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LIÇÕES DE DIREITO

COSTUMEIRO

Dr. Halutenda Dumba e Dr. Jimi Lucamba


ISPOC
1
Dedicatória

“Aos nossos estimados


estudantes do ISPOC –
Huambo e suas famílias”

2
Índice
INTRODUÇÃO .................................................................................... 8
Métodos Pedagógicos param o Ensino do Direito Costumeiro ............ 10
A Avaliação Contínua ....................................................................... 10
A Avaliação Final .............................................................................. 10
O exame de recurso .......................................................................... 11
O Exame Especial. ........................................................................... 11
O Ensino e a Importância do Estudo do Direito Costumeiro .............. 11
CAPITULO I - O DIREITO COSTUMEIRO E O PLURALISMO JURÍDICO
EM ANGOLA .................................................................................... 19
1.1. O Conceito de Direito Costumeiro ........................................... 19
1.2. O Direito Costumeiro dos Povos Indígenas .............................. 35
1.3. O Direito Costumeiro e os Valores Culturais ........................... 50
1.4. A Justiça no Direito Costumeiro ............................................. 54
1.5. Organização do tribunal costumeiro ....................................... 59
1.6. Os magistrados ...................................................................... 62
17. Juiz costumeiro (soba) ................................................................ 62
1.7. Procuradores populares (chefe de família) ............................... 63
1.8. O advogado ............................................................................ 63
1.9. Tipo de crimes ........................................................................ 63
CAPITULO II – O ESTADO SOBERANO E O DIREITO COSTUMEIRO 65
2.1. Estado e soberania .................................................................... 65
2.1.1. Soberania, que é ? .................................................................. 68
2.2. O Costume no Estado - Nação ................................................... 73
2.3. A Exclusividade da Produção do Direito ..................................... 78
2.4. O Problema das Fontes do Direito e Ordenamento Jurídico ..... 0
2.5. O Positivismo e as Normas Consuetudinárias ........................... 4
2.6. O conceito de fonte do direito ................................................... 5
2.7. O Costume Como Fonte de Direito .......................................... 11
2.8. O Costume como Problema Filosófico e Constitucional ........... 15
2.9. O Multiculturalismo a Epistemologia do Direito em Angola ..... 21
2.10. O Reconhecimento e a Constitucionalização do Direito

3
Consuetudinário .............................................................................. 29
2.11. O Costume Jurídico, A Tradição e Oralidade ........................ 35
2.12. A Interpretação Jurídica do Costume ................................... 37
2.13. A Ciência do Direito Costumeiro .......................................... 42
2.14 As Características do Direito Costumeiro .................................. 44
2ª PARTE .............................................. Erro! Indicador não definido.
CAPITULO III – OS COMPONENTES HISTÓRICOS DO DIREITO
COSTUMEIRO .................................................................................. 49
3.1. O Direito na Grécia Antiga...................................................... 52
3.2. O Direito Romano................................................................... 57
3.3. O Direito Romano do Período Arcaico ..................................... 59
3.4. O Direito do Período Clássico ................................................. 60
3.5. A Interpretação das Normas Jurídicas .................................... 62
3.6. O Direito do Período Pós-Clássico ........................................... 63
3.7. A Idade Média ........................................................................ 66
3.8. Os Séculos XIX e XX .............................................................. 68
3.9. Direito hispano-português. ..................................................... 71
3.10. Sistemas Jurídicos Contemporâneos ................................... 72
3.11. O Sistema De Direito Continental Ou Romano-Germânico ... 73
3.12. O Sistema Anglo-Saxónico ou de Common Law ................... 74
CAPITULO IV – O DIREITO COSTUMEIRO DO POVO UMBUNDU ..... 77
4.1. Etimologia da Palavra Costume .............................................. 81
4.2. A Noção do Costume .............................................................. 82
4.3. Noção Sociológica do Costume................................................ 83
4.4. Noção Jurídica do Costume .................................................... 85
4.5. As Características do Costume ............................................... 86
4.6. Os Elementos de Costume ...................................................... 89
4.7. Os Tipos de Costume ............................................................. 90
4.8. O Costume Secundum legem.................................................. 91
4.9. O Costume Praeter Legem ...................................................... 92
4.10. O Costume Contra Legem .................................................... 94
4.11. A Tradição ........................................................................... 99

4
4.12. A Cultura ...........................................................................101
4.13. Os Usos .............................................................................103
CAPÍTULO V - AS AUTORIDADES TRADICIONAIS E O PLURALISMO
JURÍDICO .......................................................................................106
4.13.1. Autoridades Tradicionais: ................................................114
4.13.2. O Pluralismo Jurídico ......................................................124
CAPÍTULO VI – O PODER TRADICIONAL NOS PRINCIPAIS REINOS E
POVOS DE ANGOLA ........................................................................134
5.1. Uma Perspectiva Histórica de Angola e Seus Povos (Firmino
Kakulo e Beto de Morais) .................................................................134
5.2. O Poder .................................................................................134
5.3. A Estrutura do Poder Tradicional ..........................................152
5.4. As Comunidades Angolanas não Bantu ...... Erro! Indicador não
definido.
5.5. As Comunidades Angolanas Bantu .............. Erro! Indicador não
definido.
5.6. O Poder Tradicional e a CRA..................................................171
5.7. O Tribunal Tradicional ................ Erro! Indicador não definido.
CAPÍTULO VI– O CARÁCTER RELIGIOSO NOS POVOS DE ÁFRICA .186
6.1. A pessoa ...................................................................................186
6.1. 1. O Mito ..................................................................................187
6.3. O Curandeiro e a Medicina Tradicional, a riqueza da flora e fauna
e África............................................................................................187
6.4. OS RITOS DE INICIAÇÃO .........................................................187
6.4.1. A Circuncisão/ Evamba .........................................................187
6.4.2. O Efiko ..................................................................................187
6.4.3. As Crenças Religiosas ............................................................187
6.4.4. O Feitiço ............................................................................190
4.14. A Feitiçaria e os Seres Sobrenaturais ..................................192
4.15. A Feitiçaria Por Chicoadão ..................................................198
4.16. A Feitiçaria No Mundo Internacional...................................200
CAPITULO VI – O CASAMENTO TRADICIONAL ...............................202

5
Introdução ............................................ Erro! Indicador não definido.
Objectivo Geral ...................................... Erro! Indicador não definido.
Objectivos específicos: ........................... Erro! Indicador não definido.
Justificativa .......................................... Erro! Indicador não definido.
5.1. O ASAMENTO TRADICIONAL ...................................................204
5.1.1. O casamento pode ser interpretado por três aspetos. .............206
5.2. Tipos de matrimônios legais em algumas sociedades .............217
5.2.1. Monogamia ...........................................................................217
5.2.2. Homossexualidade ................................................................218
5.2.3. Poliandria .............................................................................218
5.2.4. Poligamia ..............................................................................219
5.2.5. Incesto ..................................................................................221
5.3. Casamento por compensação ................................................222
5.4. Divórcio ................................................................................222
5.5. Iniciativa do Divórcio .............................................................225
5.6. O processo de adopção ..........................................................228
5.7. Efeitos da adopção ................................................................230
5.7.1. Adopção por casais homossexuais .........................................231
CAPITULO VII – A Realidade do Direito da Família em Angoa, Seu
Contributo para o Casamento Tradicional .......................................232
7.1. O parentesco em Angola ........................................................235
7.2. A Família ..............................................................................235
7.3. Elementos do parentesco.......................................................236
7.4. Afinidade...............................................................................236
7.5. Conselho da família ...............................................................237
7.5.1. A promessa de casamento em Angola ....................................241
7.5.2. Dever de indemnizar .............................................................243
7.5.3. Dever de restituir ..................................................................243
7.5.4. Natureza jurídica do casamento ............................................244
7.5.5. Condição para contrair o casamento .....................................245
7.5.6. Capacidade e Impedimentos para contrair o Matrimônio .......246
7.5.7. Idade núbil............................................................................247

6
7.5.8. Demência ..............................................................................248
7.5.9. Bigamia ................................................................................249
75.10. Prazo internupcial ................................................................249
7.5.11. Impedimentos relativos.......................................................250
7.5.12. Falta da vontade ou vício ....................................................250
7.6. Direito Costumeiro No Ordenamento Jurídico Angolano ........253
7.6.1. A contratualidade do casamento tradicional ..........................260
7.6.2. Direito das sucessões costumeiro ..........................................262
7.6.3. A problemática da dissolução do casamento tradicional. ........264
Bibliografia......................................................................................266

7
INTRODUÇÃO

Todo o conhecimento que se vai aprender nesta vasta cadeira de Direito


Costumeiro está ligado, ao constitucionalismo angolano, com a ideia da
valorização dos aspectos históricos e culturais de um país, um povo e
uma nação se assim quisermos aceitar. É que, falar de Direito
Costumeiro sem olhar para a Constituição, para a história, e as
tradições, seria comparável a pertencer a uma igreja cujo deus não
existe. Dentro do panorama jurídico, político e social em que se vive nos
últimos tempos por parte de Angola, pensar no Direito Costumeiro é um
imperativo para todos aqueles que são os fazedores da justiça e lutam
por um mundo cada vez mais justo.

Por este motivo, falar do Direito Costumeiro é abrir-se ao mundo, uma


vez que os Direitos Fundamentais constitucionalmente consagrados são
lidos à luz do Direito Internacional dos Direitos Humanos.1 E o
funcionamento dos órgãos de soberania é equacionado sob a óptica das
exigências de um direito que conhece as pessoas e a sua história.

No estudo da presente cadeira será preciso referir-se a toda uma vida de


observações no mundo antropológico-cultural das sociedade e do estudo
e ensino do Direito no complexo universo da vida humana, através e,
essencialmente da experiência de Angola aparecendo e reflectido
naquilo que o, Direito Costumeiro serve para o estudante do curso de
Direito no ISPOC, tendo em conta, a Historiografia Humana, a Filosofia
Política, a Sociologia, a Antropologia, etc.

Isto tudo é ainda em certos momentos agravado pelas nuances da


Globalização.2 Onde os povos pobres são todos os dias arrastados pelos
ventos das sociedades, e dos países ricos, desenvolvidos e politicamente
famosos. Entende-se aqui como Angola moderna, um país que, saído do

1
Gameiro, 2015

2
Clemente 2013

8
colonialismo, foi-se organizando e que agora se mostra como um Estado
de Direito, aspirante ou postulante da democracia ocidental.

Acha-se importante este estudo, sobretudo quando se aceita o que a


Constituição ensina ao dizer:

“Nós, o Povo de Angola, invocando a memória dos nossos antepassados e


apelando à sabedoria das lições da nossa história comum, das nossas
raízes seculares e das culturas que enriquecem a nossa unidade.
Inspirados pelas melhores lições da tradição africana – substrato
fundamental da cultura e da identidade angolanas; Revestidos de uma
cultura de tolerância e profundamente comprometidos com a
reconciliação, a igualdade, a justiça e o desenvolvimento; Decididos a
construir uma sociedade fundada na equidade de oportunidades, no
compromisso, na fraternidade e na unidade na diversidade;
Determinados a edificar, todos juntos, uma sociedade justa e de
progresso que respeita a vida, a igualdade, a diversidade e a dignidade
das pessoas.

Na Constituição como Lei Suprema e Fundamental da República de


Angola, encontramos o Artigo 7.º (Costume) onde é reconhecida a
validade e a força jurídica do costume que não seja contrário à
Constituição nem atente contra a dignidade da pessoa humana. E
também é trazido a tona a ideia do poder tradicional nos termos do art.º
224.º (Autoridades tradicionais). Assim, as autoridades tradicionais
são entidades que personificam e exercem o poder no seio da respectiva
organização político-comunitária tradicional, de acordo com os valores e
normas consuetudinários e no respeito pela Constituição e pela lei.”

A ausência desta cadeira nos cursos de direito por muito tempo, está
traduzida na ausência muito grave do sentido patriótico dos membros
de muitos governos nos Estados africanos. Estes e vários outros
problemas fazem com que haja dificuldade de definir a África moderna,

9
se se tiver em consideração a trajectória do continente desde as
independências até aos dias de hoje”.3

Métodos Pedagógicos param o Ensino do Direito Costumeiro

Avaliação

Digamos que o trabalho docente educativo face ao processo de ensino-


aprendizagem, pressupõe na sua estrutura o campo avaliativa, não só
para analisar a estrutura programática dos conteúdos curriculares,
bem como buscar o alcance real que as matérias têm na vida dos
estudantes, ao lado dos objectivos, não só da cadeira como do curso em
geral. Por esta razão didáctica, nós também vamos avaliar, os nossos
estudantes para também avaliarmos as nossas capacidades,
competências e habilidades profissionais.

Assim temos:

A Avaliação Contínua

É o pressuposto básico de ter participado nas aulas com a realização


de dois e-folios, um trabalho em grupo e duas provas parelares. Tudo
isso em conformidade com o calendário da instituição.

A Avaliação Final

É um exame escrito a realizar-se no fim do semestre, com direito a


uma prova oral para aquele que não tenha atingido o mínimo
necessário para aprovar directamente e, se esse for também o

3
Kambuta, 2018

10
entendimento do conselho de direcção no caso concreto do conselho
científico. Não olvidando a verdade de que existe a possibilidade de ser
dispensado do exame caso obtenha uma qualificação útil nas duas
provas parcelares e daqueles trabalhos ou estudosem grupo.

O exame de recurso

Este, acreditamos que faz parte da avaliação do nosso estudante na


presente cdeira. Mas julgamos nós que só vai ao recurso aquele
estudante que por motivos extremos não tenha assegurado a sua
aprovação em todas avaliações anteriores.

O Exame Especial.

Como orientação institucional, será realizado no tempo programado


dentro do ano lectivo ou fim do semestre. E tal como ele é chamado de
especial só aqueles que por razões extremamente ponderadas terão
acesso ao mesmo, depois de cumpridos todos os pressupostos da
legalização do mesmo exame junto dos Assuntos Académicos. Este
exame fará mensão a todas as avaliações anteriores. Prova 1ª e 2ª
escritas, o exame normal, o exame de recurso, bem como aqueles
perguntas que muito mais foram realçadas nas provas orais.

O Ensino e a Importância do Estudo do Direito Costumeiro

Sendo um curso de direito, o método de ensino segue no que aos


primeiros diz respeito as regras do ensino geral com sessões presenciais
imprescindíveis, visitas e trabalhos de estudos na biblioteca ou noutros
lugares úteis, sendo a reflexão individual e de grupo uma das formas de
aprendizagem. Este método é posto à disposição dos alunos
aprendentes, que desejam estudar em regime presencial com objectivo
de adquirir formação, conhecimentos ou qualificação do nível jurídico -
profissional. Na verdade, todo trabalho docente-educativo seguirá os

11
verdadeiros passos da Pedagogia, das Didácticas e Metodologias mais
modernas de ensino-aprendizagem, que se usam nas mais conhecidas
instituições de ensino no país.

O mundo está em rápida mutação, onde a pessoa tem a necessidade de


encontrar toda uma garantia para a fundamentação daquilo que ela é e
para quem é, naquilo em que acredita, nos valores que abraça e para os
quais vive e deve viver. E esta forte necessidade de identidade mostra-se
cada vez mais premente tendo em conta a cada vez mais acentuada
circulação tanto de pessoas como de ideias, bem como a facilidade de
acesso à informação, com a consequente multiplicidade e pluralidade de
valores. É este o elemento fundamental do esforço para uma jus-
filosofia que nos ajuda a justificar o valor do ensino e estudo do Direito
Costumeiro no ISPOC.

O estudo do Direito Costumeiro é assim importante porque os costumes


representam em muitos casos, as formas do povo compor entre si
questões socialmente relevantes sem recorrer aos órgãos
administrativos e judiciais do Estado. O Direito Costumeiro muitas
vezes e em grande medida contém em si verdadeiros remédios sociais
que constituem formas ou medidas para sanar litígios sem a
necessidade de intervenção jurisdicional do Estado e sem os
constrangimentos causados às partes a quem a justiça formal se coloca
normalmente de “costas viradas”.

Afinal de contas, não se pode permanecer numa atitude de incerteza e


de indecisão, (quanto a realização da justiça) no horizonte das culturas
mais científicas, num mundo em rápida transformação. Num tal
ambiente, que os povos têm de sondar em profundidade as suas
experiencias existentes, e procurar retirar daí as verdades quanto ao
seu próprio lugar no mundo.4

É necessário apresentar a contribuição da antiguidade e dos valores


tradicionais para a formação do Direito. Um tal desiderato ganha ainda
4
Makumba 2014

12
mais premência quando nos damos conta de que a sociedade africana
contemporânea experimenta transformação devido à influência do
contacto com outros povos e culturas. O valor da África antiga
encontra-se também reflectido na maioria dos casos nas estruturas e
instituições das sociedades tradicionais e modernas. Sendo assim, os
valores tradicionais são profundamente religiosos e pessoais e
correspondem ainda hoje a uma perspectiva comunitária. Eles visam
modelar o indivíduo para a sua participação integral na sociedade,
tendo em vista a plena realização, tanto individual como a
comunidade.5

No ISPOC o estudo do Direito Costumeiro é muito importante, porque


nele os costumes ocupam o lugar de destaque como fonte de Direito.
Além disso, as circunstanciais actuais exigem um diálogo intercultural
no campo do próprio Direito. Por isso, o costume deve merecer uma
atenção especial na formulação e na aplicação do direito, como também
na formação de novos juristas. O costume dos povos e as suas tradições
não podem de forma alguma ser ignorados nem minimizados, porque
representam uma componente fundamental da cultura do povo, não
apenas no que diz respeito ao seu valor cultural, mas também no que
toca ao carácter e condão destes eventos para mobilização da sociedade
e alteração da ordem social vigente.

Daí que muitos institutos jurídicos e valores estejam em divergência


com o pensamento ou mesmo o tratamento que merecem por parte das
populações. Pense-se, por ex., em situações tais como os critérios legais
e os critérios tradicionais de sucessão mortis causa; o conceito, a
organização e as concepções sobre a família nomeadamente o
parentesco e a afinidade; práticas como o alambamento e a sua relação
com a promessa de casamento; concepções sobre a união de facto, a
poligamia e o adultério; a similitude hoje verificada entre as celebrações
do casamento e da festa de noivado, etc.. Em situações como estas a

5
Idem.

13
prática consuetudinária e os valores do costume comunitário poderão
influenciar ou devem necessariamente merecer a devida atenção do
legislador.

Com a presente estudo pretende-se elaborar uma matéria sobre o


Costume e o pluralismo jurídico, suas categorizações e reconhecimento
nos ordenamentos jurídicos contemporâneos, visando a determinação do
lugar que o costume jurídico ocupa. O principal objectivo consiste em
desenvolver uma reflexão filosófica sobre a relação dialética entre o
Estado e o Direito nas suas manifestações pluralísticas.

O estudo do Direito Consuetudinário suscita, ancorando-se em última


análise ao relativismo epistemológico e suas alternativas enquanto
princípio aplicado à investigação de conteúdos científicos de caracter
filosófico constitucionalista, explorando os problemas e experiências
revelados pela tradição em que se realiza. Por isso, o desafio reside na
necessidade de explicar a razão por que a modernidade ocidental revela
os indícios da sua própria crise, sendo esta suscetível de ser analisada a
partir da inadequação do modelo de Estado-nação e dos ordenamentos
jurídicos a que dá lugar em determinados contextos históricos dos povos
no mundo.

Sendo que, o interesse suscitado pelos problemas tradicionais


constituem os eixos desta cadeira que emerge dos debates teóricos
sobre as fontes do direito, a perda do monopólio do Estado em matéria
de produção do direito válido e o reconhecimento do Direito
Consuetudinário, no quadro dos ordenamentos jurídicos estaduais a
que se pretende atribuir unidade, coerência e completude. Tais
problemas são observáveis em situações concretas decorrentes da
consagração do pluralismo jurídico de que a dignidade constitucional
atribuída ao Direito Consuetudinário será a mais expressiva ilustração.

A este respeito entendemos que a constitucionalização do pluralismo


jurídico levanta algumas questões que, sendo relevantes do ponto de

14
vista da Filosofia Política e da Filosofia do Direito, podem formar um
elenco de realidades como:

a) Pode dizer-se que o Estado perde o monopólio da produção do


direito ao consagrar constitucionalmente o pluralismo jurídico,
através do reconhecimento do Direito Consuetudinário e das
Autoridades Tradicionais que o produzem e aplicam de acordo
com a tradição?

b) Mantem-se incólume a teoria da soberania do Estado perante o


reconhecimento do pluralismo jurídico?

c) Será a perspectiva juspositivista suficientemente coerente para


explicar situações decorrentes do pluralismo jurídico
institucionalizado?

d) Entre o Direito Estadual e Direito Consuetudinário estabelece-se


uma relação de coexistência e equidade ou será o ordenamento
jurídico consuetudinário subalterno?

e) Poderá a ausência de equidade entre o Direito Estadual e o


Direito Consuetudinário representar uma situação de injustiça?

f) Serão as normas de reconhecimento do Direito Consuetudinário


justas, válidas e eficazes?

g) A aplicação do Direito Consuetudinário supõe que os juízes sejam


detentores de um sólido conhecimento das línguas e da ordem
jurídico-consuentudinária ou bastará a formação obtida nas
Faculdades de Direito onde não são ministradas matérias
relevantes?

Todas essas questões mergulham nas profundezas dos fundamentos


valorativos das normas jurídicas que constituem a ossatura dos
ordenamentos jurídicos de Estados contemporâneos e, por conseguinte,
configuram tipos de problemas jus filosóficos. De acordo com Norberto
Bobbio, estamos perante problemas deontológicos, ontológicos e
fenomenológicos. O problema deontológico resulta da necessidade de

15
dar respostas concernentes à correspondência das normas aos valores
que sustentam um determinado ordenamento jurídico, ou seja, a
correspondência entre o real e o ideal.

O problema ontológico remete para o exame da definição do que pode


ser entendido como direito nesse contexto. Já o problema
fenomenológico requer a avaliação das manifestações e comportamentos
coletivos relativamente à observância das normas jurídicas.6

Portanto, trata-se de problemas que devem ser estudados em sede de os


domínios da Filosofia, nomeadamente, a Filosofia Política, a Filosofia do
Direito e a Filosofia Moral. Do ponto de vista metodológico
privilegiaremos abordagens que tipificam os dois primeiros. Na história
da Filosofia Política e da Filosofia do Direito, tais questões mobilizaram
várias gerações de filósofos que constituem comunidades disciplinares
no mundo ocidental e em países de África, Ásia e América Latina.

Durante o século XX, a demanda de respostas desenvolveu-se no quadro


de três doutrinas: o jusnaturalismo, o juspositivismo e o realismo
jurídico. Sem pretensões de adoptar perspectivas que se inscrevam em
qualquer uma delas, julgamos pertinente considerar que semelhante
reflexão pode contribuir para a compreensão do sentido e fins do direito
a partir de um diagnóstico que situe a historicidade do homem no
centro das interrogações, tendo em conta as “coordenadas sociológicas,
axiológicas, crítico-culturais, funcionais e antropológicas.”7

No decurso do século passado, as realidades vividas por vastos sectores


das comunidades populacionais, bem como a especificidade e as
dinâmicas das suas relações sociais, perante a obrigatoriedade
vinculativa das normas emanadas das instâncias do Estado,
legitimaram indagações e respostas que encontraram o fundamento na

6
Bobbio, 2012, p. 48

7
Neves, 2010, p. 75

16
normatividade do Direito Consuetudinário. Tal circunstância colidia
com a fortuna doutrinária do positivismo jurídico que dominou o
pensamento jurídico, a investigação e o ensino do direito.

Com o desafio de explicar a razão por que a modernidade ocidental


revela os indícios da sua própria crise, sendo esta suscetível de ser
analisada a partir da inadequação do modelo de Estado-nação e dos
ordenamentos jurídicos a que dá lugar em determinados contextos
históricos. Tal fenomenologia ocorre especialmente naquelas regiões do
mundo onde o referido modelo, apesar da sua vocação monista,
uniformizadora e dos mimetismos institucionais locais, vem pôr em
causa os fundamentos epistemológicos de uma teoria geral do Estado e
o princípio jus positivista da universalidade da lei e da norma jurídica.

A exploração dos assuntos enunciados requer uma revisão crítica da


bibliografia existente que, não podendo ser exaustiva, permita dar conta
dos contributos de maior relevância. De modo selectivo, constituiremos
uma grelha interdisciplinar de leitura com autores e obras que
assegurem o aprofundamento do debate no âmbito de eixos disciplinares
subsidiários da Filosofia Política e da Filosofia do Direito, tais como a
Teoria Geral do Estado, a Teoria das Fontes do Direito, a Teoria do
Pluralismo Jurídico e a Antropologia Jurídica.

Por isso, a perspetiva que impregna a estrutura argumentativa opera


igualmente com os subsídios da História da Filosofia do Direito, esse
negligenciado ramo da filosofia, embora se saiba que na tradição
ocidental, o estudo do Direito Consuetudinário cuja precursores
remontam a época dos pré-socráticos não voltou a atrair tanto a
atenção dos filósofos1, excetuando o período em que no século XIX a
Escola Histórica do Direito elegeu o costume como fenómeno jurídico
merecedor de estudo. Todavia, tal como no século XX, persiste a
necessidade de desenvolver uma perspectiva histórico-filosófica que,
perante as posições que opõem a filosofia do direito dos filósofos à
filosofia do direito dos juristas, justifique a possibilidade de transposição
dos limites consagrados pelos critérios jusnaturalistas e juspositivistas.
17
18
CAPITULO I - O DIREITO COSTUMEIRO E O PLURALISMO
JURÍDICO EM ANGOLA

1.1. O Conceito de Direito Costumeiro

Na presente aula temos como objectivo caracterizar o Direito


Consuetudinário ou Costumeiro dos Povos Indígenas para reconhecer o
pluralismo jurídico existente no país. De salientar que, definir um
objecto significa indicar o seu verdadeiro sentido, a sua mais precisa
significação.8 Ao procurar-se apresentar uma definição do Direito,
primeiro, deve-se ter em mente que o vocábulo “direito” compreende
enfoques e significados diversos. Exemplificando, o termo pode ser
utilizado para significar o justo, ou o conjunto de normas jurídicas, ou a
prerrogativa que tem a pessoa de fazer valer determinada posição
jurídica etc. O Direito, assim, pode ser visto sob diversas perspectivas,
como as que seguem: Direito como justiça, Direito como ordenamento
jurídico, Direito como direito subjectivo.

O Direito Costumeiro é o direito que tende a nascer gradualmente no


âmbito de moralidade social, adquirindo força jurídica quando aceite
como regras de regulamento de conduta social dentro de uma
comunidade. Segundo Chico Adão,9 “o costume como fonte natural de
direito continua a sua marcha milenar e a suprir as necessidades
globais (jurídicas e judiciais) das comunidades rurais.

O Direito Costumeiro, muitas vezes chamado como direito


consuetudinário, é comummente entendido no ocidente como "uma
prática reiterada, generalizada e estabelecida numa dada localidade e
tendo como elemento fundamental a convicção de obrigatoriedade”.

8
VILLAR, António HOUAISS e Mouro de Salles. 2001. Dicionário HOUAISS da Língua Portuguesa. Rio
de Janeiro : Objectiva, 2001. p. 926.
9
ADÃO, Chico - Direito costumeiro e o poder tradicional dos povos de Angola, p.149.

19
Para Medina,10 “o direito costumeiro representa a reprodução do
contexto social de um determinado povo, estruturado na sua textura
mais profunda e, portanto, nos seus mais arreigados valores culturais”.

As leis costumeiras, são por norma oriundas de natureza local, tribal e,


ou regional. Cada tribo tem a sua própria lei costumeira. Angola é um
exemplo vivo desta realidade. Nesse país, existem mais de sete
diferentes etnias no qual cada uma com hábitos e costumes diferentes.
Silva,11 abordou que “o costume, no sentido jurídico estrito do termo,
como fonte de direito, aparece-nos definido pelos autores como uma
prática social, reiterada, uniforme e constante, seguida com a convicção
da sua obrigatoriedade. Integram-no, assim, dois momentos ou
elementos: um primeiro, fatual e externo, que se manifesta através da
repetição constante e uniforme certos atos (uso); um segundo,
psicológico e interno, que traduz no convencimento de que a prática
seguida corresponde a um imperativo jurídico (convicção de
obrigatoriedade)”. No entanto, o direito costumeiro, não é em si estático.

Pois, vai sofrendo os efeitos da própria evolução socioeconômica do


meio. “A preservação dos valores culturais e do direito de cada povo a
dispor de si mesmo e assegurar o seu desenvolvimento econômico-social
e cultural constitui um dos direitos humanos fundamentais.”12 Existe
alguns países africanos, como é o caso da África do Sul, onde há uma
segunda fonte de direito oriundo do costume. Nestes países, a conduta
social das pessoas é baseada no direito oriundo dos costumes dos seus
antepassados. Aqui, o direito costumeiro chega a ter um impacto
significativo nas áreas do direito da família, bem como no direito penal.
Podemos dizer que existe um dualismo de direito: o direito positivo e o
direito costumeiro.

10
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p 132.
11
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.38.
12
Idem Op. Cit. p.133.

20
A África do Sul, Austrália, Suazilândia, Lesoto e vários outros países,
optaram por reconhecer o direito costumeiro fazendo um enlace entre o
direito costumeiro e o positivo. Exempli gratia, com a implementação da
Carta Internacional dos Direitos dos Humanos, vários governos
demonstraram interesse e flexibilidade em fazer um casamento do
direito costumeiro e o direito positivo. Isto para dar as antigas colonias,
a oportunidade de manterem os seus hábitos e costumes e, respeitarem
a lei positiva do país que é a mais adaptável ao mundo moderno. Países
com um dualismo do direito costumeiro e do direito positivo têm em
comum entre si o fato de serem antigas colonias.

Antes de existir o direito positivo, que foi inserido nas comunidades


pelos antigos colonizadores, a única fonte de direito destes países, era o
costume que, por si só, era a única fonte de regulamento de normas e
conduta social. A Austrália foi um dos países que optou por fazer uma
reforma no seu ordenamento jurídico, e em 1985,13 criou leis
costumeiras que reconhecem o direito costumeiro como uma fonte de
direito para os indígenas. Mas infelizmente, o direito costumeiro
acarreta consigo em determinadas situações um choque grave com o
direito positivo. Isto porque algumas ações costumeiras colidem com o
direito positivo e, podem ser consideradas uma violação dos direitos
humanos. Uma das grandes desvantagens do direito costumeiro negro
africano é a discriminação da mulher.

“A discriminação da mulher no direito costumeiro negro africano poderá


desde logo ser apontada em diversas vertentes das quais e em síntese,
afloraremos duas que nos parecem especialmente relevantes: a
poligamia masculina e a forma de atribuição dos direitos económicos,
que no fundo não são mais do que as duas faces duma só realidade” .14

A titulo exemplificativo da discriminação da mulher, é o costume na


Suazilândia onde o rei escolhe anualmente uma rapariga virgem para se

13
Australia, The Law Reform Commission – Discussion Paper Nº 23, August 1985.
14
Idem Op. Cit p. 134. 57

21
juntar às outras mulheres do monarca. Estamos a falar de um costume
de poligamia existente na Suazilândia.15

Segundo Jerónimo,16 “não existe ainda um levantamento sistemático


das regras costumeiras - diferentes consoante a região do país – e é,
extremamente controversa a oportunidade de reconhecer legitimamente
aos líderes tradicionais para resolver disputas que, segundo muitos,
num Estado de Direito, devem caber unicamente aos tribunais”. Uma
das caraterísticas do direito costumeiro é o reconhecimento e aceitação
das regras costumeiras em muitas comunidades, regiões e países.
Porque, o indivíduo para além de se sentir familiarizado com o direito
costumeiro, reconhece-lhe os benefícios como regras de conduta social
que o direito costumeiro trás dentro de uma comunidade em
comparação ao direito positivo.17

As leis costumeiras são definidas diversamente por alguns eixos das


autoridades tradicionais. Conforme refere Luís110 “A autoridade
tradicional é uma expressão social e política das formas de organização
local em África, cujo papel em funções foi sofrendo alterações em função
das mudanças e evolução do país”.

As jovens almejam tornar-se noivas do monarca e juntar-se às outras


12 esposas que já tem, refere o jornal espanhol 'ABC'. As virgens da
Suazilândia compareceram na dança e utilizaram saias curtas, peito
descoberto e colares vistosos que simbolizam a sua vontade de casar
com o Rei, conhecido como 'o leão'. Uma delas poderá vir a juntar-se às
outras esposas, que também assistem atentas à dança. A cerimónia
passou de tradição a atração turística e milhares de pessoas juntam-se

15
FERREIRA, Leonor Mateus - Virgens dançam para conquistar Rei Mswati III [em linha]. Portugal, 2012.
[Consultado em: 15 de março 2016]. Disponível em: http://www.dn.pt/globo/africa/interior/virgens-
dancam para-conquistar-rei-mswati-iii2749958.html?id=2749958: Mais de 80 mil mulheres,
alegadamente ainda virgens, juntaram-se na tradicional dança Umhlanga, que acontece em agosto, para
o Rei Mswati III da Suazilândia.
16
JERÓNIMO, Patrícia — Estado de Direito e justiça tradicional: ensaios para um equilíbrio em Timor-
Leste, p. 97 - 98.
17
LUÍS, Pedro Manuel – Curso de Direito Constitucional Angolano, p. 613. 58

22
às virgens para assistir à dança. Para além de se mostrarem como
pretendentes, as mulheres orgulham-se em mostrar a sua pureza.
Mswati III sucedeu ao seu pai, Sobhuza II, em 1986.

Na Suazilândia, dois terços dos seus súbditos são alimentados por


ajuda internacional, 34% da população ativa está desempregada e mais
de metade vive com menos de um dólar por dia. O Rei nasceu a 19 de
abril de 1968, quatro horas antes de o país alcançar a independência da
Grã-Bretanha. Foi inicialmente batizado com o nome Makhosetive e já
teve 13 esposas. A 12ª foi apanhada a traí-lo com o ministro da Justiça
e ambos foram presos.

Os costumes são aceites como regras legais ou como regras obrigatórias


de uma conduta, prática, crença que são vitais dentro de uma
comunidade seja para o sistema social ou económico, e são respeitadas
como as leis escritas. Fundadas em padrões de comportamentos que
pode ser verificado objetivamente dentro de um contexto social
específico. A codificação moderna do direito civil é desenvolvida através
de costumes oriundos da Idade Média, as expressões de lei são
desenvolvidas em comunidades particulares e, lentamente coletadas e
escritas por juristas locais. Esses costumes adquiriram força jurídica
logo que a mesma se torna em regra de conduta social e, indiscutível
bem como protegidas por determinados direitos ou obrigações reguladas
pelos membros de uma comunidade.

Há diversos conceitos de Direito, variando conforme as diferentes


Escolas e Teorias seguidas pelos autores. Apresentamos, aqui, o
conceito de Direito em seu aspecto objectivo, entendido como a
realidade, presente na vida social, que regula as relações entre as
pessoas.
Nesse enfoque, o Direito pode ser definido como o
conjunto de normas imperativas que regulam a vida em
sociedade, dotadas de coercibilidade quanto à sua
observância.

23
Os seres humanos, por viverem em sociedade, necessitam de regras e
princípios que possibilitem o convívio entre as pessoas, permitindo a
evolução, a harmonia e a paz nas relações sociais. E o Professor João de
Castro Mendes, define o Direito no sentido central da palavra dizendo
que é “o sistema de normas de conduta social, assistido de protecção
coactiva”,18
Noutros termos o Direito Costumeiro pode ser visto como:
O Direito Tradicional ou Habitual que é o
sistema de normas que, nas sociedades
rurais o praticam, condiciona e rectifica as
relações interpessoais dentro do grupo e
para fora dele, ao mesmo tempo que
protegem os interesses individuais e
também ou sobretudo, colectivos.

Alguns especialistas dizem que esse sistema não constitui exactamente


um sistema jurídico, mas sim pré-jurídico e essas normas não são
exactamente leis, mas sim práticas e costumes compulsivos”.19 Por
outro lado, Abrantes,20 diz que “as normas do Direito Tradicional nunca
se afastam e nunca se desligam do sistema ético e são por ele geradas e
geridas.

O Direito é justamente um conjunto de normas, estabelecidas com essa


finalidade. Os preceitos jurídicos são normas imperativas de
comportamento, no sentido de que a sua observância é obrigatória. Para
se alcançar essa imperatividade, as normas jurídicas são dotadas de
coercibilidade, que é a possibilidade de se ter a coacção, como forma de

18
MENDES, João de Castro. 1994. Introdução ao Estudo do Direito. Lisboa : Pedro Ferreira - Artes
Gráficas, 1994. p. 11.
19
ABRANCHES, Henrique. Direito Tradicional e agregado Familiar – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.189. 5 Resolução nº 25/07, de 16 de julho, art.6.º (Casamento) Os
Estados Partes garantem que os homens e as mulheres gozem de direitos iguais e que sejam
considerados parceiros iguais no casamento.
20
ABRANCHES, Henrique. Direito Tradicional e agregado Familiar – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.189.

24
constranger (obrigar) a pessoa ao cumprimento da norma jurídica. Isso
ocorre mediante a previsão e a imposição de sanção, aplicada de forma
organizada, pela autoridade constituída, ou seja, pelo órgão para isso
instituído, de modo a garantir o respeito à ordem jurídica. A sanção,
assim, é a consequência jurídica prevista pela norma de Direito, no caso
do seu descumprimento. A coacção, por sua vez, é a aplicação efectiva
da sanção.

Efectivamente, o Direito, como realidade e experiência social, leva em


conta os factos sociais, procurando garantir que valores reconhecidos
como necessários sejam preservados. Observa-se, portanto, uma
unidade envolvendo fato – valor – normal. O Direito, assim, é a
ordenação das relações sociais baseada na “integração normativa. de
factos e valores”.

Assim sendo, uma outra forma de definir o Direito pode ser assim
enunciada: ordenação imperativa, atributiva e coercível da conduta
humana, como forma de assegurar valores necessários à regulação da
vida em sociedade. Para todos os efeitos, o direito diz o que se deve fazer
e o que não se deve fazer, ou seja, o que se pode praticar. E tudo isto
em ordem a proporcionar a cada um possibilidade de prefigurar as
consequências dos seus comportamentos, prevenir eventuais litígios,
resolver litígios já desencadeados, potenciar a cooperação entre os
homens, assegurar a atribuição a cada um do que é seu, em poucas
palavras, realizar a Paz, o Bem Comum, a Justiça. 21

Ainda aqui não encontramos a ideia do Direito Costumeiro, mesmo que


se tenha apresentado as premissas do Direito em geral, mas enquanto
se forem desenvolvendo as matérias presentes, aparecerá a definição da
presente cadeira. Considerando que cada sociedade tem a sua forma
própria de organização social, o direito positivo, escrito, codificado e

21
Januário, António Ribeiro Gameiro e Rui. 2014. Introdução e Teoria Geral do Direito. 2. Luanda :
Cosmos, 2014. p. 25.

25
fundamentado na figura do Estado Soberano não se apresenta como
única fonte de emanação do direito, nem tampouco como uma forma
mais segura e justa de se ordenar as sociedades. A ausência da figura
do Estado Soberano e a oralidade que caracterizam o Direito
Costumeiro dinamizam as sociedades indígenas e ordenam as suas
comunidades com base em regras imersas no corpo social. De modo
geral, o Direito Consuetudinário é definido como:
“um conjunto de Normas Sociais Tradicionais,
criadas espontaneamente pelo povo, não escritas
e não codificadas.”22

O vocábulo “consuetudinário” significa algo que é fundado nos


costumes, por isso chamamos essa espécie de direito também de Direito
Costumeiro. Diante de suas características, distinguimos o Direito
Consuetudinário do Direito Positivo, pois este se fundamenta pela
existência de uma autoridade política constituída, o Estado Soberano,
do qual emana todo o seu poder, sendo que aquele vigora e opera
independentemente da existência dessa autoridade.

Por outro lado, embora estejamos tratando dessas formas jurídicas


(Direito Costumeiro e Direito Positivo) como distintas, o Direito
Costumeiro só existe em relação ao Direito Positivo, portanto não
há como se pensar nem na sua anterioridade nem na sua autonomia
perante o Estado.23 O Direito Costumeiro, nesse sentido, só existe em
oposição ao Direito Positivo e o seu próprio conteúdo é, parcialmente ou
por contraste, informado pela presença do Estado, tudo isso face aos
artsº 223º e 224º CRA.

22
CURI, Melissa Volpa, O Direito Consuetudinário dos Povos Indigenas e o Pluralismo Jurídico

23
CUNHA, Paulo Ferreira. Filosofia do Direito. Fundamentos, Metodologia e Teoria Geral do Direito,
Lisboa: Almedina, 2013

26
O Costume, nos termos art.º 7º da CRA representa uma fonte
importante do direito, visto que as normas derivam, em boa parte, dos
modos de viver de uma sociedade.

No entanto, o Direito Positivo vigente dá aos costumes um valor


secundário, colocando o Direito Costumeiro como algo inferior ou
atrasado, como se fosse um estágio anterior à constituição do Direito
Positivo normativo emanado pelo Estado.

Essa concepção deriva em grande medida, das teses Antropológicas


Evolucionistas, que fundamentam as suas teorias na ideia de que toda
a humanidade atravessa sucessivamente, seguindo uma única direção,
uma trajectória do simples para o complexo, do irracional para o
racional, compreendendo três fases de desenvolvimento:

1. A selvageria;

2. A barbárie;

3. E, finalmente, a civilização.

Na selvageria estão o arco e as flechas e uma forma de organização


política denominada de horda primitiva. Na barbárie estão as
cerâmicas, as ferramentas de ferro e uma forma política que é a “tribo”.
Já no estágio mais avançado, isto é na civilização, ocorre o surgimento
da escrita e da forma política que é o Estado.24

Diante dessa visão, o Direito Consuetudinário ou Costumeiro dos povos


indígenas deve ainda transpor essa barreira autoritária que tende a
vincular o Direito ao Estado, a privilegiar a lei, a codificação das
normas, em detrimento da tradição oral e dos usos e costumes que
caracterizam uma dada sociedade.

A ideia da sociedade dominante, que converte a sua cultura em


paradigma universal, é a de que esses povos denominados

24
WOLFF, Francis. Quem é Bárbaro? In: NOVAES, Adauto (Org.). Civilização e Barbárie. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.

27
“primitivos/indígenas” não possuem um sistema de leis, pois a ausência
do Estado e de normas escritas demonstra um atraso severo e o
carácter simplificado da sua estrutura social. Colaborando com essa
perspectiva, a doutrina jurídica tradicional é unânime em considerar
que o direito codificado, ou seja, escrito, favorece mais a certeza do
direito que as normas costumeiras, sendo justamente este o motivo que
dá à lei uma superioridade sobre o costume.

Coloca-se ainda que, com a evolução das sociedades, estas normas


deixam a forma consuetudinária e se transformam, progressivamente,
em direito codificado.25 A tentativa de desconsiderar o Direito
Costumeiro, colocando-o como algo menor ou inferior, não se restringe
ao meio jurídico, mas é uma visão ainda presente em outros campos,
como o antropológico e o sociológico. Vale citar, na antropologia, a obra
de Bronislaw Malinowski (2003): Crime e Costume na Sociedade
Selvagem, publicado originalmente em 1926, o qual, procurando
defender os povos indígenas, refutando para isso posicionamentos que
considera preconceituosos em relação às comunidades indígenas,
incorre no mesmo erro – tenta inferiorizar os direitos costumeiros e
exaltar os aborígines das Ilhas Trobriand por possuírem, na sua visão,
um direito parecido com o sistema jurídico ocidental.

Com certeza, os povos indígenas possuem a sua própria complexidade e


as suas normas não se restringem a uma simplicidade determinada
pela tradição e pela obediência servil, por meio de uma inércia mental,
como querem supor muitos estudiosos do ISPOC.

Mas, com características particulares, que não devem ser colocadas em


um juízo de valor se são melhores ou piores, possuem a sua própria
maneira de expressar o seu direito, que é por meio dos costumes,
oralmente, passando de geração em geração, num movimento vivo e
contínuo. Para começar e começar bem é necessário que se tenha a

25
NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito. Rio de Janeiro: Forense, 1993.

28
ideia real da definição e do conceito da cadeira que ora se vai estudar. E
isso só é possível depois de se entender bem o que é o Direito no seu
sentido histórico. História é o conjunto de conhecimentos relativos ao
passado da humanidade. Sob o enfoque científico, História é a ciência
que estuda eventos passados da humanidade. Desse modo, a História
trata da evolução da humanidade ao longo do tempo, apresentando os
factos e acontecimentos pretéritos, como forma de melhor compreender
o presente.

A História pode ser enfocada quanto a certo lugar, época, povo ou


civilização, delimitando o seu objecto de estudo. A História também
pode ter como objecto de estudo e pesquisa o Direito, caso em que se
está diante da chamada História do Direito, a qual narra e investiga, de
forma cronológica, o Direito como facto social, resultante da experiência
humana. Nesse sentido, a História do Direito procura apresentar a
evolução do Direito no tempo, revelando e indicando as principais
causas das mudanças e transformações. A História do Direito pode ter
como objecto específico de análise a evolução no tempo quanto a certo
ramo do Direito, a determinado instituto jurídico, ou mesmo quanto a
certos povos3 ou civilizações.

Por meio da História do Direito, procura-se reconstruir o fenómeno


jurídico ao longo do tempo, analisando a sua evolução desde épocas
pretéritas, o que possibilita a compreensão de sua configuração no
presente. Ademais, a compreensão mais precisa do Direito “exige,
muitas vezes, o conhecimento das condições sociais existentes à época
em que foi elaborado”. A História do Direito pode se desenvolver em
diferentes planos, como:

a) O plano dos factos sociais, exercendo influência no surgimento e


na formação das normas jurídicas, bem como nas suas
alterações;

29
b) O plano da evolução normativa em si, observando as previsões
normativas existentes nas diversas épocas;
c) O plano das ideias jurídicas verificadas ao longo do tempo, as
quais também exercem influência na evolução das normas
jurídicas.

O Direito, assim, apresenta-se como uma realidade histórico-cultural e


dinâmica, ao passar por mudanças e evoluções ao longo dos tempos, o
que é estudado pela História do Direito. Assim, é possível definir o
Direito Costumeiro segundo Chicoadão:

“como sendo o ramo do direito ancestral privado do Poder Tradicional


constituído pelo sistema de normas jurídicas que regulam a organização o
funcionamento e o controlo da Administração da Nação Ancestral e ou do
Poder Tradicional das Monarquias Tradicionais e as relações que esta, no
exercício da actividade administrativa de gestão privada, estabelece com
os sujeitos de direito, nomeadamente com os do Poder do Estado.”

O costume enquanto prática social tradicional, é um fenómeno colectivo


e costrangente. Na origem do Direito, alguns costumes tiveram
finalmente força de lei dando lugar ao Direito Consuetudinário. Hume
faz do Costume (custom) aqui confundido com o hábito por causa do
seu carácter repetitivo e automático – o princípio psicológico destinado
a explicar o encadeamento causal, fora de qualquer referencia
racional.26 Numa outra perspectiva, “O Direito Consuetudinário é definido
como um conjunto de normas sociais tradicionais, criadas
espontaneamente pelo povo, não escritas e não codificadas, com vista a
regular a sã convivência entre os povos de uma mesma comunidade
tradicional ”.

Essa perspectiva parece-nos a que mais se aproxima a definição de


Direito Costumeiro, uma vez que a vida em sociedade tem como
26
ROUSSEL, G. Durozoi e A. Dicionário de Filosofia. Coimbra : Porto Editora, 2000.

30
consequência o aparecimento de regras que disciplinam as condutas
humanas. Essas regras, que delimitam as esfera de acção de cada um
restringindo a liberdade individual, em ordem a assegurar a liberdade
de todos, são as chamadas normas de conduta social, que formam a
ordem social global. Mas não se cometa o erra de pensar que as normas
de conduta socialsão apenas as normas jurídicas, pois são igualmente,
normas de conduta social as normas morais, as normas religiosa e as
normas de cortesia ou as de trato social.27

O Direito Costumeiro é um direito que tende a nascer gradualmente no


âmbito de moralidade social, adquirindo força jurídica quando aceite
como regras de regulamento de conduta social dentro de uma
comunidade. Segundo Chico Adão,28 “o costume como fonte natural de
direito continua a sua marcha milenar e a suprir as necessidades
globais (jurídicas e judiciais) das comunidades rurais.

O Direito Costumeiro, muitas vezes chamado como direito


consuetudinário, é comummente entendido no ocidente como "uma
prática reiterada, generalizada e estabelecida numa dada localidade e
tendo como elemento fundamental a convicção de obrigatoriedade”.
Para Medina,29 “o Direito Costumeiro representa a reprodução do
contexto social de um determinado povo, estruturado na sua textura
mais profunda e, portanto, nos seus mais arreigados valores culturais”.

As leis costumeiras, são por norma oriundas de natureza local, tribal e,


ou regional. Cada tribo tem a sua própria lei costumeira. Angola é um
exemplo vivo desta realidade. Nesse país, existem mais de sete
diferentes etnias no qual cada uma com hábitos e costumes diferentes.

27
Januário, António Ribeiro Gameiro e Rui. Introdução e Teoria Geral do Direito. 2. Luanda : Cosmos,
2014. p. 25.
28
ADÃO, Chico - Direito costumeiro e o poder tradicional dos povos de Angola, p.149.
29
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p 132.

31
Silva,30 abordou que “o costume, no sentido jurídico estrito do termo,
como fonte de direito, aparece-nos definido pelos autores como uma
prática social, reiterada, uniforme e constante, seguida com a convicção
da sua obrigatoriedade. Integram-no, assim, dois momentos ou
elementos: um primeiro, fatual e externo, que se manifesta através da
repetição constante e uniforme certos atos (uso); um segundo,
psicológico e interno, que traduz no convencimento de que a prática
seguida corresponde a um imperativo jurídico (convicção de
obrigatoriedade)”. No entanto, o direito costumeiro, não é em si estático.

Pois, vai sofrendo os efeitos da própria evolução socioeconômica do


meio. “A preservação dos valores culturais e do direito de cada povo a
dispor de si mesmo e assegurar o seu desenvolvimento econômico-social
e cultural constitui um dos direitos humanos fundamentais.”31

Existe alguns países africanos, como é o caso da África do Sul, onde há


uma segunda fonte de direito oriundo do costume. Nestes países, a
conduta social das pessoas é baseada no direito oriundo dos costumes
dos seus antepassados. Aqui, o Direito Costumeiro chega a ter um
impacto significativo nas áreas do Direito da Família, bem como no
Direito Penal, algo que nos proximos anos o legislador angolano com
certeza terá de prestar também atenção especial, se na verdade quiser-
se repeitar a constiuição e o espirito do povo, tudo isso porque existe em
Angola um dualismo de direito: o direito positivo e o direito costumeiro,
fazendo-se assim o famoso Pluralismo Jurídico.

Na África do Sul, Austrália, Suazilândia, Lesoto e vários outros países,


optou-se por reconhecer o Direito Costumeiro fazendo um enlace entre
o Direito Costumeiro e o Positivo.

Por exemplo com a implementação da Carta Internacional dos Direitos


dos Humanos, vários governos demonstraram interesse e flexibilidade
em fazer um casamento do direito costumeiro e o direito positivo. Isto

30
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.38.
31
Idem Op. Cit. p.133.

32
para dar as antigas colonias, a oportunidade de manterem os seus
hábitos e costumes e, respeitarem a lei positiva do país que é a mais
adaptável ao mundo moderno. Países com um Dualismo do Direito
Costumeiro e do Direito Positivo têm em comum entre si o fato de serem
antigas colonias.

Antes de existir o Direito Positivo, que foi inserido nas comunidades


pelos antigos colonizadores, a única fonte de direito destes países, era o
Costume que, por si só, era a única fonte de regulamento de normas e
conduta social. A Austrália foi um dos países que optou por fazer uma
reforma no seu ordenamento jurídico, e em 1985,32 criou leis
costumeiras que reconhecem o Direito Costumeiro como uma fonte de
direito para os indígenas. Mas infelizmente, o Direito Costumeiro
acarreta consigo em determinadas situações um choque grave com o
direito positivo. Isto porque algumas ações costumeiras colidem com o
direito positivo e, podem ser consideradas uma violação dos direitos
humanos. Uma das grandes desvantagens do direito costumeiro
africano é a discriminação da mulher.

“A discriminação da mulher no direito costumeiro


africano poderá desde logo ser apontada em diversas
vertentes das quais e em síntese, afloraremos duas
que nos parecem especialmente relevantes: a
poligamia masculina e a forma de atribuição dos
direitos económicos, que no fundo não são mais do
que as duas faces duma só realidade” .33

A titulo exemplificativo da discriminação da mulher, é o costume na


Suazilândia onde o rei escolhe anualmente uma rapariga virgem para se
juntar às outras mulheres do monarca. Estamos a falar de um costume

32
Australia, The Law Reform Commission – Discussion Paper Nº 23, August 1985.
33
Idem Op. Cit p. 134. 57

33
de poligamia existente na Suazilândia.34 Mas, e na verdade, essa prática
pode ser muito bem querida no seio das próprias donzelas.

Segundo Jerónimo,35 “não existe ainda um levantamento sistemático


das regras costumeiras - diferentes consoante a região do país – e é,
extremamente controversa a oportunidade de reconhecer legitimamente
aos líderes tradicionais para resolver disputas que, segundo muitos,
num Estado de Direito, devem caber unicamente aos tribunais”. Uma
das caraterísticas do direito costumeiro é o reconhecimento e aceitação
das regras costumeiras em muitas comunidades, regiões e países.

Porque, o indivíduo para além de se sentir familiarizado com o Direito


Costumeiro, reconhece-lhe os benefícios como regras de conduta social
que o Direito Costumeiro trás dentro de uma comunidade em
comparação ao direito positivo.36

As leis costumeiras são definidas diversamente por alguns eixos das


Autoridades Tradicionais. Conforme refere Luís,37 “A autoridade
tradicional é uma expressão social e política das formas de organização
local em África, cujo papel em funções foi sofrendo alterações em função
das mudanças e evolução do país”.

As virgens da Suazilândia compareceram na dança e utilizaram saias


curtas, peito descoberto e colares vistosos que simbolizam a sua
vontade de casar com o Rei, conhecido como 'o leão'. Uma delas poderá
vir a juntar-se às outras esposas, que também assistem atentas à
dança. A cerimónia passou de tradição a atração turística e milhares de
pessoas juntam-se às virgens para assistir à dança. Para além de se

34
FERREIRA, Leonor Mateus - Virgens dançam para conquistar Rei Mswati III [em linha]. Portugal, 2012.
[Consultado em: 15 de março 2016]. Disponível em: http://www.dn.pt/globo/africa/interior/virgens-
dancam para-conquistar-rei-mswati-iii2749958.html?id=2749958: Mais de 80 mil mulheres,
alegadamente ainda virgens, juntaram-se na tradicional dança Umhlanga, que acontece em agosto, para
o Rei Mswati III da Suazilândia.
35
JERÓNIMO, Patrícia — Estado de Direito e justiça tradicional: ensaios para um equilíbrio em Timor-
Leste, p. 97 - 98.
36
LUÍS, Pedro Manuel – Curso de Direito Constitucional Angolano, p. 613. 58
37
Idem

34
mostrarem como pretendentes, as mulheres orgulham-se em mostrar a
sua pureza.

Os costumes são aceites como regras legais ou como regras obrigatórias


de uma conduta, prática, crença que são vitais dentro de uma
comunidade seja para o sistema social ou económico, e são respeitadas
como as leis escritas. Fundadas em padrões de comportamentos que
pode ser verificado objectivamente dentro de um contexto social
específico.

A codificação moderna do direito civil é desenvolvida através de


costumes oriundos da Idade Média, as expressões de lei são
desenvolvidas em comunidades particulares e, lentamente coletadas e
escritas por juristas locais. Esses costumes adquiriram força jurídica
logo que a mesma se torna em regra de conduta social e, indiscutível
bem como protegidas por determinados direitos ou obrigações reguladas
pelos membros de uma comunidade.

1.2. O Direito Costumeiro dos Povos Indígenas

Não se deve confundir o Direito, o qual é uma realidade presente e


necessária para a vida em sociedade, (o homem é um animal social: “ubi
homo, ibi societas” o homem precisa e gosta de viver em sociedade, tal
como concluiu Aristóteles, na sua obra Política, “o homem é,
naturalmente, um animal político, porque feito para viver em sociedade.”)
com a Ciência do Direito.

O Direito que estamos nos propondo aqui estudar é aquele que


representa não apenas os princípios normativos existentes em uma
dada sociedade, mas também o que actua como parte integrante dos
processos sociais. É a perspectiva que se aproxima da antropologia do

35
direito que, segundo, GAMEIRO38 tem como característica fazer uma
abordagem das leis por meio de um fenômeno histórico e cultural, cuja
eficácia social e dinamismo devem ser explicados pela inter-relação
entre valores e interesses de determinados grupos sociais, com
contextos sociais mutáveis e com usos e costumes diversificados.

Essa característica de compreender o direito respeitando o dinamismo


social e os fenômenos históricos e culturais é muito importante para
situar o direito costumeiro, pois este, ao contrário do que se possa
imaginar, não se refere a um conjunto de normas imutáveis e
inalteradas desde um tempo imemorial, mas sua concepção actual é de
que ele contempla diversos aspectos, que vão desde elementos culturais
de períodos pré-coloniais até referenciais contemporâneos que foram
incorporados dinamicamente em sua cultura. Antes de darmos mais
profundidade às características do direito indígena, talvez seja
importante analisar o que seria, genericamente, o Direito. Existem
várias formas de interpretação, mas vamos nos ater àquelas que
consideramos relevantes para a análise da questão.

O Direito pode ser definido como ordenamento normativo que: Abrange


o conjunto de normas de conduta e de organização, constituindo uma
unidade e tendo por conteúdo a regulamentação das relações
fundamentais para a convivência e sobrevivência do grupo social, tais
como relações familiares, econômicas.39

Para obter o respeito das normas, em última instância, o Direito recorre


à força física. De outra forma,40 define o Direito como a existência de

38
OLIVEIRA, João Pacheco de. Indigenismo e territorialização: poderes, rotinas e saberes coloniais no
Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contra Capa, 1985.

39
BOBBIO, N., MATTEUCCI, N. e PESQUINO, G. Dicionário de Política. Brasília/São Paulo: Editora
Universidade de Brasília/Imprensa Oficial do Estado, 2000, p.349

40
CHASI-SARDI, Miguel. Derecho Consuetudinario Chamacoco. Asunción: RP Ediciones, 1987.

36
normas articuladas em um sistema coerente, dirigidas a estabelecer um
ordenamento social para regular seu funcionamento e assegurar sua
continuidade, impondo-se de forma coativa e sancionando a
transgressão de seus preceitos3. Entender o significado do Direito,
diante das mais variadas sociedades existentes, de fato não é tarefa
fácil.

Considerando a complexidade de interpretação, Korsbaek e Vivanco


(2009) ressaltam que existem três posturas diferentes para construção
da conceituação das normas jurídicas.

a) A primeira seria aquela fundamentada nos preceitos de Kelsen,


que entende o Direito como sinônimo de Estado.

b) A segunda, fundamentada em uma concepção muito mais


antropológica, defende a existência do Direito mesmo que não
exista a figura do Estado na sociedade analisada.

c) E a terceira, que relaciona os dois conceitos anteriores, defende a


possibilidade de analisar sistemas normativos de interação
dinâmica. A terceira postura propõe um novo conhecimento e
uma estruturação para a antropologia jurídica moderna. Busca
um mecanismo de análise das normas que leve em consideração
todos os atores que participam do chamado “sistema normativo”,
observando as formas de subordinação existentes nas relações
sociais, para que se torne possível a criação de leis mais justas
diante da diversidade social existente.

O entendimento sobre o conceito de Direito faz-se necessário para


compreender como ele se estabelece dentro de uma comunidade
indígena. A afirmação de que os indígenas não têm leis, incutida no
senso comum e na compreensão de juristas mais conservadores, é
alimentada pela ideia de que a “primitividade” das relações sociais
desses povos não comportaria as características do Direito. Uma
concepção ultrapassada dentro da antropologia jurídica moderna.

37
Outros autores ressaltam que o Direito não implica necessariamente
uma sanção, e que a licitude, assim como a juridicidade de um sistema,
deve ser estudada em função do próprio sistema jurídico e não em
relação a outros sistemas. Essa abordagem foi levantada, inicialmente,
por antropólogos britânicos, como Bronislaw Malinowski e Isaac
Schapera. Posteriormente, foi desenvolvida por estudiosos como Max
Gluckman. Essa forma de interpretação deu um novo rumo para as
ciências sociais, pois explicitou que a teoria geral do Estado não era
mais suficiente para as explicações dos fenômenos políticos e jurídicos
que a ciência passou a reconhecer. Em toda sociedade existe um corpo
de categorias culturais, de regras ou códigos que definem os direitos e
deveres legais entre as pessoas; em toda sociedade surgem disputas e
conflitos quando essas regras são rompidas e, para resolver essas
divergências, existem meios institucionalizados mediante os quais as
regras jurídicas são reafirmadas e/ou redefinidas.41 Para caracterizar o
direito indígena como um direito consuetudinário ou costumeiro,
podemos, de modo geral, levantar dois traços específicos:

1. Ele se encontra imerso no corpo social, firmemente entrelaçado


com todos os outros aspectos da cultura, com o qual forma uma
unidade compacta;

2. Ele extrai sua força e seu conteúdo da tradição comunitária


expressa nos usos e costumes. Como ensina Cuevas Gayosso
(2000),

Assim, deve-se ter a certeza de que42 Direito Costumeiro para os povos


indígenas atende a uma cosmovisão fundada em princípios ancestrais
que está relacionada com a ordem natural dos acontecimentos. São
regras aceitas e aplicadas pela sociedade porque a consciência coletiva

41
DAVIS, Shelton. Antropologia do Direito: estudo comparativo de categorias de dívidas e contratos. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1973, p.10

42
O Direito Costumeiro para os povos indígenas atende a uma cosmovisão fundada em princípios
ancestrais que está relacionada com a ordem natural dos acontecimentos.

38
diz que são boas para os homens. Sua aplicação não requer a inclusão
de tais regras em textos normativos, pois o que as tornam legítimas é a
consciência comum do grupo que, por meio do conhecimento dos
princípios gerais que regem as suas condutas, sustenta as regras
determinadas para a resolução de problemas específicos.

Assim, dentre outras peculiaridades, o direito costumeiro se diferencia


do direito positivo das sociedades modernas por não separar o aspecto
social do aspecto jurídico. O direito para as comunidades indígenas
actua submerso no corpo social, nos usos e costumes comunitários,
envolvendo tradição oral, sistemas de cargos e fundamentos mágico-
religiosos que formam a cosmovisão particular da comunidade.

O termo “regra” permite conceber o direito costumeiro como algo que


não tem a mesma rigidez do termo “norma jurídica”, utilizado pelo
direito positivo. O primeiro permite uma adaptação dentro da sociedade
em que se manifesta; ao passo que o segundo, inserido em um contexto
diverso, é rígido e sua aplicação corresponde à imposição da referida
norma de conduta nos fenômenos sociais. As regras terão que se
adequar às características da sociedade, convertendo-se em uma
expressão comum de um grupo determinado e com tendência em
resguardar seus valores e princípios essenciais.

Nessa perspectiva, Cuevas Gayosso (2000) ressalta a origem


fundamental das regras costumeiras, aquela que denomina “visão
cosmológica”. Por meio da “visão cosmológica”, observam-se as diversas
fontes do direito. Constata-se que não apenas a vontade do legislador é
responsável por criar o direito, mas que as práticas cotidianas,
relacionadas à cosmovisão de diversos grupos sociais, resultam também
nas criações de regras costumeiras que, mesmo informalmente, tornam-
se legítimas para ordenar o convívio social.43

43
CUEVAS GAYOSSO, José Luis. La Costumbre Jurídica de los Pueblos Indígenas em la Constitución Del
Estado de Vera Cruz, México (2000), de la Norma a la Práxis. Ciudad del México: Universidad
Veracruzana, 2000, p. 246

39
Outras características atribuídas ao direito costumeiro, que o difere do
direito positivo, é o de não ser escrito nem codificado e o de vigorar sem
a presença do Estado. Nessa espécie de direito existe um corpo de
regras e costumes delimitado, reconhecido e compartilhado por uma
dada coletividade. O facto de não ser escrito e codificado suscita
diversas críticas na tentativa de empobrecer o direito costumeiro. Como
visto anteriormente, o direito escrito é visto pela doutrina como um
direito mais seguro, dando mais garantias à lei. Entretanto, apesar
dessa consideração, não há questionamentos, por exemplo, sobre o
sistema jurídico inglês, o qual não possui uma Constituição escrita.

Ao contrário, todos reconhecem e dão legitimidade a esse ordenamento


legal. Levanta-se a hipótese, portanto, de que o mais relevante não é o
fato de ser escrito ou não, mas de estar relacionado a comunidades
ditas “primitivas”, que sempre tiveram seus direitos deixados em
segundo plano.

Talvez a preocupação maior seja de que, direito consuetudinário dos


povos indígenas... reconhecidos, esses direitos deverão ser
compatibilizados na prática com o direito positivo vigente.44 E como diz
Venne, considerando que os sistemas legais têm raízes em necessidades
e preocupações diferentes, há muito poucas chances de que se tornem
compatíveis. Esse seria outro grande desafio – encontrar os mecanismos
adequados para compatibilizar o direito consuetudinário indígena com
as leis positivas do país.

44
MELISSA VOLPATO CURI - O direito consuetudinário dos povos indígenas... Espaço Ameríndio, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 230-247, jul./dez. 2012. ______. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

40
Embora o direito positivo e o direito costumeiro sejam de natureza e de
utilização social diferentes, eles podem conviver pacificamente.45 No
entanto isso não significa que possam ser reduzidos a um sistema
único, ou seja, não há como replicar no direito positivo, de forma
explícita e substantiva, o direito costumeiro que só faz sentido dentro do
sistema em que está inserido. Pluralismo jurídico Considerando a
diversidade cultural existente no país e a perspectiva de que o conceito
de cultura abrange aspectos sociais, mitológicos, religiosos, simbólicos,
jurídicos etc., reconhece-se que cada sociedade, dentre elas as
indígenas, possui modos próprios de expressar e traduzir a realidade a
sua volta. Nesse contexto, contrapondo a proposta de um Direito
Estatal monista, introduz-se, como forma de garantir normas internas,
a ideia de pluralismo jurídico.

A concepção pluralista surge com a interface entre a antropologia e o


estudo das leis, criando uma abordagem interdisciplinar denominada de
antropologia do direito ou antropologia jurídica. A antropologia do
direito é similar à sociologia do direito, pois ambas estudam a lei como
um fenômeno inscrito em um marco amplo da sociedade, buscando
identificar o aparecimento da lei como um elemento da dinâmica social
da qual faz parte.46

Como pontos de referência do pluralismo, vale levantar dois aspectos: o


primeiro é o fato de que a realidade plural levanta uma A concepção
monista defende que o Estado é a fonte única do direito, não existindo,
portanto, normas jurídicas sem a presença do Estado. Desigualdade
45
CUNHA, Manuela Carneiro da. El Concepto de Derecho Consuetudinário y los Derechos Indígenas em
la Nueva Constituicion de Brasil. In: STAVENHAGEN, Rodolfo; ITURRALDE; Diego A. (Orgs.). Entre la Ley y
la Costumbre: el derecho consuetudinário indígena en América Latina. Ciudad del México: Instituto
Indigenista Interamericano e Instituto Interamericano de Derechos Humanos, 1990

46
KORSBAEK, Leif; VIVANCO, Florecia Mercado. La Sociedad Plural y el Pluralismo Jurídico: un
acercamiento desde la Antropologia del Derecho. Disponível em:
http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1670/10.pdf. Acesso em: 16 ago. 2009.

41
fáctica que se manifesta em todos os aspectos da vida cotidiana, mesmo
que os valores contidos nas concepções dos diversos grupos existentes
estejam concebidos dentro das fronteiras de um mesmo país e
relacionados por origens históricas. E o segundo aspecto é a
coexistência de dois ou mais sistemas normativos em um mesmo
espaço.

A palavra “pluralismo” significa qualidade do que não é único ou do que


admite mais de uma coisa ou categoria. Caracteriza-se também como o
sistema político que se baseia na coexistência de grupos ou organismos
diferentes e independentes em matéria de gestão ou de representação.
Diante da conceituação, identifica-se a referida desigualdade fática e a
coexistência de dois ou mais sistemas em um mesmo espaço, visto que
a pluralidade se manifesta na existência e no reconhecimento das
diferenças. Nesse sentido, falar em pluralismo é legitimar a diversidade.
Para Rouland duas versões sobre a conceituação de pluralismo
jurídico.47

A primeira, que considera como um conceito fraco, é aquela que


reconhece a existência, no seio da sociedade, de mecanismos jurídicos
diferentes para tratar de situações idênticas. Como exemplo, cita a
utilização pelo comerciante de regras diferenciadas para vender a sua
mercadoria. Ao contrário dos demais cidadãos, os comerciantes podem
usufruir de normas mais maleáveis.

A segunda versão, tratada como um conceito forte, baseia-se na ideia de


que na relação entre os diferentes grupos sociais existem, além do
direito estatal, múltiplas ordens jurídicas, que podem coincidir ou
divergir. Exemplo dessa perspectiva é o trabalhador imigrante que se
submete ao regulamento interno da empresa em que trabalha; utiliza os

47
KORSBAEK, Leif; VIVANCO, Florecia Mercado. La Sociedad Plural y el Pluralismo Jurídico: un
acercamiento desde la Antropologia del Derecho. Disponível em:
http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1670/10.pdf. Acesso em: 16 ago. 2009.

42
benefícios sociais previstos pelo direito estatal e, no interior da sua
família, redistribui sua renda conforme normas próprias, que não são
as do direito estatal.

A proposta do pluralismo jurídico, embora ainda alcançando espaços


restritos no meio acadêmico, vem sendo abordada como um novo
caminho para a solução de conflitos e para o reconhecimento de normas
particulares de grupos e sociedades. Seu objectivo central é demonstrar
que o Estado Moderno não é o único agente legitimado, criar legalidade
para enquadrar as formas de relações sociais que vão surgindo, ou seja,
que não possui o monopólio da produção de normas jurídicas.

Nesse sentido, apresenta-se como uma forma de contrapor a doutrina


do monismo jurídico e de reconhecer a multiplicidade das fontes e das
relações de direito no interior de um mesmo sistema jurídico. Como
ressalta Wolkmer, a intenção não é negar o direito estatal, mas legitimar
outras formas jurídicas existentes na sociedade.48 O nosso ordenamento
jurídico admite o pluralismo jurídico que exige, em certos casos, que a
aplicação da lei brasileira seja afastada para a utilização da lei
estrangeira. Além disso, admite-se o afastamento da legislação nacional
em caso de arbitragem e de aplicação de regras comerciais e
costumeiras.49 Especificamente em relação aos sistemas jurídicos dos
povos indígenas, essa admissão se encontra no reconhecimento da
organização social, costumes e tradições indígenas.

A Sociologia do Direito, como ensina Santos, nas três últimas décadas


tem investigado o pluralismo jurídico e chama a atenção para a
existência de direitos locais nas zonas rurais, nos bairros urbanos

48
WOLKMER, Antônio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos para uma nova cultura no direito. São
Paulo: Editora Alfa Omega, 2001.

49
YAMADA, Erika M.; BELLOQUE, Juliana G. Pluralismo Jurídico: Direito Penal, Direito Indígena e Direitos
Humanos – uma análise do art.º 121 do Código Penal brasileiro. In: VILLARES, Luiz Fernando (Org.).
Direito Penal e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2010. pp. 123-138.

43
marginais, no desporto, nas igrejas, nas empresas, nas organizações
profissionais etc.50 São formas de direito, segundo o autor,
denominadas infraestatais, informais, não oficiais e mais ou menos
costumeiras. Conforme Sánchez-Castañeda, o primeiro teórico a falar
sobre um Direito vivo e na possibilidade de uma pluralidade de
sistemas jurídicos foi Eugène Ehrlich, que ressaltou o caráter arbitrário
e fictício da unidade do ordenamento jurídico.51

Para esse autor, o ponto central do Direito não se encontra na


legislação, nem na ciência jurídica ou na jurisprudência, mas se situa
na própria sociedade. O direito consuetudinário dos povos indígenas...
que pode ser conhecido por meio de diferentes fontes, particularmente
pela observação direta da vida social, das transformações, dos hábitos e
costumes dos grupos.52

O Direito não é necessariamente um produto do Estado, pois a sua


principal origem está nas relações sociais, podendo, portanto, ser
tratado como um conjunto de regras que determina a posição e a
função dos indivíduos dentro de um grupo social. É possível identificar
duas fases do pluralismo jurídico: a primeira fase corresponde ao
nascimento e desenvolvimento da historicidade jurídica, sobretudo por
meio da Escola Histórica do Direito, a qual afirma que os direitos
emanam directa ou indiretamente da consciência popular.53 Existe não

50
SANTOS, Boaventura de Sousa. A Crítica da Razão Indolente: contra o desperdício da experiência. São
Paulo: Cortez, 2003, p. 247

51
SÁNCHEZ-CASTAÑEDA, Alfredo. Los Orígenes del Pluralismo Jurídico. In: MARTÍN, Nuria González.
Estudios en Homenaje a Marta Monireau. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006. pp.
197-218.

52
SÁNCHEZ-CASTAÑEDA, Alfredo. Los Orígenes del Pluralismo Jurídico. In: MARTÍN, Nuria González.
Estudios en Homenaje a Marta Monireau. México: Universidad Nacional Autónoma de México, 2006. pp.
197-218.

53
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico: lições de Filosofia do Direito. São Paulo: Ícone, 2007.

44
apenas um, mas vários ordenamentos nacionais, visto que existem
muitas nações, cada qual com seu ordenamento estatal próprio.

Essa primeira forma de pluralismo jurídico tem um certo caráter


estadista. A segunda fase corresponde à etapa institucional que
pressupõe a existência de um sistema jurídico onde quer que exista
uma instituição, ou seja, um grupo social organizado. A consequência
dessa teoria institucionalista é a fragmentação da ideia universal do
direito e um enriquecimento dos problemas existentes entre os sistemas
jurídicos, visto que se fundamenta não apenas nas relações entre
diferentes sistemas estatais, mas também entre os sistemas diferentes
dos estatais, como os supraestatais, os infraestatais, os colaterais ao
Estado e os antiestatais.

De forma similar, Woodman, em suas análises sobre o pluralismo


jurídico, reconhece a existência de um pluralismo jurídico estatal e de
um pluralismo fora das leis estatais.54 No primeiro caso, haveria
instâncias plurais dentro do sistema estatal, como, por exemplo, as
diferentes regras e formas de julgamento de acordos comerciais. Nesses
acordos, garante-se certa independência no estabelecimento de suas
regras, mas, ao mesmo tempo, exige-se uma harmonia com as normas
estatais, que estariam acima e abrangendo essas transações. Seria uma
espécie de pluralismo de controlo. A outra forma de pluralismo estaria
desvinculada do Estado, chamado de pluralismo independente.

Uma dada sociedade é regida por leis não estatais, como, por exemplo,
os direitos próprios dos povos indígenas. Para as sociedades indígenas,
o pluralismo jurídico introduz um sujeito de direito diferente do
proposto pelo sistema envolvente. O direito estatal cria regras para o
indivíduo, ao passo que as sociedades indígenas possuem normas
coletivas, operadas e recriadas mediante a figura do sujeito coletivo.

54
WOODMAN, Gordon R. Ideological Combat and Social Observation: Recent Debate about Legal
Pluralism. Journal of Legal Pluralism, n. 42, 1998.

45
Esse coletivo, como sujeito de direitos e deveres, é o que garante a
autodeterminação dos povos indígenas, ou seja, o direito do grupo em
gerir a sua sociedade e decidir o seu próprio destino. Com base nessa
perspectiva, impõe-se um limite de interferência ao direito impositivo e
centralizador do Estado. Diferente do papel de interventor, o Estado
deve assumir um posicionamento de mediador de conflitos e interesses.

A autonomia do sujeito coletivo deve ser respeitada em termos políticos,


administrativos, econômicos, culturais e judiciais, tanto no âmbito
interno como externo à comunidade indígena. Entre outros aspectos, a
autonomia implica:55

a) A possibilidade de decidir sobre os assuntos que afetam a sua


comunidade, sem interferência e/ou pressão de mecanismos
legais externos;

b) A participação plena nos órgãos democráticos da Nação;

c) O manejo e administração dos recursos dispostos em suas terras,


conforme os seus próprios sistemas normativos;

d) O reconhecimento da sociedade envolvente do seu território em


sentido cosmogônico e material;

e) O controlo sobre as suas formas de organização social;

f) Serviços educativos bilíngues nas comunidades indígenas;

g) O reconhecimento da oficialidade das línguas de todas as etnias


dentro de cada território indígena;

h) Respeito à cultura e à tradição indígena;

i) A proibição da discriminação e do racismo;

55
KORSBAEK, Leif; VIVANCO, Florecia Mercado. La Sociedad Plural y el Pluralismo Jurídico: un
acercamiento desde la Antropologia del Derecho. Disponível em:
http://www.bibliojuridica.org/libros/4/1670/10.pdf. Acesso em: 16 ago. 2009.

46
j) O respeito à liberdade e condições para uma vida digna.

Na prática, não raras vezes existem conflitos entre o sistema positivo


vigente e as normas próprias das comunidades indígenas. O direito
consuetudinário dos povos indígenas... autonomia dos povos indígenas
ao impor suas regras e sistemas de valores.

De forma mais perceptível, os conflitos ocorrem com maior frequência


no âmbito do direito penal, notadamente nos casos tipificados pelo
direito estatal como crimes contra a vida, pois estes se fundamentam
em um conjunto de valores considerado acima de qualquer outro
interesse. A definição dada pelo sistema ocidental de dignidade
humana, que envolve o direito inabalável à vida, é considerada como
um valor universal, legitimando, portanto, uma atuação mais ostensiva
do Estado para coibir o que ele define como crime. Diante dessa
perspectiva,56 o Estado compromete a promoção do justo tratamento
que deve ser dispensado no processo penal aos indígenas (agressores ou
agredidos), seus familiares e, por vezes, às suas comunidades, pois
desconsidera sua organização social e sistema de valores.

O ordenamento jurídico brasileiro não estabelece claramente os critérios


e limites de intervenção do direito estatal nos outros sistemas jurídicos
que coexistem no país. Se por um lado a legislação definida pelo Estado
deve ser aplicada em todo o território nacional, por outro, o mesmo
direito estatal garante aos grupos etnicamente diferenciados o direito de
viver segundo seus usos e costumes, o que inclui o direito coletivo de
definir suas normas internas.

Em relação aos povos indígenas, essa perspectiva geral da legislação e,


ao mesmo tempo particular, está clara no artigo 1º, parágrafo único do
Estatuto do Índio, que estabelece que aos índios e às suas comunidades
se estende a proteção das leis do país, resguardados seus usos,

56
YAMADA, Erika M.; BELLOQUE, Juliana G. Pluralismo Jurídico: Direito Penal, Direito Indígena e Direitos
Humanos – uma análise do art. 121 do Código Penal brasileiro. In: VILLARES, Luiz Fernando (Org.).
Direito Penal e Povos Indígenas. Curitiba: Juruá, 2010. pp. 123-138.

47
costumes e tradições. Desde que compatíveis com o sistema jurídico
nacional e com os direitos humanos internacionalmente reconhecidos,
deverão ser respeitados os métodos a que tradicionalmente recorrem
esses povos para a repressão dos delitos cometidos por seus membros.
As autoridades e tribunais chamados a se pronunciar sobre questões
penais deverão levar em consideração.57

O direito consuetudinário dos povos indígenas... Como se percebe,


apesar da Convenção garantir que as normas internas de repressão aos
delitos cometidos pelos indígenas sejam respeitadas, ela coloca o
sistema jurídico nacional e os direitos humanos reconhecidos
internacionalmente acima dos direitos culturais. Há que se respeitar o
direito coletivo, mas este não pode conflitar com o sistema de valores da
sociedade dominante envolvente. Diante de uma legislação que
reconhece a diversidade cultural, mas, ao mesmo tempo, continua
arraigada em valores etnocêntricos, constata-se que a concretização do
pluralismo jurídico ainda é algo em construção, abrindo, portanto,
margens a interpretações dúbias e julgamentos equivocados em relação
aos direitos indígenas.

Além do questionamento sobre o limite de intervenção do Estado na


organização social indígena, outra questão conflitante refere-se à
legitimidade das formas punitivas estabelecidas por essas comunidades.
Caso o indígena infrator já tenha sido punido pelas normas internas da
comunidade, o Estado ainda assim teria direito de impor suas regras
punitivas? Se de fato os sistemas jurídicos dos povos indígenas são
reconhecidos, a resposta, com base na própria legislação penal
brasileira, deve ser negativa, pois, conforme o princípio do non bis in
idem, ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo fato.

57
MELISSA VOLPATO CURI - O direito consuetudinário dos povos indígenas... Espaço Ameríndio, Porto
Alegre, v. 6, n. 2, p. 230-247, jul./dez. 2012. ______. (Org.). Reconhecer para libertar: os caminhos do
cosmopolitismo multicultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010.

48
Conclusão As terminologias “direito consuetudinário” e “direito
costumeiro” dos povos indígenas só existem na dimensão do direito
positivo vigente, que tem como premissa identificar o Estado como fonte
única do direito. Nesse contexto, as normas próprias dos povos
indígenas ainda são identificados como algo inferior, que supostamente.

A expressão latina non bis in idem, que significa sem repetição, tende a
ser vista, majoritariamente, como um princípio geral do direito. Na
esfera penal, em primeiro plano, sua utilização ocorre para assegurar
que ninguém será punido duas vezes por uma mesma infração e, de
forma mais ampliada, para balizar a operação de dosimetria (cálculo) da
pena. O direito consuetudinário dos povos indígenas, promoveria
incertezas jurídicas por não estarem codificadas e fundamentadas na
figura do Estado. Muito embora já existam no direito internacional
instrumentos jurídicos que reconhecem os direitos costumeiros dos
povos indígenas, estes devem estar em consonância com o que
preceitua os direitos humanos ocidentais internacionalmente
reconhecidos.

Assim, se por um lado o ordenamento jurídico internacional identifica a


existência de normas legais dentro das sociedades indígenas, por outro,
não as legitima se não estiverem em consonância com o que o direito
ocidental preceitua como correto e justo. Com o objectivo de
desconstruir o monismo jurídico, a proposta pluralista não apenas
reconhece que toda sociedade possui a sua forma própria e legítima de
expressar e organizar as suas normas, mas também exige uma nova
postura do Estado frente às diversas sociedades que pretensamente
busca controlar.

Ao invés de um Estado punitivo e repressor, este deve agir mais como


mediador de conflitos, reconhecendo a diversidade e oferecendo
políticas públicas para o fortalecimento da pluralidade étnica.

49
1.3. O Direito Costumeiro e os Valores Culturais

Para a devida compreensão do valor em sua relação com o Direito, deve-


se primeiramente destacar a existência de duas ordens de realidade:

a) A realidade Natural: aquela que se refere ao mundo físico e está


presente na natureza, independentemente da participação da
vontade humana;
b) A realidade Humana ou Cultural: a que se refere àquilo que o ser
humano cria e constrói, incluindo coisas, obras, serviços, atitudes
e formas de comportamento.

Nesse último aspecto, deve-se frisar que o ser humano vive de acordo
com certos objectivos e valores que segue e entende como correctos ou
adequados. A cultura, assim, “existe exactamente porque o homem, em
busca da realização de fins que lhe são próprios, altera aquilo que lhe é
‘dado’, alterando-se a si próprio”. As ciências naturais (como a Ciência
Física, a Ciência Química, a Ciência Matemática) descrevem a realidade
natural acima indicada, retratando os factos, tal como observados, por
meio de leis físico-naturais.

Já as ciências culturais (como a Ciência do Direito, a Sociologia, a


História, a Economia) abordam os factos humanos e as relações entre
as pessoas, referindo-se a juízos de valor, conforme determinados fins. A
realidade humana ou cultural, portanto, relaciona-se a certos valores e
fins definidos pelo ser humano. Nesse sentido, a Axiologia é entendida
como a “teoria dos valores” e a Teleologia é a “teoria dos fins”. Mesmo
assim, as diferentes leis culturais, objecto das respectivas ciências
culturais, possuem naturezas diversas entre si:

a) As leis sociológicas, históricas e económicas (objecto das


respectivas ciências) enunciam juízos de valor conforme os factos

50
observados, mas não há o intuito de se disciplinar condutas por
meio de normas ou regras;
b) As leis éticas, que são objecto das ciências normativas, procuram
estabelecer normas referentes ao comportamento humano.

A Ética abrange a Moral, a Política, a Religião e o Direito, prevendo


normas, dotadas de obrigatoriedade, para o comportamento humano.
As normas éticas envolvem um juízo de valor sobre os comportamentos
humanos e a definição de uma directriz considerada obrigatória em
certa colectividade. Observa-se, portanto, a existência de imperatividade
a respeito da directriz definida de acordo com certos valores levados em
conta (opção axiológica).

Nos domínios da Ética, especialmente quanto à Moral e ao Direito,


observa-se um carácter de obrigatoriedade conferido ao valor que se
definiu como necessário preservar. Desse modo, a norma de Direito não
se limita a descrever um facto, mas determina (prescreve), com
imperatividade, aquilo que “deve ser”, prevendo consequências para o
caso de descumprimento.

Na realidade, toda norma ética “expressa um juízo de valor, ao qual se


liga uma sanção, isto é, uma forma de garantir-se a conduta que, em
função daquele juízo, é declarada permitida, determinada ou proibida”.
Como se observa, a sanção é prevista como forma de assegurar o
cumprimento da conduta estabelecida na norma, a qual enuncia algo
que deve ser (e não algo que tenha de ser, uma vez que pode ocorrer de
a norma ética ser violada pelo seu destinatário, hipótese em que, como
visto, incide a sanção).

A norma ética, desse modo, estrutura-se como um “juízo de dever ser”,


indicando a conduta a ser seguida, ou seja, como se deve e, por
consequência, como não se deve agir dentro de um grupo social, ou
mesmo dentro de uma dada cultura. Como se pode observar, os valores

51
integram a Ética, a qual estabelece normas determinando a
obrigatoriedade de certas condutas, normas estas adoptadas em razão
de valores que se definiu como necessário respeitar.

O Direito, fazendo parte da Ética, pode ser visualizado como o conjunto


de normas que estabelecem condutas imperativas (e dotadas de
coercibilidade), em razão de valores considerados relevantes e, assim,
entendidos como necessários para a vida em sociedade. Nesse sentido, o
valor integra o Direito, assim como os factos e as normas. As normas
jurídicas estabelecem condutas, levando em conta certos fatos, visando
a assegurar determinados valores.58

Em outras palavras, a norma jurídica é “um veículo de realização de


determinado valor; deve ser uma tentativa no sentido de realizar a
justiça, que é o valor que compendia, unitariamente, todos os valores
jurídicos”.

A forte presença de hábitos e costumes trazem uma desregulamentação


no ordenamento jurídico angolano, principalmente na área do direito de
família onde em algumas regiões se sobrepõe ao direito positivo
angolano. “É quase impossível fazer um estudo aprofundado sobre o
direito costumeiro em Angola sem a ajuda da antropologia bem como a
sociologia angolana Carlos Feijó.59

O jurista Carlos Feijó afirmou em Luanda, que para se elaborarem


teoria s e noções sobre o direito costumeiro em Angola, precisa-se
contar com os subsídios de outros saberes, como o da antropologia e
sociologia. Carlos Feijó fez esta afirmação quando dissertava sobre "O

58
Apel, Karl - Otto. 2007. Ética e Responsabilidade ... Lisboa : Instituto Piaget, 2007.

59
ANGOP - Teorização do direito costumeiro em Angola passa pelo estudo de outras ciências [em linha].
Angola, 2012. [Consultado em: 01 de março 2016]. Disponível em:
http://www.angonoticias.com/Artigos/item/36007/teorizacao-do-direito-costumeiro-em-angola-passa-
pelo estudo-de-outras-ciencias:

52
estatuto do Direito Costumeiro na Constituição de 2010 e a construção
da disciplina de Direito Costumeiro no ensino das Faculdades de
Direito", tema enquadrado na segunda Jornada Científica da Faculdade
de Direito da Universidade Agostinho-Neto.

Para o jurista, existem muitas nuances do Direito Costumeiro que


devem ser avaliadas, logo as ciências invocadas, a par do Direito
Comparado (como de países como África de Sul, Namíbia, Botswana),
podem contribuir para a estruturação uma disciplina de Direito
Costumeiro. 59 Sendo Angola um país com fortes hábitos e costumes
achou-se necessário reconhece o costume na Constituição da
República, no seu art. 7.º “Costume” onde se pode é reconhecida a
legitimidade e força jurídica do costume que não vá contra a
Constituição nem a dignidade da pessoa humana.

Com o reconhecimento do “costume” o legislador angolano abriu


comportas permitindo que cada etnia em Angola celebre os seus
costumes consoante os hábitos e costumes vigentes na sua etnia ou
região e sobre tutela das autoridades tradicionais. As autoridades
tradicionais no direito costumeiro angolano são tratadas por/como
"Soba". Os Sobas, ou ngana em língua e região do quimbundo, foram
dois títulos adotados pelas autoridades coloniais e estenderam os
nomes aos chefes de outras tribos de Angola.

É título correspondente ao dignitário que responde, em termos divino e


profano, pelo povo. Nos termos do art.º 224. º do CRA, “autoridades
tradicionais”, “As autoridades tradicionais são entidades que
personificam e exercem o poder no seio da respetiva organização político
comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas
consuetudinários e no respeito pela Constituição e pela lei.” Em Angola,
as autoridades tradicionais funcionam como juízes nos tribunais
costumeiros ou tradicionais. Tal como um juiz, o soba ou autoridade
tradicional, é eleito por um conselho de anciãos que detêm alguns
poderes no direito costumeiro de uma comunidade.

53
Ao contrário da CRA, o Código Civil Angolano (CCA) apenas refere no
art. 348. º “Direito consuetudinário local ou estrangeiro” que aquele que
apelar ao direito consuetudinário, local ou estrangeiro, tem o dever
provar a sua existência e o seu conteúdo. O conhecimento oficioso
compete ao tribunal, sempre que tenha de decidir com base neste
direito, em que nenhuma das partes o invoque, ou a parte contrária
tenha tido conhecimento da sua existência e conteúdo ou não haja
deduzido oposição.

1.4. A Justiça no Direito Costumeiro

Podemos dizer que o Direito é o fundamento/critério dos nossos


procedimentos na sociedade, porque a partir dele os comportamentos
podem ser considerados como lícitos e ilícitos. Como norma, o Direito
pode ser estudado de duas formas: quid iuris e quid ius.

1ª Perspectiva, “quid iuris, o Direito é critério de solução nos


eventuais casos de questões de Direito;

2ª Perspectiva, “quid ius” o Direito é pressuposto, problematizado.


Nós elegemos a segunda forma, por ser mais significante e fértil para
uma disciplina de Direito Costumeiro, em conformidade com as
características que lhe atribuímos e segundo porque dadas as
especificidades e singularidades dos problemas da vida, todo o jurista
antes de responder a uma questão de Direito tem que ter esclarecida
a questão do quid ius.

O tema da justiça apresenta destaque em diversos sectores da ciência,


sendo de especial relevância no âmbito da Filosofia do Direito. Há
diferentes concepções quanto à justiça, bem como a respeito de sua
relação com o Direito. Ilustrando essa diversidade, podem ser
encontrados entendimentos no sentido de que: justiça e Direito são
identificáveis; a justiça é mais ampla do que o Direito; o Direito é mais

54
amplo do que a justiça.60 Após a concepção religiosa e mítica da justiça,
tem início uma concepção racional e filosófica, destacando-se Platão
(427 a 347 a.C.), discípulo de Sócrates, ao desenvolver a teoria das
ideias, de acordo com a qual “as coisas materiais são cópias imperfeitas
e transitórias de ideias perfeitas e imutáveis”. Desse modo, a justiça,
para Platão, é uma ideia universal e uma “virtude humana”, mas esta é
um reflexo da primeira, situada no plano das ideias. A justiça, assim, é
entendida como virtude que reúne em si as outras, estabelecendo-se a
vinculação do indivíduo com o Estado, por ser em sociedade que o ser
humano alcança a plenitude. 61

Em Aristóteles (384 a 322 a.C.), que foi discípulo de Platão, a justiça


também é concebida como virtude completa, mas nela é destacada a
característica da alteridade, no sentido de que a justiça existe nas
relações inter subjectivas (a pessoa é justa ou injusta para com
outrem). A noção de proporcionalidade também é introduzida,
relacionando a justiça com a igualdade, ressaltando ser injusto dar
desigualmente a iguais ou dar igualmente a desiguais.

De acordo com Aristóteles, a justiça pode ser classificada em: justiça


como virtude total e justiça particular, referente aos casos concretos, no
relacionamento entre as partes. A justiça total é entendida como virtude
de obediência da lei, respeitando-se o que é legítimo e que “vige para o
bem da comunidade”, ou seja, ao bem de todos, ao bem comum.62 No
Direito Costumeiro a obediência é também tida para a realização da
verdaeira justiça.

60
KAUFMANN, Arthur Filosofia do Direito. 3ª. Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa , 2009.
61
DOCAT. 2016. Como agir? Paulus, Lisboa, 2016.

62
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito. 3ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2009.

55
A justiça particular pode ser das seguintes espécies: justiça distributiva,
a qual busca assegurar o princípio da igualdade, levando em conta o
mérito de cada um, conforme uma relação proporcional, ou seja,
admitindo a existência de desigualdade entre as partes. É por exemplo o
caso da distribuição dos bens deixados por um ente querido falecido.
Todos os que devem herdar herdam conforme o que lhe for proporcional
na relação que teve com o de cujus. Já a justiça correctiva, aplicada às
transacções entre os indivíduos, na qual também está presente o
princípio da igualdade, mas sem considerar o mérito de cada um, e sim
como forma de estimar o ganho e a perda, considerando as pessoas
iguais entre si.

As transacções voluntárias (como a compra e venda) dão origem a


relações de reciprocidade, revelando-se como justiça comutativa. As
transacções involuntárias, por sua vez, decorrem de delitos, tendo como
objectivo reparar o dano por intermédio do juiz, o que faz surgir a
justiça judiciária, também denominada “justiça reparativa”. Além da
justiça distributiva e da justiça correctiva (a qual inclui a justiça
comutativa e a justiça judiciária), cabe fazer menção à justiça legal,
também presente na obra de Aristóteles, referindo-se ao justo legal,
entendido como o conjunto de disposições vigentes, definidas pelo
legislador, e que se deve obedecer, variável conforme os lugares, o
tempo e a cultura de cada povo, tal como em muitos casos acontece em
África e em Angola em particular.

Destaca, ainda, a equidade, no sentido da correcção da lei quando esta,


por ser genérica, revela-se deficiente. Disso decorre a distinção entre o
equitativamente justo, ou seja, a solução justa no caso concreto e
particular, e o legalmente justo, entendido como a solução justa
universal presente na generalidade da norma.

Em Santo Agostinho (354 a 430 d. C), observa-se a “fusão do


platonismo com o cristianismo”. A sua preocupação com o

56
transcendente decorre de sua formação na cultura helénica, com
destaque aos ensinamentos de Platão, bem como da sua conversão ao
cristianismo. Nesse sentido, ao tratar do tema da justiça, destaca a
relação existente entre lei humana e lei divina (eterna).

O dualismo platónico, assim, reflecte-se na concepção de justiça


humana e justiça divina. A justiça divina, que a tudo governa e preside,
baseia-se na lei divina, que é absoluta, imutável e perfeita. A justiça
humana, por sua vez, é fundada na lei humana, a qual cabe regular o
comportamento humano. Apesar disso, a lei eterna inspira a lei
humana, tal como a natureza divina inspira a natureza humana. No
entanto, as determinações da lei divina e da lei humana são diversas. A
lei eterna comanda que a alma se aproxime de Deus, ordenando, por
exemplo, afastar-se do amor pelas coisas materiais.

A lei humana, por sua vez, exemplificando, pune o roubo injusto dos
bens materiais, mas é indiferente à paixão por estes. As leis humanas,
embora não sejam perfeitas, garantem a ordem social, mas para
poderem ser chamadas e consideradas “Direito”, devem estar próximas
da justiça, entendida como a virtude de dar a cada um o que é seu.
Santo Agostinho, assim, desenvolve o conceito de justiça como amor,
destacando que o fim último da lei natural é o amor de Deus como
criador de todas as coisas e seres, de modo que a virtude (justiça) é a
ordem do amor, ou seja, “se a justiça consiste em dar a cada um o que é
seu, no homem há uma ordem justa e procedente da natureza, segundo
a qual a alma está submetida a Deus, a carne à alma e a alma e a carne
a Deus”.

Ainda na Idade Média, São Tomás de Aquino (1225 a 1274 d.C.)


também desenvolve uma teoria da justiça com fundamentos teológicos.
Destaca ser a lei a regra e a medida dos actos humanos. O fim último
da vida humana é a felicidade, de modo que a lei deve visar à felicidade
comum. A justiça legal, assim, é aquela que faz e conserva a felicidade.

57
A lei humana, estabelecida pelo governante, deve ter como objectivo o
bem comum. Para isso, deve estar de acordo e nos limites da lei
natural, conhecida por meio da razão humana e vinculada à lei eterna e
à lei divina. Na realidade, Santo Tomás de Aquino tem seus
ensinamentos fundados no pensamento aristotélico e no cristianismo.

Em sua concepção de justiça, a lei eterna é aquela estabelecida por


Deus, que tudo ordena e em tudo se encontra. A lei divina é a parte da
lei eterna revelada por Deus aos seres humanos, ou seja, conhecida
pelo homem. A lei natural, por sua vez, é aquela existente na natureza e
conhecida pelo ser humano por meio da razão. A lei natural representa
uma “participação racional na lei eterna”, pois na natureza há a
presença do que é divino. Como a natureza humana é mutável,
entende-se que a lei natural é uma justiça “variável e contingente como
a razão humana”.

A lei humana (positiva), por fim, é criada pelo ser humano, devendo
estar em consonância com a lei divina e com a lei natural. Nesse
enfoque, a desobediência à lei humana só se justificaria se esta
afrontasse a lei divina (parte da lei eterna conhecida pelo ser humano).
Além disso, o justo natural torna-se o parâmetro para o Direito positivo.
Se este estiver de acordo com o Direito natural, será um bem para toda
a comunidade.

Observados os aspectos acima, cabe destacar que o ideal de justiça pode


ser visto como o valor supremo a ser seguido pelo Direito. Na realidade,
o Direito se funda nesse valor que é a justiça. Como observa Miguel
Reale: “Partindo-se da observação básica de que toda regra de Direito
visa a um valor, reconhece-se que a pluralidade dos valores é
consubstancial à experiência jurídica. Utilidade, tranquilidade, saúde,
conforto, intimidade e infinitos outros valores fundam as normas
jurídicas. Estas normas, por sua vez, pressupõem outros valores como o
da liberdade (sem o qual não haveria possibilidade de se escolher entre

58
valores, nem a de se actualizar uma valoração in concreto) ou os da
igualdade, da ordem e da segurança, sem os quais a liberdade
redundaria em arbítrio.

A nosso ver, a Justiça não se identifica com qualquer desses valores,


nem mesmo com aqueles que mais dignificam o homem. Ela é antes a
condição primeira de todos eles, a condição transcendental de sua
possibilidade como actualização histórica. Ela vale para que todos os
valores valham. Ela é, pois, tentativa renovada e incessante de
harmonia entre as experiências axiológicas necessariamente plurais,
distintas e complementares, sendo, ao mesmo tempo, a harmonia assim
atingida.

A dialéctica da justiça é marcada por essa intencionalidade constante


no sentido de composição harmónica dos valores, sendo esta concebida
sempre como momento de um processo cujas directrizes assinalam os
distintos ciclos históricos. Cada época histórica tem a sua imagem ou a
sua ideia de justiça, dependente da escala de valores dominantes nas
respectivas sociedades, mas nenhuma delas é toda a justiça, assim
como a mais justa das sentenças não exaure as virtualidades todas do
justo.

A justiça, assim, pode ser compreendida como o “valor fundante do


Direito” ao longo da experiência histórica. A justiça também pode ser
vista como uma expressão ética do princípio da igualdade. Há, no
entanto, diversas modalidades de justiça, correspondendo a diferentes
tipos de igualdade, sendo os principais a seguir destacados.

1.5. Organização do tribunal costumeiro

Tal como no direito positivo, “o costume é uma fonte de direito


autónoma de criação do Direito que não carece de beneplácito ou
consagração legal e que subsiste independentemente de os Tribunais e

59
Administração Pública serem chamados a aplicá-lo, sancionando os
seus infratores”.63 Por isto, o mesmo tem a sua organização judicial
como no direito positivo.

Namibe Justiça é um conceito de que todos mais ou menos têm uma


visão semelhante, mas quando a justiça tradicional entra em ação pode
colidir com os detalhes dos conceitos adotados pela justiça estatal. Esta
realidade ficou evidente num caso recente na província do Namibe, onde
uma mulher acusada pelo marido de adultério teve que se despir no
julgamento tradicional, algo impensável num julgamento estatal.

Mesmo quando como foi o caso – seja o marido que acabe por ser
condenado e a mulher receba uma indemnização. O caso ocorreu na
localidade de Kitchima Kiomué, em Matunda, na Comuna do Iona,
Município do Tombwa, junto à fronteira com a República da Namíbia,
onde um homem traído pelo sono, depois de ter ingerido bastante
bebidas alcoólicas, viu que a sua esposa não estava na cama.

Depois de seguir as peugadas até á margem de um rio deparou com a


esposa em pleno ato sexual com um outro homem. O marido não viu
outra forma de conter a fúria se não agredir o seu rival à cacetada,
comportamento contrário às normas de conduta nessas comunidades,
no caso de atos de adultério. O homem agredido pelo marido
apresentou queixa ao soba local. Este, de imediato elegeu os séculos
Tchilyanhama e Tchihuyahuya, um dos anciãos mais experientes na
matéria de adultério, para redimir o conflito.

O marido argumentou que a sua agressão se deveu ao facto do agredido


ter ferido a sua mulher. Os dois anciãos mandaram a mulher envolvida
no adultério retirar as roupas para mostrar os ferimentos que, na ótica
do marido, teriam sido o móbil do espancamento ao homem acusado de
estar com a sua esposa. Um dos presentes ao julgamento, João
Caladinho, inconformado, procurou cobrir a senhora com o seu casaco,
mas não lhe foi permitido. Os anciãos argumentaram que a sua ação

63
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.40.

60
era necessária para provar a culpa do marido na agressão. O acórdão
daquela instância tradicional condenou o agressor a pagar uma pena de
5 bois, dois dos quais a favor do homem agredido e outros dois a favor
da esposa. O quinto boi foi abatido a favor das comunidades locais.
225.º

“As atribuições, competências a organização dos tribunais tradicionais”:


“As atribuições, competência, organização, regime de controlo, da
responsabilidade e do patri mônio das instituições do poder
tradicional, as relações institucionais destas com os órgãos da
administração local do Estado e da administração autárquica, bem
como a tipologia das autoridades tradicionais, são regulados por lei.”

CAPITULO - O TRIBUNAL TRADICIONAL

61
O sistema Judicial Tradicional constitui a instância judicial superior,
logo o recurso dos tribunais é definido da seguinte forma:64 Um
Tribunal Supremo com o seu quadro orgânico de Magistrados e oficiais,
administrativos etc.; ii. Um Tribunal da Relação com o seu quadro
orgânico de Magistrados oficiais, administrativos etc.; A magistratura é
composta pelo seguinte: i. Juízes de Direito Costumeiro (autoridades
tradicionais); ii. Procuradores Populares (chefe de família).

1.6. Os magistrados

Como qualquer um tribunal, o tribunal costumeiro também tem a sua


estrutura judicial costumeira. O tribunal costumeiro é reconhecido na
CRA, nos termos do art.º 223º “reconhecimento”: “O Estado reconhece o
estatuto, papel e as funções das instituições do poder tradicional
constituídas de acordo com o direito consuetudinário e que não
contrariam a Constituição. O reconhecimento das instituições do poder
tradicional obriga as entidades públicas e privadas a respeitarem, nas
suas relações com aquelas instituições, os valores e normas
consuetudinários observados no seio das organizações politico
comunitárias tradicionais e que não sejam conflitantes com a
Constituição nem com a dignidade da pessoa humana.”

17. Juiz costumeiro (soba)

O soba, autoridade tradicional reconhecida pela CRA, nos termos do


art. 224.º “autoridades tradicionais” que são normalmente os juízes no

64
ADÃO, Chico, 2010

62
tribunal costumeiros. Segundo Custódio,65 “ o soba grande, é em última
análise o juiz, este que trabalha com um enorme elenco de coadjutores-
ministros, os quais são também detentores do sangue real, originários
do mesmo ancestral.

1.7. Procuradores populares (chefe de família)

Normalmente, o soba é auxiliado pelos seus procuradores que servem


de conselheiros do soba. Estes procuradores são chefes tradicionais,
que para além de terem uma certa idade, são também os chefes de uma
aldeia.

1.8. O advogado

O advogado, normalmente é uma pessoa adulta, detentor de um vasto


conhecimento costumeiro da região, reconhecido e autorizado pelas
autoridades tradicionais para a defesa de litígios. Não existe Ministério
Público nos casos costumeiros, e a decisão do soba tem um peso
jurídico costumeiro e é incontestável.

1.9. Tipo de crimes

No tribunal, são diversos os litígios submetidos à jurisdição do Juiz


tradicional “soba” e os mesmos, são crimes comuns que também podem
ser julgados na lei do direito positivo. “Tem sido prática nos Tribunais a
nível nacional dar provimento e relevância ao costume como relevâncias
normalmente atenuadoras quando este esteja na base de práticas
criminais e decorra de algum obscurantismo em relação à lei e a ordem
social legislativa instituídas.”66

65
CUSTODIO, Arcanjo – As soluções dos conflitos no Direito Costumeiro do Grupo Etnolinguístico
Ovimbundu. Revista da Faculdade de Direito. Universidade Agostinho Neto, p. 201.
66
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.48.

63
“Constituem delitos no direito Costumeiro Penal os crimes infra citados.
Todos os crimes praticados na lei do direito costumeiro, também são
puníveis no direito positivo conforme artigos citados”. São eles os
crimes:  Homicídio – punível no direito positivo nos termos dos artigos
349.º, 350.º, 351.º, 352.º, 353.º, e 368.º do Código Penal Angolano
(CPA).  Roubo – art. 63.º e 432 e segmentos do CPA.  Os ferimentos
art. 359.º CPA.  Atentados à honra e ao pudor – art. 390.º e 391.º do
CPA  Difamação, a injuria, o ultraje, etc. – art. 407.º (difamação); 410.º
(injuria); 390.º e 420.º (ultraje) do CPA;  A denúncia sem prova -
art.245.º CPA;  A venda da mulher - não está prevista no CPA;  O
abandono injustificado do lar – art. 406.º do CPA;  A ameaça de morte
– arts. 363.º e 369.º do CPA;  A violação do domicilio – art. 380.º do
CPA  As destruições maldosas – art. 466.º do CPA;  Adultério – arts.
372.º, 401.º, 404.º do CPA;  As agressões – arts. 359.º 369.º e 413.º do
CPA; 139 ADÃO, Chico - Direito costumeiro e o poder tradicional dos
povos de Angola, p. 207-210.

64
CAPITULO II – O ESTADO SOBERANO E O DIREITO COSTUMEIRO

2.1. Estado e soberania

Os assuntos atinentes ao Estado Soberano e ao seu monopólio na


produção do Direito sugere-nos a forte compreensão de uma perspectiva
histórica, das orientações teóricas que fundaram o princípio da soberania
e que se tornaram dominantes na Europa, durante um largo período de
tempo. Tal reflexão remonta sim ao século XV, quando se começou a
esboçar o surgimento da ideia de soberania a que não correspondia ainda
um conceito. A noção de soberania tem na época medieval europeia uma
existência indiscutível, pois já a partir da sua emergência no século XIII,
exprime uma ideia de superlativo.

É que a soberania designa um poder acima do


qual não existe entidade superior.

A Auctoritas e potestas eram outros lexemas preferidos do vocabulário


medieval para referir aos elementos constitutivos da soberania,
respectivamente, a autoridade suprema de Deus que se analisa na
transcendência das leis e o poder público que é expressão da força
subordinando-se a lei civil à lei divina. O conjunto de poderes dos
monarcas é emanação da ordem teocrática medieval que até à Revolução
Francesa estruturava uma sociedade que se dividia em três classes:

1. O clero;
2. A nobreza;
3. E o povo.

Analisando a história do conceito de soberania verifica-se que a sua


construção decorre após o advento da modernidade e obedece a duas
orientações, uma política e outra filosófica. A rutura epistemológica que
configura a orientação política tem lugar a partir de 1532 com a

65
publicação de Il Principe, de Maquiavel.67 Com ela são lançadas as bases
de um conhecimento técnico sobre o exercício do poder fundado na
cisão entre o profano e o sagrado, isto é, a realidade política, de um
lado, e os problemas teológicos e éticos, de outro lado. Desencadeia-se o
processo de autonomização da política conferindo à “razão de Estado”
estatuto que permite anular as potenciais aporias entre meios e fins ou a
moral e a política. Portanto, a leitura de O Principe permite concluir que
Maquiavel nunca poderia ter pretendido produzir uma teorização
original sobre os fundamentos e os critérios da soberania fora do estrito
respeito dos interesses que comandam a governação do “príncipe”.

Sob guinada jus constitucionalista e filosófica da modernidade política


com a qual emerge o novo conceito de soberania não colhe
unanimidade entre especialistas do Constitucionalismo, Filosofia do
Direito e da Filosofia Política. As divergências abundam relactivamente ao
seu momento genético. Alguns autores afastam qualquer possibilidade
de ser atribuído tais méritos a Maquiavel ou a Jean Bodin. Outros
afirmam categoricamente que a primeira teorização sobre o Estado e a
invenção da noção de soberania cabe ao jurista francês.

Quando Jean Bodin (1530-1596) publica Les Six Livres de la République


em 1576 assistia-se já ao desaparecimento progressivo do chamado
constitucionalismo medieval. E sobre as ruínas do legado de Maquiavel
ergue-se o princípio da soberania associado à noção de Estado.
Deixando-se apreender como um fenómeno histórico e uma das mais
importantes invenções conceituais, o Estado moderno constitui o
divisor cronológico das transformações ocorridas na sociedade feudal e
teocrática europeia.

67
MAQUIAVEL,Nicolau. O Príncipe, tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio, Lisboa: Circulo
de Leitores/Temas e Debates, 2008

66
Do ponto de vista terminológico, “Estado” é uma palavra difundida com
a leitura do Príncipe de Maquiavel cujo texto do primeiro capítulo tem o
seguinte incipit: “Todos os Estados, todos os domínios, que tiveram e
têm impérios sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou
principados.68 Mas a fixação do seu sentido era já observável em
expressões latinas antigas, tais como status rei publicae. Com efeito, o
debate que a noção de Estado pode suscitar neste plano não se esgota
em abordagens de ordem lexicológica.

O que se indaga vincula-se ao problema da origem do Estado, ou seja, à


questão de saber se o Estado sempre existiu ou se a sua existência
pode ser datada. Por conseguinte, a “escolha de uma definição
depende de critérios de oportunidade e não de verdade”.69
Paralelamente colocam-se problemas sobre os processos da formação do
Estado e os modos da sua justificação, bem como o de “saber se e como o
Estado pode, no fundo, ser concebido como unidade com capacidade
jurídica de ação, isto é, segundo o uso linguístico tradicional, como
pessoa jurídica.

Do ponto de vista jurídico, a obra de Bodin torna clara a ideia segundo


a qual a soberania é um poder supremo de jurisdição do Estado
exercido sobre determinado território e as pessoas que o habitam.
Deste modo Jean Bodin pode ser identificado como pioneiro de uma
abordagem racional do direito, formulando o princípio da unidade do
poder e da unidade da potência pública. Edificando assim a sua
filosofia política ou filosofia do Estado como o subtítulo do primeiro livro
deixa perceber. Eleva-se o nível da elaboração conceitual sobre o Estado
e o princípio da soberania, adquirindo este uma robustez inédita.

68
MAQUIAVEL,Nicolau. O Príncipe, tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio, Lisboa: Circulo
de Leitores/Temas e Debates, 2008

69
BOBBIO, Norberto. Estado, governo, sociedade. Para uma teoria geral da política, Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1986, p. 69

67
É do povo que emana a legitimidade institucional das realidades
subjacentes a estes dois fenómenos políticos, concretizando-se num
processo de transferência dos direitos de soberania.. É por essa nobre
razão que o Direito Consuetudinário/Costumeiro de alicerça
indispensável para os fazedores de justiça. E nós aqui o ensino do Direito
e formação dos jovens juristas nos ocupamos de passar essas e outras
informações, com vista e entender-se aquilo que são as Normas
Tradicionais, para a manutenção da vida social.

Já o Estado é definido como “uma pessoa de cujos actos uma grande


multidão, mediante pactos recíprocos uns com os outros, foi instituída
por cada um como autora, de modo a ela poder usar a força e os
recursos de todos, da maneira que considerar conveniente, para
assegurar a paz e a defesa comum”. Para Hobbes, “àquele que é
portador dessa pessoa chama-se soberano e dele se diz que possui
poder soberano”.70

2.1.1. Soberania, que é ?

Tudo quanto se sabe até hoje é que, Rousseau supera aquilo que se
supõe serem as limitações do pensamento de Bodin e Hobbes. No seu
Contrato Social reformula o princípio da soberania fundando-a na
vontade geral do povo. Para Rousseau a soberania é um exercício efectivo
dessa vontade. O esteio da soberania não é mais a vontade geral do
povo, a soberania popular de Rousseau, passa a ser a nação.

Introduzindo-se uma perspetiva que consagra a soberania nacional.


Todavia, o que a oposição entre a soberania popular e a soberania

70
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, Forma e Poder de um Estado Eclesiástico e Civil, 4ª edição,
tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza daSilva, Lisboa: Imprensa Nacional-Casa Moeda,
2009, p. 146

68
nacional configura faz apelo à determinação do fundamento de cada
uma delas. Ao contrário do que é proposto por Rousseau, relativamente
à impossibilidade da alienação da soberania, Sieyès formula teorias que
constituirão um dos traços mais fortes da tradição constitucional
francesa. O sujeito supremo do poder constituinte é a nação, sendo ela
o centro da teoria da representação.

Até ao século XX, a historiografia do direito ocidental é dominada por


“escolas clássicas”. Escola da Exegese, Escola História do Direito,
Jurisprudência dos Conceitos ou Pandectística, Movimento do Direito
Livre, Jurisprudência dos Interesses. A nossa a atenção concentrar- se-á
em duas das referidas correntes do pensamento jurídico europeu,
designadamente, a Escola da Exegese e a Escola Histórica do Direito.

Elas representam paradigmas e critérios diferentes para determinar o


sentido do princípio da soberania do Estado perante a produção do
direito e suas fontes. Por outras palavras, elas representam o
movimento dialéctico das doutrinas positivistas e anti positivistas no
âmbito do qual são tematizados problemas jus filosóficos de vulto entre
os quais isolamos o problema da validade do direito, o problema das
fontes do direito, as teorias da norma jurídica e as teorias do
ordenamento jurídico.

A Escola da Exegese desenvolve-se no dealbar do século XIX na França e


suporta o legalismo pós-revolucionário cujo centro de gravidade são as
leis produzidas por órgãos representativos com competência legislativa
de acordo com o princípio da separação de poderes. Podem ser
identificados três postulados desta escola:

a) A expressão do direito reside na lei;

b) O jurídico tem a sua medida e critério na lei;

c) A codificação é o culminar da plenitude lógica da lei.

Deles emanam conexões com determinados pressupostos de cariz


filosófico, político e cultural, isto é, o jus naturalismo, o legalismo e a
codificação. A designação desta corrente do pensamento jurídico deve-
69
se às preocupações de ordem científica dos autores do Código de
Napoleão e à técnica adoptada para a sua elaboração. Os seus
defensores fazem a apologia de uma conceção que atribui ao Estado a
produção exclusiva do que pode ser considerado direito.

Na França, as Faculdades de Direito transformam-se em escolas


centrais do regime napoleónico e são submetidas a um controlo,
garantindo-se um ensino expurgado de teorias gerais jusnaturalistas,
além do privilégio conferido a uma hermenêutica jurídica fundada na
intenção e vontade do legislador. A Escola da Exegese exerce a sua
influência durante todo o século XIX, de 1804.

Sob o impulso do movimento romântico surge na Alemanha a Escola


Histórica do Direito, que no plano doutrinário gravita em torno cinco
ideias centrais:

a) A individualidade e variedade do homem;

b) A dimensão irracional das forças históricas;

c) O pessimismo antropológico;

d) A glorificação do passado;

e) O valor e sentido da tradição.

É com essa glorificação do passado e a valoração e o sentido da tradição, que


se começa a entender a realidade de não ser só o Estado Soberano, o único e
exclusivo criador do Direito.

Assim destes isolamos duas características principais: o princípio do


indivíduo e da diversidade humana segundo o qual o direito é produto
da história e o princípio da tradição. Ambos permitem valorizar o Direito
Consuetudinário enquanto expressão do Volksgeist (o espírito do povo).
Pode- se aí divisar os postulados com que opera a crítica ao jus
naturalismo e à codificação.

Na verdade o Direito Costumeiro é o


“Espirito do Povo.”

Entre os mais destacados juristas da Escola Histórica, encontram-se

70
Friederich Carl von Savigny (1779-1861), a sua figura tutelar, Gustav
Hugo (1764-1844) e Georg F. Puchta (1798-1846). As críticas de Savigny
contra o jus racionalismo, o legalismo e o movimento codificador,
entroncam em contradições quando se procede à análise da sua
metodologia de interpretação, seu conceito de direito e de ciência do
direito ou da legislação. A contradição fundamental consiste em saber
se a vontade do soberano seria a fonte de direito ou se a racionalidade
científica poderia ocupar o lugar da vontade do soberano veiculando as
leis produzidas. Savigny que pugnava por um direito científico viria a
abandonar a dimensão histórica, dando primazia à necessidade da
construção científica do sistema.71

Essa capitulação da Escola Histórica do Direito cede lugar ao triunfo do


legalismo e da codificação. O movimento codificador conquista a simpatia
de largos sectores do pensamento jurídico europeu a partir dos fins do
século XVIII. Desta maneira a codificação consiste em liquidar a
proliferação de Costumes Locais e reduzir à unidade todas as normas
vigentes em determinado momento da história de um Estado, através da
publicação de códigos de um ramo ou vários ramos do direito.

Com ressonância das doutrinas do positivismo jurídico traduz-se como


uma aversão à diversidade e multiplicidade dispersiva das fontes do
direito, procurando a unificação legislativa de acordo com critérios de
ordenação sistemática.

Na codificação subjazem de facto as teses do jus positivismo, na medida


em que o ordenamento jurídico caracterizado pela unidade
proporcionada pelos códigos é garantia de certeza e segurança, além de
esgotar a ideia do direito nas normas contidas nos códigos. Na verdade,
se há vantagens trazidas pela codificação, há igualmente
vulnerabilidades que se refletem basicamente nos flancos em que se

71
BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito, tradução Márcio Pugliesi, São
Paulo: Ícone editora, 2006, p. 122

71
abatem algumas das críticas que são dirigidas ao jus positivismo.

Ora, o elenco das doutrinas com cidadania historiográfica permite


concluir que no ocaso do século XIX, além do monopólio da produção
do direito positivo detido pelo Estado, o princípio da soberania tem uma
outra característica que diz respeito à diversidade das fontes através
das quais se manifesta o direito. Deste ponto de vista, a transição do
século XIX para o século XX sofre os efeitos produzidos pelas
controvérsias e teses das correntes legalistas e anti legalistas.

Admite-se aqui a legitimidade de os povos colonizados lutarem pela sua


autonomia, e uma vez que o colono não conseguiu exterminar de modo
absoluto os nossos hábitos, usos e costumes face a força das nossas
tradições. A soberania nacional que define as fronteiras do Estado -
Nação pode ser o fundamento da sua desintegração, derivando daí
novas unidades políticas.72 Para Kelsen, o Estado é uma ordem jurídica
de que a soberania constitui uma qualidade essencial. Na soberania
reside a autoridade suprema donde emana o fundamento último da
validade das normas e comandos que um representante do Estado pode
emitir e que os outros são obrigados a obedecer.

Kelsen admite que o Estado é


soberano apenas quando está
dotado de uma constituição
histórica, pressuposto da produção
do direito.

A constituição histórica será a “norma fundamental (Grundnorm) de


uma determinada ordem jurídica, pois a sua função consiste em conferir
poder criador de direito ao ato do primeiro legislador e a todos os outros
atos baseados no primeiro acto”.73

72
Hans Kelsen (1881-1973) e Carl Schmitt (1888-1985).

73
KELSEN, Hans. Teoria Geral do Direito e do Estado, 4ª edição, tradução Luís Carlos Borges, São Paulo:
Martins Fontes, 2005, pp. 169 - 170

72
Por sua vez Carl Schmitt, entende que “soberano é aquele que decide
em situação excecional», operando com uma noção de soberania
tributária da Teoria do Estado, consequentemente sendo apropriada
para uma definição jurídica de soberania”.74

O caso de exceção corresponde a uma situação de extrema necessidade


que, não se inscrevendo no quadro das previsões da ordem jurídica
vigente, pressupõe uma ameaça à existência do Estado. Segundo
Schmitt, em situação de exceção o soberano age à margem do jurídico,
apesar disso ele garante a manutenção da ordem através do monopólio
da última decisão. Por essa razão, está em causa a determinação da
essência da soberania do Estado que, afastando-se do monopólio da
coerção e da dominação, assenta afinal no monopólio da decisão.

Neste sentido, o problema fundamental da soberania deve ser


diagnosticado na relação que se estabelece entre a «potência suprema
factual» e a «potência suprema jurídica».75 A este respeito, a identidade do
Estado e da ordem jurídica proposta por Kelsen, configura a negação da
soberania tal como a concebe Schmitt. No século XX, o modelo de
Estado-nação sofre os abalos que se registam em diversas partes do
mundo com consequências observáveis nos campos da política e do
direito.

2.2. O Costume no Estado - Nação

O conceito de Estado - Nação nos campos do Constitucionalismo, da


Filosofia Política e da Filosofia do Direito, tributários dos subsídios
oriundos da Antropologia, da Ciência Política e da Sociologia,
apresentam variações que dependem de determinações e
condicionalismos empíricos das sociedades a que se aplica. Este é o
momento de viragem para as concepções de soberania popular e

74
SCHMITT, Carl. Théologie Politique, Paris: Éditions Gallimard. 1988, p.16

75
Idem, p. 28

73
soberania nacional.
A crise do Estado Nacional que se repetiria em crises sucessivas até à
queda do Muro de Berlim veio igualmente sacudir os fundamentos do
pensamento político contemporâneo em diferentes países que por razões
históricas herdaram o referido modelo. Nesta medida o Estado-nação em
crise foi sendo problematizado no âmbito da ciência política ou da
sociologia política.

Em África, destacam-se alguns filósofos africanos, que têm vindo a


distinguir pela intervenção directa nesse debate, retomando a
tematização africana do comunitarismo, à luz de uma Filosofia Política e
de uma Filosofia Moral que incorporam subsídios dos sistemas africanos
de pensamento. Para nós o interesse do debate que opõe comunitaristas
a liberais reside no facto de ele permitir descortinar projecções actuais
do pensamento político africano produzidos no contexto dos processos
de descolonização e das independências. Os líderes africanos, inspirados
por ideologias e filosofias emergentes na Europa e na América,
construíram um pensamento cultural e político que pretendia ser
unitário através do qual advogavam a centralidade da comunidade
enquanto sujeito colectivo. O Pan-africanismo, Negritude e Socialismo
Africano são algumas das designações atribuídas a tais doutrinas.

Os seus paladinos mais proeminentes eram três líderes políticos e


chefes de Estado, Kwame Nkrumah (1909-1972) do Ghana, Julius
Nyerere (1922-1999) da Tanzânia e Leopold Sedar Senghor (1906-2001)
do Senegal. Matéria que iremos desenvolver melhor na cadeira de
Instituições de Direito Africano, isso é no segundo semestre. Tais
correntes de pensamento faziam a apologia da crítica à modernidade e
às ideologias que lhes estão associadas, especialmente o liberalismo.
Ora, o referido debate com larga audiência académica, originariamente
académico e norte-americano, teve início na década de 80 nos Estados
Unidos da América e alcançou o seu apogeu nos anos 90 do século
passado.

74
Através de posições defendidas por insignes nomes da filosofia política
de que se destacam David Gauthier, John Rawls, Ronald Dworkin e
Robert Nozick, os liberais consideram o indivíduo como a figura central
daquilo a que chamam «comunidade não- comunitarista». Assim, os
indivíduos não têm necessidade de estabelecer qualquer vínculo de
pertença a grupos de natureza religiosa, económica, sexual ou outra.
Situando- se no plano normativo, John Rawls afirma que «um sujeito
moral é alguém que possui objectivos por si escolhidos, e a sua
preferência fundamental dirige-se para condições que lhe permitem
construir um modo de vida que expresse a sua natureza enquanto ser
racional livre e igual, de forma tão plena quanto as circunstâncias o
permitam.76

Para Rawls os princípios da escolha racional asseguram a unidade da


pessoa humana cuja manifestação pode ser observada na coerência de
um projecto que esteja em conformidade com o sentido de justiça e do
justo. É a soberania do indivíduo, da autonomia da sua vontade e
primazia das suas preferências. O comunitarismo anglo-americano pode
ser analisado em duas perspetivas distintas – metodológica e normativa
– defendidas por insignes filósofos ocidentais do século XX,
designadamente Alasdair MacIntyre, Michael Walzer, Michael Sandel,
Charles Taylor.

Do ponto de vista metodológico, os comunitaristas entendem que as


premissas do individualismo são falsas, na medida em que o
comportamento humano não pode prescindir das referências ao
indivíduo nos seus contextos social, cultural e histórico.
Na esfera normativa, os comunitaristas afirmam que as premissas do
individualismo dão origem a consequências morais insatisfatórias,
negligenciando setores importantes da vida que deveriam ser protegidos

76
RAWLS, John. Uma Teoria da Justiça, tradução Carlos Pinto Correia, Lisboa: Presença. 2001, p. 423

75
pelo Estado.77 O que se discute sobre estas matérias torna-se inteligível
no quadro das comunidades históricas e políticas.

Já MacIntyre sustenta que, do ponto de vista moral, qualquer indivíduo


pertence a uma comunidade, clã, tribo, família ou nação. É delas que
qualquer cidadão herda uma variedade de deveres, expectativas
correctas e obrigações. Trata-se de uma tradição de práticas concretas
transmitidas ao longo de gerações por via dos processos de socialização
primários e secundários. As teorias comunitaristas vêm confirmar a
cisão entre o Estado e a Nação, pois os seus limites não coincidem. Se
para algumas correntes do pensamento jurídico os esteios da soberania
ultrapassavam as fronteiras do Estado, as teorias comunitaristas
concentram a atenção em unidades políticas infrastaduais, isto é,
comunidades no âmbito das quais o poder é exercido por instituições e
entidades representativas que em África são designadas por
“Autoridades Tradicionais”.

Kwame Gyekye, que elabora uma teoria do “comunitarismo moderado”,


entende que as estruturas sociais africanas permitem determinar
especificidades que têm como núcleo a noção de comunidade que nas
suas múltiplas formas apresenta características sociais e normativas.
Longe de excluir os elementos da equação, defendendo a preeminência
de qualquer um deles, o ecletismo do comunitarismo moderado
proposto por Kwame Gyekye valoriza a dialéctica entre o indivíduo e a
comunidade.

Com as suas instituições e entidades representativas as referidas


unidades políticas infra estaduais produzem e aplicam o Direito
Consuetudinário em partes do território onde exercem poder e

77
AVINERI, Shlomo e Avner de-Shalit (ed.) Communitarianism and individualism, Oxford/New York:
Oxford University Press. 1992, pp. 2-3

76
jurisdição. A interpretação da Carta Africana dos Direitos do Homem e
dos Povos de 28 de junho de 1981 conduz a tal conclusão. É daqui que
se alicerça a técnica educacional da presente cadeira de Direito
Costumeiro preceder as Instituições de Direito Africano. No ISPOC –
Huambo bem conhecida por IDA.

Nas mesmas circunstâncias, Mwayila Tshiyembe considera necessário


recorrer a uma concepção pragmática que admita a existência de uma
“soberania partilhada” porque ao Estado não é conferido qualquer
monopólio da produção do direito podendo por isso ser reconhecido o
pluralismo jurídico como uma especificidade dos Direitos Africanos em
que avulta o exercício de uma função hermenêutica de que as
instâncias estaduais não se podem apropriar.78 Neste âmbito Mwayila
Tshiyembe defende:

Nas comunidades africanas, a acção dos sujeitos responsáveis pela


interpretação e aplicação do costume obedece a métodos cuja teleologia
é a solução de conflitos, a manutenção da paz e justiça comunitárias.
Por conseguinte, não se aliena tal função.

Por esta razão, assuntos


tradicionalmente resolvidos, ficam
protegidos pelo principio jus penal
do “nemo bis in idem”

Transitando do constitucionalismo e da filosofia do direito e filosofia


política percebe-se que o pluralismo jurídico africano faz apelo ao
conceito de Direito enquanto instituição na senda da teoria do
ordenamento jurídico de Santi Romano. Mas, ao mesmo tempo, faz- se
remissão a um pluralismo epistemológico que na filosofia
contemporânea tem igualmente a designação de multiculturalismo.

78
(Tshiyembe, 2001:125)

77
2.3. A Exclusividade da Produção do Direito

Examinando as principais correntes do pensamento jurídico que na


primeira metade do século XX tematizaram a relação entre o Estado e
produção do direito, Norberto Bobbio aponta apenas duas concepções:

1. O estadualismo;
2. O legalismo.

A primeira cultivada por especialistas do direito público. A segunda tem


os seus defensores entre juristas que laboram no espaço do direito
privado. Por estadualismo entende-se a concentração da produção
exclusiva do direito na esfera do Estado, apenas o direito estadual é
direito. Já o legalismo considera ser a lei o único meio de manifestação
do direito, operando sob os auspícios de outra fórmula segundo a qual
não existe outro direito que não seja direito legislativo, aparecendo aqui
assim a forte ideia do Poder Legislativo. Isto é, para além do direito
fundado na lei não existe outro direito produzido pelo Estado.

Do ponto da primeira corrente, as consequências daí resultantes


apontam para a indiferença perante um vasto conjunto de relações
sociais situadas fora da jurisdição do Estado. Para a segunda corrente
(Legalista), fora do âmbito da lei não existem normas imperativas,
apenas normas cuja qualificação jurídica depende do reconhecimento
tácito ou expresso da lei. Assim é o caso das normas do Direito
Consuetudinário (vejamos de novo a noção de Direito Costumeiro). Ora,
o declínio do Estado como detentor do monopólio da produção do direito
e da lei enquanto forma privilegiada de manifestação do direito
conduziram à “legalização da experiência jurídica.” O que permitiu o
alargamento da jurisdição do Estado e da ação da lei.

Para Bobbio, as críticas “anti estadualistas” deram origem à teoria da


78
pluralidade dos ordenamentos. E das críticas “anti legalistas” emergiu a
teoria da pluralidade das fontes. As duas teorias resultam da crise das
fronteiras da lei e do Estado.

A este propósito, Norberto Bobbio desenvolveu uma reflexão acerca


das duas teorias pluralistas de que resultaram dois livros seus
consagrados à norma jurídica e ao ordenamento jurídico. Para uma
melhor compreensão desta problemática, Bobbio convoca a noção de
“experiência jurídica” enquanto universo das ações constitutivas do
direito.79 No estado actual dos conhecimentos de problemas jus
constitucionalista, podemos identificar três tipos de experiências
jurídicas, nomeadamente:
1. A consuetudinária;
2. A legislativa;
3. A jurisprudencial.

Como veremos mais adiante, o nosso interesse incide sobre a


experiência jurídica consuetudinária. O traço que a distingue de outras
duas experiências reside na determinação do momento a partir do qual
o costume adquire o estatuto jurídico. De um modo geral, o costume
não é considerado fonte autónoma do direito. Sendo tratado como “fonte
subordinada”, depende do que for disposto pelo poder legislativo
(costume Secudum legae) e, em determinados sistemas jurídicos, pelas
decisões judiciais que atribuem tal reconhecimento.

Esta possibilidade de reconhecimento jurídico do Direito


Consuetudinário exterioriza o princípio da indivisibilidade da soberania,
pois a legislação e as decisões dos tribunais constituem meios da
potência pública. Por outro lado, o conceito de soberania comporta o
poder constituinte exercido no âmbito de um território, sendo o Estado
a instância suprema que concentra a titularidade desse poder. Neste

79
(Bobbio, 2010:10).

79
sentido, as normas jurídicas, que se caracterizam pela sua validade e
eficácia, destinam-se a produzir efeitos visando a uniformização dos
comportamentos e a homogeneização dos governados de acordo com o
princípio da territorialidade. Portanto, o poder exclusivo do soberano que
consiste em produzir o direito é aquele que se analisa na criação de um
determinado ordenamento jurídico.

Ora, o problema da validade e da eficácia do direito assume particular


interesse ao tratarmos da experiência jurídica consuetudinária. Perante
a controvérsia acerca do processo que permite transformar uma norma
consuetudinária em norma jurídica.80 Esta é uma perspetiva holística
de tratar o direito que mais se adequa aos desafios do nosso tempo.

80
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro, 2011, p. 45

80
2.4. O Problema das Fontes do Direito e Ordenamento Jurídico

Pela publicação do livro de Santi Romano L’Ordenamento Giurídico. Studi


sul Concetto,Le Fonti e i Caratteri del Diritto, em 1917 e da teoria
institucionalista do francês Mauric.81 Registam-se reações doutrinárias
contra o estadualismo monista e as teorias normativas, pois as
fronteiras do direito estendem-se para lá do Estado, admitindo-se a
existência de uma pluralidade de ordenamentos jurídicos.

Com efeito, caberá a Hans Kelsen a teorização do ordenamento jurídico


sob os auspícios do jus positivismo tematizando as matérias
enunciadas em algumas das suas obras, nomeadamente, Teoria Pura do
Direito e Teoria Geral do Direito e do Estado. Donde a unidade, a
coerência e a completude constituem as três características
fundamentais do ordenamento jurídico. As referidas teorias pluralistas
dos ordenamentos jurídicos e das fontes do direito traduzem bem a
complexidade hodierna de um problema jus constitucional.

De acordo com Bobbio, a teoria do pluralismo dos ordenamentos


permite concluir que a experiência jurídica não se esgota na
estadualidade, ao invés estende-se ao mundo social. Já a teoria do
pluralismo das fontes produz consequências no sentido de reconhecer
que a experiência jurídica não se resume ao direito erigido em lei,
multiplica-se através de outros factos eficazes para a produção de
normas obrigatórias.82

Trata-se de duas problemáticas que se iluminam reciprocamente, na


81
HAURIOU, Maurice. Précis de Droit Constitutionnel, Paris: Librairie de Société du Recueil Sirey,1923,
pp. 1856 - 1929

82
BOBBIO, Norberto. La consuetudine come fatto normativo, Torino: G.Giappichelli Editore. 2010, p.
10
medida em que a formação dos ordenamentos jurídicos estaduais
registam processos de absorção de resíduos históricos dos
ordenamentos pré-estaduais.

Aí residem os fundamentos da estratificação histórica dos ordenamentos


que justificam a multiplicidade das fontes. Por sua vez, a pluralidade de
ordenamentos ganha relevo com a pluralidade das fontes. Na verdade,
não podemos perder de vista a complexidade dos ordenamentos
jurídicos, pois ela deriva da necessária quantidade de regras de conduta
que a vida em sociedade requer, não podendo a sua satisfação ocorrer
de modo isolado.83 Apontam-se duas razões históricas fundamentais
para explicar a formação dos ordenamentos jurídicos.

A primeira é aquela que se analisa no fato de o novo ordenamento não


prescindir das camadas normativas precedentes. A segunda pode ser
compreendida a partir da autolimitação do poder soberano que permite
falar em transferência de parte do poder originário de criar normas
jurídicas. Todavia, durante o século XX, a concepção dominante em
matéria de fontes do direito encontrava o seu suporte teórico na
chamada teoria tradicional das “fontes de direito” assente no paradigma
estatisto-legalista já descrito.

Na sua ideia jurídica Castanheira Neves considera que numa perspectiva


político-constitucional esta teoria ocupava-se de três questões:

a) A primeira que dá origem a posições que excluíam o costume do


conjunto das fontes do direito. As objecções são atribuídas à
Escola Histórica do Direito que defendia a teoria dualista das
fontes, reconhecendo o costume e a lei, aquela qualificada como
83
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro, 2011, p.52

1
fonte originária e autónoma.
b) A segunda releva da dogmática jurídica e diz respeito à teoria da
exclusividade da lei como fonte do direito, enquanto «lei em sentido
material» e «lei em sentido formal.
c) A terceira levanta o problema da hierarquia das fontes do direito
que, operando com o critério do poder, permite distinguir níveis
de uma estrutura estratificada. Este critério consiste em definir o
sistema supra-infra-ordenado das fontes prescritivas.

Em primeiro lugar, a constituição e as leis constitucionais que emanam


do poder constituinte. Em segundo lugar, as leis e outros diplomas
legislativos. A metáfora da estratificação está subjacente à hierarquia
das fontes de direito na medida em que as várias camadas, isto é, as
normas que se sobrepõem formando o ordenamento jurídico, têm
diversas origens. Ilustram-no os expedientes a que se recorre para a
formação dos ordenamentos jurídicos, designadamente, a recepção de
normas preexistentes em outros ordenamentos e a delegação de poder a
entes inferiores para criar normas.

Tais procedimentos permitem identificar as fontes reconhecidas de que


o costume configura o melhor exemplo e das fontes delegadas o
regulamento produzido por um órgão administrativo inferior. Ora, a
pluralidade dos ordenamentos, enquanto problema jus constitucional,
merece a atenção de duas conceções:

a) O monismo que parte do pressuposto segundo o qual existe um


ordenamento jurídico universal;
b) O pluralismo baseado nas teorias institucionais que defende a
existência de vários ordenamentos jurídicos.

Para Bobbio, as relações entre os ordenamentos podem ser classificados


de acordo com três critérios: o diferente grau de validade na sua relação

2
interna; a diferente extensão recíproca dos respetivos âmbitos de
validade; e a validade das normas de um ordenamento por força da
atribuição de outro ordenamento.84 O primeiro critério conduz-nos à
identificação de relações de coordenação e de subordinação. As relações
de coordenação «são aquelas que têm lugar entre Estados soberanos» e
dão origem a regras de coexistência resultantes de uma
«autolimitação recíproca». As relações de subordinação ocorrem entre o
ordenamento estadual e ordenamentos cuja validade dependem do
reconhecimento do Estado.
O segundo critério permite o estabelecimento de relações de exclusão
total, inclusão total e exclusão parcial. Os respetivos âmbitos de
validade dos ordenamentos em presença podem ser territoriais,
materiais e pessoais. Nesta medida, por exclusão total entende-se a
delimitação da validade de dois ordenamentos não se sobrepondo
reciprocamente em nenhuma das respetivas partes. Já a inclusão total
significa que o âmbito de validade de um dos ordenamentos jurídicos
está contido no outro.
O terceiro critério, assente na interseção e conexão de acordo tem como
base a validade que um determinado ordenamento atribui às regras de
outros ordenamentos com os quais entra em contacto.85 A interseção e
conexão (exclusão parcial e inclusão parcial) verifica-se quando dois ou
mais ordenamentos regulam a mesma matéria ou relação jurídica em
razão dos âmbitos de validade das normas jurídicas que mantêm uma
conexão com tais matérias.
Segundo Norberto Bobbio, este último critério pode dar lugar a três
situações: indiferença, recusa e absorção. Vamos debruçar-nos sobre
esta última, tendo em conta a sua relativa complexidade. Por absorção,
entende-se a situação em que um ordenamento considera obrigatório

84
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São Paulo:
Edipro, 2011, p.52

85
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São Paulo:
Edipro, 2011, p. 161

3
ou proibido aquilo que em outro ordenamento é também obrigatório ou
proibido. 86 Pode apresentar-se sob a forma de reenvio e recepção. Com
o reenvio um determinado ordenamento acolhe as normas provenientes
de outro ordenamento em detrimento do seu próprio regime jurídico.
Isto pode ocorrer quando o ordenamento estadual reconhece a validade
das normas do ordenamento menor no respetivo âmbito. A recepção
traduz o processo através do qual um ordenamento aceita o regime
jurídico de um conjunto de relações e matérias jurídicas estabelecido
em outro ordenamento.

2.5. O Positivismo e as Normas Consuetudinárias

O costume como facto normativo, procura explicar a hierarquia jus


positivista dos ordenamentos invocando a estreita ligação entre a teoria
das fontes do direito e a teoria dos ordenamentos jurídicos. A
sobrevivência de costumes jurídicos em ordenamentos estaduais
hodiernos constitui o testemunho da existência de antigos
ordenamentos pré-estaduais de carácter exclusivamente
consuetudinário. Deste modo conclui que a supremacia da lei representa
um episódio da luta vitoriosa do ordenamento estadual, totalitário e
centralizador, contra ordenamentos parciais e descentralizados.87

Ora, o processo de constitucionalização do Direito Consuetudinário e a


consagração do pluralismo jurídico constituem actualmente premissas
para questionar a triunfal vitória do ordenamento estadual perante o
concorrente ordenamento consuetudinário. A fenomenologia da
experiência jurídica consuetudinária sugere uma necessária precisão.
Nesta medida a pirâmide dos ordenamentos jurídicos e sustenta que
teoricamente a supremacia do ordenamento jurídico estadual significa

86
Idem

87
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São Paulo:
Edipro, 2011, p.92

4
apenas a anulação da força obrigatória das normas consuetudinárias,
sem que tal implique a sua eliminação total, pois elas são absorvidas
pela lei através dos processos de codificação. Do ponto de vista histórico,
ambos os ordenamentos desenvolvem diferentes processos de formação a
partir dos quais se estabelecem relações que podem consistir em
intersecção ou sobreposição.
Apesar da sua filiação à escola jus positivista, Bobbio emprega o
conceito de pluralismo jurídico institucional inspirando-se na teoria do
ordenamento jurídico de Santi Romano que fragmenta o princípio jus
positivista do direito universal. Todavia, por razões de ordem
epistemológica as conclusões a que chega Bobbio, tributárias das
tradições jurídicas ocidentais, não podem ser generalizadas de tal modo
que possam abranger as experiências jurídicas não ocidentais.
Limitações semelhantes repercutem-se na focagem sobre os problemas
jus filosóficos que as normas consuetudinárias colocam. Isso mesmo
manifesta-se nas posições adotadas por Herbert L.A.Hart que, na
década de 60 do século XX, operava ainda com uma perspetiva
evolucionista do direito.
Os desafios com que se confronta o jus positivismo neste alvorecer do
novo milénio fornecem suficientes provas empíricas.

2.6. O conceito de fonte do direito

Socorrendo-nos da genealogia do conceito de soberania que analisámos,


facilmente se procede à associação do poder soberano à potestas
normandi ou a normae agendi. A imagem metafórica da fonte remete
para o sujeito detentor de um poder que sustenta a sua produção do
direito, bem como outros actos por ele praticados e o lugar de que
emanam as normas jurídicas. Na tradição europeia, o uso da metáfora
remonta ao Direito Romano, quando Cícero em De Legibus (Livro I)
constrói um diálogo entre Ático e Marcus no qual o segundo considera
que a descoberta das fontes das leis e do direito (itálico nosso)
requeriam um prévio conhecimento dos dons do homem, as qualidades
5
excelentes da mente humana e a tarefa para cuja realização os homens
tinham vindo ao mundo15.

Tomando posição na discussão deste problema jus filosófico, Kelsen


começa por dilucidar o sentido da expressão fontes de direito,
distinguindo as normas do Direito Estadual (legislação) das normas do
Direito Internacional (costume e tratado). E conclui que a referida
fórmula metafórica pode ser empregada em sentido não jurídico
quando designa princípios de ordem moral e política, teorias jurídicas e
pareceres de especialistas, não podendo significar o mesmo que as
fontes do direito positivo, pois o que distingue estas daquelas é a sua
natureza jurídica vinculante. Não é sem razão que Hans Kelsen
considera que a equivocidade ou pluralidade de significações do termo
fonte de Direito fá-lo aparecer como juridicamente imprestável,
aconselhando o emprego de uma expressão que tenha
inequivocamente em vista o fenómeno jurídico.

Para Castanheira Neves a expressão pode ser analisada como fórmula e


como problema. Como fórmula selecciona quatro sentidos:

1. Fontes de conhecimento;
2. Fontes genéticas;
3. Fontes de validade;
4. Fontes de juridicidade.

Enquanto problema, a verdadeira questão coloca-se na significação


para que remete o seu último sentido.88 As definições sobre o que se
entende por fonte do direito constituem controvérsias reveladoras da
diversidade de concepções e critérios usados para a sua classificação.

88
NEVES, António Castanheira. Digesta. Escritos Acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua
Metodologia e Outros, 3 volumes, Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 15

6
Na teoria tradicional as fontes do direito referem
os modos pelos quais uma normatividade se
torna direito positivo.89

Neste sentido, trata-se de fontes de juridicidade.

Numa outra perspetiva, poder-se-ia dizer


que fontes do direito são «aqueles factos
ou aqueles actos aos quais um
ordenamento jurídico atribui a competência
ou a capacidade de produzir normas
jurídicas.90

Verifica-se que as malhas da sua semântica não são acolhidas


pacificamente.

A existência de conexões entre a teoria do ordenamento jurídico e a


teoria geral das fontes do direito permite concluir que nas referidas
tentativas de definição não parece haver clareza, na medida em que para
que tal ocorra o definiens deve revelar-se mais transparente do que o
definiendum. Para Josep Agiló Regla a definição de fontes do direito
obedece à dialéctica dos pares conceituais: fontes de produção versus
fontes de conhecimento; métodos de produzir normas jurídicas versus
formas de exteriorização de normas»; métodos de produção versus
normas que regulam a produção de normas.

Esses dilemas configuram ambiguidades da linguagem jurídica do tipo

89
Idem

90
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro. 2011, p. 58

7
antecedente/ consequente ou oposições através das quais se podem
discernir relações de implicação entre o constitutivo e o constituído.

Josep Agiló Regla considera que a definição comummente usada tem o


cunho das doutrinas juscivilistas e baseia-se na lógica do género e da
diferença específica. O género corresponde aos «factos e atos jurídicos» e
a diferença específica à «criação de normas jurídicas». De acordo com
Agiló Regla, no que a este segundo elemento diz respeito, importaria ter
igualmente em conta os diversos significados de norma jurídica bem
como o catálogo de normas classificadas pelo critério da sua origem.
Mas as normas sobre as fontes do direito constituem uma tipologia que
deve merecer particular atenção. Trata-se das normas secundárias que
regulam o modo de produzir as normas jurídicas, ou seja, normas
idóneas que regem o seu processo de produção.

Para Riccardo Guastini existem três tipos diferentes de normas sobre


as fontes do direito:
1. Normas sobre a produção jurídica;
2. Normas sobre a eficácia;
3. Normas sobre o conflito de normas.

As normas sobre a produção jurídica disciplinam o processo de criação


de novas normas apresentando-se em quatro tipos:

1. Normas que conferem competência normativa;


2. Normas que disciplinam o exercício de uma competência;
3. Normas que circunscrevem o objecto de uma competência;
4. Normas que limitam o conteúdo de uma competência.91

91
GUASTINI, Riccardo. Le Fonti del Diritto e L’Interpretazione, Milano: GiuffrèEditore. 1993, p. 29

8
O reconhecimento da sua existência permite identificar fontes de
produção e fontes de conhecimento. No dizer de Guastini, as fontes de
produção têm uma conotação associada aos factos e actos susceptíveis
de produzir o Direito. Já as fontes de conhecimento designam os
documentos e publicações através dos quais se dá a conhecer o direito.
Com efeito, a distinção entre fontes de produção e fontes de conhecimento
revela-se problemática quando se trata do Direito Consuetudinário, pois
do ponto de vista da sua manifestação não é um direito originariamente
escrito.

No primeiro caso temos o costume como facto produtor de normas


jurídicas. No segundo, verifica-se que ele é suscetível de ser publicado
em suporte escrito. O que pode acontecer geralmente através da recolha
dos usos e costumes, isto é, assumir a forma de codificação dos
costumes jurídicos. Neste caso regista-se um diferimento entre a
textualidade oral em que se reproduz a norma jurídica e os documentos
que comprovam a sua existência.
As normas sobre a eficácia das normas determinam o âmbito da sua
aplicabilidade que pode ser pessoal, espacial e temporal. Por sua vez, as
normas sobre conflitos entre as normas regulam as relações ou
antinomias entre as fontes (conflitos entre normas provenientes de
fontes do mesmo tipo mas promulgadas em momentos diferentes e
conflitos entre normas provenientes de fontes de diferentes), podendo dar
lugar ao recurso dois tipos de soluções:

1. O princípio da preferência pela norma sucessiva ou princípio


cronológico;
2. O princípio hierárquico segundo o qual prevalece a norma
superior.

Para Bobbio as antinomias revelam uma situação em que duas normas


não podem ser ambas aplicadas, implicando a supressão de uma delas.

9
As antinomias podem ser sanáveis ou aparentes; e insanáveis ou reais.
Incidamos sobre as antinomias reais, aquelas em que o intérprete é
abandonado a si mesmo ou pela falta de um critério ou por conflito entre
critérios dados.92 A dogmática jurídica propõe três critérios para a
solução das antinomias insanáveis ou reais:

1. O critério cronológico (lex posterior derogat priori);


2. O critério hierárquico (lex superior derogat inferiori);
3. O critério da especialidade (lex specialis derogat generali).

Ora, o conceito de fonte do direito que interessa no âmbito desta cadeira


tem em conta as situações históricas que dos nexos estabelecidos entre
a lei e o costume: superioridade da lei; paridade entre a lei e o costume;
inferioridade da lei. As relações entre a lei e o costume deram origem a
soluções pluralistas apesar da superioridade da lei sobre outras fontes
do direito.
Do ponto de vista teórico são conhecidas três doutrinas que tematizam o
costume como fonte do direito que ajudam a validar o ensino e o estudo
do Direito Costumeiro:

1. A doutrina romano-canónica;
2. A doutrina moderna;
3. A doutrina da Escola Histórica do Direito.

Não cabendo aqui o tratamento exaustivo desta matéria, será


necessário proceder a uma breve caracterização destas doutrinas como
veremos na secção em que se trata do Fundamento do Direito
Consuetudinário.

92
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro. 2011, p. 96

10
2.7. O Costume Como Fonte de Direito

Antes de mais, importa dizer que o costume é a “regra social que se


forma espontaneamente em consequência dos usos, este tem como
finalidade estabelecer e manter determinados modos a conduzir , que faz
possível a conservação de uma ordem social qualquer e harmonia dentro
do grupo.”93

A «perspetiva político-constitucional» que subjaz à teoria tradicional das


fontes do direito assenta na conceção estatisto legalista, sendo
dominada exclusivamente por uma questão teórica que incide sobre o
problema das manifestações constitutivas do direito (costume, lei,
contrato, jurisprudência, doutrina) e duas questões de cariz dogmático
jurídico, designadamente, a teoria da lei e da hierarquia das fontes do
direito.94

Com efeito, interessa-nos aqui explorar as críticas assacadas à Teoria


Tradicional das Fontes do Direito, incidindo especialmente sobre a
questão teórica de que ela se ocupa. Referimo-nos à exclusão do costume
desse elenco que, por outro lado, é um ponto que faz apelo à revisão da
conceção estatisto-legalista do direito.

Uma das manifestações da exclusão do costume verifica-se quando


surge o complexo problema da relação entre a lei e o costume, e se põe à
prova o critério hierárquico para a solução das antinomias. Nos casos
em que o costume é uma inferior fonte do direito, ele será considerado
secundum legem ou praeter legem, sem força para revogar a lei. Na

93
HERNANDEZ, Pedro Pabrlo, Tratado de Sociologia Del Dercho, 1ª ed. Florida, Valletta Editores, 2012, p.
500

94
NEVES, António Castanheira. Digesta. Escritos Acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua
Metodologia e Outros, 3 volumes, Coimbra: Coimbra editora, 2010, p.40

11
hipótese de o costume e a lei serem fontes do mesmo grau, não se
aplicará o critério hierárquico, rt.º7º CRA.

Em circunstâncias semelhantes aplica-se o critério cronológico.

Ora, no século XX a crítica ao estadualismo traduziu-se no surgimento


de várias conceções do direito dentre as quais avulta a conceção
institucional. A ela se deve a introdução da teoria pluralista das fontes
do direito. As fontes materiais do direito não podiam ser atribuídas
exclusivamente ao Estado ou restringir-se à sua natureza formal. No
entender de Castanheira Neves, a concepção institucional não é
totalmente concludente quando se trata de determinar a superação da
teoria tradicional das fontes do direito. É que também incorre no
mesmo «erro básico» que consiste em persistir na ideia de que o
problema das fontes se resolve através da simples fenomenologia do
direito, apreendido na sua manifestação.

Todavia, a articulação dessa ideia com o reconhecimento da invalidade


da tradicional perspectiva formal, impulsionou a busca de outras fontes,
“fontes materiais” diferentes das comuns e positivistas fontes formais.95
Portanto, vislumbra-se uma outra teoria das fontes do direito que tem
em conta o facto de as coordenadas normativas não serem apenas
jurídico-formais mas também jurídico- materiais. Nesta senda importa
fazer a síntese das críticas dirigidas à teoria tradicional e retomar a
noção de «experiência jurídica» enquanto universo das ações
constitutivas do direito para compreendermos os momentos da
normatividade jurídica do costume enquanto facto normativo de que o
ordenamento jurídico faz depender a produção de normas.

Entre os factos normativos que dão origem a normas gerais


encontramos o costume jurídico. A experiência jurídica constituinte
comporta três momentos: o momento material; o momento de validade;

95
NEVES, António Castanheira. Digesta. Escritos Acerca do Direito, do Pensamento Jurídico, da sua
Metodologia e Outros, 3 volumes, Coimbra: Coimbra editora, 2010, p. 8

12
e o momento constituinte.96

Para Castanheira Neves, a determinação do ponto de referência a partir


do qual se define a juridicidade do costume ocorre no primeiro
momento, pois torna-se possível saber acerca das potencialidades de a
prática jurídica consuetudinária ser considerada um modo constituinte
do direito positivo, englobando a sua juridicidade.97

Castanheira Neves sublinha dois aspetos: o modo constituinte e a


juridicidade. Para ele a constituição consuetudinária do direito não
pode ser o modo de constituição polarizador das sociedades actuais»,
embora possa assumir importância de auctoritas normativa nos casos
em que «o direito é susceptível de se oferecer como directa expressão das
intenções normativas comunitárias ou naqueles casos em que «a
indeterminação de uma pré-objetificação normativa obriga a recorrer à
prática.

Quanto ao segundo aspecto, Castanheira Neves entende que devido ao


seu carácter originariamente comunitário, a juridicidade do costume
constitui-se no contexto de uma realidade histórico-cultural onde os
comportamentos individuais e colectivos consagram a intenção
normativa subjacente à prática e aos usos sociais. Assim, é possível
isolar dois elementos constitutivos do costume jurídico:
a) O elemento material e externo ( usus);
b) O elemento espiritual e interno (opinio juris).

Ao admitir-se no plano da análise a existência destes elementos, torna-


se necessário determinar o fundamento do costume enquanto fonte do
direito. Todavia, os debates que se desencadeiam nesta matéria
gravitam à volta de um equívoco que se analisa na distinção entre
Direito Consuetudinário em sentido amplo, abrangendo outas fontes do

96
Ibidem

97
idem.

13
direito situadas fora do domínio da lei e o Direito Consuetudinário em
sentido estrito que designa apenas o conjunto de normas de origem
costumeira.
Em todo o caso, importa reconhecer o costume como fonte do direito
nos sistemas jurídicos contemporâneos, afastando-se qualquer
hegemonia epistemológica que, numa lógica evolucionista, estabeleça
uma ordem hierárquica entre o pré-jurídico e o jurídico, ou seja, entre o
costume representando a regra não escrita e o jurídico confundindo-se
com a regra escrita. Por essa razão, a definição do costume como fonte
do direito deve obedecer aos ditames de um certo relativismo epistémico
devido à forte dependência de parâmetros conceituais com que se opera.
E a noção de costume ilumina bem os caminhos dominados pelo
absolutismo epistémico.98
É claro que é possível imaginar uma sociedade sem poder legislativo,
tribunais ou funcionários de qualquer espécie. Na verdade, há muitos
estudos de comunidades primitivas que não só sustentam que esta
possibilidade ocorreu, mas descrevem em detalhe a vida de uma
sociedade na qual o único meio de controlo social é a atitude geral do
grupo para com os seus modos-padrão de comportamento, em termos
daquilo que caracterizamos como regras de obrigação. Uma estrutura
social deste tipo é frequentemente descrita como uma estrutura
baseada no costume, mas não usaremos este termo, porque
frequentemente assume de forma implícita que as regras
consuetudinárias são muito antigas e mantidas com menor pressão
social do que as outras regras.

Para evitar estas implicações, referir-nos-emos a tal estrutura social


como uma estrutura integrada por regras primárias de obrigação. Tais
regras encontram-se sempre de fato nas sociedades primitivas de que
temos conhecimento, juntamente com uma variedade de outras regras

98
HART, Herbert L.A. O Conceito de Direito, 6ª edição, tradução A.Ribeiro Mendes, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2011, pp. 1907 - 1994

14
que impõem vários deveres positivos aos indivíduos, de execução de
serviços ou de prática de contribuições para a vida comum.99

Nesta medida, o uso do conceito de costume não podia permitir que


Hart tivesse uma compreensão adequada das experiências jurídicas
consuetudinárias de outras regiões do globo obedecendo a critérios e
padrões diferentes, apesar da nota introduzida no seu livro revelando
algum conhecimento de obras de antropologia jurídica escritas por
autores como Bronislaw Malinowski, A.S. Diamond, Karl Llewellyn e
E.Adamson Hoebel. A falta de profundidade da leitura de tais autores é
a crítica que lhe faz David J. Bederman (Bederman, 2010:6). A posição
defendida por Herbert L.A. Hart assenta no pressuposto segundo o qual
o costume nas sociedades do século XX caraterizava aquilo que ele
designa por «comunidades primitivas».

Recusando-se a usar o termo costume, prefere falar em «regras


primárias de obrigação» que requerem a complementaridade das regras
secundárias. Contudo, como veremos mais adiante, o costume integra
hoje o sistema das fontes do direito com plena cidadania em vários
ordenamentos jurídicos.

2.8. O Costume como Problema Filosófico e Constitucional

Chegados aqui a avidez de indagar-nos sobre o fundamento do costume


jurídico coloca-nos em presença de um dos mais estimulantes
problemas teóricos do Direito. Trata-se, ao mesmo tempo, de um falso
problema, na medida em que a validade do costume jurídico funda-se
na sua própria juridicidade. Porque, demandar o fundamento do
costume jurídico é um desafio que aqui se nos oferece. Na historiografia

99
Idem, p 101

15
jus constitucional, as tentativas de resposta agrupam-se em três
diferentes doutrinas:
1. A doutrina tradicional ou romano-canónica;
2. A doutrina da Escola Histórica do Direito;
3. A doutrina moderna.100

Para a Doutrina Tradicional ou romano-canónica o costume jurídico


funda-se na vontade do povo, sendo este o fundamento da
juridicidade da lei e do costume. Nestes termos, admite-se a
possibilidade da atracção de uma fonte de direito por outra, ou seja, o
costume é incorporado no ordenamento jurídico estadual por força da
própria lei. Uma fonte do direito atrai outra fonte.
No século XIX, os seus próceres da Escola Histórica do Direito,
Friedrich Carl von Savigny e Georg Friedrich Puchta, consideravam que
na origem do direito encontravam-se a nação e a convicção popular. E
referiam-se desta maneira ao Direito Consuetudinário ou Costumeiro,
tal como aqui o chamamos. Por esta razão, as suas características
doutrinais residem na confusão que se estabelece entre o fundamento e
a fonte do Direito Consuetudinário, quando este é tomado como direito
que emana da vontade popular. Todavia, ao ser afastada a hipótese de
sobrepor as duas categorias – Direito Popular e Direito Consuetudinário
– esta doutrina revela-se como via para a investigação do fundamento do
Direito Consuetudinário que transpõe as suas próprias fronteiras.
Para Bobbio, a Escola Histórica defende a perspetiva segundo a qual o
costume tem carácter jurídico independentemente do legislador, do
poder judiciário e do cientista do direito, porque a sua validade se funda
na convicção popular, no sentimento de justiça do povo, sentimento que

100
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro. 2011, p. 41

16
permite distinguir os costumes jurídicos dos simples hábitos.101
Neste sentido, Bobbio admite que esta é uma outra possibilidade de
atracção da norma consuetudinária por uma fonte que é igualmente o
seu fundamento, o povo. Uma fonte do direito é, ao mesmo tempo, o seu
próprio fundamento. Ele depende da acção dos tribunais que lhe
conferem validade e força obrigatória. O centro de atracção da norma
consuetudinária é a mediação do juiz. nesteâmbito, John Austin
escreve:
“For example, customary laws are positive laws fashioned by judicial
legislation upon pre- existing customs. Now, until clothed with legal
sanctions by the sovereign on or number, the customs era merely rules
set by opinions of the governed and sanctioned or enforced morally;
though, when they become the reasons of judicial decisions upon cases,
and are clothed with legal sanctions by sovereign one or number, the
customary are rules of positive law as well as of positive morality. But
because the customs were observed by the sovereign one or number, it is
fancied that customary laws exist as positive laws by the institution of the
private persons with whom the customs originated.” 102

O pensamento subjacente na doutrina moderna é abalado pela


argumentação aduzida por Bobbio quando considera que o costume
qualifica originariamente a autoridade do juiz e sustenta o
desenvolvimento do direito judiciário. Nesta medida, as teorias da
concepção moderna suscitam algumas objecções. Em primeiro lugar, a
validade dos costumes não implica a intervenção dos tribunais. É o que

101
BOBBIO, Norberto. O Positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito,tradução Márcio Pugliesi, São
Paulo: Ícone editora, 2006, p. 168

102
AUSTIN, John. Lectures on jurisprudence or the philosophy of positive law, Jersey City: Robert
Campbell, 1874, pp. 102 - 103

17
acontece na tradição constitucional britânica dominada por um direito
constitucional de origem consuetudinária. Além disso, ocorrem
situações em que os tribunais estão vinculados à aplicação do costume,
não podendo o juiz ter a liberdade de escolha. Podiamos pedir alguma
regulação normativa desse género para Angola.

Portanto, as respostas elaboradas no âmbito das indagações acerca do


fundamento do costume jurídico conduzem-nos à afirmação da
autoridade social da tradição perante a qual são reconhecidas as normas
jurídico-consuetudinárias. Contrariamente à tese defendida por
Castanheira Neves segundo a qual a constituição consuetudinária do
direito não pode ser o modo de constituição polarizador ou nuclear das
nossas atuais sociedades, Bobbio com fundadas razões considera que
ao costume, pela sua própria natureza, deve ser atribuído “valor
constitutivo” e “ricognitivo”.

Neste sentido, justifica-se uma reflexão final sobre os elementos


constitutivos do costume reconduzindo-se estes às características da
consuetudinariedade e da juridicidade. Se a prática reiterada e
uniforme de determinados comportamentos define a
consuetudinariedade, já o critério da juridicidade será a opinio juris. A
doutrina jurídica dominante considera que o costume jurídico comporta
dois elementos: um externo, ou seja, a repetição; outro interno, a opinio
juris seu necessitatis.

Contudo, os equívocos são gerados pela oposição de duas doutrinas


cujos argumentos visam a defesa da superioridade de um dos referidos
requisitos. De um lado, situa-se a doutrina materialista segundo a qual
a compreensão do problema suscitado deve conduzir à exclusão do
requisito interno. No polo contrário, está a doutrina espiritualista que
valoriza a importância do elemento interno, excluindo o requisito
externo. Ao desenvolver a doutrina do fundamento espiritual do
costume jurídico, a Escola Histórica do Direito revela uma propensão
18
para fazer crer que ele deriva diretamente das convicções.

A relação dialéctica entre a comunidade e o indivíduo, sobrepujando-se


aquela a este, sustenta o fundamento do costume, tal como defende a
Escola Histórica do Direito. De acordo com Bobbio os problemas
doutrinários que a opinio juris suscita, enquanto elemento ou requisito
da juridicidade do costume, assume diversas formas. Elas traduzem
equívocos que têm diferentes expressões:

a) A opinio juris necessitatis em que o momento constitutivo do


costume se realiza com a convicção do cumprimento de um acto
necessário do ponto de vista jurídico, mas não natural;
b) A opinio juris corrige o sentido genérico da expressão anterior,
afastando qualquer dúvida a respeito da natureza jurídica da
referida necessidade, isto é, da sua obrigatoriedade;
c) A opinio juris et necessitatis, uma hendíadis através da qual o
segundo termo integra ou desenvolve o sentido do primeiro;
d) A opinio juris seu necessitatis traduz a equivalência dos dois
termos sendo por isso uma tautologia.

Todavia, na dogmática jurídica discute-se acerca da formação do costume


jurídico e dos elementos que o constituem. Por isso, Bobbio identifica um
círculo vicioso na existência da opinio como pressuposto necessário da
obrigatoriedade e na definição da opinio como convicção de sujeitar-se a
uma norma jurídica, supondo, por conseguinte, uma obrigação
preexistente.

Em síntese, esvazia-se a norma consuetudinária da sua validade jurídica,


inscrevendo-se a opinio no campo da contradição, ao ser considerado
elemento constitutivo da norma consuetudinária e, ao mesmo tempo,
nega-se ao processo consuetudinário a possibilidade de ser direito. Os
equívocos e as contradições que resultam desse debate exigem uma
19
clarificação da posição que a opinio juris ocupa. Para o efeito, Bobbio
considera necessário distinguir os dois processos que sustentam a norma
consuetudinária: o processo de formação que diz respeito à sua produção
e o processo de conservação que mantém a sua eficácia.

Situada assim na fase da conservação do costume que corresponde ao


momento da eficácia, a opinio juris, desde logo pela sua etimologia,
remete-nos para a história do direito romano e do direito medieval
europeu, além de pressupor a existência de normas que regulam práticas
caracterizadas como ius non scriptum. No entanto, se admitirmos que a
tematização seguida nesta dissertação inscreve-se no âmbito da teoria do
ordenamento jurídico consuetudinário, verificaremos que pela
metodologia adotada, tributária dos subsídios provenientes da produção
científica e filosófica de África e da América Latina, temos vindo a
privilegiar a experiência consuetudinária oral em que avulta o costume
não escrito, por exclusão do costume jurídico escrito quer de direito
interno quer do direito internacional.

Neste sentido, a opinio juris será igualmente um elemento constitutivo da


norma consuetudinária oral, pois apesar de não apresentar fundamento
escrito estará dotada de juridicidade, devendo-se no entanto distinguir a
opinio como fundamento da força obrigatória da opinio como traço
caraterizador da qualificação jurídica. Podemos concluir que o estudo da
opinio juris e de outros elementos no âmbito do Direito Consuetudinário
Oral é hoje um imperativo para melhor compreendermos as dinâmicas
jurídicas das vastas comunidades multiétnicas com autoridades políticas
próprias, excluídas pela ação esmagadora do Estado central, unitário e
federal transplantado da Europa.

Todavia, a discussão sobre os fundamentos do costume não se esgota na


análise dos seus elementos, estende-se ao estudo de outras duas

20
dimensões que constituem a dicotomia: hábito e convenção.103

Em The Philosophy of Customary Law, James Bernard Murphy desenvolve


uma abordagem que, estribando-se numa perspetiva histórica, avalia os
debates sobre as funções dos hábitos e das convenções nos sistema
jurídicos contemporâneos. Conclui que tais debates permitem
compreender melhor a relação que estabelece entre o costume e o direito.
Do nosso ponto de vista o continente africano apresenta hoje uma
diversidade de problemas que suporta a eficácia de semelhantes reflexões
filosóficas. A interpretação do costume com a finalidade de discernir os
seus elementos, o jurídico do metajurídico ou não jurídico, é um dos que
apresentam maior complexidade.

2.9. O Multiculturalismo a Epistemologia do Direito em Angola

Diga-se que é sob a égide do multiculturalismo e do relativismo


epistemológico,104 que tardiamente se desenvolvem nos meios
académicos ocidentais os debates filosóficos acerca da experiência
jurídica consuetudinária, focalizando problemas fundamentais da
epistemologia do direito de que o pluralismo jurídico é a sua melhor
demonstração.105 Foi na década de 90 do século XX que começaram a
ser discutidos temas problemáticos até aí negligenciados pela Filosofia
Política e pela Filosofia do Direito.

A atenção foi sendo deslocada para o tratamento de problemas

103
James Bernard Murphy. The Philosophy of Customary Law, Oxford: Oxford University Press. O autor
elabora um síntese histórica interessante da Filosofia do Direito Consuetudinário que atravessa o tempo
desde os tempos dos sofistas gregos, passando por Aristóteles, S.Tomás de Aquino, Francisco Suarez,
Jeremy Bentham e James Carter, 2014

104
Will Kymlicka. Contemporary Political Philosophy. An Introduction, Oxford: Oxford University Press;
Steven D. Hales, (ed.), 2011

105
Norbert Rouland. Nos Confins do Direito, São Paulo: Martins Fontes, 2008, p. 185.

21
específicos, quando os Estados e as democracias liberais passaram a
confrontar-se com a pressão das populações autóctones ou minorias
étnicas. Will Kymlicka esboça uma cronologia que permite analisar a
evolução do debate sobre o multiculturalismo em três fases, desde a
década de 80 até aos nossos dias. Durante a primeira fase, período que
ocorre antes de 1989, a defesa do multiculturalismo exprimia as
posições comunitaristas na crítica contra os liberais em discussões que
se concentravam em torno do direito das minorias.

Na segunda fase, evidencia-se o debate desencadeado entre os liberais


em que se discute acerca da interpretação dos princípios do liberalismo
perante o papel que podia ser desempenhado por fatores diversos como
as línguas, a nacionalidade e as identidades étnicas nas instituições
das sociedades democráticas. Para Kymlicka nesta fase os debates
registaram progressos na medida em que permitiram uma melhor
descrição das reivindicações apresentadas por diversos grupos
«etnoculturais» e uma melhor compreensão das questões de caráter
normativo.

A terceira fase desenvolve-se a partir das objeções ao chamado


«principle of benign neglect» (princípio da negligência benigna)
relativamente à diversidade etnocultural segundo o qual o Estado
devia manter a sua neutralidade perante as identidades etnoculturais
dos cidadãos e a existência ou inexistência de aptidão para a reprodução
da sua cultura.106 Nesta medida Kymlicka entende que o modelo de
abstencionismo do Estado devia ser substituído por um outro que
reconhecesse o seu papel na construção da nação (nation-building)
entendida como «a process of promoting a common language, and a
sense of common membership in, and equal access to, the social
106
KYMLICKA, Will. Contemporary Political Philosophy. An Introduction, Oxford: Oxford University
Press. 2002, pp. 336 - 347

22
institutions operating in that language”. Numa lapidar definição
instrumental, formulada a partir da crítica às conceitualizações
eurocêntricas, Kwame Gyekye considera que a «nation-building is thus a
conscious and purposive attempt to bring different peoples together to
think, act, and live as if they were one people belonging to one large
ethnocultural community.107

Estamos em presença de um novo tipo de processos de construção da


nação, por se tratar de um problema transversal em grande parte dos
Estados contemporâneos, caracterizando-se pelo reconhecimento da
heterogeneidade étnica, cultural e linguística das suas populações. Por
essa razão, o multiculturalismo manifesta- se sob formas diversas
podendo ser problematizado em vários domínios da filosofia. Enquanto
tema filosófico o multiculturalismo atrai o interesse da comunidade
académica que opera no campo da Filosofia Política a partir de 1992
com a publicação do texto de Charles Taylor sobre a «política do
reconhecimento». Trata-se de um fenómeno a que subjaz um «princípio
da igualdade universal».108

Para Charles Taylor são os problemas como o reconhecimento, a


identidade, a igualdade das pessoas e suas comunidades que nos
conduzem ao multiculturalismo «como é hoje frequentemente discutido
e que tem muito a ver com a imposição de algumas culturas sobre
outras da pressuposta superioridade que desencadeia essa imposição»
(Id.:84). Taylor procura determinar as situações que do ponto de vista
histórico e sociológico permitam explicar a pertinência de tais
problemas: o passado colonial e a marginalização de segmentos da sua
população oriundos de outras culturas.

107
GYEKYE, Kwame. Tradition and Modernity. Philosophical Reflections on the African Experience,
Oxford/New York: Oxford University Press. 1997, p. 85

108
TAYLOR, Charles. Multiculturalismo. Examinando a Política do
Reconhecimento, Lisboa: Instituto Piaget. 1994, p. 59

23
Pelas razões invocadas não hesita em responsabilizar e atribuir culpas
às sociedades liberais do Ocidente. Neste sentido, os argumentos
através dos quais se faz a apologia do multiculturalismo andam
associados ao pluralismo e estão ancorados a premissas que negam a
existência de fatos epistémicos absolutos, isto é, o absolutismo
epistémico, mas que reconhecem como verdadeiro o relativismo
epistemológico. É esta a argumentação tecida por Kwasi Wiredu em três
capítulos do seu livro Cultural Universals and Particulars. An African
Perspective, quando defende a descolonização conceitual na construção
do discurso filosófico africano e a formulação do pensamento moderno
em línguas africanas. A resposta que dá à pergunta sobre o que
entende por descolonização conceitual, não deixa dúvidas relativamente
à sua filiação no grupo daqueles que atribuem méritos ao relativismo
conceptual e ao relativismo epistémico.

Temos aí a descrição de atos que são rostos da mesma moeda:


submeter a uma rigorosa crítica os quadros conceituais e epistémicos
provenientes das «tradições filosóficas estrangeiras» e explorar os
esquemas conceituais endógenos veiculados em línguas africanas. Se
para Kwasi Wiredu a formulação do pensamento moderno em línguas
africanas pode consistir em traduções partindo de outras línguas, o
quadro conceitual será a variável que perpassa as premissas e conduz à
conclusão em tudo semelhante aos argumentos produzidos em defesa
do relativismo epistémico. Assim, a descolonização dos conceitos das
línguas europeias usados nos discursos africanos supõe uma
alternativa, o uso das línguas africanas quer na filosofia quer em outras
disciplinas humanísticas21.

Estas são indagações legítimas que correspondem a um tipo de


reações inscritas na situação complexa a que Jacques Derrida
denomina por «monolinguismo do outro», expressão de uma soberania
imposta através de um poder de império exterior, de «essência sempre
colonial e que tende, reprimivelmente e irreprimevelmente, a reduzir as
24
línguas ao Uno, isto é, à hegemonia do homogéneo».

Numa perspetiva histórica, é aqui que se inscreve o pioneirismo do


jusfilósofo nigeriano Taslim Olawale Elias (1914-1991) quando
pretendeu dar uma contribuição à teoria geral do direito, durante o
período colonial, abordando o tema controverso da definição do Direito
Consuetudinário numa tentativa de explorar os conceitos jurídicos
africanos e a sua possível tradução em equivalentes nas línguas
europeias. A publicação do seu livro The Nature of African Customary
Law (1956) é um marco assinalável para a Filosofia do Direito tendo em
atenção a tematização das exigências de reconhecimento e da
descolonização conceitual.

Ora, podemos concluir que do ponto de vista substantivo, o


multiculturalismo tem no seu campo de referências fenómenos
preexistentes no momento em que se desencadeou o aludido debate
filosófico. Por isso, a diversidade de tais fenómenos não permite ignorar
a importância das interrogações sobre a determinação do que se
entende por relativismo epistemológico e as alternativas que lhe são
associadas22. Todavia, é mais pertinente admitir que se esteja em
presença de um tipo de relativismo, pois ele revela-se sempre defensável
por oposição ao absolutismo epistémico.

As críticas que lhe são dirigidas ao relativismo epistémico assentam


largamente em razões atinentes à incoerência autorreferencial e à
autorefutação, uma vez que a sua defesa parece implicar o seu
contrário.109 Mas o verdadeiro problema epistemológico para o fundo da
questão que nos ocupa reside na necessidade de legitimar o lugar do
Direito Consuetudinário no campo da Filosofia do Direito retirando-o do
reduto disciplinar que lhe é reservado na Antropologia Jurídica num

109
HALES, Steven D. (ed.), A Companion to Relativism, Malden/Oxford: Blackwell Publishing. 2011, pp.
201 - 217

25
contexto em que o pluralismo jurídico, não sendo um obstáculo à
descoberta da verdade, ao invés, é uma «condição de possibilidade da
verdade».110

A Experiência Jurídica Consuetudinária

À luz do que expendemos nos capítulos anteriores, poder-se-á


considerar o ordenamento consuetudinário como ordenamento menor e
pré-estadual? Se assim for, que tipo de relações se estabelecem entre o
ordenamento estadual e o ordenamento consuetudinário? Serão
relações de subordinação, inclusão parcial ou de interseção e conexão
por absorção sob a forma de recepção?

Antes de esboçar as respostas, importa definir os pontos de partida.


Desde logo, adotamos uma perspetiva tributária das teorias
institucionais do direito, pressupondo-se que os ordenamentos
apresentam sempre um grau mínimo de organização. De acordo com
Bobbio, o ordenamento menor é aquele que permite manter unidos os
membros de uma determinada comunidade ou grupo, abrangendo parte
da totalidade dos interesses dos seus integrantes.Ora, afirmar que «o
direito consuetudinário não se sincroniza já com as nossas sociedades
atuais» e que «só nas sociedades pré-modernas” teria lugar, é um
argumento que vem sendo posto em causa.

O fenómeno da coexistência de dois ou mais sistemas jurídicos no


mesmo território foi durante muito tempo entendido como um problema
exclusivo das sociedades coloniais ou de países independentes que
tinham sido colónias de potências europeias como aconteceu em Angola
e Moçambique. Esta é a perspetiva do chamado pluralismo jurídico
110
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito, 4ª edição, tradução António Ulisses Cortês, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 444

26
clássico. A partir da década de 70 do século XX, passou a colher
consenso das comunidades académicas a possibilidade de um
pluralismo jurídico nos países industrializados24. Este é o chamado
novo pluralismo jurídico. Com efeito, hodiernamente o pluralismo
jurídico tem consagração em diversos ordenamentos jurídicos. Mas o
seu reconhecimento é tardio devido ao peso hegemónico do monismo
jurídico suportado pelas teorias juspositivistas.

Tal hegemonia verificava-se nos processos de estabelecimento das fontes


do direito e da codificação das normas. Configurava-se assim a negação
do pluralismo jurídico em obediência ao juspositivismo. Por outro lado,
não é raro encontrar ordenamentos jurídicos com manifestações
específicas de reconhecimento do pluralismo jurídico, associando a
atribuição ou negação de competência jurisdicional às autoridades
comunitárias tradicionais como é o caso de países da América Latina e
de África.

Na verdade, as questões subjacentes aos problemas do exercício da


função jurisdicional do Estado permitem concluir que, sob os auspícios
do princípio da territorialidade, o âmbito espacial de validade do Direito
Consuetudinário configura uma hipótese de territorialidade relativa.
Assim, o ordenamento consuetudinário mantém uma coexistência com o
ordenamento estadual não sendo relevante o uso de adjetivos para a
sua qualificação como manifestação de uma experiência «menor» e «pré-
estadual». Quanto ao estatuto pessoal dos membros das comunidades
ou das «organizações político- comunitárias tradicionais», admite-se a
criação de jurisdições próprias, tendo em atenção o âmbito espacial e
temporal das normas dos dois ordenamentos.

É um caso de interseção e conexão por tolerância sob a forma de reenvio.


Com efeito, configura-se aí uma situação que exige do Estado soluções
que conduziriam àquilo a que se pode denominar por pluralismo
jurídico de índole jurisdicional. Todavia, a problematização do
27
pluralismo jurídico tem vindo a reconduzir-se a uma classificação
dicotómica analisada em duas categorias: pluralismo jurídico fraco e
pluralismo jurídico forte. O pluralismo jurídico fraco obedece a uma
lógica monista centrada no Estado, sendo o reconhecimento um
expediente importante para conferir dignidade aos diferentes
ordenamentos jurídicos existentes, através de legislação apropriada.
Esta concepção não introduz elementos que possam verdadeiramente
constituir desafios à problematização filosófica.

É com o pluralismo jurídico forte que se levantam questões de interesse


jusfilosófico devido ao apelo que faz a uma metodologia interdisciplinar
para compreender os novos fenómenos que se impõem ao estudo do
direito. À caracterização dicotómica enunciada acresce uma outra cujo
fundamento reside no sistema cultural dominante que suporta o
modelo matricial das relações estabelecidas entre os ordenamentos
jurídicos, no quadro da crise do Estado-nação.

Assim temos o pluralismo endógeno em que a coexistência dos


ordenamentos jurídicos concorrentes obedece aos princípios
fundamentais definidos por um Estado que, respeitando o costume e as
práticas tradicionais das comunidades que habitam o território,
abandona a tradição centralizadora iluminista. Por sua vez o pluralismo
exógeno assenta num modelo de coexistência dos ordenamentos
jurídicos em que prevalece a matriz do Estado-nação, atribuindo-se um
lugar subalterno ao costume e às práticas tradicionais das comunidades
que habitam o território do Estado. Esta categorização deflui dos
debates que, no contexto africano, relevam da Filosofia Política e da
Filosofia Moral, opondo comunitaristas e liberais.

Com efeito, os desafios epistemológicos legitimam a centralidade do


pluralismo jurídico como problema jusfilosófico em África. As relações
jurídico-familiares e o direito sucessório enquanto domínios do direito
privado proporcionam imagens da complexidade do pluralismo26. Os
28
regimes jurídicos estabelecidos nos vários ramos do direito, incluindo o
direito internacional, constituem igualmente domínios privilegiados de
manifestações do pluralismo jurídico.
2.10. O Reconhecimento e a Constitucionalização do Direito
Consuetudinário

É consabido que qualquer tentativa de abordar as normas jurídicas


tendo em atenção o direito vigente num determinado ordenamento cai no
âmbito da dogmática jurídica. Tal parece ser o caso desta secção, a
julgar pelo seu título. Com efeito, a nossa «atitude transistemática»111

modifica o foco desta perceção, pois o que nos move é o estudo de


problemas decorrentes da transversalidade do Direito Consuetudinário,
tendo em atenção a sua epifania empírica. É um fenómeno que continua
a suscitar interesse em diversas tradições jurídicas enquanto fato
normativo e fonte do direito, além da sua importância em vários ramos
do direito e áreas disciplinares. Assim se explica o recurso a um
procedimento que, através de exemplos extraídos das realidades
africanas, permite ilustrar a problemática da constitucionalização.

Verifica-se a existência de normas constitucionais específicas através


das quais se procede ao reconhecimento da validade e eficácia do Direito
Consuetudinário, bem como as instituições representativas do poder
tradicional. De um modo geral os legisladores constituintes em África
sentiram a necessidade de proceder expressamente à sua consagração27.

O conjunto de normas constitucionais que tematizam o Direito


Consuetudinário tipificam aquilo a que nesse contexto se poderia
designar por normas de reconhecimento. Porém, apresentam traços
distintivos que permitem classificá-las em duas categorias. A primeira
categoria é constituída por normas substantivas ou materiais.112 A

111
KAUFMANN, Arthur. Filosofia do Direito, 4ª edição, tradução António Ulisses Cortês, Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 2010, p. 444

112
É o caso das disposições dos artigos 7º, 223º, 224º e 225º da CRA.

29
segunda é constituída por normas processuais. Estas visam garantir a
concretização da teleologia consubstanciada pelas normas da primeira
categoria.

As Constituições da República de Angola e da República de


Moçambique, bem como a legislação ordinária produzida nestes países,
são uma expressiva prova da legitimidade de que o pluralismo jurídico
goza. Doravante as referências às Constituições de Angola e
Moçambique serão feitas com recurso a abreviaturas: CRA e CRM,
respetivamente. Ver artigo 4º da CRM: “O Estado reconhece os vários
sistemas normativos e de resolução de conflitos que coexistem na
sociedade moçambicana, na medida em que não contrariem os valores e
os princípios fundamentais da Constituição”.

É uma norma da primeira categoria através da qual o legislador


constituinte qualifica o costume como fonte de direito. Ao contrário da
Constituição de Moçambique, não ocorre qualquer referência ao
pluralismo jurídico. E de acordo com a teoria do ordenamento jurídico
de Norberto Bobbio, estamos perante uma fonte do direito indireta e
reconhecida.113

É possível determinar o tipo de relação que se pode estabelecer entre o


ordenamento jurídico estadual e o ordenamento jurídico
consuetudinário, na medida em que o Estado renuncia à indiferença e
ao monopólio da produção jurídico-normativa, reconhecendo as
instituições do poder tradicional e a sua legitimidade em produzir um
determinado tipo de normas destinadas a regular as relações sociais que
se estabelecem nas organizações político-comunitárias. Com efeito, as
comunidades tradicionais do ponto de vista antropológico são
constituídas por populações detentoras de uma identidade étnica e

113
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro. 2011, p. 52

30
linguística, vivendo em determinadas parcelas do território com limites
geográficos por vezes difusos.

Em caso de delimitação de uma jurisdição especial admite-se a


existência de pressupostos para competências territoriais e materiais. O
conceito jurídico de Autoridades Tradicionais é definido como
instituições constituídas por pessoas singulares ou grupos de pessoas
suficientemente representativas, revelando um profundo conhecimento
da história e da cultura a que assistem o direito de governar a
comunidade de acordo com as normas do Direito Consuetudinário32.
Paradoxalmente, os legisladores constituintes de Angola e Moçambique
determinam que o funcionamento das organizações político-
comunitárias, bem como as suas relações com o Estado são
estabelecidas por leis ordinárias.

Nesta medida registam-se antinomias que algumas disposições


combinadas postulam34, quando o Estado chama a si o poder de
regular, por exemplo, a organização das instituições do poder tradicional
cujas normas de funcionamento convocam uma secular existência das
comunidades tradicionais, sendo que tais normas são veiculadas em
línguas nacionais e de acordo com as estratégias da comunicação oral.

Apesar do estatuto de «formas organizativas do poder local» que se


confere às instituições do poder tradicional, ao abrigo do princípio da
equiparação, o Estado não pode por sua iniciativa nomear titulares
deste poder ou condicionar o funcionamento destas instituições
impondo regras heterónomas. Por força dos efeitos constitutivos do
reconhecimento, o Estado deve, ao invés, atuar com as devidas reservas
em matérias semelhantes. Estamos de acordo com Carlos Feijó, quando
escreve:

Por maioria de razão, entendemos também que será inconstitucional


uma lei, ou uma série de leis, que tenha em vista, ou tenha como
resultado, a progressiva eliminação das autoridades tradicionais

31
existentes ou, mesmo, a sua redução a umas quantas tarefas menores e
residuais.

Só salvaguardando o núcleo essencial da pluralidade de funções


conferidas às autoridades tradicionais, de acordo com os usos,
costumes e tradições de cada uma delas, se logrará manter e vivificar
um sistema verdadeiramente pluralista, na medida em que o pluralismo
só existe tal como o configura na realidade, e não como o Estado, através
de qualquer cosmética legislativa, desenha ou pretenda redesenhar.114

Exprimindo-se nestes termos, Carlos Feijó constata um problema. Mas


não parece descortinar a sua dimensão substantiva, embora subscreva
a ideia segundo a qual a organização das Autoridades Tradicionais é
domínio exclusivo do Direito Consuetudinário e não se preste a aplaudir
a atribuição de competência à Assembleia Nacional para legislar sobre
essa matéria. O que importa, na verdade, é abordar as questões
processuais tendo em vista a concretização da teleologia
consubstanciada nas normas da primeira categoria, como foi referido.
Isto significa que deveremos indagar- nos acerca do seu sentido e
alcance.

É que elas permitem discernir a dimensão jusfilosófica das questões


que acabamos de trazer à colação. Estamos a referir-nos aos
fundamentos da problematização acerca da autonomia das Instituições
do Poder Tradicional. Se as referidas normas processuais são veiculadas
em línguas nacionais e de acordo com as estratégias da comunicação
oral, a diversidade cultural e o pluralismo jurídico são vetores
imprescindíveis para compreender a totalidade dos nexos que se tecem.
Fazem apelo à proporção entre os meios e os fins no mundo do direito.

114
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na
Ordem Jurídica Plural Angolana, Coimbra: Almedina. 2012, p. 425

32
O fim último da constitucionalização do Direito Consuetudinário e das
Instituições do Poder Tradicional é a justiça.

O princípio constitucional da igualdade visa a realização da justiça


enquanto fim do direito. Neste sentido, as comunidades locais e as
Autoridades Tradicionais não podem ser prejudicadas ou privadas do
direito de participar na vida pública por força do uso exclusivo das
línguas nacionais e fraca ou nula competência linguística na língua
oficial que é o português. Por outro lado, o respeito pela pessoa humana
exige que o Estado qualifique como tarefa ou objetivo fundamental35, a
promoção do desenvolvimento, a valorização e utilização das línguas
autóctones, não podendo a deficiente competência linguística no uso da
língua oficial condicionar o acesso à justiça. As soluções encontradas
quer em alguns países africanos não parecem preencher plenamente o
ideal de justiça.

Em Moçambique foi produzida uma lei36 que institui os tribunais


comunitários com fundamento na necessidade de «criação de órgãos
que permitam aos cidadãos resolver pequenos diferendos no seio da
comunidade, contribuam para a harmonização das diversas práticas de
justiça e para o enriquecimento das regras, usos e costumes e
conduzam à síntese criadora do direito moçambicano».

Aos tribunais comunitários são atribuídas competências para «deliberar


sobre pequenos conflitos de natureza civil e sobre questões emergentes
de relações familiares que resultem de uniões constituídas segundo os
usos e costumes, tentando sempre que possível a reconciliação entre as
partes».

O legislador constituinte de Angola atribui semelhantes competências


aos julgados de paz. Todavia, a dúvida persistirá a respeito da
possibilidade de o Direito Consuetudinário ser aplicado pelos tribunais
que integram o sistema jurisdicional e por outros órgãos da
administração da justiça, independentemente do seu lugar na ordem
hierárquica das fontes do direito. Por essa razão ocorre a seguinte
33
pergunta de cuja resposta dependerá a determinação do lugar que
deve ser conferido ao Direito Consuetudinário no exercício da função
jurisdicional do Estado: será a norma do Direito Consuetudinário norma
jurídica?

Bobbio elabora uma resposta possível: Como é sabido, o principal


problema de uma teoria do costume é determinar em que ponto uma
norma consuetudinária jurídica distingue-se de uma norma
consuetudinária não jurídica, ou, em outras palavras, por meio de qual
processo uma simples norma de costume torna-se uma norma jurídica.
Este problema é insolúvel, talvez porque mal posto. Se é verdade, como
procuramos mostrar até aqui, que o que comumente chamamos direito é
um fenómeno muito complexo, que tem como ponto de referência um
sistema normativo inteiro, é vão procurar o elemento distintivo de um
costume jurídico a respeito da regra do costume na norma
consuetudinária singular. Dever-se-á responder, preferencialmente, que
uma norma consuetudinária torna-se jurídica quando vem a fazer parte
de um ordenamento jurídico.115

Ora, o processo de reconhecimento e constitucionalização do Direito


Consuetudinário legitima a necessidade de delimitar os campos e os
objetos que caracterizam a teoria das fontes do direito e a teoria dos
ordenamentos jurídicos. É que o critério da supremacia da lei na teoria
das fontes do direito por analogia não terá semelhante eficácia no
âmbito da teoria dos ordenamentos jurídicos. A razão que está na base
desta diferenciação reside nas funções que a Constituição cumpre na
qualidade de «norma primária sobre a produção jurídica», de um lado, e
enquanto norma que coexiste com outras à luz do princípio do
pluralismo jurídico, por outro lado.

Assim, já não existe vértice da pirâmide dos ordenamentos jurídicos


contemporâneos ocupado isoladamente pela Constituição nem sistema

115
BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico, 1ª edição, tradução Ari Marcelo Solon, São
Paulo: Edipro. 2011, pp. 44-45

34
das fontes do direito assente em qualquer tipo de monopólio estatal de
regulação e normação constitucionalmente consagrado.

2.11. O Costume Jurídico, A Tradição e Oralidade

Ao proceder à análise do costume jurídico, Norberto Bobbio opera com


uma definição genérica descrevendo-a como «fato constitutivo de
normas gerais» na medida em que as «normas gerais pressupõem a
formação de uma autoridade social, entendida como força de coesão de
uma sociedade organizada».116 A formação da autoridade social pode
ser analisada em duas modalidades: a tradição e a vontade
dominante. Norberto Bobbio entende que apesar da sua relação
incindível, são inconfundíveis, apresentando particulares traços
distintivos.

A tradição é um processo inconsciente e involuntário cuja força provém


da sua origem imemorial. Já a vontade dominante emana da esfera de
comando de um chefe que em determinado momento decide obedecendo
à força da tradição. Refutando as objeções supervenientes relativamente
ao facto de o costume ser considerado facto normativo.

Sublinhando o papel da «autoridade da tradição» na constituição do


Direito Consuetudinário, uma atenta descrição do costume jurídico
enquanto facto que promana da tradição, leva-nos a acrescentar um
terceiro traço distintivo, o tipo de comunicação oral subjacente aos atos
através dos quais se perpetua a tradição. Estamos a referir-nos à
oralidade38 e às estratégias retóricas de conservação, gestão e
transmissão do costume de que são guardiões os anciãos, depositários
da memória coletiva e autoridades da tradição, especialmente nos
países em que a pervivência da comunicação oral é efetiva.

Os anciãos integram as estruturas do poder tradicional e são por isso


entidades representativas incontornáveis das comunidades. Assim, o
processo de reconhecimento dos ordenamentos consuetudinários no

116
Idem, p. 31

35
continente africano tem vindo a traduzir-se num comportamento dos
Estados que consiste na devolução e descentralização do poder. Tal
ocorre, por exemplo, nas Constituições de Angola e de Moçambique,
onde encontramos disposições normativas que consagram esse duplo
reconhecimento. Admitimos a hipótese de estarmos em presença de um
pluralismo jurídico que é simultaneamente forte e endógeno.

Podemos concluir que os Estados têm em conta a história da resiliência


das Autoridades Tradicionais e do respetivo ordenamento
consuetudinário, recusando a manutenção da indiferença dos poderes
coloniais seguida igualmente após as independências políticas. Deste
modo os Estados revelam uma propensão para considerar que os valores
intrínsecos do poder tradicional e do ordenamento consuetudinário
representam uma matriz fundacional. Outro seria o entendimento se não
fosse consagrado um pluralismo jurídico forte. Além disso, os Estados
assumem um compromisso de levar a cabo uma tarefa gigantesca: a
edificação de um Estado multiétnico e plurilingue.

Um outro desafio consiste em reconfigurar a descentralização da


administração da justiça reconhecendo a função jurisdicional das
Autoridades Tradicionais que interpretam e aplicam o Direito
Consuetudinário. Para lá da sua legitimidade o exercício de tal função
obedece aos parâmetros da retórica e da racionalidade argumentativa
oral, constituindo os géneros do discurso oral, tais como as máximas,
os provérbios e outras formas paremiológicas, proposições gerais e
elementos básicos dessa racionalidade.

Com efeito, a interpretação dos referidos géneros do discurso através


dos quais se transmitem os costumes enquanto factos normativos
recomendam o recurso às hermenêuticas da codificação e da
descodificação que caracterizam os processos de comunicação oral. Por
conseguinte, a aplicação do costume jurídico secundum legem ou
praeter legem pelas instâncias do Estado e do poder judicial em especial
pressupõe um sólido conhecimento do ordenamento jurídico

36
consuetudinário entendido como instituição na conceção de Santi
Romano. Nesta medida, o pluralismo jurídico forte e endógeno implica
um pluralismo linguístico tendo em conta o facto de as línguas oficiais
de origem europeia coexistirem com as línguas nacionais relativamente
às quais os Estados estão vinculados por força de normas
constitucionais.

À utilização das línguas nacionais associa-se a problemática da


codificação42 do costume jurídico. Trata-se de um expediente técnico
que contrasta com o dinamismo das normas consuetudinárias de tal
modo que é unânime a sua desqualificação como meio de garantir o
conhecimento e aplicação do Direito Consuetudinário. Alguns autores
africanos consideram uma solução alternativa pode ser encontrada na
responsabilização dos juízes que na interpretação e aplicação aos
casos concretos devem proceder à identificação das normas adaptando
as soluções aos litígios (Mukokobya, 2013:77-78). Do nosso ponto de
vista, a transformação dos operadores da função jurisdicional em
guardiões do Direito Consuetudinário pressupõe a produção de
respostas à questão sobre a possibilidade do pluralismo judiciário e a
reestruturação dos cursos nas universidades, especialmente nas
Faculdades de Direito.

2.12. A Interpretação Jurídica do Costume

A interpretação do costume jurídico comporta alguns dos mais


complexos problemas da Filosofia do Direito Consuetudinário. A partir
de uma máxima elementar segundo a qual a interpretação exige um
intérprete facilmente se percebe o tipo de desafios com que se
confrontam aqueles que, com base nos cânones hermenêuticos do
direito eminentemente escrito ou condicionalismos de suas tradições
filosóficas e jurídicas, assumem a responsabilidade de conduzir tal
tarefa em contextos de sistemas jurídicos de que não possuam qualquer

37
preparação.117

A constitucionalização do costume e sua inscrição no sistema das fontes


do direito representa um desafio ao paradigma hermenêutico que
durante muito tempo dominou a interpretação jurídica e o ensino do
direito até à crise do modelo tradicional juspositivista e legalista. Da
crise brotaria o problema metodológico em consequência do
pluricentrismo das fontes do direito. Nos países de língua portuguesa,
António Castanheira Neves é um dos mais estrénuos filósofos do direito
que defendem a superação da teoria tradicional da interpretação
jurídica, propondo uma nova metodologia que seja a um tempo
hermenêutica e normativa.118 Uma das manifestações dessa crise no
universo da common law é o debate introduzido por Ronald Dworkin
sobre os conceitos de interpretação do direito, definindo a
«interpretação construtiva» como imperativo para a transformação do
estudo do direito do ponto de vista filosófico, tal como propõe em Law’s
Empire.119
Ora, o costume jurídico que mobiliza a nossa atenção – exclui-se aqui o
costume jurídico internacional – é um objeto hermenêutico entendido
como texto normativo originariamente transmitido através de processos
de comunicação oral cuja finalidade é a realização do direito.
Com a superação do modelo juspositivista e a institucionalização do
pluralismo jurídico forte e endógeno, desenvolveu-se um campo
hermenêutico autónomo em que as modernas teorias do costume

117
in Amanda Perreau-Saussine e James Bernard Murphy (ed.). (2007). The Nature of Customary Law.
Legal, Historicaland Philosophical Perspectives, Cambridge: Cambridge University Press, pp.13-34.

118
António Castanheira Neves. (1993). Metodologia Jurídica. Problemas Fundamentais, Coimbra,
Coimbra Editora; António Castanheira Neves. (2010). Digesta. Escritos Acerca do Direito, do Pensamento
Jurídico, da sua Metodologia e Outros, 3 volumes, Coimbra: Coimbra editora; António Castanheira Neves.
(2010). O Atual Problema Metodológico. Da Interpretação Jurídica-I, Coimbra: Coimbra Editora.

119
Ronald Dworkin. (2010). O Império do Direito, 2ª edição, tradução de Jefferson Luiz Camargo, São
Paulo: Martins Fontes.

38
jurídico internacional ou as teorias do costume no sistema jurídico
anglo-americano da «common law» são apenas subsidiárias. O centro do
referido campo é ocupado pelo costume jurídico tradicional para cuja
interpretação são convocados os contextos históricos, culturais, sociais
e políticos, além do recurso a fatores transpositivos e suprapositivos.

Apesar de a presente dissertação ser sustentada por uma perspetiva


filosófica geral, o fio condutor que nela perpassa lança as suas âncoras
nas realidades e experiências jurídicas do mundo não ocidental,
especialmente de África. Como temos vindo a demonstrar, é aí onde
encontramos os problemas jusfilosóficos de que nos ocupamos. Nesta
secção tratamos de um problema derivado do sistema das fontes do
direito, o problema hermenêutico que a interpretação do costume
jurídico levanta, chamando a atenção para o estudo das virtualidades
estratégicas da codificação e da descodificação que suportam a
construção das normas consuetudinárias.
Refletindo sobre o problema filosófico da hermenêutica no contexto
africano, Okolo Okonda W’oleko considera que a elaboração de
qualquer teoria geral, entendida como teoria da interpretação do
sentido, vem demonstrar que não existem senão hermenêuticas de
tradições particulares, podendo, por conseguinte, ser defensável o
potencial exploratório das «hermenêuticas africanas» insuficientemente
teorizadas. W’oleko é conduzido a tais conclusões a partir da leitura das
hermenêuticas de Martin Heidegger, Hans-Georg Gadamer e Paul
Ricoeur.
Para Okolo W’oleko a primeira proposição aponta para a ideia segundo
a qual a tradição africana é o texto sobre que incide a leitura,
alargando-se o sentido do texto a qualquer encadeamento verbal e a
tudo o que se dá a ler, incluindo-se aqui o texto oral. Proceder à leitura
da tradição significa recriar a sua cadeia, atualizando-a. Deste modo a
relação dialética que se estabelece entre a tradição e a interpretação é
que assegura a incindibilidade da teoria e da prática hermenêutica. Do
ponto de vista metodológico, W’oleko extrai uma consequência que
39
aponta para a necessidade de dotar as práticas hermenêuticas de
respetivas teorias.
Para W’oleko os hermeneutas africanos e africanistas não cumprem a
sua missão quando se recusam em formular uma teoria, preferindo
modelos exógenos. A segunda proposição significa que o fim último da
leitura é sempre a apropriação consistindo esta na atualização do que se
lê e interpreta. Por isso, a leitura e a interpretação nunca são inocentes
ou neutras, na medida em que a apropriação produz sempre um
impacto sobre a leitura em si.
De acordo com W’oleko, a atualização pode assumir de vários estatutos
epistemológicos dependendo dos processos e postulados que lhes estão
subjacentes. Na senda do pensamento de W’oleko pode-se concluir que
qualquer hermenêutica especial, por exemplo, a hermenêutica jurídica
ou a hermenêutica literária, revelar-se-á aparentemente associada a
uma tradição.
A terceira proposição explora a função operatória da visão do mundo e
da ideia de destino no processo hermenêutico. Okonda W’oleko define a
visão do mundo sublinhando três aspetos. Com o primeiro, entende-se
que através dela se dá uma imagem da situação existencial. É o aspeto
descritivo. Com o segundo, procede-se à reflexão sobre o que é e o que
foi. É o aspeto justificativo.Com o terceiro, desenha-se o futuro de um
indivíduo ou de um povo. É o aspeto projetivo. Donde a experiência
histórica dos africanos vem postular a assunção de uma situação
hermenêutica em que a «validade de uma interpretação» possa estar
indissoluvelmente ligada à «validade de uma luta», tendo em conta a «sua
justiça» e a «sua justeza».
Por essa razão, não poderão os africanos adotar ingenuamente a visão do
mundo e a ideia de destino que emana das hermenêuticas europeias,
sob pena de negarem a sua tradição e a sua história. Ainda do ponto de
vista metodológico, W’oleko extrai uma outra consequência: a afirmação
do primado da práxis sobre a hermenêutica, «entendida como ação que
tende à transformação qualitativa da vida.
As condições de possibilidade de uma hermenêutica jurídica em África
40
podem irromper das tensões dialéticas engendradas pela crise do
modelo eurocêntrico da filosofia e da hermenêutica filosófica, por um
lado, e a relação que deve ser estabelecida entre a cultura e a filosofia,
por outro. Para Theophilus Okere, que analisou igualmente tais
problemas na sua tese de doutoramento, os contributos que a Filosofia
Africana pode prestar à «revolução hermenêutica da filosofia»
residem na «historicidade e no relativismo da verdade». Assim, a
hermenêutica deve traduzir-se numa perspetiva que permita equacionar
a questão da relação entre a cultura e a filosofia. Trata-se de um
problema hermenêutico que faz apelo a métodos e procedimentos
adequados. Okere conclui deste modo que a hermenêutica é o fator de
mediação entre a cultura e a filosofia. Neste sentido, a hermenêutica
jusfilosófica será a expressão do cruzamento e do diálogo
interdisciplinar entre a filosofia do direito e as formas da hermenêutica
da cultura e da tradição.
Admitindo que é do pluralismo judiciário que tratamos, isto é, da
aplicação do princípio do pluralismo jurídico pelas instâncias do poder
judicial aos casos concretos, revela-se necessário responder à pergunta
formulada acerca da aplicação do Direito Consuetudinário por parte de
juízes que, operando nos ordenamentos jurídicos pluralistas como os de
Angola e de Moçambique, não possuam um sólido conhecimento dos
regimes argumentativos da oralidade jurídica nem competência na
língua em que é transmitido o costume. A resposta permitirá
compreender as regras da racionalidade dos regimes dominantes na
«civilização da oralidade» onde os provérbios são proposições gerais que
funcionam como elementos de referência em procedimentos de decisão
jurídica, política e epistemológica.120

120
NZOKOU, Gildas. Logique de L’argumentation dans les Traditions Orales Africaines. Proverbes,
Connaissance et Inférences Non-Monotoniques, London: CollegePublications. 2013, p. 7

41
Por essa razão, os intérpretes do costume jurídico devem conhecer as
estratégias e regras da argumentação jurídica proverbial usadas nas
culturas orais bantu47. O tratamento deste problema exige igualmente
uma profunda reflexão sobre o ensino do direito nos países africanos
onde geralmente os programas curriculares das Faculdades de Direito
reproduzem os modelos das universidades europeias. A alteração deste
estado de coisas implica a reestruturação dos cursos, adequando os
seus planos de estudos às reais necessidades de formação das novas
gerações perante a demanda das situações concretas.
Tais ações têm vindo a ser desencadeadas em algumas universidades
africanas dando origem a processos de endogeneização curricular e
estabelecimento de novas agendas de investigação.
Pode dizer-se que o problema hermenêutico suscitado pelo costume
jurídico em sede do pluralismo judiciário apresenta um largo espetro,
pois não sendo já a administração da justiça uma função
desempenhada exclusivamente pelo Estado, a discussão das questões
associadas à hermenêutica permite determinar as fragilidades do
monismo no exercício da atividade jurisdicional, abrindo-se a
possibilidade de construção de um sistema em que a competência
rationae materiae para aplicar o Direito Consuetudinário encontra os
seus fundamentos na coexistência e ação concorrente das instâncias do
Estado e das Autoridades Tradicionais, no que diz respeito à solução de
conflitos e, por conseguinte, à realização do direito e da justiça.

2.13. A Ciência do Direito Costumeiro

A Ciência do Direito Costumeiro tem como seu objecto de estudo o


Direito, mas com este não se confunde. Efectivamente, a Ciência do
Direito Costumeiro se consubstancia nos estudos e pesquisas,
elaboradas pelos juristas, sobre a realidade jurídica em si de um
determinado povo na sua cultura e tradição, descrevendo e

42
interpretando a ordem jurídica e suas normas, bem como conferindo
unidade sistemática na história dos povos.

Desse modo, enquanto o Direito prescreve condutas imperativas e prevê


sanções objectivando o seu cumprimento, a Ciência do Direito
Costumeiro estuda, interpreta, conceitua e sistematiza o Direito e as
suas previsões no contexto de cada povo. A ordenação das condutas é
papel exercido pelo Direito em si.

A Ciência do Direito Costumeiro estuda e descreve, de forma


sistemática e metódica, essa ordem de condutas que regem a vida em
sociedade. Aliás, cabe destacar que o Direito, em si, é objecto de
diversas ciências, como a Sociologia Jurídica, a Filosofia do Direito, a
História do Direito e a própria Ciência do Direito Costumeiro, também
chamada de Jurisprudência, conforme designação que era dada pelos
jurisconsultos romanos, termo este aqui empregado em sentido diverso
daquele utilizado na actualidade, como conjunto de decisões proferidas
por juízes e tribunais tradicionais.

O Direito, nesse enfoque, é uma realidade que pode ser estudada, de


forma sistemática (ordenada e coerente), pela Ciência do Direito
Costumeiro. Entende-se, assim, que a chamada Ciência do Direito
Costumeiro apresenta as notas peculiares do conhecimento científico,
“por se tratar de conhecimento sistemático, metodicamente obtido e
demonstrado, dirigido a um determinado objecto, que é separado por
abstracção dos demais fenómenos”. Alguns dos métodos utilizados pela
Ciência do Direito Costumeiro como é na maior parte das ciências são,
por exemplo, os seguintes:

a) método indutivo: raciocinando a partir de factos particulares,


para se alcançar conclusões gerais;
b) método dedutivo: partindo de regras gerais conhecidas para se
alcançar outras conclusões diversas ou particulares;
43
c) analogia: raciocínio que leva em conta razões de similitude (por
exemplo: havendo conduta a respeito da qual não se verifica
previsão de norma específica, pode-se aplicar a norma prevista
para situação semelhante).

O jurista, ainda, “correlaciona valores a factos segundo normas, o que


significa que não pode dispensar o prisma do valor, na apreciação dos
fatos sociais abrangidos por normas jurídicas”.

2.14 As Características do Direito Costumeiro

O Direito Costumeiro tal como o Direito Escrito apresenta certas


instituições que por sua vez perfilham-se como suas notas
caracterizadoras que nos permitem distingui-lo do direito codificado,
tais como:

a) A fonte costumeira;

b) A tradição oral;

c) A autoridade tradicional;

d) A diversidade cultural;

e) A coercibilidade mística ou mágica, etc.

Analisando o Direito Costumeiro facilmente verificamos a relevância que


nele assume o costume como fonte de direito nos termos do art.º 7º
C.R.A, isto é, o Direito Costumeiro provém da colectividade ao contrário
de direito escrito que provém de uma instituição estatal. Esta

44
característica está ligada intrinsecamente ao espírito conservador das
comunidades consideradas primitivas que tendem a valorar mais a
continuidade da ordem social estabelecida pelos seus antepassados que
qualquer tendência progressista. “As regras de conduta a que é devida
observância correspondem, pois, essencialmente àquilo que os antigos
já faziam; e, por serem fruto da sua vontade, adquiriram carácter
sagrado”.121 As comunidades tradicionais estão conscientes de que são
fruto do passado.122 Por isso, há necessidade de estarem em contacto
com os seus antepassados através da conservação da ordem social por
eles estabelecida, porque agindo desta maneira estão a ser
continuadoras do projecto social idealizado pelos seus antepassados e,
consequentemente, estão a construir o presente sobre o seu passado
rumo ao futuro.123

Uma outra instituição do Direito Costumeiro que deve ser vista como
sua característica é a tradição oral ou a oralidade contrapondo ao
Direito Legislado que tem como seu depósito os códigos. A tradição oral
é o suporte da transmissão do Direito Costumeiro, pois “as regras
consuetudinárias são transmitidas oralmente, de geração a geração,
cabendo aos mais velhos preservar a respectiva memória”.124

O Direito Costumeiro é oral e tem por base a tradição, conservada e


transmitida pelos anciães da tribo. “Na África negra, a tradição oral não
é apenas fonte principal de comunicação cultural. É uma cultura
própria e autêntica porque abarca todos os aspectos da vida e fixou no
tempo as respostas às interrogações dos homens. Relata, descreve,
ensina e discorre sobre a vida. Através desta cultura, podemos

121
Vicente, Dário Moura. Introdução aos Sistemas Jurídicos. Lisboa : Almedina, 2014. p. 394.
122
Fage, J. D. História da África. Lisboa : 70, 2010.

123
CHARROUX, Robert. 1971. O Livro dos Mundos Esquecidos. 3ª. Lisboa : Edições 70, 1971.
124
VICENTE, Dário Moura. Introdução aos Sistemas Jurídicos. Lisboa : Almedina, 2014. p. 394.
45
descobrir o pensamento negro e os seus comportamentos individuais e
sociais”.125

Portanto “a oralidade faz parte da maneira de ser do Negro-Africano:


aqui a palavra não voa, permanece e transmite-se piedosamente, de
geração em geração”, (Altuna, 1985). Para o negro-africano a tradição
oral é tomada como a biblioteca viva, o código vivo por excelência do seu
Direito ao contrário do direito legislado que pontifica a codificação como
a melhor forma de conservar e transmitir as leis. Uma outra instituição
que caracteriza o Direito Costumeiro é, sem dúvida, a autoridade
tradicional. O Direito Costumeiro brota do seio da sociedade e
concretiza-se por meio da autoridade tradicional, art.º 223º - 225. Por
isso, não se pode falar do Direito Costumeiro sem fazer referência à
autoridade tradicional, aliás logo que o nosso legislador reconheceu o
costume como fonte de direito automaticamente consagrou o Poder
Tradicional nos termos do art.º 7º C.R.A.

As comunidades tradicionais desde sempre estiveram organizadas


juridicamente e esta organização fez-se em torno das autoridades
tradicionais que velam pela conservação, transmissão, pela aplicação no
tempo e no espaço do seu direito costumeiro enquanto o Direito
Legislado tem como seu guardião e aplicador o poder político do Estado.
O Direito Costumeiro caracteriza-se pela coercibilidade mística, isto é,
misteriosa. Coercibilidade mística, porque de um lado deparamo-nos
com aquele temor que os membros sentem ou têm de violar a norma
jurídica costumeira para se evitar um castigo mais de carácter
transcendental e, de outro lado, o medo pela opinião pública e ainda
aquela sanção que é imposta pela autoridade tradicional no foro próprio
consoante a gravidade, as circunstâncias e os resultados da ilicitude

125
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. 1985. Cultura Tradicional Bantu. Luanda : s.n., 1985. p. 88. e KEITA,
Boubacar N. 2009. História da África Negra. Luanda : Texto Editores, 2009.

46
cometida que pode se traduzir na indemnização, nas penas corporais,
etc...

A figura principal da autoridade tradicional a nível da nossa região o


Soma e esta designação varia de região para região. O soma “
desempenha uma função fundamental no grupo. Como pessoa mais
qualificada e vitalmente mais poderosa, é o guia necessário da
comunidade e o guarda das suas tradições e da sua coesão”. 126

Finalmente aponta-se como outra característica a diversidade cultural.


A África, em geral, e Angola, em particular, nunca conheceram uma
única civilização, porque desde sempre caracterizaram-se por uma
diversidade de etnias, religiões, línguas e culturas que por sua vez se
reflecte na diversidade dos próprios costumes.127

Por isso, no direito costumeiro deparamo-nos com um grande desafio


que consiste na diversidade de costumes ou o concurso de normas
jurídicas costumeiras diferentes a disciplinarem a mesma situação de
vida social e, porque assim é, muitas vezes teremos conflitos entre eles
que devem ser solucionados à luz daqueles costumes que se
apresentam como sendo comuns e caso contrário fazer recurso à
Constituição da República de Angola.

No entanto, esta diversidade agudizou-se ainda mais com a chegada das


potências coloniais quando estas efectivaram a fragmentação política de
África e de Angola, tendo as fronteiras dos novos estados e as
respectivas províncias então constituídos sido definidas, não raro,
segundo critérios completamente alheios à distribuição geográfica das
populações, fruto da Conferência de Berlim em 1884-1885. Entretanto,
a diversidade cultural não pode ser encarada como uma ameaça à
existência do direito costumeiro, antes pelo contrário, deve ser vista
como riqueza desta cadeira que impulsiona a busca daquilo que é

126
Altuna, Raúl Ruiz de Asúa. Cultura Tradicional Bantu. Luanda : s.n., 1985. p. 88.
127
Graça, Pedro Borges. A Construção da Nação em África. Coimbra : Almedina, 2005.
47
comum e que mais nos une nesta diversidade para melhor coesão da
comunidade angolana que se reflecte na paz social. 128

128
Idem

48
CAPITULO III – OS COMPONENTES HISTÓRICOS DO DIREITO
COSTUMEIRO

Etimologicamente, o termo Direito vem do latim “Directum” do verbo


“dirigere” (dirigir-orientar-endireitar), significando aquilo que é “recto”,
“direito” ou “conforme à razão”.

Didacticamente, o Direito é o ramo da ciência que estuda as regras


gerais, abstractas e imperativas do relacionamento social, criadas pelo
Estado e por este impostas, se necessário, de forma coerciva. Deveres e
obrigações impõem-se à conduta de todas as pessoas no convívio
familiar, na vida laboral e nas relações sociais em geral. A solução dos
conflitos, com base no Direito e mediação do Estado, torna possível a
vida em sociedade.

Assim, Direito não é somente o conjunto de normas gerais, abstractas


obrigatórias e coercitivas (normas jurídicas) que regulam, ordenam ou
disciplinam os aspectos mais relevantes da vida societária mas é
também o ramo da ciência que tem por objecto o estudo dessas normas.
A ciência jurídica tem por objecto discernir, de entre as normas que
regem a conduta humana, as que são especificamente jurídicas.

Ao contrário de outras normas sociais, as normas jurídicas


caracterizam-se pelo seu carácter coercitivo, pela existência de sanção
imposta pela autoridade do Estado no caso de não observância
voluntária.

O Direito regula uma enorme e crescente gama de relações humanas e


rege-se, em todo o mundo civilizado, por numerosos princípios e regras
cuja validade é imposta e aceite como condição da própria sobrevivência
social. Tal ordenamento compulsório estabeleceu-se em lenta e
trabalhosa evolução, ao longo de séculos, como se verá em seguida,
através de uma breve referência às suas matrizes históricas mais
conhecidas, para uma melhor compreensão dos sistemas jurídicos
vigentes na actualidade.
49
Sem nos debruçarmos sobre as diversas teorias do surgimento do
Direito, este, segundo entendimento corrente, aparece na sociedade
humana juntamente com o Estado, traduzindo a necessidade de a vida
societária (cada vez mais complexa e com interesses amiúde divergentes
ou mesmo antagónicos) passar a ser regida, não exclusivamente por
normas sociais, mas por um conjunto de regras gerais e obrigatórias,
criadas e impostas, se necessário, coercivamente, por um grupo
especial de indivíduos dedicados a esse fim.

As normas sociais vigentes na sociedade primitiva, pré-estatal, eram


garantidas por um poder social exercido directamente pelos membros
da comunidade e respectivos chefes, actuando estes com base na
legitimidade tradicional, moral, religiosa ou outra que lhes era
reconhecida. Esse poder social cede, progressivamente, lugar ao poder
estatal, que se dotará de um aparelho especial de persuasão e coerção,
capaz de assegurar o cumprimento das normas gerais, abstractas,
obrigatórias e coercitivas, reguladoras da vida societária.

Todavia, o surgimento destas normas (denominadas normas jurídicas


ou de Direito) não exclui a persistência das demais normas sociais
(religiosas, morais, de trato social), se bem que só as normas jurídicas
são ditadas e impostas coercivamente pelo Estado.

Lewis Morgan, na sua obra. A Sociedade Primitiva., tipifica duas formas


pelas quais teve origem o Estado e, por conseguinte, do Direito:

a) Através de relações pessoais, em que a matriz organizativa é a


gens (conjunto de pessoas consanguíneas descendentes de um
antepassado comum), que irá evoluir, sucessivamente, para a
fratia (reunião de duas ou mais gens da mesma tribo, com vista à
realização de terminados fins comuns), a tribo e a confederação
de tribos, da qual irá emergir a Nação que se edificará em Estado,
regido por normas de Direito;

50
b) através do território e da propriedade, nos quais se assenta a
colectividade humana que vai evoluindo a ponto de se tornar
necessário o surgimento do Estado, sob o qual se constituirá uma
sociedade política, em que as relações das pessoas com o poder
(governo) serão determinadas por um vínculo delas com o
território (jus soli), logo pelo Direito vigente no território.

As duas explicações convergem no sentido de que é a necessidade de


regulação das relações sociais, cada vez mais complexas, que leva ao
surgimento de uma entidade incumbida de gerir a vida societária (o
Estado), dotando-se a sociedade, para o efeito, de um poder
especialmente organizado que se vai apoiar na persuasão e na coerção
para garantir a observância das normas de convivência social.

Já para os marxistas, o surgimento do Estado e do Direito está


inequivocamente ligado ao aparecimento das classes sociais e à
substituição da sociedade sem classes (sociedade primitiva) pela
sociedade classista (esclavagismo, feudalismo, capitalismo). Assim,
onde existe sociedade classista existe o Estado e nem todas as
formações socio-económicas constituem uma sociedade estatalmente
organizada (comunidade primitiva, comunismo).

Para os marxistas, o Direito é um conjunto de regras impostas pelo


Estado que expressam a vontade da classe dominante.

Direito Primitivo: o Costume e as primeiras fontes escritas

Remota e primitivamente, o Direito manifestou-se através do Costume.


Os usos e tradições das épocas mais recuadas da civilização
prepararam o advento posterior do Direito Escrito. Efectivamente, nos
primórdios da Civilização todo o direito estava expresso nos costumes,
transmitindo-se de geração em geração, sobretudo, por via oral. O
Costume jurídico, enquanto primeira forma histórica de expressão do
Direito, era igualmente a que prevalecia nas sociedades esclavagista e
feudal.

51
Fonte de direito bastante imperfeita, pela incerteza que, muitas vezes,
lhe é inerente, não pode o Costume apresentar a garantia de
permanência que caracteriza, em princípio, a lei escrita. Em virtude
deste facto, a tendência geral no mundo actual é a substituição do
Direito Costumeiro pelo Direito Escrito. E nós damos hoje mais do que
nunca valor importante ao Direito Costumeiro, que pela orientação da
Constituição, pelo ditâmes dos arts.º 7º e 224º.

Alguns documentos escritos de Direito remontam à Alta Antiguidade: o


Código de Amurabi, em Babilónia, situa-se cerca de 2.000 anos a.C; as
Leis de Moisés para Israel e as Leis de Manu para a Índia remontam
também a épocas bastante recuadas. O mesmo se pode dizer da Lei das
Doze Tábuas, entre os romanos. De qualquer maneira, porém, esses
antigos monumentos legislativos escritos são, em muitas de suas
disposições, reminiscências do antigo direito costumeiro. Expressão
desse direito costumeiro antigo é, verba gratia, a chamada Lei de Talião
(jus talionis), que se traduz na materialização do princípio da vingança
para “compensar” danos causados e é ilustrada pela célebre expressão
“olho por olho, dente por dente”.

Além da forte influência dos costumes e da vingança privada, as regras


do Direito Primitivo, caracterizam-se pela forte influência das regras
religiosas ou divinas e, frequentemente, pela sua crueldade e
arbitrariedade.

3.1. O Direito na Grécia Antiga

No tocante à investigação relativa ao direito na Grécia Antiga, importa


referir que ele não se expressou de modo uniforme em todo o seu
território, nas diferentes polis ou cidades, tendo, porém, em comum, a
mistura das regras jurídicas, essencialmente costumeiras, com
fórmulas de conteúdo moral e teológico.

52
Aristóteles, na sua obra “Constituições Gregas”, reúne 158
constituições das distintas cidades-estados do antigo mundo grego.
Seus autores são, além do legendário Licurgo (da antiga Esparta) e dos
legisladores Dracon e Solon (de Atenas), figuras como Sócrates e Platão,
Faleas (de Calcedónia), Fidón (de Corinto), Hipódamo (de Mileto),
Charondas (de Catania), Zeleucos, etc. Na sua obra “A Política”,
Aristóteles menciona Onomácritos como o primeiro que adquiriu perícia
e fama na legislação.

As leis de Dracon (621 A.C) deram forma escrita ao Direito


Consuetudinário e representam as primeiras tentativas de resistência
da cidade à nobreza do campo. Cá entre nós essa resistência ainda se
faz sentir sobretudo, pelas dificuldades que se têm em aceder os
recantos mais longíquos das comunidades rurais. Seu extraordinário
rigor, castigando, por exemplo, com pena de morte o furto de frutas e
legumes e outras infracções leves – eis uma das notas marcantes destas
leis.

Não é por acaso que se consideram traconianas. As leis de brutal


crueldade ou de carácter implacável, se bem que as leis da antiguidade
(exemplo do Código Hammurabi) se caracterizavam, em geral, pela sua
severidade. Porém em Angola, fruto do Estado de Direito essas práticas
são fortemente punidas, nos termos da Constituição e da Lei. Assim o
costume só serve se este não for contra a Dignidade da Pessoa Humana.

As leis de Solon (594 AC), escritas em versos, tiveram por finalidade


pôr fim à opressão dos devedores pelos credores, reduzir o poder dos
eupátridas e fazer participar todos os atenienses na Assembleia
(democracia ateniense), tendo aliviado as duras penas de Dracon... "A
Oréstia, de Ésquilo, apresentada em 458 a.C. portanto, dois anos antes
da morte de seu autor, foi a única trilogia completa que chegou até nós.
Era composta por três tragédias: Agamênnon, As Coéforas e as

53
Eumênides. Sua matéria-prima foi recolhida nas histórias dos regressos
dos heróis que foram lutar contra a cidade sagrada de Tróia

Para uma melhor explicação do Direito na Grécia Antiga, procedeu-se à


sua divisão de períodos. Assim, inventariaram-se, em primeiro lugar, as
práticas jurídicas observadas na Grécia Arcaica (800-500 AC), e,
posteriormente, a organização do direito na Grécia Clássica (séc. 500-
400 AC).

Quanto ao período arcaico foram identificados os dois mecanismos mais


característicos de seu funcionamento: os ordálios e a vendeta. No que
diz respeito aos ordálios, é patente a sua presença no período mais
primitivo da cultura grega, assim como em todos os povos de origem
indo-europeia. Através dos ordálios, práticas nitidamente marcadas por
uma visão mítica do mundo, o corpo do acusado é submetido a provas
para testar sua inocência ou culpabilidade, (na cultura tradicional
umbundu, é usada uma bebida mais ou menos venenosa). Em geral, há
um enfrentamento do acusado com alguns elementos da natureza -
como, por exemplo, o fogo e a água.

Já no que concerne à vendeta, ou vingança privada, observa-se a sua


ocorrência na Grécia Arcaica assim como, praticamente, em todas as
culturas antigas da bacia do Mediterrâneo. Como a estrutura das
sociedades primitivas se organiza em torno das relações de parentesco,
é através dos clãs que se realiza a punição do dano causado. Repara-se
a ofensa a um membro de um determinado grupo familiar através da
resposta pela força empregada por esta mesma família. Exemplos
retirados da literatura, como da tragédia Oréstia, de Ésquilo,
demonstram a permanência destas práticas na cultura grega por longo
espaço de tempo.

Quanto ao período clássico, a pesquisa tem sido feita em torno da


hipótese formulada por um grupo de helenistas franceses
contemporâneos - a "Escola de Paris", de Jean Pierre Vernant e Marcel
Detienne. A hipótese apontava para as tragédias como testemunho
54
fundamental da emergência de um novo direito, acompanhando o
advento da democracia. Isto foi confirmado através do exame de
algumas tragédias, como Édipo Rei1, e Antígona. O novo direito, laico e
segundo modelos racionais de investigação da verdade, inspirados no
pensamento filosófico que está a organizar-se no mesmo momento,
apresenta características nitidamente distintas do direito vigente no
período arcaico.

Édipo Rei, do autor clássico, Sófocles), é uma obra-prima da tragédia


grega. Relata parte da história de Édipo que, sem o saber, e sem poder
contrariar o destino, que havia sido adivinhado, mata o pai (Laios de
Tebas), numa batalha, e casa-se com a viúva de Laios, Jocasa, sua
própria mãe. Édipo não consegue suportar a verdade e arranca os
próprios olhos.

Antígona: Tema trágico da mitologia grega, retomado por vários autores,


a partir do relato de Sófocles (496 a 406 aC) em Édipo em Colono.
Antígona, que deu nome à Trágédia, nasceu da união incestuosa de
Édipo e Jocasta. Após Édipo ter-se cegado por descobrir que, sem
saber, matara o próprio pai e se casara com a mãe, Antígona e sua irmã
Ismênia serviram-lhe de guias, acompanhando-o no exílio de Tebas até
sua morte, perto de Atenas...

Vindos de toda a parte do mundo grego, os sofistas (mestres de


sabedoria), dedicam-se a fazer conferências e a dar aulas nas várias
cidades-estado, sem se fixarem em nenhuma. Atenas é todavia a cidade
onde mais afluem, onde no século V a. C. adquirem um enorme
prestígio. Aproveitam as ocasiões em que existe grandes aglomerações
de cidadãos, para exibirem os seus dotes retóricos e saber, ensinando
nomeadamente a arte da retórica. O seu ensino é, portanto, itinerante,
mas também remunerado. Para Protágoras (485-410 a.c), filósofo grego,
promotor da escola sofista, "el hombre es la medida de todas las cosas"
como pôs de manifesto em suas obras. Considera que é impossível
alcançar a verdade, conseguindo-se só a opinião mais favorável e útil.

55
Autodenomina-se sofista e é o promotor de esta importante escola onde
se destacou como mestre da virtude. Ao afirmar que "la virtud es la
destreza del fuerte" se manifiesta dentro do escepticismo.

Devemos acreditar que a maior contribuição do pensamento grego para o


direito foi a formação de um corpo de ideias filosóficas e cosmológicas
sobre a justiça, mais adequado para apelações nas assembleias
populares do que para estabelecer normas jurídicas aplicáveis a
situações gerais.

É na verdade essa ideia de justiça que nos pode conduzir a verdadeira


Justiça Social, muitas vezes associda ao Direito Costumeiro.

As primitivas cosmologias gregas consideravam o indivíduo dentro da


transcendental harmonia do universo, emanada da lei divina (logos) e
expressa, em relação à vida diária, na lei (nomos) da cidade (polis). No
século V a.C., os Sofistas, atacados mais tarde por Sócrates e Platão,
examinaram criticamente todas as afirmações relativas à vida na
cidade-estado e destacaram as amplas disparidades entre a lei humana
e a moral, rejeitando a ideia de que a primeira obedecia
necessariamente a uma ordem universal. O objecto de estudo dos
sofistas era o homem, "a medida de todas as coisas", segundo
Protágoras, o sujeito, capaz de conhecer, projectar e construir.

Eles negavam que a lei e a justiça tivessem valor absoluto, pois eram
criadas pelos homens, de acordo com determinadas circunstâncias e,
por isso mesmo, relativas e sujeitas a mudanças ou transformações.

Platão criticou esse conceito e contrapôs ao que considerava como


subjectivismo sofista a eternidade das formas arquetípicas, de que a lei
da cidade-estado seria um reflexo. Na utopia descrita em sua
“República”, Platão afirma que a justiça prevalece quando o estado se
encontra ordenado de acordo com as formas ideais asseguradas pelos
sábios encarregados do governo. Não há necessidade de leis humanas,
mas unicamente de conhecimentos transcendentais.

56
Aristóteles, discípulo de Platão, que tinha em comum com ele a ideia de
uma realidade que transcende a aparência das coisas tais como são
percebidas pelos sentidos humanos, defendia a validade da lei como
resultado da vida prática: o homem, por natureza, é moral, racional e
social e a lei facilita o desenvolvimento dessas qualidades inatas. Para
Aristóteles, a ordem existe na regularidade das coisas e se expressa em
todas as realidades, inclusive no direito. Portanto, o direito está in re,
nas coisas, na justa proporção na divisão dos bens entre os membros
de um grupo, no estabelecimento de um equilíbrio das coisas.

O direito só é direito porque é justo, não um justo abstracto, mas um justo


meio, uma medida entre extremos, nem mais, nem menos. Para ele, a
palavra justiça não leva a uma utopia, a uma idealização, mas leva, sim,
a qualquer coisa de real, a uma virtude, a uma actividade, a uma ou
mais espécies de comportamento.

A justiça, segundo Aristóteles, é uma ideia de proporção, de equilíbrio e


de hábito, é uma tendência de comportamento permanente, de dar a
cada um o que é seu, não no sentido subjectivo, mas sim dentro de
uma realidade objectiva, ou seja, do indivíduo dentro da sociedade.
Dessa forma, a justiça só é possível na Pólis, onde existe a alteridade
entre duas pessoas, ou seja, o justo só pode se expressar a partir de uma
realidade confrontada entre sujeitos. Para Aristóteles, a justiça é a
igualdade entre os iguais e a desigualdade entre os desiguais.

3.2. O Direito Romano

Os criadores da civilização romana, cujo espírito prático, senso da


realidade e tendência para o individualismo se equilibravam com um
raro discernimento da conveniência e da necessidade política,
edificaram o mais grandioso e perfeito sistema jurídico da idade antiga,
que sobrevive num sem-número de concepções, instituições e princípios
vigentes no mundo contemporâneo. O direito romano influiu

57
poderosamente sobre a ordem jurídica ocidental e constituiu um dos
principais elementos da civilização moderna.

O direito romano é o complexo de normas e princípios jurídicos vigentes


em Roma, desde a sua fundação (lendária, no século VIII a.C.) até à
codificação de Justiniano, falecido no ano 565 (século VI d.C.). A
evolução posterior não será objecto de nossos estudos, porque a
codificação justiniana foi conclusiva: foram recolhidos os resultados das
experiências anteriores e considerada a obra como definitiva e imutável.

Realmente, a evolução posterior dos direitos europeus baseou-se nessa


obra de codificação, tanto assim que os códigos modernos, quase todos,
trazem a marca da obra de Justiniano. Por isso consideramos a
codificação de Justiniano como termo final do período que estudamos.
É dai que se tem a influência jurídica actual de Angola, que durante
muito tempo colocou de parte o Direito Costumeiro.

Tal como a história do Direito bem diz, se na Grécia o costume fez


direito, cá em África e em Angola a regra não foi no todo diferente.
Somente com a chegada do poder colonial é que as coias conheceram
mudanças muito significativas.

Nos treze séculos da história romana, do século VIII a.C. ao século VI


d.C., assistimos, naturalmente, a uma mudança contínua no carácter
do direito, de acordo com a evolução da civilização romana, com as
alterações políticas, económicas e sociais, que a caracterizavam. Para
melhor compreender essa evolução, costuma-se fazer uma divisão em
períodos. Tal divisão pode basear-se nas mudanças da organização
política do Estado Romano, distinguindo-se, então, a época régia
(fundação de Roma no século VIII a.C. até a expulsão dos reis em 510
a.C.), a época republicana (até 27 a.C.), o principado até Diocleciano
(que iniciou seu reinado em 284 d.C.), e a monarquia absoluta, por este
último iniciada e que vai até o fim do período por nós estudado, isto é,
até Justiniano (falecido em 565 d.C.).

58
Outra divisão, talvez preferível didacticamente, distingue, no estudo do
direito romano, tendo em conta sua evolução interna: o período arcaico
(da fundação de Roma no século VIII a.C. até o século II a.C.), o período
clássico (até o século III d.C.) e o período pós-clássico (até o século VI
d.C.).

3.3. O Direito Romano do Período Arcaico

O direito do período arcaico caracterizava-se pelo seu formalismo e pela


sua rigidez, solenidade e primitividade. O Estado tinha funções
limitadas a questões essenciais para sua sobrevivência: guerra, punição
dos delitos mais graves e, naturalmente, a observância das regras
religiosas. Os cidadãos romanos eram considerados mais como
membros de uma comunidade familiar do que como indivíduos. A
defesa privada tinha larga utilização: a segurança dos cidadãos
dependia mais do grupo a que pertenciam do que do Estado.

A evolução posterior caracterizou-se por acentuar-se e desenvolver-se o


poder central do Estado e, consequentemente, pela progressiva criação
de regras que visavam a reforçar sempre mais a autonomia do cidadão,
como indivíduo. O marco mais importante e característico desse período
é a codificação do direito vigente nas XII Tábuas, codificação feita em
451 e 450 a.C. por um decenvirato, especialmente nomeado para esse
fim. As XII Tábuas, chamadas séculos depois, na época de Augusto
(século 1), fonte de todo o direito (fons oninis publici privatique juris),
eram uma codificação de regras provavelmente costumeiras, primitivas,
e, às vezes, até cruéis. Aplicavam-se exclusivamente aos cidadãos
romanos.

Esse direito primitivo, intimamente ligado às regras religiosas, fixado e


promulgado pela publicação das XII Tábuas, já representava um avanço
na sua época, mas, com o passar do tempo e pela mudança de
condições, tornou-se antiquado, superado e impeditivo de ulterior
progresso. Mesmo assim, o tradicionalismo dos romanos fez com que
59
esse direito arcaico nunca fosse considerado como revogado. Assim, o
próprio Justiniano, 10 séculos depois, fala dele com respeito. É na
verdade o tradicionalismo que faz com que e Direito Costumeiro tenha
tanta força nas nossas comunidades ruruais e não só e, em muitos casos
nunca fosse considerado como revogado.

A conquista do poder, pelos romanos, em todo o Mediterrâneo, exigia


uma evolução equivalente no campo do direito também. Foi aqui que o
génio romano actuou de uma maneira peculiar para a nossa
mentalidade.

3.4. O Direito do Período Clássico

A partir do século II a.C. (período clássico), assistimos a uma constante


evolução e renovação do direito romano, que vai até o século III d.C.
Essa evolução (e renovação) fez-se, porém, por meios indirectos,
característicos dos romanos e diferentes dos métodos modernamente
usados. A maior parte das inovações e aperfeiçoamentos do direito, no
período clássico, foi fruto da actividade dos magistrados e dos
jurisconsultos que, em princípio, não podiam modificar as regras
antigas, mas que, de facto, introduziram as mais revolucionárias
modificações para atender às exigências práticas de seu tempo.

Vejamos as principais formas de manifestação do Direito Romano no


período clássico em relação à Administração da Justiça e à
Interpretação das normas de Direito:

a) Administração da justiça No período clássico do Direito Romano,


distinguiam-se dois tipos de magistrados: o pretor e o juiz
particular. De entre os magistrados republicanos, distinguia-se o
pretor que tinha por incumbência funções relacionadas com a
administração da Justiça, cuidando, nesse mister, da primeira
fase do processo, que consistia, em verificar as alegações das
partes e fixar os limites da contenda, para, de seguida, remeter o

60
caso a um juiz particular. Incumbia, então, ao juiz particular a
segunda fase da administração da justiça, que consistia em
verificar a procedência das alegações diante das provas
apresentadas e tomar, com base nelas, a sua decisão. Havia
pretor para os casos entre cidadãos romanos – era o pretor
urbano – e havia também, a partir de 242 a.C., pretor para os
casos em que figuravam estrangeiros - era o chamado pretor
peregrino.

O pretor, como magistrado, tinha um amplo poder de mando,


denominado imperium. Utilizou-se dele, especialmente, a partir da lei
Aebutia, no século II a.C., que, modificando o processo, lhe deu ainda
maiores poderes discricionários. Por essas modificações processuais, o
pretor, ao fixar os limites da contenda, podia dar instruções ao juiz
particular sobre como ele deveria apreciar as questões de direito. Fazia
isto por escrito, pela fórmula, na qual podia incluir novidades, até então
desconhecidas no direito antigo. Não só. Com esses poderes
discricionários, podia deixar de admitir acções que lhe eram propostas
(denegatio actionis) ou, também, admitir acções até então
desconhecidas no direito antigo.

Essas reformas completavam, supriam e corrigiam as regras antigas. As


directrizes que o pretor ia observar eram publicadas no seu Edito, ao
entrar no exercício de suas funções. Como o cargo de pretor era anual,
os éditos se sucediam um ao outro, dando oportunidade a experiências
valiosíssimas.

O resultado dessas experiências foi um corpo estratificado de regras,


aceites e copiadas pelos pretores que se sucediam, e que, finalmente,
por volta de 130 d.C., foram codificadas pelo jurista Sálvio Juliano, por
ordem do Imperador Adriano. Note-se bem, entretanto, que esse direito
pretoriano nunca foi equiparado ao direito antigo (jus civile). A regra
antiga, pela qual o pretor não podia criar direito (praetor ius lacere non
potest), continuou em vigor. Assim, esse direito pretoriano, constante

61
do Edito e chamado ius honorarium, foi sempre considerado como
diferente do direito antigo (ius civile) mesmo quando, na prática, o
substituiu.

A essa característica peculiar da evolução do direito romano, temos que


acrescentar uma outra, de igual relevância.

3.5. A Interpretação das Normas Jurídicas

A interpretação das regras do direito antigo era tarefa importante dos


juristas. Originariamente, só os sacerdotes conheciam as normas
jurídicas. A eles incumbia, então, a tarefa de interpretá-las. Depois, a
partir do fim do século IV a.C., esse monopólio sacerdotal da
interpretação cessou, passando ela a ser feita também pelos peritos
leigos. Essa interpretação não consistia somente na adaptação das
regras jurídicas às novas exigências, mas importava também na criação
de novas normas.

Tal actividade jurisprudencial contribuiu grandemente para o


desenvolvimento do Direito Romano, especialmente pela importância
social que os juristas tinham em Roma. Eles eram considerados como
pertencentes à aristocracia intelectual, distinção devida aos seus dotes
de inteligência e aos seus conhecimentos técnicos. Suas actividades
consistiam em emitir pareceres jurídicos sobre questões práticas a eles
apresentadas (respondere), instruir as partes sobre como agirem em
juízo (agere) e orientar os leigos na realização de negócios jurídicos
(cavere). Exerciam essa actividade gratuitamente, pela fama e,
evidentemente, para obter um destaque social, que os ajudava a galgar
os cargos públicos da magistratura.

Foi o imperador Augusto que, procurando utilizar, na nova forma de


governo por ele instalada, os préstimos desses juristas, instituiu um
privilégio que consistia no direito de certos juristas darem pareceres em
nome dele, príncipe (ius respondendi ex auctoritate principis). Esse

62
direito era concedido a certos juristas chamados jurisconsultos. Seus
pareceres tinham força obrigatória em juízo. Havendo pareceres
contrastantes, o juiz estava livre para decidir.

O método dos jurisconsultos romanos era casuístico. Examinavam,


explicavam e solucionavam casos concretos. Nesse trabalho não
procuravam exposições sistemáticas: eram avessos às abstracções
dogmáticas e às especulações e exposições teóricas. Isso não impediu,
entretanto, que o génio criador dos romanos se manifestasse por
intermédio dessa obra casuística dos jurisconsultos clássicos.

3.6. O Direito do Período Pós-Clássico

O último período, o pós-clássico, é a época da decadência em quase


todos os sectores. Assim, também no campo do direito. Vivia-se do
legado dos clássicos, que, porém, teve de sofrer uma vulgarização para
poder ser utilizado na nova situação caracterizada pelo rebaixamento de
nível em todos os campos. Nesse período, pela ausência do génio
criativo, sentiu-se a necessidade da fixação definitiva das regras
vigentes, por meio de uma codificação que os romanos em princípio
desprezavam. Não é por acaso que, excepto aquela codificação das XII
Tábuas do século V a.C., nenhuma outra foi empreendida pelos
romanos até o período decadente da era pós-clássica.

Após tentativas parciais de codificação de partes restritas do direito


vigente (Codex Gregorianus, Codex Hermogenianus, Codex
Theodosianus), foi Justiniano (527 a 565 d.C.) quem empreendeu a
grandiosa obra legislativa, mandando coleccionar oficialmente as regras
de direito em vigor na época.

Encarregou uma comissão de juristas de organizar uma colecção


completa das constituições imperiais (leis emanadas dos imperadores),
que foi completada em 529 e publicada sob a denominação de Codex.
No ano seguinte, em 530, determinou Justiniano que se fizesse a

63
selecção das obras dos jurisconsultos clássicos, encarregando dessa
tarefa Triboniano, que convocou uma comissão para proceder ao
trabalho ingente.

A comissão conseguiu no prazo surpreendente de três anos


confeccionar o Digesto (ou Pandectas), composto de 50 livros, no qual
foram recolhidos trechos escolhidos de 2.000 livros (com três milhões de
linhas) de jurisconsultos clássicos. Os codificadores tiveram autorização
de alterar os textos escolhidos, para harmonizá-los com os novos
princípios vigentes. Essas alterações tiveram o nome de emblemata
Triboniani e hoje são chamadas interpolações. A descoberta de tais
interpolações e a restituição do texto original clássico é uma das
preocupações da ciência romanística dos últimos tempos.

Paralelamente à compilação do Digesto, Justiniano mandou preparar


uma nova edição do Codex, isto por causa da vasta obra legislativa por
ele empreendida naqueles últimos anos. Em 534 foi publicado, então, o
Codex repetitae praelectionis, o Código revisto, cujo conteúdo foi
harmonizado com as novas normas expedidas no decurso dos
trabalhos. Somente temos o texto desta segunda edição do Código
Justinianeu.

Além dessas obras legislativas, Triboniano, Teófilo e Doroteu, estes


últimos professores das escolas de Constantinopla e de Bento,
elaboraram, por ordem de Justiniano, um manual de direito para
estudantes, que foi modelado na obra clássica de Gaio, do século II a.C.
Esse manual foi intitulado Institutiones, como o de Gaio, e foi publicado
em 533. Terminada a codificação, e não obstante a proibição de se
invocar qualquer regra que não estivesse prevista no Código, Justiniano
reservou-se a faculdade de baixar novas leis. Nos anos subsequentes a
535, até à sua morte, em 565 d.C., Justiniano publicou, efectivamente,
um grande número de novas leis, chamadas novellae constitutiones.

A colecção destas, intitulada Novellae, constitui o quarto volume da


codificação justiniana.

64
Em suma: O Código Justiniano (colecção das leis
imperiais vigentes na época), o Digesto (selecção das
obras dos jurisconsultos clássicos), as Institutas
(manual de direito destinado aos estudantes) e as
Novelas (as novas leis publicadas após a publicação
do Código Justiniano) são as quatro grandes obras
justinianas e formam o Corpus Juris Civilis,
denominação atribuída por Dionísio Godofredo, no fim
do século XVI d.C.

Foi mérito dessa codificação a preservação do direito romano para a


posteridade.

Direito Germânico

A expressão Direito Germânico indica as Instituições e os Sistemas


Jurídicos existentes nas diversas nações bárbaras de origem teutónica
que se apossaram da Europa após a queda do Império Romano do
Ocidente, no ano 476. Importante característica do Direito Germânico
era a chamada Personalidade das Leis.

O Direito Romano, pelo menos depois que o império atingiu a expansão


máxima, no século II, consagrava, ainda que com excepções, o princípio
da territorialidade, segundo o qual o direito aplicável às pessoas que se
achavam no território do Estado era o Direito do próprio Estado,
independentemente da condição nacional ou da origem étnica de seus
habitantes.

O Direito Germanico, ao contrário, principalmente depois que se


generalizou a convivência com a população romana, nos séculos IV e V,
considerava que o estatuto legal da pessoa era uma prerrogativa desta,
determinada por sua procedência ou nacionalidade. As leis bárbaras
ordenaram os Usos e Costumes das tribos na forma escrita, recolhendo
65
a influência de princípios do Direito Romano, mediante compilações do
período pós-clássico, das constituições imperiais e da jurisprudência.

Nessas codificações, as leis ou a jurisprudência romana podiam


aparecer justapostas, sem modificações, ou resumidas, modificadas e
intercaladas.

3.7. A Idade Média

O apogeu da Escolástica, nome com que se define genericamente a


Filosofia Cristã Medieval, deu-se no século XIII, com S. Tomás de
Aquino, que, a exemplo de S. Agostinho, subordinou o Direito Positivo
(secular) à lei de Deus. Assim, uma disposição do Direito Positivo não
podia violar o direito natural e, em consequência, o Direito Eterno
Divino.

O Jus naturalismo estabelece que os princípios gerais de direito são de


natureza suprapositiva, sendo princípios de Direito Natural.
Caracteriza-se por sustentar a vigência, a validade e a eficácia do
Direito Natural, superior a todo e qualquer Direito Positivo. Faz a
consideração do direito natural como direito justo por natureza,
independentemente da vontade do legislador, derivado da natureza
humana (jus naturalismo) ou dos princípios da razão (jusracionalismo),
sempre presente na consciência de todos os homens. (Ex: Declaração
dos Direitos do Homem/1789, art.º. 2º -. o fim de toda associação é a
protecção dos direitos naturais imprescritíveis do homem.)

A tendência de fazer prevalecer a razão sobre a vontade divina foi


rejeitada, também no século XIII, pelo franciscano britânico John Duns
Scotus, para quem tudo se devia à vontade de Deus e não existia
nenhum Direito Natural acessível à razão humana. O Direito Positivo
somente tinha validade e eficácia se não contrariasse a vontade divina
superior a ele.

66
Na Época Medieval, e sob a forte influência da Igreja, destaca-se o
desenvolvimento do Direito Canónico que podemos definir, como o faz
Juan Cavigioli, como “o sistema das leis com que a igreja ordena sua
actividade social específica e a de seus membros enquanto tais”. É, antes
de mais, um direito não puramente humano, que entretanto não se
organiza com pretensões de absoluta divindade, como nos casos do
direito hebreu ou muçulmano, que se apresentavam como obra da
santidade e, portanto, perfeitos.

Sem deixar de ser expressão do que se considera ser vontade divina, o


Direito Canónico é uma obra Política Humana, forjada nas assembleias
legislativas (os Concílios) e nas ordenanças de tipo imperial (os Decretos
dos papas).

Do Renascimento ao século XVIII

Como já vimos Maquiavel, em “O Príncipe” (1513), atacou o recurso à


vontade transcendental e à vontade divina para mergulhar no
empirismo: as coisas devem ser aceites como são e não como se
considera que deveriam ser. A manutenção do poder justifica qualquer
meio, pois é um fim em si mesmo. O Direito deve basear-se na
garantia de continuidade do poder e não na justiça.

Hugo Grotius, jurista holandês partidário de um estoicismo tolerante,


no início do século XVIII concebeu um direito supranacional que
pusesse limite ao poder absolutista das monarquias europeias. Rejeitou
a "Razão de Estado" defendida por Maquiavel como fonte do direito e
propôs uma versão actualizada do direito natural estóico, com
elementos do direito romano e da teologia cristã.

Thomas Hobbes, adoptando uma perspectiva mais próxima da de


Maquiavel, entendia que a natureza humana não é tão perfeita como
pensavam Grotius e os estóicos. Sustentava que o homem, em estado
67
natural, luta somente por sua sobrevivência e só cede parte de sua
liberdade e se submete à autoridade alheia em troca de segurança.

Montesquieu foi dos pioneiros a rejeitar o Direito Natural. Em “De


l'esprit des lois” (“O espírito das leis”, 1748), defendeu a tese segundo
a qual o direito e a justiça de um povo são determinados por
factores que operam sobre eles e, portanto, não é aplicável o
princípio da imutabilidade sustentado pelo direito natural.

Kant também discutiu o Direito Natural. Segundo ele, todos os


conceitos morais são baseados no conhecimento a priori, que só pode
ser atingido por intermédio da razão. No entanto, os conceitos
kantianos mostraram-se tão transcendentais quanto os do direito
natural e, por isso, outros pensadores do idealismo metafísico, como
Johann Gottlieb Fichte, voltaram às noções tradicionais do direito
natural.

3.8. Os Séculos XIX e XX

Na primeira metade do século XIX, o pensamento jurídico


experimentou, por influência da filosofia positivista de Augusto Comte,
uma reacção ao idealismo e às teorias do Direito Natural. De acordo
com a doutrina do positivismo analítico, os casos deveriam ser
resolvidos mediante o estudo das instituições e leis existentes. Segundo
o positivismo histórico, cujo principal representante foi o jurista alemão
Friedrich Karl von Savigny, o direito reside no espírito do povo e o
costume é o direito por excelência.

Com o Positivismo Histórico, onde (o direito reside no espírito do povo e


o costume é o direito por excelência) tem-se uma base de
sustentabilidade para a utilidade do Direito Costumeiro, tudo isso à luz
de Savigny. Pois também, de acordo com a doutrina do positivismo
68
analítico, os casos deveriam ser resolvidos mediante o estudo das
instituições e leis existentes, e umas delas são os usos e costumes dos
povos. E nisso tudo o papel do jurista consiste em interpretar esse
espírito e aplicá-lo às questões técnicas, junto dos tribunais, ou até
mesmo no Ekanga.

O Positivismo, corrente que teve como idealizador Auguste Comte e


expoente maior Hans Kelsen (Teoria Pura do Direito), acredita que os
princípios gerais do Direito são os consagrados no próprio ordenamento
jurídico. Sustenta que, fora da experiência jurídica, do facto, do direito
ordenado pelo Estado em suas leis e jurisprudência, não há direito. O
direito é, portanto, identificado como a expressão da vontade do
legislador, a lei (positivismo normativista), o código, com os precedentes
judiciais (positivismo anglo-americano). R. V. Ihering: “o Estado é a
única fonte do direito, formulado segundo o princípio da finalidade, e
não da causalidade”.

Em sua obra “Teoria Pura do Direito”, Kelsen faz a distinção entre


norma jurídica e proposição jurídica, pretendendo acentuar a diferença
entre a actividade de aplicação do direito e a desenvolvida pelo cientista
jurídico. Kelsen defende a renúncia da ciência do direito relativamente a
qualquer manifestação valorativa sobre as normas. Há absoluta rejeição
à concepção de uma moral absoluta. Quanto à estrutura da norma
jurídica, entende que ela pode ser compreendida como a imposição de
uma sanção à conduta nela considerada. As normas têm a estrutura de
uma proibição.

A interpretação materialista do direito, surgida em meados do século


XIX, iniciou-se com a doutrina marxista, para a qual os sistemas
políticos e judiciais representam a superstrutura da sociedade e têm
um carácter classista, isto é, estão ao serviço dos interesses da classe
dominante e exploradora, detentora dos meios fundamentais de
produção. O direito da sociedade capitalista seria, assim, a vontade da
burguesia dominante transformada em lei. A teoria pura do direito, cujo

69
representante mais conhecido foi o austríaco Hans Kelsen, concebia o
direito como um sistema autónomo de normas baseado numa lógica
interna, com validade e eficácia independentes de valores extrajurídicos,
os quais só teriam importância no processo de formação do direito.

A teoria das leis é uma ciência, com objecto e método determinados, da


qual se infere que todo sistema legal é, essencialmente, uma hierarquia
de normas.

A Teoria Tridimensional do Direito, desenvolvida por Miguel Reale para


servir de contraponto à teoria de Hans Kelsen, compreende o direito
como sendo facto, valor e norma, numa relação dialéctica. Afirma ele
que a ciência jurídica deve estudar as normas sem abstrair os factos e
os valores presentes e condicionantes no seu surgimento e
supervenientes ao seu advento. Requer a integração dos três elementos
numa unidade funcional, pois a ciência do direito é histórico-cultural e
compreensiva-normativa.

Segundo a Teoria Tridimensional do Direito:

a) Facto: é o acontecimento social que envolve interesses básicos do


homem;
b) Valor: é o elemento moral do Direito. Se toda obra humana é
impregnada de sentido ou valor, igualmente o Direito o é. É a
carga axiológica da relação jurídica;
c) Norma: consiste no padrão de comportamento social imposto aos
indivíduos, que devem observá-la em determinadas
circunstâncias.

Em suma: “Direito é o facto social na forma que lhe dá uma norma,


segundo uma ordem de valores.”

As escolas modernas do realismo jurídico entendem o direito como fruto


dos tribunais. Dentro de sua diversidade, essas escolas admitem
princípios comuns: a lei decorre da acção dos tribunais; o direito tem
um propósito social; as mudanças contínuas e ininterruptas da

70
sociedade verificam-se também no direito; e é necessário distinguir o
que é do que deve ser.

O conceito actual do direito configura-se como uma rebelião contra o


formalismo. A maior parte das tendências evita definir-se
exclusivamente em função de um único factor e admitem tanto a lógica
analítica quanto as questões de índole moral e o enfoque sociológico.
Assim, o trabalho jurídico sobre as relações entre o direito e a sociedade
levou à integração com outras disciplinas e à melhor compreensão da
influência dos factores económicos e sociais.

3.9. Direito hispano-português.

O Direito Hispano-Português procede directamente das fontes romano-


justiniana, germânica e canónica. O direito romano penetrou na
península ibérica no final do século III a.C. e se manteve em vigor até a
conquista dos visigodos, quando foi introduzida a duplicidade de
direitos decorrentes do princípio da personalidade das leis. A ocupação
muçulmana, a partir do século VIII, quebrou a unidade do reino
visigótico. Com a reconquista e o fortalecimento do poder real, surgiram
tentativas de unificar a legislação e a administração da justiça,
principalmente por meio do recurso de outorgar um mesmo foro a
diversas cidades.

Deu-se nessa época (fim do século XII e século XIII), antes na Espanha
e depois em Portugal, a recepção do direito justiniano e do direito
canónico, com interpretações e comentários elaborados pelos mestres
italianos. Essas novas fontes prevaleciam muitas vezes sobre os direitos
locais e eram reconhecidas como direito comum vigente, aplicado pelos
tribunais.

Começaram a surgir as primeiras tentativas de codificação no início do


século XV, de que foram sucessivamente incumbidos o chanceler João
das Regras, João Mendes Cavaleiro e Rui Fernandes. Com o falecimento

71
do rei D. Duarte, o príncipe-regente D. Pedro encarregou uma comissão
de ultimar e rever o trabalho realizado. Essa comissão concluiu sua
obra em 1446 e o código, denominado Ordenações Afonsinas, foi
promulgado nesse mesmo ano por Afonso V. Além de profundamente
impregnadas de direito romano e canónico, as Ordenações receberam
influência do direito espanhol, designadamente das Partidas. Dividem-
se em cinco livros: o primeiro contém normas de direito constitucional e
de organização judiciária; o segundo, uma compilação de concordatas; o
terceiro, normas de processo; o quarto, o direito civil; e o quinto, o
direito penal. Filipe II da Espanha, investido soberano de Portugal,
manteve separados os sistemas jurídicos dos dois países. Em 1595
ordenou a compilação de toda a legislação portuguesa com vista à sua
codificação.

As Ordenações Filipinas foram aprovadas por lei de 11 de Janeiro de


1603 e se tornaram imediatamente obrigatórias em terras de aquém e
além-mar. Seus cinco livros dispõem sobre direito público; privilégios
jurisdicionais, regalias e bens; processo civil e criminal; direito privado;
e direito penal. No direito peninsular ibérico estão igualmente as fontes
dos sistemas jurídico - brasileiro, cabo-verdiano e outros.

3.10. Sistemas Jurídicos Contemporâneos

O Direito nas sociedades contemporâneas pode ser classificado, acima


dos limites políticos dos estados, em alguns grandes sistemas jurídicos:
o ocidental, que abrange o direito continental europeu (ou do grupo
francês) e o direito anglo-americano; o muçulmano; o hindu e o chinês.
Limitemo-nos aqui a uma abordagem sumária do direito ocidental. Os
direitos dos estados que se incluem no sistema ocidental devem suas
linhas estruturais às mesmas concepções da tradição filosófica do
Ocidente, ao influxo dos princípios da ética cristã e ao predomínio da
ideologia liberal. A ordem jurídico-política baseia-se na noção de

72
direitos naturais e invioláveis, entre os quais a liberdade individual que,
em suas várias especificações, se erige em valor supremo da vida social.

Assenta-se ainda no princípio da soberania popular, no regime


representativo e no sistema pluripartidário, no dogma da supremacia da
lei, nos princípios da divisão dos poderes e da neutralidade do estado.
Na ordem económica, prevalece o princípio capitalista. Apesar dessa
afinidade fundamental, distinguem-se, no direito ocidental, um direito
continental europeu, ou do grupo francês, e um direito do grupo anglo-
americano.

3.11. O Sistema De Direito Continental Ou Romano-Germânico

No âmbito do direito continental europeu, situam-se os ordenamentos


jurídicos derivados do direito romano: inclui, na Europa, todos os
estados com excepção do Reino Unido e dos que integravam o bloco
soviético até 1991; a América Latina e, de certo modo, a África do Sul e
o Japão. Nos países do direito continental europeu (romano-germânico
ou da civil law), a característica fundamental do sistema jurídico é a
absoluta preeminência do direito escrito e, secundariamente, a
tendência para a codificação.

O próprio raciocínio jurídico se constrói sobre o pressuposto de que a


solução de qualquer controvérsia encontra-se numa norma geral criada
pelo legislador. A lei é a fonte do direito por excelência e o ideal jurídico
se expressa na identidade plena entre o direito e a norma jurídica.

Embora nesses ordenamentos a jurisprudência goze de considerável


autoridade, não constitui, a rigor, fonte do direito, pois uma decisão só
obriga nos limites do caso em que é proferida e não vincula outros
tribunais e juízes no julgamento de casos idênticos. Nesse grupo se
edificam os dois maiores monumentos da codificação do direito privado
moderno: o código civil francês de 1804, chamado Código Napoleão, e o

73
código civil alemão de 1900, que influenciaram os códigos civis da Itália,
Portugal, Espanha, Cuba, Brasil, Cabo Verde, entre outros.

Não se confunda Codificação (acto pelo qual se adopta um Código, isto


é, um conjunto sistematizado, generalizado e coerente de normas
jurídicas de um determinado ramo de direito) com Compilação (acto de
compilar leis, ou seja, um conjunto de leis que versam, de forma
autónoma, diversas matérias, mais ou menos afins, mas cuja
publicação conjunta visa facilitar, de algum modo, a respectiva a
divulgação).

O Código Napoleão inspira-se no sistema de Gayo (romano-francês), que


se divide em três partes: Pessoas, Coisas e Acções. Foi modelo para a
feitura de códigos nacionais por toda a Europa e não só (v.g. Brasil) e
sua influência somente foi mitigada com o surgimento do Código
alemão (BGB - Burgeliches Gesetzbuch), cerca de um século depois.

O Código civil alemão, que se inspira no sistema de Savigny, apresenta


cinco partes. Teoria da Relação Jurídica (parte geral), Direito de
Propriedade, Direito de Obrigações, Direito de Família e Direito de
Sucessões.

3.12. O Sistema Anglo-Saxónico ou de Common Law

O direito anglo-saxónico, anglo-americano ou de common law, na


esteira de, deve ser estudado nos seus dois sentidos históricos, a saber:

a) A concepção tradicional (melhor, talvez, seria dizer-se "concepção


inicial”), que prevaleceu até os primeiros anos do século XX, e que
ainda conserva prestígio residual;
b) O seu mais moderno significado.

O sentido tradicional do common law dos primeiros tempos é o de que


esse sistema se constituía de um conjunto de princípios de Direito
Natural do homem, de origem divina e, pois, anteriores ao Estado e à

74
sociedade e que o protegiam contra o despotismo dos reis tiranos. Os
juízes, portanto, não eram tidos propriamente como os “criadores” do
Direito, mas os seus “descobridores”, através de suas sentenças. No
máximo, portanto, se admitia que os juízes “criavam” o direito apenas
no sentido “formal” mas, não, “materialmente”, uma vez considerada a
decisão judicial como o único meio de efectiva concretização do direito.

Na hipótese de alteração dos precedentes judiciais, o que se dava eram


tão-somente meras rectificações de equívocos anteriores e, não, a
“criação” de uma nova regra substancial de direito. Tratar-se-ia de uma
“redescoberta” ou ampliação do conteúdo anterior, com a pretensa
revelação da autenticidade do direito substancialmente preexistente.

O sentido moderno de common law, diferentemente do “tradicional”,


traduz-se no facto de que o Direito é criado inteiramente pelos
tribunais, isto é, nos dois sentidos, não apenas formal mas, também (e

principalmente) material ou substancial, consoante o mais amplo e


preciso significado da expressão inglesa “judge made law”. A legislação
não é tida, portanto, como Direito autêntico, mas, tal como expressa
Roscoe POUND,“ como un intruso en el cuerpo del Derecho, la cual sólo
puede proporcionar reglas detalladas para los casos a que se refiere de
una manera expresa.”

É esta a tese que se manifesta na chamada doutrina da “rule of the law”


(“regra de Direito” ou, melhor, “princípio de direito”), assente numa
concepção, obviamente, jusnaturalista do Direito, além da experiência
jurídica, a justificar esse império do Direito. Por outras palavras, a ideia
moderna da supremacia do Direito, nomeadamente, a condicionar a
supremacia do Parlamento, desde que sob o comando do Direito (“under
the rule of law”), traduz um princípio jurídico de aplicação genérica,
reconhecido e aprovado pelas autoridades e comummente expresso em
forma de uma proposição lógica chamada “regra”, porque, em casos
imprevistos ou duvidosos, consiste num guia ou norma tanto para os
legisladores quanto para os juízes.

75
Quer dizer, a tese da “rule of law”, também denominada “a regra da
supremacia do Direito”, estipula que as normas gerais legislativas (leis)
e as normas individuais judiciais (sentenças) podem e devem ser
aplicadas, desde que não contrariem os reconhecidos e consagrados
princípios gerais do Direito.

Assim, dentro do chamado “mundo ocidental” (em sentido político-


cultural e não em sentido geográfico, obviamente), haverá apenas que
considerar duas famílias: a romano-germânica (ou da civil law) e a da
common law (muitas vezes chamada anglo-saxónica, mas a que outros
preferem chamar anglo-americana).

Escusado seria dizer que as remissões dos sistemas jurídicos realmente


existentes no mundo ocidental às duas famílias jurídicas definidas
podem não ser perfeitas. Há sistemas híbridos, no sentido de
apresentarem traços de mais de uma família, nomeadamente traços da
common law e da família romano-germânica.

Na realidade, a sociedade de informação em que vivemos, a par da


recepção no ordenamento jurídico dos países, de uma profusão de
normas de direito internacional, tende a fazer aproximar-se os sistemas
jurídicos no plano mundial. Esta é, efectivamente, um dos aspectos
mais marcantes da evolução do Direito moderno.

76
CAPITULO IV – O DIREITO COSTUMEIRO DO POVO UMBUNDU

Depois de uma longa e necessária marcha pelo Direito em geral e a


definição do Direito Costumeiro, é chegado o momento de então
entrarmos no âmago da presente cadeira. Antes dizer que o Costume, é
o conjunto de manifestações e formas materiais do agir, do fazer, do
executar dos seres humanos desde ex-ante, resultado da acção física da
criatura material do homem. 129

Ao falar do Direito Costumeiro estamos a nos referir ao direito cuja


fonte principal é o costume. E porque assim é, falando do
desenvolvimento histórico do Direito Costumeiro estamos a fazer uma
retrospectiva histórica da evolução do próprio Direito, de uma forma
geral, e do Direito Costumeiro, de uma forma particular, para ter uma
ideia geral do tratamento que tem merecido em cada época ao longo da
história da humanidade até aos nossos dias.

Debruçar-se sobre o Direito Costumeiro, directa ou indirectamente, é


falar do Direito das sociedades tradicionais que tem como sua fonte por
excelência é o costume. Não é um costume qualquer, mas dos bons
costumes, ou seja, dos princípios éticos pelos quais o homem desde
sempre regeu a sua vida social. Este é o corolário do dito latino “ubi
societas, ibi ius”. Surgem assim as leis, com a finalidade de impor que
uma determinada sociedade considera o Bem, estabelecendo uma
penalidade para aquele que não respeitar esse bem social.

Este direito das sociedades antiquadas tinha como sua fonte primária o
costume. Assim, “o costume predominou nas sociedades tradicionais,
estudadas hoje pela Antropologia do Direito; e foi historicamente de

129
CHICOADÃO. Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola. Luanda : Mayamba
Editora, 2015.

77
grande relevância, como matricial pano de fundo em que a lei e a
jurisprudência (formas voluntárias de criação jurídica) se foram
recortando e conquistando foros de cidade, nas sociedades europeias,
desde Roma até ao Iluminismo – tempo em que a codificação e a
legislação pátria das diversas «nações polidas e ilustradas» pretendeu
substituir-lhe como sistema tendencialmente total”.130

O homem vive do passado mas sempre aberto ao futuro. Por isso, na


medida em que o tempo foi passando, o homem foi tendo novas
necessidades e ao dar resposta a essas necessidades, foi
experimentando novas realidades até que inventou a escrita. Com a
invenção da escrita, alguns povos decidiram reduzir a escrito uma parte
do seu direito costumeiro, como exemplo o povo romano.

Uma parte do direito costumeiro, porque não é possível reduzir a escrito


todo o Direito, uma vez que este brota da vida diária de um povo e a
experiência mostra que a própria vida é mais rica em produção de
Direito que o direito escrito, pois este não previu todas as situações de
vida. “O trabalho de criação primordial da norma jurídica em Roma foi o
de uma estilização verbal e depois escrita do Direito, e este foi captado
através de um singularmente fecundo exercício de observação do real
social, (dos costumes), elegendo (ou reconhecendo) os primeiros juristas
como sendo de Direito, como constituindo relações justas, precisamente
os bons costumes”.131

Há povos que apesar de fazerem uso da escrita preferiram manter o seu


direito consuetudinário, a título de exemplo temos o povo Saxónico. Por
isso, na Inglaterra o direito costumeiro conserva grande influência
social. Todavia, a maioria dos povos foram contemplados pela escrita
propriamente dita muito tarde. Por isso, estes povos continuaram a
privilegiar o seu direito costumeiro e, consequentemente, o costume

130130
Neto, Pereira. Costume. Lisboa : Editorial Verbo, 1999. Vol. VIII.

131
Neto, Pereira. Costume. Lisboa : Editorial Verbo, 1999. Vol. VIII.
78
como sendo a principal fonte de direito até à era da colonização, entre
os quais salientamos os povos de África Negra, onde Angola faz parte.132

Com a redução de uma parte do direito costumeiro a escrito, da parte


dos romanos surge o direito legislado e com ele aparecem os códigos e,
consequentemente, as leis. Assim, o direito costumeiro começa a
conviver com o direito codificado e cada um subsidiando o outro naquilo
que se sentir insuficiente em termos de solução dos conflitos sociais.
Mas a dada altura o direito legislado começou a se impor ao direito
costumeiro até que este veio a ser afastado da sede das fontes de direito
por aquele definitivamente com a instituição de Estado, porque a partir
de agora a criação de Direito é da competência exclusiva do Estado. 133

Mesmo com esse monopólio do Estado da criação de Direito, o Direito


Costumeiro continua a vigorar quer nos meios urbanos quer nos meios
rurais. Apesar de não existir a convivência entre eles, no entanto nunca
deixaram de coabitar, porque o Direito Costumeiro “é uma forma
autónoma de criação do Direito que não carece de beneplácito ou
consagração legal e que subsiste independentemente de os Tribunais e
a Administração Pública serem chamados a aplica-lo”.134

Nos países do sistema latino-germânico o lugar do direito costumeiro


passa a ser ocupado pelo direito codificado e os costumes são relegados
para o segundo plano nas fontes de direito, porque a partir de agora a
fonte principal do direito é a lei. E com esta prevalência da lei sobre o
costume, dá-se rotura entre Direito Costumeiro e o Direito Legislado,
entretanto não a sua coexistência.

Estes países do sistema latino-germânico são as potências europeias


que posteriormente invadiram o mundo e ao encontrarem os povos

132
Fage, J. D. História da África. Lisboa : 70, 2010.
133
CUNHA, Paulo Ferreira da. Instituições de Direito. Coimbra : Livraria Almedina, 1998. p. 7.
134
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da. Teoria Geral ddo Direito Civil. Luanda : Faculdade de Direito,
2014.

79
indígenas por causa da sua cor, da sua cultura, da falta da escrita
pensaram que não eram seres humanos e se forem, não tinham
história, logo são povos sem civilização. Por isso, vendo a situação dos
povos indígenas, as potências colonizadoras consideraram-se
portadoras de uma cultura superior e com a missão de civiliza-los. Esta
sua superioridade cultural foi um dos principais argumentos utilizados
para o desprezo do direito dos povos indígenas. E mesmo o próprio
sistema de educação era utilizado para inculcar esta ideologia na
escola. Mas mesmo com essa imposição da sua cultura supostamente
superior, os povos indígenas nunca deixaram de se reger pelo seu
direito se não for de forma expressa, mas sim clandestina.

E mesmo quando estes povos alcançaram as suas independências


nacionais dos anos 50, 60 e 70 não erradicaram o direito das potências
colonizadoras, antes foram geralmente acompanhadas de uma recepção
material desde que não fosse contrário às suas Constituições. O s novos
Estados saídos dos processos de descolonização não encararam de
início com especial favor o Direito Costumeiro. Mas nos últimos anos
observa-se um acréscimo de interesse pelas instituições desse Direito, a
par de uma maior consciência da inviabilidade da sujeição das
comunidades locais a padrões uniformes de conduta.

É assim que, respeitando estas normas escritas na alma de cada


integrante da sociedade angolana, a Constituição da República de
Angola considera invocável e aplicável o costume na solução dos
conflitos sociais nos termos do seu Art.º 7º CRA. Com este
reconhecimento da força jurídica do costume, o Direito Legislado e o
Direito Costumeiro reconciliaram-se e a partir de agora para além de
coexistirem, passam a conviver, cada um ao lado do outro na solução
dos problemas sociais, visto que ambos são partes integrantes de
Direito Positivo e, consequentemente, da administração da justiça.

80
4.1. Etimologia da Palavra Costume

Etimologicamente falando o termo costume deriva da expressão latina


“consuetudo, inis”, de consuetudinário ou costumeiro que significa
usual, habitual, quotidiano, o dia-a-dia. Entretanto, para além deste
vocábulo latino, ainda deparamo-nos com uma outra palavra latina
“mor, moris” de moral que quer dizer hábito, obrigação.

Os dois termos derivam do Latim e ambos significam costume, porém


distinguem-se um do outro, porque a moral fundamenta-se na
obediência aos costumes e hábitos recebidos da tradição que provém do
acto de uma determinada autoridade. O conceito moral refere-se
somente às obrigações ou deveres sem os correspondentes direitos e é
de cunho religioso.135

O conceito consuetudinário ou costumeiro tem como substracto a ética


que procura fundamentar as acções morais exclusivamente pela razão.
O termo consuetudinário refere-se à obrigação que tem como seu
correlativo o direito subjectivo, isto é, estamos a nos referir à relação
jurídica cuja fonte é o costume na qual uma obrigação corresponde a
um determinado direito e vice-versa. E porque assim é, o conceito
consuetudinário é do cunho jurídico e é este conceito que aqui nos
interessa. De facto” os juristas romanos (assim como os juristas de
sempre) não foram observar simples factos sociais, simples
regularidades estatísticas. Mas procuraram comportamentos eticamente
correctos... E a dimensão ética positiva de tais acções ancoraram-na
numa dimensão sócio axiológica: a consciência geral da prática de tais
actos constituir obrigação”.136

Antigamente, o Direito baseava-se na consciência ética (fazer o bem e


evitar o mal),137 mas hoje para além desta, exige-se também a

135
All, Cassiano Floristan et. Dicionário de Pastoral. Porto : Perpétuo Socorro, 1990.
136
Neto, Pereira. Costume. Lisboa : Editorial Verbo, 1999. Vol. VIII.
137
LIBÂNEO, João Batista. A Ética do Quotidiano. São Paulo : Paulinas Editora, 2017. p. 5.
81
consciência axiológico-jurídica (não basta que estejamos diante do
valor, mas é preciso que este valor esteja tutelado pelo direito) de cada
comunidade susceptível de gerar o costume jurídico, a actuação na
convicção de se estar a agir segundo o Direito.138

4.2. A Noção do Costume

Cabe-nos, agora, estudar o costume,139 e ainda,140 também conhecido


por “norma consuetudinária”, que foi até ao séc. XVIII a principal fonte
de Direito, mas cuja importância decresceu com o andar dos tempos, e
se encontra nos dias de hoje bastante reduzida.

Na verdade, o costume resulta da conjugação de dois elementos


importantes como:

a) A repetição material de actos;

b) A convicção da sua obrigatoriedade.

Se tal conjugação não se verificar, estaermos perante um uso, e não um


costume. Com efeito, se ocorre o primeiro elemento, mas falta o
segundo, há apenas uso, o qual não é fonte de direito. O uso só se
converte em costume, quando existe a consciência da sua
obrigatoriedade jurídica. O costume resulta, portanto, da prática
repetida, cosntante, habitual, de certa e determinada conduta,
verificadas determinadas circunstâncias, assumindo-se como fonte de
direito quando essa conduta (esattuição) nessas circunstâncias
(previsão) se torna obrigatória.

Poderá, consequentemente, definir-se o costume como a “observância


geral constante e uniforme de uma regra de conduta social,

138
APEL, Karl - Otto. Ética e Responsabilidade ... Lisboa : Instituto Piaget, 2007.
139
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil - Reais. 5. Coimbra : Coimbra Editora, 1993.
140
ASCENSÃO, José de Oliveira. Introdução e Teoria Geral. Coimbra : Coimbra Editora, 2005.

82
acompanhada da convicção da sua obrigatoriedade por parte da opinião
comum.” Jà Freitas do Amaral, define, o costume como sendo, “a prática
habitualmente seguida, desde tempos imemoriais, por todo o povo, por
parte dele, ou por determinadas instituições, aos adoptar certos
comportamentos sociais na convicção de que são impostos ou permitidos
pelo direito”.141

O costume é um conceito que, embora mereça particular destaque no


campo de Direito, o seu estudo ultrapassa a simples perspectiva
jurídica. Aliás, apesar de ser metodologicamente uma ciência
autónoma, o Direito não pode prescindir do contributo de outras
ciências para clarificar os seus conceitos e atingir os seus objectivos por
força da necessária e indispensável interdisciplinaridade. Por isso, antes
de passarmos para uma noção de costume na literatura jurídica,
estudaremos a noção de costume apresentada pelos estudos
sociológicos.

4.3. Noção Sociológica do Costume

A Sociologia, ciência que se dedica ao estudo da sociedade, em todas as


suas manifestações, procurou fornecer certas noções de costume, o
qual identifica com a expectativa de comportamento e a conduta social.
Na visão sociológica, “cada indivíduo, ao nascer, encontra os costumes e
as instituições fixados que lhe impõem e lhe apontam regras de
conduta, modelos a imitar transmitidos pela educação social e que tem
a necessidade de tomar consciência deles, pode transgredi-los, mas não
ignorá-los, os quais constituem práticas variáveis no tempo e segundo
as épocas.142

141
AMARAL, Diogo Freitas do. Curso de Direito Administrativo, manual de Introdução ao Direito.
Lisboa : Almedina, 2004.
142
RIBEIRO, António J. Pinto. Dicionário de Socialogia. Lisboa : Dom Quixote, 1990.

83
Nesta vertente, a Sociologia define o costume como “uma norma de
conduta colectiva e obrigatória dentro de um grupo social, sendo a
conduta um comportamento humano auto consciente controlado pelas
espectativas de outras pessoas”.143

J. PEREIRA NETO, define o costume como “uma forma de


comportamento socialmente prescrita mantida pela tradição e reforçada
pela reprovação da sua violação”. Visto desta forma, o costume
apresenta uma relação com o que os sociólogos chamam de expectativa
de comportamento, que “consiste no que as pessoas ao redor do
indivíduo esperam dele, no que se refere à sua conduta em
determinadas situações sociais”.144

Esta espectativa de comportamento não consiste na habilidade de cada


indivíduo em agir diante de determinadas situações sociais, mas em
verificar se o indivíduo assimilou os comportamentos socialmente
aceites diante daquela determinada situação social, aliás cabe à
Psicologia estudar os comportamentos, ou seja, as respostas aos
estímulos e não é papel da Sociologia fazer tal constatação.

Nesta esteira sociológica, vemos que esta corrente do saber identifica o


costume com a maneira de ser, de viver e de sentir de um povo, hábitos
colectivos cuja assimilação processa-se com a simples inserção do
indivíduo naquele grupo social, variando, entretanto, de povos para
povos e de épocas para épocas. Passada a noção sociológica de
costume, embora de forma superficial mas que julgamos suficiente para
o estudo que pretendemos fazer, passamos, em seguida para a
perspectiva jurídica do costume, procurando comparar e analisar as
noções.

143
TELES, Maria Silvera. Sociologia para Jovens, Iniciação à Sociologia. 4. Petrópolis : Editora Vozes,
1997. p. 14.
144
FAICHILD, H. P. Costume, in Enciclopédia Luso-Basileira de Cultura. Lisboa, São Paulo : Editorial
Verbo, 1999. Vol. VIII.

84
4.4. Noção Jurídica do Costume

Invocado como fonte de direito em diversas matérias jurídicas


pertencentes quer ao Direito Privado quer ao Direito Público, o estudo
do costume tem merecido atenção de muitos doutrinadores e
professores de Direito. Os professores,145 ;146¸147 , dedicaram-se não
somente em formular uma definição precisa do costume, mas
estabelecer o seu lugar na matéria referente às fontes de Direito,
sublinhando os seus elementos, o que se torna difícil sem antes passar
uma noção.

Começando pelas definições por eles defendidas, já que o lugar do


costume como fonte de Direito merecerá uma análise nos próximos
pontos da nossa cadeira, veremos que em pouco divergem, concordando
que o costume representa uma prática social de observação obrigatória.
Assim, o costume como “prática social constante observada com o
sentimento de convicção de que é juridicamente obrigatória”148. Por sua
vez, Machado define-o como “uma prática social constante,
acompanhada do sentimento ou convicção da obrigatoriedade da norma
que lhe corresponde”.149 No entender de Prata “o costume é uma regra
não ditada em forma de comando pelos poderes públicos, mas
resultante de uso geral e prolongado e da existência da generalizada
convicção da conformidade dessa prática com o direito”.150

O costume apresenta-se assim como um conjunto de usos que ganham


um verdadeiro sentido de ordem jurídica, pois nasce num dado grupo

145
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 2011.
146
MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legistimador. Coimbra : Coimbra
Editora, 1988.
147
TELES, Inocêncio Galvão. Introdução ao Estudo do Direito. 11ª. Coimbra : Coimbra Editora, 2001.
148
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 2011.
149
MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legistimador. Coimbra : Coimbra
Editora, 1988.
150
PRATA, Ana. Dicionário Jurídico. 5ª. Coimbra : Editora Almedina, 2006.
85
social pela repetição de actos públicos e pacíficos durante um lapso de
tempo relativamente longo. Por esse facto,151 considera o costume como
“direito não escrito, introduzido pelos actos continuamente repetidos
dos membros da comunidade, os quais foram praticados publicamente,
sem contradição da maioria do grupo social, o tempo necessário para o
tornar obrigatório e deve ser razoável”. Observa o citado autor que aqui,
por ‘maioria do grupo social’ não se deve entender as modernas teorias
de metade e mais um, mas o que de facto é necessário para que o
costume se torne vinculativo é que “seja admitido pela grande maioria,
isto é, pela quase unanimidade do grupo social, pois é o consentimento
tácito do povo que justifica a força obrigatória do costume”.152

Para além destas definições, muitas outras poderíamos descrever,


apresentando, embora, cada uma delas linguagem divergente, mas
conteúdo convergente, pois todos os autores estão de acordo de que o
costume seja uma prática social constante, que se forma na vontade
social de forma inconsciente e involuntária e que ganha a convicção de
ser uma norma de observação obrigatória pelos membros da sociedade
em que vigora.

4.5. As Características do Costume

Numa análise do conceito de costume, constata-se que este caracteriza-


se pela espontaneidade comunitária, pela oralidade, pelo aspecto
conservador, pela evolução constante, pela coercibilidade mística ao
contrário da lei que se caracteriza pela voluntariedade, pelo escrito, pelo
espírito progressista, etc. A primeira característica do costume digna de
realce é a espontaneidade comunitária. Confrontando-o com a lei,

151
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. [trad.] António Manuel Hespanha e Manuel
Macaísta Malheiros. 6ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkiann, 2001.
152
Idem

86
veremos que o costume cria-se espontânea e inconscientemente no seio
da própria sociedade, porque ele não surge como vontade directa de
uma autoridade legislativa, mas sim, como “fruto das pulsões diárias do
grupo e da sociedade, sem necessidade de intervenção do poder político
do Estado.153

Trata-se de uma forma de criar o direito a partir da intuição, da


inspiração directa do próprio contexto ou da própria realidade social, da
ideia que se tem sobre a justiça da parte da sociedade. A sociedade cria
as suas normas jurídicas consuetudinárias não com base na previsão,
antevendo os factos, mas inspirando-se no contexto da própria vida que
a envolve, isto é, da práxis, dos factos quotidianos que ditam o próprio
direito. O costume provém da colectividade mas de uma forma
espontânea e inconsciente. Por isso, ele prende-se mais ao espírito geral
do povo enquanto a lei provém do órgão estatal e, por seguinte, está
ligada à uma instituição estatal.

Outra característica do costume é a sua evolução constante. O costume


tem um aspecto dinâmico, isto é, o costume está em constante
progressão rumo ao futuro. E é exactamente esta componente dinâmica
que faz com que o costume não esteja só virado ao passado, mas
também, aberto para o futuro, pois na medida em que o tempo vai se
desenrolando e, com ele os factos, vai se adaptando paulatinamente ao
meio social.

E graças a essa abertura ou adaptação que estará em condições de dar


solução aos conflitos sociais que vão se desfilando no seio da sociedade.
Mas para além da sua abertura ao futuro, o costume apresenta um
aspecto conservador, isto é, o costume prende-se à ordem social
herdada dos antepassados, ao melhor estilo de vida dos nossos
antepassados que deve ser conservado e transmitido de geração em

153
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da. Teoria Geral ddo Direito Civil. Luanda : Faculdade de Direito,
2014.

87
geração, porque constitui a condição sine qua non para a harmonia
social. A sociedade está consciente de que não veio do nada, mas sim, é
fruto do passado sobre o qual deve assentar o presente para melhor
esclarecer o futuro.

Por isso, ela ao querer estar ligada ao seu passado, ao que de bom os
seus antepassados fizeram procura manter uma relação umbilical
permanente conservando a ordem social herdada através da observação
dos bons costumes, porque estes costumes apresentam-se como sendo
relações justas pelas quais os membros da sociedade devem pautar por
uma questão da paz social. E sempre que se decidir alterar esta ordem
social por causa das exigências da própria evolução social, far-se-á no
sentido de manter aquilo que constitui a estrutura óssea dessa ordem
encontrada, porque só deste modo que está a se construir o presente
sobre o passado.

Ainda o costume caracteriza-se pela oralidade. Falando do costume,


directa ou indirectamente, estamos a nos referir à tradição oral, assim
como, falando da lei, ex professo, estamos a realçar a tradição escrita. É
que o próprio homem antes de utilizar a escrita, serviu-se da palavra e
só mais tarde passou a usar a escrita para transmitir o seu repertório
jurídico. Isso aconteceu com todos os homens do planeta Terra
independentemente do desenvolvimento actual socioeconómico,
científico-tecnológico, da sua localização geográfica de cada sociedade.

Por isso, desde sempre o homem negro-africano atribuiu à palavra um


lugar muito privilegiado no processo de comunicação e este lugar nunca
tentou substituí-lo por outro instrumento de comunicação, excepto nas
situações impostas pela própria natureza. Eis a razão pela qual a
tradição oral prevalece sobre a tradição escrita para ele, mesmo depois
de ter contacto com ela.

O homem negro africano desde sempre caracterizou-se pela tradição


oral e, mesmo com o evento da escrita, nunca perdeu de vista esta
característica que constitui a melhor forma de explicar e transmitir o
88
que lhe vai nas entranhas da sua alma. É por isso que para ele a
palavra é sagrada e é insubstituível, porque ela gera a vida e,
consequentemente, “é dinamismo, vivifica e consolida o grupo que a
recebe”,154 e faz com que os membros da sociedade “nunca esqueçam os
seus usos, ritos, crenças e costumes”.155

Finalmente, o costume caracteriza-se pela coercibilidade mágica que se


reflecte em três esferas:

a) A primeira é a religiosa onde se verifica o temor pelos poderes


sobrenaturais;

b) A segunda é a psicológica onde se salienta o medo pela opinião ou


censura pública e a última é a social que se traduz na sanção
efectiva imposta pela autoridade tradicional.

4.6. Os Elementos de Costume

Das definições apresentadas em linhas anteriores, os autores são


unânimes em deduzir dois elementos que constituem o costume:

a) Um elemento fáctico que é externo e quantitativo;

b) Um elemento normativo que é interno e qualitativo.

O elemento fáctico do costume, “é o uso que se verifica na prática social


reiterada ao passo que o seu elemento normativo é a convicção da
juridicidade que permite considerar que o facto permanentemente
repetido como normativo e obrigatório”.156

Os elementos constituintes do costume mostram como o mesmo se


forma na sociedade. Primeiro aparece o uso, quando um

154
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. 1985. Cultura Tradicional Bantu. Luanda : s.n., 1985. p. 88.
155
Idem
156
SOUSA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Coimbra : Almedina, 2012.
89
comportamento se torna habitual. Esta habitualidade resulta de uma
mera repetição e é dita apenas por fazer o que todos fazem. Depois
forma-se a convicção social, quando o hábito é acompanhado de uma
ideia de obrigatoriedade, sendo claro que os membros daquele grupo
social vêm-se forçados a observá-lo.

Porém, a ideia de obrigatoriedade não basta para que um facto repetido


seja considerado costume, pois, diz ele, esta convicção também está
presente na ordem normativa do trato social. Por isso, acrescenta ao
costume a convicção da sua juridicidade, ou seja, “forma-se um
costume quando cresce na comunidade a convicção de que o facto
social repetido e constante requer uma tutela jurídica”.157

Na mesma linha,158 é de opinião de que o costume seja composto por


um elemento externo, ao que chama corpus e que se traduz “na
observância generalizada e uniforme, com certa duração, de
determinado padrão de conduta em que está implícita uma norma” e
um elemento interno que denomina animus que é “a convicção de se
estar a obedecer a uma regra geral e abstracta obrigatória, caucionada
pela consciência jurídica da comunidade”.

Vemos então que a simples repetição de um facto ou comportamento


num meio social não faz o costume, pois este deve surgir não só do
facto, mas também da crença generalizada de que tal facto ou
comportamento é de observância obrigatória.

4.7. Os Tipos de Costume

O costume quando posto em relação com a lei, assume diferentes


modalidades, pois algumas vezes aparece a consagrar os mesmos
valores que a lei tutela, outras vezes consagra valores que a lei não
previu e, não poucas vezes, defende factos que são ‘abomináveis’ do

157
Idem
158
Machado, 1988

90
ponto de vista legal. Como consequência desta relação do costume com
a lei, teremos três tipos do costume que implicitamente já estão
presentes na expressão de159 quando diz que “os costumes são usos que
as leis não estabeleceram, ou não puderam ou não quiseram
estabelecer”. Neste prisma, apresentamos a seguir as modalidades do
costume genericamente aceites, seguindo de perto as pegadas de
Sousa.160

Na sua relação com a lei, segundo o costume apresenta as seguintes


modalidades:161

4.8. O Costume Secundum legem

Nesta modalidade do costume, verifica-se que existem situações em que


o costume e a lei, ou seja, o Direito Costumeiro e o Direito
Legislado/Positivo coincidem, porque cada um consagra valores que por
sua vez estão também reconhecidos por outro. Isto acontece quando a
lei regula uma matéria no domínio da qual já anteriormente vigorava
um costume e o faz segundo esse costume; assim é o caso da lei que
consagra o Natal e o Domingo como dias de descanso, a consagração da
própria vida como Direito Sagrado ou Divino.

O que acontece é que o legislador procurou regular a matéria segundo o


Direito Costumeiro, porque antes desta lei os referidos dias já eram
observados como dias de festejos e descanso pelo costume, ou seja, o
conteúdo do costume foi absolvido pelo conteúdo da lei. Como podemos
observar, o costume secundum legem é aquele em que a norma
consuetudinária coincide com a norma legal, ou seja, a lei consagra os
mesmos valores defendidos pelo costume e vice-versa.

159
MONTESQUIEU. O Espírito das leis. [trad.] Cristina Murachuco. São Paulo : Martins, 2000.
160
SOUSA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Coimbra : Almedina, 2012.
161
Idem

91
Nesta modalidade há entre o costume e a lei uma relação de
coincidência, unanimidade, pelo que o costume realiza apenas uma
função declarativa da lei e, reciprocamente.

E porque assim é, torna-se desnecessário questionar-se sobre a


juridicidade deste tipo de costume, uma vez que este está de acordo
com a lei e esta com aquele ao dirimir um conflito social.

4.9. O Costume Praeter Legem

Na vida há situações em que o costume vai para além da lei, o que quer
dizer que ele situa-se numa esfera jurídica não disciplinada por lei e
nem o seu conteúdo está absolvido por esta, mas também nem a
contradiz. Quando assim acontece, estamos diante do costume praeter
legem. O costume praeter legem é aquele que defende valores que estão
além daquilo que a lei dispõe sem, contudo, a contrariar. acha que nisto
o costume constitui um verdadeiro “complemento da lei”, integrando as
suas lacunas”.162

Daí que haja entre o costume e a lei uma relação de


complementaridade, porque a lei tem lacunas que reclamam pela sua
integração que far-se-á recorrendo a este tipo de costume. Falando do
costume praeter legem, directa ou indirectamente estamos situados no
primeiro extracto do sistema jurídico, onde estão os princípios
normativos que são supralegais e extralegais, isto é, estão acima do
direito legislado.

E porque assim é, situamo-nos no campo do dever ser de Direito que


enuncia uma intenção regulativa. Por isso, este tipo de costume
constitui fonte inesgotável no que diz respeito à criação de Direito.
Assim sendo, o legislador quando elabora a lei tem de se inspirar neles,
porque são postulados axiológicos.

162
SOUSA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Coimbra : Almedina, 2012.

92
Assim tem-se como exemplo o vertido Código de Família que acolhe o
casamento tradicional. Aqui está claro que o nosso legislador está a
lançar a sua mão ao costume praeter legem, quando está a consagrar
um dos institutos do Direito Costumeiro, concretamente o casamento
tradicional que obedece aos trâmites próprios, tais como: a promessa de
casamento (apresentação da família do futuro noivo à família da futura
noiva), o alambamento (entrega dos dotes ou bens patrimoniais no
momento do pedido) e o casamento propriamente dito. No caso de não
efectivação do casamento por razões subjectivas, a depender da parte
culpada, verifica-se a indemnização: ou se perde ou se restitui os dotes
entregues ou recebidos no momento de alambamento.

Pode-se ainda invocar mais outro já do âmbito do direito sucessório


costumeiro que é a eficácia do próprio testamento oral. Geralmente, os
mais velhos pressentem a sua morte e, por isso, na iminência desta,
eles convocam todos os membros da família para se despedir e durante
este acto o ancião aproveita expressar a sua última vontade que passa a
ser vinculativa após a sua morte no que diz respeito à partilha da
herança; à indicação do membro da família que depois do seu
desaparecimento físico vai velar pela unidade e resolução dos conflitos
familiares.

Tal como o costume secundum legem é fonte de Direito, assim também


o costume praeter legem é fonte de Direito, pois a experiência mostra-
nos que por causa da própria dinâmica social surgem situações novas
de vida que “não são objecto de uma regulamentação legal senão depois
de um longo período no decurso do qual o costume fixou as regras de
direito que lhes dizem respeito; muitas vezes o legislador não faz senão
constatar e dar forma legal às regras jurídicas que surgiram sob a
forma consuetudinária”.163

163
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. [trad.] António Manuel Hespanha e Manuel Macaísta
Malheiros. 6ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkiann, 2001

93
Entretanto, “é sobretudo em dois domínios não estatais que o costume
constitui ainda a principal fonte de direito: o direito infra-estatal e o
direito internacional ou supra-estatal”.164 O direito infra-estatal prende-
se “às regras de direito que são aplicadas no seio de grupos sociais em
cada Estado”, tais como: no Conselho da Ordem dos Advogados, dos
Médicos, dos Arquitectos, etc.

E no plano internacional, verificando-se “a falta de legislador


supranacional, o costume é e continua a ser a principal fonte de
Direito”. Que posteriormente uma parte dele foi reduzida a escrita sob
forma de tratado que só vincula os Estados-membros que geralmente é
visto por outros Estados como direito consuetudinário. Ex: o Tratado de
Viena de 1971. Já no direito do comércio internacional a codificação do
costume para os profissionais internacionais desta área é mais flexível
com relação aos tratados, porque permite “adaptações frequentes
segundo a evolução do costume” que resulta da própria dinâmica social.

Porque assim é, alguém pode, no silêncio da lei, invocar uma pretensão


jurídica com fundamento no costume praeter legem, ou seja, na
ausência de uma vontade normativa estatal, poder-se-á pretender do
Estado ou de um dos seus órgãos a tutela jurídica com fundamento no
costume praeter legem, pois estamos perante uma lacuna de lei, de um
lado, e, de outro lado, estamos perante um costume que o seu conteúdo
não está absolvido pela lei, mas também nem a contradiz, entretanto
consagra valores que podem ser invocados para suprir as suas lacunas
por exigência própria plenitude de Direito.

4.10. O Costume Contra Legem

No que diz respeito a terceira modalidade, o costume e a lei estão em


contradição. Assim, diz-se Costume Contra Legem, o costume que
contraria a lei, ou seja, consagra valores e factos que a lei considera

164
idem

94
inadmissíveis, havendo entre o costume e a lei uma relação de oposição,
o que implica, “o costume faça cessar a vigência da lei”, uma vez que o
costume contra legem “pode formar-se tanto quando há a consciência de
que a lei contrária está em vigor, como quando erradamente se formou
a convicção de que a lei contrária já tinha cessado a sua vigência”.165

Entretanto, nos termos do reconhecimento constitucional do costume


ao abrigo do art.º 7º da CRA é difícil falar-se do costume contra legem,
pois este tem como limites a Constituição da República de Angola e a
Dignidade da Pessoa Humana. De um lado, o costume tem como baliza
a Constituição da República de Angola por ser a Lei Fundamental sobre
o qual assenta o Ordenamento Jurídico Angolano que em momento
nenhum pode ser violada nem pela lei ordinária nem pelo costume,
salvo no estado de emergência, de guerra, de sítio.

O costume deve respeito e obediência à Constituição tal como a lei


ordinária sob pena de inconstitucionalidade. Por outro, o costume e a
lei ordinária têm como marco a própria Dignidade da Pessoa Humana
porque todo o direito é constituído por causa do homem.

Apesar da lei e o costume não poderem contrariar a Constituição sob


pena de inconstitucionalidade, isso não significa que a lei continua a
prevalecer sobre o costume na sede das fontes de Direito. Antes pelo
contrário, a lei e o costume estão em pé de igualdade como fontes de
Direito. A validade do costume como fonte de Direito não é determinada
pela lei enquanto ordinária, mas sim, pela lei enquanto fundamental
que constitui a base do Ordenamento Jurídico Angolano por uma
questão da segurança jurídica e unidade nacional. E porque assim é, a
lei e o costume encontram-se em pé de igualdade na sede das fontes de
Direito.

Mas mais uma vez chamamos a vossa atenção que quando estamos a
falar da igualdade do costume com a lei na sede das fontes de Direito, é
165
MONTESQUIEU. O Espírito das leis. [trad.] Cristina Murachuco. São Paulo : Martins, 2000.

95
preciso ter em conta a hierarquia da própria lei. Segundo o que nós
aprendemos na cadeira de Introdução ao Estudo de Direito que se dá no
primeiro ano da Faculdade de Direito e durante a nossa formação, a lei
está escalonada: primeiro está a Constituição da República de Angola,
segundo está a lei ordinária e sucessivamente.

No entendimento de Sousa sempre que a lei fundamental admitir o


costume como fonte de Direito, estaremos perante o costume contra
legem, que nesta situação é considerada fonte imediata, pois “a lei não
pode referir ao costume secundum legem, uma vez que aqui a regra
jurídica consuetudinária e a regra jurídica legislada são coincidentes,
não sendo possível que a lei tome posição sobre o costume. Também
não se refere ao costume praeter legem, porque este supre as
insuficiências da lei. Porém, embora a lei também não faça referência ao
costume contra legem, essa omissão permite concluir que esse costume
seja fonte imediata”.166

Nós achamos que aqui tem de se fazer a interpretação do art.º 7º da


CRA não só considerando a letra mas também e, sobretudo, o espírito
desta, porque seria absurdo o legislador se referir ao costume secundum
legem como fonte de direito, uma vez que há coincidência nem ao
costume paeter legem, uma vez que este “supre muitas vezes as
insuficiências dos textos legais”.167

Por isso mesmo, estamos no mesmo diapasão com168 quando afirma


que o costume referenciado como fonte de direito nos termos do art.º 7º
C.R.A. não é o costume secundum legem nem o costume praeter legem,
mas sim o costume contra legem. Entretanto, Sousa tem sobre o
costume contra legem. Segundo este autor o costume que está
consagrado pela Constituição da República de Angola como fonte de

166
(Sousa, 2012),
167
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. [trad.] António Manuel Hespanha e Manuel
Macaísta Malheiros. 6ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkiann, 2001.
168
SOUSA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Coimbra : Almedina, 2012.
96
Direito, é o costume secundum legem e praeter legem e não o costume
contra legem, porque este está abertamente afastado pelo nosso
Ordenamento Jurídico Angolano, pois “admitir-se a validade a esta
forma do costume como fonte de direito, isso significaria que a lei
pudesse ser revogada por um costume que lhe fosse contrário.”.169
Entre as duas teorias acima referenciadas, perfilhamos a teoria
apresentada por segundo a qual o costume contra legem é fonte
imediata de direito, porque nós entendemos que “nem todo o Direito é
escrito e que ao lado do Direito estadual escrito existe um Direito
estadual não escrito, costumeiro ou consuetudinário”.170

Além disso, nós reconhecemos que podem existir leis injustas razão
pela qual o costume contra legem não pode ser afastado da sede das
fontes de direito, porque apresenta-se como um mecanismo à
disposição da sociedade para que esta se oponha às leis injustas do
poder político.

Nesta ordem de ideias, “assim como uma lei pode revogar um costume,
também este pode fazer cessar a vigência de uma lei que lhe seja
contrária”,171 ou melhor, “o costume tem o mesmo valor que a lei como
fonte de direito e que, consequentemente, pode derrogar uma disposição
legislativa caída em desuso”.172

Ainda o costume pode fazer cessar a vigência de uma lei que permite o
casamento do tio com a sua sobrinha, parentes da linha colateral do
terceiro grau, porque esta lei vai contra o costume que proíbe este tipo
de casamento, uma vez que o tio é a primeira família na nossa cultura
e, consequentemente, quando a sobrinha tem problemas de qualquer

169
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da. Teoria Geral ddo Direito Civil. Luanda : Faculdade de Direito,
2014.
170
SOUSA, Miguel Teixeira de. Introdução ao Direito. Coimbra : Almedina, 2012.
171
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 2011.
172
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. [trad.] António Manuel Hespanha e Manuel
Macaísta Malheiros. 6ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkiann, 2001.
97
índole, ele é o primeiro a saber e a aparecer para dar a respectiva
solução.

Assim, este direito estadual escrito que admite o casamento das


pessoas da linha colateral, isto é, entre o tio e a sobrinha contrária o
direito costumeiro e, por isso, este o reprovam energicamente. Esta
reprovação da parte do direito costumeiro corresponde à revogação da
lei que admite aquele tipo de casamento. Estamos perante “uma
consequência do conceito do próprio direito, pois um direito válido em si
mesmo, está destinado adquirir a efectiva vigência como forma de vida
social e o não cumprimento espontâneo do mesmo põe em perigo a
subsistência do mesmo direito”.173

Na verdade a Constituição da República de Angola consagra o


pluralismo jurídico, mas na prática ainda não se começou a dar os
primeiros passos ou se estão a ser dados é de uma forma tímida rumo a
efectivação deste desiderato, porque ainda estamos imbuídos da
perspectiva tradicional que consagrava a lei como fonte única de Direito
cujos resquícios vão levar muito tempo para desaparecer na nossa
consciência colectiva jurídica.

Por isso, no estudo do direito costumeiro, temos uma pujante tarefa de


ajudar a sociedade para mudar de mentalidade em termos da cultura
jurídica, concretamente ao que diz respeito às fontes de Direito no
sentido de não se considerar só a lei, mas também o costume, porque
ambos são fontes de Direito e estão em pé de igualdade e,
consequentemente, cada um pode revogar o outro. A revogação do
costume feita pela lei pode ser expressa, entretanto a revogação da lei
pelo costume por regra é tácita, na medida em que o costume pode fazer
com que a lei se torne uma letra morta (desuso) ou a lei deixe de ser
aplicada, “formando o direito morto”, porque estamos diante de um
verdadeiro costume jurídico.174

173
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 2011.
174
GILISSEN, John. Introdução Histórica ao Direito. [trad.] António Manuel Hespanha e Manuel
98
Mas atenção nem sempre o não cumprimento de uma lei é sinónimo da
sua extinção ou da sua revogação, pois “as autoridades podem tolerar
longamente a circulação de motociclistas sem capacete, ou a travessia
das ruas por peões fora dos lugares assinalados. Com isto a lei não
cessou a sua vigência; só cessará se se criar a convicção de que é lícito
proceder assim, portanto, se se formar um verdadeiro costume contra
legem”.175

2.4.7. AS FIGURAS AFINS DO COSTUME

No vasto domínio em que se entrecruzam a Etnologia, Antropologia


Cultural e a Sociologia, a definição do costume pode ser confundida
com algumas figuras que lhe são muito próximas ou que com ele pareça
constituir uma família. Para se evitar cair neste equívoco, vamos
confrontar o costume com algumas figuras como:

4.11. A Tradição

O costume distingue-se da tradição, pois esta “tem a sua origem num


acto de Autoridade T radicional e representa os aspectos culturais,
materiais e espirituais transmitidos oralmente de geração em geração
através de hábitos, usos e costumes”, A tradição é o conjunto de bens
culturais que se transmite de geração em geração no seio de uma
comunidade. Trata-se de valores, costumes e manifestações que são
conservados pelo facto de serem considerados valiosos aos olhos da
sociedade e que se pretende incutir às novas gerações, sem que se
reservem sanções para quem não a seguir, porque está despida da
convicção de juridicidade.176

Macaísta Malheiros. 6ª. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkiann, 2001.


175
ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil - Reais. 5. Coimbra : Coimbra Editora, 1993.
176
Neto, Pereira. Costume. Lisboa : Editorial Verbo, 1999. Vol. VIII.

99
A tradição, por conseguinte, é algo que se herda e que faz parte da
identidade cultural e social. A arte característica de um grupo social,
nomeadamente a sua música, as suas danças, os seus contos e
provérbios, faz parte do que é tradicional.

A tradição não se confunde com o costume, pois representa apenas a


transmissão deste e de outros valores sociais. Muitos dos costumes
reinantes em determinados meios sociais a sua transmissão é feita por
meio de certas cerimónias tradicionais. É o que sugere o verbo latino
tradere que significa “entregar ou passar adiante”. O termo tradição é
polissémico, pois inicialmente significa transmissão oral de factos,
lendas e costumes. Para além deste, ela pode significar o conjunto de
comportamentos e costumes de um povo.

Na língua umbundo, tradição significa ovisila vy’akulu, utunda


tch’auhulu, isto é, o legado ou o que se recebeu dos antepassados, dos
mais velhos sobre o qual nos apoiamos no presente e perspectivamos o
futuro. A título exemplificativo, temos: a iniciação masculina e
feminina; a educação do ondjango e do otchiwo; a degolação da cabeça
do rei após a sua morte que é transportada para os akokoto; a
legitimidade do soba que decorre da sua linhagem; os rituais da sua
entronização; o seu reinado é vitalício o que quer dizer que só é
substituído após a morte; o soba ter várias mulheres; na análise de
uma questão dar sempre a primeira palavra ao mais velho; etc.

Confrontando os dois institutos, verificamos que a tradição é o


continente na medida em que é o meio pelo qual são transmitidos os
valores culturais, entre os quais o próprio direito costumeiro, pois este
não passa da manifestação de uma das partes integrantes da cultura de
um determinado povo. E porque assim é, a tradição e o costume são
realidades indissociáveis, porque a tradição é o canal de transmissão e
o costume é um dos conteúdos transmitidos pela tradição.

Porém, quando falamos de tradição não se trata da repetição das


mesmas sequências nem traduz um estado imóvel da cultura que se
100
transmite de uma geração para outra, porque a actividade e a mudança
estão na base do conceito de tradição, pois os valores que se tornam de
consumo público passam sempre, nem que seja apenas por instantes,
pelo indivíduo, quer dizer que, em África o indivíduo e a sociedade
constituem um facto e estão numa relação permanentemente
indestrutível. Nesta relação o indivíduo não é um simples consumidor
da cultura colectiva, mas também dá um sentido a tudo o que recebe,
realiza e produz. A tradição é sinónima de actividade, dinamismo e não
de retrocesso, algo estático.

4.12. A Cultura

Quando falamos da cultura, a primeira ideia que se tem prende-se ao


conjunto dos escritos dos diversos autores que define o campo cultural
que o homem culto tem necessariamente de conhecer e dominar. Mas
tratando-se da África torna-se necessária a mudança de metodologia, a
componente em matéria de cultura desloca-se do escrito para o oral. O
vocábulo cultura resulta do acto de cultivar que significa desenvolver,
educar e quem cultiva, cultiva sobre alguma coisa, sobre a terra, tem
algo que lhe serve de apoio sobre o qual vai desenvolver a sua
actividade, as suas qualidades.

Esta base não é outra coisa senão a tradição, o legado, o que se recebeu
dos antepassados sobre o qual vai se desenvolver, cultivar as
qualidades posteriores quer físicas quer espirituais. A cultura assenta
sobre a tradição, apesar de esta ser mais restrita que aquela. Se a
tradição provém do acto da autoridade tradicional e está despida da
juridicidade e da sanção, já a cultura é a manifestação popular que
pode estar ou não acompanhada pela juridicidade e sanção, ex. o
costume, o carnaval, o tchigandji, a cavyula, etc… Como uma
manifestação popular, a cultura pode-se confundir com o costume,
embora sejam completamente diferentes.

101
A Sociologia define a cultura como “forma comum e aprendida da vida
que compartilham os membros de uma sociedade e que consta da
totalidade dos instrumentos, técnicas, instituições, crenças, motivações
e sistemas de valores que o grupo conhece”.

Quanto aos instrumentos culturais, temos: o batuque, a zagaia,


palhaços, os livros, a enxada, anzol, música, pintura, teatro,
indumentária de culto, etc…

Com relação às técnicas, temos: a técnica de pesca, de cultivar a terra,


de cortar o cabelo, de atravessar o rio, de enfrentar um animal feroz, de
resolver os problemas de diversas naturezas, etc… No tocante às
crenças, temos: a religião, os akokoto, os atambo, adivinhos, etc… No
que diz respeito às motivações, temos: os sonhos, os projectos, as
ideias, ansiedades, força interior, o animus, etc.

No que concerne ao sistema de valores, temos: as próprias ordens


sociais, tais como: a ordem moral, de trato social, jurídica (costume),
religiosa, etc… Quanto às instituições, temos: o casamento, a família, a
autoridade tradicional, o poder paternal ou maternal sobre os filhos, a
propriedade (mobiliária), a sucessão, diversos contratos (troca,
empréstimo), o ondjango, o otchiwo, etc…

A cultura distingue-se assim do costume, pois enquanto este aparece


para regular a vida em sociedade, aquela surge como um movimento de
educação social por meio de danças, cânticos, teatros e outras formas
de manifestação popular. A cultura aparece como um meio pelo qual se
procura transmitir alguma mensagem, quer esta vincule como uma
norma válida e obrigatória para o meio social (costume), quer surja
apenas como uma forma apta de diversão, quer como um bom hábito
para a garantia de boa saúde.

O conceito de cultura é mais abrangente que o de costume, pois aquele


vai da religião ao quotidiano banal, isto é, envolve as práticas religiosas,
as produções artísticas, a transformação da natureza, as produções da
oralidade, os jogos enquanto o costume é mais restrito, porque prende-
102
se exclusivamente com a norma jurídica que visa disciplinar a vida
social do homem e constitui uma das componentes culturais. Portanto,
a cultura pode ser um veículo de transmissão do costume, mas não o
costume em si.

4.13. Os Usos

Noutra perspectiva ao lado costume aparecem os usos elemento com


que o costume se pode confundir. Com efeito, o capítulo que o Código
Civil Angolano dedica às fontes de Direito não faz referência ao
costume, mas fá-la aos usos. Diz o nº1 do artigo 3º do Código Civil
Angolano que “os usos que não forem contrários aos princípios da boa-
fé, são juridicamente atendíveis quando a lei o determine”. Há tentação
de se interpretar esta disposição legal no sentido de atribuir à expressão
“usos” o mesmo valor ou sentido que se dá ao costume. Entretanto,
deve-se evitar tal tentação, embora os dicionários de Língua Portuguesa
apresentem os dois termos como sinónimos. Tal sinonímia linguística
não se aplica à questão doutrinária.

Os usos, são o conjunto de manifestações e formas espirituais do Ser,


do Pensar, do Estar, da Crença, do Falar e do Sentir dos seres humanos
desde ex-ante, resultam da acção psíquica, criadora e de crença da
Criatura Espiritual de que o homem está revestido.177

Ainda para evitar esta confusão, faz a distinção entre costume jurídico,
usos sociais e usos convencionais. Para aquele autor, “o costume
jurídico atende a aspectos emergentes e funcionais do Direito, seus fins
de resguardar a segurança e a estabilidade das relações sociais, bem
como o superior desiderato representado pela ideia de justiça.178 Os

177
CHICOADÃO. Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola. Luanda : Mayamba
Editora, 2015.
178
Rocha, Olavo Acyr de Lima. O Costume no Direito Privado. Rio de Janeiro : Edições Universitárias,
103
usos sociais são as simples regras de etiqueta, de cortesia, de moda que
não são obrigatórias do ponto de vista de Direito. Já os usos
convencionais são usos da actividade negocial, encontrados no
comércio, isto é, as práticas gerais, locais ou profissionais informais,
irrigadas da boa-fé e que contribuem para interpretar e completar a
vontade das partes”.

No que diz respeito ao costume jurídico, temos como exemplo: respeito


pela propriedade privada (tchamãle tch’alinga heti mbandje,
katchalingile heti ñguate); a vida é o bem jurídico absoluto (a mwenho
twende, epako sala); presunção de inocência ou in dúbio pró reu (omunu
vakwatala epya, kavakwatala ondjila); na solução dos conflitos sociais
a justiça prevalece sobre a família (twamelã esunga, katwamela epata),
etc… Quanto aos usos sociais, temos as simples regras de etiquetas ou
cerimónias no local público: a forma de saudar as pessoas, de se vestir,
de se relacionar com os mais velhos, de ceder lugar a uma senhora
grávida ou ao mais velho no transporte público, de atender a visita,
etc…

Concernente às regras de cortesia, temos: saudar as pessoas, levantar-


se quando o professor entra na sala de aula, sair do caminho quando
estiver a fazer o encontro com o mais velho, dar prioridade às pessoas
idosas nos locais públicos, pedir licença ao entrar ou ao sair da sala de
aula, tirar o chapéu da cabeça ou as mãos da algibeira sempre que
estiver com o superior, não pisar a sombra do mais velho sempre que
estiver ao seu lado, etc.

No que diz respeito às regras de moda, temos: vestir-se desta ou


daquela forma, desta ou daquela roupa, etc… Como podemos constatar
as simples regras de etiqueta, de cortesia, de moda falta-lhes o elemento
animus que faz com que estas regras deixem o estatuto de mero facto e
passem para a categoria de costumes jurídicos. Elas não são

2000.

104
obrigatórias como tal, mas o seu não cumprimento despoleta censura
da parte dos membros da comunidade.

Os usos convencionais assentam sobre o princípio de boa-fé que é


muito evidenciado no comércio. Por isso, por uma questão de confiança,
o empresário pode fornecer o produto ao cliente que de momento carece
de recursos financeiros que poderá pagá-lo posteriormente tão logo
consiga os mesmos. Estamos perante uma relação de clientela que se
baseia no princípio de boa-fé, de confiança que carece a convicção de
obrigatoriedade no sentido de que o vendedor não está obrigado a dar o
produto sem o respectivo valor, mas fá-lo porque entre eles é prática
reiterada o cliente levar o produto e pagar depois sempre que este
estiver desprovido de recursos.

Em linhas anteriores fizemos referência ao costume, passando algumas


definições consensuais. A partir daquelas, podemos definir os usos
como práticas sociais constantes e reiteradas. Vemos assim que os usos
constituem apenas o elemento externo do costume. É o facto social
reinante na sociedade, faltando-lhe, entretanto, a convicção de
obrigatoriedade e juridicidade. É este segundo elemento interno, que,
chama de animus, que os distingue do costume.179 Os usos têm apenas
ou são apenas o corpus. Os usos resultam e podem ser invocados no
âmbito de uma relação negocial, de uma convenção, ao passo que o
costume impõe-se por si, tornando-se a sua observância obrigatória
para os membros da sociedade.

179
MACHADO, João Baptista. Introdução ao Direito e ao Discurso Legistimador. Coimbra : Coimbra
Editora, 1988.

105
CAPÍTULO V - AS AUTORIDADES TRADICIONAIS E O PLURALISMO
JURÍDICO

Para o presente capitulo contamos com o prestimoso contributo do


material retirado da obra de MAIA, Ana Clara de Araújo, Direito
Consuetudinário E Efetivação Dos Direitos Humanos Das Mulheres
Na África Lusófona: Uma Análise À Luz Do Pluralismo Jurídico E
Do Neocolonialismo, Luanda, 2020

A quem desde já agradecemos a diposição da sua tese nas grandes


plataformas de pesquisa científica presentes no mundo moderno. Diga-
se que, no intuito de se ter êxito no controlo dos novos espaços sobre
os quais pretendiam exercer influência, os portugueses precisaram
formar alianças políticas bem-sucedidas. Essas alianças haveriam de
ser formadas com os detentores de poder no período antecedente ao
colonialismo.

Por todo o território do continente africano, como também já esboçado,


estruturas prévias de organização social já existiam, bem como todas as
consequências inerentes ao convívio humano — guerras, conflitos,
casamentos, separações, normas, rituais, penalizações, direitos e
deveres. Com a vastidão do continente africano, é de se verificar sem
dificuldade que cada região, cada povo funcionava conforme as
diretrizes estabelecidas para aquele recorte territorial específico, e para
a uniformização das condutas era necessária a existência de um líder
que exercesse controle e autoridade até o limite da sua zona de atuação.

A política nacionalista africana convencionou chamar essas figuras de


autoridades tradicionais, atribuindo à palavra derivada de “tradição”
um significado equivalente a dizer que essas autoridades existem desde

106
muito antes do colonialismo, a ele foram capazes de sobreviver e até
hoje permanecem influentes na cultura de África. Em síntese, são
instituições pré-coloniais e que sobreviveram aos “contágios do
colonialismo”.180

Assim as Autoridades Tradicionais são estudadas, bem como a


consequência mais evidente da sua inegável influência, num Pluralismo
Jurídico pulsante em África e que traz efeitos imediatos à qualidade de
vida dos africanos. Até agora ainda é difícil chegar a um consenso sobre
a melhor definição do que seriam precisamente as Autoridades
Tradicionais. Tudo isso porque, mesmo dentro de um país, em
diferentes províncias, às Autoridades Tradicionais podem ser atribuídos
conceitos distintos.

A literatura, Portugal não adoptou um sistema hermético e bem definido


no momento de estabelecer relações de controlo perante as suas
colônias. Na verdade, as atitudes jurídico-coloniais de todas as nações
europeias empenhadas no projecto colonialista não eram rigidamente
obedientes a uma fórmula específica. O indirect ruling, atribuído
geralmente à colonização britânica,181 também foi praticado em certos
momentos pela administração portuguesa — mesmo que assim não o
nomeasse. Portanto, houve uma alternância na maneira que se buscava
introduzir as autoridades tradicionais nas estruturas de poder
organizadas pela metrópole.

Em um primeiro momento, foi empregado o método da cooptação,182


através do qual alguns chefes foram acomodados pelo poder tradicional,
numa tentativa de transformá-los em representantes locais da

180
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p.35
181
GUEDES, Armando Marques. The State and Traditional Authorities’ in Angola: Maping Issues. In: State
and Traditional Law in Angola and Mozambique. Org: Armando Marques Guedes e Maria José Lopes.
Editora Almedina, 2007, p.22
182
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p.3

107
administração colonial. Entretanto, nos territórios mais afastados do
centro — onde a influência dos colonizadores não era capaz de chegar
com tanta facilidade —, as autoridades tradicionais exerciam o seu
domínio sem participação ativa do poder público, assumindo funções
administrativas de maneira mais independente e desvinculada do poder
central.

Sendo assim, as áreas menos urbanas eram relativamente mais


autónomas, em grande parte pela incapacidade da administração
colonial em cobrir todo o território que intentava ocupar. Por isso
mesmo, como dito acima, é certo dizer que o indirect ruling também fez
parte da atitude jurídico-colonial portuguesa. Essa dificuldade do poder
central em se conectar à vastidão do continente africano a nível local é
notória não apenas àquela época, mas ainda é determinante para
verificar a influência das autoridades tradicionais mesmo no contexto
do pós-independência.183

A partir do momento em que se encontram essas duas diferentes fontes


de poder, fica evidente que há um processo assimilatório, através do
qual nenhuma das duas estruturas prévias volta à sua conformação
original. O conflito gera uma expressão de autoridade híbrida, sendo
difícil determinar se aqueles atos são oriundos de uma convicção ou
norma anterior ou se são produto de uma influência do outro. É nesse
sentido que se fala na expressão “Invenção da Tradição”, cunhada pelos
historiadores Eric Hobsbawm e Terence Ranger, para fazer referência a
uma possível manipulação do que seria “tradicional” a fim de servir aos
ideais colonizadores. Para que novos actores pudessem ser recebidos na
sociedade em que se buscavam se inserir, precisavam fazer com que a
sua contribuição e influência fossem validadas pelos costumes, pela
ancestralidade e, inclusive, muitas vezes, pelo sobrenatural.

Assim, introduzem a ideia de que agem em conformação com o que é


certo e comumente aceito naquele meio social. Essa foi uma estratégia

183
(ibidem, p. 19).

108
amplamente usada pelos governantes colonizadores em África que
desejavam exercer controle sem que fosse necessária uma constante
expressão de força militar,184 o que implicaria em gastos exorbitantes
(com os quais Portugal não podia arcar) e dispêndio de energia que
poderia ser direcionada à efetivação da missão civilizatória.

Foi com essa ideia que chegaram à conclusão de que precisavam de um


grupo de apoiadores fiéis, com os quais pudessem contar e confiar,
oferecendo uma troca de benefícios que fosse tentadora o suficiente
para não ser negada. Ofertavam a manutenção do poder dos chefes
tradicionais, ao mesmo tempo em que continuavam dando instruções
de como proceder em acordo com os objetivos da metrópole. De modo
geral, a abordagem de Hobsbawm sobre a invenção da tradição foi
desenvolvida com maior atenção às colonizações empreendidas pelo
império britânico, mas algumas observações gerais podem ser
alastradas para as experiências em outros países do continente.
Importa compreender que, em um primeiro momento, houve uma
interpretação equivocada de como a África pré-colonial relacionava-se
com o costume.

Havia, sim, valorização à continuidade e aos ritos costumeiros, mas a


flexibilidade e maleabilidade podia ser maior do que pensavam.

O costume ajudava na criação de uma noção de identidade, mas não


era sinônimo obrigatório de algo “imemorial e demasiado antigo” —
também permitia uma adaptação suficientemente espontânea e
natural.185 Isso foi confirmado por uma ampla gama de estudos
voltados à África do século XIX, os quais demonstram que a sensação
de pertencimento a apenas uma tribo, a obediência a um só chefe, o
cumprimento exclusivo a um ritual ou passar a vida inteira como
membro de um único clã não eram regra, e podia haver mudanças

184
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. The Invention of Tradition. Cambridge University Press,
1983,p. 229
185
(ibidem, p. 247).

109
nessas condições ao longo da vida de um indivíduo — muitas vezes,
inclusive, as transformações eram provocadas pela necessidade de
adaptação a novas situações criadas pelos processos colonialistas.

Afinal, antes de iniciada a ocupação efetiva pelo imperialismo colonial


do século XIX, muitas situações que obrigavam à adaptabilidade já se
verificavam no continente africano, especialmente pelas migrações e
interações comerciais entre África, Ásia e Europa intensificadas no
processo de tráfico de cidadãos escravizados.186 Confirmando o ponto de
vista de Hobsbawm e demonstrando que ele também se aplica à África
lusófona, referencia Boaventura de Sousa Santos em estudos voltados a
Moçambique que desde o século XV a África já sofria um processo de
sujeição à globalização de maneira involuntária, ocasionada pelas
intervenções do Ocidente que obrigaram a muitos reajustes
estruturais.187

Nesse sentido, a África pré-colonial não se caracterizava pela falta de


competição social e econômica interna, pela autoridade incontestada
dos anciãos, pela aceitação de costumes que davam a cada pessoa —
jovem e velha, homem e mulher — um lugar na sociedade que era
definitivo e protegido para sempre sob qualquer circunstância.
Competição, movimento, fluidez eram tanto características de
comunidades de pequena escala quanto grupos de maiores
dimensões.188 Essa adaptabilidade percebida começou a ser um
problema para os europeus, que se esforçaram para tentar implementar
uma maior rigidez e definição social, a fim de criar um contexto de
maior obediência às hierarquias que desejavam estabelecer. Já no início

186
PATRÍCIO, Ana Marta Esteves. Dinâmicas do Pluralismo Jurídico em Moçambique: estudo de caso do
distrito de Mossurize. Tese de Doutoramento em Estudos Africanos. Instituto Universitário de Lisboa,
2016, p. 64
187
SANTOS, Lurdes Maria Lima Viegas Pires dos. A igualdade de género em São Tomé e Príncipe: entre a
realidade e a utopia. Dissertação de Mestrado em Estudos Sobre as Mulheres – Gênero, Cidadania e
Desenvolvimento. Universidade Aberta, 2015, p.42
188
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. The Invention of Tradition. Cambridge University Press, 1983,
p.248

110
do século XX, os processos de imobilização de populações e de reforço
da etnicidade foram as consequências da mudança econômica e política
colonial — do rompimento dos padrões internos de comércio e
comunicação, da definição de limites territoriais, da alienação de terras
e do estabelecimento de reservas.

As autoridades coloniais desejavam restabelecer a ordem e a segurança,


pois julgavam ser o meio mais eficaz de conter revoltas e reivindicações.
Foi nesse ínterim que passaram a reforçar ainda mais a importância
dos chefes tradicionais, os quais foram politicamente manipulados para
supervisionar as estruturas administrativas criadas pela metrópole,189
responsáveis pela criação de uma sociedade profundamente dual e
racializada. A integração das autoridades tradicionais à estrutura do
aparelho administrativo português foi oficializada com a elaboração da
Reforma Administrativa Ultramarina (1933) a qual definiu a divisão
administrativa das então colônias portuguesas e o modelo de
subordinação do Estado colonial,190 além de viabilizar o modelo de
exploração visado pelo projeto colonialista.

Em menção específica ao contexto das ex-colônias portuguesas, aqui


em especial referenciadas Angola e Moçambique, esse comando foi
notado mormente pela supervisão de cumprimento às determinações do
já aludido Estatuto do Indigenato, responsável, dentre outras coisas,
por estabelecer a evidente divisão entre os cidadãos europeus, que
podiam ser protegidos pelas leis portuguesas, e os indígenas, nativos
que eram sujeitos à legislação colonial.

As autoridades tradicionais ficaram encarregadas de gerenciar o acesso


às terras, garantir o fluxo do trabalho forçado, supervisionar a mão-de-

189
COISSORÓ, Narana. African Customary Law in the Former Portuguese Territories, 1954-1974. Journal
of African Law, Vol. 28: The Construction and Transformation of African Customary Law, 1984, pp. 72-
79.
190
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p. 400

111
obra e recolher o pagamento de taxas e impostos, em especial o imposto
anual indígena, que ficou conhecido como imposto de cubata, criado em
1907 e responsável por gerar um superendividamento dos nativos.191
Foram, portanto, considerados parte efetiva do Estado colonial e, pelo
cumprimento de suas atividades, recebiam uniformes e remuneração.192
Também na então Província da Guiné semelhantes estruturas foram
mantidas. Os chefes tradicionais deveriam agir conforme as previsões
do artigo 48 do Regulamento das Circunscrições da Província da Guiné,
dentre as quais estavam o dever de manutenção da lei e da ordem, de
reunir um contingente necessário de homens para defender o território
dos cidadãos portugueses que fossem ameaçados pelos nativos e cessar
eventuais rebeliões, além de facilitar o recolhimento de taxas.193

Sendo assim, é difícil definir até que ponto tudo o que se convencionou
chamar direito consuetudinário — direitos consuetudinários à terra,
estrutura política consuetudinária e assim por diante — foi
implementado por codificação colonial ou já vigorava à época pré-
colonização, antes do notório cerceamento de autonomia das
autoridades tradicionais.

A dificuldade em apontar se as autoridades como se conhece hoje são


fruto de um certo nível de manipulação colonialista ou um espelho
fidedigno das circunstâncias prévias à intervenção europeia geram um
impacto também na maneira com que se analisa a situação da mulher
em África. Embora atualmente se pretenda recusar uma imagem
estereotipada de vítima oprimida, deve-se levar em consideração que

191
FLORÊNCIO, Fernando. No Reino da Toupeira. Autoridades Tradicionais do M’Balundu e o Estado
Angolano. In: Vozes do Universo Rural. Reescrevendo o Estado em África. Fundação para a Ciência e a
Tecnologia (FCT/MCTES), 2010, p. 106
192
SANTOS, Lurdes Maria Lima Viegas Pires dos. A igualdade de género em São Tomé e Príncipe: entre a
realidade e a utopia. Dissertação de Mestrado em Estudos Sobre as Mulheres – Gênero, Cidadania e
Desenvolvimento. Universidade Aberta, 2015, p.63
193
SCHOENMAKERS, Hans. Old Men and New State Structures in Guinea-Bissau. The Journal of Legal
Pluralism and Unofficial Law. Vol. 19, 2013, p. 110

112
essa é uma narrativa construída a partir de informações colhidas por
observações feitas após a chegada dos colonos. Logo, se não se conhece
plenamente a situação feminina antes, pelo menos não como se
conhece hoje a realidade após a colonização, é porque muito do que é
apontado como violador e retrógrado de acordo com o parâmetro
europeu tem grandes chances de ter sido incluído, modificado ou
intensificado pelos próprios.

Nesse sentido, se é para verificar a condição de opressão, não se pode


apartá-la da rutura que o colonialismo representou, especialmente em
muitas das instituições consuetudinárias que regulavam a relação entre
os sexos — é sabido que esse colapso pode ser considerado, quase
sempre, como prejudicial às mulheres pelo menos sob o ponto de vista
económico.194

Consideramos que essa retomada levando em conta potenciais


alterações no que até então se considerava tradição e costume tem
relevância dentro do que se pretende debater neste trabalho. Porque as
autoridades tradicionais e o direito ainda hoje por elas aplicado recebe
salvaguarda constitucional em diversos países africanos, pois se
considera que são estruturas pré-Estado merecedoras de
reconhecimento de sua personalidade jurídica. Entretanto, a aceitação
de suas imposições, principalmente nas comunidades mais afastadas
dos grandes centros urbanos, pode significar a perpetuação de
opressões não condizentes com o Estado Democrático de Direito
instaurado com base em valores como, por exemplo, a igualdade entre
os géneros e respeito à dignidade da pessoa humana.

Sob a ideia de que se respeita a tradição de uma África que resistiu às


intempéries do colonialismo, as autoridades tradicionais recebem o aval
do Estado para ter validação jurídica de suas decisões, mas é preciso

194
HOBSBAWM, Eric J.; RANGER, Terence. The Invention of Tradition. Cambridge University Press, 1983,
p.257

113
considerar que a referida protegida tradição pode ser oriunda de um
processo de alteração colonial cuja profundidade não é possível medir,
tendo em vista a dificuldade de conhecer as minúcias das estruturas
sociais antes da interferência do colonizador.

Por isso, antes de adentrar com mais afinco nas autoridades


tradicionais, de trazer à vista o pluralismo jurídico por elas gerado e o
impacto que a sua influência pode ter — ou não, a ser averiguado — na
efetivação dos direitos humanos das mulheres, é importante perceber
que a todo tempo estamos lidando com uma instituição de
incontornável importância, mas com inegável participação na
manutenção da estrutura colonialista que só cessou na segunda
metade do século XX.

4.13.1. Autoridades Tradicionais:

Falando da importância de saber que, de acordo com diversos estudos


etnográficos realizados na África pós-colonial,195 o que hoje se entende
por autoridades tradicionais é o resultado de proposital construção
colonialista. Consistiu em um projeto arquitetado para que a presença
de representantes da metrópole fosse reconhecida como imprescindível
para organizar a sociedade de uma maneira supostamente superior.
Dessa forma, muitas das autoridades foram cooptadas para a
administração colonialista e alteraram em maior ou menor grau as
orientações normativas que costumavam emanar e as competências em
sua esfera de influência.

De toda forma, importa saber que o conceito de autoridades


tradicionais, bem como suas atividades, não eram definidas de maneira
unânime nem seguiam um roteiro pré-definido à altura em que foram
“convocadas” pelo governo colonizador. A multiplicidade de definições
195
MENESES, Maria Paula G. Poderes, direito e cidadania: O ‘retorno’ das autoridades tradicionais em
Moçambique. Revista Crítica de Ciências Sociais, n. 87, 2009, p. 14.

114
persiste ainda hoje e consiste em um desafio atual para em primeiro
lugar reconhecê-las e, consequentemente, alocá-las na estrutura
institucional dos Estados. Antes sequer da conceituação, a própria
titulação atribuída às autoridades pode variar não apenas entre os
países africanos, mas até mesmo dentro de um Estado, a depender das
províncias e grupos etnolinguísticos em que atuam.

Em Angola, a nomenclatura sobas é predominante, mas algumas


podem chamar de Osama, Muvene, Muvingana, Ohamba,196— enquanto
em Moçambique e Guiné-Bissau atendem maioritariamente pelo título
de régulos. Cabo Verde e São Tomé e Príncipe, como analisaremos mais
adiante, não registam dados significativos sobre a atuação de
autoridades tradicionais.

A Constituição Angolana — a única, dentre as Constituições dos países


estudados, que conceitua as autoridades tradicionais — define, no seu
Artigo 224º, as autoridades tradicionais como (...) entidades que
personificam e exercem o poder no seio da respetiva organização
político-comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas
consuetudinários e no respeito pela Constituição e pela lei. Todavia,
como será a posteriori problematizado, a parte final desta definição — a
qual estabelece o filtro de necessária obediência à Constituição e à lei —
não se aplica a todos os Estados objetos da presente dissertação, o que
se verifica como uma adversidade para combater práticas
potencialmente danosas a nível local no que tange às mulheres. A
legitimidade do poder que as autoridades tradicionais exercem é
conferida pela perceção coletiva de que ele é oriundo de forças
sobrenaturais e, por isso, a obediência às suas decisões deriva de um
certo “temor” a uma entidade superior e ancestral, emitindo um
fundamento transcendental ao imperativo jurídico.

196
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p. 24

115
Como referencia,197 têm uma “natureza divina ou espiritual e
simbólica”. Nesse sentido, fica mais fácil compreender que as
autoridades não são figuras públicas individuais de poder por si só,
muito menos déspotas, mas se assemelham a órgãos “unipessoais” que
compõem a ordenação daquela coletividade, equiparável a uma figura
de direito público.

Opera, portanto, em um sistema de “freios e contrapesos”, materializado


através de conselhos de anciões ou conselhos da aldeia ou, em último
nível, da população que governam, já que devem se permanecer fieis a
valores que superam a sua individualidade.

As decisões que tomam devem ser embasadas pelo Direito


consuetudinário regente na estrutura maior na qual estão inseridos,
qual seja, a comunidade sob o seu comando. Está em questão o
cumprimento a costumes que o antecedem e que, portanto, cabe a si,
naquele período, monitorar e viabilizar o seguimento. O costume, por si
só, pode ser definido através de dois componentes: o externo, que é a
repetição da prática ao longo do tempo, e o interno, que justifica a
referida reiteração pela convicção instintiva de obrigatoriedade jurídica
daquele acto.198

As autoridades tradicionais têm papel significativo na construção do


componente interno do costume, pois a ideia de que monitoram o
cumprimento à obrigatoriedade é o que dá sustento à “ordem” social.
Por todo o exposto, pedimos vênia para modificar minimamente a
definição de autoridades tradicionais emitida por Carlos Feijó,199
quando se refere ao contexto angolano, a qual nos parece quase na
totalidade adequada à finalidade desse trabalho: Titular legítimo e em

197
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p. 36
198
(BARATA, 1977, pp. 652-653).
199
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, pp. 33-34

116
pleno exercício de funções, em conformidade com o direito
consuetudinário, do órgão unipessoal constituído por pessoa singular
formalmente investida na direção e chefia das instituições da
administração de uma comunidade local e etnolinguística que se rege
por usos, costumes e tradições constitucionalmente reconhecidos.

À excepção das duas últimas palavras, que constam na Constituição de


Angola mas não na dos demais países ora averiguados — devido à
generalizada omissão sobre os limites de atuação das autoridades
nesses outros Estados, à exceção de Moçambique, parece-nos que é
uma definição satisfatória e a qual deverá ser acessada para perceber o
significado atribuído às autoridades tradicionais ao longo desse
trabalho.

De todas as funções que uma autoridade tradicional pode assumir, a


manutenção da ordem social é tida como a mais importante, resultado
da soma de todas as outras atribuições: velar pelas tradições, pela
sobrevivência e continuidade da comunidade, pela regulação das
relações sociais;200 enfim, sua competência permeia orientações de
cunho político, religioso, cultural e económico. Sem a tutela de todas
essas marcas do convívio humano, o espaço que lhe compete governar é
regido pela desordem. Tendo em conta que a própria definição das
autoridades tradicionais as classifica como chefes responsáveis por
administrar uma comunidade que se rege por “costumes e o escopo das
Constituições analisadas.

No tocante ao direito consuetudinário, não é possível fazer uma


generalização acerca das suas características normativas que se aplique
de maneira unânime a todos os locais regidos sob sua influência. Em
África, registam-se mais de mil grupos étnicos e, consequentemente,
número semelhante de culturas e direitos costumeiros a elas

200
Idem, pp. 43-44

117
relacionados.201 As suas normas dizem respeito aos membros dos
grupos étnicos particulares aos quais se direcionam, podendo haver
grande variedade dentro não apenas do mesmo país, mas entre
províncias, comunas, aldeias e quaisquer outras divisões espaciais de
cunho administrativo.

Por esse motivo, quando Carlos Feijó afirma,202 que em Angola não se
verifica um direito consuetudinário unificado e monolítico, mas diversos
direitos consuetudinários, tomamos por verdade que isso pode se
aplicar às mais variadas realidades do continente, e não seria diferente
nos países retratados com mais afinco nesta pesquisa.

O Direito Costumeiro apreendido ao longo do tempo por cada sociedade


tem a sua imperatividade imposta por um temor dos indivíduos no caso
de serem punidos pelo que acreditam ser um poder ancestral, ou pelas
autoridades tradicionais que, em geral, são responsáveis por sanar
situações de conflito, supervisionando a administração da justiça nas
áreas que se encontram sob seu domínio.203

A obediência às determinações das autoridades tradicionais nas


matérias regidas pelo direito consuetudinário é fruto de uma
legitimação conferida pela própria sociedade que regimentam, mas
nesse prisma é preciso ter em conta que os principais atributos
considerados para ratificar o poder daquelas entidades são a
antiguidade, a autenticidade e a genuinidade. Tem-se em mente que os
costumes tutelados têm origem antiga e imemorial, e a continuidade
daquela tradição é encarregada àqueles “órgãos unipessoais” pois são

201
KUENYEHIA, Akua. Women, Marriage, and Intestate Succession in the Context of Legal Pluralism in
Africa. University of California, Davis, Vol. 40, 2006, p. 388
202
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p. 47

203
(ibidem, p. 54).

118
um “prolongamento dos antigos soberanos que dirigiam os povos,
comunidades e Estados africanos pré-coloniais”.204

Logo, em tese, sua competência não deve ser questionada pelos


indivíduos daquele determinado grupo, apenas anuída. Não obstante,
como já referenciado na introdução deste tópico, em maior ou menor
grau as autoridades tradicionais foram cooptadas pela administração
da metrópole portuguesa para que o projeto neocolonialista do século
XX pudesse ser viável. Uma distorção em suas funções e a assunção de
competências que permitiram a opressão do 30 seu próprio povo fez
com que, no período pós-independência, sua soberania fosse desafiada
pelos movimentos revolucionários.

Em referência à África lusófona aqui examinada, esse período situado


na década de 1970 e que marca a independência das ex-colônias
portuguesas vai ser retomado mais à frente, inclusive para fazer
referência à permanência dessas autoridades como agentes locais que
atuam como intermediários entre o seu povo e o estado.

Entretanto, o que interessa registar é que não se justifica, para parte da


doutrina, que essas mesmas autoridades continuem usufruindo, sob o
argumento da antiguidade e da manutenção dos valores africanos pré-
coloniais, de legitimidade e prestígio para aplicar ainda hodiernamente
costumes considerados atentatórios à dignidade da pessoa humana, em
particular quando vislumbrada sob a ótica do Estado Democrático de
Direito.

A lógica aplicada é que, uma vez imbuídos de funções dentro da


estrutura colonial, estiveram envolvidos não na manutenção dos valores
locais, mas no seu verdadeiro oposto, supervisionando a aplicação de
legislações desfavoráveis aos indígenas e por consequência atuando em
favor de arbitrariedades contra a população sob a qual detinham poder
de gerência.

204
(ibidem, p. 51).

119
É o que se verifica quando Armando Marques Guedes et al. falam,205
sobre o facto de que (...) as “tradições” invocadas nem sempre tinham
grande profundidade temporal, sendo muitas vezes antes “tradições
inventadas”, prática que afirmam terem tido lugar em todos os palcos
coloniais,206 na esteira do que defendem Hobsbawm e Ranger acerca do
que batizaram como invenção da tradição.

Nesse sentido, emerge uma preocupação voltada à possível perpetuação


de situações prejudiciais às mulheres, seja porque as autoridades
tradicionais ainda têm influência para determinar a aplicação da justiça
— e o estado não intervém nos costumes que determinam quem tem
competência para ocupar esses cargos, porque teoricamente
resguardam valores africanos tradicionais — ou porque a lei
consuetudinária que aplicam não está em consonância com princípios
de igualdade de género inaugurados em diversos diplomas na esfera
nacional e internacional. A nível das tradições que determinam quem
ocupa os cargos de sobas, régulos, ou quaisquer outros nomes
convencionados para distinguir a autoridade tradicional na sua
jurisdição, a maior parte delas não permite que esses postos sejam
atribuídos às mulheres, exceto em situações de caráter excecional, as
quais podem variar de acordo com a localidade. Vale fazer menção a um
caso que ilustra bem essa afirmação.

No ano de 1999, na comuna do Mungo, na província de Huambo, em


Angola, o contexto político local refletia a conturbação nacional
provocada pela guerra civil. O soba no controle da referida região fugiu
para Luanda, capital do país, quando forças do grupo insurgente rival
chegaram às suas terras. Com o seu posto vazio e diante da urgência
em ocupar aquele vácuo com alguma liderança que pudesse trazer
estabilidade à região, o recém-chegado grupo instituiu que três

205
GUEDES, Armando Marques. The State and Traditional Authorities’ in Angola: Maping Issues. In: State
and Traditional Law in Angola and Mozambique. Org: Armando Marques Guedes e Maria José Lopes.
Editora Almedina, 2007, p. 91
206
(ibidem, p. 95),

120
mulheres poderiam ocupar, em caráter temporário, a posição de
autoridade.

Eram parentes do soba que partira, e por isso detinham algum nível de
respeito, mas ainda assim era a primeira vez que mulheres ascendiam
àquela função.207 Em razão do fim do conflito que motivou a ocupação
daquelas terras pelo grupo rival e sua consequente retirada, o soba que
partira voltou à sua comuna e se deparou com a narrada situação.
Sumariamente, as três mulheres foram desinvestidas dos seus poderes
e o antigo líder assumiu de novo o seu posto de autoridade tradicional.
O mais significativo para compreender a crítica feita à exclusividade do
género masculino na posição de autoridade tradicional é saber a
justificativa que foi dada para a destituição das três mulheres: que,
afinal, as mulheres tendiam a ser bruxas incorrigivelmente egoístas e
potencialmente muito poderosas, com acesso a fontes perigosas de
enormes poderes místicos e, portanto, sobas indesejáveis, mesmo que
em menores comunas, províncias ou divisões administrativas do
local.208

Chega-se num ponto fulcral para analisar o protagonismo das


autoridades tradicionais no contexto africano hodierno. Embora o caso
tenha acontecido em 1999, a rejeição à mulher nessa função não se
modificou de maneira substancial. Associada a essa flagrante violação
às tendências jurídicas e morais modernas que consubstanciam o
respeito à igualdade de género, outras particularidades atribuídas às
autoridades tradicionais parecem pôr em xeque a sua legitimidade:
poder divino emanado de elementos incompatíveis com a laicidade

207
GUEDES, Armando Marques. The State and Traditional Authorities’ in Angola: Maping Issues. In: State
and Traditional Law in Angola and Mozambique. Org: Armando Marques Guedes e Maria José Lopes.
Editora Almedina, 2007, p. 36

208
GUEDES, Armando Marques. The State and Traditional Authorities’ in Angola: Maping Issues. In: State
and Traditional Law in Angola and Mozambique. Org: Armando Marques Guedes e Maria José Lopes.
Editora Almedina, 2007, p. 37

121
supostamente imposta pela democracia, poder monárquico e piramidal,
ocupação vitalícia do cargo e escolha de sucessores dentro da mesma
família do soba deposto, entre outras.

Entretanto, para Carlos Feijó,209 que assume postura com a qual


tendemos a concordar em parte, alguns argumentos invocados não
merecem lograr diante das circunstâncias particulares de África. O
Estado Democrático de Direito que se propõe a acomodar as
autoridades tradicionais em sua estrutura, se o faz em posição de
respeito pela existência dessas instituições anteriormente à
conformação do Estado moderno e para reconhecê-las, não pode retirar
a sua legitimidade só porque é oriunda de uma lógica diversa daquela
na qual é embasada boa parte das escolhas democráticas para
representantes do Estado.

Afinal, se as autoridades têm respaldo da comunidade na qual atuam,


isto também é uma expressão da Democracia. Ora, impor todos os
filtros eurocêntricos de validação e legitimação às autoridades é repetir
o sequestro dos valores africanos mais uma vez. É imperioso lembrar
que o extenso processo de colonização, em especial o que ocorreu no fim
do século XIX e princípio do século XX, deu início a um verdadeiro
choque de ordenamentos jurídicos: o africano, marcado pelo dinamismo
já referenciado, e o europeu, que para concretizar os seus objetivos
provocou diversas alterações à lógica local.

Assim, mudaram-se os costumes, definiram-se novas regras,


procedimentos e instituições para o acesso à autoridade, codificaram-se
novas previsões de acesso a propriedade, relações de trabalho e leis
para mediação de conflitos. Houve o encontro entre o direito costumeiro
vigente e a nova ordem colonial, resultando na intensificação de um
Pluralismo Jurídico ainda hoje presente no continente — mas resultado

209
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, 471

122
da confluência entre as tradições e as novas democracias oriundas do
pós-independência. Por isso, pode vir a ser problemático inferir que a
origem divina e a característica monárquica do poder, a vitaliciedade do
cargo e demais atributos que adjetivam as autoridades tradicionais na
África significam, por si só, um descompasso irreversível com valores
democráticos modernos.

É, no mínimo, controverso o processo de tentar erradicar uma forte


marca cultural com a qual não se identifica, além de ser necessário ter
em conta que os modelos de governo que se buscam incutir têm origem
na mesma sociedade europeia e ocidental responsável por uma
exploração sem precedentes no continente africano, motivo pelo qual
talvez todos os “atrasos” sejam hoje tão difíceis de reverter. Por outro
lado, é contestável que, de acordo com a maior parte dos costumes e
tradições, as mulheres estejam impossibilitadas de assumirem a
posição de autoridades tradicionais.

Afinal, uma das principais funções das autoridades tradicionais é


supervisionar e aplicar a justiça, a qual é embasada sobremaneira no
direito consuetudinário. Como iremos verificar, o direito costumeiro é
constantemente apontado como fonte para fundamentar decisões
consideradas injustas às mulheres nos mais variados assuntos: direito
à herança, à propriedade, direitos na viuvez, guarda dos filhos. Mesmo
porque, como nos aponta Carlos Feijó, a monarquia ainda se apresenta
— mesmo que, por vezes, apenas figurativamente — em diversos
Estados europeus.

Não parece haver descompasso com o Estado Democrático de Direito. O


divórcio — ou seja, quase todos eles ligados ao instituto jurídico do
casamento — e, para além disso, ritos introdutórios à vida “adulta” que
também preparam a mulher para as suas funções principais na vida em
comunidade, ligadas invariavelmente ao matrimónio.

Como, então, encontrar um equilíbrio entre respeitar a identidade


cultural genuinamente africana, as tradições do continente e o
123
pluralismo jurídico que marca os países objetos de estudo dessa
dissertação sem que isso incorra em maiores violações de direitos às
mulheres? Este é o verdadeiro desafio com o qual nos deparamos
quando da apreciação à actual conjuntura de África, a qual não pode
ser ignorada para que se possa potencializar a efetivação de direitos
fundamentais das suas mulheres.

4.13.2. O Pluralismo Jurídico

Na esteira do pensamento que já partilhamos e conforme nos reforçam


os posicionamentos que evocam a existência não de uma África, mas de
várias Áfricas, não foi a ocupação mais intensa dos europeus na fase do
neocolonialismo que inaugurou o pluralismo per se no continente.
Ainda que as disparidades já existissem, características em comum
podiam ser apontadas, conforme nos ensina o Professor Nunes Barata,
ao definir que o denominador comum de África era a existência de
costumes que funcionavam como a principal fonte do direito tradicional
africano. Não apenas em razão da reiteração, mas, sobretudo, por uma
vontade de validade, motivo pelo qual o seu descumprimento acarretava
em sanções formais ou informais. Logo, na análise da maior parte dos
costumes que cumpriam o critério para deter propriamente força
jurídica, chegou-se a uma espécie de fundo consuetudinário africano, o
qual reunia os principais valores cultivados nas sociedades à época por
todo o continente.210

A despeito dessa conformação, se convencionou falar tecnicamente em


pluralismo jurídico a partir de uma perspectiva situada nas relações
assimétricas de poder e raça inauguradas entre a minoria branca e a
maioria indígena na realidade colonial,211 no contexto do surgimento de

210
(ibidem, p. 656).
211
BANDA, Fareda. Women, Law and Women Rights: An African Perspective. Bloomsbury Collections,
2005. BARATA, José Fernandes Nunes. A África e o Direito. Revista da Ordem dos Advogados, Ano 37, v.
3, 1977, pp. 645-712.

124
muitas outras pluralidades: cultural, social e religiosa, por exemplo.
Logo, foi o encontro colonial que trouxe dimensões mais rápidas,
amplas e sobretudo violentas às transformações que passaram a ser
encetadas numa estrutura que, por conta própria, já era diversamente
plural.

As alterações legislativas já mencionadas, como a criação do Estatuto


do Indigenato, de tribunais para gerir o sistema de indirect rule e
diversas outras modificações impostas à organização social já existente
na realidade africana passaram a tomar o lugar das estruturas
costumeiras que faziam parte do fundo consuetudinário africano, cuja
resolução de conflitos não seguia uma estrutura rígida determinada
pela existência de tribunais julgadores e aplicadores de um direito
estrito, e sim essencialmente pela conciliação, liderada até então pelas
autoridades tradicionais — antes da cooptação para a administração
colonial — e seus conselheiros.

Nesse sentido, fazemos coro mais uma vez à colocação do professor


Nunes Barata, para quem a colonização pode ser considerada uma
etapa de transição entre a sociedade colonial, explorada anteriormente,
e a sociedade nacional, realidade sobre a qual iremos nos debruçar a
partir de agora com mais ênfase para tratar sobre o pluralismo jurídico
e as suas implicações atuais para a efetivação dos direitos das
mulheres.

Foi na década de 1970 que as então colônias portuguesas passaram a


tentar construir as suas identidades nacionais após as respetivas
independências, e por isso se diz que, ao contrário da Europa, onde a
Nação precedeu a formação do Estado, o Estado em África nasceu antes
da ideia de Nação. Havia, portanto, a intenção de tirar o foco das
microssociedades a nível tribal para pensar, pela primeira vez, em
maiores dimensões de divisão administrativa. Apesar das diferenças nos
processos de independência dos países, os quais serão examinados

125
mais à frente, cada um deles encontrou dificuldades semelhantes nesse
processo de construção de identidade nacional.

Aqui interessa falar, entre tantos obstáculos enfrentados, especialmente


sobre o (res)surgimento do protagonismo das autoridades tradicionais
para gerir conflitos de ordem jurídica; ou seja, as entidades que foram
consideradas importantes para sustentar a estrutura colonialista ainda
detinham — em certos espaços — a mesma influência da qual gozavam
antes.

No processo de democratização foram promulgadas leis de origem


estatal para conformar a organização social e, enquanto isso, muitos
povos de África continuavam a sistematizar a sua vida sob a lógica
tribalista e de conhecimento e reprodução da lei por tradição oral.
Vigoravam diversos ordenamentos jurídicos no mesmo espaço territorial
(Estado) que se buscava unificar em todos os sentidos, sendo um deles
o Direito. O pluralismo jurídico, portanto, ainda que seja demarcado na
história do continente africano como oficialmente inaugurado com a
presença mais intensa dos colonizadores, pode hoje ser compreendido
como a coexistência de jure e de facto de 35 diferentes ordens jurídicas
dentro do mesmo espaço e tempo.212

Deixa de ser apenas uma referência histórica para falar sobre o direito
nas antigas colónias, mas se trata de uma realidade ainda percebida em
determinados Estados.

A pluralidade é uma realidade que se impõe pela interação orgânica dos


membros de uma sociedade e que se apresenta também no Direito,
fazendo oposição à ideia de que as leis estatais são capazes de emanar
toda a compreensão popular em torno do ser jurídico. Nesse aspeto, o
pluralismo se verifica como oposto do positivismo, já que tal doutrina
acredita na capacidade do estado em gerir toda a miríade de celeumas
jurídicas capazes de serem despertadas no cotidiano dos cidadãos de

212
QUANE, Helen. Legal Pluralism and International Human Rights Law: Inherently Incompatible,
Mutually Reinforcing or Something in Between? Oxford Journal of Legal Studies, 2013, p. 677.

126
uma sociedade. É interessante observar que o surgimento do
positivismo jurídico está contextualizado na tentativa de sufocar uma
forma de “pluralismo” previamente existente à criação e organização do
Estado moderno, o qual à época passou a monopolizar para si a
produção de leis. Buscava-se superar a sociedade medieval e a sua
estrutura feudalista, constituída naturalmente por uma multiplicidade
de agrupamentos sociais, cada qual orientado de acordo com o seu
ordenamento jurídico — as leis, nesse caso, eram produzidas pela
correspondente sociedade civil que se afetava diretamente pelos seus
efeitos, independente de carecerem de uma Ciência do Direito formal.213

Nesse sentido, a gênese do positivismo jurídico é marcada pela tentativa


de suprimir poderes paralelos operacionalizados à margem do Estado
recém-formado. Essa finalidade foi materializada através da construção
de um significado muito restrito do que poderia ser considerado como
Direito e que características deviam ser atendidas para poder afirmar
que uma norma se reveste da força da lei. Muitas outras particulares
são atribuídas à teoria do jus positivismo, mas serão selecionadas as
mais pertinentes para fazer contraposição ao pluralismo jurídico. Dito
isso, o positivismo jurídico acredita que uma análise sobre a validade do
Direito deve se ater à sua estrutura formal e não ao seu conteúdo, de
modo que falar em Direito não consiste em fazer uma valoração
qualitativa sobre algo como positivo ou negativo, justo ou injusto.214

É dispensando um foco tão somente à sua forma, que deve cumprir


critérios rígidos pré-definidos. Já nesse ponto nos parece que essa
exigência é incongruente com a realidade das sociedades ancestrais, em
particular porque o cumprimento a uma forma demanda uma estrutura
coesa e um sentido de unidade que não se encontrava em África, e que

213
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Trad.: BINI, Edson; PUGLIESI,
Márcio; RODRIGUES, Carlos E. Ícone Editora, 1999, p. 26

214
(idem, p. 131)

127
não pode ser exigido de uma sociedade com registos de suas tradições e
normas eminentemente na forma oral. Outra condição imposta à
perceção do Direito como tal tem relação com a ideia de coação, ou seja,
de que os seus comandos são imperativos e que serão impostos pelo
uso da força caso falte a obediência por decisão voluntária.

Ora, já foi mencionado o caráter coercitivo dos costumes nas diversas


organizações sociais do continente africano antes mesmo de qualquer
ideia de confecção das leis pelo Estado, de modo que esse pré requisito
é cumprido satisfatoriamente pelo poder transcendental atribuído às
autoridades tradicionais responsáveis pela supervisão do cumprimento
ao direito consuetudinário. Uma das especificidades mais importantes
que adjetivam o positivismo jurídico e talvez a sua principal
contraposição ao pluralismo é, enfim, a ideia de que a legislação deve
ser a fonte preeminente do direito — ou seja: a norma emitida pelo
Estado tem prioridade absoluta para ser aplicada no caso concreto,
mesmo que esteja em confronto com costumes que têm regulado aquele
mesmo tipo de conflito desde muito antes.

Com essa presunção de que a lei pode ser capaz de oferecer a melhor
decisão em qualquer circunstância, acaba por desaguar em uma
“tentativa de negação do passado e como um mito de entendimento do
presente”, como bem leciona o professor Carlos Feijó.215 A inevitável
superação do positivismo jurídico veio pela compreensão de que todas
as suas imposições podem ter sido compreensíveis à altura em que se
via necessária a criação do Estado, num ímpeto de organização que
demandou maior comprometimento com a ordem e com a forma. Mas,
ao longo do tempo, se comprovaram insustentáveis diante da natureza
organicamente fluida, plural e multiforme da sociedade.

215
FEIJÓ, Carlos. A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais na Ordem
Jurídica Plural Angolana. Tese de Doutorado - Universidade Nova de Lisboa, 2011, p. 119

128
Não é por acaso que o status quo anterior ao estabelecimento do Estado
moderno era tão diversificado em todos os aspetos, no Direito inclusive
— é natural da organização humana que as suas vivências ensejem
problemas cujas soluções dificilmente estarão encerradas em um só
dispositivo.

O pluralismo jurídico é resultado de uma realidade relacional, anterior e


também superveniente ao positivismo, pois era apenas natural que se
chegasse à conclusão de que o direito escrito não pode exaurir todas as
fontes do que se compreende por lei. Reforçamos com isso que, embora
inegável que a relevância do direito consuetudinário em zonas
inalcançadas pelo Estado explique o contexto de recrudescimento do
pluralismo jurídico e a sua permanência no continente africano,
partimos do pressuposto que a relevância ainda atual das autoridades
tradicionais não está atrelada à falibilidade do Estado — caso contrário,
teríamos que trabalhar com a noção de que o protagonismo das
autoridades só se faz perceber em “Estados fracos”, equívoco que Carlos
Feijó refuta ao afirmar que este “não é um jogo de soma zero”.216

O pluralismo não será obrigatoriamente tão mais forte quanto mais


fraco for o Estado, e vice-versa; às vezes, Estados fortes contam com a
presença das autoridades em seu corpo institucional. As ordens legais
paralelas têm um relacionamento complexo com o Estado: enquanto
podem entrar em conflito, também se influenciam e se moldam de
várias maneiras. A linha entre as ordens judiciais estatais e não-
estatais é frequentemente confusa na prática ou mesmo na teoria.

O uso de ordens legais não-estatais pode ser uma conveniência social


ou econômica ou pode ser devido à inacessibilidade da ordem legal do
Estado, em vez de refletir uma preferência normativa ou ética. Importa
perceber que essa relação pode ser mais complexa do que aparenta à
primeira vista; a tendência em confundir factos com aspirações talvez
surja devido a uma falha em interrogar, em cada contexto, as razões

216
Carlos Feijó refuta ao afirmar que este “não é um jogo de soma zero” (2011, p. 22).

129
pelas quais as pessoas agem como agem. Aqui importa fazer uma
consideração sobre o pluralismo jurídico: ainda que diversas possam
ser as questões suscitadas em relação à sua existência, o foco nessa
dissertação será, sobretudo, na sua relação com a situação de
efetivação — ou não — dos direitos humanos das mulheres nos países
estudados.

Partiremos do pressuposto de que quaisquer celeumas que possam


existir em virtude da coexistência de dois ou mais sistemas normativos
dentro de um mesmo espaço não têm a sua solução encontrada com o
fim do pluralismo jurídico em si, seja porque a própria ideia de que o
dissipar por completo é irreal, ou porque o centralismo normativo do
Estado continuaria ineficaz para resolver integralmente a ampla
variedade de situações que as sociedades podem apresentar — em
especial no continente africano e, sobretudo, na proteção das mulheres
à luz dos ordenamentos jurídicos.

Sabemos que a concomitância de leis oriundas de diferentes fontes no


mesmo lapso espácio-temporal não vai ser sempre coerente e que
conflitos são inevitáveis, portanto, parece-nos que a gestão apropriada
dessas divergências é o que deve ser planeado para diminuir os
eventuais impactos problemáticos de uma conjuntura cuja existência
não se pode negar. Conforme aponta Boaventura de Sousa Santos,217
com quem concordamos, o reconhecimento oficial estatal — ou a falta
dele — não vai determinar o fim ou a continuidade de uma realidade
empírica.

Os sistemas jurídicos plurais vão continuar a vigorar em muitas


sociedades, em que pese serem ou não acomodados na estrutura oficial
dos Estados. Melhor, portanto, que a sua existência seja reconhecida
para que a 38 conformidade com os princípios do Estado Democrático

217
SANTOS, Boaventura de Sousa. The Heterogeneous State and Legal Pluralism in Mozambique. Law &
Society Review, Vol. 40, 1, 2006, pp. 39-76.

130
de Direito possa ser fiscalizada com mais eficácia. Essa abordagem faz
ainda mais sentido quando confrontamos a ineficácia do Estado e do
positivismo jurídico para apresentar soluções a problemas enfrentados
pelas mulheres ao longo do tempo e nos mais variados lugares.

O foco exacerbado na problematização em torno da lei estatal impediu,


no decorrer do tempo, o desenvolvimento de uma teorização feminista
robusta sobre o pluralismo jurídico, o qual continuou a surtir os seus
efeitos a despeito de não ser propriamente confrontado. Em busca de
maneiras para corrigir o desequilíbrio nas relações de poder entre
homens e mulheres, a vertente do direito feminista tem dado destaque
ao Estado como o meio pelo qual é possível conseguir mudanças ou, em
outro extremo, acabou por expressar dúvidas sobre a probabilidade de
alcançar a almejada igualdade de género por meio da lei.

Em qualquer dos dois cenários, se conformou principalmente à


presunção de que o Estado é a única fonte do direito, ou seja,
condicionou-se ao monismo jurídico.218 Como consequência, outras
fontes do direito, as maneiras pelas quais elas garantem a conformidade
e seus efeitos permaneceram inexploradas. Nos países que atribuem
forte credibilidade à lei escrita, nomeadamente os mais “desenvolvidos”,
a abordagem feminista do direito tem se focado no positivismo jurídico
em razão de uma confiança significativa na Constituição.

À partida, nesses cenários, essa postura mais legalista pode fazer


sentido pela facilidade em operacionalizar políticas públicas. Nos países
emergentes, ou de “terceiro mundo”, o trabalho de grupos feministas
tem confiado sobremaneira no alcance de reformas e na adequação das
leis nacionais às previsões dos tratados internacionais ratificados pelos
Estados. Entretanto, a “confiança” na estrutura estatal em absorver e
resolver essa demanda vem a ser problemática neste caso porque a lei
do Estado é na verdade um fator de regulação secundária e não

218
(MANJI, 1999, p. 439) MANJI, Ambreena S. Imagining Women’s Legal World’s: Towards a Feminist
Theory of Legal Pluralism in Africa. Social & Legal Studies, SAGE Publications, Vol. 8, 1999, p. 439

131
primária na vida de muitas mulheres, uma vez que em zonas de
significativa pobreza, com frequência, às mulheres desamparadas são
destinadas atividades exercidas à margem da lei: prostituição,
atividades de câmbio ilegais e fornecimento de bens e serviços através
de grupos clandestinos sendo apenas alguns desses exemplos.219

Nos grupos ainda mais regidos pelo direito consuetudinário — mais


afastados dos centros urbanos —, caso as mulheres tentem fazer uso
das leis do Estado para resolver situações que considerem injustas para
consigo, serão muito provavelmente consideradas traidoras da sua
comunidade, acusadas de estarem em conluio com forças externas que
39 tentam destruir o património cultural de sua tribo, aldeia, enfim, do
agrupamento a que pertença e que seja regido juridicamente pelas
tradições e costumes.

É, portanto, indiscutível que as mulheres no mundo em


desenvolvimento tenham experimentado e continuem a perceber a lei de
maneira diferente dos homens. Um paradigma legal centrado no Estado
é inadequado para descrever completamente o mundo jurídico dessas
mulheres, o qual pode ser caracterizado como predominantemente
privado. Em África, muitos dos conflitos em torno de suas experiências
são resolvidos em foro íntimo, em especial quando têm relação com
assuntos que seriam tratados pelo direito de família, na maior parte
das vezes através da aplicação do direito consuetudinário pelas
autoridades tradicionais.

Essa afirmação faz ainda mais sentido quando alocada na lógica


kantiana, que situa a criação da figura do direito público no momento
de surgimento do Estado moderno, ao passo em que o direito privado já
fazia parte do estado de natureza.220 Portanto, não é à toa que no direito

219
(idem, p. 443)
220
BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: lições de Filosofia do Direito. Trad.: BINI, Edson; PUGLIESI,
Márcio; RODRIGUES, Carlos E. Ícone Editora, 1999, p. 29

132
costumeiro tão característico das sociedades africanas, tantas vezes
consideradas primitivas e “pré-estatais”, a maior parte das normas
esteja vinculada à gestão de problemas oriundos das relações privadas e
familiares. Não se fez necessário o monopólio das leis pelo Estado para
que o povo, organicamente, tenha encontrado maneiras de resolver os
seus conflitos.

Contudo, por mais que o pluralismo jurídico pressuponha a


descentralização do Estado, este permanece central na averiguação do
respeito aos direitos humanos pelas ordens jurídicas plurais. Isso
ocorre porque os Estados são os principais responsáveis em relação às
garantias que surgem da assinatura e da ratificação dos tratados
regionais e globais; eles têm, portanto, o dever de proteger e exercer a
devida diligência para tomar medidas quando ordens legais não-estatais
violam os direitos humanos, além de criar mecanismos capazes de
coibir que as violações sequer ocorram.

É seguindo este raciocínio que pretendemos proceder a uma análise da


situação jurídica das mulheres face às consequências que o direito
consuetudinário e o pluralismo jurídico trazem para suas vidas, tirando
o foco das leis ordinárias emanadas pelos procedimentos legislativos
comuns mas, ainda assim, utilizando os direitos humanos como
parâmetro. Em um primeiro momento, será feita a exposição dos
costumes que costumam reger a vida das mulheres em zonas de
materialização do pluralismo jurídico e, posteriormente, serão
apresentados episódios práticos registados na África Lusófona sobre a
qual vamos nos ater.

133
CAPÍTULO VI – O PODER TRADICIONAL NOS PRINCIPAIS REINOS E
POVOS DE ANGOLA

5.1. Uma Perspectiva Histórica de Angola e Seus Povos (Firmino


Kakulo e Beto de Morais)

5.2. O Poder

Diga-se antes que, poder é ter a faculdade de; a possibilidade de; ter
direito de; conjunto de órgãos que asseguram a administração de um
Estado; governo de um Estado.221 Ainda chama-se poder a possibilidade
de eficazmente impor aos outros o respeito da própria conduta ou traçar
a conduta alheia. Há tantos poderes, como poder religioso, paternal,
político, bélico, económico, tradicional e também o poder social que é
exercido por toda a colectividade, ou por algum ou alguns dos membros
aos quais seja reconhecida qualidade para actuar em nome de todos em

221
TEIXEIRA, Graciete. Grande Dicionário, Língua Portuguesa, Acordo Ortográfico. Porto : Porto
Editora, 2010.
134
virtude do fenómeno da representação. O poder social é uma
consequência necessária da organização das sociedades primárias.222

É nas sociedade primárias que para Aristóteles se busca o fundamento


do homem ser um político por natureza, porque nasceu para viver em
sociedade, um pouco diz, “ unus homo, nullus homo” é esta a
característica da natureza social do homem, que só pode ser homem,
dentro da família, tribo, cidade e o Estado. Neste gregarismo natural, o
homem pertence a dois mundos. O mundo natural e o mundo cultural.
“ é no mundo cultural que o homem afirma a sua racionalidade que se
manifesta nas realizações duma vida que decorre em convivência.
Porém, a convivência postula regras que disciplinem os
comportamentos de cada homem e transmitem a segurança necessária
à vida de relação com os outros.

É portanto a Ordem Social.223 Talvez seja daqui que se possa


depreender a origem do Poder Tradicional que mais a frente faremos
referência. E cada poder pode representar uma dada sociedade. Pelo
que, o poder surge porque as sociedades existem e carecem de
organizar-se: a sociedade primária é a razão de ser do poder. Ao
contrário, a sociedade política não existe antes do Poder Político.
Forma-se, organiza-se, essa sociedade porque é necessário que o poder
político se institua como único meio eficaz de definição do Direito
Comum, essencial à convivência pacífica.

O poder político é a razão de ser da sociedade política (o Estado).224 E ao


falar do poder, importa ir à sua origem, que se aborda em duas
perspectivas:

1. Naturalista

222
CAETANO, Marcello. Manual de Ciências Política e Direito Constitucional. Coimbra : Almedina,
2006.
223
JUSTO, A. Santos. Introdução ao Estudo do Direito. Coimbra : Coimbra Editora, 2011.
224
CAETANO, Marcello. Manual de Ciências Política e Direito Constitucional. Coimbra : Almedina,
2006.
135
2. Positivista

Na primeira, a naturalista, o poder ou, melhor a autoridade tem origem


natural, nas sociedades naturais, para a outra a positivista, o poder
tem origem divina e humana,225 e é social, porque assenta nas relações
sociais… e, tem em vista a realização de determinados objectivos
considerados importantes.226 Entretanto, pode ser visto como a
capacidade ou a faculdade natural de agir,227 a capacidade de impor a
própria vontade numa relação social, mesmo contra a resistência.228 O
mesmo procede de Deus,229 imagine-se que, do Gênesis, 9 ao
Apocalipse, 21 o termo poder é referido num universo de 1249 vezes. É
o termo mais poderoso que se conhece até hoje. E o mesmo é exercido
naturalmente pelos homens, vistos capazes de exercê – lo, em diversos
níveis.

O termo poder deriva do latim “potere” que por posse significa a


capacidade de realizar uma acção ou processo, ou ainda produzir efeito
– aptidão, faculdade, potência. É a capacidade de exercer uma
autoridade legal, constituída e inerente a uma posição hierárquica
superior num organismo privado, num sector estatal ou na governação
de um país.230 Semelhante a autoridade, mesmo dentro das
dificuldades, verifica-se que o poder apresenta-se como verdadeiro
direito de mandar, ao qual corresponde o dever de obediência. É exigido

225
R, Cabral. Poder, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura. Lisboa : Verbo, 1968.
226
GONÇALVES, António. Poder In Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura. Lisboa : Verbo, 2002. Vol.
22.
227
MICHAELIS. Moderno Dicionário da Língua Portugesa. S. Paulo : Câmara Brasileira do Livro, 1998.
p. 1648.

228
AAVV. 2006. Sociologia. S.Paulo : S.Paulo, 2006. p. 323.
229
CABRAL, Rui. Autoridade, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura. Lisboa : Verbo, 1965.
230
BARROSO, José Durão. Poder, in Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado. S. Paulo : Lisboa,
2004.
136
pela própria natureza social do homem, e não deixando totalmente ao
seu arbítrio. Neste sentido, o poder político é de origem divina, assim
como Deus é criador de todas as naturezas, é autor de todos os
poderes.231

O poder apresenta-se como o verdadeiro direito de mandar, ao qual


corresponde o dever de obediência.232

É ainda de reconhecer que existem autores que buscam a compreensão


do poder em três tipos de dominação que se distinguem pelo carácter da
dominação (pessoal ou impessoal) e, principalmente, pela diferença nos
fundamentos da legitimidade, sendo: Legal, Tradicional e
Carismática.233

1. A Dominação Legal: a obediência está fundamentada na vigência


e aceitação da validade intrínseca das normas e seu quadro
administrativo é mais bem representado pela burocracia. A ideia
principal da dominação legal é que deve existir um estatuto que
pode ou criar ou modificar normas, desde que esse processo seja
legal e de forma previamente estabelecido.

Nessa forma de dominação, o dominado obedece à regra, e não à pessoa


em si, independente do pessoal, ele obedece ao dominante que possui
tal autoridade devido a uma regra que lhe deu legitimidade para ocupar
esse posto, ou seja, ele só pode exercer a dominação dentro dos limites
preestabelecidos. Assim, o poder é totalmente impessoal, onde se
obedece à regra instituída e não à vertente pessoal. Como exemplo do
uso da dominação legal, podemos citar o Estado Moderno, o Município,

231
AGOSTINHO, Sto. De Civitate Dei. Vols. v, 9.
232
CABRAL, Roque. Autoridade, in Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado. Lisboa : Verbo,
1997.

233
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Guanabara, 1981.

137
uma Empresa Capitalista Privada e qualquer outra organização em que
haja uma hierarquia organizada e regulamentada. A forma mais pura
de dominação legal é a burocracia.

2. A Dominação Carismática: nessa forma de dominação o


dominado obedece a um senhor em virtude do seu carisma, ou
seja, das qualidades excepcionais que lhe conferem especial poder
de mando. A palavra foi reinterpretada em sentido sociológico
como dons e carismas do próprio indivíduo e foi nessa forma que
Weber a adoptou.

Weber considerou o carisma como uma força revolucionária na história,


pois tinha o poder de romper as formas normais de exercício do poder.
Por outro lado, a confiança dos dominados no carisma do líder é volúvel
e esta forma de dominação tende a aproximar as partes no processo de
governação. A obediência a uma pessoa se dá em razão das suas
qualidades pessoais. Não apresenta nenhum procedimento ordenado
para a nomeação e substituição.

Conclui-se que o líder de sucesso percebe de forma dinâmica as


diferentes necessidades de seus colaboradores actuando de forma
diferenciada, em situações específicas, aliada ao facto dele perceber as
suas limitações com relação ao seu gerenciamento, buscando de forma
contínua o seu aperfeiçoamento técnico e pessoal.

Na história da humanidade muitos líderes levaram avante a sua tarefa


de liderança à luz do carisma. E entre muitos pode-se citar aqueles
como líderes dos povos e que constam os seus discursos nos 50
Grandes Discursos da História, entre eles: Jesus Cristo (o Sermão da
Montanha), Urbano II (O Papa prega a Primeira Cruzada), Napoleão
Bonaparte (o Adeus aos Veteranos), Fiel Castro (Defesa em Tribunal),
Martin Luther King (Em Defesa dos Direitos Civis, I Have a Dream,
discursos que lhe valeu o prémio e a coroa de Obama como primeiro
138
presidente negro na história dos USA), Che Guevara (Carta de
Despedida a Fidel Castro).234

Hoje é também “feliz” por saber que 50 anos depois numa guerra com
um rasto de quase 200.000 mortos, assinou-se em Cuba, no lugar onde
muitas vezes descansou para pensar no povo da Colômbia se assinou a
paz e o entendimento entre o governo da Colômbia e as FARC), Nelson
Mandela (o Renascimento da África do Sul). Outros africanos, também
podiam ser apontados como carismáticos, Kwame Nkrumah, Kenneth
Kaunda ou Sekou Touré, Haille Selaisse-Ras Tafar, Sekou Touré,
Senghor, (Graça, 2005).

Uma das figuras que jogou um papel de reconhecida importância no


segundo período e limiar do terceiro e que se assumiu, de facto, como
líder do Pan-africanismo foi Kwame Nkrumah, que logo no primeiro dia
da independência do Ghana, em 1957 disse:

“O Ghana não se poderia considerar livre, enquanto


existissem outros países sob dominação colonial; o
desenvolvimento posterior de África passaria por uma
pré-condição, conquista primeiro a independência
política, depois tudo o resto ser-te-á dado por
acréscimo”.

Nuca é demais, e aliás seria ignorância culpável, se de modo particular


não citasse Agostinho Neto, que a quando da independência de Angola
dizia: “no Zimbabwe, Namíbia e África do Sul estava a continuação da
nossa luta.”

E, finalmente vem:

234
MATA, Manuel Robalo Miguel. 50 Grandes Discursos da História. Lisboa : Sílabo, 2009.

139
3. A Dominação Tradicional: que se dá pela crença na santidade de
quem dá a ordem e de suas ordenações. Sua ordem mais pura se
dá pela autoridade patriarcal, onde o senhor ordena e os súbitos
obedecem, e na forma administrativa, isso se dá pela forma dos
servidores.

É por eles, pelos valores que difundem ou pelos conhecimentos que


comunicam, que ocorre a socialização necessária à coesão e integração
na dominação tradicional (onde a autoridade é, pura e simplesmente,
suportada pela existência de uma fidelidade tradicional); o governante é
o patriarca ou senhor, os dominados são os súbditos e o funcionário é o
servidor. Veja-se a título de exemplo a figura do Faraó no Egipto. O
poder passa a ser legitimado e visto como estando associado aos
deuses, sendo exercido dentro de um jogo de dominação espiritual e em
respeito aos antepassados, como fortes mecanismos de persuasão,
imposição da autoridade por intermédio de rituais que levam à
fidelidade e à submissão das comunidades. Pesquisas no campo das
ciências sociais têm evidenciado, nas últimas décadas, que o poder não
existe como objecto isolado, não sendo, portanto, algo passível de ser
possuído ou guardado por alguém.

O que existe, na verdade, são relações de poder, ou seja, só podemos


conceber o poder quando duas ou mais pessoas relacionam-se,
influenciando-se mutuamente. De qualquer modo, existem até hoje
duas opções fundamentais para o pensamento político em relação ao
poder, o que afirma que a existência dos homens está inscrita na
natureza das coisas e um convencionalismo que a faz derivar de
artifícios elaborados pelos cidadãos de um interesse comum.235
Assim, o poder sem o qual nenhuma sociedade pode subsistir,
desempenha com efeito, uma tripla função:

235
FARAGO, France. Fiolosofia, As Grandes Correntes do Pensamento Político. Porto : Porto, 2007
140
1. Encarregar-se da coesão interna do grupo em questão;
2. Organizar a defesa perante potências estrangeiras;
3. Instaurar a justiça e a paz civil.

Se assim for, o poder político e o político tradicional devem ser


regulados pelo ético, porque o poder que é um meio para organizar a
vida colectiva dos homens, não podia erigir-se. O político tem, pois,
inevitavelmente, uma dimensão ética ou, pelo menos, permanece sob
jurisdição de uma instância superior.236 Angola como país, é formado
por muitas e diversas comunidades jurídicas, e que cada uma
apresenta os seus costumes e suas crenças, situação que se deve ao
facto de que durante a colonização coexistiram dois poderes, sendo um
poder central (Português), e o poder tradicional angolano. É uma
dicotomia que resulta de uma vasta pluralidade de ordens jurídicas,
entre o Estado Colonial e a Direito Indígena, o famoso Consuetudinário
ou Nativo.237

Desta forma, a Constituição de Angola faz um enquadramento jurídico –


constitucional do costume, art.º 7º da CRA, instituindo a sua dignidade
jurídica. Daí que é reconhecido o estatuto, o papel e as instituições do
Poder Tradicional, arts.º 223º - 225º da CRA. Assim, muitas vezes no
nível internacional ser polémico saber que a lei em Angola não é a única
fonte de direito, o costume passa igualmente a ter a mesma força
jurídica.238

Este conteúdo pode ser ainda visto noutras matérias que se aconselham
de leitura importante.239; 240;241.

236
FARAGO, France. Fiolosofia, As Grandes Correntes do Pensamento Político. Porto : Porto, 2007
237
NUNES, raúl Carlos Araújo / Elisa Rangel. Constituição da República de Angola, Anotada Tomo I.
Luanda, 2014.
238
Idem
239
ARAÚJO, Raúl C. O Presidente da República no Sistema Político de Angola. Luanda : Casa das
Ideias, 2009.
141
No período colonial o enquadramento do Poder Tradicional foi colocado
à margem e sem respeito aos valores locais e sistemas tradicionais no
exercício do poder. Mas, a instituição natural do Poder Local foi
mantida apesar da manipulação exercida pelas autoridades coloniais,
da destituição do poder originário pelo poder político. Essa posição
permitiu-lhes servirem de intermediários junto ao Estado ou de outras
organizações, sendo legitimada pela referência a valores ditos
tradicionais, embora considerado como determinante na fragilização
das estruturas locais do poder.

O estudo sobre aspectos relativos ao exercício do Poder Tradicional e a


sua relação com a Administração Local do Estado, remete - nos à uma
complexa reflexão sobre o passado histórico do país e a acção do Estado
na governação e na gestão das relações daí resultantes. Assim é que, o
reconhecimento das instituições do poder tradicional obriga as
entidades públicas e privadas a respeitarem, nas suas relações com
aquelas instituições, os valores e normas consuetudinários observados
no seio das organizações político-comunitárias tradicionais e que não
sejam conflituantes com a Constituição nem com a dignidade da pessoa
humana.

O Artigo 224.º faz alusão as Autoridades Tradicionais, como entidades


que personificam e exercem o poder no seio da respectiva organização
político -comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas
consuetudinárias e no respeito pela Constituição e pela lei. O Poder
Local é uma realidade antiga em Angola, quer dizer, existe e está
organizado antes do surgimento do Estado moderno efectivamente.
Durante a fase de ocupação colonial, o território angolano era gerido por

240
FEIJÓ, Carlos Maria da Silva. A Coexisteência Normativa entre o Estado e as Autoridades
Tradicionais na Ordem Jurídica Plural Angolna. Coimbra : Almedina, 2003.
241
SANTOS, Boaventura Sousa. O Estado Heterogéneo e o Pluralismo Jurídico, inConflito e
Transformação Social: uma paisagem das justiças em Moçambique. Porto : Edições Afrontamento,
2003.

142
unidades políticas, sobretudo reinos dirigidos por um soberano, de
acordo com um sistema de filiação ou de linhagem cuja origem do poder
assentava nos antepassados, num desígnio sobrenatural.

Na realidade, havia reinos com grandes poderes, extensos e com


diversas instituições. De entre os mais conhecidos encontra-se o do
Congo, os não menos importantes de Kassanje, Ndongo, Matamba,
Bailundo e Kwanhama. Simultaneamente, outras unidades políticas
organizavam-se em formas mais simples, em conjuntos de comunidades
ligadas pelo parentesco ou por um antepassado comum mítico, sem um
poder centralizador e com instituições políticas muito simples. Outros
ainda, à semelhança dos caçadores-recolectores atuais do Sudoeste de
Angola, apenas assentes no grupo doméstico, sem outra chefia que não
a do poder paternal.

Em termos de estudos sérios, para falar do poder tradicional em Angola,


é obrigatório, recuar às sociedades pré – coloniais. Mesmo que este
conceito possa apresentar-se ambíguo, colocado no seu espaço
temporal. Etimologicamente situa-se desde 1482 com a chegada dos
portugueses em Angola, mas não termina ai, prolongando – se na nossa
história aos dias de hoje, já que as dinâmicas das sociedade pré-
coloniais ainda se fazem sentir em algumas áreas do pais.242

E eram sociedades que já tinham uma dinâmica própria no seu dia – a –


dia, transmitindo valores culturais através da oralidade e pelas línguas
nativo-locais. E talvez fosse esse o ponto de partida se entender a
verdadeira imagem da identidade cultural de Angola, rumo a
construção real de uma história capaz de identificar todos os angolanos.

242
CALEY, Conélio. Contribuição para o Pensamento Histórico e Sociológico Angolano. Luanda :
Nzila, 2005.

143
Uma identidade nacional será sempre um ponto de referência para o
qual deverão confluir os esforços de um povo. As pequenas identidades
constituem o baluarte da existência das maiores, pois uma vez
violentadas na sua essência provocam crises nas sociedades. As
pequenas identidades (tribo ou etnia), violentadas, surgem e ressurgem,
reclamando o seu lugar na história.243

Daí que um verdadeiro Estado Democrático de Direito, viu-se obrigado a


dar valor ao consuetudinário e com ele lutar pelo resgate dos valores
ético-morais, que fazem a consciência do verdadeiro angolano. Imagine-
se que, quando a CRA/2010, “coloca” o costume e as autoridades
tradicionais nos seus textos é um exemplo vivo desta reclamação dos
povos angolanos, mediante os seus lídimos representantes.

O termo identidade muitas vezes não encontra definição fácil. Por


conseguinte, a compreensão de qualquer termo só pode ser lograda,
quando analisada na sua perspectiva histórica. Para alguns autores, a
ideia de identidade é produto de mudança social e da acção humana
sobre seis áreas críticas, designadamente: política, mercado laboral,
espaço residencial, instituições sociais, cultural e experiência diária.244

E, história de Angola nos revela que a acção do Poder Tradicional foi


desde sempre dominante, porém, durante a fase colonial e pós-colonial,
essa foi negligenciada, primeiro pelos regimes colonizadores e em

243
Idem
244
CALEY, Conélio. Contribuição para o Pensamento Histórico e Sociológico Angolano. Luanda :
Nzila, 2005.

144
seguida pela política marxista a que governo instituídos após
independência se apostou, mas esse poder sempre resistiu à força da
sua originalidade, preservando as suas crenças e os hábitos e costumes
das comunidades, houve na verdade momentos que a igreja
desvaneceu, capelas que ficaram comités e …, igrejas e missões que
foram transformadas em bases, e… centros de treinamento militar.

Há quem ouse fazer uma crítica exarcebada, mas tem-se que


reconhecer a necessidade do momento. Foi tudo pelo povo, que se pode
constituir no cidadão e no cristão. E daí que a dignidade da pessoa
humana exigia sacrifício político para devolver-lhe a paz religiosa. Há na
verdade casos que não se toleram.

No período colonial, o relativo reconhecimento do papel das Autoridades


Tradicionais era mais para fazer face aos interesses dos povos
colonizadores, favorecer a guerra do Kwata – Kwata. Mais triste é
entender que a maioria dos escravos saídos de Angola até hoje
identificados como influentes no grupo falava umbundu. Entenda-se
que eram das regiões fora do norte. Os do norte não chegaram “todos”
tanto a assim a ser escravos, sim deportados para São Tomé e Príncipe
e Cabo Verde. Não foram para as roças de café, sisal, algodão, na
condição de verdadeiros escravos. “U mgaba lu ndalato” não fez nem faz
parte do vocabulário Kamundongo. Até diz hoje “ka mundongo
mundele”.

É que, na verdade, a compreensão dessa história é difícil, imaginando


que de princípio o processo histórico de Angola divide-se em grandes
períodos:

1. O período Pré – Colonial, que envolve tudo sobre as migrações


bantu, até a sua fixação no território angolano, e a constituição
dos principais reinos de Angola;
2. O período colonial de 1482 – 1975. O período colonial teve uma
duração de 493 anos. Onde se apontam algumas fases, desde a
penetração portuguesa no reino do Congo, motivada pelos
145
interesses comerciais, fase a que se seguiram as outras do
estabelecimento de relações comerciais, da administração e
conquista dos reinos; o tráfico de escravos. E finalmente a fase da
luta pela independência.245
3. E hoje? É preciso fazer-se uma forte enxertia para dar cara à um
nacionalismo cego, para mostrarmo-nos como “um só povo e uma
só Nação”.

De salientar que neste longo período histórico Angola sofreu a mais


dura humilhação ocidental, sobretudo com as políticas do tráfico de
escravos e a assimilação. Não havia aqui algum elemento que
indicasse a luz para a dignidade da pessoa humana, nem Direitos
Humanos. Aliás essas duas verdades não se faziam presentes na
história universal. A pessoa era o branco. O nervo dos povos
indígenas deu nas grandes revoltas e lutas dirigidas pelos
representantes da autoridade tradicional (reis e sobas), ao que mais
tarde de forma organizada se juntaram os esforços dos movimentos
políticos de libertação nacional, que conduziram a proclamação da
Independência, tal como se pode ler nalguns livros da história de
Angola.

4. O período pós – colonial, de 1975 – 2009. Só com a assinatura


dos acordos de Alvore em Portugal, é que se abriu o caminho para
a proclamação da independência de Angola. Cinco séculos de
colonialismo em Angola, concluíram-se com uma guerra entre o
exército português e as forças da resistência angolana, desde
1961 até a data da independência, em 1975. Esta, aconteceu em
pleno tempo da guerra fria, e foi proclamada em simultâneo,246
pelos movimentos políticos de libertação de Angola, em Luanda
pelo MPLA, na voz de A. A. Neto proclamava-se a República

245
BINGI, Pedro. A Reforma Educativa em Angola. Padova : C. M. C, 2013
246
NEVES, Tony. Angola - Justiça e Paz. Luanda : Texto Editores, 2013.
146
Popular de Angola, e no Huambo pela UNITA e FNLA, a República
Democrática de Angola.247

Ainda neste período o papel das Autoridades Tradicionais na política


governativa de Angola era exíguo, aliás em plena guerra, nada ou quase
nada funcionava, organizadamente. Até a igreja, como já foi frisado,
sofreu os vícios de uma guerra alimentada pelas grandes potências
mundiais. Mas inda assim, com a independência, há registos de certo
reconhecimento da autoridade das comunidades locais na governação
local, motivado por interesses políticos, sobre tudo na ideia de ganhar
espaço para a direcção da luta armada.

Tal é o exemplo de muitos países africanos, onde a preocupação logo


após as independências foi instituir uma forma de governação que
privilegiou mais a acção directa da actuação do Estado ao nível central
e as Autoridades Locais vistas como um braço terciário para fazer face
aos interesses político-administrativos na era dos comissariados. Com o
multipartidarismo instituído o respeito pelo original impôs-se, e hoje vê
-se o artigo 225.º sobre as atribuições, a competência e a organização.

As atribuições, competência, organização, regime de controlo, da


responsabilidade e do património das instituições do poder tradicional,
as relações institucionais destas com os órgãos da administração local
do Estado e da administração autárquica, bem como a tipologia das
autoridades tradicionais, são regulados por lei.

As mudanças constitucionais operadas em Angola em 1991 e 1992, no


sentido do pluralismo político, trouxeram igualmente como corolário, as
pistas para uma democratização, também a nível local. A Lei
Constitucional de 1992, no Capítulo VII denominado “Do Poder Local “ –
e que melhor se designaria “Da Administração Local” exprimia no seu
artigo 145.º que “A organização do Estado a nível local compreende a
existência da Autarquias Locais e de órgãos Administrativos Locais”. Na

247
Idem

147
verdade sob um chapéu de Poder Local abrigavam-se duas realidades
distintas das quais apenas as autarquias se encaixariam naquela
denominação.

Na realidade, apenas no artigo 146.º da Lei Constitucional se definem,


adequadamente as Autarquias Locais, como “pessoas colectivas
territoriais”, embora não indicando o legislador constitucional de então
as categorias de autarquias que caberiam no seu conceito. Já o artigo
147.º se encarregava de definir o outro lado do falso binómio de Poder
Local, retratando o que se pode designar por Administração Periférica
do Estado.

Na concepção afro, o Estado não nasce com o figurino de dominação


dos povos, mas como instituidor da organização social dos povos, da
convivência social, contrariamente à visão eurocêntrica, que induz no
exercício do poder a forma dominante do Estado. Essa concepção
eurocêntrica tem a sua razão de ser na dominação colonial dos povos.
Os regimes coloniais caracterizaram-se de certo modo pela dominação
do Poder Local, o que se seguiu por uma forma de institucionalização de
um Poder Tradicional que respeitasse os interesses dos dominantes.
Essa atitude apontava para a associação interesseira entre os
representantes do Poder Local e as diferentes administrações coloniais,
as quais procuravam, por seu intermédio, obter o controlo e a
hegemonia.

A busca da essência em torno da Administração Local por vezes parece


paradoxal face aos objetivos de política governamental. No início do
século passado foram registados grandes avanços em torno da
governação.

Certamente que o grande salto foi em torno da integração dos actores


locais na concepção visionária sobre o exercício do poder político com
148
forte incidência na participação e inclusão no processo de tomada
decisão, no caso os CACS, arts.º 24º e 54º da Lei nº 17/10, de 29 de
Julho – Lei da Organização e do Funcionamento dos Órgãos de
Administração Local do Estado. Hoje, a matriz do exercício da
Administração Pública deve ser reorientada no sentido de salvaguardar
o papel social do Estado, dentro das suas tarefas fundamentais, tal
como aparece no art.º 21º da CRA, na vertente não somente do
cumprimento dos Princípios Fundamentais da CRA/2010, arts.º 1º -
20º, mas também na vertente da socialização dos povos –
salvaguardado o Direito Natural.

O surgimento do poder aconteceu de uma forma natural, podemos


observar isso em todas as sociedades humanas: civilizadas, bárbaras e
selvagens, que já se apresentavam organizadas, com um poder político
permanente, ainda que rudimentar. O poder social encontra- se em
todos os casos de interacção.

O poder social estabelece o vínculo com as relacções sociais e a sua


função liga - se à actividade de satisfazer os desejos da sociedade. O
poder social é tido por excelência como a forma vital de aproximar o
governo do governado, promover a participação e tem o respeito pela
causa social. O poder social, como já diz o nome, está em meio à
sociedade. É a capacidade de um colectivo realizar influência social, ou
seja, influenciar um ou mais pessoas, de forma comunicativa e
harmónica. Só com ele se pode alcançar a Justiça Social, art.º 90º CRA,
dentro de uma organização económica, financeira e fiscal mais séria
dentro do Estado Democrático de Direito.

No exercício do Poder Tradicional, a filosofia e a sociologia explicaram


diferentemente a formação do poder. O Poder Tradicional determina
quem ocupa a posição, e as pessoas aceitam o que a tradição manda.
Não é possível observar directamente a formação do poder. Este
apresenta - se, pois, tão natural quanto à sociedade e tentar entender a
sua formação é como tentar entender a formação da sociedade. Quer

149
dizer, é trabalho de raciocínio, de factos certos, reais e presentes que
escapam na observação directa.

O patriarcalismo é o tipo mais puro desta dominação. Presta - se


obediência à pessoa por respeito, em virtude da tradição de uma
dignidade pessoal que se julga sagrada. Todo o comando se prende
intrinsecamente a normas tradicionais (não legais) o que seria um tipo
de “lei moral”. A criação de um novo direito é, em princípio, impossível,
em virtude das normas oriundas da tradição.

A Autoridade Tradicional é um conceito que tem de ser estudado e


sobre o qual deverá haver pronunciamento cauteloso, dado o facto de
existirem diferentes experiências que obedecem a diferentes
perspectivas. Há registos da instrumentalização das Autoridades
Tradicionais pelo governo colonial, e hoje em alguns lugares a
partidarização. Essa noção está enquadrada no reconhecimento de que
a verdadeira Autoridade Tradicional perdeu as raízes decorrentes das
manobras colonialistas. Anos após independência dos países africanos,
um novo fenómeno ocorre como fruto dessas relações passadas. Na
chefia tradicional, o vínculo de unidade e exercício do poder é por
intermédio de cultos e sacramentos que constituem a base fundamental
à ser respeitado no seio da comunidade.

A influência das autoridades tradicionais, após a independência, teve


grande peso no meio rural, mas também fez-se sentir no meio urbano.
As formas tribais de convivência entre os povos podem ser uma
referência importante do quão importante é a consagração do Poder
Tradicional fora do aparato de qualquer forma de organização do
Estado. A fronteira entre o papel do Estado e o papel da liderança
tradicional é aclarada pelo vínculo que este tem no seio da comunidade.
Numa forma de o Estado controlar as acções das Autoridades
Tradicionais, foram essas chamadas para o CACS, e consequentemente
a atribuição de um salário, mas que se devia compreender ser mais um

150
“pocket money” que os prende assim à um dever de gratidão para com o
Estado; tudo na linha de um entendimento científico e económico da
palavra salário no mundo actual. Na verdade os subsídios atribuídos às
Autoridades Tradicionais são um estímulo que resulta do facto de as
Autoridades Tradicionais serem entidades que personificam e exercem o
poder no seio da respectiva organização comunitária tradicional, de
acordo com os valores e normas consuetudinárias, não se devendo
considerar como o único meio de subsistência das Autoridades
Tradicionais”.

As Autoridades Tradicionais devem portanto, viver não só dos subsídios


atribuídos pelo Estado, mas também da actividade desenvolvida pela
comunidade, da lavoura e da colheita e das suas actividades, na área,
em que a autoridade tradicional exerce a sua autoridade. Tais
subsídios, estão legalmente previstos no Decreto Presidencial nº 115/12
de 8 de Junho, Não pode na minha opinião a Administração Pública do
Estado pagar salários aos sobas. Assim acontecendo como vai
acontecendo há uma situação do Poder Tradicional sobordinar-se ao
Poder Político do Estado. De contrário, será necessário que o Estado
tambem paque as Autoridades Eclesiásticas que são do Poder Religioso.
Só se paga à quem presta um serviço útil para nós, e logo este é nosso
subordinado.

Aqui, vê-se logo que nada foi feito à luz da organização do poder
tradicional. No caso da região umbundu são numa linha de mais de 20,
e aqui só foi citado 1, que ocupa o número 2, o Soba/Soma. Tudo o
resto é roupagem política. Assim não, e na linha do sobado como se
verá mais adiante, faltam muitos elementos da composição. E, ademais,
qual foi o critério para se estipular tal subsídio salário? Pode-se
entender que afinal é justo que seja este o salário mínimo em Angola,
12.178.51 kzs. E quanta diferença ao salário do administrador, quer
comunal, quer municipal.

151
Já que numa análise política mais desinteressada, o ajudante do soba
devia estar no lugar do salário mínimo nacional e, não se vê aqui
dignidade alguma. Talvez humanizada, mas humana não. Imagine-se
ajudante do soba, a menos que seja doutra dimensão social, que não a
tradicional. Entenda-se que esses subsídios e fardas, fizeram a
estadualização do Poder Tradicional, o que o pode ou tende a viciar, e
consequentemente ser contrária aos vínculos naturais que as chefias
tradicionais gozam no seio da comunidade.

Pode induzir a uma fragilização das estruturas do Poder Tradicional, na


medida em que na condição de delegação de funções as instituições do
Poder Tradicional passam a gozar de estatuto não próprio, que pode ser
contrário ao estatuto originário, marcado pela defesa dos interesses
socioculturais, face os interesses de representar o Estado ao nível do
escalão territorial mais baixo.

5.3. A Estrutura do Poder Tradicional

Diga-se antes que, poder é ter a faculdade de (veja o que Max Weber diz sobre o
poder tradicional); a possibilidade de; ter direito de; conjunto de órgãos que asseguram
a administração de um Estado; governo de um Estado.248 Ainda chama-se poder a
possibilidade de eficazmente impor aos outros o respeito da própria conduta ou traçar
a conduta alheia. Há tantos poderes, como poder religioso, paternal, político, bélico,
económico, tradicional e também o poder social que é exercido por toda a
colectividade, ou por algum ou alguns dos membros aos quais seja reconhecida
qualidade para actuar em nome de todos em virtude do fenómeno da

248
TEIXEIRA, Graciete, Grande Dicionário, Língua Portuguesa, Acordo Ortográfico, Porto Editora, Porto,
2010

152
representação249. O poder social é uma consequência necessária da organização das
sociedades primárias.250

No gregarismo natural, o homem pertence a dois mundos. O mundo natural e o mundo


cultural (Neste sentido, veja-se o que Roussou diz sobre o mito do “Bom Selvagem”. “
é no mundo cultural que o homem afirma a sua racionalidade que se manifesta nas
realizações duma vida que decorre em convivência. Porém, a convivência postula
regras que disciplinem os comportamentos de cada homem e transmitem a segurança
necessária à vida de relação com os outros. É portanto a Ordem Social,251. É daqui
que se possa entender a origem do Poder Tradicional que mais a frente faremos
referência. Na primeira, a naturalista, o poder ou, melhor a autoridade tem origem
natural, nas sociedades naturais.252 Para a outra a positivista, o poder tem origem
divina e humana.253 E é social, porque assenta nas relações sociais… e, tem em vista
a realização de determinados objectivos considerados importantes.254 Entretanto, pode
ser visto como a capacidade ou a faculdade natural de agir.255 A capacidade de impor
a própria vontade numa relação social, mesmo contra a resistência.256

O poder procede de Deus.257 Imagine-se que, do Gênesis, 9 ao Apocalipse, 21


o termo poder é referido num universo de 1249 vezes. É o termo mais

249
Democracia – forma de governo na qual o poder emana do povo. Governo – Poder supremo do
Estado, autoridade administrativa encarregada do supremo.

250
CAETANO, Marcello, Manual de Ciência Política e Direito Constitucional, Almedina, Coimbra, 2016

251251
JUSTO, A. Santos, Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, Coimbra, 2009, p. 9

252
CABRAL, R., Poder, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Verbo, Lisboa, 1968

253
Idem

254
GONÇALVES, António, Poder in Enciclopédia Lusi Brasileira de Cultura, Verbo, vol. 22, Lisboa, 2002

255
MICHAELIS, Moderno Dicionário da Língua Portuguesa, Câmara Brasileira do Livro, S. Paulo, 1998

256
AAVV, Sociologia, S. Paulo, S. Paulo, 2006

257
CABRAL, R., Poder, in Enciclopédia Luso Brasileira de Cultura, Verbo, Lisboa, 1968

153
poderoso que se conhece até hoje. E o mesmo é exercido naturalmente pelos
homens, vistos capazes de exercê – lo, em diversos níveis.

O termo poder deriva do latim “potere” que por posse significa a capacidade de
realizar uma acção ou processo, ou ainda produzir efeito – aptidão, faculdade,
potência. É a capacidade de exercer uma autoridade legal, constituída e
inerente a uma posição hierárquica superior num organismo privado, num
sector estatal ou na governação de um país. 258Semelhante a autoridade,
mesmo dentro das dificuldades, verifica-se que o poder apresenta-se como
verdadeiro direito de mandar, ao qual corresponde o dever de obediência.

É exigido pela própria natureza social do homem, e não deixando totalmente ao


seu livre arbítrio. Neste sentido, o poder político é de origem divina, assim
como Deus é criador de todas as naturezas, é autor de todos os poderes259
(interprete-se bem esta visão agostiniana sobre a relação poder político e
origem divina, porque pode provocar uma certa ambiguidade) O poder
apresenta-se como o verdadeiro direito de mandar, ao qual corresponde o
dever de obediência.260 É ainda de reconhecer que existem autores que
buscam a compreensão do poder em três tipos de dominação que se
distinguem pelo carácter da dominação (pessoal ou impessoal) e,
principalmente, pela diferença nos fundamentos da legitimidade.261

É por eles, pelos valores que difundem ou pelos conhecimentos que comunicam, que
ocorre a socialização necessária à coesão e integração na dominação tradicional
(onde a autoridade é, pura e simplesmente, suportada pela existência de uma

258
BARROSO, José Durão, Poder, in Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, S- Paulo, Lisboa, 2004

259
AGOSTINHO, Sto, De Civitate Dei, V, 9

260
CABRAL, R. Autoridade, in Enciclopédia Verbo da Sociedade e do Estado, Verbo, Lisboa, 1997

261
WEBER, Max, Ensaios de Sociologia, Guanabara, Rio de Janeiro, 1981

154
fidelidade tradicional); o governante é o patriarca ou senhor, os dominados são os
súditos e o funcionário é o servidor. Veja a título de exemplo a figura do Faraó no
Egipto. O poder passa a ser legitimado e visto como estando associado aos deuses,
sendo exercido dentro de um jogo de dominação espiritual e em respeito aos
antepassados, como fortes mecanismos de persuasão, imposição da autoridade por
intermédio de rituais que levam à fidelidade e à submissão das comunidades.
Pesquisas no campo das ciências sociais têm evidenciado, nas últimas décadas, que
o poder não existe como objecto isolado, não sendo, portanto, algo passível de ser
possuído ou guardado por alguém.

O que existe, na verdade, são relações de poder, ou seja, só podemos conceber o


poder quando duas ou mais pessoas relacionam-se, influenciando-se mutuamente. De
qualquer modo, existem até hoje duas opções fundamentais para o pensamento
político em relação ao poder, o que afirma que a existência dos homens está inscrita
na natureza das coisas e um convencionalismo que a faz derivar de artifícios
elaborados pelos cidadãos de um interesse comum.262 Assim, o poder sem o qual
nenhuma sociedade pode subsistir, desempenha com efeito, uma tripla função:

4. Encarregar-se da coesão interna do grupo em questão;


5. Organizar a defesa perante potências estrangeiras;
6. Instaurar a justiça e a paz civil.

Angola como país, é formado por muitas e diversas comunidades jurídicas, e que cada
uma apresenta os seus costumes e suas crenças, situação que se deve ao facto de
que durante a colonização coexistiram dois poderes, sendo um poder central
(Português), e o poder tradicional angolano. É uma dicotomia que resulta de uma
vasta pluralidade de ordens jurídicas, entre o Estado Colonial e a Direito Indígena, o
famoso Consuetudinário ou Nativo.263

262
FARAGO, France, Filosofia, As Grandes Correntes do Pensamento Político, Porto, Porto, 2007

263
NUNES, Raúl Carlos Vasques Araújo / Elisa Rangel, Constituição da República de Angola, Anotada,
Mayamba, Luanda, 2014

155
Desta forma, a Constituição de Angola faz uma enquadramento jurídico –
constitucional do costume, artº 7º instituindo a sua dignidade jurídica. Daí que é
reconhecido o estatuto, o papel e as instituições do Poder Tradicional, artsº 223º -
225º. Assim, muitas vezes no nível internacional ser polémico saber que a lei em
Angola não é a única fonte de direito, o costume passa igualmente a ter a mesma
força jurídica. Este conteúdo pode ser ainda visto noutras matérias que se aconselham
de leitura importante em, 264 e 265.

O Artigo 224.º faz alusão às Autoridades Tradicionais, dizendo que são entidades que
personificam e exercem o poder no seio da respectiva organização político -
comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas consuetudinárias e no
respeito pela Constituição e pela lei. O Poder Local é uma realidade antiga em Angola,
quer dizer, existe e está organizado antes do surgimento do Estado moderno
efectivamente. Durante a fase de ocupação colonial, o território angolano era gerido
por unidades políticas, sobretudo reinos dirigidos por um soberano, de acordo com um
sistema de filiação ou de linhagem cuja origem do poder assentava nos antepassados,
num desígnio sobrenatural. Uma identidade nacional será sempre um ponto de
referência para o qual deverão confluir os esforços de um povo. As pequenas
identidades constituem o baluarte da existência das maiores, pois uma vez violentadas
na sua essência provocam crises nas sociedades.

As pequenas identidades (tribo ou etnia), violentadas, surgem e ressurgem,


reclamando o seu lugar na história.266 E, a mesma história revela que a acção do
Poder Tradicional foi desde sempre dominante, porém, durante a fase colonial e pós-
colonial, essa foi negligenciada, primeiro pelos regimes colonizadores e em seguida
pela política marxista a que governo instituídos após independência se apostou, mas
esse poder sempre resistiu à força da sua originalidade, preservando as suas crenças
e os hábitos e costumes das comunidades, houve na verdade momentos que a igreja

264
ARÚJO, Raúl C. O Presidente da República no Sistema Político de Angola, Casa das Ideias, Luanda

265
FEIJÓ, Carlos Maria da Silva, A Coexistência Normativa entre o Estado e as Autoridades Tradicionais
na Ordem Jurídica Plural Angolana, Almedina, Coimbra, 2003

266
Idem

156
desvaneceu, capelas que ficaram comités e …, igrejas e missões que foram
transformadas em bases, e… centros de treinamento militar.

A busca da essência em torno da Administração Local por vezes parece paradoxal


face aos objetivos de política governamental. Certamente que o grande salto foi em
torno da integração dos actores locais na concepção visionária sobre o exercício do
poder político com forte incidência na participação e inclusão no processo de tomada
decisão, no caso os CACS, arts.º 24º e 54º da Lei nº 17/10, de 29 de Julho – Lei da
Organização e do Funcionamento dos Órgãos de Administração Local do Estado.
Hoje, a matriz do exercício da Administração Pública deve ser reorientada no sentido
de salvaguardar o papel social do Estado, dentro das suas tarefas fundamentais, tal
como aparece no art.º 21º da CRA, na vertente não somente do cumprimento dos
Princípios Fundamentais da CRA/2010, arts.º 1º - 20º, mas também na vertente da
socialização dos povos – salvaguardado o Direito Natural.

O surgimento do poder aconteceu de uma forma natural, podemos observar isso em


todas as sociedades humanas: civilizadas, bárbaras e selvagens, que já se
apresentavam organizadas, com um poder político permanente, ainda que rudimentar.
O poder social encontra- se em todos os casos de interacção. O poder social
estabelece o vínculo com as relacções sociais e a sua função liga - se à actividade de
satisfazer os desejos da sociedade. O poder social é tido por excelência como a forma
vital de aproximar o governo do governado, promover a participação e tem o respeito
pela causa social.

O poder social, como diz o nome, está em meio à sociedade. É a capacidade de um


colectivo realizar influência social, ou seja, influenciar um ou mais pessoas, de forma
comunicativa e harmônica. Só com ele se pode alcançar a Justiça Social, art.º 90º
CRA, dentro de uma organização económica, financeira e fiscal mais séria dentro do
Estado Democrático de Direito. No exercício do Poder Tradicional, a filosofia e a
sociologia explicaram diferentemente a formação do poder. O Poder Tradicional
determina quem ocupa a posição, e as pessoas aceitam o que a tradição manda.

157
A Autoridade Tradicional é um conceito que tem de ser estudado e sobre o qual
deverá haver pronunciamento cauteloso, dado o facto de existirem diferentes
experiências que obedecem a diferentes perspectivas. Há registos da
instrumentalização das Autoridades Tradicionais pelo governo colonial, e hoje em
alguns lugares a partidarização. Essa noção está enquadrada no reconhecimento de
que a verdadeira Autoridade Tradicional perdeu as raízes decorrentes das manobras
colonialistas. Anos após independência dos países africanos, um novo fenômeno
ocorre como fruto dessas relações passadas. Na chefia tradicional, o vínculo de
unidade e exercício do poder é por intermédio de cultos e sacramentos que constituem
a base fundamental à ser respeitado no seio da comunidade.

A influência das autoridades tradicionais, após a independência, teve grande peso no


meio rural, mas também fez-se sentir no meio urbano. As formas tribais de convivência
entre os povos podem ser uma referência importante do quão importante é a
consagração do Poder Tradicional fora do aparato de qualquer forma de organização
do Estado. A fronteira entre o papel do Estado e o papel da liderança tradicional é
aclarada pelo vínculo que este tem no seio da comunidade. Na verdade os subsídios
atribuídos às Autoridades Tradicionais são um estímulo que resulta do facto de as
Autoridades Tradicionais serem entidades que personificam e exercem o poder no
seio da respetiva organização comunitária tradicional, de acordo com os valores e
normas consuetudinárias, não se devendo considerar como o único meio de
subsistência das Autoridades Tradicionais”.

As Autoridades Tradicionais devem portanto, viver não só dos subsídios


atribuídos pelo Estado, mas também da actividade desenvolvida pela
comunidade, da lavoura e da colheita e das suas actividades, na área, em que
a autoridade tradicional exerce a sua autoridade. Tais subsídios, estão
legalmente previstos no Decreto Presidencial nº 115/12 de 8 de Junho, Não
pode na minha opinião a Administração Pública do Estado pagar salários aos
sobas. Assim acontecendo como vai acontecendo há uma situação do Poder
Tradicional subordinar-se ao Poder Político do Estado. De contrário, será
necessário que o Estado também pague as Autoridades Eclesiásticas que são

158
do Poder Religioso. Só se paga à quem presta um serviço útil para nós, e logo
este é nosso subordinado.

5.4. A Organização do Poder Tradicional nos Umbundu

Dentro da estrutura organizativa do Poder Tradicional fazem parte do conselho alguns


chefes das povoações, (sekulo ou soba), uma composição de conselhos que difere em
números, conforme os usos, costumes e tradicionais dos povos. Quanto maior for o
número de povoações que dependem do sobado, maior é a composição do conselho.
São ainda parte do conselho algumas personagens que quase funcionam a tempo
integral na Embala”.267

Toda e qualquer autoridade tradicional encarna a vontade do poder do povo, “Mbeu


kalondi kótchisingi, omanu vokapako”. Aqui dá para se ter uma imagem clara do
quanto a democracia em África não chegou com os colonialistas. Pois que “o cágado
não sobe ao tronco a não ser através de pessoas ou de veredicto popular”.268 Se em
alguns momentos há guerras em África por uma reclamação popular é preciso agir de
consciência limpa, e nunca por emoção geo-política importada, do caracter
internacionalista que os Estados têm. É preciso o veredicto do povo. Os poderes
tradicionais africanos e de modo especial os do povo umbundu sempre se principio.

Toda e qualquer sociedade no Mundo para se manter em ordem, disciplina, coesão, e


ter um desenvolvimento económico e social é necessário haver homens capazes de
defender a cultura e as suas variadas tradições, bem como a unidade e indivisibilidade
do poder tradicional ou de qualquer outro poder.269

É nesta vertente que a Administração Local do Estado deve trabalhar para o


desenvolvimento económico e social, art.º21º e 90º da CRA para na verdade se
garantir a dignidade da pessoa humana.

267
MAT, Iº Encontro Nacional Sobre a Autoridade Tradicional em Angola, Nzila, Luanda, 2003, p. 96

268
Idem, p. 89
269
Idem, p.89

159
No planalto central, a estrutura do Poder Tradicional cumpre a seguinte hierarquia, dos
“”Vakw´elome”.270

1. Rei – autoridade máxima do reino;


2. Rainha (Inakulo) – a primeira-dama ou esposa do rei;
3. Soma Epalanga – substituto directo do rei nas suas ausências;
4. Soma Tchilala – que toma conta dos akokoto;
5. Soma Tchikola – substituto directo do Tchilala;
6. Soma Tchitonga - que toma conta do fogo do jango, limpeza e ordem.
Responsável pela aquisição do fogo produzido do tronco de uma arvore
seca;
7. Soma Utchila – este, tem a missão de assegurar os movimentos do
soba, quando este estiver a dançar;
8. Soma Henjengo – aquele que tem a missão de em cada sentença
aumentar ou diminuir o volume das multas;
9. Soma Mweychalo – tem a obrigação de levar quotidianamente o banco
do soba, para onde quer que va;
10. Soma Ndalu – tem a missão de segurar o animal durante o abate, e
cuidar do sangue;
11. Soma Lombundi – tem a missão de fechar e abrirar entradas e saídas da
ombala;
12. Soma tchikakula – tem a missão de arranjar capim bom para preparar os
porcos depois de abatidos e ainda tem a responsabilidade de controlar
as queimadas durante a cacada e limpeza da ombala;
13. Soma Kalufele – colaborador directo do Soma Kalufele;
14. Soma Kesenje – conselheiro drecto do Rei e juiz;
15. Soma Lusenje – conselheiro e juiz adjunto;
16. Soma Ulwepandela – responsável pelo içar descer a bandera;
17. Soma Sindako – é o chefe Estado Maior General das forças para manter
inviolável o reino, e continuar a ocupação de novas terras;

270
Idem, pp. 97-98

160
18. Soma Ekundukundu – responsável do lombinho do rei, depois de abatida
a cabeça é ele que retira o lombo, prepara-o convenientemente e
apresenta – o ao dono, normalmente com a aguardente necessário. A
“Primeirinha” (é o responsável pelo economato)
19. Soma Sipata – é o guarda – costas do rei
20. Soma Kapitango – chefe da unidade de protecção física da embala (é a
UPIP – Unidade de Protecção de Entidade Protocolares);
21. Soma Tembwasoma – é eunuco e toma conta das esposas do rei.
Talvez seja por isso que maior parte dos reis mesmo tendo muitas
esposas, não deixaram muitos filhos;
22. Soma Mwehombo – que trata do gado do rei, (veterinário da ombala);
23. Soma Sunguahanga – responsável pela informação e mobilização (é o
ministro da comunicação social e comissário político);
24. Soma Ndaka – como mensageiro, tem um papel igual ao de um
jornalista, radialista e Angop. Colabora directamente com o
Sungahanga, mas com competências amplamente distintas. Só este é
conhecido pelo povo face aos anúncios que faz, normalmente
vociferando ao anoitecer para que todos possam receber a mensagem
do rei, quando já se encontram recolhidos nas suas casas para jantar e
preparar-se para descansar (dormir);
25. Soma Lubungululu – trata da iluminação da ombala, é o ministro da
energia e águas. Ocupa um lugar de forte destaque. Tem aina sobre si o
acender e apagar do fogo em cerimónias da morte do rei e o
empoçamento do seu substituto. E informar ao povo que já pode
anunciar o nome do novo rei.

Há que contar aqui, com a outra linha não menos importante, que são as mulheres
do sobado:

1. Nangandala – que nos rituais e viagens do Soba, esta mulher é que leva
a quinda onde vai a cabaça de tchisangwa, garrafões ou litros de
aguardente, óleo de palma, alimentação já confeccionada para o soba.

161
2. Tchiwo – Tchipembe – cozinheira do soba, tem alto conhecimento de
gastronomia e os mimos alimentares do soba. Podendo mesmo em
certos momentos decidir sobre como resolver as ressacas dos
vakw´elombe. É a governanta do palácio;
3. Siya – é uma mulher jovem e muito bonita de preferência entre as outras
da aldeia (miss), entregue ao soba para com ela viver, toma conta da
comida provando-a antes de entregar ao soba, bem como a bebia.
Ocupa um lugar não só de dama, como também da segurança íntima.

É desta forma que o conselho da Embala se assemelha a organização social do


Estado, e desempenha entre outras funções, as seguintes:

1. Aconselhar o Soma, ao qual se junta outro de uma nova


denominação (Regedor), sobre assuntos relacionados a
governação e tomada de decisões sobre matéria delicada;
2. Assessorar o Soma nos julgamentos, segundo a delicadeza do
assunto em julgamento.

São na verdade os assuntos de governação e justiça, que juntam o Poder Tradicional


com a Administração Local do Estado, na busca do “Bem – Estar Comum da
Sociedade.” Que se pode compreender aqui como justiça social.

Falta aqui a figura do regedor, que na organização social é o colaborador imediato


entre as Autoridades Tradicionais e a Administração Local do Estado. Que, teria o
poder de organizar as situações de registo eleitoral, censo populacional, campanhas
de vacinação, distribuição de insumos agro-pecuários, e outros serviços sociais da
comunidade, escolas, postos médicos, saneamento básico, etc.

5.5. A Relação do Poder Tradicional Com a Administração Local do


Estado

Como já foi frisado no parágrafo anterior, a relação entre o Poder Tradicional e a


Administração Local do Estado, deve ter como meio a figura do regedor, que por
exemplo seria ele a responsabilizar-se pelos salários de todo pessoal da corte, e
nunca o cidadão comum estaria na fila do banco com um mais velho da corte.

162
A base da relação entre o poder tradicional com a administração local, é o facto de ser
ter colocado na Constituição a ideia de que o costume é fonte de Direito, o que vai nos
levar ao Direito Costumeiro. É que, este, o direito consuetudinário também é positivo.
A sua positividade não reside, no entanto, num acto estadual de criação do direito,
mas sim na prática duradoura e reiterada duma regra, ligada à vontade comunitária de
vigência jurídica.271 Daí é que se pode então aferir a situação de autoridades
tradicionais, que gozavam de grande respeito e são consideradas como
representantes do povo junto de Deus (Kalunga), administram as populações, os
territórios e os seus bens; as crianças são educadas no «Ondjango», (lugar reservado
para reunião e educação familiar “, algo que vem acontece desde os tempos mais
longínquos.

Depois da independência de Angola, verificou-se que as Autoridades Tradicionais


foram pura e simplesmente esquecidas, postas de lado. Em sua substituição e das
suas ombalas, surgiram os comités e responsáveis que resolviam os litígios sem
experiência no Direito Costumeiro.

“As autoridades tradicionais servem de interlocutores nos processos


educativos com vista à promoção e solidificação da cidadania nas povoações,
aldeias comunas e municípios entre os cidadãos e o Estado”.

A Lei n.º 17/10 de 29 de Julho faz referência num dos capítulos aos CACS
(Conselhos de Auscultação e Concertação Social), advoga que as Autoridades
Tradicionais a par das igrejas reconhecidas devem fazer parte da constituição
dos CACS, ou seja, devem estar representadas. Desta forma os CACS são
órgãos de consulta dos governadores e administradores municipais, sobretudo
em matéria socioeconómica e política. Os dirigentes têm aí um ponto focal de
oportunidade para poderem influenciar as agendas locais, através da

271
KAUFMANN, Arthur, Filosofia do Dirieto, 3ª ed. F.C.G. Lisboa, 2009

163
apresentação dos problemas dos seus representados e do estabelecimento de
mecanismos de cooperação com os órgãos locais.

Relativamente ao reconhecimento constitucional das Autoridades Tradicionais,


tendo em consideração o importante papel que estas desempenham junto das
populações e comunidades, a Constituição da República de Angola no seu
Artigo 223º, reconhece as Autoridades Tradicionais enquanto instituições
ligadas ao Poder Tradicional. De realçar que as Autoridades Tradicionais,
apesar de estarem, por regra, representadas por uma pessoa física, não são
formadas apenas pelo seu titular, o que significa que, o reconhecimento não é
subjetivo, mas sim objetivo. O Estado não reconhece o indivíduo, reconhece
sim a instituição que o indivíduo representa, ou seja, na perspetiva da
organização administrativa, o Estado reconhece a instituição Autoridade
Tradicional.

“Nesta ordem de ideias, deve-se salientar que, ainda que as Autoridades


Tradicionais sejam reconhecidas e não criadas pelo Estado, o seu
reconhecimento deriva do facto de as Autoridades Tradicionais existirem antes
do surgimento do Estado”. Existem níveis de chefias entre as Autoridades
Tradicionais na província do Huambo, no corredor oeste isto em função da
hierarquização estabelecida: soba grande, soba e seculo. O soba grande, que
corresponde ao regedor noutras províncias, tem representação normalmente
equivalente a uma comuna, com a prorrogativa de convocar todos os outros
sobas comunais. O soba tem quase todas as prerrogativas que goza o soba
grande, exceção para as questões salariais e poder de resolução de certos
problemas, áreas onde se encontra está abaixo do soba grande. Os seculos
funcionam como ajudantes de cada soba.

No seu reconhecimento, o Estado garante um subsídio que é atribuído mensalmente


às autoridades tradicionais para garantir a sua subsistência. Recentemente, tal
subsídio sofreu um incremento sem que haja qualquer interferência na sua atividade
164
ou instrumentalização por via disso. Feijó reconhece que apesar do seu estatuto social
de autoridades tradicionais, não podemos negar os seus direitos políticos e de
cidadania. Não podemos rejeitar a liberdade que esses cidadãos têm para se filiarem
num ou outro partido, o seu militantismo ou, ainda, a sua simpatia. Nada pode impedir
essas pessoas de livremente exteriorizarem as suas convicções.

As tradições de certa forma continuam detendo os valores ancestrais, sendo que a


função secular tradicional continua desassociada do poder estadual. Em outras
palavras, tal como foi instrumento de coerção do exercício do poder no período secular
e o nacionalismo na fase moderna, hoje

Porém, o reconhecimento da presença de “outras autoridades”, para além do


formalismo estabelecido pelo Estado moderno, representa um desafio que implica,
simultaneamente, outras referências epistêmicas para além da forma tecno burocrática
de funcionamento do Estado (incluindo a legitimidade pelos antepassados etc.), assim
como a negação do modelo unitário de cidadania (através do reconhecimento de
privilégios hereditários e de noções plurais sobre direito e Administração Local). Do
ponto de vista dos actores locais, as pessoas legitimam os dirigentes a quem recorrem
para resolver um problema, seja esta autoridade parte da estrutura oficial do Estado
ou parte da arena das estruturas comunitárias. Recorrer às “autoridades tradicionais”
para além da Administração Local depende da lealdade e da confiança daqueles que
reconhecem nessas autoridades os depositários da sabedoria e do poder para
resolver problemas, para proteger os interesses do grupo. No entanto, sem os quadros
capazes, sem um sistema de ensino médio a funcionar e num contexto de guerra civil
que tudo subordinava às necessidades da guerra, a tarefa de falar sobre a
Administração Pública não era fácil”.272

A relação com o poder tradicional deverá contribuir para o rejuvenescimento


deste poder histórico e anterior ao próprio Estado, e não evoluir para novas
tentativas de enquadramento das autoridades tradicionais nos órgãos
autárquicos, o que a prazo viria a equivaler à extinção do poder tradicional com
toda a perda de valores culturais que essa extinção implicaria. A repristinação

272
CARLOS, Burity da Silva, Teoria Geral do Direito, UAN, Luanda, 2004

165
das autoridades tradicionais, tal como operada pela Constituição da República
de Angola, deverá encontrar o seu ponto de contacto ao nível das comunas e
das povoações onde o Direito Consuetudinário, desde que não ofenda a
dignidade da pessoa humana, deverá ser o Direito Aplicável para defesa dos
interesses específicos das respectivas comunidades.

A liderança num contexto de governação participada terá de ser entendida como uma
actuação colectiva que inclui o envolvimento da sociedade. Entretanto, a
complexidade dos problemas actuais, o alargamento das áreas de intervenção dos
municípios, a necessidade de envolvimento e participação dos cidadãos e outros
atores locais requerem a adopção de outras formas de colaboração, mais flexíveis e
informais, que permitam o desenvolvimento das dinâmicas locais, bem como a
valorização de recursos culturais e a intervenção social. A teoria do desenvolvimento
territorial e a teoria do desenvolvimento endógeno compartilham dois princípios
metodológicos fundamentais: a mesma concepção do espaço econômico e a
prioridade para ações vindas “de baixo para cima” nas políticas de desenvolvimento. O
desenvolvimento endógeno propõe-se a atender às necessidades e demandas da
população local através da participação ativa da comunidade envolvida. Nesses
termos, a política do Estado, no quadro da reforma administrativa, há que ser definida
atendendo aos pressupostos seculares da vivência dos povos.

As Autoridades Tradicionais perfazem o segmento que enraíza o Poder Local, e desde


logo há que atender que a sua atuação decorre da sua legitimidade, de um processo
social, histórico, antropológico e cultural que demarca a vivência secular dos povos. O
facto do poder tradicional ser orientado pelo direito costumeiro no quadro da reforma
da governação local, este poderá passar a ter um duplo estatuto jurídico: decorrente
do direito positivo e o direito costumeiro. Enquanto o primeiro denotará as formas de
organização, o segundo dará a crença e legitimidade das formas de actuação das
instituições do poder tradicional. Todavia, um elemento fundamental é o facto de que a
autoridade tradicional, quadro político coordena as actividades do grupo, gerindo as
opiniões e procurando consensos entre o grupo. Este papel poderá ser reforçado na
medida em que maiores desafios que se colocam nas modernas sociedades
democráticas.

166
Dessa confluência, urge a necessidade de se assegurar a superintendência da função
delegada, quer pelo Estado, quer pela administração autárquica que detém a
responsabilidade de administração do território nacional ao nível local. Nos casos
singulares e em respeito às formas heterogéneas de organização do poder tradicional,
essas instituições poderão criar serviços que atentam a melhor prestação das
competências que recaem sobre esses elos tradicionais administrativos.

Os órgãos do poder tradicional na estrutura orgânica do poder tradicional


compreendem:

Líder comunitário - o líder comunitário, quer rei, soba ou seculo, goza de autoridade
tradicional própria no exercício das suas funções e atribuições. O líder comunitário
deve ser alguém com uma descendência local e com domínio dos laços que vinculam
o passado das comunidades locais, exercendo o poder legitimado ou por elo político.
O líder comunitário representa os interesses da comunidade locais, poderá ter como
funções:

a) Representar a comunidade local;


b) Zelar pelo cumprimento das normas do direito costumeiro e das demais
aplicáveis;
c) Orientar as atividades comunitárias no seio da circunscrição;
d) Representar administrativamente os interesses da comunidade local;
e) Encaminhar as informações solicitadas pela administração local;
f) Convocar o conselho local.

O conselho local - o conselho local e o órgão deliberativo, representativo colegial, de


consulta e auscultação, composto por todos os conselheiros e chefiado pelo líder
comunitário. O conselho tem como principais funções:

1. Analisar e emitir pareceres sobre matérias de especialidade;

167
2. Acompanhar a execução dos diferentes projetos em curso na região;
3. Acompanhar as atividades administrativas no seio da comunidade;
4. Analisar o funcionamento e direção das estruturas do poder tradicional;
5. Emitir parecer quanto à criação e à extinção das estruturas do poder
tradicional;
6. Deliberar sobre outras matérias de interesse da comunidade local.

Os conselheiros: os conselheiros são individualidades de reconhecido mérito no seio


da comunidade, pela valência da sua experiência, domínio das crenças e hábitos
culturais, que apoiam o líder comunitário nas suas funções. Os conselheiros, no
exercício das suas atividades, têm funções delegadas do líder comunitário em razão
da ala que se entenda que deverá passar a ser supervisionada pelo conselheiro. Os
conselheiros, dentre os serviços, podem se ocupar com a celebração de casamentos
tradicionais, os rituais tradicionais, a arrecadação dos tributos locais, a gestão de
terras e meio ambiente e tarefas mínimas na escala administrativa.

Ressalva-se que autonomia tributária não pode ser confundida com autonomia
financeira, na medida em que os projetos de investimento na circunscrição da
autoridade tradicional estão previstos na matriz dos projetos da administração local do
Estado ou da administração autárquica e, por conseguinte, esta região é parte
integrante da administração local, sendo que a gestão é que vai obedecer a uma
delegação, a Autoridade Local. Coordenação entre Administração Local e Autoridades
Tradicionais Não caberá à administração local intervir no seio da administração
tradicional, excepto quando e na superintendência dos atos e fiscalização da ação
desses em nível local, atendendo que este núcleo se encerre na administração local
autónoma. A intervenção tem como carácter de excepcionalidade e temporária, e sem
prejuízo para a autonomia do poder tradicional. Denota dessa natureza a necessidade
de uma articulação entre a administração local e a autoridade tradicional.

É uma relação baseada na colaboração, no sentido de alcançar objetivos comuns,


utilizando métodos mais ou menos consensuais. A cooperação é ainda vista por
muitos indivíduos como a forma ideal de gestão das interações humanas, pondo a
tônica na obtenção e distribuição de bens e serviços em detrimento da sua
confiscação ou usurpação.
168
A actividade exercida pela entidade delegante visando assegurar que os atos da
autoridade tradicional não entrem em conflito com as premissas da administração
local. A delegação de poderes não é uma alienação porque o delegante não fica alheio
à competência que decida delegar, nem é uma autorização, porque antes de o
delegante praticar o ato de delegação o delegado não é competente: a competência
advém-lhe do ato de delegação. Por outro lado, a competência exercida pelo delegado
com base na delegação e poderes não é uma competência própria, mas uma
competência alheia. Logo, a delegação de poderes constitui uma transferência do
delegante para o delegado: não, porém, uma transferência da titularidade dos
poderes, mas uma transferência do exercício dos poderes.

 No Âmbito Histórico - O poder local é explicado pela necessidade dos


habitantes de uma determinada parcela territorial se organizarem em
função das relações de um passado histórico comum, de vizinhança e
dos interesses comuns e próprios;
 No Âmbito Político - O poder local significa a necessidade das
populações de um determinado território se autoadministrarem e gerirem
autonomamente os seus interesses próprios e comuns;
 No Âmbito Jurídico - O poder local funda-se nos princípios da
autonomia local e descentralização administrativa. Aqui é necessário
não confundir as expressões autonomia local e descentralização
administrativa, pois não são expressões que se equivalham.

Depois da revisão constitucional de 1992, da qual resultou a aprovação da Lei


n.º 23/92, de 16 de Setembro, Lei Constitucional, houve pelo menos dois
processos constituintes, cujas comissões constitucionais, encarregues de
procederem aos trabalhos preparatórios de revisão constitucional, aprovaram
em matéria ligada ao poder local, vários princípios que veremos mais adiante.
Já a constituição actual, no seu (Artigo 213º, nº 1) sobre o poder local, afirma
que: “a organização democrática do Estado ao nível estrutura-se com base no
princípio da descentralização política administrativa, que compreende a

169
existência de formas organizativas do poder local”. No seu ponto 2, acresce
dizendo que “a forma de organização do poder local compreende as autarquias
locais, as instituições do poder tradicionais, e outras modalidades específicas
de participação dos cidadãos, nos termos da lei”.

Os princípios presentes na constituição, com pertinência para análise do


processo de descentralização, são o princípio da autonomia local; o princípio
da descentralização administrativa; o princípio da desconcentração
administrativa; o princípio da descentralização e desconcentração financeira; o
princípio do Estado unitário; o princípio do exercício harmonioso do poder e a
promoção e consolidação da unidade nacional; o princípio da eleição por
sufrágio universal, livre, direto, secreto, igual e periódico dos órgãos
representativos do poder local.

As autoridades tradicionais possuem legitimidade com base no direito


costumeiro de cada região. “A fonte imediata do direito é a lei. Esta, porém, por
mais que se alarguem as suas generalizações, por mais que se espiritualize,
jamais poderá compreender a infinita variedade dos fenómenos sociais, que
emergem da elaboração constante da vida e vêm pedir garantias ao direito.

170
5.6. O Tribunal Tradicional

O tribunal do soma “Ekanga” é o tribunal supremo do sobado. O


Sobado tem a última palavra em qualquer caso, mas a maioria dos
somas agem segundo os costumes.273 De acordo com os depoimentos
dos mais velhos e autoridades tradicionais, apontam no sentido de,
ainda hoje os tribunais tradicionais “Ekanga” funcionam, quando ao
chefe da povoação, é apresentada uma queixa. Começando assim ua
acção penal, que vai decorrer no âmbito do costume local.

Aí certos pleitos como a de herança, são resolvidos de ntro da família.


São os chefes da povoação que presidem o tribunal da sai respectiva
jurisdição. Em caso de alguma complexidade no caso, e desacordos
entre as partes, o problema é transferido para a Embala, e de acordo
com a importância do caso sub judice, o julgameto pode ser delegado ao
Soma Epalanga. Ekanga funciona em recinto aberto, dentro do terreno
terreno da Embala, debaixo de uma mulemba frondosa ou mesmo
dentro de um ndjango. A audiência de julgamento, compreende o
principio da publicidade, art.º 407º do CPP.

Ai, o queixoso e o acusado, levando consigo as testemunhas e os


defensores, a matéria da acusação proferida em voz alta e em bom tom
usando toda uma retórica que caracteriza as belezas da língua local, e é
escutada com muita atenção. As testemunhas têm obrigação de
fornecer uma descrição completa de todas a suas relações com as
pessoas implicadas no caso, isso tudo para que o tribunal saiba de que

273
TERRITÓRIO, Ministério da Administração do. 1º Encontro Nacional sobre Autoridade Tradicional
em Angola. Luanda : Nzila, 2003.
171
lado estão as suas antipatias. Em caso de de falso testemunho ou
declarações, ou mesmo mentiras há sanções pesadas para o
prevaricador. O cerimonial judicial não foge muito do o dos tribunais
modernos, artsº 435º e 443º todos do CPP.

Os debates acalorados pela beleza de retórica e maelabilidade de


conceitos da filosofia africana, habilmente conduzidos de ambos os
lados, chegam a empolgar a assistência. Sempre que hajam dúvidas ou
impasses, o juiz pode suspender a audiência para repouso e concerto
em colóquios privados, onde somente tomam parte aqueles mais velhos
de dignidade relevante na comunidade. Os casos mais frequentemente
levados na Ekanga são os tratam de:

1. Adutério;

2. Violação;

3. Bruxaria/Feitiçaria;

4. Assassinio / Homicídios;

5. Roubo / Furto;

6. Ofensas Corporais;

7. Ofensas Morais;

8. Litígios de Terras;

9. Burlas entre outras coisas.

Na comunidade rural a ideia do crime está muito associada ao mal que


alguém capaz de praticar a outro membro da localidade ou mesmo fora
dela. É a ideia de ninguém ferir os bons costumes e não agir fora dos
ditâmes da tradição.

172
Antigamente as sentenças eram todas na linha da história da evolução
do Processo Penal aquelas que se situação, tal como acontece dentro
dos traços gerais da evolução histórica da justiça penal, tal é caso do:274

1. O Período de vingança e da justiça privada;

2. O período da justiça publica;

Verdade é que, hoje com a presença do Estado de Direito, aquelas


soluções costumeiras que atentam contra a dignidade da pessoa
humana tendem na maioria dos casos e grupos a ser ultrapassadas ou
até mesmo proibidas.

5.7. A Estrutura do Poder Tradicional

Dentro da estrutura organizativa do Poder Tradicional fazem parte do


conselho alguns chefes das povoações, (sekulo ou soba), uma
composição de conselhos que difere em números, conforme os usos,
costumes e tradicionais dos povos. Quanto maior for o número de
povoações que dependem do sobado, maior é a composição do conselho.
São ainda parte do conselho algumas personagens que quase
funcionam a tempo integral na Embala”, (Território, 2003). No planalto
central, a estrutura do Poder Tradicional cumpre a seguinte hierarquia:

1. Rei – autoridade maxima do reino;


2. Rainha (Inakulo) – a primeira dama ou esposa do rei;
3. Soma Epalanga – substituto directo do rei nas suas ausências;
4. Soma Tchilala – que toma conta dos akokoto;
5. Soma Tchikola – substituto directo do Tchilala;
6. Soma Tchitonga - que toma conta do fogo do jango, limpeza e
ordem. Responsável pela aquisição do fogo produzido do tronco
de uma arvore seca;

274
RAMOS, Vasco António Grandão. Direito Processual Penal, Noções Fundametais. Lobito : Escolar
Editora, 2013.
173
7. Soma Utchila – este, tem a missão de assegurar os movimentos
do soba, quando este estiver a dançar;
8. Soma Henjengo – aquele que tem a missão de em cada sentenca
aumentar ou diminuir o volume das multas;
9. Soma Mweychalo – tem a obrigação de levar quotidianamente o
banco do soba, para onde quer que va;
10. Soma Ndalu – tem a missão de segurar o animal durante o
abate, e cuidar do sangue;
11. Soma Lombundi – tem a missão de fechar e abrit as
entradas e saídas da ombala;
12. Soma tchikakula – tem a missão de arranjar capim bom
para preparar os porcos depois de abatidos e ainda tem a
responsabilidade de controlar as queimadas durante a cacada e
limpeza da ombala;
13. Soma Kalufele – colaborador directo do Soma Kalufele;
14. Soma Kesenje – conselheiro drecto do Rei e juiz;
15. Soma Lusenje – conselheiro e juiz adjunto;
16. Soma Ulwepandela – responsavel pelo içar descer a
bandera;
17. Soma Sindako – é o chefe Estado Maior General das forças
para manter inviolavel o reino, e continuar a ocupação de novas
terras;
18. Soma Ekundukundu – responsável do lombinho do rei,
depois de abatida a cabeça é ele que retira o lombo, prepara-o
convenientemente e apresenta – o ao dono, normalmente com o
aguardente necessário. A “Primeirinha” (é o rsponsavel pelo
economato);
19. Soma Sipata – é o guarda – costas do rei
20. Soma Kapitango – chefe da unidade de protecção física da
embala ( é a UPIP – Unidade de Protecção de Entidade
Protocolares);

174
21. Soma Tembwasoma – é eunuco e toma conta das esposas
do rei. Talvez seja por isso que maior parte dos reis mesmo tendo
muitas esposas, não deixaram muitos filhos;
22. Soma Mwehombo – que trata do gado do rei, (veterinário da
ombala);
23. Soma Sunguahanga – responsável pela informação e
mobilização (é o ministro da comunicação social e comissário
político);
24. Soma Ndaka – como mensageiro, tem um papel igual ao de
um jornalista, radialista e Angop. Colabora directamente com o
Sungahanga, mas com competencias amplamente distintas. Só
este é conhecido pelo povo face aos anuncios que faz,
normalmente vociferendo ao anoitecer para que todos possam
receber a mensagem do rei, quando já se encontram recolhidos
nas suas casas para jantar e preparar-se para descançar (dormir);
25. Soma Lubungululu – trata da iluminação da ombala, é o
ministro da energia e águas. Ocupa um lugar de forte destaque.
Tem aina sobre si o acender e apagar do fogo em cerimónias da
morte do rei e o empocamento do seu substituto. E informar ao
Lubungululu que já pode anunciar o nome do novo rei.

É desta forma que conselho da Embala se assemelha ao actual


Conselho de Ministros, e desempenha entre outras funções, as
seguintes:

3. Aconselhar o Soma, ao qual se junta outro de uma nova


denominação (Regedor), sobre assuntos relacionados a
governação e tomada de decisões sobre matéria delicada;
4. Assessorar o Soma nos julgamentos, segundo a delicadeza
do assunto em julgamento.

São na verdade os assuntos de governação e justiça, que juntam o


Poder Tradicional com a Administração Local do Estado, na busca do

175
“Bem – Estar Comum da Sociedade.” Que se pode compreender aqui
como justiça social.

5.8. O Poder Tradicional e a Terra

A problemática de terras na sua dimensão jurídica, tem de ser tratada de forma


integrada em função dos seus múltiplos usos, tais como:

1. O suporte de abrigos ou habitações das populações, o que implica um


adequado regime urbanístico;

2. O abrigo de recursos naturais cujo uso e aproveitamento se insere ao


direito mineiro, agrário, florestal e de ordenamento do território;

3. Ainda constitui o suporte do exercício de actividades económicas,


agrárias, industriais e suporte de todos os efeitos resultantes da acção
desregrada ou degradante do homem com impacto negativo no
equilíbrio ecológico que releva para o Direito do Ambiente.275

Em todos os pontos do estudo da problemática de terra em Angola,


concretamente notam – se de forma frequente conflitos desta natureza. Assim,
o tema a ser desenvolvido, resulta de um conjunto de inquietações que, têm
surgido, sobretudo na questão da posse, propriedade, usufruto, do
aproveitamento útil e efectivo de terras, bem como, a forma como devem ser
resolvidos os conflitos dai resultantes, por parte da ADRA.

Devido à complexidade que esta temática encerra e à multiplicidade de


questões com que se prende, o tema merece ser objecto de profunda
investigação, o que constitui ensejo para uma reflexão de longos anos na
Ordem Jurídica angolana. Com o presente trabalho, visa - se estudar a
problemática de terra em Angola e concretamente no Huambo, a fim de definir
quais são as soluções que se adequam das consequências resultantes deste
problema, relativamente a posse e o seu aproveitamento útil e efectivo. Com
isso, concluiremos se as repercussões obrigacionais e as formalidades

275 Cf. O Preambulo da Lei 9/04 de 9 de Novembro 2º parágrafo.

176
impostas à posse, bem como a legalização de terras no Ordenamento Jurídico
angolano satisfazem ou não os ideais dos operadores da Administração
Pública e da sociedade em geral.

Assim, e acima de tudo, mais do que a vontade de se resolver um problema tão


complexo como este, pretende - se sim, levanta-lo e alertar às consciências
para a sua existência, visto que a problemática de terra é de extrema
importância no contexto do Estado Democrático de Direito, pois, é através da
terra que se concretiza um dos direitos fundamentais do cidadão, isto é,
referimo-nos do direito a habitação, consagrado no art. 85º da Constituição
da República de Angola, integrado no seu Capítulo III. Ainda é através da
terra que se garante a subsistência da actividade agrícola, melhorando a auto -
suficiência alimentar tanto no meio urbano, como no meio rural.

As soluções que vão se alcançando relativamente a problemática de terra,


constituem um mecanismo de estímulo, de manutenção e de aumento da
produção e da circulação de riquezas, muitas vezes se mostrando como um
modo de entrada de novos agentes económicos no mercado, sobretudo com
uma intervenção do empresariado agrícola, embora ainda num número não
desejado.

O crescimento da actividade agrícola e a geração de empregos formais são a


condição sine qua non para que Angola tenha mais disponibilidade de recursos
e se desenvolva cada vez melhor economicamente, o que só se concretiza
atraindo investimentos privados, para a diversificação da Economia do país,
devido às oscilações constantes do preço do petróleo, a principal fonte de
receitas, com que a Angola se depara.

Tendo em conta que a posse da terra gera conflitos no âmbito do Direito do uso
e aproveitamento em Angola, e, sendo uma realidade que se vive tanto nas
zonas rurais como nas zonas urbanas, importa saber em que situações
ocorrem tais conflitos e quais as formas que podem ser usadas para resolve-
los.

Com este estudo prende – se com a necessidade de se fazer uma análise dos
efeitos da problemática de terrenos no ordenamento jurídico angolano, isto é,
saber em termos pragmáticos, se as interpretações doutrinárias e o trabalho
177
legislativo privilegiaram o modelo mais adequado de regulação da questão de
terras no ordenamento jurídico angolano, sobretudo no que tange a posse, bem
como o seu aproveitamento útil e efectivo. Em qualquer dos casos, face à
discussão que se mantém cada vez mais acesa, é pertinente e essencial a
obtenção de mais contribuições, de linhas orientadoras para uma correcta
aplicação e divulgação dos diplomas legais existentes para resolução dos
conflitos de terra. É este o desafio a que nos propomos e esperamos alcançar.

As Terras

No ordenamento jurídico angolano, de acordo com Lei 9/04 de 29 de


Novembro, há que contar com um outro conceito: as terras. As terras
constituem uma subespécie dentro dos imóveis, não representando qualquer
terceira espécie que acresça à contraposição dicotómica das coisas em moveis
e imóveis276.

As terras são, pois, imóveis. O que as distingue, porém, dos demais imóveis?
As terras constituem, pois, imóveis. O que as distingue, porém, dos demais
imóveis? Na alínea j) do art.º 1º da Lei 9/04 terra vem definida como “o mesmo
que terreno”. Por sua vez, a alínea seguinte do mesmo artigo. Na sua alínea K,
define terreno como a “parte delimitada do solo, incluindo o subsolo, e as
construções nele existente que não tenham autonomia económica, a que
corresponda ou possa corresponder um número próprio na matriz predial
respectiva e no registo predial”. Se retirarmos a segunda parte do preceito, a
definição de terreno, ou de terras, coincide praticamente com a de prédio
rústico no Código Civil: “entende-se por prédio rústico, uma parte delimitada do
solo e as construções nele existente que não tenham autonomia económica”
(art.º 204º,nº2).

A terra constitui um dos recursos mais importante que serve o homem na sua
existência, por quanto, suporta a sua habitação, instituições que resolvem seus
problemas enquanto ser social, é o berço dos mais diversificados recursos
276 José Alberto Vieira, Op. Cit, p. 115

178
naturais, é base de sobrevivência de muitas famílias através da prática da
agricultura, pastorícia e não só, é um dos elementos do conceito de Estado
(Território) que serve como demarcação da soberania do mesmo enquanto
integrante num continente e consequentemente numa comunidade
internacional. Em suma, a importância da terra associa-se a própria existência
de qualquer ser.

A Terra e a Família

A relação telúrica de posse de terra em moldes europeus, não se verifica em


África. Tem-se a terra em África, bem como seus recursos, como uma
propriedade colectiva da comunidade, à disposição, portanto, dos membros
das linhagens e das famílias desse colectivo, que estruturam a relação das
pessoas com a terra, mediante as obrigações e os direitos sobre elas
detidos.277 De acordo com o Economista José Negrão278 Para os 400 milhões
de pobres africanos a terra é a única certeza de continuidade de que dispõem,
nela produzem a comida de que se alimentam e os poucos excedentes ou
culturas industriais que conseguem, nela dialogam com os espíritos dos seus
antepassados, nela encontram a lenha e as estacas para a construção das
suas casas, nela deixam comer o gado e procuram as ervas com que se
curam, nela se identificam na origem da vida que a água dos rios transporta. A
terra é um bem da família, da linhagem e da comunidade, em cuja habilidade
para suster as intervenções exógenas reside a sustentabilidade do seu uso na
luta contra a pobreza e pelo aumento da riqueza.

A terra constitui de forma especial para as comunidades rurais uma das


principais riquezas que cada família procura proteger contra todos aqueles que

277 Ana Lúcia Sá, A ruralidade na Narrativa angolana do XX - Elemento da Construção da Nação, Colecção «Ciências Humanas e
Sociais», p. 418

278João NUNO da Silva Pinto, A construção da política de segurança alimentar e nutricional em Angola - Dissertação de Mestrado,
Rio de Janeiro, 2008, p. 66 disponível em WWW. Scielo.org. visitado aos 22 de Dezembro de 2015

179
não pertencem a família. Quando um jovem atinge uma idade em que acha-se
adulto no sentido de formar a sua própria família, um dos requisitos é atribuição
por parte da família ao “nubente” uma parcela de terra onde este leva acabo
actividade agrícola com ajuda da família e amigos.

Este valor, cultural, mostra claramente a ligação que se estabelece entre as


famílias e a terra enquanto fonte de toda a potenciação económica. Ainda ao
longo da apresentação da nossa monografia, faremos alguma abordagem
relativamente a políticas tradicionais agrárias quando tratarmos da exploração
útil e efectivo preceituado no nº 4 do art. 7º da Lei nº 9/04 de 29 de Novembro.

A família é uma realidade natural e social, cuja existência se manifesta, antes


de mais, em planos ou domínios diversos. No plano jurídico, a vida da família
realiza-se e assenta numa série de comportamentos pessoais e realidades
psicológicas e morais, que o direito considera relevantes, isto é, que
reconhece, aceita e considera ao formular a sua regulamentação da instituição
familiar. Estão esses comportamentos e realidades o amor, amizade, a
consciência de se formar um grupo, a confiança, a lealdade, a vida em comum,
a solidariedade, uma certa identificação com os outros componentes do mesmo
agregado. Como é do domínio de cada um, todos estes valores ou sentimentos
não são criados pelo Direito e não existem por este determinar a sua existência
– trata-se, antes, de consequências da realidade física e espiritual do homem e
das concepções ético-sociais279.

Mas o Direito não pode se mostrar alheio às relações que se estabelecem com
base nestas concepções, atribuindo-lhes efeitos jurídicos280.

O Direito Romano constituiu, assim, o conjunto de normas jurídicas que


regeram a sociedade romana, desde as suas origens, segundo a tradição, com
a fundação de Roma no ano de 754 a.C., até o ano de 565 da era actual, com
a morte do Imperador JUSTINIANO.

A sociedade romana era formada nessa época, essencialmente, por


agricultores. Por isso, no direito romano, foram produzidas inúmeras normas

279 Carlos Alberto da Mota Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, Coimbra Editora, Coimbra, 2012, p. 248

280 Carlos A. M. Pinto, Teoria Geral do Direito Civil, 4ª Edição, 2012, Coimbra, p. 158

180
agrárias, inclusive, Leis Agrárias específicas, anteriores a Lei das XII Tábuas,
de onde se pode salientar algumas noções para o entendimento do instituto da
posse agrária.281 A importância da actividade agrária era tão grande na antiga
Roma que existem vários livros de poesia, economia, história, dentre outros,
daquela época, dedicados, exclusivamente, ao âmbito agrário.282

Segundo os escritores romanos sobre o Direito, os bens sempre constituíram


matéria de realce, tendo sido classificados de bens móveis e bens imóveis. Na
classificação dos bens imóveis o solo e tudo aquilo que natural ou
artificialmente a ele se agrega eram considerados bem imóveis. Sendo que a
terra era considerado um bem imóvel, logo sujeito ao direito. Entretanto, a
vastidão das classificações que foram sendo feitas em relação aos bens, levou
a que os bens também fossem vistos como que de direito divino – (bens
sagrados, bens religiosos e bens santos) e bens divinos (que não podiam ser
apropriados individualmente); bens públicos (que o Estado colocava à
disposição de todos, ruas, bibliotecas...); bens da colectividade (que pertencem
às cidades).

Quanto à ordem económica e social, os bens eram classificados em res


mancipi e res nec mancipi sendo que os res mancipi se referiam às casas, as
servidões, aos prédios rústicos, aos escravos, animais de carga entre outros.
Parece que foi através deste res mancipi que nasceu o direito das coisas e que
primitivamente regulou o direito de propriedade em Roma. Tudo indica também
que com base neste res mancipi o pater famílias tinha poder sobre as coisas e
pessoas ou seja um poder semelhante ao que se podia considerar em matéria
de soberania do Estado, o que equivale dizer que o poder da res mancipi ia
para além do simples direito de propriedade, cuja noção e alcance jurídico só
mais tarde conheceram evolução no mundo da ciência jurídica283. Conforme

281Cf, Sílvio A. B. Meira, Legislação Agrária Romana. In Revista de Ciências Jurídicas - Económicas e Sociais, Belém., 1963, p. 104,
apud. Benjamim Alfredo, Op. Cit p. 38

282 ADOLF BERSER (1963) Enciclopedical Dictionary of Roman Law, (apud, Sílvio A.B. Meira, op. cit., p. 112), apud Benjamim Alfredo
Op. Cit., p. 40

283 Benjamim Alfredo, Op. Cit., p. 39

181
podemos ver, em Roma havia já nesse tempo uma forma de tratar o poder
sobre as pessoas e bens através de uma designação clara e que mais tarde
conheceu o seu enquadramento no mundo do Direito.

A terra não foi excepção, sujeitando-se às regras de direito e no âmbito do


instituto da posse. A posse é um produto histórico do Direito romano. Os romanos
desenvolveram a ideia de posse para descrever a situação de alguém que tem o poder
de facto sobre uma coisa, o senhorio sobre ela, a sua dominação, num sentido físico
ou material, independentemente da existência de título de aquisição, quer dizer, da
titularidade de um direito real sobre a coisa, e mesmo que esta situação de facto haja
sido criada ilicitamente, por exemplo, através de furto284.

Ao paterfamilias não era atribuído o dominium sobre as terras do ager publicus,


mas sim a possessio da res, que possivelmente acumulava com a sua
possessio terras do domínio privado. A possessio do ager publicus podia ser
revogada pela autoridade pública a todo tempo, tendo, no entanto, a sua
defesa garantida contra a interferência de terceiro por meio de providências
decretadas por Pretor: Com efeito, se bem que de início o possessor se
pudesse apenas defender pelos seus próprios meios, com o tempo forem
sendo criados pelo pretor vários interdicta, os quais permitiam uma defesa
judicial contra o terceiro agressor da possessio. A vindicatio e a contra
vindicatio não reconhecida ao possuidor.

O alargamento posterior da tutela interdital fora da possessio do ager publicus,


às situações de factos correspondentes ao antigo usus ou habere, operou a
consolidação da possessio , agora tratada unitariamente. A possessio designa,
assim, no Direito romano a situação de facto por contra posição à situação de
direito, a situação em que se encontra o que está investido no senhorio sobre a
coisa defronte do dominium ou de outro direito, que pode ou não estar na
titularidade do possessor.

284
Benjamim Alfredo, Op. Cit., p. 41

182
NO DIREITO ANGOLANO

O poder colonial desde sempre se confrontou com o problema da ocupação da


terra nas colónias. Assim é que a terra, foi sendo ocupada não só pelas
instalações do Estado colonizador, como também privada e individualmente
pelos colonos com fins habitacionais e de feitorias no litoral, e de outros
estabelecimentos comerciais de exploração agrícolas, silvícolas e mineiras. Isto
sempre em conflito por exclusão do Direitos Costumeiro das populações sob
domínio colonial que foram sendo obrigadas a retirar-se das suas zonas ou a
confinar-se a áreas mais restritas e desfavoráveis.

Este processo de ocupação da terra que foi sendo regulado casuisticamente


pelo poder colonial, tanto quanto nos indicam as fontes de leis publicadas, só
no séc. XIX passou a ser enquadrada por leis quadro, registando-se uma longa
experiência legislativa de mais de um século que se desenvolve posteriormente
até à década 70, cujas técnicas e formas jurídicas fundiárias, experimentadas,
quer para titular os direitos fundiários, quer para representar e tipificar os
direitos relativos às terras sob o regime consuetudinário, pese embora, toda a
problemática da injustiça distributiva das terras que todo o modelo colonial
sempre acarreta para a população colonizada, não são de enjeitar
liminarmente, na sua dimensão estritamente, antes merecem uma
descomplexada e objectiva avaliação em termos da sua adaptabilidade à nossa
problemática fundiária nacional actual.

A Constituição Fundiária Angolana

Nunca é demais relevar a multifuncionalidade da terra, o mesmo dizendo que,


os múltiplos fins que ela serve para o homem e que se exprimem na aptidão de
suportar a carga da habitação humana, em termos urbanos e rurais, e os mais
diversos fins económicos, primários, secundários e terciários, e ainda os fins
recreativos e sociais, satisfazem as necessidades humanas, não devendo ser
esquecida a função ecológica, de realização da protecção e conservação da

183
natureza (a terra é ela mesma a natureza)285 em fim do equilíbrio ecológico
essencial à sobrevivência das espécies dentre elas a humana.

«A terra, que constitui propriedade originária do Estado, pode ser transmitida


para pessoas singulares ou colectivas, tendo em vista o seu racional e efectivo
aproveitamento, nos termos da Constituição e da lei286».

A terra é afinal uma unidade multifuncional, esta ideia de unidade, desde logo,
nos faz apelo para uma visão integrada da problemática ius fundiária. O
princípio do equilíbrio ecológico, hoje constitucionalmente recebido, também
impõe uma concessão integrada do sistema ius fundiário. Esta é a mais
relevante razão de ordem que começamos por salientar, e que explicará muitas
das nossas opções e abordagem que iremos a desenvolver adiante. Segundo
José Guerra," ainda que tenhamos em conta, uma concepção integrada do
sistema ius fundiário, o estado actual das nossas leis e sobretudo a
especialidade de algumas das funções da terra face a outras tradicionalmente
reguladas por leis próprias, não são de molde a permitir a alcançar em pleno a
concretização de iur condendo de um sistema integrado e condensado que
esgote numa única lei-quadro todas as dimensões da problemática
fundiária"287.

Em todo caso uma lei de terras caracterizada com esta concepção integrada,
deveria certamente alcançar os mais possíveis, níveis de integração da
multifuncionalidade da terra, desejáveis para o melhor tratamento unitário da
problemática, e tanto quanto os constrangimentos da concepção agrária da
terra ainda predominante, no sistema jurídico actual. Mas tal não acontece,
pelo facto da maior parte da população angolana, não conhecer de forma
adequada a lei de terras e o seu regulamento, numa só palavra, existe em
Angola fraca cultura jurídica.

A função agrária da terra, entre nós, continua obviamente a ser não só


essencial como predominante, mas não a única. Na verdade no nosso país, a

285
José Armando Marques Guerra, Op. Cit., p. 76

286 Cfr. N.º 1 do art. 15.º da Constituição da República de Angola

287 Op. Cit. p. 76

184
nível das famílias sobretudo nas comunidades rurais, regista - se uma
economia assente nos sectores primários (agricultura) e minas, uma indústria
apenas emergente. Na esteira de WESTERMANN288 ao definir direito agrário
como sendo direito relativo ao aproveitamento da terra ou floresta em
termos de utilização mediata ou imediata, parece, situar-se também nesta
vaga e difusa concepção agrária da terra que tudo parece esgotar em termos
de fins da terra.

É, pois, uma concepção redutora, que nos parece não corresponder à


realidade jus – sistemática das múltiplas funções ou fins que terra serve,
tratando a terra apenas na parte, ainda essencial da sua função agrária, nem
corresponde a uma concepção mais moderna de colocação da problemática
fundiária, à luz de uma concepção jus – ambientalista e do ordenamento do
território em função dos múltiplos fins da terra.

A função urbanística ainda que essencial e apelando por novos e modernos


enquadramentos ordenadores para as áreas urbanas e peri - urbanas, não
ocupa, densamente a extensão territorial do país, dado ao baixo volume
populacional, de acordo com os resultados preliminares do censo 2014 289 com
uma população estimada em 24. 383.301 de habitantes, e o vastíssimo
território que desta feita continua com largas áreas despovoadas ou cuja
ocupação e posse efectivas para fins agrários e outros estão longe de alcançar
o pleno aproveitamento da terra ou mesmo níveis de aproveitamento mínimo,
desejáveis em termos de desenvolvimento económico e social.

288 Menezes CORDEIRO, Direitos Reais, in Boletim de Ciências e Técnica Fiscal, 1979, Lisboa, p. 231

289 Angola, RGPH, 2014, resultados preliminares, p. 27

185
CAPÍTULO VI– O CARÁCTER RELIGIOSO NOS POVOS DE ÁFRICA

6.1. A pessoa

Num mundo em rápida mutação a pessoa africana tem neessidade de


encontrar e garantir um fundamento para aquilo que ela é e para quem
é, aquilo em que acredita, e os valores que abraça e para os quais vive.
Esta necessidade mostra-se mai premente tendo em conta a cada vez
mais acentuada circulação tnato de pessoas como de ideias, bem como
a facilidade de acesso à informação, com a consequente multiplicidade e
pluralidade de valores.

O facto é que existem indícios evidentes para cada época histórica, por
parte de quem pode ser referido como africano, com uma clara
indicação da existencia e do carácterinfidável da demanda sobre a
sabedoria da pessoa africana.290

Vamos aqui estudar esse capítulo buscando as bases dos ensinamentos


retirados em André Lukamba, A Evangelização como “Encontro Vivo”
na Cultura Umbundu de Angola, Roma, 1981.

Afinal de contas o africano não pode permanecer numa atitude de


incerteza e de indecisão, no horizonte das certezas parciais
proporcionadas pelo seu contacto com outras culturas mais científicas,
num mundo em rápida transformação, sendo necessário apreciar a
contribuição da antiguidades africana dos valores tradicionais para a
formação da cultura africana. Os valores da África antiga encontram-se
também reflectidos na maior parte nas estruturas e instituições da
sociedades tradicionais.291 Os valores tradicionais africanos são
profundamente religiosos e pessoais, e orrepondem a uma perspectiva
comunitária. Eles dispõem-se a modelar o individuo para a sua

290
MUKUMBA, Maurice M. Introdução à Filosofia Africana , Passadoe Presente, Ed. Paulinas,
Moçambique, 2014, p. 7
291
Idem, p.9

186
participação integral na sociedade, tendo em vista a realização plena,
tanto individual como da comunidade.

A África desde sempre esteveem contacto com outras civilizações, hoje a


Africa moderna tem de fazer um esforço forte para fazer parte das
grandes influencias que o mundo precisa, para não cair no alheio, pois
o pensamento africano contemporâneo naõ deve atribuir ênfase
indevida ao desenvolvimento de uma cultura africana puramente
indígena, uma vez que tal ocorreu no passado, passando pela
conservação das nossas raizes culturais, mas aceitando aquilo que de
bom se pode acrescer ao pensamento humanista dos afrianos. Assim a
história de África fala de uma intenção contínua entre África e outras
culturas.292

6.1. 1. O Mito

6.3. O Curandeiro e a Medicina Tradicional, a riqueza da flora e


fauna e África

6.4. OS RITOS DE INICIAÇÃO

6.4.1. A Circuncisão/ Evamba

6.4.2. O Efiko

6.4.3. As Crenças Religiosas

Outra figura que pode se confundir com o costume são as crenças


religiosas. Quando estamos a falar das crenças religiosas referimo-nos
ao sentimento religioso do homem que está na base da sua crença na
existência do mundo invisível que por sua vez desencadeia o desejo de
se relacionar com ele e venerá-lo. O vocábulo religião deriva da
292
MUKUMBA, Maurice M. Introdução à Filosofia Africana , Passadoe Presente, Ed. Paulinas,
Moçambique, 2014, p. 7

187
expressão latina religare que significa estar ligado ao Ser Transcendente
e relacionar-se com Ele.

No mundo inteiro dificilmente vai se encontrar um homem que para


além do mundo visível, onde habita, não admita a existência de um
mundo invisível, onde se acredita que habitam os espíritos do Ser
Supremo Criador, dos seus antepassados e relacionar-se com eles.

Logo a dimensão religiosa do homem é algo natural e constitui a


expressão concreta da sua dimensão espiritual. Ela está sempre
presente e viva no homem, independentemente da sua localização
geográfica, do seu desenvolvimento socioeconómico, científico-
tecnológico, da sua filiação religiosa. Todo o homem é religioso por
natureza. E porque assim é, o negro-africano não podia ser uma
excepção. Tal como os outros, o homem negro-africano é “um crente por
vocação. A sua fé penetra a vida e constitui-o religioso…”.293

A dimensão religiosa do homem, de uma forma geral, e do negro-


africano, de uma forma particular, traduz-se na crença a “um Ser
Supremo Criador, na crença aos seres intermediários, tais como
espíritos incarnados e génios, antepassados muito activos e ligados ao
mundo visível e que, por isso, são honrados com profusão de culto”.294
Mas o negro-africano não se limita na crença ao mundo invisível,
procura relacionar-se com ele. Por isso, na ânsia de se relacionar com o
mundo dos espíritos, o negro-africano instituiu um conjunto de
“sacrifícios, ritos, simbologia, oferendas, altares, pequenos santuários,
lugares sagrados e objectos mágicos que manifestam o fervor do fiel e
da comunidade celebrante, presididas por personalidades carismáticas
(mestres de iniciação, especialistas da magia, chefia sagrada) com uma
hierarquia respeitada”.295

293
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. 1985. Cultura Tradicional Bantu. Luanda : s.n., 1985. p. 88.
294
Idem
295
ibidem

188
É nesta perspectiva que se pode compreender os sacrifícios dos
animais, tais como: galinhas, cabritos, bois nos momentos das
calamidades ou catástrofes, por ex. nos óbitos, nas doenças; os rituais
dos akokoto para pedir a chuva aos antepassados nas situações de
estiagem e os pequenos altares conhecidos pela designação de atambo
que na região dos Ovimbindu são utilizados pelos membros de uma
sociedade para estarem ligados aos seus antepassados, relacionarem-se
com eles e honrá-los, por ex. um dia antes, o responsável pela caça
passa a noite no etambo, etc.

Rapidamente percebe-se que falando das crenças religiosas situamo-


nos no mundo da religião e referimo-nos ao modo do homem de se
relacionar com o mundo invisível ou espiritual e com os seres que nele
existem. E esta relação tem como sua expressão máxima os sacrifícios
dos animais, os rituais, os lugares sagrados, etc.

As crenças religiosas diferem-se do costume, porque este é de âmbito


jurídico e diz respeito a um dos modos da produção de direito que visa
disciplinar ou organizar a vida social do homem; enquanto as crenças
religiosas prendem-se à religião e, consequentemente, à ordem religiosa
que disciplina a relação do homem com o mundo dos espíritos cuja
sanção é extraterrestre e mediata.

O costume é obrigatório e está revestido de sanção efectiva e imediata,


por ex. quem roubar, será responsabilizado criminal e civilmente;
enquanto a religião já não, por ex. ninguém pode ficar preso só porque
não foi à igreja ou não deu ofertório, ou ainda não pagou dízimo, quanto
muito ameaçá-lo com o inferno, etc…A relação estabelecida sob a égide
da religião atribui a um dos envolventes só deveres e ao outro só
direitos mesmo que as vezes se tenha a sensação de que está-se a
receber os benefícios, são meramente do âmbito espiritual e psicológico.

Ainda mais, nesta relação uma parte situa-se no mundo visível e a


outra no mundo invisível enquanto na relação jurídica ambas partes
são visíveis, encontram-se situadas no mesmo plano espácio-temporal-
189
social no qual o direito de uma corresponde ao dever de outra e,
reciprocamente.

6.4.4. O Feitiço

É importante sublinhar antes de tudo que, “ quem procura a verdade e a


exige com impaciência deve inquirir junto de quem a conhece. Qualquer
impostor poderá servir, e tudo quanto voz disser será doce mel, calmante
como bálsamo, e vazio como o seu cérebro. A história trágica das
civilizações foi, no fim de contas ilustrada por uma longa luta entre as
duas grandes raças humanas: a dos opressores e a dos oprimidos, a dos
maus, sempre vitoriosos, e a dos bons sempre subjugados. O iniciado
pertence talvez a uma terceira raça. Mas isto é só uma hipótese; a
verdade deve ser procurada, mas ai daqueles que a encontra. “.296

Vamos começar a falar do feitiço, que dentro do Direito Costumeiro,


deve ser visto, e como é verdade a sua importância jurídica está em
todos os ramos do Direito. E talvez nós aqui nos venham interessar
mais na linha do Direito Penal. Muitas vezes ficou-se com a dificuldade
de arrumar um processo penal, na linha de homicídios, quando na
verdade alguém apresenta uma queixa ou denuncia, a dizer que a morte
de um certo cidadão deve-se ao feitiço. Quem vi investigar, instruir o
processo, acusar para depois ser pronunciado, para que venha a ser
realizado o respectivo julgamento? Quem está em condições de ser ele o
advogado da causa? Como se viu, na estrutura do sobado está presente
a figura do Soma Kesenje, é ele o juiz e conselheiro do rei/soma. Só
que, não são todas as pessoas da comunidade que podem saber de tudo
quanto é a verdade, pois que, “o caminho para a verdade faz-se às
apalpadelas, à custa de erros sucessivos e de descobertas positivas”,
Nem sempre se alcança a verdade, pois em alguns momentos não o

296
CHARROUX, Robert. O Livro dos Mundos Esquecidos. 3ª. Lisboa : Edições 70, 1971.
190
acusado que praticou o feitiço que matou. Aí sim, “Mea culpa, mea
culpa cometemos muitas faltas”.297

Muitos relacionam a problemática do feitiço ao fenómeno morte pelo


que dele não se pode falar e nem sequer pensar. Mas como não pensar
na morte? Essa é a coisa que mais nos incomoda no nosso dia-a-dia.
Mesmo os cristãos de fervorosa fé, sentem-se agastados quando
assunto é morte. Todos querem ir ao Pai, mas ninguém quer morrer,
como se houvesse a possibilidade de tal como Maria mãe do Redentor
foi assunta, todos tivessem a mesma sorte. Morrer, seja lá como for é
um assunto cujo fim real continua um mistério. Todos nós sentimos
medo da morte e do morto. Então a busca incessante das causas da
morte vão dar muitas vezes numa ligação com o feitiço. Seja ela de um
aborto, acidente de viação, guerras, há um feiticeiro por perto.

Não é de estranhar quando isso acontece, pois “a humanidade só agora


demos os primeiros passos no conhecimento. Sabemos um décimo
daquilo que os nossos saberão no ano 2100”.298 Então, todos os anos
anunciam-se bons anti-virus para os computadores, anti-virus mais
fortes capazes de eliminar tudo que é nocivo no âmbito da informática e
afinal não há anti-virus para um COVID? E se o cidadão comum lá nas
profundezas do matoentender ser isso um feitiço como fica?

Vamos conhecer muitas coisas, conquanto muitas outras não as


conheceremos, mas ainda assim devemos aceitar que existem. Não
importa se queremos ou não, vamos só aceitar que o feitiço existe. E
quando na realização da justiça, a verdade material tiver que ser
buscada do ou no feitiço deve ser atendida essa necessidade. Depois
usar da equidade. Quando não dá, se o individuo for cristão, existe a
verdadeira oração dos cristãos.

Entretanto, ao falarmos do costume entre os povos bantu de Angola, o


feitiço apresenta-se-lhe na vizinhança, embora não sejam da mesma
297
Idem
298
CHARROUX, Robert. O Livro dos Mundos Esquecidos. 3ª. Lisboa : Edições 70, 1971.
191
família. Distinto do costume, da cultura e, talvez, da tradição angolana,
o feitiço está presente em todas estas realidades, quer queiramos quer
não.

O “feitiço” (Palavra que, segundo o dicionário da língua portuguesa, 8ª


edição, revista e actualizada, da Dicionários Editora, Porto Editora,
significa: A) s. m. A. Coisa feita por arte mágica ou por feitiçaria, droga
ou filho de feiticeiros; sortilégio; encantamento; Benzedura; amuleto; B)
adj. Fingido; falso (do Latim Facticlu “artificial”.), designado Umbanda,
na língua Umbundu, não está apenas ligado à prática do mal.

Se procuramos no dicionário o termo feitiço/feitiçaria, ainda ficaremos


a saber que é a arte de conduzir o poder mágico ou de, pelo menos,
tentar fazê-lo este poder mágico pode ser utilizado tanto para o bem
como para o mal, (Greenwood, 2002). Mas é neste ultimo que se pensa
com mais frequência, no contexto do feitiço. Quase todas as sociedades
têm um conceito de feitiçaria, no qual se pensa que os individuos
possuem uma forma de poder sobrenatural ou oculto que pode ser
utilizado para prejudicar ou em alguns casos, para curar.

6.4.5. A Feitiçaria e os Seres Sobrenaturais

Entre o que se sabe e o que não se sabe sobre o feitiço ou a feitiçaria, é


muita coisa. Algumas coisas devem ser buscadas de Tchindombe “O que
a África não disse …, consagra-se também pela abordagem história,
domínio do texto, pela criatividade estática num enredo que prende o
leitor do princípio ao fim, onde cada personagem advoga pela sua
dinâmica um lugar recheado de momentos de sapiencia; tendo Caconda
como principal cenário, o autor constroi fluxos no qual se revezam no
hibridismo do mesmo temas justapostos, nomeadamete entre a religião
cristã e o elemento religioso das tradições africanas, entre os Bantu e
entre o português e o umbundu”.

192
Por isso aqui recomenda-se uma vizita intelectual a essa obra
literária.299

Quanse todas as sociedades têm de alguma concepção de feitiçaria, na


qual se pensa que os indivduos possuem uma forma de poder
extraordinário. Acreditar na feitiçaria faz parte de uma visão mais
ampla da magia, que percebe poderes e forças inerentes ao universo
que podem ser comandados por certas pessoas. Essas pessoas têm sido
designadas por feiticeiros, mas também são conhecidas por outros
nomes, como bruxos, xamãs ou curandeiros. Possuindo todo o tipo de
capacidades especiais são frequentemente figuras assustadoras, das
quais se pensa terem competências para transformar o seu aspecto,
para voar e, por vezes trapacear e iludir, tendo-se tornado, em inúmeros
países, elementos folclóricos. Também foram utilizadas como bodes
expiatórios para elementos inexplicáveis ou inesperados da vida
quatidiana.300

Em Angola nos longos anos de guerra, tivemos a sorte de conhecer


muitos desses elementos inexplicáveis ou inesperdos da vida, quando
uma aldeia era transformada em lagoa e o inimigo não coseguia atacar,
aqueles bravos guerreiros em cujo corpo o tiro não entra, e não entra
mesmo.

Nas práticas da feitiçaria intervêm duas forças antagónicas: uma do


mal e outra do bem. Isto faz com que na realidade local ou, de forma
geral, dos povos Ovimbundu exista o onganga que é o feiticeiro do mal e
o otchimbanda que é o feiticeiro do bem, da cura. Daí que o termo
otchimbanda na língua Umbundu usa-se para designar um profissional
de saúde, tanto o médico como o enfermeiro, qualquer indivíduo dotado
do dom de cura. Os tchimbanda estão neste diapasão com os

299
TCHINDOMBE, Basílio. O que a África Não Disse ... [ed.] INALD Instituto Nacional do Livro e do
Disco. Luanda : A Letra, 2008.
300
GREENWOOD, Susan. Manual Enciclópedico de Magia e Feitiçaria. Lisboa : Editorial Estampa,
2002.
193
naturopatas, hoje muito bem reconhecidos pelo ministério da saúde e
controlados também pelo ministério da cultura.

Chicoadão fala do Wanga (expressão em Kimbundu equivalente ao


Umbanda ou Owanga,301 na língua Umbundu) como “um processo
teosófico anterior à formação de Estados ancestrais hierarquicamente
organizados, através do qual os homens realizam todos os ritos e
manifestações espirituais, de carácter mágico e mítico-religioso, no qual
procedem à invocação dos deuses, encontram-se e dialogam com os
deuses e os espíritos dos antepassados e prosseguem a consecução de
uma organização entrosada, disciplinada, hierarquizada, visando
atingir, de entre outros, dois objectivos fundamentais, a saber: o culto
do mal, envolto em manifestações tendentes a envenenar pessoas,
levando-as a contrair doenças que as conduzem à morte e o culto do
bem que envolve manifestações tendentes a curar pessoas envenenadas
e, ainda, a descobrir autores de maléficos, verbera-los e a prevenir a
população sobre os perigos do mal”.302

Tanto o onganga como o otchimbanda desenvolvem as suas actividades


recorrendo-se à flora e à fauna africanas que são muito ricas em
plantas maléficas e benéficas. O termo onganga ou ongangala designa,
como já se disse, aquele que cuja acção é prejudicar os outros na
comunidade, utilizando as plantas maléficas e os animais venenosos.
Ele cria o feitiço a partir de certas plantas que geralmente vai
misturando umas com as outras, irrigando sobre elas sangue humano e
de alguns animais venenosos (cobra, sapo, camaleão) para envenenar os
outros, por ex. o otchisau, feitiço utilizado pelos palhaços e, não só, que
serve para provocar uma comichão terrível na vítima, resulta da
mistura de uma planta chamada eyumbi combinada com as outras;

301
CHICOADÃO. Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola2015. Luanda :
Mayamba Editora, 2015.
302
CHICOADÃO. Direito Costumeiro e Poder Tradicional dos Povos de Angola2015. Luanda :
Mayamba Editora, 2015.
194
otala é o feitiço que resulta da mistura de algumas plantas maléficas e
de certos animais cujos efeitos podem ser fatais.

Existem vários tipos de feitiço que constituem o reflexo da própria


diversidade da flora e da fauna africanas que uma vez combinadas
umas com as outras, desta hibridação resultam efeitos terrores e
horríveis, tais como: a morte, as desgraças, o castigo terrível por
intermédio dos sonhos ou mesmo ao vivo; os vanamusso (pessoas anãs
e monstruosas em forma de bonecos terríveis), vakakutasanda (estando
no sono, as pessoas desconhecidas e medonhas aparecem e amarram a
pessoa, dando-lhe surra a ponto de se sentir numa situação de aflição
total), etc.

Ao contrário do onganga, temos o otchimbanda que designa aquele que


cuja acção é curar as maldades provocadas pelo onganga aos outros na
comunidade, utilizando as plantas medicinais e até certos animais.
Está-se perante a medicina tradicional. Ele cria o remédio das
desgraças provocadas pelo onganga, fazendo também a utilização e a
combinação das plantas da flora e da fauna africanas para ser bem-
sucedido, à luz da máxima umbundu segundo a qual vilenhã
vyalikulinhã kelembaus).

A título exemplificativo, o otchimbanda quando cura o otchisau recorre,


entre as várias plantas, às folhas de mandioqueiras e anekaya com
algumas gorduras naturais, óleo de jibóia etc. Geralmente, a vítima
dirige-se ao otchimbanda a gesto de consulta e, logo que chega, expõe o
seu problema e mediante esta exposição, aquele faz análise do
problema, qualifica-o e enquadra-o dentro dos vários tipos de feitiço
para determinar o respectivo tratamento.

Mas nem sempre a tarefa é fácil, porque as vezes fica difícil saber o tipo
de feitiço, o respectivo autor e, consequentemente, a técnica a utilizar
para o tratamento. Daí a necessidade de recorrer às várias formas de
prova, tais como: os adivinhos, o chinguilamento, juramento (okuta
ohãnsa). A título de exemplo quando um dos cônjuges morre para se
195
determinar se o cônjuge sobrevivo é ou não culpado, recorre-se ao
adivinho através do qual mete-se a água numa bacia grande e por cima
colocam-se dois palitos muito leves que vão flutuando e cada um deles
representa o de cujus e o cônjuge sobrevivo. Aquele cônjuge cujo paulito
afundar é o culpado.

Ainda o otchimbanda pode recorrer ao processo de chinguilamento


(okusiñguila ou okulikutilila k’akulu) através do qual vai invocando os
espíritos dos antepassados ao som de cânticos e de batuque e de
repente fica possuído por aqueles e começa a dizer muitas coisas do
mundo oculto, entre as quais o culpado pela desgraça que assola a
vítima.

Também o otchimbanda pode recorrer à figura de juramento (okuta


ohãnsa), processo pelo qual o otchimbanda enfrentando muitas
dificuldades na identificação do culpado chega à conclusão de que pela
sua complexidade, trata-se de uma doença cujo autor é um parente
mais próximo; o espírito está forte porque se trata do mesmo sangue. E
quando isso acontece, o otchimbanda chama os parentes mais
próximos, normalmente os avôs paternos e maternos, cada um levando
uma galinha consigo, vão até ao lugar indicado que pode ser a casa ou
outro sítio qualquer, chegando aí não são recebidos directamente pelo
otchimbanda, mas pelos seus ajudantes.

O otchimbanda saúda-os de uma forma geral, desejando-lhes as boas-


vindas, informando as razões da sua vinda e o que vai se fazer. Depois
os rituais começam, cada um tomando a sua galinha vai proferindo as
seguintes palavras em umbundu: okwetu: tembi tembi ame ndakukapa
othilulu tchukulya ndeti. Nda otchili okuti ove atchilulu okasi v’etimba
ly’omunu u, ame ndakukapamo, tchilo ndalivodela, mange ohenda:
tunda v’omolã wamale, uwendja kwendje iñgila vo sandji eyi.

Depois destas palavras, se realmente o culpado estiver entre eles,


imediatamente a sua galinha entra em estado de coma e acaba por

196
morrer definitivamente e o doente a partir daquele momento começa a
recuperar, mas se for inocente nada acontece com a sua galinha.

Antigamente, o onganga e o otchimbanda eram conhecidos e


controlados pela autoridade tradicional por constituir uma classe social
que tanto pode desagregar ou desestabilizar a comunidade no sentido
de que as pessoas começam a se acusar umas as outras, criando um
clima de desconfiança que compromete as relações sociais como
também pode proteger a mesma do perigo do mal. Tal é assim que
havendo um fenómeno relacionado com o feitiço na comunidade, o soba
convocava a classe dos olonganga e dos ovimbanda para saber o autor e
este explicar o porquê da sua acção. Eis a razão pela qual a figura do
soba está geralmente muito associada à magia negra, mas não se
descarta a possibilidade do soba ser também um deles.

No entender de, Altunanão se pode falar da justiça bantu sem fazer


recurso à esta realidade mágica, pois “o bantu de Angola acredita que
quando a sociedade desconhece o culpado de um mal público ou não
consegue decifrar a culpabilidade ou a inocência dos acusados, apela os
processos infalíveis porque se apoia na intervenção do adivinho que põe
em jogo aclarador e decisivo as potências mágicas, isto é, apela para a
intervenção do mundo invisível. Lançam mão da adivinhação,
juramentos, maldições e, sobretudo, dos ordálios”.303

Apesar de não constituir um hábito costumeiro, ninguém ignora que o


feitiço tenha feito parte da crença inevitável dos povos Ovimbundu até
chegar o Cristianismo, que incutiu uma doutrina completamente nova e
contrária àquela prática. Mas o recurso ao “mistério” está ainda
presente na cultura de muitos povos, quer longe das cidades quer perto
delas. Ninguém hoje se mantém impávido e sereno quando se fala do
fenómeno otala que está a ganhar contornos nunca antes vistos em
todas as franjas da nossa sociedade. Já ninguém se inclina diante de

303
ALTUNA, Raúl Ruiz de Asúa. 1985. Cultura Tradicional Bantu. Luanda : s.n., 1985. p. 88.
197
uma autoridade tradicional, julgando-a portadora deste poder
sobrenatural.

Não fazendo parte do costume, o feitiço é, sem dúvidas, o conflito por


excelência, cuja resolução é de competência indiscutível do direito
consuetudinário sob direcção das autoridades tradicionais.

Da Índia ao Pacífico aparecem várias formas de feitiçaria, mas é em


África que estão mais disseminados. Na Europa, entre os séculos XV e
XVIII, considerava-se que a feitiçaria era uma seita herética e
organizada, que se opunha ao Cristianismo.

6.5. A Feitiçaria Por Chicoadão

Chicoadão fala da feitiçaria usando o termo Wanga, que é um processo


teosófico ex- ante hierarquicamente organizado, através do qual os
homens realizam todos os ritos e manifestações espirituais de carácter
mágico-religioso, procedem a invocação de deuses, encontram-se e
dialogam com os seus deuses e os espíritos dos seus antepassados e
prosseguem a consecução de uma organização, entrosada, disciplinada
hierarquizada, visando atingir de entre outros, dois objectivos
fundamentais como:

a) O culto do mal – envolto em manifestações tendentes a


envenenar as pessoas, levando estas a encontrar doenças que as
conduz a morte;

b) O culto do bem - que envolve manifestações tendentes a curar as


pessoas doentes, e ainda, para descobrir os autores do mal.

Na verdade para ambos os casos de culto, o processo conta e recorre as


riquezas da flora e faunas locais. São os terapeutas tradicionais, o que
acontece na maioria das comunidades rurais de África e de Angola em
particular. Apesar de se usar na wanga elementos vindos das riquezas
da flora e da fauna, ele continua extremamente complicado e cheio de

198
emaranhados que comporta um conjunto de manifestações míticas e
mágica.

A título de exemplo prático, Chicoadão traz para as páginas da feitiçaria


uma realidade que acontece no Cuando Cubango, Mayombola
/Kamutukuleni, processo que permite a um individuo, em estado físico
normal entrar em estado de bilocação, ou seja, aquele estado em que o
individuo “transfigura-se” passando da vida real para a vida mística,
irreal, do além. Para tanto o Mestre biloca-se não na sua forma física
humana, mas nesse estado, ele toma a forma física de qualquer como
outro ser animal, seja este um quadrúpede, bípede, réptil, insecto,
formiga ou ainda um animal de pequeno porte.

Essa pessoa yombolada mantém a sua forma física humana, e nesse


estado físico presta serviços ao seu “senhor”. Tal como acontece na
região do Cuando Cubango, situação mais ou menos igual acontece
noutras regiões de Angola, esse “yombolado” vai pelo resto do tempo,
prestar serviços, domésticos, da lavoura, da pastorícia e nos últimos
tempos, já estão envolvidos nos serviços de táxi, zunga e algumas vezes
em roubos milionários.

Ainda para não parecer só vontade de escrever, temos conhecimento de


uma família cujos filhos depois de perderem a mãe, por uma morte que
se supunha natural, isto são por doença; num desses dias foram
convidados por uma pessoa amiga a dirigirem-se para Menongue, pois a
falecida tem sido vista a vender numa das praças daquela cidade. E não
que chegaram de ver a senhora! E na verdade, logo que esta deu pelos
filhos desapareceu. Mais história não se tem.

Acontece que, as vítimas, consideradas mortais à vista dos demais


cidadãos comuns, são tidas como “pessoas mortas”. São enterradas
com o simbolismo do costume da tribo ou da comunidade. Porém, na
wanga/feitiçaria não morte. Há aquilo que nos Nganguela do Cuando
Cubango chama Kamutukuni. Os yombolados aquelas pessoas que

199
não são mortas, mas em apenas transferência para a lavra ou outros
assuntos de interesse do mestre.

6.6. A Feitiçaria No Mundo Internacional

No período dos séculos XV e XVIII, acreditava-se que as feiticeiras


estavam possuídas por poder maligno, como consequência de serem
instrumentos do diabo muitos europeus de todas as classes sociais,
acreditavam na existência de feiticeiras e a feitiçaria era definida como
crime e as pessoas eram perseguidas. A caça às bruxas que ocorreu na
Europa, estendeu-se para quase todas as colónias. Assim, o significado
de feiticeira e feitiçaria altera-se de sociedade para sociedade e não
existe uma definição simples e precisa com a qual todos concordam.304

Na África por exemplo há lugares onde a feiticeira é uma mulher


normalmente velha, embora especialmete bela e com os seus encantos
seduzir os homens incautos. E pensa-se que se alimenta de carne
humana. É costume acreditar-se que uma feiticeira é capaz de estar em
dois lugares ao mesmo tempo, pode agir durante a noite, enquanto o
seu corpo físico continua em casa a dormir. Na Nigéria, o povo ioruba
acredita que as feiticeiras são geralmente mulheres que voam durante a
noite e que se encotram em lugares secretos. Estão associadas às aves e
sugam o sangue das suas vítimas até a morte.

Por cá e entre nós esta situação assinala alguma diferença no ser.


Temos o feiticeiro e a bruxa, raras são as vezes que se fala da feiticeira
que não seja a bruxa, porém existe o feiticeiro que não é o bruxo. As
bruxas e os feiticeiros têm as mesmas práticas ligadas a desgraça das
suas vítimas. Apresentam-se na imagem de gato preto, a coruja e em
algumas vezes em cães tinhosos e sobretudo em rafeiros. Deixam fezes
junto as entradas das vítimas. A corujo pousando no tecto a sua vítima

304
GREENWOOD, Susan. Manual Enciclópedico de Magia e Feitiçaria. Lisboa : Editorial Estampa,
2002.
200
passa toda noite em movimentos incomadativos, tal como o gato que
passa toda noite miando no quintal ou tecto da vítima.

201
CAPITULO VII – O CASAMENTO TRADICIONAL

Em Angola a Constituição reconhece o costume conforme consta no


art.º 7º da CRA,305 consagrando-o como fonte imediata do Direito. A
celebração do casamento tradicional é um acto tradicional em algumas
regiões de Angola, e ainda sendo um acto obrigatório noutras regiões.

O Direito Tradicional ou Habitual é o sistema de


normas que, nas sociedades rurais o praticam,
condiciona e rectifica as relações interpessoais
dentro do grupo e para fora dele, ao mesmo
tempo que protegem os interesses individuais e
também ou sobretudo, colectivos.

Dizem alguns especialistas que esse sistema não constitui exactamente


um sistema jurídico, mas sim pré-jurídico e essas normas não são
exactamente leis, mas sim práticas e costumes compulsivos”.306

Sendo que no Direito Positivo angolano, as únicas formas legais de


celebrar o casamento são o casamento católico e, o casamento civil,
regulado pelo art.º 35º da CRA, “Família, casamento e filiação”, n.º 4,
infra citado: “a lei regula os requisitos e os efeitos do casamento e da
união de facto, bem como os da sua dissolução”.

Segundo Medina,307 “Angola terá que prestar a maior atenção à forma


como irá ser introduzido no Direito Interno Angolano o Direito
Costumeiro. A este respeito, adoptam medidas legislativas apropriadas
para garantir que:

305
CRA, Art.7.º Costume.
306
ABRANCHES, Henrique. Direito Tradicional e agregado Familiar – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.189. 5 Resolução nº 25/07, de 16 de julho, art.6.º (Casamento) Os
Estados Partes garantem que os homens e as mulheres gozem de direitos iguais e que sejam
considerados parceiros iguais no casamento.
307
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.135.

202
a) Nenhum casamento seja contraído sem o consentimento pleno e
livre de ambas as partes;

b) A idade mínima de casamento para as mulheres seja de 18 anos;

c) Encorajar a monogamia como forma preferida de casamento e que


os direitos da mulher no casamento e na família, inclusive em
situações de poligamia, sejam encorajados e protegidos;

d) Todo o casamento para que seja reconhecido como legal, seja


registado por escrito e em conformidade com a legislação
nacional;

e) Os dois cônjuges escolham, de comum acordo, o seu regime


matrimonial e o lugar de residência;

f) A mulher deve ter o direito de manter o seu nome de solteira, de


utilizá-lo como bem o entender, conjunta ou separadamente do
apelido do seu esposo;

g) A mulher deve ter o direito de conservar a sua nacionalidade ou


de adquirir a nacionalidade do seu marido;

h) A mulher e o homem tenham o mesmo direito no que se refere à


nacionalidade dos seus filhos, sob reserva das disposições
contrárias nas leis nacionais e exigências da segurança nacional;

i) A mulher e o homem devem contribuir conjuntamente para a


salvaguarda dos interesses da família, da protecção e da
educação dos seus filhos;

j) Durante o casamento, a mulher tenha o direito de adquirir bens


próprios, de administrá-los e geri-los livremente.

A lei define regras bastantes precisas para o casamento visto que se


trata de um contrato entre duas pessoas para a plena comunhão de
vida. Sendo o casamento “um dos negócios familiares mais importante

203
de todos eles,308 ” em Angola a contratualidade do casamento implica a
aliança entre duas famílias que através do casamento se tornam uma
só família. Segundo Abrantes,309 “as normas do Direito Tradicional
nunca se afastam e nunca se desligam do sistema ético e são por ele
geradas e geridas.

Contudo, a prática implica a organização de um tribunal que procede a


essa gestão em sessões públicas onde as partes implicadas têm acesso
à discussão, e beneficiam, por vezes, de uma defesa especializada e
complexa, na pessoa do advogado do povo”.

Porém, e conforme refere Luís,310 “essas garantias representam meios


de defesa que a ordem jurídica estabelece para fazer valer o
cumprimento dos direitos declarados. Nesse sentido, podemos pensar
que as garantias são todos os meios de velar e deixar a salvo os direitos
em face das investidas que os poderes públicos fazem contra eles”.

7.1. O ASAMENTO TRADICIONAL

No capitulo que aqui se incia pretendemos estabelecer uma breve


comparação do sistema de casamento, português e angolano,
especificando uma particularidade que é o casamento tradicional em
Angola, com a “força jurídica do costume” nos termos do art.º 7º da
CRA, comparação essa, feita para nos desvendar os atributos do
sistema jurídico português, que por sua vez é a matriz do sistema
jurídico angolano. Por exemplo, o Código Civil português (CCP) diz nos
termos do art.º 1577º que “o casamento é, um contrato celebrado por
duas pessoas que se propõem criar uma família mediante plena
308
COELHO, Francisco Pereira; OLIVEIRA, Guilherme de – Curso de Direito da Família. Vol. I. 4.ª ed, p.
196.
309
ABRANCHES, Henrique. Direito Tradicional e agregado Familiar – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.189.
310
LUÍS, Pedro Manuel – Curso de Direito Constitucional Angolano. Luanda: Qualifica Editora, p. 198

204
comunhão de vida”. “É, basicamente, um acordo entre duas pessoas o
que implica direitos e deveres recíprocos.

Trata-se, no entanto, de um acordo complexo, já que além de envolver


pressupostos sentimentais, engloba todo um conjunto de relações mais
objectivas, onde se destacam as de caráter patrimonial”.311,312 Contudo,
em Angola, existe o casamento tradicional que é celebrado e regulado
por um costume. Esse direito que é consagrado na Constituição
Angolana, porque, segundo Silva,313 “a sua importância e abrangência
no âmbito das fontes de direito e o seu papel catalisador de um
verdadeiro pluralismo jurídico em Angola urge conferir referências
privilegiadas do costume em Angola”. É o enquadramento jurídico do
casamento tradicional em Angola, e o choque entre o direito positivo e o
direito costumeiro ou consuetudinário.

Segundo a definição de Santos,314 “a palavra casamento derivou da


palavra casa, que em latim significa: cabana tenda, prédio rústico,
pequena quinta. É a união de duas pessoas de sexos diferentes, que vão
viver juntos numa casa”. Outros vocábulos empregues como sinônimo
de casamento ou matrimônio são os termos núpcias e consórcio.
Núpcias é a tradução literal de nuptiae, do verbo nubere, que significa
cobrir-se, tapar-se. Consórcio é a conjugação de cum (com) mais sors
(sorte), ao casarem partilham de uma sorte comum. O termo casamento
designa também, a situação jurídica resultante do acto.

311
LIMO, António; SILVA, Joaquim Rodrigues da; CARVALHO, Nuno Calçado - O Cidadão perante a lei:
Direitos, Liberdades, Proteção da vida Privada. Lisboa, p.348.
312
Na verdade e no nosso entender, o património devia sera base da realidade de um casamento.
Sobretudo por causa dos encargos e responsabilidades que advém da união de duas pessoas sob
direitos e deveres. O cuidado dos filhos que eventualmente venham nascer desta relação conjugal. É
que uma pessoa por mais que tenha atingido a maturidade humana, se não tiver maturidade económica
deveria ser impedido de casar. Talvez até não tivesse mesmo direito a sexo. O sexo é a única fonte de
filhos sem condições de vida.
313
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.39.
314
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p.125

205
Para o prof. Doutor Diogo Leite Campos,315 “o casamento é uma
parceria para toda a vida, uma comunidade conjugal de vida, plena,
completa, total, exclusiva, indissolúvel, que transforma os cônjuges
numa só carne, em todos os aspetos do seu ser e da sua vida”.

As pessoas que casam entre si são comumente chamadas de cônjuges


passando a ser identificados por marido e mulher ou, esposo e esposa.
O casamento é um processo jurídico e, descontínuo que tira por si
mesmo, em cada caso individual os seus limites e possibilidades.
Segundo Varela,316 “o casamento é o ato jurídico fundamental do direito
da família, pois através do vínculo matrimonial se constitui o cerne da
sociedade familiar. Podem haver relações de caráter familiar ou para
familiar, como a adoção ou a filiação natural (arts. 1847.º, 1910.º nova
red), ilegítima ou extramatrimonial, à margem do casamento. Mas não
há família ou sociedade familiar fora do matrimônio. A pessoa casada,
que viva em regime de concubinato com terceiro, não tem duas
famílias.”317

Ao nível jurídico, a principal consequência do casamento é a situação


dos bens passados, presentes e futuros dos cônjuges, que podem
receber tratamento diferente a partir do regime de bens adotados pelo
casal.

7.1.1. O casamento pode ser interpretado por três aspetos.

a) “Mais individual do que familiar.

315
PRATA, Ana – Dicionário Jurídico, ed. 5, p. 239

316
VARELA, Antunes – Direito da Família. Vol. I, 5.ª ed, 189
317
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p. 142.

206
É a conceção cristã e a nossa. Os esposos são os principais
interessados e, por isso, o seu consentimento é o elemento essencial do
casamento;

a) Mais pessoal do que econômico ou patrimonial.

A incapacidade dos menores, a interdição dos dementes, surdos-mudos


e cegos, e a inabilitação dos pródigos, dos alcoólicos e drogados tem
como objectivo proteger a todos, de negócios patrimoniais funestos.

Deste modo, os impedimentos matrimoniais, que visam impedirem as


pessoas de casar, e não de celebrar negócios de natureza patrimonial;

b) Um terceiro sentido é o de que o contrato matrimonial só pode ser


celebrado pessoalmente, não sendo nele admitida a representação
propriamente dita.

O procurador ad nuptias não pode ser considerado um verdadeiro


representante do nubente não presente no ato da celebração do
casamento.” Segundo Campos,318 “o matrimônio não é uma simples
comunhão de vida. É um pacto (can. 1055, § 1) e é um contrato
juridicamente vinculativo (can. 1055, § 2)”.

Em Portugal, o casamento civil é o contrato realizado entre duas


pessoas que querem constituir família por mediante a plena comunhão
de vida nos termos do art. 1577.º “Noção de Casamento” do CCP. Na
definição de Santos,319 “o casamento é um como casamento-acto e
casamento-estado.

a) O primeiro é o acto jurídico que dá origem à sociedade conjugal;

b) O segundo é a sociedade conjugal originada pelo casamento ato”.

318
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p. 160.
319
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p. 126.

207
Nas palavras do Prof. Doutor Campos,320 “o casamento é um negócio
jurídico: uma ou mais declarações de vontade (neste caso duas
declarações) dirigidas a certos efeitos e que a ordem jurídica tutela em
si mesma e na sua direção, atribuindo efeitos jurídicos em geral
correspondentes com aqueles que são tidos em vista pelos declarantes.

Os efeitos pessoais do casamento, e alguns dos efeitos patrimoniais, são


fixados imperativamente pela lei, sem que as partes possam, portanto,
introduzir derrogações no regime legal respectivo. Não pode por
exemplo, estabelecer uma condição ou um termo para o casamento”.
Em Portugal, o casamento é regulado pelos art.º1587º -1795º do CCP.

Parte-se para um direito civil com uma ideia religiosa, aliás, tão só de
uma crença, a cristã, de que aquela não se consegue libertar. “Todavia,
o casamento civil não é a única forma de casamento em Portugal. O
casamento civil é facultativo para os católicos e obrigatório para os
restantes. Os católicos podem celebrar primeiro, o casamento civil e,
depois, o casamento católico, ao contrario não é permitido”321 “De um
modo geral, as legislações fogem ao definir o casamento. Porque o
consideram desnecessário, tão evidentes são as suas caraterísticas
essenciais.

Pois que, em qualquer sociedade, ninguém confunde o casamento, fonte


da família, com a união concubinaria, com a união de facto.”322
Segundo Mendes Sousa,323 “o casamento é um negócio jurídico entre
duas partes”. O autor refere-se ao casamento no ordenamento jurídico
Português, como: “Um ato jurídico formal ou solene, cuja forma está
prescrita na lei, o casamento tem uma particularidade: celebra-se em
frente de uma entidade oficialmente encarregada de recolher e registar o
acordo dos nubentes: entidade a que, com certa distorção de sentido, se
320
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p. 183.
321
Ibidem.
322
MENDES, João de Castro; SOUSA, Miguel Teixeira – Direito da família, p. 38:
323
Ibidem.

208
chama o celebrante do casamento e que, em Portugal, é o conservador
do registo civil ou um sacerdote - normalmente, o pároco duma
freguesia”.

A própria Bíblia sagrada, no livro de Gênesis,324 cita o seguinte: "Crescei


e multiplicai-vos, e enchei a Terra". O casamento civil está sujeito a
registo conforme consta no preceituado art.º 1651.º do CCP. É uma
inexistência superveniente, que, no entanto, só opera ex nunc. O
casamento é um acto jurídico formal ou solene, cuja forma está
prescrita na lei. E tem uma particularidade: “celebra-se em frente de
uma entidade oficialmente encarregada de recolher e registar o acordo
dos nubentes:” entidade a que, com certa distorção de sentido, se
chama o celebrante do casamento e que, é o conservador do registo civil
ou um sacerdote - normalmente, o pároco.

O registo do casamento é efectivado mediante um assento, que é fixado


por inscrição ou transcrição, conforme art.º1652.º “forma de registo” do
CCP.

Dentro das modalidades de casamento existem diferentes sistemas


matrimoniais. São eles:

1. O casamento religioso obrigatório onde o Estado apenas


reconhece eficácia civil ao casamento celebrado por forma
religiosa.

2. O casamento civil obrigatório, pelo contrário, o Estado apenas


admite o casamento civil, mas permite a celebração do casamento
religioso sem efeitos civis.

3. O sistema do casamento civil subsidiário o Estado adopta o


direito matrimonial religioso, impondo a celebração segundo a
forma religiosa, com os efeitos previstos no direito matrimonial
religioso, a todos os que professem essa religião. O casamento
civil é previsto subsidiariamente, em termos de só o poderem
324
Vários - Bíblia Sagrada. Livro 1 – 28, 2005.

209
celebrar aqueles que não professem a religião “seguida” pelo
Estado.

4. Por fim, o Casamento civil facultativo que permite a livre escolha


entre casamento civil e o casamento religioso o atribuindo efeitos
civis a ambos. Em Portugal, o casamento civil é celebrado de
acordo com a lei portuguesa e o casamento católico celebrado de
acordo com o direito canónico, acolhendo assim o chamado
sistema de casamento civil facultativo.

Com a celebração da concordata25 entre Portugal e a Santa Sé em


1940, o matrimónio religioso passou a ter reconhecimento civil. O
casamento civil pode ser celebrado por procuração conforme art.º
1620.º “casamento por procuração”. Segundo o qual pode qualquer
um dos nubentes nomear um procurador que lhe convêm,
representa-lo no acto da celebração do casamento. A procuração,
para ser válida, deve conter os poderes específicos para este acto,
nomeadamente a indicação do outro nubente e da modalidade do
casamento. Termina o efeito da procuração pela revogação desta,
pela morte do constituinte ou do procurador, ou por questões de
saúde que impossibilitem a total representação do nubente.

O mesmo pode 25 Concordata - Foi um tratado assinado em 7 de maio


de 1940 entre o Regime do Estado Novo e a Santa Sê. Este acordo
consagrou a liberdade religiosa e a separação entre o poder laico e o
religioso. O acordo foi assinado por António de Oliveira Salazar e o
Núncio Apostólico, e veio abolir o divórcio relativamente aos casamentos
católicos celebrados a partir de 1 de agosto de 1940, mantendo-o no
entanto, relativamente aos demais casamentos, nos mesmos termos e
condições a que até ao momento era possível concretizar-se. [em
linha].325

325
Portugal, 2016. Portugal, [Consultado em: 30 de julho 2016]. Disponível em:
http://www.culturanorte.pt/fotos/editor2/concordata_entre_a_republica_portuguesa_e_a_santa_se_a
ssinada_em_18_de_maio_de_2004_na_cidade_do_vaticano__resolucao_da_assembleia_da_republica_
210
Têm capacidade para contrair casamento quem não se enquadre dentro
de algum dos impedimentos matrimoniais. São impedimentos
dirimentes absolutos, art.º 1601º “Impedimentos dirimentes absolutos”
do CCP, quem for menor de idade (dezasseis anos); nubentes com
demência notória caso seja comprovado, mesmo que seja apenas
durante os alguns intervalos lúcidos, bem como em caso de interdição
ou inabilitação por anomalia psíquica.

Nubentes com casamentos que ainda tenham sido dissolvidos, seja ele
casamento católico e ou civil. O casamento de um menor só é
considerado legal, caso este tenha a devida autorização dos seus
progenitores, ou dos representantes legais, ou de uma respetiva
formalidade judicial. O menor continua a ser considerado menor para a
administração dos bens que sejam atribuídos ao casal ou aos que tenha
direitos até à maioridade, no entanto, os rendimentos desses bens ser-
lhe-ão atribuídos para que possa ter acesso aos alimentos necessários
ao seu estado. Ou cfr. cân.1058. “todos aqueles que não estejam
proibidos por direito”.

Os bens não atribuídos à administração do menor são geridos pelos


pais ou responsáveis legais, estando proibidos de serem entregues ao
cônjuge enquanto o outro cônjuge for menor, não é permitido a
utilização destes bens para salvar dívidas contraídas, antes ou depois
da dissolução do casamento, por um ou ambos os cônjuges no mesmo
período, art.º 1649º do CCP.

Se nos impedimentos dirimentes absolutos visa-se a incapacidade de


realizar o casamento por um dos noivos os impedimentos dirimentes
relativos in dubium visa a legitimidade do mesmo: Artigo 1602.º do CCP
“Impedimentos dirimentes relativos”:

“São também dirimentes, obstando ao casamento entre si das pessoas a


quem respeitam, os impedimentos seguintes:

n.%C2%BA_74 -2004_de_16_de_novembro.pdf 19 também ser revogado pelo constituinte, ficando este


responsável pelos prejuízos causados por esta decisão (art. 1621.º do CCP).

211
a) O parentesco na linha reta;

b) A relação anterior de responsabilidades parentais;

c) Parentesco no segundo grau da linha colateral;

d) A afinidade na linha recta;

e) A condenação anterior de um dos nubentes, como autor ou


cúmplice, por homicídio doloso, ainda que não consumado,
contra o cônjuge do outro.”

Voltando ao casamento religioso, o mesmo rege-se segundo o casamento


civil, nos termos do art.º 1588.º “Efeitos do casamento católico” do CCP.
Sendo que, não é permitido o casamento civil de duas pessoas já unidas
por matrimónio católico, mas o casamento católico de duas pessoas já
unidas entre si pelo casamento civil não dissolvido, é permitido, nos
termos art.º 1589º “dualidade de casamentos”.

Nos casamentos que tragam consequências socialmente inaceitáveis “é


legítima a intervenção do direito penal com os seus instrumentos
próprios de atuação, ainda que para sancionar práticas e costumes
arreigados em determinado grupo, etnia, raça ou credo”.326

O estado Português entende que, “quando está em causa o respeito por


regras, princípios e valores que se reputam de fundamentais à vida em
sociedade (e são-no todos os direitos constitucionalmente consagrados)
são os distintos grupos, etnias, raças ou credos que têm de se adaptar à
ordem social e juridicamente vigente e, se necessário for adaptar, numa
perspetiva de evolução, as suas crenças, costumes e tradições às
regras, princípios e valores que estruturam a sociedade em que se
integram.”327

326
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 29-09-2010, Processo n.º 557/09.0JAPRT.C1, Relator:
Alberto mira
327
Idem

212
A lei portuguesa permite aos católicos casarem pela igreja ou registo
civil sendo o casamento reconhecido perante a lei, mas quem professe
outra religião só poderia casar pelo registo civil uma vez que os
casamentos religiosos não católicos não eram reconhecidos perante a lei
portuguesa. Com a entrada em vigor da Lei da Liberdade Religiosa (Lei
n.º 16/2001, de 22 de junho) o casamento por forma religiosa não
católica passou a ter reconhecimento civil, art.º 19.º Em Angola, pelo
contrário, rege-se o casamento civil obrigatório, uma vez que o estado
angolano é constitucionalmente um Estado laico, art.º 13.º da CRA. No
caso concreto, o casamento realizado junto dos órgãos do registo civil
tem carácter obrigatório, art.º27º e 34º C.F.A.

Como elementos, o casamento civil tem a sua natureza contratual,


compromisso recíproco de plena comunhão de vida, pessoalidade e
solenidade. Natureza contratual uma vez que o livre consentimento e
voluntariedade de ambas as partes é o fator preponderante do vínculo
matrimonial. O compromisso deve ser reciproco seguindo os deveres e
obrigações dos cônjuges conforme consta no art.º 1672.º “deveres dos
cônjuges” do CCP, sendo que o mesmo pode ser dissolvido de acordo
com o art.º 1773.º “modalidade do divórcio”.

O casamento deve ser celebrado pessoalmente conforme art.º 1610.º


“necessidade e fim do processo preliminar de casamento” e está sujeito
à forma estabelecida pela lei nos termos do art.º 1615.º “publicidade e
forma”.

O casamento canónico rege-se pelo código canónico onde o casamento é


o ato de vontade pelo qual o homem e a mulher, por pacto irrevogável,
se entregam e se recebem mutuamente a fim de constituírem o
matrimónio.

Nota importantíssima a dar ao casamento canónico que tem como


princípios a comunhão íntima para toda a vida (cân. 1055, art. 1.º),
com a finalidade:

a) Bem dos cônjuges e educação dos descendentes;


213
b) Fidelidade e exclusividade;

c) Procriação e educação dos filhos.

Para nós em África essa é a razão única de não se falar ou continuar


numa relação matrimonial, quando as três finalidades “divinas do
casamento” não se fazem sentir. É o que tradicionalmente se sabe e se
ensina as jovens gerações.

É a consumação do matrimónio, condição de estabilidade (não de


validade) do ato torna o matrimónio indissolúvel (cân. 1142 –
Casamento não consumado pode dissolver-se por graça ou dispensa
pontifícia). O casamento é consumado a partir do momento da copula e
se tal não acontecer é considerado não consumado. Nos termos do O
Cân. 1061, “O matrimónio válido entre baptizados diz-se somente rato,
se não foi consumado; rato e consumado, se os cônjuges entre si
realizaram de modo humano o acto conjugal de si apto para a geração
da prole, ao qual por sua natureza, se ordena o matrimónio, e com o
qual os cônjuges se tornam uma só carne. § 2. Celebrado o matrimónio,
se os cônjuges tiverem coabitado, presume-se a consumação, até que se
prove o contrário. § 3.

O matrimónio inválido diz-se putativo se tiver sido celebrado de boa fé


ao menos por uma das partes, até que ambas venham a certificar-se da
sua nulidade “ A celebração secreta do casamento ou, o casamento de
consciência é permitido pela lei canónica nos cânones: Cân. 1130 — Por
causa grave e urgente o Ordinário do lugar pode permitir que o
matrimónio se celebre secretamente. Cân. 1131 — A permissão de
celebrar secretamente o matrimónio importa que:

1. Se façam secretamente as investigações pré-matrimoniais;

2. Se Ordinário do lugar, o assistente, as testemunhas e os cônjuges


guardem segredo acerca da celebração do matrimónio. Cân. 1132
— A obrigação de guardar segredo, referida no cân. 1131, n.° 2,
cessa por parte do Ordinário do lugar, se da sua observância se

214
originar a iminência de grave escândalo ou grave injúria contra a
santidade do matrimónio; do que se dê conhecimento às partes
antes da celebração do matrimónio. Cân. 1133 — Inscreva-se o
matrimónio celebrado secretamente só no livro especial que se
deve guardar no arquivo secreto da cúria.

O matrimónio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum


poder humano nem por nenhuma causa além da morte (cân. 1141). Em
relação ao casamento tradicional angolano é por sua maioria,
condicionado pela tradição dos pais da noiva e da origem destes.

O casamento tradicional angolano é por sua maioria, condicionado pela


tradição dos pais da noiva e da origem destes. O casamento tradicional
celebrado da população de origem bantu, por exemplo, é celebrado de
uma maneira diferente dos povos de outras etnias.

O casamento civil é válido quando não existe nenhuma das causas de


inexistência jurídica ou anulabilidade, escritas na lei. Conforme art.º
1628.º do CCP “Inexistência do casamento” e art.º 1631.º “Causas de
anulabilidade”. O casamento inexistente não produz efeitos – nem
mesmo putativos, a inexistência do casamento pode ser invocada a todo
tempo e, por qualquer interessado, independentemente de declaração
judicial.328

O casamento putativo é um casamento celebrado indevidamente ou de


boa-fé. No art. 1647.º “Efeitos do casamento declarado nulo ou
anulado” do CCP o casamento civil anulado, quando contraído de boa fé
por ambos os cônjuges, produz os seus efeitos em relação a estes e a
terceiros até ao trânsito em julgado da respetiva sentença. Se só um dos
cônjuges tiver contraído de boa fé, só esse cônjuge pode assumir os
benefícios do estado matrimonial e contestar que terceiros também
beneficiem destes. O casamento católico declarado nulo pelos tribunais
e repartições eclesiásticas produz tem efeito, nos termos dos números

328
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-11-2007, Processo n.º 8714/2007-6, Relator: Fátima
Galante.

215
anteriores, até ao averbamento da decisão, desde que esteja transcrito
no registo civil.

Entende-se de boa-fé o cônjuge que contrair o casamento no


desconhecimento desculpável do factor responsável pela nulidade ou
anulabilidade, ou cuja declaração de vontade tenha sido imposta por
coação física ou moral. É da exclusiva capacidade dos tribunais do
Estado o reconhecimento judicial da boa fé que é presumível e não
factual (art. 1648.º CCP)

Na generalidade dos casamentos "a capacidade matrimonial dos


nubentes é comprovada por meio do processo preliminar de
publicações, organizado nas repartições do registo civil a requerimento
dos nubentes ou do pároco respetivo”.329 Também o artigo 1610º do
CCP “Necessidade e fim do processo preliminar de casamento” dita que
legalidade do casamento é definido pelas publicações decretadas na lei
do registo civil e após provadas a inexistência de impedimentos. Mas há
casos em que tais trâmites são afetados por circunstâncias excecionais,
exemplo disso são os casamentos urgentes. Nestes casos, e conforme o
dispõe o nº 1 do artigo 1599º do CCP “Dispensa do processo preliminar
de casamento”.

Determina, assim, o artigo 1622º do CCP “Celebração”, no que respeita


aos casamentos urgentes que, quando justificado o receio de morte
próxima dos nubentes, ou ameaça de parto, está autorizada a
comemoração do casamento autonomamente do processo preliminar de
publicações e sem a interferência do funcionário do registo civil, sendo
escrito um assento provisório, posteriormente confirmado pelo
funcionário de registo civil (vide arts. 1622º e 1623º do CCP).330

329
Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 29-11-2007, Processo n.º 8714/2007-6, Relator: Fátima
Galante.
330
Idem

216
Para o mesmo não ser homologado as causas justificáveis estão
deliberados no art.º 1624.º “Causas justificativas da não homologação”:

O casamento não pode ser homologado:

a) Se não se verificarem os requisitos exigidos por lei, ou não tiverem


sido observadas as formalidades prescritas para a celebração do
casamento urgente;

b) Se houver indícios sérios de serem supostos ou falsos esses


requisitos ou formalidades;

c) Se existir algum impedimento dirimente;

d) Se o casamento tiver sido considerado como católico pelas


autoridades eclesiásticas e, como tal, se encontrar transcrito.

Do despacho que recusar a homologação podem os cônjuges ou seus


herdeiros, bem como o Ministério Público, recorrer para o tribunal, a
fim de ser declarada a validade do casamento.”

7.2. Tipos de matrimônios legais em algumas sociedades

Existem vários tipos de matrimônios legalmente existentes em algumas


sociedades e, proibidos por outras.

7.2.1. Monogamia

“Monogamia [do grego monos (um só) e gamos (casamento)] permite


uma só união de uma pessoa com outra de sexo diferente. Trata-se da
forma de união conjugal mais comum no mundo”.331

O Estado angolano, salvaguardou o casamento monógamo e aprovou o


casamento em assembleia geral, não só na Constituição da República,
no seu art.º 35º, n.º 1. (família, casamento e filiação) como também na

331
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p.38. 32 Lei n.º 9/2010, de 31 de maio “Permite o
casamento civil entre pessoas do mesmo sexo”.

217
Resolução nº 25/07, de 16 de julho, onde consta no art.º 6.º
“Casamento”.

7.2.2. Homossexualidade

O casamento entre pessoas do mesmo sexo é até aos dias de hoje, o


casamento que mais controversa gera em alguns países africanos. Isto
porque nesses países, a homossexualidade não é bem aceite.

Em Angola, a homossexualidade é um assunto tabu em comparação


com outros países mais desenvolvidos. Esta visão foi bem patente nas
declarações da Ministra da Família de Angola, que defendeu que “o
fenômeno pode meter em risco a matriz africana, sobretudo no que se
refere aos hábitos e costumes das populações.” Por ser um assunto
ainda tabu, a ministra optou por um recuo estratégico na sua decisão
em abordar com profundidade este fenômeno33

Entretanto, pela complexidade, que diz revestir tal dossier, a governante


Se olharmos para o CFA, nos termos do art. 20.º, “o casamento é a
união voluntária entre um homem e uma mulher excluindo a
possibilidade do casamento entre duas pessoas do mesmo sexo”. Em
Angola, o casamento entre pessoas do mesmo sexo, ainda é um assunto
fortemente debatido34.

Na cultura bantu, o casamento tem como maior objetivo a procriação.


Casar é um negócio cujos filhos são os lucros35

7.2.3. Poliandria

Na poliandria existe um matrimônio de uma mulher com vários


homens. Esta é uma forma de celebrar o casamento controversa e

218
pouco aceite em algumas sociedades. É um fenómeno que é muito
comum nas castas indianas.332

O casamento só é feito por duas pessoas de sexos diferentes. Um


casamento, na cultura bantu, é heterossexual. Um homossexual é
comparável a um bruxo ( ndoki, em língua quicongo). Numa sociedade
bantu aponta-se um dedo a uma pessoa homossexual. O
homossexualismo é um estigma.

Nas culturas bantus o maior objetivo de um matrimônio é a procriação.


Casar é um negócio cujos filhos são o lucro. Um filho não se adota é
pecado. Também um filho não se produz em laboratórios. Os
homossexuais não produzem filhos, adotam-nos o que é contra
natureza.

7.2.4. Poligamia

A poligamia é definida como “a multiplicidade simultânea de mulheres


para um.”333 Santos,334 refere que “a poligamia [do grego poli (muitos)] é
a união de uma pessoa com várias pessoas do sexo oposto”. “A
poligamia não contradiz, portanto, a exigência da distribuição equitativa
das mulheres, mas apenas sobrepõe uma regra de distribuição a
outra.”335

A própria bíblia sagrada diz que o Rei Davi tinha várias mulheres. No
livro de Samuel, capitulo 5, versículo 13, a bíblia diz o seguinte: “Davi

332
DOMINGUEZ, Gabriel - Tradição do dote na Índia é mais maldição do que bênção [em linha]. Brasil,
2013. [Consultado em: 11 de outubro 2015]. Disponível em:
http://www.cartacapital.com.br/internacional/tradicao do-dote-na-india-e-mais-maldicao-do-que-
bencao5861.html:

333
www.priberam.pt/
334
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p.38.
335
LÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco, p. 84

219
tomou ainda para si concubinas e mulheres de Jerusalém, depois que
viera de Hebrom; e nasceram a Davi mais filhos e filhas”.

A professora Medina,336 abordou a poligamia dizendo que é “a aceitação


da poligamia se traduz na consagração legal do direito dum homem
(porque inverso só em casos de poder real é atribuído à mulher) de estar
casado sucessivamente com mais de uma mulher, sem dissolver o
casamento anterior”. Índia, embora seja ilegal desde 1961. E há bons
motivos para a proibição: cada vez mais as disputas em torno da prática
resultam em espancamentos, assassinatos e suicídios. A tradição é
secular na Índia: a família da noiva dota a filha com ouro, joias e outros
objetos preciosos. Tradicionalmente, esse dote permitia que a jovem
esposa tivesse um status reconhecido dentro da família do noivo,
também lhe conferindo um certo respaldo financeiro, em caso de
emergência.

Com efeito, a monogamia e poligamia correspondem a dois tipos de


relações complementares, a saber, de um lado, o sistema de auxílios
prestados e de auxílios recebidos que liga entre si os membros
individuais do gripo; do outro lado o sistema de auxílios dados e
recebidos, que liga entre eles o conjunto do grupo do chefe.

Exogamia Trata-se de um matrimônio com uma pessoa oriunda de um


grupo étnico diferente, social, ou religioso que um dos nubentes. Este
ato é muito comum em Angola. Porem, em etnias mais conservadoras
como a etnia bacongo, e a etnia tchoke, contrair o matrimônio com
alguém de uma outra etnia pode ser motivo de desonra familiar.

Segundo Strauss,337 “a exogamia possibilita o único meio de manter o


grupo como grupo, de evitar o fracionamento e a divisão indefinidos que
seriam o resultado da prática dos casamentos consanguíneo”. 3.6
Endogâmia Trata-se de um matrimônio entre pessoas do mesmo grupo

336
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.134
337
LÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco,. p. 520

220
étnico. Um grande exemplo deste tipo de matrimônio são as castas
indianas. O casamento endogâmico, no qual as esposas são
consideradas propriedade comum dos homens do grupo como acontece
em algumas castas na Índia.338

7.2.5. Incesto

Trata-se de um casamento entre pessoas com o mesmo grau de


parentesco na linha reta e afinidade. Este tipo de matrimônio é bem
comum no mundo islâmico, e tem como motivo, a preservação das
terras e riquezas familiares. Repare bem: não se trata de incesto, afinal
os maridos não são irmãos dela.

Para cumprir suas obrigações matrimoniais, Rajo dorme toda noite com
um deles, em sistema de rodízio. A indiana não tem ideia de quem seja
o pai do seu filho. Pode ser qualquer um dos cinco maridos. “No início
ficou um pouco estranha a situação. Mas eu não favoreço nenhum
deles”, contou Rajo, de acordo com reportagem do“Sun”. Guddu, de
21anos, o primeiro a se casar com Rajo, garante: “Todos nós fazemos
sexo com ela, mas eu não sou ciumento. Somos uma grande e feliz
família”. Oficialmente, ele é o único casado com Rajo, mas ele cedeu a
esposa para casamento informal com os quatro irmãos. Bajju, o marido
mais velho, tem 32 anos.

O mais novo, Dinesh, 18 anos.

Strauss,339 ensina-nos que “o incesto nasceu como consequência direta


da troca de irmãos, não tendo outra explicação”. O casamento por troca
é dado em conexão com o casamento dos primos cruzados em

338
WILLIAMS, Amanda - The wife married to FIVE brothers: Rajo, 21, follows a tradition in Indian villages
which allows families to hold on to their farmland. [em linha] London, 2013, [Consultado em 27 de
fevereiro 2016]. Disponível em http://www.dailymail.co.uk/news/article-2295380/The-wife-married-
FIVE-brothers-Rajo21- follows-tradition-Indian-villages-allows-families-hold-farmland.html: ela é casada
com cinco homens que são IRMÃOS!
339
LÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco, p. 176.

221
numerosas sociedades”. 3.8 Casamentos arranjados Os casamentos
arranjados são casamentos no qual os nubentes não têm livre escolha.
Normalmente, os pais, tios, ou avós dos noivos são quem decide e faz os
arranjos dos casamentos. Este tipo de casamento é muito comum em
Angola sendo ele o objeto em estudo (alembamento).

7.3. Casamento por compensação

Entre povos como os africanos, o casamento não é uma simples união


de um homem e uma mulher. É uma aliança entre dois grupos
familiares. “Pelo casamento, a mulher sai do seu grupo de origem e
entra no grupo do marido.”340

A família da mulher sai prejudicada porque perde uma filha para a


família do homem. Por este motivo, a família do homem tem que
compensar a família da mulher pela perda de uma filha.

7.4. Divórcio

Como se pode, na verdade, dissolver o que é indissolúvel? Tão forte é a


impressão cristã, que o direito faz rodear a correspondente extinção de
especialidade específica tanto nas causas como nos efeitos. Será que
Cristo não criou o casamento como uma união até os últimos dias das
nossas vidas? Na Bíblia Sagrada, mais concretamente no Antigo
Testamento, a regra da indissolubilidade era uma lei eminente, a que
permitia o repúdio da esposa em caso de tentativa de divórcio. Que
argumento pode ser utilizado para fundamentar a possibilidade da
dissolução do casamento católico? Quais seriam os motivos ou direitos
invocados para possibilitar tal ato?

340
SANTOS, Eduardo dos – Direito da Família, p.41

222
Para Vaz Ferreira,341 “a dissolução natural do casamento é a morte de
um dos cônjuges. Acontece, porém, muitas vezes, não poder a vida em
comum manter-se, por diversas e variadíssimas causas. O contrato
deixou de preencher o seu fim legal desde que a família se
desorganizou”. Antigamente, o casamento era visto como um ato
indissolúvel. Os casamentos eram vitalícios. Foi Visconde de Seabra,
quem introduziu o divórcio em Portugal no Código Civil de Seabra de
1867.

Neste Código Civil é definido que os católicos celebram os casamentos


pela forma estabelecida na igreja católica. “Os que não professam a
religião católica celebrarão o casamento perante o oficial do registo civil,
com as condições, e pela forma estabelecida na lei civil (art.º 1057.º).
Separando a visão do casamento católico da visão do estado”. O
casamento passou a ser entendido como um empreendimento humano
falível e não como um sacramento indissolúvel. O divórcio, bem como o
casamento civil obrigatório, foram elementos importantes de um pacote
legal aprovado imediatamente após a implantação da I República.

Tratava-se, do alargamento dos direitos dos cidadãos e, da afirmação de


Portugal como um Estado laico. “No novo regime do divórcio a nossa lei
substantiva continua a conceber um divórcio por mútuo consentimento
judicial em que haja acordo dos cônjuges quanto à dissolução do
casamento, mas não quanto às consequências do divórcio (entenda-se,
quanto às questões referidas nas várias alíneas do art. 1775º, nº1, do
Código Civil português), caso em que cumprirá ao tribunal fixar essas
consequências.”342

Conforme referiu Delgado,343 “o direito ao divórcio é um direito


protestativo e isso porque não se traduz no poder de exigir uma

341
FERREIRA, Vaz – À Lei do divórcio (momentário), p. 11.
342
Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 05-11-2015, Processo n.º 13/14.5T8ETR.P1, Relator:
Ataíde das Neves , p.7
343
DELGADO, Abel – O Divórcio, p.22 a 24.

223
prestação ou um comportamento de outrem, mas no poder de traduzir
um certo efeito jurídico”.

Quanto à aludida legitimidade, há que ter em conta duas situações: a)


se o cônjuge ofendido estiver interdito, a ação de divórcio pode ser
intentada pelo seu representante, com autorização do conselho de
família (ar 1785.º n.º 1 do C.C) b) se o representante do cônjuge
ofendido for o representante do outro cônjuge, a ação pode ser
intentada, em nome do ofendido, por qualquer parente deste na linha
reta ou até ao terceiro grau da linha colateral, se for igualmente
autorizado pelo conselho de família.

Quanto à intransmissibilidade por morte, a ação pode ser continuada


pelos herdeiros do autor para efeitos patrimoniais, nomeadamente os
decorrentes da declaração prevista no artigo 1787.º do C.C, se o autor
falecer na pendência na causa do artigo 1785.º n.º 3 C.C, sendo certo
que para os mesmos 30 Sendo assim, podemos dizer que os efeitos
jurídicos do divórcio têm por objetivo a extinção de uma relação jurídica
entre duas pessoas. Partindo do pressuposto que o divórcio é um direito
relativo ao estado das pessoas e, como tal, um direito pessoal
consagrado na constituição.

Daí e em princípio, segundo o autor acima mencionado, só tem


legitimidade para intentar a ação de divórcio o cônjuge ofendido nos
termos do art. 1785.º “legitimidade” n.º 1 do CCP, e daí também, ser
aquele direito intransmissível «inter vivos», como é obvio, e ser
igualmente intransmissível «mortis causa», como resulta do n.º 3 do art.
1785.º CCP. O art. 1086.º do Código Civil de Seabra mencionava que “o
casamento católico só pode ser anulado no juízo eclesiástico, e nos
casos previstos nas leis da igreja, recebidas neste reino”. Actualmente, o
CCP no art. 1625.º, “competência dos tribunais eclesiásticos” determina
que “o conhecimento das causas respeitantes à nulidade do casamento
católico e à dispensa do casamento rato e não consumado é reservado
aos tribunais e às repartições eclesiásticas competentes”.

224
Em continuação, o art. 1788.º “princípio geral” do CCP diz que “o
divórcio dissolve o casamento e tem juridicamente os mesmos efeitos da
dissolução da morte, salvas as exceções consagradas na lei”. Só uma
autoridade judicial tem competência para dissolver a relação jurídica
matrimonial constituída sem qualquer vício.

7.5. Iniciativa do Divórcio

No Código de Seabra, art. 1204.º, “da separação de pessoas e bens”,


“Podem ser uma causa legítima de separação de pessoas e bens:

a) O adultério da mulher;

b) O adultério do marido com escândalo público ou completo


desamparo da mulher, ou com concubina teúda e manteúda no
domicílio conjugal;

c) A condenação do cônjuge a pena perpétua;

d) As sevícias e injúrias grave.” efeitos, pode a ação prosseguir


contra os herdeiros do réu.

Certo que a lei não o diz, expressamente, mas a verdade é que o direito
ao divórcio é irrenunciável e isso porque a renuncia a esse direito
repugna ao espírito da mesma lei. O art.º 1205.º do mesmo Código
definia que “a separação só podia ser requerida pelo conjugue inocente”.

Fundamentalmente, o divórcio era entendido como uma punição. A


dissolução do matrimônio pelo divórcio como figura-sanção era
entendida como um castigo sobre o cônjuge culpado. Atualmente, com a
entrada em vigor da Lei n.º 61/2008, o divórcio passou a ser requerido
por “mútuo consentimento ou sem consentimento de um dos cônjuges”.

O divórcio é regulado pelo art. 1773.º “modalidades” e os seus


segmentos no CCP. No art. 1775.º “requerimento e instrução do
processo na conservatória do registo civil” do CCP, o divórcio por mútuo
consenso pode ser requerido mediante determinadas condições:
225
1. O divórcio por mútuo consentimento pode ser requerido pelos
cônjuges a todo o tempo;

2. Os cônjuges não têm de revelar a causa do divórcio, mas devem


acordar sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que deles
careça, o exercício do poder paternal relativamente aos filhos
menores e o destino da casa de morada da família;

3. Os cônjuges devem acordar ainda sobre o regime que vigorará, no


período da pendência do processo, quanto à prestação de
alimentos, ao exercício do poder paternal e à utilização da casa
de morada de família.

Existe ainda a obrigação de se apresentar a relação, como instrumento,


documento onde se encontra manifestada a vontade das partes sobre a
existência dos bens comuns do casal existentes e que devem ser
partilhados posteriormente, previstas no art.º 272º “instrução e decisão”
do Código do Registo Civil (CRC). E resulta do disposto no art. 994º
“requerimento” nº 1, alíneas a, f) do Código Processo Civil, o conjunto
de documentos necessários à instauração do processo de divórcio por
mútuo consentimento, designadamente.344

48

“a) Certidão de narrativa completa do registo de casamento; b) Relação


especificada dos bens comuns, com indicação dos respetivos valores; c)
Acordo que hajam celebrado sobre o exercício das responsabilidades
parentais relativamente aos filhos menores, se os houver; d) Acordo
sobre a prestação de alimentos ao cônjuge que careça deles; e) Certidão
da convenção antenupcial e do seu registo, se os houver; f) Acordo sobre
o destino da casa de morada da família. 2 - Caso outra coisa não resulte
dos documentos apresentados, entende-se que os acordos se destinam
tanto ao período da pendência do processo como ao período posterior”.
32

344
Ibidem.

226
O divórcio sem consentimento de um dos cônjuges é pedido no tribunal
por um dos consortes contra o outro, quando existe uma separação de
fato por um ano consecutivo; alteração das faculdades mentais do outro
cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade,
comprometa a possibilidade de vida em comum; ausência, sem que do
ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano; Quaisquer
outros fatos que, independentemente da culpa dos cônjuges mostrem a
rutura definitiva do casamento. Os fundamentos do divórcio sem
consentimento estão previstos no art.º 1781.º “Rutura do casamento”
do CCP.

São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:

a) A separação de fato por um ano consecutivo;

b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando


dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a
possibilidade de vida em comum;

c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não


inferior a um ano;

d) Quaisquer outros fatos que, independentemente da culpa dos


cônjuges mostrem a rutura definitiva do casamento.”

De acordo com o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa49,


“ninguém deve permanecer casado contra sua vontade ou se considerar
que houve quebra do laço afetivo. O cônjuge tratado de forma desigual,
injusta ou que atente contra a sua dignidade deve poder terminar a
relação conjugal mesmo sem a vontade do outro”. O tribunal vai mais
longe defendendo que “O dever de respeito tem um caráter abrangente e
quer significar a consideração que cada um dos cônjuges deve ter pelas
liberdades individuais do outro, bem como pela sua integridade física e
moral50”.

Ao “divórcio-sanção”, em que se procurava apurar a quem cabia a culpa


na dissolução do vínculo conjugal, sucede o “divórcio-rutura”, em que a
227
invocação da rutura definitiva da vida em comum deve ser fundamento
suficiente para que o divórcio possa ser decretado, sem a carga
estigmatizada e punitiva inerente ao apuramento da culpa51 .

Não se atribui uma sanção para o cônjuge culpado pela dissolução do


casamento, mas impede-se “que benefícios concedidos tendo em conta o
casamento, permaneçam no

49 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-12-2015, Processo


n.º 425/13.1TMLSB.L1-2, Relator: Jorge Leal, p.17.

50 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 22-11-2011, Processo


n.º 2659/09.4TBSXL.L1-1, Relator: Afonso Henrique.

51 Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 17-12-2015, Processo


n.º 425/13.1TMLSB.L1-2, Relator: Jorge Leal, p.17. patrimônio do
cônjuge beneficiado quando, por qualquer razão, o casamento cessa por
divórcio

52”. Sob a epígrafe “data em que se produzem os efeitos do divórcio”, no


art.º 1789.º CCP estipula-se o seguinte53 .

II – A adoção 1. Adoção No sistema jurídico Português, a adoção é


estabelecida por uma decisão judicial, decorrente de um processo
próprio, envolvendo um processo de jurisdição voluntária em que a
intervenção do tribunal assume um caráter público, tornando o ato
constitutivo da adoção num ato jurídico complexo de cariz privado (a
vontade de adotar articulado com vários consentimentos) e público (a
sentença que decreta a adoção) este caráter misto justifica-se não
apenas devido aos interesses dos particulares cujo consentimento é
exigido por lei mas também pelo interesse geral.

7.6. O processo de adopção

O Processo da adoção assume ao mesmo tempo um caráter


administrativo e judicial, qualquer processo de adoção supõe a

228
apresentação da candidatura a adotante perante um organismo da
segurança social. Caso a candidatura não seja rejeitada, o candidato
toma o menor a seu cargo mediante a confiança administrativa, judicial
ou medida de promoção ou proteção da confiança à pessoa selecionada
para adoção.

Posteriormente inicia-se o período de pré-adoção não superior a 6


meses, cabendo ao organismo da segurança social elaborar um relatório
até 30 dias depois de terminado o período de pré-adoção. Findo o
período da elaboração do relatório, o candidato pode apresentar uma
petição de adoção com a qual se inicia a fase judicial do processo de
adoção, que tem caráter urgente, após a audição do adotante e das
pessoas cujo consentimento a lei exija e ainda não o tenham prestado,
só depois o juiz pode decretar a adoção. Este processo é no seu
conjunto longo e burocrático.345

Além do vínculo ser formalmente constituído por sentença não se pode


negar o peso da decisão administrativa seja por força das fases prévias
à fase sobre o estabelecimento da filiação, na hipótese de maternidade
de substituição judicial, ou da influência do relatório do organismo
social, que tem necessariamente de constar no processo judicial. Mais
importante do que isso é, no entanto, o fato de o processo de adoção
demonstrar que o direito português rejeita em absoluto a adoção
independente ou privada, incluindo a adoção como um meio de
contornar as regras.

A título de exemplo, quem tem uma casa, relactivamente pequena, onde


vivem dois filhos do adotante, a adoção de um terceiro poderá impor
sacrifícios injustos para os restantes filhos que terão neste caso de ser
ponderados. Nesta medida, compete ao Juiz com a sua margem de
discricionariedade, oportunidade e equidade, aferir do preenchimento
ou não deste requisito legal.

345
Art.º 1981 CCP

229
7.7. Efeitos da adopção

A adopção implica a integração total e exclusiva do adotado, isto é, o


adotado adquire a situação do filho de adotante, extinguindo-se as
relações entre o adotado e a família biológica Cfr. art.1986º,
“Estabelecimento e prova da filiação natural” n.º1 do CCP. Mas no caso
em que um dos cônjuges adote o filho do outro mantêm-se as mesmas
relações entre o adoptado e o cônjuge do adotante e os respetivos
parentes “art. 1986º, nº2”. 2.1 Adopção plena Podem requerer a adoção,
duas pessoas casadas a mais de 4 anos, nos termos do art. 1979º do
CCP, e nos termos do art.º 7º da “Lei nº 6/2001, de 11 de maio”. Art.º
1979.º, “quem pode adotar.”346

Podem adoptar plenamente duas pessoas casadas há mais de 4 anos e


que não sejam separadas judicialmente de pessoas e bens ou de fato, e
no caso em que ambas tiverem mais de 25 anos.

Pode ainda adotar plenamente quem tiver mais de 30 anos ou, se o


adotando for filho do cônjuge do adotante, mais de 25 anos. 3. Só pode
adotar plenamente quem não tiver mais de 50 anos à data em que o
menor lhe tenha sido confiado, salvo se o adotando for filho do cônjuge
do adotante.

Nos casos excecionais, quando hajam motivos pesados, ou justifiquem,


pode adotar plenamente quem tiver menos de 60 anos à data em que o
menor lhe tenha sido confiado, desde que não ultrapasse os 50 anos e,
que a diferença de idades do adotante e o adotando ou, pelo menos,
entre este e um dos cônjuges adotantes.”

“Quem pode ser adotado plenamente57” cujo teor é o seguinte: “1.


Podem ser adotados plenamente os menores filhos do cônjuge do
adotante e aqueles que tenham sido confiados, judicial ou

346
Art.1979 - Código Civil Português – [em linha]. [Consultado em 29 de julho 2016].Disponível em:
http://www.stj.pt/ficheiros/fpstjptlp/portugal_codigocivil.pdf. 36 No que se refere a quem pode ser
adotado plenamente o mesmo é determinado no art.º 1980º

230
administrativamente, ao adotante. O adotando deve ter menos de 15
anos à data da petição judicial de adoção; poderá, no entanto, ser
adotado quem, a essa data, tenha menos de 18 anos e não se encontre
emancipado quando, desde idade não superior a 15 anos, tenha sido
confiado aos adotantes ou a um deles ou quando for filho do cônjuge do
adotante.”

7.7.1. Adopção por casais homossexuais

231
CAPITULO VIII – A Realidade do Direito da Família em Angoa, Seu
Contributo para o Casamento Tradicional

O Direito de Família geralmente impregnado de fortes influências


culturais e de matriz religioso, é um direito que se auto condiciona a
grandes mutações. Apesar disso, ele tem sido um dos que mais se tem
transformado na nossa era. Segundo Silva,347 “Família é uma realidade
natural e social, cuja existência material, psicológica e moral se
manifesta, desde logo, em planos ou domínios da vida estranhos
(anteriores) ao plano jurídico. O surgimento e a vida da família
realizam-se e assentam numa série de comportamentos pessoais e
realidades psicológicas e morais, que o direito reconhece, aceita e
considera, ao formular a sua regulamentação de instituição familiar.

Entre esses comportamentos e realidades o amor, a amizade, a


consciência de se formar um grupo, a confiança, a lealdade, a vida em
comum, a solidariedade, uma certa identificação com os outros
componentes do mesmo agregado”.

Para Diogo,348 “A família em sentido jurídico é constituída pelas pessoas


que se encontram ligadas pelo casamento, pelo parentesco, pela
afinidade e pela adoção art.º1576º do Código Civil. Da Comunhão de
vida que os cônjuges estabelecem, em termos de colaboração íntima em
todos os aspetos da existência humana, resultam «naturalmente» filhos:
constitui-se família”. O direito a ter uma família envolve o direito da
criança a ver estabelecida a sua filiação.

347
SILVA, Carlos Alberto B. Burity da – Teoria Geral do Código Civil. 2ª ed, p.197.
348
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p. 19.

232
O direito à filiação representa o direito original de se estar integrado
numa família desde o nascimento. “Por sua vez o direito a constituir
uma nova família a partir da idade núbil, deve ser exercido de forma
própria, livre e voluntária e sem discriminação baseada no sexo, raça,
etnia ou religião.”349 Em Angola, de acordo com o art.º 7º “Constituição
da Família” do Código da Família de Angola (CFA) são fontes das
relações familiares, o parentesco, o casamento, a união de fato e a
afinidade.

A família em Angola por definição é segundo a perceção bantu, um


grupo de pessoas largamente unidas, conforme o sistema patrilinear ou
matrilinear cujas relações são baseadas sobre o parentesco.” Se
olharmos para uma noção mais generalizada, em Angola a família é
considerada um agrupamento de pessoas que se encontram entre si
ligadas por vínculos de casamento, parentesco e principalmente
afinidade. “Numa fase posterior, a família angolana é caraterizada pela
poligamia praticada pelo homem, tendo como contrapartida a exigência
de uma rigorosa fidelidade por parte da mulher” (Medina, 2005).350

Apesar do legislador angolano estipular em vários artigos, conforme


iremos mencionar no subcapítulo a seguir, em Angola “a mulher
representa o papel infamante do servo que se entrega ao arbítrio do
senhor, a troco dumas miseráveis vantagens materiais.”351 O Estado
angolano protege a família conforme estipulado no n.º 1.º do art. 1.º
“proteção da família” do CFA. O artigo menciona que “a família, como
núcleo fundamental da organização da sociedade, é objeto de proteção
do Estado, quer se fundamente em casamento, quer em união de fato”.
Vamos aqui realçar que segundo o referido artigo, em Angola a família é

349
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.121.
350
COSTA, André Conga – Filosofia Tradicional do Casamento no Mayombe, p. 55.
351
OSORIO, Ana de Castro - A Mulher no Casamento e no Divorcio, Pp.27 - 28.

233
entendida como o núcleo social mais importante que integra a estrutura
do Estado Angolano.

O art. 22.º “princípio da universalidade” n.º 3 da Constituição da


República de Angola (CRA) defende que em angola em relação à família,
a sociedade e o Estado e outras instituições legalmente reconhecidas
existem deveres especiais.

O problema do casamento é um dos mais graves e mais difíceis de


resolver, entre tantíssimos com que se vê braços a sociedade moderna.
É necessário que o encaremos sob todos os pontos de vista, que o
voltemos em todos os sentidos, e serenidade e justiça calma analisemos
em todas as situações, tentando dar-lhe de algum modo a estabilidade
que ainda é necessária nas sociedades baseadas na família legal, mas
sem o fundarmos na prepotência e na injustiça que são ainda hoje as
cadeias com que se acorrenta um ser indefeso a outro que se sente
fortalecido pelos costumes, a lei, a experiencia e a educação.

O artigo. 1577.º do Código Civil que o casamento é casamento em


Portugal, é o contrato celebrado entre duas pessoas que pretendem
constituir família mediante uma plena comunhão de vida. Esta
definição é dura e seca, vindo inteira da lei romana que não via diante
de si o homem – individuo, mas o homem – família, o homem que
fornecia cidadãos á republica e soldados para as suas guerras
intermináveis.

Entretanto, a própria lei se estabelece de encarregar de demonstrar


como neste contrato bilateral, ao contrário de todos os contratos em que
se pressupõe igualdade de direitos e deveres nos associados, a mulher
representa o papel infamante do servo que se entrega ao arbítrio do
senhor, a troco dumas miseráveis vantagens materiais. a) respeitar os
direitos, as liberdades e a propriedade de outrem, a moral, os bons
costumes e o bem comum; b) respeitar e considerar os seus
semelhantes sem discriminação de salvaguardar e reforçar aquele
respeito e a tolerância recíprocos.

234
Na alusão da família, casamento e filiação, o legislador angolano
estipulou no art. 35.º “família, casamento e filiação” da CRA
infracitado63 . E, o Código da família, no seu artigo 129.º diz o
seguinte: “Artigo 129.º Direito à filiação” 1. A todos é reconhecido o
direito ao estabelecimento da filiação. 2. O exercício dos direitos dos
filhos menores deve ser especialmente protegido por lei.

8.1. O parentesco em Angola

O conceito de parentesco é baseado em regra, em laços carnais ou de


sangue, mas não quer dizer que ele seja assim uniformemente aceite
por todos os povos.

Em Angola, “o parentesco é um conjunto de relações interpessoais e de


grupo que se estabelecem numa comunidade, a partir dos laços de
sangue de afinidade.”352Art.º 35º CRA.

8.2. A Família

A família é o núcleo fundamental da organização da sociedade e é objeto


de especial proteção do Estado, quer se funde em casamento, quer em
união de fato, entre homem e mulher. Todos têm o direito de livremente
constituir família nos termos da Constituição e da lei. O homem e a
mulher são iguais no seio da família, da sociedade e do Estado, gozando
dos mesmos direitos e cabendo-lhes os mesmos deveres. A lei regula os
requisitos e os efeitos do casamento e da união de fato, bem como os da
sua dissolução.

Os filhos são iguais perante a lei, sendo proibida a sua discriminação e


a utilização de qualquer designação discriminatória relativa à filiação.
6.A proteção dos direitos da criança, nomeadamente, a sua educação
integral e harmoniosa, a proteção da sua saúde, condições de vida e

352
ABRANCHES, Henrique. Direito Tradicional e agregado Familiar – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p. 190.

235
ensino constituem absoluta prioridade da família, do Estado da
sociedade.

O Estado, com a colaboração da família e da sociedade, promove o


desenvolvimento harmonioso e integral dos jovens e adolescentes, bem
como a criação de condições para efetivação dos seus direitos políticos,
económicos, sociais e culturais e estimula as organizações juvenis para
a prossecução de fins económicos, culturais, artísticos, recreativos,
desportivos, ambientais, científicos, educacionais, patrióticos, e de
intercâmbio juvenil internacional.

O CFA define que “o parentesco se estabelece, quer por laços de sangue,


quer por adoção” nos termos do seu art.º 8.º. Aqui o parentesco é
apresentado como um vínculo resultante de uma filiação. Mais
propriamente uma sucessão de pessoas nas quais, algumas descendem
das outras ou, como um vínculo que liga várias pessoas que sem
descenderem umas das outras, provêm, contudo, de um ascendente
comum.

8.3. Elementos do parentesco

“A linha de parentesco é formada por diversos graus, constituindo cada


geração um grau”, art.º 10 º do CFA. Segundo Diogo,353 “o cálculo dos
graus de parentesco é feito nos termos do artigo 1581º do Código Civil,
na linha reta, há tantos graus quantas as pessoas que formam a linha
de parentesco, excluído o progenitor; na linha colateral, os graus
contam-se do mesmo modo, ascendendo por um dos ramos e descendo
pelo outro, sem contar o progenitor comum.”

8.4. Afinidade

353
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p. 23.

236
A afinidade é considerada o vínculo jurídico que liga um cônjuge aos
parentes do outro cônjuge. Na afinidade não existe efetivamente
qualquer vínculo sanguíneo. Conforme cita Diogo.354 “A fonte da
afinidade é, assim, o casamento. Não cessando, porém, com a
dissolução deste cfr. art.º1585º do Código Civil, o que se compreende
quanto aos impedimentos relativos à celebração do casamento, embora
não necessariamente quanto aos outros efeitos.” “O casamento cria
uma família, o estado de cônjuge, a legitimidade dos filhos, as relações
de afinidade com os parentes do outro cônjuge, bem como uma série de
expectativas tuteladas por lei.355 Para Medina,356 “a afinidade advém do
fato natural da procriação e tem como causa o ato jurídico do
casamento, constituindo-se em relação a um parentesco alheio, ou seja,
ao parentesco do outro cônjuge”.

O CFA define a afinidade e os seus elementos nos art.º 14.º e 15.º. Ao


analisar o n.º 2 do art.15.º “elementos da afinidade” Aqui “a afinidade
não cessa pela dissolução do casamento”. Apesar de não existir uma
ligação sanguínea, e sendo apenas um vínculo jurídico, o peso moral da
afinidade em Angola é tão grande que é quase impossível duas pessoas
que estejam ligadas por afinidade contraírem o matrimônio. Este ato na
maioria dos casos, não é bem visto entre as duas famílias em causa,
podendo causar danos morais entre as mesmas “rompimento de laços
de afinidade”.

8.5. Conselho da família

Em Angola, o Conselho de Família é um órgão auxiliar de Justiça. O


Capitulo IV do CFA art. 16.º “Conselho de família” define o seguinte: “1.
O Conselho da Família é o órgão consultivo do Tribunal nas ações de

354
Ibidem.
355
VARELA, Antunes – Direito da Família. 1.º 5.ª ed, 189.
356
MEDINA, Maria do Carmo – Direito de Família Anotado. 2.ª ed, p. 87.

237
natureza familiar previstas na lei; 2. Para além dos casos de
intervenções obrigatórias, pode o Tribunal, requerimentos das partes e
sempre que tal se justifique, fazer intervir o Conselho de Família, em
qualquer das ações prevista nesta lei.”

A Constituição do conselho de família é definida no nos termos do art..


17.º n. º1 do CFA. O mesmo é constituído por quatro pessoas, que não
sejam partes na ação, escolhidas entre parentes, preferindo os de grau
mais próximos, o cônjuge, os afins e, na falta destes, as pessoas que
convivem com as partes. Sendo que a afinidade em Angola um onús
importantíssimo, caso haja necessidade ou na ausência de um dos
familiares de um dos cônjuges, poderão ser chamados para integrar ou
presenciar o Conselho da Família pessoas que convivam com os
cônjuges como os vizinhos mais velho do bairro, o cunhado, ou mesmo
o padre da paróquia do bairro. Na constituição do Conselho da Família,
o Tribunal deverá sempre que possível, garantir a representação
equitativa dos parentes de cada um dos companheiros da união de fato
e das linhas materna e paterna de parentesco nos termos do art. 17.º
n.º 2 do CFA.

A filiação A CRA define a família conforme n.º 1 do art. 35.º “família,


casamento e filiação” como o núcleo fundamental da organização da
sociedade e é objeto de especial proteção do Estado, quer se funda em
casamento, quer em união de fato, entre homem e mulher. Segundo
Lobo,357 “a filiação é conceito relacional; é a relação de parentesco que
se estabelece entre duas pessoas, uma das quais é considerada filha da
outra (pai ou mãe). O estado de filiação é a qualificação jurídica dessa
relação de parentesco, atribuída a alguém, compreendendo um
complexo de direitos e deveres reciprocamente considerados”.

357
R. CEJ, Brasília, n. 27 p-47-56, out./dez. 2004. p.48.
https://www.google.com/search?q=R.+CEJ%2C+Bras%C3%ADlia%2C+n.+27+p-47-
56%2C+out.%2Fdez.+2004.+p.48&ie=utf-8&oe=utf-8&client=firefox-b-ab.

238
A Lei n.º 23/92, de 16 de setembro, mencionava no seu art.º 30.º que
“as crianças constituem absoluta prioridade, pelo que gozam de especial
proteção familiar, do Estado e da sociedade com vista ao seu
desenvolvimento integral”. Contudo, o legislador angolano decidiu ir
mais longe na defesa da filiação conforme consta no Código de Família,
art. 4.º “proteção e igualdade das crianças que a criança merecem
especial atenção no seio da família, à qual cabe, em colaboração com o
Estado, assegurar-lhes a mais ampla proteção e igualdade para que elas
atinjam o seu integral desenvolvimento físico e psíquico e, no esforço da
sua educação, se reforcem os laços entre família e a sociedade.”

Geralmente, quando se aborda a questão familiar, pensa-se em geral


na filiação biológica. No entanto, no sistema jurídico angolano, a família
abrange também a filiação por via da adoção conforme n.º 1 do art.
129.º do CFA “direito à filiação” que diz o seguinte: “a todos é
reconhecido o direito ao estabelecimento de filiação”. Conforme citado
anteriormente, o art.º 35º “Família, casamento e filiação” da CRA
dispõem no seu n.º 5 o seguinte: “os filhos são iguais no seio da família,
sendo proibida a sua discriminação e a utilização de qualquer
designação discriminatória relativa à filiação”.

Aqui, o legislador defende claramente que todos os filhos (biológicos ou


adotados) têm os mesmos direitos no seio da família.

239
É de almejar com este capítulo fazer uma abordagem sobre o casamento
em Angola, que constitui o fundamento principal do tema em
abordagem segundo vários peritos na matéria.

Definir o casamento civil em Angola, não é uma tarefa tão fácil uma vez
que existe pouca legislação sobre a temática. Sendo Angola um país
independente menos de 40 anos, o país não tem fortes antecedentes
históricos sobre o casamento. Isto porque em Angola antes da
independência, vigoravam os mesmos critérios de casamento que em
Portugal. Em Angola, o principal objetivo do casamento é fazer passar a
mulher da casa dos pais, tios ou avós, para a do marido. Além de
implicar uma deslocação física para a jovem.

O casamento também tem como finalidade marcar uma transformação


de jovem, para a mulher. Sendo que a partir do momento em que uma
mulher é casada, altera-se o seu estado e estatuto social dentro da
comunidade. O legislador angolano defende a igualdade entre o homem
e a mulher conforme estipulado no nº 3 do art.º 35º da CRA º “família,
casamento e filiação”, bem como no art. 3.º do CFA “Igualdade entre o
homem e a mulher”.

Segundo Medina,358 “quando se fala em igualdade de direitos e deveres


não se quer impor forçosamente a existência de tarefas iguais do

358
MEDINA, Maria do Carmo – Direito de Família Anotado. 2.ª ed, p.27.

240
homem e da mulher dentro da família. Elas devem ser repartidas de
forma harmônica e equilibrada dentro do princípio da solidariedade que
se deve estabelecer entre os membros da família.

A lei deve abster-se de indicar qual o papel da mulher no seio familiar,


pois quando tal acontece é para a colocar numa posição de
subalternidade”. O casamento em Angola é celebrado com o “mútuo
consenso” e ninguém é obrigado a casar sem o seu consentimento nos
termos do art. 35º do CFA.

Em Angola, existe para além do casamento Civil e do religioso o


casamento tradicional. Este casamento é conhecido como o “pedido ou
alembamento”359 que é celebrado antes do casamento Civil e religioso. A
forma de celebração do casamento tradicional é por sua maioria,
condicionado pela tradição dos pais da noiva e da origem destes. O
alembamento da população de origem bantu,360 por exemplo, é
celebrado de uma maneira diferente das outras etnias.

8.5.1. A promessa de casamento em Angola

Um contrato promessa, é, uma convenção na qual ambas as partes, ou


uma delas, compromete-se em celebrar determinado contrato ou
negócio prometido. A promessa de casamento em Angola está expressa
no Código de família, art.º 22º “ineficácia da promessa de casamento.” A
promessa de casamento, seja ou não acompanhada da entrega de bens
ou valores ao outro nubente ou à sua família, não produz quaisquer
efeitos jurídicos e não dá direito a exigir o casamento. O nubente que
injustificadamente der causa a rutura deve indemnizar o outro nubente
pelas despesas efetuadas e pelas obrigações contraídas na previsão do
casamento a que tiver dado o seu acordo.

359
MONTEIRO, Ramiro Ladeiro – A Família Nos Musseques de Luanda, p.169.
360
http://www.infoangola.ao/index2.php?option=com_content&do_pdf=1&id=2653.

241
A promessa de casamento é em si “um ato já revestido de certa
ressonância social, realizado com seriedade entre os noivos, mas
também conhecido dos seus familiares e pessoas do seu meio social. É
óbvio que não é qualquer promessa de casamento, feita de forma
leviana e revestida de secretismo, que pode ser considerada como
tal”.361 A promessa de casamento celebrado pelos pais, tios ou avós sem
o consentimento da mulher, conforme é muito habitual nos arranjos
dos casamentos tradicionais, é, pois, inválido. A promessa de
casamento tem que ser bilateral na qual ambos os contraentes se
comprometem a celebrar o contrato que depois vai originar o casamento
civil.

A grande maioria dos cerca de 12.000.000 de habitantes que


constituem a população Angolana, provém dos povos de origem Bantu.

Ao contrário do ordenamento jurídico português, em que não existe


uma eficácia na promessa de casamento (conforme consta no art. 1591º
do CCP), no ordenamento jurídico angolano, existe uma força jurídica
costumeira na promessa de casamento. Esta força jurídica costumeira
pode ser invocada pelos pais dos noivos ou pelos tios em casos de
casamentos arranjados, e a promessa de casamento deve ser respeitada
nos termos do art.º 7º “costume” da CRA.

Segundo Mendes; Sousa,362 o artigo. 1591º do CCP: “entende a


promessa de casamento como o contrato pelo qual duas pessoas se
comprometem a contrair matrimônio. A promessa de casamento é,
assim, legalmente qualificada como um negócio jurídico bilateral,
podendo-se entendê-la, numa perspetiva doutrinária, como um
contrato-promessa de celebração do casamento.

Da promessa de casamento emerge para cada uma das partes


contratantes a situação de esposado”. “A promessa de casamento não é

361
MONTEIRO, Ramiro Ladeiro – A Família Nos Musseques de Luanda, p. 172.
362
MENDES, João de Castro; SOUSA, Miguel Teixeira – Direito da Família, p.51.

242
formal, mas o simples namoro não origina qualquer promessa de
casamento. A averiguação de uma celebração não formal dessa
promessa deve ser analisada tomando em consideração a condição e o
meio social das partes e o significado simbólico neles atribuídos a
alguns atos (como, por exemplo, a troca de anéis de noivado). Só em
função desses fatores se pode determinar se o comportamento da parte
ou os atos por ela praticados são concludentes quanto à celebração
tácita de uma promessa de casamento”.363

8.5.2. Dever de indemnizar

Após a celebração da promessa de casamento, os futuros cônjuges têm


a liberdade contratual de inserirem no contrato promessa, todas as
cláusulas do seu interesse, desde que, estas cláusulas respeitem os
requisitos do art. 22.º nº 2, do CFA que diz o seguinte: “o nubente que
injustificadamente der causa na rutura deve indemnizar o outro
nubente pelas despesas efetuadas e pelas obrigações contraídas na
previsão do casamento, a que tiver dado o seu acordo”.

8.5.3. Dever de restituir

Conforme refere Santos,364 “O incumprimento da promessa de


casamento, confere o direito a restituir os donativos recebidos em
virtude da promessa e na expetativa do casamento (art. 1592.º n.º 1
CCP). Esta obrigação, nascida do incumprimento da promessa por
incapacidade ou retratação de qualquer um dos nubentes, recai sobre
ambos. Todavia, a obrigação de restituir os donativos não abrange as
coisas consumidas antes da retratação ou da verificação da
incapacidade”. Santos vai mais longe e refere ainda que pode ser pedido

363
Op Cit. p. 54. 47
364
SANTOS, Eduardo - Direito da família, p.156/157.

243
o direito á restituição dos valores doados ou a uma indemnização no
prazo de um ano, a partir do dia em que foi quebrada a promessa ou do
falecimento do promitente.

Ninguém pode ser impedido de contrair o casamento desde que não se


verifique alguns impedimentos matrimonias previstos no art.23.º
“capacidade para contrair o casamento” do CFA.

8.5.4. Natureza jurídica do casamento

“O casamento em Angola é a união voluntária entre um homem e uma


mulher” nos termos do art.º 20.º do CFA. O casamento fundasse na
igualdade e reciprocidade estabelecer direitos e deveres dos cônjuges.
“Trata-se de um negócio jurídico, solene, ou seja, formal, mediante o
qual um homem e uma mulher aceitam, voluntária e reciprocamente
estabelecer entre si convivência comum de caráter duradouro”.365

“Há, porém, quem entenda ser de afastar o conceito que o casamento


possa ser encarado como um contrato, porquanto o casamento não é
um ato de natureza patrimonial, mas sim um negócio jurídico do qual
resulta a constituição de relação de natureza patrimonial”.366 O Código
da Família fala explicitamente na união voluntária entre um homem e
uma mulher, não permitindo o casamento entre pessoas do mesmo
sexo.

Conforme referiu Medina,367 “as maiores transformações que se têm


vindo a verificar na forma como vem a ser encarada a vida em família
em Angola, é a de aceitar como uma realidade familiar a convivência
sexual entre pessoas do mesmo sexo”. Em Angola, o envolvimento das
famílias de ambos os cônjuges no casamento é tão grande que, em

365
Ibidem, p. 175.
366
Ibidem, p.176.
367
MEDINA, Maria do Carmo. Direitos Humanos e direito da família – Revista da Faculdade de Direito:
Universidade Agostinho Neto. N.º 4, p.126.

244
alguns casos, o mesmo abre o caminho ao divórcio, pois quando uma
das partes não cumpre os termos do contrato, gera-se um conflito entre
duas famílias.

Pois, neste país, é habitual a realização das reuniões familiares para


abordagem dos conflitos conjugais. Ora, segundo Santos,368 “O
casamento está subtraído à livre vontade das partes: estas não podem
estipular condições ou termos, nem a por cláusulas ou modos, nem
disciplinar as relações conjugais de maneira contraria a lei. Só pode
haver liberdade contratual no domínio dos interesses patrimoniais e,
mesmo aí, em medida muito limitada”.

De mencionar ainda que em Angola, os contratos matrimoniais na sua


grande maioria envolvem propriedades, bem como direitos e obrigações
recíprocas. Nas palavras de Ralph Línton,369 “a forma mais comum
dessas ratificações de contrato por transferência de propriedade é
aquela que é muitas vezes, erroneamente, chamada compra de noiva, e
consiste num pagamento feito pelo marido, ou pela sua família, à
família da mulher”.

8.5.5. Condição para contrair o casamento

Em Angola, a lei exige que os nubentes devem ter capacidade para


contrair o casamento, ou seja, que não se verifique aquilo a que a lei
chama de impedimentos matrimoniais que são no fundo circunstâncias
que, de algum modo, impedem a celebração do casamento.

Segundo Varela,370 “A capacidade matrimonial, tendo o casamento por


fim essencial a constituição da família, aponta direta e exclusivamente
para os requisitos essenciais à comunhão plena e natural de vida que
constitui a base jurídico-sociológica da sociedade conjugal.

368
SANTOS, Eduardo - Direito da família, p.135.
369
LINTON, Ralph – O homem: Uma introdução à Antropologia, p.177.
370
VARELA, Antunes – Direito da Família. 1.º 5.ª ed, p, 216.

245
Há assim requisitos da capacidade matrimonial que nenhum reflexo
encontram na capacidade negocial ou contratual”, Já Medina,371 diz
“nenhum dos nubentes podem celebrar o casamento impondo condições
ou cláusulas que alterem ou modifiquem os efeitos legais”. Uma das
condições para contrair o casamento em Angola é o sexo. Pois, segundo
o art. 20.º do CFA, “o casamento em Angola é a união voluntária entre
um homem e uma mulher”.

Fica aqui o impedimento absoluto do casamento entre pessoas do


mesmo sexo. Este impedimento, é reforçado no número 1.º do art. 35.º
da CRA “família, casamento e filiação” onde se pode ler que a família é o
núcleo fundamental da organização da sociedade e é objeto de especial
proteção do Estado, quer se funde em casamento, quer em união de
facto, entre homem e mulher”.

8.5.6. Capacidade e Impedimentos para contrair o Matrimônio

“Etimologicamente, impedimento deriva de impedir. E impedimento


será, em sentido lato, todo o obstáculo que a lei ergue à celebração do
casamento. Será a falta de toda a condição ou circunstancia que a lei
exige para a celebração do matrimônio”.372 Para formalizar um
casamento civil em Angola, os nubentes têm que cumprir uma série de
formalidades e pré-requisitos. E para salvaguardar a eficácia do
casamento civil, O legislador Angolano decidiu estipular no art.º 23.º do
CFA, “capacidade para contrair o casamento”. Segundo Varela,373
“qualquer pessoa, interessada ou não, parente ou estranho, tem
legitimidade para declarar os impedimentos que conheça, seja qual for a
natureza destes.”

371
MEDINA, Maria do Carmo – Direito de Família Anotado. 2.ª ed, p.179.
372
SANTOS, Eduardo - Direito da família, p.183. 85 art. 23.º do CFA

373
VARELA, Antunes – Direito da Família. 1.º 5.ª ed, p.213. 50 4.1

246
Tem capacidade para contrair o casamento, todos aqueles em quem se
não verifique algum dos impedimentos matrimoniais previstos nos
artigos seguintes ou em lei especial.

8.5.7. Idade núbil

Em Angola, o casamento carece de uma idade legalmente aceite pelo


Estado. Deve haver uma idade núbil que permita a plena comunhão de
vida, prática da cúpula, e para usufruir de outros direitos e deveres
dentro de um casamento. Tanto a CRA, art. 24.º “maioridade”, como a
Resolução nº25/07, de 16 de julho art. 6.º “Casamento” alínea b),
definem como maioridade os 18 anos. Por este motivo, o CFA estabelece
no seu art. 24.º a regra de que a idade núbil para o casamento são os
mesmos 18 anos. A autorização a que se refere o número anterior será
concedida pelos pais tutores ou por quem tiver o menor a seu cargo,
podendo ser suprida pelo Tribunal, ouvindo o parecer do Conselho da
Família para pronunciar-se.

O artigo 24.º do CFA abre uma exceção para celebração do casamento


entre menores (homens com 16 anos e mulheres com 15). Após serem
ponderadas determinadas circunstâncias “citando o exemplo a gravidez
precoce”, e tendo em conta o interesse dos menores, acha-se que o
casamento seja a melhor solução. Esta exceção só pode ser concedida
pelos pais, tutores ou por quem tiver os menores a seu cargo. 4.2
Impedimentos absolutos Nos termos do art. 25.º do CFA, são
“impedimentos absolutos”: “a) demência notória, mesmo durante os
intervalos lúcidos, e a interdição ou inabilitação por anomalia psíquica;
b) O casamento ou a união de fato legalmente reconhecida, enquanto o
casamento ou união anterior não forem dissolvidos. Artigo 24.º (idade
núbil) do CFA.

247
Só pode casar os maiores de 18 anos. 2. Excecionalmente poderá ser
autorizado a casar o homem que tenha completado 16 e a mulher que
tenha completado 15 anos, quando, ponderadas as circunstancias do
caso e tendo em conta o interesse dos menores, seja o casamento a
melhor solução.

8.5.8. Demência

Sendo a demência notória um fator que pode influenciar a vontade ou a


capacidade de um nubente, uma vez que o indivíduo perde a
capacidade de distinguir os vícios da vontade, ela constitui por si só,
um impedimento dirimente absoluto para contrair o casamento.

Campos,374 refere que “no ordenamento jurídico português, a ausência,


sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a quatro anos
(alínea b) do art.º 1781.º do CCP), e a alteração das faculdades mentais
do outro cônjuge, quando dure há mais de seis anos, e, pela sua
gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum (alínea c),
são fundamentos do divórcio litigiosos (art.º 1781.º). Trata-se de
situações para as quais o único “remédio” é o divórcio”. Em Angola, a
demência é um “impedimento absoluto” conforme art.º 25.º aliena a do
CFA) estão totalmente interditos de contrair o casamento, pessoas que
sofrem desta enfermidade mental. “Aqui, a demência constitui causa de
incapacidade matrimonial mesmo que o casamento seja celebrado num
intervalo lúcido da doença mental”.375 ,376

374
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p 297
375
MEDINA, Maria do Carmo – Direito de Família Anotado. 2.ª ed, p.188

376
VARELA, Antunes – Direito da Família. 1.º 5.ª ed, p 230

248
8.5.9. Bigamia

Para Varela90, “de acordo com a tradição cultural da civilização


ocidental, entende-se que o casamento deve ser monogâmico. O
princípio da unidade matrimonial é essencial à comunhão plena de vida
entre os cônjuges, nenhum deles pode entregar-se plenamente a mais
do que uma pessoa. E daí o chamado impedimento de vínculo
(impedimentum ligaminis), segundo o qual só pode casar o nubente que
seja solteiro, viúvo ou divorciado”. Em Angola, está totalmente excluída
a possibilidade de contrair o casamento entre pessoas que pretendem
celebram um casamento, mas não dissolveram o casamento anterior.
Seja este casamento celebrado no estrangeiro ou em território Angolano.

Além de estar estipulado na alínea b) do art. 25.º do CFA, a bigamia é


punível nos termos do art. 222.º “bigamia” do anteprojeto do Código
Penal de Angola.

8.5.10. Prazo internupcial

Como refere Santos,377 “o prazo internupcial, como este adjetivo diz, é o


espaço de tempo que deve mediar entre dois casamentos de uma
mesma pessoa. Entre um matrimônio dissolvido (por divórcio ou por
morte), declarado nulo ou anulado, e as próximas núpcias”. Em Angola,
nos termos art.º165.º do CFA “novo casamento da mãe”. “Se a mãe tiver
contraído outro casamento antes de dissolvido o anterior, ou dentro dos
300 dias após a dissolução do casamento, presume-se a paternidade do
marido cujo casamento foi celebrado em último lugar”.

377
SANTOS, Eduardo – Direito da Família, p.181.

249
8.5.10. Impedimentos relativos

Nos termos do art. 26.º do CFA, são “impedimentos relativos” refutando


a celebração do casamento, os impedimentos seguintes: “a)

O parentesco e afinidade na linha reta; b) O parentesco no segundo


grau da linha colateral; c) A pronúncia do nubente como autor ou
cúmplice por homicídio doloso contra o cônjuge do outro, enquanto não
houver despronúncia ou absolvição”.”

8.5.11. Falta da vontade ou vício

“Em matéria de casamento não é admissível um casamento sem


vontade, no sentido de que não se pode permitir a continuação do
casamento sem uma vontade perfeita, livre, esclarecida, dirigida, pelo
menos, aos principais efeitos práticos do casamento, à prossecução da
comunhão de vida que constitui a sua essência.

O consentimento deve ser pessoal, puro e simples, perfeito e livre”.378


Quem, sendo casado, contrair novo casamento ou quem contrair
casamento com uma pessoa sabendo que ela é casada, é punido com
pena de 6 meses a 2 anos ou com uma multa de 60 a 360 dias. 2.Na
mesma pena incorre quem, tendo para tanto competência, realizar ou
autorizar a realização de um casamento nas condições referidas no
número anterior.

Em Portugal, conforme pronunciou-se no Tribunal da Relação de


Coimbra, por Acórdão de 01.03.2016,379 “nos termos do artº 1618º, nº 1
do C. C, a vontade de contrair casamento importa aceitação de todos os
efeitos legais do matrimónio, sem prejuízo das legítimas estipulações
dos esposos em convenção antenupcial”. Quando tal não se verifique,

378
CAMPOS, D. d. (2012). Lições de Direito da Família e das Sucessões, p.193.
379
Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 01.03.2016, Processo nº750/14.4TBCTB.C1, Relator
JAIME CARLOS FERREIRA. (www.dgsi.pt)

250
ocorre uma causa de anulabilidade do casamento, conforme artº 1631º,
al. b) do C. Civil – anulabilidade do casamento por falta de vontade -,
designadamente quando o casamento tenha sido simulado – artº 1635º,
al. d) do C. Civil.

Para Mendes: Sousa,380 “Se as partes, ou uma delas, celebram o


casamento – e, portanto, declaram querer unir-se em comunhão plena
de vida˗, sem na verdade terem essa intenção, verifica-se nesse
casamento um vício, uma divergência na vontade declarada. Essa
divergência pode ser a causa de anulabilidade do casamento nos termos
do art. 1635.º als a) e d)”. Medina,381 refere que “na alínea b) do art.65.º
do CFA, vêm mencionados os seguintes vícios, que se referem ao
elemento de fundo do ato de casamento, mútuo consentimento”.

São eles:

1. A falta de vontade;

2. O vício da vontade;

3. A celebração do casamento com finalidade diversa da prevista lei.

Conforme menciona Diogo,382 “em matéria de casamento não é


admissível um casamento sem vontade, no sentido de que não se pode
permitir a continuação da celebração de um casamento sem uma
vontade perfeita, livre, esclarecida, dirigida, pelo menos, aos principais
efeitos práticos do casamento, à prossecução da comunhão de vida que
constitui a sua essência. O consentimento deve ser pessoal, puro e
simples, perfeito e livre”. Para a existência e validade do negócio
jurídico, requer-se a vontade de o celebrar, e essa vontade, em última
análise, tem de se orientar para o conteúdo que o ato encerra. Isso nos

380
Mendes, João de; Sousa, Teixeira de – Direito da Família, p. 77.
381
MEDINA, Maria do Carmo – Direito de Família Anotado. 2.ª ed, p.216.

382
CAMPOS, D. Leite de – Lições de Direito da Família, p.193.

251
levou, logo de início, a enunciar como elemento do acordo contratual no
casamento, a vontade de celebrar.

Para Abel Delgado,383 “o mútuo consenso consiste no encontro e fusão


das manifestações de vontade das partes; não é mais do que o acordo
bilateral dos contraentes”. Santos,384 refere que “o consentimento, em
sentido técnico jurídico, significa o acordo resultante das vontades dos
contraentes. É assim, o mútuo consenso”. Sendo que a vontade esta na
base do ato principal do casamento, ao constituir-se internamente, deve
seguir um processo psicológico correto, sem circunstâncias anômalas
que a perturbem no curso da sua formação. Segundo Varela,385 “O
casamento simulado é anulável (art.1635 al. d CCP), podendo a
anulação ser assim requerida tanto pelos próprios cônjuges, como pelas
pessoas prejudicadas com o casamento (art. 1640.º CCP)”.

Em Angola, o Código da Família, no seu artigo 68.º “anulação por falta


de vício da vontade ou por simulação, prevê as hipóteses de
legitimidade para intentar uma ação de anulabilidade por falta de vício
da vontade ou por simulação. Por sua vez, o artigo 67.º101 do código da
família disciplina a anulação fundada na existência de impedimento.

Art. 67.º do CFA “1 – Nos casos a que se refere a primeira parte da


aliena b) do art.65.º, a ação de anulação apenas pode ser intentada pelo
cônjuge cuja vontade faltou ou que foi vitima de erro ou coação, mas
podem prosseguir nela os seus parentes na linha reta e os seus
herdeiros, se o autor falecer na pendência da causa. 2 – A anulação por
simulação pode ser proposta pelo Ministério Público ou pelas pessoas
prejudicadas com o casamento.”

383
Abel Pereira Delgado – Do contrato Promessa, p.79.
384
SANTOS, Eduardo – Direito da Família, p.166.
385
VARELA, Antunes – Direito da Família, p 273.

252
8.6. Direito Costumeiro No Ordenamento Jurídico Angolano

O casamento tradicional em algumas zonas de África consiste na


entrega de um conjunto de bens materiais e dinheiro que a família do
noivo entrega à família da noiva oriundo de um vínculo contratual
previamente celebrado consuetudinário entre as duas famílias. A forte
presença de hábitos e costumes trazem uma desregulamentação no
ordenamen to jurídico angolano, principalmente na área do direito de
família onde em algumas regiões se sobrepõe ao direito positivo
angolano. “É quase impossível fazer um estudo aprofundado sobre o
direito costumeiro em Angola sem a ajuda da antropologia bem como a
sociologia angolana Carlos Feijó.386

O jurista Carlos Feijó afirmou em Luanda, que para se elaborarem


teorias e noções sobre o direito costumeiro em Angola, precisa-se contar
com os subsídios de outros saberes, como o da antropologia e
sociologia. Carlos Feijó fez esta afirmação quando dissertava sobre "O
estatuto do Direito Costumeiro na Constituição de 2010 e a construção
da disciplina de Direito Costumeiro no ensino das Faculdades de
Direito", tema enquadrado na segunda Jornada Científica da Faculdade
de Direito da Universidade Agostinho-Neto.

Para o jurista, existem muitas nuances do Direito Costumeiro que


devem ser avaliadas, logo as ciências invocadas, a par do Direito
Comparado (como de países como África de Sul, Namíbia, Botswana),
podem contribuir para a estruturação uma disciplina de Direito
Costumeiro. 59 Sendo Angola um país com fortes hábitos e costumes
achou-se necessário reconhece o costume na Constituição da
República, no seu art. 7.º “Costume” onde se pode é reconhecida a

386
ANGOP - Teorização do direito costumeiro em Angola passa pelo estudo de outras ciências [em
linha]. Angola, 2012. [Consultado em: 01 de março 2016]. Disponível em:
http://www.angonoticias.com/Artigos/item/36007/teorizacao-do-direito-costumeiro-em-angola-passa-
pelo estudo-de-outras-ciencias:

253
legitimidade e força jurídica do costume que não vá contra a
Constituição nem a dignidade da pessoa humana.

Com o reconhecimento do “costume” o legislador angolano abriu


comportas permitindo que cada etnia em Angola celebre os seus
costumes consoante os hábitos e costumes vigentes na sua etnia ou
região e sobre tutela das autoridades tradicionais. As autoridades
tradicionais no direito costumeiro angolano são tratadas por/como
"Soba". Os Sobas, ou ngana em língua e região do quimbundo, foram
dois títulos adotados pelas autoridades coloniais e estenderam os
nomes aos chefes de outras tribos de Angola.

É título correspondente ao dignitário que responde, em termos divino e


profano, pelo povo. Nos termos do art. 224. º do CRA, “autoridades
tradicionais”, “As autoridades tradicionais são entidades que
personificam e exercem o poder no seio da respetiva organização político
comunitária tradicional, de acordo com os valores e normas
consuetudinários e no respeito pela Constituição e pela lei.” Em Angola,
as autoridades tradicionais funcionam como juízes nos tribunais
costumeiros ou tradicionais. Tal como um juiz, o soba ou autoridade
tradicional, é eleito por um conselho de anciãos que detêm alguns
poderes no direito costumeiro de uma comunidade.

Ao contrário da CRA, o Código Civil Angolano (CCA) apenas refere no


art. 348. º “Direito consuetudinário local ou estrangeiro” que aquele que
apelar ao direito consuetudinário, local ou estrangeiro, tem o dever
provar a sua existência e o seu conteúdo. O conhecimento oficioso
compete ao tribunal, sempre que tenha de decidir com base neste
direito, em que nenhuma das partes o invoque, ou a parte contrária
tenha tido conhecimento da sua existência e conteúdo ou não haja
deduzido oposição.

O casamento tradicional O casamento em África, não é exceção na sua


pureza tradicional é diferente dos casamentos ocidentais. Embora a
sexualidade desempenhe um papel importante, o casamento tradicional
254
é, antes de mais, um meio de prolongar a linhagem de um clã. Segundo
Monteiro,387 “trata-se de um casamento que não envolve apenas dois
indivíduos, mais sim duas famílias ou tribos que tornar-se-ão uma só.
Os principais sujeitos que intervêm no ato do casamento, não são, pois,
os nubentes, mas as suas respetivas famílias e a própria estabilidade da
união parece depender mais das relações recíprocas destas do que dos
comportamentos dos cônjuges”.

“A expressão casamento tradicional refere-se à união matrimonial


acompanhada de alembamento, que é uma formalidade ritual que
confere valor jurídico à união, segundo o direito costumeiro”.388 O
casamento tradicional em Angola tem um ónus importante que, os
legisladores angolanos pretendem reconhecer no futuro CFA.389

A proposta, que está a ser preparada pela Comissão de Reforma da


Justiça para o Código da Família e do Código Civil, foi apresentada
publicamente ontem, em Luanda, com a finalidade de recolher
contribuições. Além dos casamentos produzirem efeitos civis, o diploma
acrescenta aos efeitos patrimoniais do casamento os regimes de
comunhão de bens e o da participação final nos adquiridos.
Actualmente vigoram os regimes de comunhão de bens e separação de
bens. O futuro Código da Família estabelece 16 anos como limite
mínimo excecional para celebração do casamento em relação a ambos
os sexos, obedecendo ao princípio da igualdade.

Em relação a dissolução do casamento, o documento consagra a


liberdade de requerer o divórcio, eliminando se o período de moratória
legal, dado o facto de não parecer sensato fazer prevalecer um

387
MONTEIRO, Ramiro Ladeiro – A Família Nos Musseques de Luanda, p.170.
388
Ibidem.
389
ANGONOTICIAS – Casamento Tradicional Civil [em linha]. Angola, 2016. Angola, 2014. [Consultado
em: 01 de fevereiro 2016]. Disponível em:
http://www.angonoticias.com/Artigos/item/44309/casamento-tradicional-c O futuro Código da Família
vai reconhecer o casamento tradicional e religioso e introduzir dois novos regimes aos efeitos
patrimoniais do casamento.

255
casamento que, na prática, está terminado. O futuro Código da Família
permite que o ex. cônjuge continue a usa o apelido obtido em virtude do
casamento, independentemente da forma da dissolução do casamento,
enquanto não contrair novo casamento. Em caso de celebração de um
novo casamento.

A celebração do casamento tradicional em Angola é considerada a


garantia do cumprimento de um contrato sinalagmático celebrado entre
as duas famílias. De mencionar que em Angola, o casamento tradicional
né marcado por dois eventos. A apresentação e o pedido. É celebrado
um compromisso de honra,390 em forma de um ato solene pelo qual, as
duas famílias prestam declarações e comprometem-se, com palavras de
honra, a cumprirem o contrato promessa (a entrega do dote e da
mulher) celebrado no ato do casamento tradicional. Em Angola, este
simbolismo é considerado um costume e, está consagrado na CRA
cfr.art. 7 “Costume”.

Contudo, o reconhecimento do casamento tradicional ou o costume,


contraria o direito canónico cfr. cân.24 - § 1. “Não pode obter força de
lei nenhum costume que seja contrário ao direito divino”. O casamento
tradicional sofreu algumas alterações no seu modo de celebração e
realização. Em algumas zonas, foi posto de parte o verdadeiro
simbolismo deste casamento. Radcliffe-Brown,391 explica que o
casamento tradicional se baseia no dote.392

O autor refere: “O casamento tradicional pode ser entendido como uma


forma tradicional de união conjugal existente nalgumas regiões de
África, principalmente entre os povos Bantu. Refere-- se a um conjunto
de preparativos e entregas de um dote que a família do noivo faz à da
noiva, com o intento de legitimar o casamento e estabelecer novos laços

390
Art. 559.º nº 2. “o compromisso de honra”, do CPC.
391
BROWN, A.R. Radcliffe; FORDE, Daryll – Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento. 2.ª
ed, p.62.

392
Idem op Cit. - p. 66. 62

256
de parentesco (também chamados laços de afinidade ou aliança),
segundo o direito consuetudinário”. O dote consiste na entrega de
certas quantias em dinheiro, roupas, calçados, bebidas, animais e
determinados objectos.

Por exemplo, em algumas sociedades (como em muitos países


ocidentais), o ato de oferecer um anel com uma pedra de brilhante
significa as intenções matrimoniais de quem faz a dádiva (prática que
também já vem sendo utilizada em substituição do alembamento por
algumas famílias angolanas). Em Angola, as intenções matrimoniais
não consistem meramente na celebração de um noivado, pelo contrário,
aqui para o noivado é necessário a doação de uma série de bens
materiais por parte do noivo doadas à família da noiva. declaração
inicial do novo casamento, pode o ex. cônjuge continuar a usar o
apelido do casamento anterior.

Apesar de o CFA ser explícito conforme art. 22.º “a eficácia da promessa


de casamento”, no casamento tradicional, a promessa de casamento é
vista como a celebração de um acordo (contrato) no qual as duas
famílias devem cumprir tudo que foi estipulado na carta do pedido. O
não cumprimento deste acordo é visto como uma violação do acordo,
bem como uma grave ofensa a família lesada. Em casos de
incumprimento do alembamento por uma das partes, sofrera como
consequências sanções tradicionais que podem envolver avultadas
somas de dinheiro, gados, ou mesmo a perda de alguns direitos
costumeiros na comunidade.

O alembamento começa quando alguém do sexo masculino se apaixona


por uma mulher e demonstra interesse em se casar com a mesma ou
quando um familiar do homem indica uma mulher da comunidade para
casar.

A mulher é avaliada pelos familiares do jovem a fim de aprovar se é


digna de entrar na família ou não. Depois desta etapa, a família do
rapaz escreve a carta de pedido dirigida à família da jovem com o fim de
257
pedir a mão desta em casamento. É de realçar que os pais da noiva não
têm nenhum poder de decisão ou expressão sobre o alembamento
muito menos a futura noiva. Esta decisão é de competência do irmão
mais velho do pai “chefe ou cabeça da família” que toma todas as
decisões sobre o procedimento do alembamento. A família do rapaz
dirige-se (por convite da família da noiva) para casa da família da noiva
para fazer a apresentação com o fim de se apresentarem debaterem as
questões e dimensão do dote de alembamento. Durante a primeira
conversa, é feita uma carta de pedido estipulando o valor ou volume do
dote.

A família do noivo leva um pequeno dote (bebidas tradicionais) na


apresentação e é recebida com um almoço. No final é entregue à família
do futuro marido uma lista do pedido,393 no qual consta alguns bens
que devem ser entregues no ato do alembamento. Este evento é
chamado de “apresentação das famílias”. No segundo evento (dia do
alembamento), se o dote não cumprir os requisitos conforme escrito na
lista do pedido não será celebrado casamento.

A lei angolana diz nos termos do art. 22.º, nº 2 do CFA o nubente que
injustificadamente der causa à rutura deve

118

descreve os presentes oferecidos pelo pai do jovem por ocasião da festa


do noivado: dez cestos de peixe seco, dez mil cocos maduros e seis mil
verdes, recebendo ele próprio em troca dois bolos de quatro pés
quadrados por seis polegadas de espessuras. Estes bens são trocados
imediatamente pelos bens equivalentes ou recebidos pelos beneficiários
que têm por obrigação proceder, em uma ocasião ulterior, a contra
presentes, cujo valor excede muitas vezes o dos primeiros, mais que por
sua vez dão direito a receber mais tarde dons que superam a
suntuosidade dos precedentes.

393
LÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco, p. 92

258
63 indemnizar o outro nubente pelas despesas efetuadas e pelas
obrigações contraídas na previsão do casamento a que tiver dado o seu
acordo. Antigamente alembamento era feito por meio da entrega de
alguns garrafões de vinho de palmeiras de dendém, e, de outras bebidas
caseiras e mais alguns artigos simbólicos. Atualemnte, o alembamento
tornou-se mais moderno e as listas de pedidos mais extensas e
materialista119 .

Segundo o Sociólogo Makuta Nkondo,394 “para os povos bantus a


virgindade de uma menina a quem se pede a mão para um casamento
(uma noiva) é muito importante. Uma mulher deve chegar virgem à casa
do primeiro marido. Razão pela qual, pessoas do sexo oposto não devem
ser amigas. Uma menina só tem amigas e um menino como amigos”.

Analisando os verdadeiros aspetos do contrato, o casamento tradicional


nem sempre cumpre os principais requisitos. Analisar o casamento
tradicional como um contrato não é uma questão tão simples uma vez
que as regras do casamento tradicional são ditadas pelos tios e, não
pelos próprios pais. No casamento tradicional, a união é definida como
uma combinação de interesses entre duas ou várias pessoas sobre uma
determinada coisa.395

A Lista de pedido (dote) varia de região a região. Uma lista de pedido


bacongo pode constar; dez grades de cerveja, dez grades de refrigerante,
cinco litros de vinho, cinco litros de whisky, um jogo completo de roupa
para a mãe, um fato completo para o pai, 500 dólares, dois fatos um
para o tio paterno outro para o tio materno, três panos superwax, um
para a mãe, outros para as tias paternas e maternas, duas cobertas
para avos paternas e maternas, dez maços de cigarro ou tabaco para os
avos paternos e maternos, anel de noivado, uma cabeça de gado.

394
NKONDO, Makuta – Virgindade da menina para os povos bantu [em linha]. Angola, 2015. [Consultado
em: 01 de abril 2016]. Disponível
em:http://www.clubk.net/index.php?option=com_content&view=article&id=20891:virgindade-da-
menina-para os-povos-bantu-makuta-nkondo&catid=17&Itemid=1067&lang=pt:
395
ALMEIDA, Carlos Ferreira de – Contratos I. p. 22, 23

259
Também namorar, para os bantu, é uma obscenidade. Uma menina que
namora ou uma mulher que fazem amizades com os homens é
equivalente a uma prostituta. Uma menina nunca apresenta um
namorado ou um amigo aos pais. Dizer que pai ou mano, este/a é meu
(minha) namorado/a, é escandaloso e condenável nas culturas bantu.
Um(a) menino(a) só apresenta aos pais um(a) pretendente (Nzitikila, em
língua quicongo).

Pretendente é aquele(a) para quem já foram cumpridos os requisitos


tradicionais: carta de pedido aceite pelos pais da menina, tia da menina
que servira de medianeira entre as partes (dos noivos) escolhida e já
recebeu a sua importância monetária e apresentação do pretendente
(menino) aos pais da menina já realizada.

Esta fase chama-se em quicongo Zitikila (Noivar). Só depois de cumprir


esta etapa que os pretendentes (menino e menina) ganham o estatuto
de noivos e podem apresentar-se um e outra. Pior ainda, uma mulher
casada que apresenta amigos ao marido.

7.6.1. A contratualidade do casamento tradicional

Na definição de Santos,396 “o casamento é, assim, um negócio jurídico


bilateral, um contrato. É um contrato sinalagmático”. Para Almeida, “é
um contrato unanimemente qualificado, no direito português, como um
negócio jurídico bilateral. Isto é, existe um negócio jurídico onde ambas
as partes fazem um acordo onde ambos saem beneficiados e ninguém
pode ser injustiçado, prejudicado ou privilegiado”. Já Varela,397 aborda
o contrato de casamento “como um acordo vinculativo, assente sobre
duas ou mais declarações de vontade (oferta ou proposta, de um lado;
aceitação, do outro lado), contrapropostas, mas perfeitamente

396
SANTOS, Eduardo – Direito da família, p.132.
397
VARELA, Antunes – Direito da Família. 1.º 5.ª ed, p 211. 124 Idem Op. Cit. p.131.
260
harmonizáveis entre si, que visam estabelecer uma composição unitária
de interesses”.

O casamento tradicional em Angola é um acordo de casamento que


vincula obrigatoriamente as pessoas em causa, não existindo a
possibilidade de não cumprirem mesmo sem a existência do princípio
da vontade por ambas as partes. Isto porque ainda existem famílias
tribalistas onde é indicado um (a) parceira. Este ato é normal, em
famílias reais em certas regiões de Angola. Nestas regiões os
casamentos são feitos por arranjos entre famílias com objetivos de
manter a riqueza dentro de uma determinada aldeia. Um exemplo desta
família real é a família real das Lundas. A ausência da vontade de
celebrar um casamento por obrigação, pode ter como consequência o
seu afastamento ou isolamento dos demais membros da família.

Quando alguém rejeita um acordo de casamento por obrigação,


rejeitando o parceiro ou parceira que lhe foi indicado (a), os mais velhos
da família (tios, pais, avós) avisam dos riscos de ser amaldiçoada pelos
seus antepassados e as consequências futuras desta decisão. A vontade
e o respeito aos mais velhos são invioláveis criando um vício da
vontade. “No casamento, concorrem, assim, duas vontades que se
obrigam reciprocamente a uma prestação: cópula,398 conjugal ordenada
à procriação, ou, mais em rigor, o direito a essa cópula”.

No casamento tradicional, as consequências na falta de cumprimento


das obrigações de um dos cônjuges no casamento tradicional, podem
ser as seguintes: Restituição da coisa ou pessoa depois de celebrado o
contrato compra e venda (compra da noiva); Pedido da devolução dos
bens; Pedido de uma outra noiva; Pedido de uma multa cujo valor é
decidido por um tribunal tradicional.

398
VARELA, Antunes – Direito da Família, p 177.

261
7.6.2. Direito das sucessões costumeiro

Segundo Varela,125 “ o indivíduo, que tenha quatro ou cinco filhos de


mulheres diferentes, não tem quatro ou cinco famílias distintas. Se não
chegou a casar com nenhuma dessas mulheres, não tem famílias
constituídas; se casou com alguma delas, constituiu apenas uma
família em função do único casamento que celebrou, e não quatro ou
cinco famílias, em função dos filhos que gerou ou das mulheres com
quem manteve relações”.

“No casamento tradicional se um casal tem filhos antes de ser


regularizado o pagamento do preço da noiva, os filhos pertencerão ao
irmão da mulher ou ao parente masculino mais próximo e passa a ter
direitos plenos na linhagem sucessória como se fosse filho sangue do
irmão da mulher ou parente”.399

Depois do dote regularizado o marido ou a família deste, adquire os


direitos sobre os filhos pela mulher concebidos”.400 Este costume viola
claramente a Resolução nº25/07de 16 de julho, no art. 3.º “Direito à
dignidade”:

1. Toda a mulher deve ter direito à dignidade inerente ao ser


humano e ao reconhecimento e proteção dos seus direitos
humanos e legais;

2. Toda a mulher tem direito ao respeito da sua pessoa e ao


desenvolvimento livre e pleno da sua personalidade;

3. Os Estados Partes devem adotar e implementar medidas


adequadas, proibindo todas as formas de exploração ou
degradação da mulher;

399
LÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco, p.305.
400
Idem Op. Cit. P.135.

262
4. Os Estados Partes devem adotar e implementar medidas que
garantam a defesa do direito de todas as mulheres à sua
dignidade e a serem protegidas de todas as formas de violência,
particularmente a sexual e verbal.”

Em caso de morte da esposa, a irmã da falecida ocupa o lugar desta na


família, e passa a ser ela a mulher do viúvo (a). Esta medida é tomada
com o fim de assegurar a continuidade dos laços de parentesco e a
rápida proteção das pessoas vulneráveis. Serve também para
compensar o dote que a família do homem deu à família da mulher.

Ora, os filhos da falecida, passam a ser filhos da nova esposa com


plenos direitos na linhagem sucessória, direitos iguais aos filhos fruto
do novo casamento. A nova esposa cuidará dos sobrinhos como se
fossem seus filhos biológicos e, em momento algum poderá a mesma
discriminar ou banalizar os mesmos. Quando o marido morre, a viúva
casa com um dos irmãos do viúvo sem vontade própria. “Os filhos deste
casamento são considerados filho do finado garantindo deste modo a
descendência do irmão que faleceu”.401

No direito tradicional, as heranças e sucessões atendem-se apenas à


consanguinidade e idade. Em outras palavras o primogénito herda tudo
por via de regra. “É o seguinte mecanismo de transmissão
sucessoral”.402

Herda o filho mais velho da irmã mais velha do falecido; Herda o irmão
mais velho.

Quando o falecido é do sexo feminino, sucede-lhe a filha mais velha; na


falta a irmã mais velha; No caso de o falecido de sexo masculino possuir
várias mulheres (situação normal), herda o filho primogénito, qualquer
que seja a sua mãe; Um avô pode considerar seu filho um neto natural
e dar origem a nova família com diferente forma de sucessão; A sanzala

401
Bíblia Sangrada: Deuteronómio, 25:5:1.
402
ADAO, Chico – As origens do fenómeno kamutukuleni acelestral Angolense aplicável, p.122-124.

263
pode preterir o verdadeiro herdeiro, passando a herança a um mais
velho de uma sanzala aparentada; Certos bens podem ser doados a um
filho que não seja o herdeiro natural; Bens herdados pela via materna
podem passar a mulheres e os herdados pela via paterna aos homens.
No direito costumeiro não existe um testamento escrito. O mesmo,
conforme o próprio direito costumeiro em si é consuetudinário. O
testamento pode ser feito da seguinte maneira.403

1. Em público perante os anciãos de toda a sanzala; é indispensável a


presença de, pelo menos, um magistrado do tribunal costumeiro;

2. Em segredo, mas com a confirmação, pela prova de sonho do filho


mais velho do falecido;

3. Por mensageiro enviado para cumprir a vontade do falecido.”

7.6.3. A problemática da dissolução do casamento tradicional.

Os critérios para a dissolução do casamento tradicional não fogem aos


do direito canónico. Por este motivo, e tal conforme consta no cân. 1056
– infra, “ as propriedades essências do matrimónio são a unidade e a
indissolubilidade, as quais, em razão do sacramento, adquirem
particular firmeza no matrimónio cristão”, no casamento tradicional, o
divórcio não é permitido, salvo em caso da impossibilidade de
reconciliação do casal por motivos que forem considerados por ambas
as famílias imperdoáveis, como o adultério ou homicídio.

Radcliffe,404 refere: “uma vez que o casamento envolve a transferência


de gado para o seu pai e, o divórcio implica a sua devolução ao marido,
é sobretudo cumprindo as suas obrigações de esposa e deste modo
evitando o divórcio, que uma mulher realiza a sua obrigação para com

403
Ibidem
404
BROWN, A.R. Radcliffe; FORDE, Daryll – Sistemas Políticos Africanos de Parentesco e Casamento. 2.ª
ed, p. 179. 132

264
os seus pais”. Segundo Strauss,405 “se o divórcio não se faz por
consentimento mútuo, o marido pode exigir, em lugar dos presentes de
casamento, que um outro membro da família lhe seja entregue como
mulher, uma irmã, uma sobrinha ou uma tia”.406

Quando o motivo do divórcio é a infidelidade do homem, o mesmo é


obrigado a pagar uma multa à sua esposa, bem como à família da
mesma.

Segundo Santos.407 “O dever de fidelidade, ao contrário dos restantes


deveres conjugais, é conteúdo negativo. Enquanto os outros deveres
obrigam a prestações positivas, este exige abstenções ou prestações
negativas. Com efeito, está hoje ultrapassada a conceção que identifica
a violação do dever de fidelidade com o adultério. E também o adultério
não se deve entender apenas como relação sexual consumada entre
uma pessoa casada e outra que não o seu cônjuge.

O adultério será todo o ato sexual praticado voluntariamente por quem


é casado com outrem que não o seu cônjuge”.

Porém, o quando o divórcio é culpa da infidelidade da mulher, a família


da mulher é obrigada a devolver o dote do casamento e, pagar uma
multa decidida pelo tribunal tradicional. Contudo, a justiça tradicional
em alguns casos, pode colidir com os detalhes dos conceitos adotados
pelo direito positivo.

Aconteceu, uma mulher acusada de adultério ter de se despir no


julgamento tradicional, algo que segundo o direito positivo é
condenável.”408

405
LÉVILÉVI-STRAUSS, Claude – As estruturas elementares do parentesco, p. 301

406
Art. 74.º e 79.º do CCA.
407
SANTOS,– Direito da Família, p.285.
408
CHICOCA, Armando, - Namibe: Tribunal tradicional manda despir mulher acusada de adultério [em
linha]. Angola, 2015. [Consultado em: 01 de abril 2016]. Disponível em:
265
Bibliografia

http://club k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=20449:namibe-tribunal-tradicional-
manda-despir mulher-acusada-de-adulterio&catid=2&Itemid=1069&lang=pt:

266

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