as virtu- te alternativa. Pretender uma política e umas leis
des correspondentes: O motorista que cumpre o Có- que não envolvam as virtudes ou os vícios é cair na
digo de Trânsito acaba por ter o hábito de dirigir mais pura irrealidade.
prudentemente; todos temos a experiência de que,
à força de cumprir as leis, chegamos a fazer porcos-
tume - por virtude - muitas das coisas que mandam,
sem nos lembrarmos da lei. Eis aí um importante
aspecto das relações entre a moral e as leis. As leis
não são indiferentes no que se refere à formação e
ao comportamento morais do homem; pelo contrá-
rio, influem neles enormemente, contribuindo de
modo notável para moralizar os costumes (ou para
favorecer a imoralidade, no caso das leis permissi-
vas, imorais ou injustas).
Cindir a legalidade da moralidade, como se fos -
sem dois mundos separados e sem relação mútua,
supõe uma concepção adulterada das leis, essa con -
cepção que Thomasius introduziu na política (nas
leis) - no direito, segundo ele - e que seguem aque-
les que aspiram a essa utopia do Estado moralmen-
Capítulo IX
A lei natural e a lei positiva

1. Introdução

Nos tratados de filosofia das leis - denomina-


dos, a partir de Hegel, de filosofia do direito, porém
o leitor já sabe que isso decorre de uma confusão -
observa-se uma constante e curiosa coincidência,
de Aristóteles a nossos dias. Quando chegam ao
ponto a que chegamos nesta introdução - de pergun -
tar-se se só existem leis formuladas pelos homens
ou se, junto a elas e em sua base, há uma lei natu-
ral - , costumam mencionar a tragédia de Sófocles
chamada Antígona (que é o nome da protagonista).
Não sei se trata-se do efeito de uma maldição ciga-
na ou de uma falta de imaginação dos filósofos do
direito. O caso é que também não me ocorre come-
çar este tópico de outro modo que não recorrendo
ao exemplo de Antígona, apesar dos vinte e tantos
séculos que nos separam de Aristóteles. E como não
é o caso de acreditar nas maldições ciganas nem de se
acusar publicamente de carência de imaginação (em
144 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 145

todo caso, que o leitor deduza), vamos dizer que o próprios, nem pode agir totalmente como quer nem
grande trágico Sófocles teve a virtualidade de deixar pode ser tratada segundo o livre -arbítrio dos outros.
em sua Antígona um imperecível testemunho de Dizíamos que na realidade moral há coisas que são
que a lei natural existe . Mas antes de pagar o inevi- corretas em si e coisas que são más em si. Como a
tável tributo a Sófocles e a Antígona citando as pa- política e a arte do direito têm por objeto certas re-
lavras dela ao tirano Creonte, parece conveniente ex- lações que pertencem à ordem moral - são aspectos
plicar a que vem o assunto. da realidade moral - , os princípios que acabamos de
Nos tópicos precedentes falamos das leis (as leis recordar valem igualmente para a moral, a política e
políticas, isto é, as leis que regulam as condutas dos o direito. Já assinalamos que a realidade moral é uma
cidadãos em relação ao bem comum, as quais po- só, da qual a filosofia moral, a ciência jurídica e o sa-
dem ser chamadas de jurídicas enquanto são causa ber político estudam aspectos diferentes. Se a reali-
e regra ou medida do direito), e, às vezes, pelo con- dade é uma, a lei natural é, conseqüentemente, úni-
texto poderia se deduzir que as leis têm por autor ca, embora nela possamos distinguir aspectos: en-
exclusivamente a sociedade humana, por si só ou quanto é canal ou caminho de realização pessoal, é
através dos órgãos de governo competentes. Por lei moral; enquanto é regra ou medida do direito, é
acaso o tópico imediatamente anterior supõe que lei jurídica, e enquanto direciona a sociedade para o
existe uma lei moral natural - falávamos de deveres bem comum, é lei da pólis ou lei política.
morais objetivos, de lei natural que regula a morali- Posto que existem, como vimos, direitos natu-
dade dos atos etc. - , mas pode parecer que quase rais, existe necessariamente a lei jurídica natural, em
não dissemos nada que faça supor que existe uma uma tripla faceta. Em primeiro lugar, os direitos na-
lei natural política (que ordene a sociedade) ou jurí- turais têm, obviamente, não só um título natural
'
dica (regra de direito). Tal impressão não seria exa- mas também uma medida natural, como já indica-
ta. A realidade é que já tratamos dessa questão, com mos. Essa medida ou regra natural de direito é a lei
pouca sistemática, é verdade - era inevitável - , em natural, visto que a regra de direito é a lei. Por outro
páginas precedentes. lado, a existência de direitos naturais gera regras do
11

Ao nos referirmos ao direito natural, ao volunta- agir, também naturais, em relação a eles: não ma -
11 11

rismo e ao intelectualismo em outros momentos, tar", não roubar", medicar o doente" e outras mais
deixamos registrado que a natureza humana exige complicadas. E, por último, a natureza das relações
algumas determinadas condutas, porque a pessoa e instituições sociais acarreta algumas regras de jus-
humana, por sua dignidade e pelos fins que lhe são tiça comutativa, distributiva ou legal, conforme o
146 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITWA 147
caso, que são naturais; v.g., os alimentos devem ser te necessariamente uma lei política natural: aquela
distribuídos de modo que sejam suficientes para to- que indica as condutas que estão de acordo com essa
dos. Esse conjunto de regras de direito constitui o realidade natural - v.g., a obediência ao poder legí-
aspecto jurídico da lei natural ou lei jurídica natural. timo, o dever de cooperar para o progresso e desen-
Há também uma lei política natural ou, se pre- volvimento da sociedade, a obrigação de buscar a
ferir, a lei natural também tem uma vertente políti- paz e a convivência, o respeito à cultura dos povos
ca. A comunidade humana, a sociedade que se plas- etc. - e as condutas contrárias a ela.
ma nos Estados e na comunidade internacional Lei moral, lei jurídica e lei política naturais não
obedece a um princípio natural. O homem, por na- representam três leis diferentes, mas aspectos de uma
tureza, não é apenas sociável (capaz de sociedade), mesma e única lei. Por isso, a seguir, exporemos a
mas é sócio dos demais. Embora as possíveis formas natureza e algumas características da lei natural em
de sociedade sejam múltiplas, todas elas são desen- geral, deixando para ocasião mais propícia expor o
volvimento de um núcleo natural de sociedade, em que é específico a cada um dos aspectos citados.
cuja virtude o homem está - por natureza - unido
aos demais por vínculos de solidariedade e comuni-
dade. Nesse ponto voltamos a nos encontrar com o 2. Verdade e opinião
postulado ao qual nos referimos antes: todo fato cul-
tural é necessariamente desenvolvimento de um Antes, no ensino fundamental já ouvíamos falar
dado natural. A sociedade política não existiria se da lei natural, e, claro, no ensino médio a aprendía-
não dependesse de um núcleo natural de associa- mos com bastante profundidade; pelo menos o su-
ção política. Por isso não tem base suficiente - é im- ficiente para que, quando no curso de Direito ou de
possível - a teoria do pacto social, segundo a qual o Filosofia voltássemos a nos encontrar com ela, não
homem seria por natureza associal e a sociedade tivéssemos que fazer grandes esforços para estudá-
seria fruto de um pacto entre os homens. Nada cul- la, dedicando a outras matérias o tempo que tería-
tural - por consenso ou por pacto, nesse caso - é mos necessitado para aprendê-la, ou, simplesmen-
possível ao homem se não existir uma base natural. te, usando esse tempo para passear com os amigos.
Portanto, se o homem fosse por natureza associal, a Mas como nem tudo pode ser ensinado no ensino
sociedade não poderia existir, já que o homem não fundamental nem no médio, e agora a Sociologia
pode mudar sua natureza. Dado que a sociedade po- está na moda, acontece que a lei natural costuma
lítica obedece a uma realidade política natural, exis- ser substituída pelas pesquisas, ou para que cada
148 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITWA 149

aluno diga o que pensa ou como vê as coisas. Com menta. Basta contemplar o jogo de caça-palavras que
o quê se atingem dois objetivos: que os alunos che - forma nosso conjunto político para perceber isso. Se
guem ao ensino médio e à Universidade sabendo além disso acrescentarmos que atrás de cada sigla se
cada vez menos (assim dizem os respectivos profes- escondem não poucas divergências, decorre que os
sores, escrevem os jornais e reconhecem as mais al- políticos devem ser as pessoas menos chatas deste
tas autoridades educacionais dos mais diversos paí- mundo. Não há dúvida de que em política há uma
ses) e que se acostumem a falar sem antes estudar infinidade de coisas opináveis.
aquilo sobre o que falam, acabando, como é lógico, Mas também é verdade que em moral, em direi-
por serem peritos na arte de dizer besteiras. Porque to e em política há coisas que não são opináveis, são
acontece que as coisas não são como as imaginamos como são. Em tais casos, a opinião não tem valor, a
- sem estudá-las - ou como as vemos - sem olhá- não ser para contrastar o nível de ignorância ou de
las - , mas como são, e, portanto, se antes de opinar sabedoria das pessoas. Eu acho; na minha opinião
não nos informarmos sobre como são, nossas opi- pessoal, meu ponto de vista aqui indicam apenas a au-
niões compõem um monte de disparates. dácia das pessoas para falar do que não sabem ou
O caso é que com tanta pesquisa, tanta opinião que as questões são propostas falsamente, dando
pessoal e tanto ponto de vista subjetivo, a lei natural como opinável e relativo o que não é uma coisa nem
costuma não tomar parte na educação geral funda - outra. Por exemplo, a discriminação racial não é ques-
mental e no ensino médio. Não nos resta, pois, tão de pontos de vista. Se fosse questão opinável, de
mais remédio que expor - sempre brevemente - algo pontos de vista, a postura favorável à discriminação
sobre ela. racial seria uma opinião tão respeitável quanto ou-
Dizia um ilustre tabelião espanhol - numa frase tra qualquer. Dizíamos antes que se só existissem
que passou a ser usual - que se em direito estivés - valores relativos - pontos de vista - , nada haveria de
semos todos de acordo seria muito chato. Claro que verdadeiramente mau nem injusto. Em política e
se o grau de chatice de uma ciência fosse medido em direito, assim como em moral, há coisas que não
pelo grau de acordo, não haveria dúvida de que a pertencem à opinião, e sim à verdade, porque são
ciência jurídica seria muito divertida. O leitor não realidades objetivas. Esse conjunto de realidades ob-
pode se queixar de ter sido enganado; já nas primei- jetivas resume-se à natureza humana e à lei natural.
ras páginas foi advertido de que os juristas não con - A realidade moral - dissemos - consiste na es-
cordam facilmente. Em direito há muitas coisas opi- fera de ação livre do homem. Pois bem, a liberdade
náveis. E se daí passarmos à política, a diversão au- encontra seu primeiro princípio de desenvolvimen-
150 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 151
to e sua primeira regra de ação no próprio ser do para seus fins naturais. Por isso, como acabamos de
homem, do qual a liberdade é uma característica. A · ver, está de acordo com a lei natural a atividade que
liberdade não faz o homem, não lhe dá o ser; ao con - estiver em conformidade com os fins do homem.
trário, existe e se desenvolve pelo homem e no seu ser. Conhecemos esses fins porque se encontram em
Em outras palavras, o ser do homem é livre, contém nosso ser em forma de inclinações naturais. Podemos,
a liberdade, e seria falso dizer que a liberdade fabrica pois, conhecer a lei natural conhecendo essas incli-
o ser do homem. O homem tem uma natureza livre, nações. Vejamos, muito sinteticamente, quais são,
e, portanto, a liberdade repousa em uma natureza, sem enumerá-las por ordem de importância:
intocável pela liberdade, porque é seu pressuposto a) A inclinação à conservação do ser, também
(sem natureza não haveria liberdade). Propriamen- chamada instinto de conservação. Em relação a ela
te falando, essa natureza é regra da liberdade, o que deduzimos que a vida e a integridade física e moral
· equivale a dizer que a liberdade encontra seu senti- do homem são direitos naturais seus, como é direi-
do e seu caminho no desenvolvimento segundo a na- to natural a saúde. Igualmente, são contrários à lei
tureza, porque assim realiza o homem e o aperfeiçoa. natural o que a eles se opuserem: homicídio, lesões,
Em outras palavras, a natureza do homem é norma- suicídio etc.
tiva para a atuação livre do homem. Isto posto, ara- b) A inclinação ao casamento, direcionado para
zão humana, conhecendo a natureza do homem, cap- a procriação e a educação dos filhos . Dela se dedu-
ta o normativo dela e emite ditames imperativos: deve- zem os preceitos fundamentais que regem a institui-
se fazer tal coisa, não se deve fazer outra. O conjunto ção matrimonial e a familiar, os direitos em relação
desses ditames ou regras imperativas da razão hu- a elas, o uso correto da faculdade geradora etc.
mana, que manda, proíbe ou permite algumas con- c) A inclinação à relação com Deus ou com a re-
dutas por sua conformidade ou desconformidade ligiosidade, que origina o direito de liberdade reli-
com a natureza do homem (seu ser e seus fins natu- giosa, o dever moral de buscar a verdade sobre Deus
rais), recebe o nome de lei natural. e o culto que lh~ é devido etc.
d) A tendência ao trabalho, direito do homem
que o desemprego lesa. Da natureza do trabalho se
3. O conteúdo da lei natural deduzem os direitos fundamentais sobre o salário,
as relações entre trabalho e capital etc.
O agir humano, no que se refere a sua realidade e) A inclinação à sociedade política e às várias
moral, representa o dinamismo do ser do homem formas de associação, cujo conhecimento nos leva
A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 153
152 O QUE É O DIREITO?

réis em Direito - bons tratadores de jumentos. E me


às questões sobre as formas de governo, a legitimi- fez condutor de um jumento chamado Romo. Ali
dade do poder, o direito de associação e muitas ou-
aprendi que tratar os jumentos com muita indul-
tras coisas mais. gência é inutilizá-los para o serviço, porém a exces-
f) A tendência à comunicação, de cuja finalida -
siva rudeza os torna desconfiados e broncos, pouco
de se depreende o dever de veracidade, o direito de
manejáveis e muito dados a coicear e não obedecer.
boa reputação etc.
Sem dúvida, saber tratar os animais é uma arte !
g) Por último, a inclinação ao conhecimento e às
como reconhecemos ao aplaudir o domador no cir-
diversas formas de cultura e arte, de onde se de -
co, que consegue deles exercícios e cabriolas de difí-
preende o direito de se educar, a liberdade de ensi-
cil execução. Mas tudo isso não é a lei natural. É, em
no e outros direitos e deveres.
cada caso, uma arte, que consiste em saber obter a
utilidade que se deseja.
4. A índole normativa da natureza humana De minha parte, consegui entender Romo e fa -
zê -lo prestar o serviço que o Exército queria dele.
É evidente que podemos nos perguntar por que Com isso não cumpri nenhum preceito da lei natu-
a natureza humana é normativa e a natureza dos ral sobre os jumentos, fui simplesmente um discre -
demais seres não. Pode parecer, de fato, que o ra- to soldado (de segunda, que a mais não cheguei),
zoável é tratar cada coisa conforme sua natureza: usei uma técnica. Quando dizemos que o razoável é
não parece razoável querer navegar com um auto- utilizar as coisas ou tratar os animais segundo sua
móvel ou usar um carro de fórmula 1 para arar os natureza, não fazemos alusão à lei moral - e que me
campos. Não será razoável tratar o homem - ou perdoe Sêneca, que nisso se confundiu, coisa lógica
que o homem aja - segundo sua natureza, do mes - porque era estóico - , e sim a uma técnica, a uma
mo modo que é tratar as coisas e os animais dessa arte. Não sei que fim levou Romo quando, depois
maneira? de jurar a bandeira, deram-me outros destinos. O
Não sei se o leitor teve oportunidade de precisar que está claro - falo hipoteticamente - é que pode
lidar com jumentos. Eu sim, na época em que fiz o ter sido vendido a uma fábrica de alimentos para
serviço militar, no último ano de curso. Fui parar em animais, ter sido sacrificado e transformado em ra -
um Agrupamento de recrutas comandado por um ção; de sua gordura pode ter sido feito sabão e de
capitão - homem, aliás, de excelentes qualidades - sua pele - como aconteceu com o asno da fábula de
que, conforme disse, estava disposto a demonstrar
Samaniego - podem ter sido feitos tambores.
que podia fazer dos advogados - queria dizer bacha-
154 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITWA 155

Isso é o que - entre outras coisas - não se pode da de de se auto-regular. Por conseguinte, a lei natu -
fazer com o homem. Poder fazer, no sentido técnico ral não abrange toda a atividade possível do homem,
da palavra, é claro que se pode, exceto fazer tambo - nem todo o âmbito das leis. Como a lei natural é
res com sua pele, mas esta admitiria outros usos. uma lei de e para a liberdade, ela mesma faculta o
No entanto, não se pode no sentido .moral da palavra homem e a sociedade a ditar leis: as leis positivas ou
(não se deve). E isso não é opinável, não é um ponto determinadas pelo homem. Qual é, pois, a função
de vista. Ou o leitor acha que se ele não é transfor- da lei natural? Sua função específica consiste em ser
mável em uma ração para cães, dessas que estão na base ou alicerce da ordenação jurídica e da ordem po-
moda, é simplesmente porque a maioria das pes- lítica. O que a constituição representa no sistema de
soas acha que seria de mau gosto? Certamente não leis positivas - base do sistema legal, critério inspira -
é opinável, é lei natural. dor e critério de validade - é o que representa a lei
Para o homem, agir segundo a natureza ou ser natural em relação a todo o sistema de leis.
tratado de acordo com ela é algo mais que uma téc- Por ser base ou alicerce, as leis positivas se apóiam
nica. É uma exigência da própria natureza, que faz na lei natural, derivam dela. Pressupondo que o ho -
com que sejam deveres os comportamentos que le - mem, por natureza, tem direito à saúde, as leis po-
vam o homem a atingir seus fins naturais e que se- sitivas edificam todo o sistema legal de saúde e da
jam proibidas as condutas contrárias. Antes já dis- Previdência Social. A razão é muito simples e dela
semos qual é o fundamento disso: a natureza racio- falamos mais de uma vez: todo o humano cultural
nal, pessoal, do homem. Como o homem é pessoa, deriva de um dado natural. Por aí pode -se ver a ín-
sua dignidade, que deriva de seu ser e de seus fins, dole inspiradora da lei natural em relação à lei posi-
exige que aja e seja tratado de determinadas manei- tiva; se as leis positivas derivam de um núcleo de lei
ras. Essas regras constituem a lei natural, que tem a natural, devem ordenar - essa é sua missão - a rea-
índole de verdadeira lei. lidade social de acordo com esse núcleo: o sistema
legal de saúde, ao fundamentar-se no direito à vida
e à saúde, não pode ser organizado como um siste-
5. Função da lei natural ma criminal destinado a matar ou a lesar as pessoas.
Não teria sentido (por isso as leis de legalização do
A natureza do homem é livre, possui a liberda- aborto e da eutanásia rião têm). Ao mesmo tempo,
de. Portanto, a lei natural supõe que o homem tem pode -se ver o caráter de limite - critério de valida-
- como um dos aspectos de sua liberdade - a facul- de - que a lei natural possui. Dissemos antes que há
156 O QUE É O DIREITO?
A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 157
coisas que o homem não pode fazer na ordem moral, de grande perfeição. Em segundo lugar, os juízes já
embora seja capaz de fazê-las tecnicamente. Pois fazem isso mesmo (em parte) sob outros rótulos -
bem, o homem não pode formular leis imorais ou in - valores ou princípios gerais do direito, direitos hu-
justas. Se por poder entende-se que pode redigir uma manos etc. - , e nada de ruim está acontecendo, ao
"lei" imoral ou injusta, debatê-la no Parlamento, pro- contrário, está sendo obtida uma justiça melhor. E,
mulgá-la e depois fazer com que se cumpra com in- em terceiro lugar, com o direito constitucional se-
tervenção da polícia, sem dúvida que tal coisa pode gue-se essa mesma técnica e também não está sen-
ser feita. Porém, esse poder é um fato, um sistema de do produzida nenhuma catástrofe, pelo contrário.
coação, não é a lei que obrigá o homem a obedecê- Além disso, há um sistema jurídico - o ordena-
la por virtude da justiça legal. Propriamente falan - mento canônico - no qual milhares de juízes e cen-
do, é uma falsa lei, como o ouropel não é ouro ou a tenas de juristas aplicam constantemente a lei natu-
moeda falsa não é verdadeira moeda. Uma tal "lei", ral como princípio informador e critério de validade
imoral ou injusta, não é uma verdadeira lei que vin- das leis positivas, e não só não ocasionou nenhum
cule o homem moralmente, não pertence à realida- fracasso do sistema, como, em mais de um aspecto,
de moral humana, mas sim ao triste campo da coa- é exemplar. Os juristas dedicados ao direito estatal -
ção e da violência institucional. não falamos particularmente dos espanhóis - já ten-
Diante do fato de que a lei natural é critério de taram conseguir um sistema matrimonial tão per-
validade das leis positivas, os positivistas costumam feito quanto o canônico, em vez dos indigeríveis
se escandalizar. Dizem que, se fosse assim, o siste- "pastichos" que costumam nos oferecer; isso quan -
ma legal viria abaixo, a insegurança jurídica se apo- do não assistimos a sentenças judiciais - até agora
deraria dele e não sei quantas catástrofes mais. Essa não conheço nenhuma espanhola desse estilo - que
atitude tem muito de escândalo farisaico; sério, o parecem ter perdido toda noção minimamente ra-
que dizem a sério não se pode acreditar. Em primei- zoável do que é o casamento.
ro lugar, é obvio que analisar e definir - em um sis-
tema jurídico evoluído como o nosso - o possível
contraste entre a lei natural e a lei positiva cabe aos 6. Quem diz o que é lei natural
juízes; pois bem, os juristas romanos - assim apare-
ce nas referências -, e com eles os juízes, usaram Em todos esses anos que venho explicando di-
essa regra e não só o direito romano não fracassou, reito natural, nunca faltou, nos primeiros dias do
mas até ficou como exemplo de um sistema jurídico curso, algum aluno que se levantasse e fizesse esta
O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITIVA 159
158
tecas inteiras. Mas observam-se neles, às vezes, crité-
pergunta: "E quem diz o que é lei natural ou o que é
rios díspares, pontos discutíveis, erros (v.g., Aristó -
direito natural?" Pergunta que invariavelmente tam-
teles achava natural a servidão, enquanto os so -
bém formulam meus interlocutores, tanto em con-
fistas, os estóicos e os juristas romanos - mais con -
versas particulares como nos colóquios que acom-
venientes nisso - a classificaram como instituição
panham palestras e conferências sobre esses temas.
positiva contrária à liberdade natural)? Bem, e por
Confesso que essa pergunta me parece sempre um
acaso os médicos, os biólogos, os astrônomos, os fí-
tanto precipitada. Quem diz quais são as leis bioló-
sicos etc. etc. não discutem? E por isso vamos dizer
gicas? Os biólogos. Quem diz quais são as leis eco-
que não existe o corpo humano, ou as leis biológi-
nômicas? Os economistas. Quem diz o que é direito?
cas, ou os astros? O que tem a ver a existência de uma
Os juristas, essa é sua ciência e sua função, como dis-
realidade com os eventos do conhecimento huma-
semos no começo. Quem diz o que é direito natu-
no sobre ela?
ral? Aquele que diz o que é direito, seja positivo ou
Todos nós achamos muito respeitável a astrono-
natural: os juristas romanos, os juristas medievais, os
mia, ciência exata, segundo dizem, e levamos muito
modernos disseram, e os contemporâneos (exceto
a sério não só as conclusões certas, mas as hipóte -
os positivistas) dizem. Cabe aos juristas dizer o que
ses de trabalho dos astrônomos. Pois bem, nunca
é direito natural - assim como o que é direito posi-
no campo da lei natural ocorreu um fiasco tão ex-
tivo - de duas maneiras: com autoridade jurídica
pressivo e tão capaz de desacreditar uma ciência
pública, vinculatória para cada caso específico, aos
como aconteceu com a astronomia. Os astrônomos
·juízes. Com autoridade privada, aos juristas especia-
não afirmaram durante séculos que o Sol dava vol-
listas em direito natural. Nisso consiste o ofício e a
tas ao redor da Terra, e depois concluiu -se que a
função social dos juristas: dizer, determinar o direito,
verdade era exatamente o contrário? No entanto,
seja natural, seja positivo.
E quem diz o que é de lei natural? A resposta é quando a astronomia percebeu o erro, após um pri-
meiro momento de desconcerto, todos ficaram con-
fácil, depois de tudo o que dissemos. Dizer o que é
tentes e elogiaram a capacidade da mente humana
de lei natural cabe, segundo diversos aspectos, aos
de descobrir a verdade, apesar de as aparências po-
moralistas, aos juristas e aos especialistas em ciên-
derem, em um primeiro momento, nos induzir ao
cia política. Foi sempre assim na história. Os estói-
erro; descoberto o fiasco, a astronomia saiu fortale -
cos escreveram esplêndidas páginas a respeito, Pla-
tão e Cícero escreveram, e, por sua vez, os moralis- cida. Por força de qual regra, quando são observa-
dos erros ou discrepâncias entre os especialistas em
tas (especialmente os teólogos) escreveram biblio-
160 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITIVA 161
lei natural, alguns comentam com altivez que, pois Quem diz o que é de lei natural? Quem dela en-
é, a lei natural não existe, e não dizem, haja vista o tende: os moralistas, os juristas e os pensadores po-
descomunal equívoco dos astrônomos, que o Sol e líticos. Contudo, entre eles os moralistas têm a pri-
a Terra não existem, ou que não existem as leis que mazia, pela razão antes indicada; enquanto as ciên-
regem o movimento dos astros? E se Aristóteles cias jurídica e política só estudam a lei natural em
achou que a escravidão era de lei natural e se enga- um aspecto seu, o moralista a estuda em toda sua
nou, por acaso Aristóteles era infalível? Porém seja- integridade: portanto, sua ciência o capacita para co-
mos razoáveis: por que sabemos que Aristóteles se nhecê -la de maneira melhor e mais completa.
enganou, a não ser porque sabemos, como já disse - Sem dúvida o leitor não desconhecerá que, sen-
ram os sofistas - antes de Aristóteles - , que o esta- do a lei natural lei divina por proceder de Deus, Au-
do de liberdade é de lei natural? Assim, podemos tor da natureza, há uma sabedoria mais elevada do
conhecer com certeza a lei natural; do contrário, não que a que acabo de expor diante de seus olhos: a Re-
saberíamos que Aristóteles se enganou. velação divina, interpretada pela Igreja. Se recorrer-
Comparemos o que disseram Aristóteles, Pla- mos à Revelação divina, quem diz o que é de lei na-
tão, Marco Aurélio e Cícero, o que dizem os livros tural - e diz indefectivelmente - são os órgãos do
sapienciais da Bíblia, o que escreveram os Santos Magistério eclesiástico solene: o Papa e o Concílio
Padres, São Tomás de Aquino, Averróis, Maimôni- Ecumênico, quando definem uma proposição de lei
des, Grócio, Pufendorf, Santo Afonso de Ligório, e natural. Sem intenção de definir de modo decisivo
os moralistas modernos e contemporâneos - exce- as proposições de lei natural, o Magistério eclesiás-
ção feita à antimoral de existencialistas, analíticos e tico - o Papa e os bispos - dizem, muitas vezes - à
estruturalistas -; observaremos, junto a discrepâncias luz da Revelação - aquilo que é de lei natural, rece -
em alguns pontos específicos, uma substancial con- bendo, então, seus ensinamentos o nome de Ma-
cordância. Existe alguma das ciências experimentais gistério ordinário.
- que quase adoramos como novas divindades e
cujos especialistas consideramos como oráculos pou-
co menos que infalíveis - que possa apresentar uma 7. Conhecimento da lei natural
substancial concordância tão prolongada no tempo
e tão extensa nas matérias? Sinceramente, as obje- O que acabamos de explicar significa que apenas
ções que são feitas à lei natural por essa via costu- os peritos e especialistas conhecem a lei natural?
mam ser fruto de uma evidente falta de seriedade. Indubitavelmente, não . Todos temos um conheci-
162 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 163

mento suficiente de nós mesmos e de nosso entorno mentos: é o saber cientifico. Também em relação à lei
que nos habilita a viver normalmente. Quando dize - natural há um conhecimento comum e um conheci-
mos que Newton descobriu a lei da gravidade, não mento científico. O conhecimento comum é o que
queremos dizer que, até ele, ninguém tinha percebi- habilita o homem a viver em concordância com a lei
do que os corpos têm peso e que caem; isso todo o natural, exceto em determinados pontos mais difí-
mundo sabia. O que Newton descobriu foi a causa ceis ou obscuros, que são acessíveis apenas aos es -
de os corpos caírem: a atração da Terra; os outros sa- pecialistas: ao moralista ou ao jurista. Em tais casos,
biam que os corpos caíam, embor~ explicassem isso deve -se consultar o especialista, assim como acon-
de outra maneira. Como aquele sargento - grande tece em outros âmbitos ordinários da vida.
pessoa - que tive enquanto fui recruta, e que, ao nos Para alguns, isso é motivo de estranheza. A lei
dar um dia a aula teórica, explicou-nos que os cor- natural não está gravada no coração do homem;
pos caíam pela força da gravidade; ao acabar de dizer como, então, há preceitos que precisam ser consul-
isso, ficou em silêncio um momento e acrescentou, tados? Essa estranheza procede da interpretação
como que falando consigo mesmo: "De qualquer inadequada do significado de o homem ter a lei na -
maneira, ainda que não houvesse gravidade, as coi- tural gravada em seu ser. Há quem pense que isso
sas cairiam do mesmo jeito, por seu próprio peso." quer dizer que o homem nasce com todos os precei-
Todo homem tem um conhecimento comum ou tos da lei natural escritos em sua razão e em seu cé-
vulgar dos preceitos fundamentais e básicos da lei rebro; algo assim como se um computador trouxes -
natural, sabe que está errado matar um inocente, ou se de fábrica um programa instalado; bastaria aper-
roubar-lhe ou extorquir-lhe. Provavelmente, se lhe tar a ou as teclas correspondentes e na tela ou na
perguntarem por que é assim, dará de ombros e não impressora apareceriam os preceitos de lei natural.
saberá dizer nada além disso: "ora, porque está er- Isso é um erro. A única coisa com que o homem
rado". A lei natural é um preceito da razão, e no co- nasce, no que se refere à lei natural (e isso é sufi-
nhecimento pela razão é possível distinguir dois ciente para dizer que essa lei está gravada nele), é
momentos sucessivos e conexos. Há um exercício com uma correta disposição da razão - o hábito ou a
ou uso de razão comum ou geral que é próprio de virtude inata da sindérese - , pela qual esta com -
todo homem que tenha alcançado o desenvolvimen- preende infalivelmente que deve fazer o bem e evi-
to normal dessa potência. Depois há um segundo tar o mal, embora depois, por ser livre, não aja con-
momento, continuação do anterior, que investiga e seqüentemente. Da mesma maneira, nasce com al-
chega ao porquê e ao como e aprofunda os conheci- gumas inclinações naturais, que capta como dire -
A LEI NATURAL E A LEI POSITNA 165.
164 O QUE É O DIREITO ?

cionamento para seus fins naturais. Sabe, pois, que momento de entrar neles (podem ser encontrados
é bom - portanto deve fazer isso ou pode fazer isso, em qualquer bom manual de moral ou de direito
conforme o tipo de inclinação de que se trate - agir natural), e sim de continuar com o discurso.
em conformidade com essas inclinações e mau aqui-
lo que as desvia de seus fins. Desse modo, sabe que
deve cuidar de sua vida e de sua saúde, que o homi- 8. O "esquecimento" da lei natural
cídio é um crime, que se casar é bom e um direito de
todo homem, que deve trabalhar e que a preguiça é Às vezes algumas pessoas também se surpreen -
um vício, que a sociedade política corresponde à dem de que, em diferentes épocas - e a atual é um
natureza humana etc. exemplo disso -, haja preceitos de lei natural des-
Como se pode ver, o conhecimento da lei natu- cumpridos por muitos. Também há aqui um erro de
ral não é inato, no sentido de que nossa razão, des - perspectiva. A lei natural é lei da realidade moral do
de que somos concebidos no ventre materno, tenha homem, ou seja, do âmbito do agir livre do homem;
nela impressa a lista dos preceitos de lei natural. São portanto, a lei natural pode ser desobedecida, em-
inatas a sindérese e as inclinações naturais, do que bora não deva ser assim. Se não pudesse ser deso -
deriva o conhecimento fácil e seguro dos preceitos bedecida, seria um instinto ou uma lei física, não lei
fundamentais da lei natural. Mas, em todo caso, os da realidade moral do homem. O fato de haver mui-
preceitos da lei natural são obra da razão, que não tos que desobedecem a alguns preceitos de lei natu-
erra nos citados princípios fundamentais. Pode ser ral - é impossível que se desobedeçam a todos ou à
difícil que conheça os preceitos que derivam desses maioria, porque isso levaria ao desaparecimento do
preceitos fundamentais e erre ao raciocinar para homem; v.g., todos se suicidariam, se é que não se-
conhecê-los, pois a razão humana não é infalível. riam assassinados antes - significa apenas que, nes-
Por isso, não é estranho ver que o próprio Aristóte- se aspecto, a degradação do homem está muito di-
les se enganou em algum preceito de lei natural, ou fundida. É o risco da liberdade, que nada tem a ver
que há pontos discutidos entre moralistas e entre com a existência da lei natural, se esta for entendida
juristas. Esse fato não tem nada de especial nem de corretamente, isto é, como lei da liberdade e, conse-
raro quando se sabe como a razão humana toma qüentemente, como lei que é possível - de fato - ao
conhecimento; raro seria o contrário. Sem dúvida, o homem desobedecer.
que acabamos de dizer - e o que a respeito diremos Para outros é motivo de estranheza não tanto o
a seguir - precisa de muitos detalhes, porém não é o fato de que muitos desobedeçam a alguns preceitos
166 O QUE É O DIREITO? A LEI NATURAL EA LEI POSITNA 167
da lei natural, mas o fato de que quem se acostu- contou que, ao longo de sua carreira, tinha passado
mou a desobedecê -la acaba por esquecê-la, e inclu- a perna em mais de um que pudesse ofuscá-lo. Re -
sive defende o que faz. Nesse ponto é necessário ser conhecia que tinha agido mal, mas acrescentava
bons psicólogos e saber distinguir com precisão o que, apesar de estar errado, se nascesse de novo e
que há por trás de tais defesas ou dessas atitudes de se encontrasse na mesma situação, faria a mesma
esquecimento. Nós, seres humanos, esquecemos coisa. Em casos assim não há um esquecimento da
menos facilmente do que parece os preceitos da lei lei natural, reconhece-se que se age mal; o que ocor-
natural. Não faz muito tempo morreu uma famosa re é que o homem se instala em seu próprio egoís-
e excelente atriz, cuja vida sentimental não tinha mo e prefere seu sucesso a cumprir a lei natural. Es-
sido muito exemplar em certos aspectos. Diante das quecimento da lei natural?. De maneira nenhuma, o
críticas recebidas, por um lado, se defendia dizendo que há é preferência por condutas que são contrá-
que as pessoas não têm direito de interferir na vida rias a ela, adormecimento da consciência e coisas
particular dos outros; por outro, confessava que não do gênero. Pode haver, inclusive, ambientes sociais
compreendia por que as pessoas acreditavam que nos quais agir contra algum aspecto da lei natural
ela era uma mulher imaculada; ela era como as de - seja uma norma social de comportamento elogiada
mais pessoas, e todos os seres humanos - concluía e obrigatória, se não se quiser ser objeto de rejeição.
- são em parte bons e em parte maus. Logo, tinha Porém, se observarmos esses casos, muitas vezes
consciência de que algo de errado existira em sua chegaremos à conclusão de que neles também não
conduta. há um verdadeiro esquecimento da lei natural; tra-
Nós, seres humanos, muitas vezes criamos uma ta-se, isso sim, de processos de aturdimento dara-
encenação de razões para encontrar justificativa zão e da consciência, que não tiram a compreensão
para nossas ações contrárias à lei natural, mas isso da inépcia moral em que se incorre, embora tal com -
não significa que não tenhamos consciência de que preensão fique semi-apagada pela manipulação
agimos mal; significa apenas que preferimos o con- ideológica ou ambiental de que se é objeto.
trário à lei natural, e para isso - como a sindérese é Contudo, certamente pode haver alguns casos
inata e, por conseguinte, só agimos sob alguma ra- nos quais cabe falar de esquecimento da lei natural, nos
zão de bem - buscamos algum aspecto de bem. Não quais não se percebe a inépcia moral em que se in-
muito tempo antes da mencionada atriz famosa, corre. Tais casos não se referem nunca aos preceitos
morreu um não menos famoso ator. Em algumas primários ou fundamentais, mas aos preceitos que
declarações feitas poucos meses antes, esse ator supõem um conhecimento mais pleno e perfeito da
168 O QUE É O DIREITO?
A LEI NATURAL E A LEI POSITWA 169
natureza humana. Em outras palavras, fora do nú- de acordo com um mesmo esquema, se me é per-
cleo dos preceitos fundamentais, pode haver fenô - mitido falar assim. Por isso, as diferenças são aci-
menos de ignorância e erro. A explicação é bem sim- dentais, secundárias. Se observarmos o corpo, todos
ples: os preceitos de lei natural não são juízos inatos nós somos produtos de um mesmo plano: os mes-
da razão, e sim juízos obtidos por raciocínio - certa- mos ossos, os mesmos tecidos, os mesmos órgãos,
mente elementar, quase imediato - e, por conse- os mesmos sentidos etc. Igualmente, todos temos
guinte, pode haver falhas nesse raciocínio, seja por alma e corpo, idênticas potências espirituais (razão
conhecimento insuficiente da natureza humana, seja e vontade) etc. Todos temos as mesmas inclinações,
por culpa das paixões ou dos vícios que influem ne- todos somos igualmente pessoas e possuímos o
gativamente na correta atuação da razão. A razão hu- mesmo valor e dignidade. Em suma, todos temos a
mana tem falhas, embora estas sejam remediáveis mesma natureza, os mesmos fins e as mesmas exi-
pelo estudo e, sobretudo no que diz respeito à lei na- gências de conduta e de tratamento. A lei natural é
tural, pela retidão da vontade. igual e a mesma para todos os homens e para todos
os povos.
O que pode variar é aquele ou aqueles preceitos
9. A universalidade da lei natural que os homens individuais ou um ambiente social
violam com maior assiduidade. Alguns são dados a
Todo homem nasce com a retidão de razão ne- roubar, outros a vagabundear, outros a mentir etc.
cessária - a sindérese - para saber infalivelmente os Homens e povos têm seus vícios dominantes. Isso
primeiros princípios da lei natural: faça o bem e evi- não indica nada contra a universalidade da lei natu-
te o mal. Tem também por natureza as inclinações ral; é, isso sim, uma prova da universalidade do pe-
que lhe são próprias: a preservação de seu ser, a ten- cado original. No que se refere aos vícios, os homens
dência ao casamento, a religiosidade, o trabalho, a e os povos também têm suas preferências.
tendência à associação, ao saber e à comunicação. E A esse respeito parece interessante voltar ao que
seu ser e seus fins têm a mesma exigência. Por isso a já explicamos antes. Alguns ficam escandalizados
lei natural é universal. com esse fato, pois observam que algum povo tem
É certo que cada homem tem suas característi- um vício dominante - v.g., os nômades dos desertos
cas individuais; todos somos diferentes. Porém, não africanos costumam dedicar-se a roubar o próximo,
é menos certo que, ao mesmo tempo, todos temos alguns povos foram canibais, a civilização ocidental
um substrato ou fundo comum, todos somos feitos sofre a violência e o terrorismo, os brancos da África
170 O QUE É O DIREITO?

do Sul praticaram a discriminação racial, e assim po- Capítulo X


deríamos enumerar todos e cada um dos povos -, O direito canônico
acham que a lei natural não é universal. Raciocínio
que obedece a um equívoco: confundir a lei natural
com uma)~i física. Se a lei natural fosse uma lei físi-
ca, ninguém a violaria; por isso, todos os homens
têm fome, sono, o coração que bate etc. Mas como a
lei natural é moral (lei da liberdade) e não física, o
homem é capaz de descumpri-la, e, dada a existên-
cia do mal moral e da inclinação ao mal, de fato nós,
seres humanos, descumprimos seus preceitos. O que Nas origens da ciência jurídica moderna encon-
foi dito: isso não prova que a lei natural não seja tramos não só os legistas, cujo início, com o prece-
universal; prova, por outro lado, que o pecado origi- dente de um tal Peppo, do qual pouco se sabe além
nal é universal. do nome, se deve ao tão famoso quanto pouco co-
O caso é que, ao chegar a este ponto, encontro- nhecido mestre Irnério, como também os canonis-
me um tanto confuso. Tenho a impressão de ter dito tas, com a figura também não muito conhecida do
tudo o que é oportuno dizer nesta introdução sobre mestre Graciano. Até agora considerava-se incon-
a lei natural e ainda não contei os fatos em que Só- testável que a precedência cabia aos legistas, cujos
focles torna Antígona a protagonista nem as famo - métodos os canonistas teriam seguido; no entanto,
sas palavras que põe em sua boca. Mas agora já não as mais recentes pesquisas sobre a obra de Graciano
é o momento de narrá-los. De qualquer maneira, o estão pondo em dúvida essa precedência, que por
leitor não deve se sentir frustrado; pode ler o ori- ora conta com a oposição dos romanistas medieva-
ginal, que sempre será melhor, e se for um estudan- listas. Em todo caso, a ciência jurídica moderna, em
te de Direito, tenha certeza de que não vai se livrar suas origens, deve tanto aos legistas quanto aos ca-
da inevitável citação de Sófocles e de sua Antígona: nonistas o que, unido ao regime jurídico dos Esta-
está intimado. dos e suas relações com a Igreja Católica (regime de
Cristandade), originou o sistema do utrumque ius,
dos dois direitos: o ius civile (direito civil) e o ius ca-
nonicum (direito canônico), que durante séculos re -
geu a vida jurídica da Europa.
O QUE É O DIREITO?
O DIREITO CANÔNICO 173
172
zir a engano sobre a genuína natureza do direito ca-
Com o advento da Reforma protestante, esse
sistema desapareceu, para o direito canônico ficar nônico. Na Igreja existem verdadeiras relações de
dentro dos limites da Igreja Católica. Mas, embora justiça comutativa (v.g., contratos), justiça distributi-
separado do direito secular, o direito canônico con- va (v.g., os fiéis têm direito aos sacramentos) e justi-
tinuou vivo e os canonistas constituíram um setor ça legal (há na Igreja autêntica potestade legislativa
importante da ciência jurídica, com suas Faculdades e de regime ou executiva e judicial); conta com um
de Direito Canônico e uma atividade científica e prá- direito penal e com um sistema judicial etc.
tica intensa. Não se deve esquecer, por outro lado, Se existe verdadeira justiça, existe verdadeiro ius,
que o direito canônico rege matérias tão relevan- como nas páginas anteriores ficou - esperamos -
tes para a vida dos homens como o casamento, em suficientemente claro.
uma comunidade independente e soberana que con- Por isso, e seguindo uma gloriosa tradição que
ta com milhões de fiéis, que superam em número, remonta ao início da ciência jurídica européia, ser
com grande diferença, os Estados mais habitados e canonista é ser jurista, a ciência canônica é um im-
extensos. Nenhum direito dos Estados - ainda con- portante - ao mesmo tempo original - setor da ciên-
tando com o direito de uniões de Estados como a cia jurídica, e o método a seguir é um método ju-
União Européia - tem a vigência em extensão que o rídico.
direito canônico tem. Trata-se, pois, de um fenôme- Mas que método? A pergunta não é vã, porque
no jurídico que nenhum jurista pode esquecer e ao durante o século XX, salvo muito poucas exceções, a
qual necessariamente é preciso fazer uma referên- canonística majoritária foi uma canonística deca-
cia, mesmo que muito sumária, em uma introdução dente e de curtos vôos, fiel seguidora do método da
ao direito. exegese dos textos legais, um método já superado
O direito canônico, pelas matérias de que trata, pela ciência jurídica secular, que em geral conheceu
distingue-se claramente do direito secular - o das co- épocas brilhantes, e no século XIX (depois da Escola
munidades políticas - porque se trata de socieda- da Exegese na seqüência do Código de Napoleão) já
des de natureza diferente. Confluem apenas no ca-
havia abandonado o método exegético para substi-
samento, cuja jurisdição, além da dos batizados, a
tuí-lo pelo método sistemático. Dessa decadência só
Igreja reclama para si, com um sistema matrimonial
se salvaram algumas minorias agrupadas no que se
canônico muito mais perfeito que os sistemas ma-
conhece por Escola Italiana e Escola da Lombardia.
trimoniais civis.
Nos últimos cinco lustros do século XX, conti-
Essas inegáveis diferenças de conteúdo entre o
nuando a canonística majoritária sem sair da exege-
direito canônico e o direito secular não devem indu-
174 O QUE É O DIREITO?

se, apareceram canonistas seguidores do método BIBLIOGRAFIA


sistemático, com tratados e manuais que em nada
têm a invejar em qualidade e critério jurídico os da
ciência jurídica secular. Desponta, portanto, um re -
nascimento da canonística, que, sem dúvida, dará
seus frutos em nosso século XXI.

Como possível ampliação dos temas tratados nesta introdução,


indicamos, a seguir, alguns livros para eventual consulta.

ARISTÓTELES. Ética a Nicómaco, Centro de Estudios Constituciona-


les, Madrid, 1981.
BRUFAU PRATS, J. Introducción al Derecho. I. El hombre, el entorno so-
cial y el Derecho. II. El ser del Derecho, Salamanca 1982 e 1983, res -
pectivamente.
BURKE, C. Conciencia y libertad, Madrid, Rialp, 1976.
CASTAN, J. Los derechos del hombre, Madrid, Reus, 1976.
D'ENTREVES, A P. Derecho Natural, Madrid, Aguilar, 1972.
D'ORS, Á. Una introducción al estudio del Derecho, Madrid, Rialp, 1982.
Livro muito original e sugestivo.
- - . Sistema de las ciencias, II, III e N, Pamplona, Eunsa, 1970, 1974
e 1977, respectivamente.
- - . Papeles del Oficio Universitario, Madrid, Rialp, 1961.
- - . Nuevos papeles del Oficio Universitario, Madrid, Rialp, 1980.
FERNÁNDEZ GALIANO, A, Derecho Natural, Madrid, Universidad
Complutense, 1983.
FRIEDRICH, C. J. La Filosofía del Derecho, México, Fondo de Cultura
Económica, 1964.
FUENMAYOR, A DE. Divorcio: legalidad, moralidad y cambio social,
Pamplona, Eunsa, 1981.
GUITTON, J. El trabajo intelectual, Madrid, Rialp, 1977.
HERNÁNDEZ GIL, A El abogado y el razonamiento jurídico, Madrid,
1975.
- - . Metodología de la Ciencia del Derecho, Madrid, Ternos, 1971.
176 O QUE É O DIREITO?

HERVADA, J. Introducción crítica al Derecho Natural, 10~ ed., Pamplo-


na, Eunsa, 2001.
- -. Lecciones propedéuticas de Filosofía del Derecho, 3~ ed., Pamplona,
Eunsa, 2000.
IHERING, R. Bromas y veras en la jurisprudencia, Buenos Aires, Ed.
Jurídicas, 1974.
LATORRE, A. Introducción al Derecho, Barcelona, Ariel, 1983. É uma
amostra de positivismo jurídico, dentro de uma orientação hu-
manística y liberal.
MARTÍNEZ DORAL, J. M. La estructura del conocimiento jurídico,
Pamplona, Eunsa, 1963.
MILLÁN PUELLES, A. Persona humana y justicia social, Madrid, Rialp,
1962.
PIEPER, J. Las virtudes fundamentales, Madrid, Rialp, 1976. Ver La jus-
ticia, que é um excelente tratado sobre ela.
- - . El ocio y la vida intelectual, Madrid, Rialp, 1962.
PLATÃO. La República, Centro de Estudios Constitucionales, Ma-
drid, 1969.
PRECIADO HERNANDEZ, R. Lecciones de Filosofía del Derecho, Mé-
xico, Editorial Ius, 1960.
RECASENS SICHES. Panorama del pensamiento jurídico en el sigla XX,
México, Porrua, 1963.
ROMANO, D. Elementos y técnica del trabajo cientifico, Barcelona, Tei-
de, 1970.
SCHOUPPE, J.-P. Le réalisme juridique, Bruxelas, 1987.
TRUYOL, A. Los derechos humanos, Madrid, Tecnos, 1968.
VALLET DE GOYTISOLO, J. Sociedad de masas y Derecho, Madrid,
Taurus, 1969.
VILLEY, M. Compendio de Filosofía del Derecho, edição espanh ola: Pam-
plona, Eunsa, 1979 e 1981, 2 vols.

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