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Conselho Editorial Autografia

Adriene Baron Tacla


Doutora em Arqueologia pela Universidade de Oxford;
Professora do Departamento de História da Universidade Federal Fluminense.

Ana Paula Barcelos Ribeiro da Silva


Doutora em História Social pela UFF;
Professora Adjunta de História do Brasil do DCH e do PPGHS da UERJ/FFP.

Daniel Chaves
Pesquisador do Círculo de Pesquisas do Tempo Presente/CPTP;
Pesquisador do Observatório das Fronteiras do Platô das Guianas/OBFRON;
Professor do Mestrado em Desenvolvimento Regional - PPGMDR/Unifap.

Deivy Ferreira Carneiro


Professor do Instituto de História e do PPGHI da UFU;
Pós-doutor pela Université Paris I - Panthéon Sorbonne.

Elias Rocha Gonçalves


Professor/Pesquisador da SEEDUC/RJ.

Elione Guimarães
Professora e pesquisadora do Arquivo Histórico de Juiz de Fora.

Rivail Rolim
Professor do Departamento de História e do Programa de Pós-Graduação em História-UEM-PR.
Rio de Janeiro, 2020
DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)
(EDOC BRASIL, BELO HORIZONTE/MG)

D451 Desenvolvimento insustentável [recurso eletrônico] : conflitos socioambientais e


capitalismo no Brasil contemporâneo / Organizadores Napoleão Miranda, Wilson
Madeira Filho. – Rio de Janeiro, RJ: Autografia, 2020.
Formato: ePUB
ISBN 978-65-5943-101-4
1. Sociologia. 2. Conflitos socioambientais. 3. Desenvolvimento sustentável. I.
Miranda, Napoleão. II. Madeira Filho, Wilson.
CDD 338.981
Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422

Desenvolvimento insustentável: conflitos socioambientais e capitalismo no Brasil contemporâneo


miranda, Napoleão (org.)
madeira filho, Wilson (org.)

isbn: 978-65-5943-101-4
1ª edição, dezembro de 2020.

Editora Autografia Edição e Comunicação Ltda.


Rua Mayrink Veiga, 6 – 10° andar, Centro
rio de janeiro, rj – cep: 20090-050
www.autografia.com.br

Todos os direitos reservados.


É proibida a reprodução deste livro com fins comerciais sem
prévia autorização do autor e da Editora Autografia.
SUMÁRIO

AUTORES . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 7

APRESENTAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11
Napoleão Miranda, Wilson Madeira Filho

A DISPUTA DO BOTO COR-DE-ROSA E DO BOTO TUCUXI NA FESTA


DO ÇAIRÉ 2019 ENQUANTO ESTRATÉGIA DE PROTESTO E DE
RESISTÊNCIA NA ÁREA DE PROTEÇÃO AMBIENTAL DE ALTER DO CHÃO . . . . . . . 19
Wilson Madeira Filho

QUEIMADAS NA FLORESTA AMAZÔNICA: HUMANOS E NÃO-


HUMANOS INVISIBILIZADOS E A NECROPOLÍTICA ESTATAL. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 43
Wilson Madeira Filho, Luiza Alves Chaves

“QUANDO A BOIADA DO VENENO PASSA”: A ESCALADA DE


REGISTROS DE NOVOS AGROTÓXICOS NO GOVERNO BOLSONARO . . . . . . . . . . . . . . 71
Roberta Oliveira Lima, Valter Lúcio de Oliveira

ESPAÇO E LUGAR NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS INTRATÁVEIS:


REFLEXÕES SOBRE O DIREITO DE PERMANÊNCIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 99
Allan Sinclair Haynes de Menezes, Ronaldo Lobão

NEOEXTRATIVISMO, O DESASTRE DE MARIANA E A (IN)


SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL DA ATIVIDADE MINERÁRIA NO BRASIL . . . . . 117
Alessandra Dale Giacomin Terra, Napoleão Miranda
A GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA DO DESASTRE TECNOLÓGICO
DE MARIANA: UMA REFLEXÃO SOBRE A GESTÃO DE CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 151
Alessandra Dale Giacomin Terra, Andreza Aparecida Franco Câmara, Napoleão Miranda

POBRES E PRETOS NO MEIO DO CAMINHO: RESISTÊNCIAS DO


QUILOMBO QUEIMADAS, EM SERRO ( MG) FACE AOS PROJETOS DE
MINERAÇÃO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 175
Thaís Henriques Dias, Wilson Madeira Filho, Ana Maria Motta Ribeiro

O ITINERÁRIO DE RECONHECIMENTO DAS COMUNIDADES


TRADICIONAIS DO PROJETO AGROEXTRATIVISTA JURITI VELHO . . . . . . . . . . . . . . 201
Lílian Regina Furtado Braga, Marcelino Conti de Souza, Wilson Madeira Filho

GRANDES EMPREENDIMENTOS, PLANEJAMENTO MUNICIPAL


E VIOLÊNCIA: OS EFEITOS DAS EXPECTATIVAS E DO
FRACASSO DO COMPERJ . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 219
Valter Lúcio de Oliveira, Carlos Alberto do Valle Amorim, Jorge Carlos Dias de Sousa Jr

REFLEXÕES SOBRE AS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA


JUSDIVERSIDADE EM UM CONTEXTO POSCOLONIAL . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 253
Gabriel Calil Maia Tardelli, Lucas Cravo de Oliveira, Ronaldo Lobão

ENQUANTO PASSA A BOIADA: UMA NECESSÁRIA PERSPECTIVA


AMBIENTAL EMANCIPATÓRIA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 271
Laone Lago, Wilson Madeira Filho, Napoleão Miranda
AUTORES

Alessandra Dale Giacomin Terra – Doutoranda do Programa de


Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Flu-
minense e Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior.

Allan Sinclair Haynes de Menezes - Doutor em Ciências Jurídicas e


Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense. É pesquisador no Núcleo de Pesqui-
sa sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ-UFF) vinculado ao Ins-
tituto Comparado em Administração Institucional de conflitos (InEAC)
e coordena a disciplina de Administração de Conflitos Socioambientais
do curso Tecnólogo em Segurança Pública e Social da UFF.

Ana Maria Motta Ribeiro - Professora associada do Departamento


de Sociologia e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Di-
reito da Universidade Federal Fluminense.

Carlos Alberto do Valle Amorim - Mestrando do Programa de Pós-


-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Flu-
minense.

Andreza Aparecida Franco Câmara - Professora Adjunta do Depar-


tamento de Direito do Instituto de Ciências da Sociedade, campus
Macaé RJ da Universidade Federal Fluminense.

7
Emmanuel Oguri Freitas - Doutor em Ciências Sociais e Jurídicas
pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Univer-
sidade Federal Fluminense e professor adjunto da Universidade Esta-
dual de Feira de Santa BA

Gabriel Calil Maia Tardelli - Doutorando em Antropologia Social


pela Universidade de Brasília (UnB); pesquisador no Núcleo de Pes-
quisa sobre Práticas e Instituições Jurídicas (NUPIJ-UFF), vinculado
ao Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional
de Conflitos (INCT-InEAC), e do Laboratório de Etnografia das Ins-
tituições e das Práticas de Poder (LEIPP) do Departamento de Antro-
pologia da Universidade de Brasília (DAN-UnB).

Jorge Carlos Dias de Sousa Jr - Bacharel em Sociologia pela Univer-


sidade Federal Fluminense. Participa do Núcleo de Estudos e Pesqui-
sas nas Temáticas Ambientais e Rurais (FRONTEIRAS/UFF). Foi bol-
sista de Iniciação Científica do CNPq..

Laone Lago - Doutorando do Programa de Pós-Graduação em So-


ciologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.

Lílian Regina Furtado Braga - Mestranda do Programa de Pós-Gra-


duação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminen-
se. Promotora de Justiça no Ministério Público Estadual, em San-
tarém PA.

Lucas Cravo de Oliveira - Mestre em Direito pela Universidade de


Brasília (UnB); pesquisador no Núcleo de Pesquisa sobre Práticas e
Instituições Jurídicas (NUPIJ-UFF), vinculado ao Instituto de Estudos
Comparados em Administração Institucional de Conflitos (INCT-I-
nEAC) e do grupo de pesquisa Percursos, Narrativas e Fragmentos:
História do Direito e Constitucionalismo.

8
Luiza Alves Chaves - Doutoranda do Programa de Pós-Graduação
em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense e Bolsis-
ta da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

Marcelino Conti de Souza – Diretor da Unidade Avançada José Veríssimo


da Universidade Federal Fluminense e Doutorando do Programa de Pós-
-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense.

Nadine Monteiro Borges - Doutora em Ciências Sociais e Jurídicas


pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Univer-
sidade Federal Fluminense e assessora jurídica parlamentar na Assem-
bleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Napoleão Miranda – Professor Associado do Departamento de So-


ciologia e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Sociolo-
gia e Direito da Universidade Federal Fluminense.

Roberta Brandão Novaes - Doutora em Antropologia (PPGSA/


UFRJ), professora, pesquisadora do Núcleo de Antropologia da Políti-
ca (NuAP/MN/UFRJ).

Roberta Oliveira Lima - Doutora em Ciências Sociais e Jurídicas pelo


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito (2018) e Mes-
tre em Gestão de Políticas Públicas pela UNIVALI (2012). Professora
(UNESA/RJ). Advogada.

Ronaldo Lobão - Professor Associado do Departamento de Direito


Público e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense.

Thaís Henriques Dias - Mestranda do Programa de Pós-Gradua-


ção em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense e

9
Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior.

Valter Lúcio de Oliveira - Professor no Departamento de Sociologia


e Metodologia das Ciências Sociais e dos Programas de Pós Gradua-
ção em Sociologia (PPGS) e Sociologia e Direito (PPGSD) da Univer-
sidade Federal Fluminense

Wilson Madeira Filho – Professor Titular do Departamento de Di-


reito Público e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Di-
reito da Universidade Federal Fluminense.

10
APRESENTAÇÃO
Napoleão Miranda
Wilson Madeira Filho

Os artigos reunidos neste livro tratam de uma questão central da


realidade brasileira contemporânea: as agressões perpetradas contra
o meio ambiente a partir de uma perspectiva predatória na relação
entre a atividade econômica e o uso dos recursos naturais do país,
configurando o que no livro se caracteriza como um modelo de de-
senvolvimento insustentável, com profundas repercussões socioam-
bientais e políticas, as quais, radicalizadas nos últimos dois anos com
o governo do Presidente Jair Bolsonaro, transformaram o Brasil, de
uma liderança mundial nas questões ambientais, em um “pária” in-
ternacional, para usar a expressão tão a gosto do atual Ministro das
Relações Exteriores do país, Ernesto Araújo.
Assistimos, estupefatos, embora não inertes, ao progressivo des-
monte de toda uma institucionalidade, forjada ao longo dos últimos
30-40 anos, voltada para a proteção do meio ambiente que tornou
o Brasil em uma referência mundial na questão ambiental, e cuja
expressão máxima veio na conhecida sugestão do atual Ministro do
Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial no Palácio do
Planalto em 22 de abril de 2020, de aproveitar o momento da pande-
mia de Coronavirus, em que as atenções da impressa estavam focadas
nas suas consequências sanitárias e econômicas, para ir “passando a
boiada” no que se refere ao desmonte da legislação ambiental exis-
tente, vista como muito restritiva e como um obstáculo à exploração
ampliada dos recursos de vários biomas brasileiros, como a Amazô-
nia, o Cerrado e o Pantanal.

11
Abordando esta realidade sob diferentes aspectos, dos incêndios na
Amazônia à mineração, da crítica ao desenvolvimentismo a proposi-
ções teóricas e metodológicas, os artigos buscam chamar a atenção
para o padrão predatório do desenvolvimento capitalista brasileiro
nas últimas décadas, em especial aquele que se instalou no mundo
rural, a partir da transformação do campo brasileiro em um espaço
de acumulação de capital com base na produção de commodities
agrárias, minerais e florestais. As atividades associadas a essa crescen-
te predação dos recursos naturais brasileiros, colocaram o país como
um dos líderes mundiais na exportação de produtos agropecuários
e minerais, tornando-o, no entanto, profundamente dependente das
atividades do agrobusiness para a geração dos recursos externos neces-
sários para alimentar as atividades econômicas em outros setores da
economia brasileira.
Essa dinâmica econômica no campo brasileiro teve, por conse-
quência, profundos impactos ambientais e sociais, gerando grandes
conflitos envolvendo os principais atores sociais de uma forma ou
outra associados a estas atividades, notadamente empresários rurais,
trabalhadores do campo, governos estaduais e federal, quilombolas,
indígenas, o Poder Judiciário, as organizações não governamentais
dedicadas aos temas da proteção socioambiental, os meios de comu-
nicação, e até mesmo o Exército brasileiro nos conflitos envolvendo
terras indígenas na Amazônia, em especial aquelas situadas em re-
giões de fronteira com outros países do continente.
Os exemplos característicos dessa dinâmica profundamente agres-
siva contra o meio ambiente, apesar de todos os avanços legais, cul-
turais e institucionais ocorridos no Brasil desde a Constituição de
1988, são muitos e mostram como o tema ambiental se tornou um
campo de lutas constantes envolvendo muitos atores sociais e com
grandes reflexos em termos ambientais, sociais, políticos e jurídicos.
Só para ficarmos nos eventos mais recentes, podemos citar os confli-
tos e disputas em torno do Novo Código Florestal Brasileiro (2012)

12
que mobilizou dos pequenos aos grandes proprietários rurais, de um
lado, e os trabalhadores rurais, várias ONGs, os órgãos de defesa do
meio ambiente, de outro, em torno das novas regras de uso permiti-
do da terra as quais terminaram por ser mais benéficas para as ativi-
dades agrícolas gerando menos proteção ao meio ambiente do que
até então.
Podemos também mencionar os dois maiores desastres ambien-
tais registrados no Brasil, ambos a partir da atividade de exploração
minerária, ocorridos, os dois, em Minas Gerais: o primeiro em Ma-
riana (nov./2015) e o segundo em Brumadinho (jan./2019). Merece
destaque o fato de que nos dois casos, a empresa de mineração VALE
S.A. (antiga Vale do Rio Doce) esteve diretamente envolvida, seja por
meio de uma joint venture com a BHP materializada na empresa SA-
MARCO (no caso de Mariana), seja diretamente, no caso de Bruma-
dinho. Os impactos sociais, ambientais, econômicos, políticos e até
existenciais, com a morte e a destruição do modo de vida de muitas
famílias, foram de tal extensão que a recuperação ambiental levará
muitos anos para se completar, se isso vier a ocorrer, e seus efeitos
sociais se farão sentir por algumas décadas ainda.
Não podemos deixar de destacar também os inúmeros conflitos
envolvendo a demarcação de terras indígenas (que o atual Governo
Brasileiro se recusa a dar continuidade); à sua invasão frequente em
várias partes do país para a extração de ouro pelo garimpo ilegal com
enormes impactos ambientais e na saúde indígena; às pressões sofri-
das pelas reservas indígenas pela expansão da agricultura da soja e da
pecuária; e os conflitos relacionados aos grandes projetos de constru-
ção de hidrelétricas e passagem das linhas de transmissão de energia,
como no caso de Belo Monte, Santo Antônio e Jirau, todas na região
Amazônica, para citar algumas. Nesta mesma perspectiva, cabe tam-
bém menção aos conflitos, presentes em todas as regiões do país,
pela demarcação de terras quilombolas, sempre disputadas por fazen-
deiros e grileiros, que ameaçam a sobrevivência e a cultura de uma

13
importante parcela da população negra descendente de escravos, e
que encontra nestas terras, ocupadas de forma ancestral, sua fonte
básica de sobrevivência.
Mas, talvez, a expressão mais evidente e por demais conhecida
da dinâmica destrutiva e predatória no uso dos recursos naturais
brasileiros, encontra-se no processo de destruição de parcelas im-
portantes de alguns dos principais biomas do país, com destaque,
negativo, para a situação da Amazônia, do Pantanal Matogrossense
e do Cerrado.
A área desmatada da Amazônia Legal, segundo o INPE (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais), entre 2004 e 2020, foi equivalente
a 172 mil quilômetros quadrados, área equivalente à soma das áreas
dos estados do Rio Grande do Norte, do Espírito Santo, do Rio de Ja-
neiro, de Sergipe e do Distrito Federal, isso em apenas 17 anos.

Como se nota no gráfico, o pico alcançado em 2004, o segundo


maior da série, decaiu bastante ao longo dos anos, voltando a crescer
entre os anos de 2016-2020, nos Governos Temer e Bolsonaro, nos
quais houve um notório processo de enfraquecimento da capacidade
de monitoramento e fiscalização do desmatamento, objeto de críticas
acirradas tanto no Brasil como na comunidade internacional, a ponto

14
de ameaçar o reconhecimento do acordo de livre comércio firmado
entre a União Europeia e o MERCOSUL.
Por sua vez, o Pantanal, como amplamente noticiado em 2020, foi
palco de um dos maiores incêndios das últimas décadas, incêndios, ao
que tudo indica, de origem criminosa, pois iniciados em uma fazenda
de criação de gado na região, atingindo, entre julho e agosto/2020,
um total de 1.654.000 hectares, com profundo impacto na fauna e na
flora do bioma, causando a morte de milhares de animais e a destrui-
ção de grande parte da sua cobertura vegetal. Os incêndios também
provocaram a migração de populações ribeirinhas e de indígenas de
reservas existentes no Pantanal, incapazes de continuar a extrair dos
seus recursos naturais os elementos para sua sobrevivência. A fumaça
dos incêndios, por sua vez, levada pelo vento em diferentes direções,
teve impacto na saúde da população de cidades tão distantes quanto
Cuiabá e São Paulo, provocando problemas respiratórios importantes
em seus habitantes. A fumaça também provocou o aumento da tem-
peratura em algumas cidades da região. O método de colocar fogo na
mata é, como se sabe, um dos mais antigos meios utilizados por fa-
zendeiros, para limpar a terra e também para “forçar” a expansão da
fronteira agrícola em favor da agropecuária, e tem sido comumente
usado na Amazônia, no Pantanal e também no Cerrado brasileiros.
Situação semelhante tem sido observada no Cerrado, particular-
mente na região hoje conhecida como MATOPIBA, referência a uma
área que engloba parte do território dos estados do Maranhão, do
Tocantins, do Piauí e da Bahia, na qual se dá, hoje, uma das maiores
expansões da fronteira agrícola, voltada para a exportação de produ-
tos agropecuários, com grande impacto no meio ambiente e nas con-
dições de vida das populações tradicionais habitantes desta região. O
processo de ocupação do território do MATOPIBA encontra-se hoje
tão acelerado, que o Cerrado é considerado por muitos como o bio-
ma atualmente mais ameaçado de destruição, embora pouco men-
cionado nos principais meios de comunicação do país. É também um

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dos biomas menos protegidos, já que somente 0,85% do seu territó-
rio encontram-se sob o manto protetor de unidades de conservação.
Por outro lado, o comprometimento do Cerrado tem um pro-
fundo impacto sobre o regime hidrológico do Brasil, pois nele en-
contram-se as nascentes de importantes rios do país, que alimentam
grandes bacias hidrográficas, que, por sua vez, são responsáveis fun-
damentais do regime de chuvas do país. Basta lembrar que estão no
Cerrado os três principais aquíferos do Brasil – o Aquífero Guarani,
o Aquífero Bambuí e o Aquífero Urucuia -, importantíssimos como
fonte de recursos hídricos de grandes regiões do país, além de alimen-
tar bacias hidrográficas internacionais, como é o caso da bacia do Rio
Paraná, com efeitos no Paraguai, na Argentina e no Uruguai.
Estes poucos exemplos já seriam suficientes para mostrar o caráter
profundamente insustentável do modelo de desenvolvimento adota-
do no Brasil há algumas décadas, com graves repercussões ambien-
tais, sociais e econômicas para a sociedade brasileira.
Esta Apresentação, no entanto, não estaria completa se não fizés-
semos menção aqui, ainda que brevemente, ao processo sistemático,
permanente e amplo de desconstrução de todo o aparato institucio-
nal criado ao longo das últimas décadas por diferentes governos brasi-
leiros, de diferentes matizes políticos, para proteger o meio ambiente,
e que vem sendo solapado de forma explícita pelo atual governo bra-
sileiro, por meio do seu Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles,
representante do ideário político de extrema direita do Presidente Jair
Bolsonaro.
As medidas foram muitas e continuam a prosperar, fazendo com
que os agentes públicos, formados e treinados há décadas para a fis-
calização da aplicação da legislação ambiental e para a proteção do
meio ambiente, encontrem-se de mãos amarradas, sem condições
e recursos para o enfrentamento adequado às constantes ameaças,
em diferentes frentes, que pairam sobre o meio ambiente do país.
Os órgãos responsáveis por cuidar do meio ambiente, das questões

16
indígenas e das questões agrárias têm sofrido um constante proces-
so de desmonte, cerceamentos diversos e limitação crescente dos re-
cursos destinados às operações de combate às agressões ao meio am-
biente, resultando, por exemplo, no aumento do desmatamento e das
queimadas, como mostram os dados do INPE, aliás, um dos órgãos
que tem estado sob constante pressão por parte do Governo Bolsona-
ro por publicar as informações sob o desmatamento e as queimadas
na Amazônia.
Outro órgão muito afetado pelo processo mencionado é o IBA-
MA, o principal responsável pela fiscalização das ações dos diversos
agentes sociais sobre o meio ambiente. Como mostra o recente Rela-
tório publicado pelo “Observatório do Clima”, ironicamente intitula-
do “Passando a boiada”, em homenagem ao Ministro Ricardo Salles,
os recursos destinados ao Ministério do Meio Ambiente é o menor
em 21 anos, o que demonstra claramente a intenção de diminuir as
ações de proteção ambiental e combate à destruição da natureza, res-
ponsabilidade daquele órgão.
Mas não é somente este setor que vai ser afetado com as restrições
orçamentárias. A FUNAI, o INCRA, o ICMBIO, o CONAMA, órgãos
que são responsáveis por questões tão críticas e sensíveis como a de-
marcação de terras e o cuidado dos indígenas, a reforma agrária, a
gestão das unidades de conservação existentes no país (334), a formu-
lação da legislação ambiental e o assessoramento para a formulação
da política ambiental do país, também sofreram cortes orçamentários
e diluição da sua atuação, antes tão destacada na vida política, social e
ambiental brasileira.
A militarização da Amazônia (através da criação do Conselho Na-
cional da Amazônia Legal, presidido pelo Vice-Presidente Hamilton
Mourão); a submissão do IBAMA ao Exército, que passa a coordenar
todas as ações de fiscalização do órgão; o aparelhamento dos órgãos
colegiados vinculados à questão ambiental (como o Conselho Ges-
tor do Fundo Clima) ou a sua extinção (como no caso do Conselho

17
Orientador do Fundo Amazônia); o relaxamento na fiscalização da
extração e venda de madeira ilegal (que já resultou em críticas inter-
nacionais); a intimidação e perseguição a servidores dos órgãos de
proteção ambiental, entre muitas outras ações, reforçam a análise de
que a vertente do “desenvolvimento” que se busca estimular hoje no
Brasil, a partir das ações do Governo Bolsonaro, têm um caráter acen-
tuadamente insustentável, que resultarão em graves danos ambien-
tais e sociais de difícil superação no futuro.
Neste sentido, estamos certos de que o leitor deste livro saberá
apreciar o esforço analítico presente nos artigos que o compõem, fru-
to do trabalho de pesquisa dos seus autores na busca por retratar o
avanço da destruição do meio ambiente no Brasil, mas também por
encontrar soluções que nos permitam superar este momento históri-
co tão obscuro e angustiante para todos os que lutam pela preserva-
ção ambiental.
Boa leitura!

18
A DISPUTA DO BOTO COR-DE-ROSA E DO
BOTO TUCUXI NA FESTA DO ÇAIRÉ 2019
ENQUANTO ESTRATÉGIA DE PROTESTO E
DE RESISTÊNCIA NA ÁREA DE PROTEÇÃO
AMBIENTAL DE ALTER DO CHÃO
Wilson Madeira Filho

INTRODUÇÃO
Quando cheguei em Alter no Chão no hotel reservado para a reu-
nião dos jurados com as Comissões representativas dos dois blocos
do festival, fui recebido pelo Secretário Municipal de Cultura de San-
tarém, Luís Alberto Figueira. Estivera até a véspera participando em
oficinas em quilombos ministradas pelo Marcelino Conti de Souza,
diretor da Unidade Avançada José Veríssimo da Universidade Fede-
ral Fluminense (UAJV-UFF), que também é meu orientando no dou-
torado no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da
Universidade Federal Fluminense (PPGSD-UFF) e eu estivera hóspe-
de na casa da Lilian Braga, promotora estadual do Ministério Público
e minha orientanda de mestrado no PPGSD-UFF. Poucos dias antes,
havíamos ido, eu, Conti e Lilian observar à beira do rio Tapajós, es-
tarrecidos, a longa faixa de incêndio criminoso na mata, resultado do
“dia do fogo”, promovido pelo latifúndio local. Havia o temor de que
o incêndio, próximo à Área de Proteção Ambiental (APA) de Alter do
Chão prejudicasse o Çairé.
A celebração do Çairé em Alter do Chão, distrito do Município de
Santarém, em especial com a disputa entre os blocos do Boto Cor-de-
-Rosa e do Boto Tucuxi, tornou-se um dos eventos mais populares e

19
midiáticos da região amazônica. No ano de 2019, em face dos incên-
dios na floresta, que atingiram proporções alarmantes, provocando
reação internacional, e atingindo a APA de Alter do Chão três dias
antes do início da grande festa, o desfile dos blocos ganhou forte to-
nalidade enquanto discurso estilizado de protesto e de resistência das
comunidades tradicionais e das populações locais diante do ecocídio.
O presente trabalho é uma etnografia, no âmbito de uma pesqui-
sa-participativa onde experenciei atuar como jurado nesse festival, o
mais antigo da Amazônia, e tem como proposta detalhar a disputa
dos botos e a apresentação de seus enredos tendo como pano-de-fun-
do a desconstrução institucional da política ambiental brasileira.

A FESTA DO ÇAIRÉ
A Festa do Çairé, também grafada como Sairé, implica no sincretismo
entre duas comemorações com danças, a primeira de origem tapuia e
a segunda enquanto resultado da evangelização jesuíta através de um
andor composto por três semicírculos de madeira coroados por uma
cruz e carregado por mulheres do local, ao som de música. São rei-
vindicados quase 400 anos dessa história pelos próprios narradores na
disputa dos botos, afirmando tratar-se da festa mais antiga da região
amazônica e do próprio país.
De fato, todo enredo e coreografia da festa do Çairé é uma ma-
nifestação que mistura elementos religiosos e profanos, começando
com o hasteamento de dois mastros enfeitados com frutas regionais,
no qual homens e mulheres o disputam separadamente, seguido de
ritual religioso e danças folclóricas desempenhadas pelos moradores
do balneário. No último dia do evento, sempre numa segunda-feira,
ocorre a varrição da festa, a derrubada dos mastros e o almoço de
confraternização.
A Festa teria ocorrido em diversas localidades na Amazônia e pas-
sado por diversas reconfigurações no correr dos anos, até centrar-se

20
em Alter do Chão, onde entre 1943 e 1973 teria sido proibida pela
Igreja católica em razão de seu apelo profano (CARVALHO: 2016).
Novas reconfigurações irão conservar muito pouco da sua origina-
lidade, ganhando destaque a disputa existente entre o Boto Tucuxi e
seu rival, o Boto cor-de-rosa.
O folclore dos botos Tucuxi e Cor-de-Rosa gira em torno da sedu-
ção, morte e ressurreição destes personagens. Entre lendas regionais
e mitos indígenas, avultam a Cabocla Borari, o Boto Encantador que
se transforma em Homem Sedutor, a Rainha do Lago Verde, a Rainha
do Çairé, o Tuxaua, o Curandeiro e os pescadores. O enredo ressalta a
natureza, em especial o Lago Verde, palco da trama. E quando o boto é
morto por ordem do Tuxaua, pai da Cunhantã-iborari, que foi engravi-
dada pelo golfinho amazônico, recai sobre ele a fúria dos maus espíritos
da região. Por isso, a pedido do próprio Tuxaua, vem o Pajé/Curandei-
ro e ressuscita o boto. É a apoteose do folclore durante o festival.
Boyer (2018), a partir do mapeamento das categorias discursivas
mobilizadas pelos moradores de Alter do Chão para descrever a fes-
ta, destaca a oposição entre o rito religioso e o boto profano e busca
mostrar que esse antagonismo tem sido relativizado. Nesse sentido,
a separação entre a festa religiosa e a festa profana, em especial, a
disputa entre os botos, constante desde 1999, não tem sido apreciada,
pois poderia vir a implicar em enfraquecer a participação no Çairé.
Na mesma linha, Barbosa (2017) ressalta a mudança de sentido de
vida e das transformações sofridas na comunidade com o consumo
cultural do Çairé, investiga a midiatização da festa e comenta os lar-
gos passos de sua etnografia acompanhando a transformação da pe-
quena vila:

Em setembro, dois dias antes da festa começar, os barracões das Agre-


miações dos dois botos rivais foram visitados. Na praça do Çairé foi
possível acompanhar as montagens de barracas e toda a decoração da
área. Outros aspectos do ritual de montagem da festa também foram

21
observados como os preparativos de palco e iluminação no çairódromo;
os comerciantes se apropriando dos espaços e finalizando as montagens
das barraquinhas de vendas de comidas, bebidas, artesanatos e produtos
industrializados; a movimentação na bilheteria com a venda de ingressos
para a festa da Disputa dos Botos, a manufatura de roupas nos ateliês de
costura da cidade; os ensaios dos grupos de dança; a confecção das rou-
pas específicas dos dançarinos, o acabamento dos adereços; a colocação
de placas informativas e publicitárias na vila. Também foi observada a
chegada de navios e aviões, a movimentação nos portos da vila e aero-
porto de Santarém, o volume de turistas que começava a chegar aos ho-
téis e pousadas de Alter do Chão (BARBOSA, 2017, p. 11).

O Çairé possui uma hierarquia festiva que ocupa os quatro dias do


festival, dos quais a disputa dos botos tornou-se o evento auge. Nesse
sentido, um outro conjunto de personagens se destaca. A festa abre
enquanto procissão, encimada pelo Capitão empunhando uma espa-
da exercendo o papel de comando da parte religiosa nas procissões
nas bênçãos dos mastros. Em seguida, vêm dois Alferes, responsáveis
pela condução das bandeiras do juiz e da juíza nos ritos dos barracões
e nas procissões. A Saraipora carrega o símbolo do Çairé e distribui
as bênçãos do Espírito Santo. As duas Moças-da-fita, escolhidas entra
as jovens meninas locais, vestidas de branco, representam a pureza.
A Troneira é a zeladora da Coroa e do símbolo do Çairé, cuidando
de conduzi-los e guarda-los, zela também pelas varinhas dos mordo-
mos e mordomas. O Juiz e a Juíza são personagens centrais nas festas
de santo no Baixo Amazonas; em algumas festas, aquele que pega a
bandeira após a derrubada do mastro assume o papel de juiz ou juíza1

1. Em geral são dois mastros enfeitados com frutas, um para ser cortado pelos homens, ou-
tro pelas mulheres. Todos os convidados na festa podem se habilitar a tentar cortar o mastro,
só podendo utilizar uma vez o machado. Em geral, quando, após vários cortes, o mastro de
fato ameaça a cair, apenas as lideranças locais continuam a tarefa. Já tive a oportunidade de
ser convidado ao corte do mastro em várias festas na Amazônia, em especial nos quilombos
do Erepecuru.

22
por um ano. O Procurador e a Procuradeira são os responsáveis pela
ornamentação da festa. As Rezadeiras entoam as rezas e ladainhas du-
rante as celebrações. Os Mordomos e Mordomas são nove homens
e nove mulheres responsáveis pela ornamentação do barracão e aju-
dam na preparação dos comes e bebes. Os Foliões são os que execu-
tam as folias entoadas para os santos. E, por fim, o Grupo Espanta
Cão2 são os músicos de Alter do Chão, todos eles foliões da festa do
Çairé; o nome do grupo alude à cruz formada pelo arco de madeira
ao friccionar as cordas da rabeca, suspostamente responsável por afas-
tar os maus espíritos (cfe. CARVALHO, 2016, p.72-85).

A APA ALTER DO CHÂO


O Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), criado
pela Lei 9.985/2000, enformou a principal política conservacionista
do país, estabelecendo grupos e categorias de unidades de conserva-
ção. Essa patrimonialização estatal sobre a natureza implicou em tra-
duzir de forma complexa o modo de vida na região, transformando
a tutela ambiental em dever de todos, mas também cerceando usos
e implicando em releituras identitárias a acionar tradicionalidades
emancipatórias em consonância com a ambientalização dos movi-
mentos sociais.
Nesse sentido, Surgik (2006) já investigava o que classificou como
baixa aderência em Alter do Chão à instalação da unidade de con-
servação da categoria Área de Proteção Ambiental (APA) em 2003 e
a pouca compreensão prática dos moradores locais sobre esse mo-
delo de colonização territorial. A questão ganha ainda mais comple-
xidade se considerarmos que grande parte da APA é sobreposta ao

2. O Grupo Espanta Cão já passou por várias gerações e renovações. Na Folia do Çairé se
apresenta com 17 integrantes, mas em eventos no país, onde têm realizado shows, se apre-
senta com nove componentes, sempre sob a coordenação de Célio Carlos Camargo, que é
também, há 16 anos, o Capitão do Çairé (VIEIRA, Silvia, 2017).

23
Assentamento Agroextrativista do Eixo Forte, que possui instrumen-
tos de gestão que preveem estratégias de conservação ambiental, e
que parte da APA abrange também as áreas que estão sendo reivindi-
cadas pelo Movimento Indígena Borari, que tem entre seus objetivos
a conservação ambiental do seu território. O Plano de Uso da APA
foi construído entre agosto de 2011 e novembro de 2012 e passou a
estatuir em seu artigo 28 que “As atividades culturais devem ser in-
centivadas e integradas à educação ambiental, realizadas em espaços
adequados, que não prejudiquem a conservação do meio ambiente,
sob anuência do Conselho Gestor da APA”.
Toda essa política conservacionista se viu flagrantemente amea-
çada com os incêndios na região. Para retomar os principais embates
sobre o tema, temos de retornar a alguns dos muitos eventos que o
antecederam, todos caracterizados pela mudança paradigmática re-
presentada pela posse, em 1º de janeiro de 2019, de Jair Bolsonaro
como Presidente da República: 1) a recepção em Alter do Chão ao
Ministro da Educação, Weintraub; 2) a polêmica do Presidente da
República com Ricardo Galvão, ex-diretor do Instituto Nacional de
Pesquisas Espaciais (INPE) e, em seguida, com o Presidente francês,
Emmanuel Macron; 3) o “dia do fogo”; e 4) a prisão de “militantes
ambientalistas”, supostamente ligados ao Greenpeace.
1) Em 22 de julho de 2019, passando férias com a família, o Minis-
tro da Educação, Abraham Weintraub, foi hostilizado por manifestan-
tes que gritavam por “Lula livre” e teciam críticas a seu governo, cha-
mando-o de Sr. Sinistro. Vídeos do acontecimento foram divulgados
na íntegra nas redes sociais e mostram o Ministro discutindo com um
indígena, que se queixava por não ter sido recebido no ministério —
o que foi rebatido por Weintraub. “Não é porque você está com um
cocar que você pensa que é mais brasileiro que eu, seu safado”, disse3.

3. Revista Veja. De férias no Pará, Weintraub bate boca com manifestantes; assista. In: ht-
tps://veja.abril.com.br/politica/de-ferias-no-para-weintraub-bate-boca-com-manifestantes-
-assista/

24
2) Em 2 de agosto de 2019, Ricardo Galvão foi exonerado do cargo de
diretor do INPE, substituído pelo coronel reformado da aeronáutica
Darcton Policarpo Damião, após série de críticas por parte do Presi-
dente Bolsonaro e de outros representantes do governo, em especial
o Ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, depois da divulgação
de um relatório que revelava um aumento de 88% nos índices de
desmatamento da Amazônia no mês de junho de 2019 em relação
ao mesmo período do ano passado4. No programa Painel, da Glo-
bo News, de 11 de agosto de 2019, Galvão criticou fortemente o
Ministro Salles: “Nós usamos as publicações científicas, não a ba-
lela que vocês usam, coisa de Twitter”. Os dados do INPE vinham
mostrando que os alertas do desmatamento dispararam em julho,
atingindo 2.254,9 km², um número muito acima do registrado no
mesmo período em 2018, quando o índice ficara em 596,6 km². As
informações do DETER (Sistema de Detecção do Desmatamento
na Amazônia Legal em Tempo Real) também haviam apontado au-
mento de 88% do desmatamento na Amazônia em junho em rela-
ção ao mesmo mês do ano anterior e de 40% nos 12 meses ante-
riores 5. A polêmica ganhou notoriedade internacional e ameaçou
tornar-se um conflito diplomático quando o Presidente francês,
Emmanuel Macron, postou os incêndios criminosos na Amazônia
em seu twitter (@EmmanuelMacron) e convocou reunião emer-
gencial do G7.

Our house is burning. Literally. The Amazon rain forest - the lungs whi-
ch produces 20% of our planet’s oxygen - is on fire. It is an international

4. Entenda a polêmica envolvendo Bolsonaro e o Inpe. In: https://www.terra.com.br/


noticias/brasil/entenda-a-polemica-envolvendo-bolsonaro-e-o-inpe,f7e27aa4a276cd32e-
59978704d2794194z00o4g1.html
5. Informações mais detalhadas sobre os incêndios da Amazônia podem ser encontradas em
Chaves e Madeira Filho (2019).

25
crisis. Members of the G7 Summit, let’s discuss this emergency first or-
der in two days! #ActForTheAmazon

Logo em seguida, em seu já recorrente estilo cômico-tosco, Bolso-


naro fez alusões machistas à primeira-dama francesa. Em novembro
de 2019, a Revista Exame classificou Ricardo Salles como o Ministro
da “destruição ambiental”, afirmando que “O aumento de quase 30%
no desmatamento é o resultado contratado pela política ambiental do
governo” 6. 3) Em ação orquestrada, em 10 de agosto de 2019, ocor-
reu o “Dia do Fogo”, quando produtores rurais da região Norte do
país teriam iniciado um movimento conjunto para incendiar áreas
da maior floresta tropical do mundo. Dados de satélite colhidos pelo
INPE e compilados pela Secretaria Estadual de Meio Ambiente do
Pará mostram que, a partir de 10 de agosto, houve um aumento sig-
nificativo nas queimadas em áreas de floresta. Em reportagem à BBC
News, o procurador Luís de Camões, do Ministério Público Federal

6. FONSECA, Joel Pinheiro da. Ricardo Salles, o ministro da destruição ambiental. In: ht-
tps://exame.abril.com.br/blog/joel-pinheiro-da-fonseca/ricardo-salles-o-ministro-da-des-
truicao-ambiental/

26
em Santarém, comenta que a impunidade para crimes de grilagem e
desmatamento estava a servir de incentivo para que novos episódios
como o “Dia do Fogo” continuassem a ocorrer. “Hoje, se você furtar
um celular, talvez fique mais tempo preso do que se botar fogo em
floresta”, disse 7. 4) Em 26 de novembro de 2019 (em data posterior,
portanto, ao Çairé 2019, ocorrido entre 19 e 23 de setembro), quatro
integrantes da Brigada de Incêndio de Alter do Chão foram presos
por suspeita de incêndio criminoso na APA. A ação resultou de uma
operação da Polícia Civil chamada “Fogo do Sairé”, que visava, apa-
rentemente, desarticular o grupo que teria ateado fogo no local em
setembro, às vésperas do festival 8. A situação tornou-se ainda mais po-
lêmica quando o presidente Bolsonaro culpou a WWF (World Wide
Fund for Nature) e o ator Leonardo DiCaprio como, respectivamente,
mandantes e patrocinador dos incêndios 9. A organização não-gover-
namental, o ator e os principais veículos de imprensa internacionais
questionaram a veracidade das informações, que não foram calcadas
em nenhuma prova.
Vale dizer, o cenário natural onde ocorreu o Çairé 2019 e onde se
situa a APA Alter do Chão é local que reúne um acúmulo substanti-
vo de histórias e posicionamentos. Nesse mesmo sentido, já indicava
Rente (2006, p. 74) – em análise distinta da realizada por Surgik (2006)
-, que os debates para o surgimento da unidade de conservação não
se deram totalmente “de cima para baixo”, mas ganharam concretu-
de através da ação ativa dos grupos locais.

7. MACHADO, Leandro. O que se sabe sobre o ‘Dia do Fogo’, momento-chave das queima-
das na Amazônia. In: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037
8. VIEIRA, Silvia. Polícia prende quatro integrantes de Brigada suspeitos de incêndio
criminoso na APA Alter do Chão In: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noti-
cia/2019/11/26/policia-prende-quatro-integrantes-de-brigada-suspeitos-de-incendio-crimi-
noso-na-apa-alter-do-chao.ghtml
9. G1. GLOBO. Bolsonaro acusa Leonardo DiCaprio e WWF de financiarem queimadas na
Amazônia. In: https://g1.globo.com/politica/noticia/2019/11/29/bolsonaro-acusa-leonar-
do-dicaprio-e-wwf-de-financiarem-queimadas-na-amazonia.ghtml

27
A DISPUTA DOS BOTOS EM 2019
Consagrada como a principal atração da festa do Çairé, que possui
abertura em uma quinta-feira e encerramento em uma segunda-feira,
a apresentação dos blocos dos botos no Lago dos Botos, mais conhe-
cido como Sairódromo, na passagem do sábado para o domingo, teve
início na noite de 20 de setembro de 2019 em hotel próximo ao even-
to, onde a Secretaria de Cultura, às 18 horas, apresentou aos represen-
tantes de ambos os blocos os quatro jurados da apresentação daquele
ano, cujos nomes, até então, haviam permanecido em sigilo. Foram
jurados eu, Wilson Madeira Filho, diretor da Faculdade de Direito da
UFF, autor de peças teatrais e personagem de Ariano Suassuna10, Pa-
trícia de Jorge, jornalista, Marcelo Sampaio, estudioso do folclore e do
carnaval, e Manoel Carlos de Jesus Maria, presidente, juiz de direito.
O presidente do júri, sem direito a voto, seria o responsável pela
regularidade do processo e pela apuração dos resultados na segunda-
-feira, enquanto os demais três jurados seriam responsáveis por atribuir
notas a dezesseis itens, conforme Art 6º do Regulamento daquele XXI
Festival Folclórico dos Botos de Alter do Chão, a saber: 1) Apresentação
(comunicação e oratória); 2) Cantador (timbre e afinação); 3) Rainha
do Çairé (evolução, indumentária, simpatia e cênica); 4) Cabocla Borari
(evolução, indumentária, simpatia e cênica); 5) Curandeiro (evolução,
fantasia e cênica); 6) Rainha do Artesanato (evolução, indumentária,
simpatia e cênica); 7) Boto Homem Encantador (interpretação, dança e
cênica); 8) Boto Animal Evolução (evolução e originalidade); 9) Rainha
do Lago Verde (evolução, indumentária, simpatia e cênica); 10) Carim-
bó (coreografia e indumentária); 11) Organização do conjunto folcló-
rico (disposição e organização dos dançarinos no lago); 12) Alegorias

10. Esse fato, citado pela apresentação em autofalante para o estádio lotado, certamente
deve ter sido o mote para o honroso convite para que eu atuasse como jurado, eis que, com o
lançamento póstumo, em final de 2017, de O romance de Dom Pantero no palco dos pecadores, de
Ariano Suassuna, o grande mestre fizera-me a honra de lembrar nossa amizade e convívio,
convertendo-me em personagem ao final do segundo volume.

28
(evolução, estética e acabamento); 13) Letra e Música (harmonia, fide-
lidade ao tema); 14) Ritual (evolução e cênica); 15) Torcida (animação e
adereços); 16) Sedução (interpretação, dança e cênica).
Em seguida, um representante de cada bloco apresentou, em li-
nhas gerais, o enredo daquele ano, acompanhado de representantes
da presidência do bloco e de seu corpo jurídico. O tema da disputa
era Fé que emociona, magia que encanta. A representante indígena do
boto Cor-de-Rosa apresentou o enredo Alter do Chão, berço da vida. Já
o diretor de arte do Boto Tucuxi falou sobre a Resistência Borari.
O mesmo protocolo de afastamento de jurados se manteve em se-
guida. A ideia, segundo o Secretário de Cultura, era que cada um de
nós três não sofresse influências de quem quer que fosse e de prefe-
rência nem conversássemos senão o mínimo entre nós, motivo pelo
qual até duas horas antes da disputa ninguém, exceto ele mesmo, sabia
quem eram os componentes jurados. Cada um dos jurados, portanto,
foi jantar separadamente, e tive a oportunidade de o fazer em compa-
nhia de Daniel Gonzaga, cantor, compositor e instrumentalista, filho
do mitológico Gonzaguinha e neto do fenomenal Luiz Gonzaga, Rei
do Baião, que me falou sobre seu interessante projeto, a Biblioteca de
Ritmos, motivo que o trouxera a Alter do Chão para pesquisar o Çairé.

O BOTO COR-DE-ROSA
Chegando ao Lago dos Botos fui de pronto levado à cabine que iria ocu-
par, separada por biombos dos demais jurados. Ao lado ficavam as cen-
trais operadoras de televisão, transmitindo o festival ao vivo para toda
a Amazônia. Cada jurado tinha um auxiliar para lhe servir refrescos e
lanches. A arena era larga e as arquibancadas estavam lotadas. A praça
do lado de fora, cheia de barracas, também abrigava uma multidão. Não
era permitido o uso de celular, motivo pelo qual algumas das fotos que
seguirão foram cedidas pelo Marcelino Conti, que assistiu o festival de
um camarote, junto com a Lilian Braga e a filha desta, Maria Clara.

29
O enredo do Boto Cor-de-Rosa centrou-se em Alter do Chão en-
quanto o maior aquífero de agua-doce do mundo, o Aquífero Grande
Amazônia, com 162.520 km2, ameaçado pela poluição, pela ausência
de inclusão social dos povos tradicionais (seringueiros, balateiros, cai-
çaras, ribeirinhos, quilombolas, jangadeiros, pescadores, entre outros)
e pela luta por sustentabilidade. Nesse sentido, a simbologia da Mãe
Natureza encontrava conexão na cunhatã grávida, a verter o líquido
amniótica que dá origem à vida.
A letra de Alter do Chão, o berço da vida, composta por Junior Coe-
lho, nos fala:

Amazônia, berço da vida dos meus ancestrais


Alter do Chão, tuas águas sagradas de amor,
Fez morada em teu coração

Seiva da vida
Que rega o sustento
Vem do ventre em gotas de amor

A floresta encantada
Que brota das águas
Traz a beleza divina da flor

A catraia que singra teu rio


Do nascer ao pôr-do-sol
Teu caboclo enfrenta desafios
Mas tua fé vem das cores do arrebol
È lindo, é exuberante
O voo da graça rasante
Preservar é o caminho
Do Aquífero Manacial Sagrado da Vida

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Vem preservar, se encantar,
É Çairé, é noite de luar
Vem preservar, se encantar,
Alter do Chão, o berço da Vida (bis)

Toda a comunidade do bloco do Boto Cor-de-Rosa entrou decidi-


da e de maneira empolgante. O desfile teve início com a chegada das
alegorias a partir de uma maquete gigante mostrando Araci, a Deusa
lua, Mãe da Floresta, cercada de casinhas ribeirinhas. O apresentador,
Ornelo Reis, que já chamara hinos clássicos no esquenta (cada bloco
pode se aquecer e treinar a torcida por meia hora antes das duas horas
de desfile), empolgou com a narrativa, trajado de forma a personifi-
car Rupave, o pai dos povos11, enquanto o Cantador, Anderson Luiz,
dominando as variações do estilo e homenageava em seus trajes o
cantador do Espanta Cão. A torcida estava repleta e buscava acompa-
nhar as músicas e os estímulos do Apresentador.

Figura 1. Torcida do Boto Cor-de-Rosa

Foto de Marcelino Conti de Souza

11. Comenta Ana Paula Araújo: “Os primeiros humanos criados por Tupã teriam sido Rupave
(o pai dos povos) e Sypave (a mãe dos povos) e estes teriam dado origem a um grande número de
filhas e a três filhos, chamados Tumé Arandú (o sábio), Marangatu (o líder generoso) e Japeusá
(mentiroso), este último era ladrão e trapaceiro e teria se suicidado, porém foi ressuscitado como
um caranguejo, e deste então todos os caranguejos foram amaldiçoados para andar para trás
como Japeusá”. In: https://www.infoescola.com/mitologia/mitologia-tupi-guarani/

31
A primeira grande performance deu-se com a entrada da Rainha
do Cairé, interpretada por Maria Eulália, com um grande balé traça-
do a partir de fitas que confluem na elegância de sua veste, narrando
a trajetória da fé ribeirinha em Nossa Senhora da Saúde, passando
pelo respeito à Saraipora e chegando à festa profana do Quebra Ma-
caxeira.

Figura 2. Rainha do Çairé do Boto Cor-de-Rosa

Imagem em vídeo de Marcos Oliveira. Disponível em https://


www.youtube.com/watch?v=3sye8EgJV_4

Em seguida, e um dos momentos mais entusiasmantes de todo


o evento, na minha modesta opinião, deu-se a dança do carimbó,
reunindo centenas de dançarinos, em bela e harmoniosa coreogra-
fia. O carimbó, patrimônio imaterial, tem origem indígena e con-
tou, em seguida, com influência jesuíta e dos negros escravizados;
é dançado, em geral, com os pés descalços e as mulheres utilizam
vestidos bem largados circulados com as mãos em permanentes
volteios, enquanto os homens fazem a marcação do ritmo em rou-
pas coloridas.

32
Figura 3. Dança do carimbo do Boto Cor-de-Rosa

Foto de Marcelino Conti de Souza

A entrada da Cabocla Borari, interpretada por Nayara Pinhei-


ro, seguida da entrada do Boto Homem Encantador, interpretado
por Alan Almeida, e convergindo para a cena da Sedução é, sem
sombra de dúvidas, o auge do espetáculo, e seu momento mais
esperado. Cada um, a seu turno, realizou dança em balé conjun-
to com os dançarinos, permeada por momentos solo, esbanjando
sensualidade. A cena da sedução, quando ambos se encontram é
altamente carregada de sensualidade, ele, de termo branco e cha-
péu com brilho, ela em vestido amarelo curto com barra preta e
rendas na parte da frente. Ela lava roupa à beira do rio e ele surge
com um violão. Logo ele lhe atrai a atenção e começa a ensiná-la
a tocar o instrumento. É o bastante para iniciar uma dança de aca-
salamento e é absolutamente surpreendente que um teatro erótico
paralise multidões. Mais que convergir o sagrado e o profano, mi-
tos amazônicos e carnaval midiático, essa sensualidade aborda uma
característica cultural do povo brasileiro que raramente encontra
momentos de tão vívida expressão.
Em seguida, o momento anterior possui sua versão teen, com tons
mesmo cômicos: trata-se da entrada do Boto Animal, interpretado
por Samuel Eduardo, vestido de fantasia de boto, encenando um ani-
mal brincalhão que enlouquece os pescadores, rasgando-lhes as redes,

33
mas que é adorado pelas crianças, como a Menina do Boto, interpre-
tada por Maria Eduarda, que com ele brinca de forma inocente.

Figura 4. A Menina do Boto e o Boto Animal

Foto: Geovane Brito/G1

A entrada da Rainha do Lago Verde reacende a festa em ritmos e


danças. Roberta Freitas surge do ventre de Yara, a Mãe D’água, re-
presentada num grande carro alegórico. A Rainha protege o Lago
Encantado confundindo os predadores dos rios. A beleza tem sequên-
cia com a cena seguinte, onde surge, trazida por um pássaro gigante,
Jéssica Ramalho, a Rainha do Artesanto, com um vestido-montagem
deslumbrante, recheado de obras aludindo tanto a riqueza artesanal
advinda do trabalho com o barro como a arte dos trançados de palha.
O conjunto final se dá com o Ritual, onde nações indígenas en-
toam danças e cantos juntando-se aos caboclos e a ousadia cênica
aproxima-se da arte circense, com muitos saltos e malabarismos. Nes-
se momento avultam as Alegorias e a organização do Conjunto Fol-
clórico. O clímax se dá com a entrada do Curandeiro, Jardson Farias,
a quem cabe ressuscitar a vida, invocando, com ervas e danças, os
espíritos ancestrais.

34
O BOTO TUCUXI
O enredo do Boto Tucuxi apresentou o drama indígena diante das
queimadas das florestas e à poluição mercurial no rio Tapajós, apre-
sentando a própria festa do Çairé como o maior símbolo de resistên-
cia do povo Borari. Outra resistência estaria no Carimbó, que une in-
dígenas, quilombolas e caboclos.
O autor e intérprete da música foi Edilson Santana, cuja letra de
Somos resistência conclama:

Respeito ao povo da floresta


É respeitar toda a humanidade
Respeito aos animais e à flora
Nos faz acreditar que este planeta
Ainda tem salvação

Somos os povos da Amazônia


Clamando pelo direito de viver
Somos a resistência
Enquanto houver amazônida
Haverá o brado por preservação

Viva a Amazônia, Amazônia viva!

A fauna da Amazônia – só tem aqui


A vasta flora da Amazônia – só tem aqui
A vida mora aqui

Rios voadores
Rios que desaguam na sede do planeta
Água doce que salvará milhões de nós
Da total exterminação

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É bem mais que madeiras
De pastos queimando
São índios, caboclos, ribeirinhos
São cores, sequelas que não vão sarar
Mas ela resistirá

Porque somos a Amazônia


Resistência é a bandeira
Todos somos a Amazônia

Sem ela o mundo não durará


É o nosso amor, o nosso ar
Somos a preservação
Somos Amazônia, somos Amazônia

A ordem dos quadros na apresentação do Boto Tucuxi, o boto cin-


za da região amazônica, foi bem diferente. A abertura se deu já com
o Ritual, em uma cena de grande impacto, mostrando a floresta em
chamas e os índios carregando e prateando seus mortos. A imagem
da desolação nesse momento aproximava-se mais da ópera clássi-
ca ou mesmo da tragédia grega, narrada pelo Apresentador, Fabia-
no Neves, cujo traje remetia ao Caboclo ribeirinho. Quando entra o
Curandeiro, interpretado por Fabiano Alencar, trazido por um pássa-
ro, coberto por penas coloridas e uma grande invocação dramática,
cuja maquiagem no rosto remete a uma máscara ritual, consuma a
linguagem de lamento da Floresta, onde humanos e não-humanos se
comungam para resistir ao invasor.
Dessa feita, ao invés de saírem de cena, as personagens passam a
incorporar o conjunto de dançarinos.

36
Foto 5. Ritual do Boto Tucuxi

Foto de Marcelino Conti de Souza

A chegada de Valentina Coimbra como Rainha do Çairé, trazida


por um pássaro, é empolgante, e quando, ao pousar, recebe o séquito
da procissão do Çairé religioso, encimada pelo Capitão Célio Camar-
go e os Alferes e representantes dos demais membros, empresta ao es-
petáculo a tonalidade de entremeio de sagrado e profano. No vestido
da rainha, pombas da paz se transformam em catraias de pesca, em
detalhada elaboração.
O Carimbó entra em cena, em danças originas, dessa vez criando
círculos e semi-círculos. O cenário, com suas alegorias, havia diminuí-
do o espaço de dança, creio eu que propositalmente, em razão de o
bloco Tucuxi aparentar estar com quantidade inferior de dançarinos.
A Torcida, chamado pelo apresentador de Galera Linda, participa
com muita empolgação.

37
Foto 6. Torcida do Boto Tucuxi

Foto de Marcelino Conti de Souza

Mayanni Belo, também surgindo trazida por um ser alado, repre-


senta a Rainha do Lago Verde. Seu vestido, com graças esculpidas na
borda auxiliam na imagem de leveza da bailarina que, todavia, após
sua dança solo inicial, segue para o “lago” das vitórias-régias, onde
também encontra o Boto Animal cinza, referindo a jovem inocente
que já fora um dia.
Já apresentado o Boto Animal este, interpretado por Douglas Vi-
nhote, segue para a sequência cômica com a aproximação do povo
do vilarejo e todo o furdunço que se segue. Ameaçado pelas ações do
homem, o boto resiste como símbolo da preservação.
Na sedução do Boto, com Danny Tapajós e Nadyson Silva, novo
clímax geral. Danny Tapajós, a nova bela da sequência Tucuxi, já vie-
ra dos ares, sobre o corpo de um boto cinza em uma dança ousada
nas alturas. Ela representa as caboclas festeiras, moça envolvente e
provocante.

38
O cenário agora coloca em primeiro plano uma casinha ribeirinha
onde uma pequena família vive seu cotidiano. O pai pescador desen-
rola redes, a mãe cuida da filha mais nova e a jovem e bela cabocla
veste um top branco com detalhes floridos e colares e uma mini-saia
com duas camadas, uma alaranjada e a outra, por baixo, amarela. O
Boto, vestindo branco, surge das águas e logo a leva para o lago onde
dançam, enquanto a família resta à sua procura. A dança sensual tam-
bém tem música própria e momentos bem picantes.

Figura 7. Cena da Sedução pelo Boto Tucuxi

Foto de Marcelino Conti de Souza

Angélica Garcia Borari, nativa de Alter do Chão, interpreta a Ra-


inha do Artesanato, surgindo em um carro que representa a feitura da
farinha, enquanto no palco dançarinos mexem a farinha de mandioca
em grandes “tachos” e caititus. O vestido da Rainha é também uma
soma de referências várias ao artesanto de palha, com casebres teci-
dos e a Rainha mesma pega pedaços de palha e os trança enquanto se
apresenta, adornada também por flores, borboletas, peneiras e cesta-
rias, em alusão à confecção do povo de Alter do Chão.

39
CONSIDERAÇÔES FINAIS
O trabalho de apreciar o desfile é votar em cada quesito não é tarefa
fácil, em se tratando o Festival não apenas do resultado de um lon-
go e laborioso trabalho coletivo, mas, sobretudo, pela soma de deta-
lhes e sutilezas na elaboração estética. Procurei, portanto, na medida
das minhas capacidades, ser o mais preciso possível, e justifiquei cada
nota atribuída no campo próprio para essas anotações. Não sei dizer
se essas observações são lidas ou conhecidas pelos blocos, espero que
sim, e acredito que possa vir a ser interessante cotejar essas observa-
ções no conjunto dos diversos jurados que já apreciaram os 21 emba-
tes, o que daria ensejo a um interessante artigo (fica a dica).
Agradeço à municipalidade de Santarém o inesquecível convite
para participar de um evento tão rico, sobretudo pela oportunidade
de ver se materializar esteticamente uma reação ao desmando polí-
tico-ambiental e às conjurações da fronteira agrícola na disputa pelo
território amazônico. Nesse sentido, ficaram ali, na imagem de cada
Rainha-bailarina e de seus sofisticados vestidos-engrenagens a força da
mulher nortista, a traduzir nossa alquimia de ritos, crenças, natureza
e trabalho. Na imagem do Curandeiro e dos rituais exceleu o reclame
pela ecologia dos saberes, maior e mais ampla que os modelos colo-
nizatórios. Na sedução e no erotismo do Boto e da Cabocla Borari,
emergiu a vitalidade e o desejo de todo um povo. Cada adereço, cada
fantasia, cada alegoria ricamente trabalhada mostraram os detalhes da
resistência conjunta, externalizada no ritmo do Carimbó e na força ex-
pressiva dos indígenas e dos povos e comunidades tradicionais.
De forma contrária, a presidência de Jair Bolsonaro e a política
ambiental implementada no país vem se caracterizando como uma
política de desmonte da estrutura fiscalizatória, incentivando o avan-
ço das cadeias de commodities agrícolas, o que tem levado à derrubada
e à queima criminosa de florestas. Outra forma de pressão têm sido o
avanço no planejamento de Hidrelétricas no rio Tapajós, que avulta
como nova etapa de conflito sobre o Aquífero e seus povos.

40
Em momentos como esse, a ressemantização simbólica de uma
festa amazônida como o Çairé ganha relevo por trazer à pauta cultu-
ral, midiática e popular, o grito de socorro de comunidades, de povos
e de não-humanos.

REFERÊNCIAS
BARBOSA, Erika Siqueira. Festa e fé: o afeto como propulsor da comunicação midiática
no espetacular Çairé de Alter do Chão. Belém: Programa de Pós-Graduação em Comu-
nicação, Cultura e Amazônia, Mestrado em Ciências da Comunicação da Universi-
dade Federal do Pará, 2017.
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ção Folclórica Boto Cor-de-Rosa, 2019.
BOTO TUCUXI. Resistência Borari. Programa. Santarém: Grupo Sociocultural Boto
Tucuxi, 2019
BOYER, Verónique. Sairé ‘religioso’ ou Çairé ‘profano’: uma patrimonialização em
tensão. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/319243178
CARVALHO, Luciana Gonçalves de (coord.) Festa do Çairé de Alter do Chão. Fotos de
Carlos Matos Bandeira, Carlos Matos Bandeira Júnior e Claudia Seixas. Santarém:
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CHAVES, Luiza Alves; MADEIRA FILHO, Wilson. Queimadas na floresta amazô-
nica: humanos e não-humanos invisibilizados e a necropolítica estatal. In: Anais IX
Seminário Brasileiro sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social (SAPIS)/ IV Encontro Lati-
no-Americano sobre Áreas Protegidas e Inclusão Social (ELAPIS). Recife: Universidade
Federal de Pernambuco, 11 a 14 de dezembro de 2019. No prelo.
CONSELHO GESTOR DA APA ALTER DO CHÃO. Área de Proteção Ambiental de
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tro-da-destruicao-ambiental/.
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ro-acusa-leonardo-dicaprio-e-wwf-de-financiarem-queimadas-na-amazonia.ghtml
MACHADO, Leandro. O que se sabe sobre o ‘Dia do Fogo’, momento-chave das
queimadas na Amazônia. In: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-49453037

41
RENTE, Andréa Simone Gomes. Áreas de Proteção Ambiental como inspiração para
o desenvolvimento sustentável: o caso da criação da APA Alter do Chão PA. Dissertação
de mestrado. Orientação de Eli de Fátima Napoleão de Lima. Rio de Janeiro: Pro-
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Sociedade da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, 2006.
SURGIK, Ana Carolina Santos. Efeitos das leis conservacionistas sobre a biota, os recur-
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tps://veja.abril.com.br/politica/de-ferias-no-para-weintraub-bate-boca-com-mani-
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criminoso na APA Alter do Chão In: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/
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VIEIRA, Silvia. Da folia do Sairé para os palcos, grupo Espanta Cão divulga a músi-
ca amazônica. In: https://g1.globo.com/pa/santarem-regiao/noticia/da-folia-do-
-saire-para-os-palcos-grupo-espanta-cao-divulga-a-musica-amazonica.ghtml

42
QUEIMADAS NA FLORESTA
AMAZÔNICA: HUMANOS E NÃO-
HUMANOS INVISIBILIZADOS E
A NECROPOLÍTICA ESTATAL
Wilson Madeira Filho
Luiza Alves Chaves

INTRODUÇÃO
Este trabalho examina o impacto dos discursos políticos desmentin-
do dados apresentados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais
(INPE) referente ao aumento das queimadas e do desmatamento na
Floresta Amazônica e reforçando os projetos do agronegócio no Bra-
sil em prejuízo dos indivíduos humanos e não-humanos que residem
na Floresta.
Objetiva-se estabelecer como a ascensão de políticas que ampliam
a degradação ambiental acabam reforçando a subjugação de indiví-
duos que são constantemente oprimidos e negligenciados ao longo
do processo de construção de políticas públicas ambientais.
O tema foi escolhido pela necessidade de se compreender o fenôme-
no das queimadas na região amazônica, diante inclusive da repercussão
internacional do episódio e da invisibilidade que se dá a diversos sujei-
tos humanos e não-humanos diretamente envolvidos no processo, em
detrimento de um discurso internacional pautado em uma perspectiva
de modelo de Natureza conservacionista e antropocêntrico.
Nesse sentido, optou-se por fazer uma correlação entre a necessidade
de se constituir uma percepção diferente de risco, conforme apresenta
Ulrick Beck (2010), onde seja possível entender que alguns indivíduos

43
acabam por suportar mais malefícios dos desgastes ambientais, enten-
dendo como isso se dá no caso específico das queimadas na Floresta
Amazônica e avaliando se a construção do discurso estatal que reforça
essas práticas ilegais pode se constituir como prática de bionecropolítica.
A metodologia utilizada foi o levantamento de dados acerca das
queimadas ocorridas no Brasil ao longo do ano de 2019, apresentando
o cenário, os agentes envolvidos, seus discursos e os números acerca das
áreas afetadas, e das populações humanas e não-humanas atingidas. Esses
dados foram coletados através de análise de reportagens jornalísticas de
veiculação nacional e internacional sobre o tema, bem como de números
levantados por organismos nacionais e internacionais de pesquisa.
Após essa análise, serão apresentados os conceito de risco, trazi-
do por Beck (2010), de biopolítica e de necropolítca, na percepção
de Achillie Mbembe (2018), para compreender como determinados
grupos suportam um maior impacto dos malefícios trazidos com as
queimadas e avaliar se e como o caminho que vem seguindo os dis-
cursos das lideranças políticas brasileiras, no que tange a perspectiva
ambiental, podem constituir uma estrutura necropolitica.
Esse trabalho abordará, portanto, os impactos trazidos por essas
queimadas tanto para as populações tradicionais quanto para os indi-
víduos não-humanos que compõem os ecossistemas de Floresta. Nes-
se sentido, o relato que se seguirá, mostrando os dados que demons-
tram o aumento das queimadas no ano de 2019 e a localização desses
incêndios, será crucial para o desenvolvimento de uma reflexão teó-
rica sobre os conceitos de bionecropolítica e risco e sua interlocução
com o caso concreto.

1. CONTEXTO DAS QUEIMADAS


No mês de agosto de 2019 o Brasil figurou como centro de uma cri-
se política internacional devido à expansão indiscriminada de focos
de incêndios e queimadas na Floresta Amazônica, combinado com

44
a inexistência de políticas públicas para combate à prática, aliada ao
posicionamento temeroso do presidente da República e do Ministro
do Meio Ambiente, aparentemente contrários à tomada de qualquer
medida para coibir os incêndios.
Embora as secas1 na Amazônia se desenvolvam como processo na-
tural, tendo se intensificado devido, entre outros fatores, às mudanças
climáticas, e gerem incêndios naturais devido à inflamação de mate-
riais biológicos, as queimadas2 vêm como fator externo expandindo
as áreas de abrangência dos incêndios e do desmatamento, sendo alta-
mente nocivas a todo o ecossistema.
Os resultados apresentados pela nota técnica elaborada pelo Ins-
tituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM) trazem expressa-
mente que:

A Amazônia está queimando mais em 2019, e o período seco, por si só,


não explica este aumento [...]. O número de focos de incêndios, para
maioria dos estados da região, já é o maior dos últimos quatro anos. É
um índice impressionante, pois a estiagem deste ano está mais branda
do que aquelas observadas nos anos anteriores [...]. Até 14 de agosto,
eram 32.728 focos registrados, número cerca de 60% superior à média
dos três anos anteriores para o mesmo período (média de ~20,4 mil fo-
cos de incêndios, variando entre ~15 e 25,5 mil; figura 2). A média de
dias cumulativos sem chuva até 14 de agosto de 2019 variou entre 11 dias
(Amazonas) e 29 dias (Roraima). (Silvério et al. 2019, n. paginado).

1. O período de seca de 2019 tem sido mais brando do que os três anos anteriores, não jus-
tificando a explosão no número de focos de calor (Silvério et al. 2019).
2. As queimadas são uma forma de manejo tão antiga como a própria agricultura, sendo
bastante comuns em muitas regiões tropicais e subtropicais. A necessidade da renovação das
pastagens para seus rebanhos e da limpeza do terreno, a fim de facilitar o plantio, levou o
homem primitivo à descoberta da técnica da queimada. Este passou, então, a utilizá-la nos
campos e florestas para controlar certos tipos de vegetação, possibilitando assim o cultivo do
solo (TEIXEIRA et al, 1992, p. 62).

45
Nesse mesmo sentido Fonseca-Morello et al (2017, n. paginado)
trazem que:

A produção científica tem acumulado evidências que apontam para o


aumento da flamabilidade do bioma amazônico (NEPSTAD et al., 2001;
MALHI et al., 2009; COE et al., 2014). Tal transformação vem na esteira
de mudanças do clima regional que compreendem a redução das pre-
cipitações em 20% e o salto da temperatura em 2 a 8° C até o final do
século (NEPSTAD, 2007; COE et al., 2013). Como decorrência, a floresta
será estruturalmente alterada, com a possível “savanização” de 40% de
sua extensão (Marcovitch et al., 2010) ou transição para a floresta esta-
cional (MALHI et al., 2009). As estações secas se tornarão mais recorren-
tes e longas, o que já está ocorrendo, processos que levam à redução da
umidade e favorecem a propagação do fogo tanto em terras ocupadas
por florestas como nas ocupadas pela agropecuária (COE et al., 2013).

A perpetuação das queimadas, neste cenário, imporá perdas sociais e


ambientais de grande monta, dada a elevação do risco de incêndios.
A mitigação das consequências requer políticas públicas, as quais, de
fato, têm se mostrado eficazes na contenção do desmatamento regio-
nal (ASSUNÇÃO et al., 2012).

Devido a isso, o recente incêndio que, diante da proporção das


queimadas e de fatores meteorológicos, teve sua fumaça espalhada
por boa parte do país, chegando a ser vista no Estado de São Paulo,
chamou a atenção de ambientalistas, cientistas, políticos e da popula-
ção em geral, sendo uma atitude combativa do chefe de Estado brasi-
leiro questionada e esperada.

46
Figura 1 – Imagem do descolamento das nuvens de fumaça entre os dias 17 e
19 de agosto de 2019, imagens obtidas pelo programa Copernicus, da Agência
espacial Europeia e pelos sistemas Lidar e CPTEC –financiados pela FAPESP

Fonte: Folha de São Paulo

Figura 2 – Imagem da Região da Vila Buarque vista pelos


Campos Elíseos, na cidade de São Paulo

Foto de Otavio Valle/Fonte: Folha de São Paulo)

Segundo dados do INPE, o índice de desmatamento da Amazô-


nia cresceu 90,8% no comparativo entre os meses de junho de 2018
e junho de 2019 (FIGUEIREDO, 2019). Já no que diz respeito às

47
queimadas o crescimento foi de 85% (oitenta e cinto por cento) entre
os anos de 2018 e 2019 3.

Figura 3 – Tabela elaborada por Patrícia Figueiredo com dados do INPE

Fonte: G1. GLOBO

Os dados apresentados são referentes ao sistema do DETER (De-


tecção de Desmatamento em Tempo Real), que apresenta diariamen-
te os dados de áreas desmatadas na Amazônia e é utilizado pelo Ins-
tituto Brasileiro de Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis
(IBAMA) para fiscalização ambiental. O programa não tem como
função apresentar os dados concretos acerca do desmatamento, prin-
cipalmente porque se trata de um satélite de imagens não precisas,
que é utilizado para apresentação de dados de alerta, o que se torna
efetivo para a fiscalização.

3. A identificação do padrão de alteração da cobertura florestal é feita por interpretação


visual com base em cinco elementos principais (cor, tonalidade, textura, forma e contexto)
e utiliza a técnica de Modelo Linear de Mistura Espectral (MLME), conjuntamente com sua
imagem multiespectral em composição colorida para mapear as seguintes classes: DESMA-
TAMENTO: Desmatamento com solo exposto, Desmatamento com vegetação e Mineração;
DEGRADAÇÃO: Degradação, Cicatriz de incêndio florestal; EXPLORAÇÃO MADEIREI-
RA: Corte Seletivo Tipo 1 (Desordenado) Corte Seletivo Tipo 2 (Geométrico) - (INPE, 2018,
n. paginado) .

48
Nesse sentido a Coordenação-Geral de Observação da Terra
(INPE, 2018) traz que:

O INPE enfatiza que o DETER é um sistema expedito de Alerta desen-


volvido metodologicamente para suporte à fiscalização. A informação
sobre áreas é para priorização por parte das entidades responsáveis pela
fiscalização e não deve ser entendida como taxa mensal de desmatamen-
to. O número oficial do INPE para medir a taxa anual de desmatamen-
to por corte raso na Amazônia Legal brasileira é fornecido, desde 1988,
pelo projeto PRODES.

Porém os dados costumam refletir o que é apresentado posterior-


mente no relatório anual do PRODES (Programa de Cálculo do Des-
florestamento da Amazônia), que utiliza satélites mais precisos.
O aumento vem sendo atribuído a agricultores e grileiros, que te-
riam se reunido por via do aplicativo whatsapp e orquestrado a ação
conhecida como Dia do Fogo, no dia 10 de agosto de 2019. Embo-
ra os dados acerca do caso não tenham sido confirmados, segundo
apresentado em reportagem da BBC News Brasil (2019), o Ministério
Público Federal, em conjunto com a Polícia Federal teria iniciado in-
vestigação e, antecipadamente, pode-se garantir que a partir da data
em questão os focos de incêndio cresceram significativamente (MA-
CHADO, 2019, n. paginado).
Segundo dados apresentados em nota técnica pelo IPAM, é pos-
sível constatar que o aumento das áreas de fogo se deu nos mesmos
espaços onde houve aumento do desmatamento. Segundo Silvério et
al. (2019, s/p.):

A ocorrência de incêndios em maior número, neste ano de estiagem


mais suave, indica que o desmatamento possa ser um fator de impulsio-
namento às chamas, hipótese testada aqui com resultado positivo: a re-
lação entre os focos de incêndios e o desmatamento registrado do início

49
do ano até o mês de julho mostra-se especialmente forte [....]. Os dez
municípios amazônicos que mais registraram focos de incêndios foram
também os que tiveram maiores taxas de desmatamento [...]. Estes mu-
nicípios são responsáveis por 37% dos focos de calor em 2019 e por 43%
do desmatamento registrado até o mês de julho [...]. Esta concentração
de incêndios florestais em áreas recém-desmatadas e com estiagem bran-
da representa um forte indicativo do caráter intencional dos incêndios:
limpeza de áreas recém-desmatadas.

Nesse sentido, percebe-se que nem a pauta levantada de inexistên-


cia do aumento dos focos de incêndios, nem a justificativa de que o
aumento se daria única e exclusivamente devido à seca se comprovou
pelos estudos apresentados acerca do caso.
Outra discussão que envolve o caso e sobre a qual os estudos desse
artigo se baseiam mais intensamente é que as queimadas, segundo
a presidência da República, teriam sido oriundas de fogo manejado
utilizado em práticas tradicionais pelas comunidades indígenas habi-
tantes da região.
Em relatório apresentado em setembro de 2019, o IPAM relacio-
nou que:

Como esperado, as grandes áreas livres de desmatamento e longe das


chamas são aquelas protegidas por indígenas (6% dos focos em 2019
[....]) e as unidades de conservação exceto APAs (7%), confirmando
sua vocação para conservação (SOARES-FILHO et al, 2010). Sem elas,
o cenário de desmatamento e fogo na Amazônia seria pior. Contudo,
há um aumento preocupante de registros a partir do início de agosto
nestas áreas protegidas, especialmente em terras indígenas (ISA, 2019) -
(ALENCAR et. al., 2019, n. paginado)

Ou seja, não só não houve comprovação da afirmação como tam-


bém existem dados que comprovam que a maior parte dos focos de

50
incêndios se deu em áreas destinadas a propriedades privadas ou em
áreas de florestas não destinadas (terras em que o Estado ainda não
determinou o que fazer), conforme abaixo apresentado.

Figura 4 – Distribuição da área ocupada por cada categoria fundiária no bioma Amazônia

Fonte: IPAM

Como se vê na Figura 4, a distribuição do número de focos de ca-


lor e distribuição de área desmatada por classe fundiária no bioma
Amazônia, a saber: TI – terras indígenas; UC – unidades de conser-
vação exceto APA; APA – Área de Proteção Ambiental; ASR - assen-
tamentos rurais; PP – propriedades privadas; ND - florestas públicas
não destinadas; Sem info - áreas sem clara informação fundiária.
Áreas militares e quilombos não foram incluídos neste gráfico por se-
rem numericamente de baixa relevância (IPAM).
Embora o índice de focos de incêndios dentro de áreas de preser-
vação e comunidades indígenas seja significativamente inferior aos
focos em propriedades privadas e áreas de floresta não-destinada, os
incêndios dentro dessas áreas também teve aumento em comparação
a médias dos oito anos anteriores.

51
Figura 5 – Número de focos de calor registrados por categoria fundiária entre 1º de janeiro
a 29 de agosto para o ano de 2019 (barra vermelha) em comparação com a média para
o mesmo período (janeiro a agosto) dos oito anos anteriores (2011-2018; barra cinza).

Fonte: IPAM

O Instituto Socioambiental traz o rol das áreas de preservação e


comunidades indígenas mais afetadas pelo fogo na região amazônica:

Nesse período, as dez Terras Indígenas mais afetadas pelos incêndios fo-
ram o Parque Indígena Araguaia (TO), a TI Pimentel Barbosa (MT), TI
Parabubure (MT), TI Apyterewa (PA), TI Marãiwatsédé (MT), TI Ka-
yapó (PA), TI Areões (MT), TI Kanela (MA), TI Mundurucu (PA) e a TI
Pareci (MT) [...]. No Parque Indígena Araguaia, foram 752 focos de calor
no último mês. Ao todo, foram 3.553 focos de calor em 148 Terras Indí-
genas da Amazônia brasileira.
Nas Unidades de Conservação, a situação também é grave. Foram 7.368
focos de calor em 118 UCs. APA Triunfo do Xingu (APA), a Florex Rio
Preto-Jacundá (RO), a Flona do Jamanxim (PA), a Resex Jaci Paraná
(RO), a Pes do Mirador (MA), a Apa do Tapajós (PA), a Esec da Terra
do Meio (PA), a Flona de Altamira (PA) e a Pes de Guajará-Mirim (RO)
foram as dez UCs com mais queimadas entre os dias 20 de julho e 20 de
agosto (ISA, 2019, n. paginado).

52
Os dados apresentados pelo Instituto Socioambiental (ISA) corro-
boram as informações apresentadas pelo IPAM, trazendo uma alerta
para que se dê não só a averiguação da responsabilização dos incita-
dores do fogo, como a criação de políticas públicas que garantam sua
inibição, dentro e fora das áreas de preservação ambiental (ISA, 2019,
n. paginado).
Fechando essa etapa da coleta e apresentação dos dados referentes
ao caso trabalhado, cabe apresentar trecho da nota técnica emitida
pelo IPAM em setembro de 2019, que resume as conclusões elabora-
das após as análises:

Os resultados aqui apresentados confirmam a principal conclusão ex-


pressa em nossa primeira nota técnica, publicada em agosto deste ano,
de que grande proporção de focos de calor está atrelada ao desmata-
mento, e não a uma severidade da época seca deste ano. O indicador
principal é a alta proporção de focos em propriedades privadas (PP) e
assentamentos (ASR) possivelmente devido à conversão de florestas em
outros usos, e em florestas públicas não destinadas (ND), como resulta-
do da grilagem e da ação de criminosos interessados em especular com
a terra. Ainda, os resultados que apresentamos nesta nota mostram que
esse processo de desmatamento e fogo atinge a maioria dos Estados da
região com grandes extensões territoriais. O problema parece, portanto,
regional e não particular de uma jurisdição específica (ALENCAR et al.,
2019, n. paginado).

Vale dizer, toda a polêmica que se deu e repercutiu amplamente


pela mídia internacional encontra dados técnicos que não foram con-
traditos em nível científico. O princípio da precaução parece ter impe-
rado na análise institucional e medidas políticas empíricas deveriam
ter sido acionadas de imediato.

53
2. A INAÇÃO COMO POLÍTICA
Diante do impacto do caso, a omissão do presidente brasileiro, bem
como do Ministro do Meio Ambiente, foi observada tanto nacional
como internacionalmente. No que tange às medidas institucionais, o
presidente brasileiro recebeu ordem judicial nos autos da Ação Popu-
lar nº 1023852-89.2019.4.01.3400 para que prestasse esclarecimentos
acerca do atual panorama das queimadas na Amazônia e apresentasse
as providencias tomadas pelas autoridades federais para submeter os
responsáveis pelos incêndios às sanções cabíveis. Nesse sentido traz-se
parte do decisum:

PROCESSO: 1023852-89.2019.4.01.3400 CLASSE: AÇÃO POPULAR


(66) AUTOR: CARLOS ALEXANDRE KLOMFAHS RÉUS: JAIR MES-
SIAS BOLSONARO, UNIAO FEDERAL. Entretanto, considerando ser
impossível não reconhecer a gravidade da situação humana e ambiental
gerada pelos incêndios (CPC, art. 374, I), julgo oportuno que os réus
apresentem, no prazo de 72 horas (reduzido por conta da situação pe-
culiar vivenciada), o real panorama da situação e as correspondentes
medidas administrativas que estão sendo adotadas pelo Poder Público
(isoladamente e/ou em parceria com os Entes locais), para controlar e/
ou minimizar os efeitos adversos das queimadas reportadas nos autos.
Da mesma forma, em igual prazo, deverão informar se as autoridades
federais ou locais já adotaram as providências legais pertinentes visan-
do submeter os responsáveis pelos incêndios aos rigores da Lei 9.605/08
(Lei dos Crimes Ambientais) e demais legislação correlata. Afinal, con-
forme já salientado, é também da União a responsabilidade constitu-
cional por zelar integralmente pela proteção do meio ambiente. O que
inclui punir todos aqueles que fizeram uso indevido do fogo ou assumi-
ram o risco da sua utilização, assim como daqueles que negligenciaram
no cumprimento dos seus deveres funcionais. À vista de todo o exposto,
DEFIRO PARCIALMENTE A LIMINAR requerida para determinar que
os réus, no prazo de 72 horas: a) apresentem o real panorama da situação

54
e as correspondentes medidas administrativas que estão sendo adotadas
pelo Poder Público (isoladamente e/ou em parceria com os Entes lo-
cais), para controlar e/ou minimizar os efeitos adversos das queimadas
reportadas nos autos; b) informem se as autoridades federais ou locais
já adotaram as providências legais pertinentes visando submeter os res-
ponsáveis pelos incêndios/queimadas aos rigores da Lei 9.605/08 (Lei
dos Crimes Ambientais) e demais legislação correlata. Cumpra-se, com
urgência, via mandado. Todavia, por envolver autos eletrônicos e como
forma de dar vazão ao princípio da celeridade, paralelamente, cite-se a
parte ré para, no prazo legal, apresentar contestação. Por derradeiro,
após a juntada da manifestação, venham os autos conclusos para que
seja possível avaliar a necessidade de eventual extensão da ordem liminar
ora deferida, além de outras providências pertinentes relativas ao impul-
so oficial (TJDF, 2019).

A decisão foi descumprida pelo presidente, que não apresentou


nem os dados oficiais acerca dos incêndios, nem as providências to-
madas para averiguação da autoria dos incêndios. Todavia, foi apre-
sentada uma medida com intuito de coibir a prática das queimadas,
o Decreto nº 9.992/19, que traz em seu artigo 1º a seguinte redação:
“Fica suspensa a permissão do emprego do fogo de que trata o Decre-
to nº 2.661, de 8 de julho de 1998, no território nacional pelo prazo
de sessenta dias, contado da data de publicação deste Decreto” (BRA-
SIL, 2019).
Contudo, até mesmo essa determinação teve sua efetividade mi-
tigada dois dias depois com a prolatação do Decreto nº 9.997, que
traz: “Art. 1º O Decreto nº 9.992, de 28 de agosto de 2019, passa a
vigorar com as seguintes alterações: [...] IV - práticas agrícolas, fora
da Amazônia Legal, quando imprescindíveis à realização da operação
de colheita, desde que previamente autorizada pelo órgão ambiental
estadual, observadas as restrições estabelecidas nos art. 14 e art. 15 do
Decreto nº 2.661, de 1998”.

55
Ou seja, embora tenha sido determinada a proibição de realização
de queimadas no Brasil no dia 28 de agosto de 2019, dois dias depois,
no dia 30 de agosto de 2019, a prática foi autorizada nos territórios
que não pertencem à Amazônia Legal. Mais do que o impedimento
prático de coibição da ação incendiária que essa modificação norma-
tiva trouxe, a proximidade entre as datas deixa claro a mabeabilidade
do governo para transformar as políticas ambientais, conforme inte-
resses e pautas em centralidade no momento.
No que diz respeito à repercussão internacional do episódio,
as declarações começaram com o presidente francês, Emmanuel
Macron, que declarou que se colocaria contra o acordo celebrado
entre o Mercosul e a União Europeia caso Jair Bolsonaro se recu-
sasse a tomar providências ou a se posicionar publicamente contra
os incendiários, uma vez que a problemática da Amazônia violaria
as cláusulas do Pacto de Mudança Climática estabelecido entre os
países.
Segundo o presidente francês, em fala acerca da postura do presi-
dente brasileiro:

Seria errado dizer que ele é responsável. [...] Mas ele tem apoiado pro-
jetos econômicos que são prejudiciais à floresta amazônica. O reflores-
tamento também é nossa responsabilidade, respeitamos sua soberania,
mas o tema da Amazônia é o assunto de todo o planeta, não podemos
deixar que você destrua tudo (CORREIO DO POVO, 2019).

Em sua conta no twitter E. Macron apoiou a campanha “Act for


The Amazon”, e premiu o G7 para uma reunião de urgência, o que
foi interpretado pelo presidente brasileiro como ataque à soberania
nacional 4. Em apoio à fala do presidente francês, se colocaram o

4. Outros aspectos desse debate, detidamente na ocorrência de incêndios na APA de Alter do


Chão, em Santarém PA, podem ser encontrados em MADEIRA FILHO (2019).

56
presidente canadense, Justin Trudeau, o primeiro ministro irlandês,
Leo Varadka, bem como a chanceler alemã, Angela Merkel.
Assim como E. Macron, J. Trudeau apresentou declaração em sua
conta no Twitter:

I couldn’t agree more, @EmmanuelMacron. We did lots of work to


protect the environment at the #G7 last year in Charlevoix, & we need
to continue this weekend. We need to #ActForTheAmazon & act for
our planet — our kids & grandkids are counting on us (O GLOBO,
22/08/2019)5.

O impacto internacional ainda se deu com a formação de uma


equipe de juristas brasileiros que se reuniu para apresentar denúncia
em face do presidente brasileiro Jair Bolsonaro, por ecocídio, perante
o Tribunal Penal Internacional.
Nas palavras de H. Gordilho e F. Ravazzano (2017, p. 689 e 690)
tem-se que:

O ecocídio consiste em destruição ou perda extensa do ecossistema de


um determinado território, em razão de conduta humana ou por outras
causas, de tal forma que o gozo pacífico dos habitantes de tal território
seja ou venha a ser severamente prejudicado. Esta é uma modalidade de
delinquência ecológica que viola os valores da vida, integridade emocio-
nal, saúde, estética e da própria felicidade, valores que resultam da frui-
ção dos elementos da natureza (águas, ar, solo, flora, fauna e paisagem).
Para ser admitido perante o Tribunal Penal Internacional (TPI), conside-
ra-se que o ecocídio deve ser uma ofensa massiva ao meio ambiente, ca-
paz de ocasionar graves danos ao ecossistema e violações à fauna, flora,

5. Eu não poderia concordar mais com Emmanuel Macron. Nós tivemos muito trabalho
para proteger o meio ambiente no G7 no último ano, em Chalevoix e nós precisamos con-
tinuar esse final de semana. Nós precisamos “agir pela Amazônia” e agir por nosso planeta
– nossos filhos e netos estão contando conosco (tradução nossa).

57
ao ar e/ou as águas, de sorte a determinar a morte de vários espécimes
animais ou vegetais, ou tornar inapropriado o uso das águas, do solo,
subsolo e/ou do ar, de modo a ocasionar abalos à própria vida humana.

A inação dos políticos brasileiros diretamente responsáveis se faz


não como uma demonstração de incompetência ou falta de habilida-
de política, mais do que isso, como uma escolha pelo suporte à repro-
dução de uma prática danosa à biodiversidade e aos indivíduos huma-
nos e não-humanos que habitam a região amazônica.

3. BIONECROPOLÍTICA
O desafio colocado pela política antiambiental do Governo Bolsonaro
é que ela se fundamenta no modelo desenvolvimentista local, onde a
sensação de “atraso” em relação aos países mais ricos é justamente o
principal elemento a justificar o aparente irracionalismo. “Interesse
na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no minério”6,
afirmou Bolsonaro ao se reunir com garimpeiros de Serra Pelada em
outubro de 2019.
Nesse sentido, suas bravatas e modos considerados toscos encon-
tram ressonância em dois conjuntos de lastro político: de um lado
o senso comum, base de seu governo popular, que conjuga credulida-
de evangélica, interesses milicianos, ressentimentos de classe média
emergente, intolerância social de elite e ignorância generalizada (eis
que a cultura é anunciada como inimiga); de outro lado, filiação ao
vencedor, seja o time de futebol da vez, o modelo religioso com mais
adeptos ou a força das armas, mas em geral trata-se de um padrão
personificado pelo mito do líder emblemático e as promessas de su-
cesso do neoliberalismo radical.

6. GULLINO, Daniel. ‘Interesse na Amazônia não é no índio nem na porra da árvore, é no


minério’, diz Bolsonaro. In: https://oglobo.globo.com/sociedade/interesse-na-amazonia-
-nao-no-indio-nem-na-porra-da-arvore-no-minerio-diz-bolsonaro-1-23987418.

58
Quando Bolsonaro diz em recado a Angela Merkel em agosto de
2019, “Pega essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok?”7, está refor-
çando uma postura que o governo militar brasileiro da década de
1970 propagou, a de que a política ambiental era fruto dos interes-
ses dos países europeus, os quais, havendo devastado o próprio meio
ambiente para se tornarem ricos, desejavam agora fazer dos países
emergentes seus “quintais” preservados. Ora, para o governo federal,
que conseguiu trazer de volta à máquina pública o staff militar, agora
com base civil e estrutura tida, institucionalmente, como democráti-
ca, é o momento de consumar o modelo desenvolvimentista, o qual,
todavia, já estava em curso, mas agora sob novo impulso, neonacio-
nalista e populista. É nessa diretriz que a demonização do Partido
dos Trabalhadores (PT) e do lulismo, igualmente calcados sob base
populista, porém de esquerda, deva ser mantida enquanto estratégia
de combate permanente. Nesse cenário, os lemas sociais – direitos
humanos, ambientalismo, gênero e sexualidade etc. – passam a ser ta-
chados como propaganda esquerdista e anti-família, num pastiche do
modelo colonizatório da “Conquista do Oeste”, dizimando apaches e
balburdias de saloon para implementar as ferrovias do progresso.
Vale dizer, o Governo Bolsonaro dá-se ao luxo de posar como an-
tissistêmico, mesma estratégia do midiático Donald Trump, valen-
do-se do senso comum e da sociedade do espetáculo elevados a pa-
drão único de conhecimento via internet e celulares. Ministros como
Damares e Weintraub, tidos pela esquerda como cortina de fumaça a
embasar as ações pontuais dos ministros estratégicos como Ricardo
Salles e Sérgio Moro representam, de fato, uma alteração de paradig-
ma discursivo, que permite relativizar os avanços democráticos.
O conjunto de questões colocado é complexo, pois indica que ele-
mentos que a pouco eram criticados pela Academia, como o modelo

7. SOARES, Jussara; GULLINO, Daniel. ‘Pega essa grana e refloreste a Alemanha, tá ok?’,
diz Bolsonaro em recado a Angela Merkel. In: https://oglobo.globo.com/sociedade/pega-
-essa-grana-refloreste-alemanha-ta-ok-diz-bolsonaro-em-recado-angela-merkel-23877808.

59
de colonização de conhecimento e de posturas biopolíticas, nos apre-
senta um aparente paradoxo, via direita radical, pois seu novo passo
assume características arcaicas, neoconservadoras, invadindo o flanco
deixado aberto pela elite humanista europeia, que centrou seu domí-
nio discursivo em séculos de produção bibliográfica e na condução
espiritual católica. O Cisma se repete em expansão popular, através da
nova Vulgata, o WhatsApp.
Por sua vez, os incêndios na Amazônia e em demais áreas prote-
gidas, representam também um atentado contra esses biomas, e os
prejuízos vão muito além dos parâmetros econômicos, eis que repre-
sentam fortes alterações ecossistêmicas, com forte capacidade de pro-
porcionarem desequilíbrios na dinâmica de vida não-humana. Ainda
que a compreensão do lugar do homem no planeta Terra e sua per-
cepção em relação à natureza que o abarca muitas vezes seja com-
preendida de modo diverso a esse fenômeno, a significação das rela-
ções entre os seres humanos e as demais espécies dos mais diversos
ecossistemas terrestres, bem como a concepção da ideia de Natureza,
são também frutos do processo colonizatório.
A dificuldade dos seres humanos nascidos e/ou desenvolvidos
dentro desses moldes culturais norte-eurocêntricos em se enxergar
como parte componente da natureza, como mais uma entre as bi-
lhões de espécies existentes na Terra, e não como possuidores ou, no
máximo, defensores porta-vozes dessas diversas formas de vida, brota
do processo de formação das sociedades ocidentais.
Albert Crosby (2011) nos informa que o imigrante colonizador
trouxe consigo uma biota portátil, onde além da fauna e da flora, ele
trouxe também seu modus vivendi e, consequentemente, sua forma de
se relacionar com a natureza. Desse modo, o processo de dominação
não foi (e continua não sendo!) só de um povo sobre outro, mas de
uma tecnologia de organização social sobre a outra.
Sendo assim, ao realizar o processo de “domesticação” da nature-
za, o colonizador já define qual parte dela deseja reproduzir. Tendo,

60
hoje, a natureza se tornado fruto dessa atividade, sendo uma espécie
de reconstituição de um modelo europeu, compondo uma espécie de
natureza globalizada (CROSBY, 2011, p. 13-19).
Isso se reproduz nos mais diversos âmbitos que permeiam o homem
e sua relação com os demais componentes da natureza. Enxergamos
traços dessas percepções e tecnologias desde o desenvolvimento das
culturas produtivas, da produção (e reprodução) de partes da natureza,
até as legislações ambientais e todos os mecanismos que a envolvem.
Vale dizer, enquanto ação política estratégica cabe recuar as filei-
ras e reelaborar o conjunto discursivo, reconhecendo, de um lado,
que a fala culta-erudita-acadêmica nos moldes humanistas-eurocen-
tricos necessita elaborar bases mais entranhadas junto aos saberes po-
pulares não apenas tradicionais, em especial os da microfísica urbana;
mas também, por outro lado, trata-se de garantir, através de acordos
e mesmo via judicialização, as instituições e conquistas do Estado De-
mocrático de Direito. Essa estrutura de resistência, contudo, ganha
ainda mais dramaticidade quando se computa nos cálculos estratégi-
cos a sociedade não-humana.
A. Godoy (2000, s/p.), ao discutir a formação das áreas protegidas
e a utilização do Parque de Yellowstone como modelo de criação de
parques e unidades de conservação, de forma elucidativa traz que:

Não se trata mais de afirmar que o Parque Nacional de Yellowstone é


um modelo ou que as áreas existentes em outros países tenham sido
criadas com base nele, mas sim de acoplar o modelo ao ato de formar
uma natureza que constitui, por sua vez, coletivos e indivíduos humanos
e não-humanos, uma cultura, uma tradição; um âmbito que, ao tornar
válido o modelo, permite sua conservação e de toda a rede de interações
ao qual está articulado e com o qual é configurado.

Vale dizer, o modelo neoarcaico ressemantizou os mecanismos de


controle, elevando a novo grau o conceito de biopolítica. Ao longo

61
desse processo desenvolveu-se um modelo de biopolítica onde deter-
minados grupos de comunidades e sociedades, que tinham relações
diferenciadas com a natureza não-humana, tiveram seus territórios e
suas vidas constantemente controlados e muitas vezes criminalizados.
Por biopolítica tem-se que:

A biopolítica, para Michel Foucault, é a forma de poder que regulamenta


e normaliza os modos de vida, e está intimamente ligada ao neolibera-
lismo e às formas de produção do capitalismo contemporâneo. É todo
um conjunto de dispositivos, estratégias, capturas e ações que a forma-
-Estado tem à disposição para manter sua hegemonia nas sociedades de
controle (BARCHI, 2011, p. 167).

Desse modo, territórios habitados, atividades laborais realizadas,


atividades religiosas e culturais passaram a ser restringidos ou com a
determinação da saída de toda comunidade de um dado território ou
com a imposição de uma gama de regras que, se não impossibilitava
seu modus vivendi, tornava-o insustentável.
Rodrigues e Madeira Filho (2019, p. 45) complementam:

Derivam daí noções impressionistas de sociedade de controle, onde o plane-


jamento e ordenação das cidades possa ser visto como transpolítica panóp-
tica, criando um desenho do espaço para otimizar o seu controle. A vida
humana e sua distribuição topográfica passaria a ser controlada por cálculos
explícitos de seus processos biológicos que transformam a vida humana.
Haveria necessidade de controlar os nascimentos, mortes, fecundidade,
morbidade, longevidade, migração, criminalidade, entre outras, em termos
descritivos e quantificado, combinando, separando e comparando, permi-
tindo a previsão do futuro a partir de estatísticas, demografia, medicina so-
cial e outros saberes. Nesse sentido, podemos dizer que a biopolítica teria
como pretensão maximizar a vida humana ativa e produtiva, com o fito de
subtrair o máximo de tributação sobre sua produtividade para o poder.

62
Contudo, a criação dessas delimitações de natureza a ser preserva-
da não gera impactos só em grupos humanos, mas também em toda
gama de não-humanos envolvidos no processo, referenciados coleti-
vamente pelo seu potencial em manter o equilíbrio ecológico e a bio-
diversidade, ou por representarem fontes importantes de composição
de beleza cênica para o tão idealizado “espaço natural”.
Sendo assim, grupo humanos e não-humanos subalternizados aca-
bam sendo invizibilizados ao longo do processo de desenvolvimento
de políticas públicas (socio)ambientais e, principalmente, ao longo da
sua efetiva implementação.
Nesse sentido, não-humanos são objetificados e veem suas vidas
sendo vinculadas ao potencial de benefícios que podem trazer à vida
humana, sendo negligenciados em seus mais básicos anseios como o
direito à vida, que no caso da discussão em tela foi sumariamente cei-
fado. Pois, ao longo da construção do processo de políticas públicas, a
percepção de indivíduos não-humanos como sujeitos é ausente.
E, nesse sentido, abarca não só a discussão sobre os indivíduos
não-humanos, mas também, justamente, a impossibilidade que se
apresenta para a construção de políticas em que indivíduos humanos
componentes das mais diversas comunidades tradicionais sejam vis-
tos num processo de desumanização de suas vidas e bestialização de
seu modo de viver.
O drama dos incêndios na Amazônia, narrado no estilo twitter e
no estilo neovulgata, aponta para uma espécie de noite de São Bar-
tolomeu8, onde agora os perseguidos são aqueles que impedem a
exploração do minério – índios, quilombolas, caboclos, ribeirinhos,
não-humanos.

8. O massacre da noite de São Bartolomeu ou a noite de São Bartolomeu foi um episódio,


da história da França, na repressão ao protestantismo, engendrado pelos reis franceses, que
eram católicos. Esses assassinatos aconteceram em 23 e 24 de agosto de 1572, em Paris, no
dia de São Bartolomeu. “As matanças, organizadas pela casa real francesa, duraram vários
meses e se espalharam por outras cidades francesas, resultando na morte de entre 30 mil e
100 mil protestantes franceses, chamados huguenotes” (ALTMAN, Marx, 2010, s/p.)

63
Esses grupos humanos e não-humanos que vivem e se estabele-
cem no meio natural, por estarem em constante contato com todos
as etapas do estabelecimento (e do não-estabelecimento) de políticas
públicas socioambientais suportam de modo intensos os riscos que
envolvem as degradações do meio ambiente. Isso porque, nas pala-
vras de Beck (2011, p. 34):

Riscos, assim como riquezas, são objetos de distribuição, constituindo


igualmente posições – posições de ameaça ou posições de classe. Trata-
-se, entretanto, tanto num como noutro caso, de um bem completa-
mente distinto e de uma outra controvérsia em torno de sua distribui-
ção. No caso das riquezas sociais, trata-se de bens de consumo, renda,
oportunidades educacionais, propriedade etc., como bens escassos co-
biçados. Em contraste, as ameaças são um subproduto modernizacional
de uma abundância a ser evitada. Cabe ou erradica-la ou então negá-la,
reinterpretando-a. A lógica positiva da apropriação é assim confrontada
por uma lógica negativa do afastamento pela distribuição, rejeição, nega-
ção e reinterpretação.
Enquanto renda, educação, etc. forem para o indivíduo bens consumí-
veis, tangíveis, a existência e a distribuição de ameaças e riscos serão me-
diadas de modo invariavelmente argumentativo.

Esses indivíduos acabam por arcar com riscos e ameaças constan-


tes ao seu modo de vida e à sua cultura, além de ficarem a mercê
do Estado que passa a controlar seus hábitos e limitar suas atividades
e seus corpos. Por outro lado, a inação do Estado os deixa a mercê
estritamente do processo capitalista de dominação de riquezas e ter-
ritórios.
Nesse sentido, concorrem as discussões acerca, por um lado, de
uma política pública de determinação de espaços a serem preservados
e de garantias mínimas de proteção àqueles espaços e aos indivíduos
humanos e não-humanos que o compõem num modelo biopolítico

64
de controle de corpos e modos de viver ou, por outro lado, a inexecu-
ção de uma política preservacionista, com a não delimitação de espa-
ços a serem preservados e a sobreposição do poder da força e do capi-
tal perante a esses indivíduos humanos e não-humanos vulneráveis.
E para analisar essa segunda vertente, o conceito de biopolítica
por si só já não se faz mais suficiente. Como bem traz Mbembe (2017,
p. 108):

A noção de biopoder será suficiente para designar as práticas contem-


porâneas mediante as quais o político, sob a máscara da guerra, da resis-
tência ou da luta contra o terror, opta pela aniquilação do inimigo como
objetivo prioritário e absoluto? A guerra, não constitui apenas um meio
para obter a soberania, mas também um modo de exercer o direito de
matar. Se imaginarmos a política como uma forma, devemos interrogar-
-nos: qual é o lugar reservado à vida, à morte e ao corpo humano (em
particular o corpo ferido ou assassinado)? Que lugar ocupa dentro da
ordem do poder.

No cenário político atual, a não manutenção das vidas se faz de


modo a embasar o modelo de necropolítica estatal. Isso porque,
como podemos perceber ao longo da análise dos dados, ainda que a
identificação e definição de unidades de conservação e de terras indí-
genas se dê de modo a construir uma série de barreiras e limitações
que atendem a certa docilização de corpos de diversos indivíduos
humanos e não-humanos, que são diretamente afetados com sua im-
plantação, a inexistência desses espaços protegidos se faz ainda mais
ameaçadora à sua existência, colocando-os diante do processo desen-
volvimentista sem qualquer aparato garantidor.
Nesse sentido Lima (2018, p. 2) traz que:

[...] acoplamento entre os diagramas de poder - soberania-disciplina-bio-


poder-biopolítica-necropolítica - se configurando numa bio-necropolítica

65
que nos coloca frente aos desafios atuais para pensar a emergência e
pulverização microcapilares das relações e mecanismos de poder, prin-
cipalmente em contextos sociais advindos dos processos de colonização
e onde os elementos de colonialidade ainda são fortes. Nestes contextos,
a vida (a bios) não foi o lugar historicamente onde as redes de poder
encontraram territórios privilegiados, mas a morte e a possibilidade do
matável constituiu o organizador das relações sociais.

Por isso que a análise do episódio das queimadas, no que tange


não só às políticas públicas que envolvem o meio ambiente, mas tam-
bém às decisões políticas que vêm sendo tomadas pelo Poder Execu-
tivo (ou melhor que, em regra geral, não vem sendo tomadas) se faz
através da análise da bionecropolítica. A junção dos dois modelos é
fundamental para se compreender de modo global as discussões acer-
ca dos corpos dos afetados pelas políticas socioambientais (sejam eles
humanos ou não-humanos). Esses indivíduos que, por um lado, ficam
limitados em sua existência dentro de áreas protegidas e, por outro
lado, têm suas vidas constantemente ameaçadas pelos processos de
expansão do agronegócio, com o desmatamento e a grilagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Sem a pretensão de exaurir os caminhos que podem levar à reflexão
da temática, o desenvolvimento do trabalho buscou apresentar o qua-
dro das queimadas na floresta amazônica brasileira, no ano de 2019,
para que se possa refletir sobre como os discursos de negação de de-
gradação ambiental, bem como os de reforço da política de agrone-
gócio causam sofrimento, dor e morte; sem deixar de avaliar que em-
bora a perspectiva internacional de preservação dos espaços naturais
seja de extrema importância, a percepção vinculada diretamente a
um modelo de natureza em que humanos e não-humanos se colocam
em fronteiras opostas reforça a opressão à comunidades tradicionais

66
que vem sendo diretamente afetadas pelas queimadas, bem como a
não-humanos que são postos em espaço de vidas menos relevantes,
tendo sua preservação vinculada somente no limite da necessidade à
conservação da vida humana.
O apagamento cultural, pessoal e simbólico das populações que vi-
vem na floresta é constante e sistemático, a ponto de suas lutas e corpos
serem apagados, mesmo em desastres onde suas vidas são diretamente
atingidas, como foi o caso das queimadas. Assim, dentro dessa perspec-
tiva, é possível compreender como o desenvolvimento de políticas pú-
blicas socioambientais no Brasil e, mais precisamente, a escolha política
pela não-ação pela proteção socioambiental e a garantia dos direitos
dos indivíduos humanos e não-humanos nos ecossistemas de floresta
se faz a partir de um modelo bionecropolítico, onde o Estado opta por
uma estrutura de ação que é feita para destruir, calar e exterminar.

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C3%A3o-atual-1.361376, 3 de janeiro de 2020.

67
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68
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69
“QUANDO A BOIADA DO VENENO PASSA”:
A ESCALADA DE REGISTROS DE NOVOS
AGROTÓXICOS NO GOVERNO BOLSONARO
Roberta Oliveira Lima
Valter Lúcio de Oliveira

INTRODUÇÃO
É possível identificar na história da agricultura a existência de dife-
rentes sistemas agrícolas como bem descrito por Mazoyer e Rou-
dart (2010). Mas sua longa história, marcada por uma lenta evolu-
ção, segundo alguns historiadores (Bourg, 1999), irá experimentar
transformações mais intensas apenas a partir da Segunda Guerra
Mundial. Essas transformações se traduziram na introdução de di-
versos tipos de maquinários e na sua massiva quimificação: novos
tipos de fertilizantes e os diversos tipos de biocidas ou agrotóxicos.
Esse processo marca uma dinâmica de crescente artificialização da
agricultura (Bourg, 1999) e sua quase completa “captura” por um
tipo de capitalismo que irá se desenvolver no campo e transformar
as suas relações sociais.
As ciências sociais já dedicaram muitas pesquisas visando com-
preender esse processo de penetração do capitalismo no campo,
particularmente no que se refere aos seus efeitos sociais 1. Che-
gamos, contemporaneamente, à prática predominante de uma
agricultura em que os seus atores desconsideram qualquer pos-
sibilidade de prescindir dessas tecnologias. Identifica-se um pro-
cesso de naturalização de um modelo técnico que, segundo seus

1. Ver, dentre outros, Martins (2010), Tavares dos Santos (1978), Niederle e Wesz Jr. (2018).

71
promotores, é o único capaz de atender as “funções” esperadas do
setor agrícola.
Nas análises que desenvolveremos neste capítulo, partimos do
princípio sociológico de que a realidade social é um efeito de lutas
simbólicas, disputas e relações de poder (BOURDIEU, 1989). Portan-
to, a construção de um modelo de agricultura altamente dependente
da indústria, tanto as que fornecem os insumos e maquinários quanto
as que absorvem a sua produção não é algo inscrito na natureza das
coisas, mas se constitui em um resultado, muitas vezes imprevisto, de
disputas e jogos de interesses que envolvem atores individuais e co-
letivos dos setores públicos e privados. Nesse sentido, consideramos
que a incorporação de novas técnicas e tecnologias na agricultura são
um campo de análise das ciências sociais e é isso que faremos nesse
artigo ao examinar as discussões e aprovações de novos agrotóxicos
pelo poder público.
Se a realidade social é um efeito das relações de poder, devemos
constatar que determinados contextos e conjunturas são mais ou
menos favoráveis a estes atores em disputas. E, neste caso, após o
que alguns autores vem chamando de “agrogolpe” (MITIDIERO,
2018; LIMA; PEREIRA, 2018), o processo de destituição da presi-
denta Dilma Rouseff que contou, de forma decisiva, com a atuação
e os votos da poderosa Frente Parlamentar da Agropecuária, ou
como é mais conhecida, Bancada Ruralista, a porteira não foi ape-
nas aberta, mas quase que completamente eliminada em benefício
do agronegócio2. Como se constata, as principais multinacionais
produtoras dos agrotóxicos são também financiadoras do IPA – Ins-
tituto Pensar Agropecuária que reúne diversas associações vincula-
das ao agronegócio e, além de articular as pautas cumprindo uma
típica função de lobby, também financia a Bancada Ruralista. Nesse

2. Sobre o desmonte das políticas públicas para o rural e para o meio ambiente ver Sabou-
rin et al (2020).

72
sentido, não é de se admirar que as aprovações de novos agrotóxi-
cos tenham avançado como um meteoro nos últimos 3 anos, desde
a chegada ao poder do golpista Michel Temer e da eleição de Jair
Bolsonaro.
O presente artigo tem, portanto, como objetivo principal investi-
gar a liberação de agrotóxicos após o golpe de 2016 e, particularmente
a partir do governo Bolsonaro nos anos de 2019 e 2020 utilizando as
informações emitidas pelo poder público e encontradas em diferen-
tes mídias, sobretudo através do perfil do Twitter chamado @Robotox.
Robotox, como ficará mais claro, é um mecanismo criado pela Agên-
cia Pública e pelo Repórter Brasil que informa, a cada dia, se algum
agrotóxico foi liberado.
Esse artigo está dividido em três partes. A primeira busca descrever
os processos agroprodutivos existentes no país e sua relação de depen-
dência com os pacotes tecnológicos que envolvem os maquinários, as
novas variedades transgênicas e os agrotóxicos. Ainda nesta parte fare-
mos referência a uma nova modalidade de produtos provenientes da
agricultura chamados de alimentos biofortificados. Na segunda parte
destacaremos alguns estudos que apontam para os potenciais danos
causados pelos agrotóxicos no meio ambiente e na saúde humana. E,
por fim, apresentaremos o perfil do Twitter chamado @Robotox, que
monitora os registros de aprovação de novos agrotóxicos no Brasil,
através das publicações no Diário Oficial da União e analisaremos os
dados gerados por este mecanismo, assim como traremos informa-
ções obtidas a partir da imprensa.

73
1. MODELOS AGROPRODUTIVOS: AGROTÓXICOS,
TRANSGÊNICOS E ALIMENTOS BIOFORTIFICADOS.

O Brasil, mesmo não sendo berço de nascimento da Revolução


Verde3, Revolução Genética4 e Biofortificação, conquistou um solo
fértil para o crescimento destes modelos agroprodutivos que estão
alicerçados no uso intensivo de agrotóxicos e transgênicos aplica-
dos em sistemas de monocultivos. Em nosso país, estes modelos são
sustentados por diversas políticas públicas que visam facilitar e am-
plificar a expansão e acumulação capitalista na agricultura.
De acordo com a legislação vigente no Brasil (Lei n. 7.802/89), os
agrotóxicos são produtos e agentes de processos físicos, químicos ou
biológicos utilizados nos setores de produção, armazenamento e be-
neficiamento de produtos agrícolas, pastagens, proteção de florestas,
nativas ou plantadas e de outros ecossistemas e de ambientes urba-
nos, hídricos e industriais. (BRASIL, 1989). É a partir dessa definição
legal que são sistematizadas as aprovações de novos agrotóxicos por
parte das diversas mídias especializadas e, especialmente, por parte
do @Robotox.
A legislação que trata dos transgênicos, por sua vez, foi promulga-
da em 2005 (Lei n 11.105), conhecida como Lei de Biossegurança, a
qual estabelece normas de segurança e mecanismos de fiscalização so-
bre a construção, o cultivo, a produção, a manipulação, o transporte,

3. Revolução Verde constituiu o estágio de produção da agricultura baseado no aumento espe-


tacular da mecanizaçãoe quimificação do processo produtivo que, por sua vez, se traduziu no
aumento significativo da produtividade ocorrido em várias partes do mundo nos anos 1950/60.
O desenvolvimento tecnológico alcançado com as duas grandes guerras mundiais foi revertido
e adaptado a outros setores, especialmente o agrícola. Chamou-se Revolução Verde porque era
considerada uma via de transformação do mundo e de eliminação da fome sem a necessida-
de de uma Revolução Vermelha, que, naquela época, conquistava muitos adeptos. Chegou-se,
inclusive, a laurear aquele que é considerado o pai da RV, o agrônomo Norman Borlaug com
o Prêmio Nobel da Paz de 1970. Como a história vem demonstrando, apesar do mesmo argu-
mento ser recorrentemente utilizado, a fome não se resolve com tecnologia, mas com distribui-
ção de renda. Para maiores informações ver Oliveira (2004) e Lima (2019).
4. Podemos considerar como revolução genética a introdução dos Organismos Genetica-
mente Modificados (OGM) na agricultura.

74
a transferência, a importação, a exportação, o armazenamento, a pes-
quisa, a comercialização, o consumo, a liberação no meio ambiente e
o descarte de organismos geneticamente modificados (OGM) e seus
derivados, tendo como diretrizes o estímulo ao avanço científico na
área de biossegurança e biotecnologia, a proteção à vida e à saúde
humana, animal e vegetal e a observância do princípio da precaução
para a proteção do meio ambiente (BRASIL, 2005). Assim, temos que
alimentos transgênicos são aqueles geneticamente modificados no
laboratório e denominam-se sementes transgênicas as que possuem
material alterado por meio de inoculação de genes provenientes de
outros organismos. (SIRVINSKAS, 2015, p. 710).
Vale acentuar que a transgenia se constitui numa técnica que am-
pliou enormemente as possibilidades de mercantilização da natureza
(Benthien, 2006; Oliveira; Bühler, 2016) e de acumulação do capi-
tal. Com a possibilidade de manipulação do código genético a bio-
diversidade se converte em um conjunto de informações a serem
decifradas e, se do interesse do capital, utilizada para acumular (Ben-
thien, 2006). Esse tipo de perspectiva gerida pelo mercado impõe à
sociedade dilemas éticos importantes na sua relação com a natureza.
Quais os limites aceitáveis de manipulação da vida? Até que ponto a
sociedade está disposta a aceitar os riscos inerentes? Em uma questão:
qual o valor da vida?
Outro “produto” que está relacionado a esse processo de desenvol-
vimento de novas técnicas e tecnologias são os chamados alimentos
biofortificados. Tratam-se de variedades de plantas que passam por
um processo de “melhoramento” genético convencional, ou seja, no
atual estágio em que se encontram não utilizam a técnica da trans-
genia, e visam “aumentar a concentração de um ou mais micronu-
trientes específicos, como por exemplo, maiores teores de ferro, zin-
co e vitamina A” (FBSSAN, 2016). Em relação a este tema o Fórum
Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBS-
SAN) tem acompanhado o debate sobre a manipulação de plantas

75
destinadas a aumentar o conteúdo de micronutrientes e informou, de
forma crítica, no ano de 2016, que as intervenções no campo da bio-
fortificação tem ocorrido sob uma ótica tecnocrata, sendo financiadas
por interesses privados. (FBSSAN, 2016)
O termo biofortificação tem origem no IFPRI (sigla em Inglês do
Instituto Internacional de Pesquisa em Política Alimentar) que desde
o início da década de 1990 buscou a criação de novas variedades de
alimentos mais ricos em nutrientes5. No Brasil essa proposta foi en-
campada por pesquisadores da Embrapa (Empresa Brasileira de Pes-
quisa Agropecuária) a partir de 2002. Seu surgimento se dá no âmbito
das estratégias de correção técnica da baixa ingestão de micronutrien-
tes pela população, mas o que preocupa as organizações que com-
põem o FBSSAN é que se trata de uma proposta que induz a ideia
de que os alimentos que não passam por esse processo são carentes
de nutrientes ou que estas plantas são mais fortes que as demais.
Apontam ainda que nem sempre o teor de nutrientes representa um
acréscimo e em alguns casos observou-se um decréscimo nutritivo.
Mesmo no caso de aumento de nutrientes, os efeitos nem sempre são
benéficos, podendo constituir fatores que potencializam certas doen-
ças como o câncer. Além disso, ao longo de todos estes anos, em ne-
nhum momento buscou-se alguma concertação com a sociedade civil
para apresentação e discutição de tais pesquisas, mas, por outro lado,
muitos atores poderosos do setor agroalimentar participam e inves-
tem pesados recursos nessas pesquisas, sinal de que outros interesses
certamente estão em jogo.
Os modelos agroprodutivos acima descritos são constantes e majo-
ritários no atual modo de se produzir alimentos no país, destacamos,

5. Para um histórico desse processo nos EUA ver https://www.harvestplus.org/about/


our-history (Consultado em 14/01/2021) e para um histórico crítico da implantação dos
biofortificantes no Brasil ver Boletin da FBSSAN, disponível em https://f bssan.org.br/wp-
-content/plugins/download-attachments/includes/download.php?id=1098 (Consultado em
14/01/2021). Para conhecer a RedBiofort, rede de pesquisadores em biofortificantes ver ht-
tps://biofort.com.br/rede-biofort/ (Consultado em 14/01/2021).

76
também, que diante do cenário apresentado de uma produção me-
canizada e artificializada, o Brasil tem apresentado protagonismo no
uso de agrotóxicos e ultrapassou, no ano de 2008, os Estados Unidos
da América (EUA), assumindo o posto de maior mercado mundial de
agrotóxicos e o segundo maior produtor de transgênicos, com mais
de 42 milhões de hectares plantados com soja, milho e algodão gene-
ticamente modificado (CARNEIRO et al, 2015; BOMBARDI, 2016 ;
GREENPEACE, 2017 e LONDRES, 2011).
O Dossiê Abrasco6, inclusive, comunica que desde o ano de 2015,
o cidadão brasileiro consome em média 7,5 litros de veneno por ano
em consequência da utilização de agrotóxicos. Algumas regiões apre-
sentam níveis de consumo ainda mais elevados, como o Rio Grande
do Sul, que chega a 8,3 litros e a região noroeste do país que supera os
16 litros por ano (CARNEIRO et al, 2015).
O cenário que há tempos se mostra desolador apresenta, infelizmen-
te, um agravamento desde o ano de 2016, conforme veremos mais adian-
te, e uma exponencial piora desde 2019, primeiro ano do governo Bol-
sonaro, com um incremento robusto na liberação de novos agrotóxicos.
Em missão no país, Baskut Tuncak7, relator especial da ONU, aler-
tou para o ritmo de liberação de agrotóxicos no Brasil e chamou a
atenção para a área de “Implicações da gestão e eliminação ambien-
talmente racional de substâncias e resíduos perigosos”. Ao encerrar
uma missão oficial, após 11 dias no país, o relator criticou a liberação

6. A ABRASCO – Associação Brasileira de Saúde Coletiva objetiva atuar como mecanismo


de apoio e articulação entre os centros de treinamento, ensino e pesquisa em Saúde Coleti-
va para fortalecimento das entidades associadas e ampliação do diálogo com a comunidade
técnico-científica e desta com os serviços de saúde, as organizações governamentais e não
governamentais e a sociedade civil e produz Dossiês multitemáticos, ganhando especial rele-
vância nacional e internacional o Dossiê que trata do uso de agrotóxicos citado na presente
obra. Mais informações podem ser coletadas em: https://www.abrasco.org.br/site/ . (Con-
sultado em 14/01/2021).
7. O relatório final saiu no final do ano passado e pode ser acessado pelo link:https://www2.
camara.leg.br/atividade-legislativa/comissoes/comissoes-permanentes/cdhm/noticias/re-
latorio-taskut-1 (Consultado em 14/01/2021).

77
de novos pesticidas pelo governo, pois em menos de um ano de man-
dato, a gestão autorizou mais de 400 produtos a circularem no merca-
do nacional (GIOVANAZ, 2020).
Segundo o relator, o país segue um caminho de regressão rumo a
um futuro muito tóxico e salienta que as ações do governo liberaram
uma onda catastrófica de pesticidas tóxicos, desmatamento e minera-
ção que vão envenenar as gerações futuras, caso ações urgentes não
sejam adotadas, ressaltando a necessidade de o país abraçar uma polí-
tica de desenvolvimento sustentável (GIOVANAZ, 2020).
Ao mesmo tempo em que nos vemos em um cenário de recrudesci-
mento do uso de agrotóxicos, o que já temos disponibilizado para uso
na agricultura é potencialmente causador de sérios danos para a saúde
coletiva e para o meio ambiente, conforme veremos no tópico a seguir.

2. EFEITOS DOS AGROTÓXICOS SOBRE A SAÚDE HU-


MANA E O MEIO AMBIENTE.

Conforme Jouzel (2019), em 2015 o Centro Internacional de Pesquisa


sobre o Câncer (CIRC sigla em francês) agência vinculada à Organiza-
ção Mundial da Saúde (OMS) que desde 1965 é responsável por identi-
ficar os fatores de risco cancerígeno aos quais as populações humanas
são expostas, publicou seu 112º relatório em que classifica o glifosato,
o diazinon e o malathion como “cancerígenos prováveis” para o ho-
mem e o tetrachlorvinphos e o parathion como “cancerígenos possí-
veis”. Por um lado, a contestação deste relatório para o caso do glifo-
sato foi imediata, tanto pela empresa responsável por sua produção à
época, a Monsanto, quanto pelas agências nacionais responsáveis por
avaliar tais produtos8. Por outro lado, ONGs ambientalistas, jornalis-

8. Não fica claro pelo exposto por Jouzel (2019), mas para os demais produtos citados esse
grau de contestação dos resultados não foi significativo, ou seja, se aceita o fato de que sejam
cancerígenos. Dos pesticidas citados, além do glifosato, ao menos o malation e o diazinon
são autorizados no Brasil.

78
tas e partidos políticos apontam que este relatório só confirma o que
já se denunciou em diversos momentos: o quanto essas agências lo-
cais tomam suas decisões influenciadas por ligações que estabelecem
com as empresas interessadas, seja na forma de pressão política, fi-
nanciamento, intimidação9. O caso que ficou conhecido como “Mon-
santo Pappers”, conjunto de documentos internos da empresa que foi
tornado público em março de 2017 pela justiça dos EUA, após milha-
res de agricultores e jardineiros acometidos por câncer moverem um
processo coletivo contra a empresa também apontam nesse sentido
( Jouzel, 2019, p.05-07). Ou seja, a forma pouco honrada de agir da
empresa e o fato de que seu produto pode, sim, estar na origem de
doenças cancerígenas.
Mas Jouzel (2019, p. 10) aponta também para o fato de que essas
agências não olham para os mesmos dados e nem os analisam da mes-
ma maneira e se lança a uma questão que deveria interessar a todos:
por que conhecemos tão mal os efeitos dos pesticidas mesmo diante
de tantas pesquisas e agências responsáveis pelo seu controle? A con-
trovérsia ao redor do glifosato expõe o quanto de ignorância circula
ao redor desse tema tão caro à saúde humana e ao meio ambiente.
Ao falarmos dos efeitos dos agrotóxicos sobre a saúde humana,
nos deparamos com as questões apontadas acima, que se situa no
campo das incertezas, muitas das quais devido à estratégia de sempre
“produzir a dúvida” sobre a periculosidade dos agrotóxicos e assim
“capturar” as autoridades responsáveis por controlá-las. Mas, além
disso, salientamos que existem os casos de intoxicação direta por estes
produtos. E é importante destacar que, em relação ao tema, há um
expressivo número de subnotificações por envenenamento, aproxi-
madamente 1 para cada 50 (LONDRES, 2011; BOMBARDI, 2017).

9. Esses conflitos de interesse e formas de pressão envolvendo a Monsanto são bem docu-
mentados pela jornalista Marie-Monique Robin em seu livro “O mundo segundo a Monsan-
to” e em seu documentário homônimo.

79
As intoxicações são fator gerador de um elevado número de ten-
tativas de suicídio no campo, sendo os envenenamentos agudos por
agrotóxicos caracterizados por efeitos como irritação da pele e olhos,
coceira, cólicas, vômitos, diarreias, espasmos, dificuldades respiratórias,
convulsões e morte. Dentre os efeitos associados à exposição crônica a
ingredientes ativos de agrotóxicos podem ser citados infertilidade, im-
potência, abortos, malformações, neurotoxicidade, desregulação hor-
monal, efeitos sobre o sistema imunológico e câncer. (LIMA, 2019)
Em reportagem intitulada: “Depressão e suicídio: 1569 brasileiros se
mataram tomando agrotóxicos na última década”, o Repórter Brasil,
utilizando como base de dados o mais recente Boletim Epidemiológi-
co do Ministério da Saúde e as fichas de notificação do Sinan, informou
que 55,6 mil pessoas se mataram no Brasil entre 2011 e 2015. O principal
meio utilizado foi o enforcamento, com 61,9% dos casos, seguido por in-
toxicação exógena (17,7%), que inclui envenenamento por agrotóxicos
ou medicamentos. (FONSECA, et. al., 2020) Já em todo o mundo ocor-
rem cerca de 800 mil casos de suicídio por ano e que uma a cada cinco
mortes, ou seja, 20%, acontece por auto-envenenamento com agrotóxi-
cos, segundo relatório da Organização Mundial da Saúde (OMS) citado
na matéria produzida. A maioria das mortes ocorreu em zonas rurais de
países com baixa e média renda, como o Brasil. (FONSECA, et.al., 2020)10
Apesar do grave quadro desenhado pelo uso indiscriminado de agro-
tóxicos até aqui, o cenário que envolve o uso de agrovenenos não é pa-
cífico, sendo alvo de disputas na seara científica, com a ocorrência de
variados ataques, muitas vezes eivados de retóricas de ocultação e des-
qualificação de trabalhos críticos aos agrotóxicos, além da mercantiliza-
ção da produção científica, blindagem institucional, criminalização de

10. Nas últimas décadas diversos estudos no Brasil e no exterior buscaram compreender a
razão de tantas pessoas estarem usando agrotóxicos para o cometimento de suicídio, que
embora reconhecido pela medicina como uma prática de comportamento multifatorial,
apresenta relação com alguns tipos de pesticidas que podem atingir o sistema nervoso cen-
tral dos seres humanos, causando diversas consequências, como a depressão. (FONSECA,
et.al., 2020)

80
pesquisadores e promoção de falta de liberdade científica por parte dos
defensores do atual modelo agroprodutivo. Além disso, são em número
reduzido os pesquisadores em regiões do agronegócio do país e em nú-
mero ainda menor os cientistas que tratam do trabalhador rural, toxicida-
de de agrotóxicos, saúde e meio ambiente (CARNEIRO et al, 2015).
Internacionalmente, podemos destacar a realização do Tribunal
Monsanto em outubro de 2016 em Haia (Holanda). As sessões do Tri-
bunal ocorreram nos dias 15 e 16 no Institute of Social Studies (ISS) e
cinco juízes internacionais ouviram cerca de 30 testemunhas e especia-
listas de 5 continentes. O parecer jurídico foi comunicado pelos juízes
em 18 de abril de 201711. O Funcionamento do Tribunal operacionali-
zou-se através da utilização das seguintes diretrizes jurídicas: Princípios
Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e Direitos Humanos
aprovados pelo Conselho dos Direitos Humanos da ONU em junho de
2011 e Estatuto de Roma, que está na origem da criação do Tribunal
Penal Internacional (TPI), o qual é competente para julgar os autores
presumidos de crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, cri-
mes de guerra e crime de agressão. (TRIBUNAL MONSANTO, 2017)
Os Princípios Orientadores das Nações Unidas sobre Empresas e
Direitos Humanos de 2011 formularam, da forma mais legítima no
plano internacional, as responsabilidades das empresas no que tange
aos direitos humanos e estabeleceram que estes devem ser respeitados
pelas empresas em sua totalidade , incluindo o direito à vida, o direito
à saúde e o direito a um ambiente saudável. Antes do evento, grupos
de trabalho estudaram o impacto das atividades da, hoje extinta, Mon-
santo12 nas seguintes seis áreas: direito a um ambiente saudável; direito

11. A íntegra do parecer pode ser acessada neste link: https://pt.monsantotribunal.org/


upload/asset_cache/1024736942.pdf (Consultado em 25/01/2020).
12. É válido mencionar o fato da Monsanto ter sido comprada pela Bayer e estar em pro-
cesso de apagamento da marca. Cf.: BARROS, Bettina; PRESSINOTT, Fernanda. Após duas
décadas sob ataque, marca Monsanto será extinta. Valor Econômico, 05 jun. 2018. Disponível
em: https://valor.globo.com/agronegocios/noticia/2018/06/05/apos-duas-decadas-sob-a-
taque-marca-monsanto-sera-extinta.ghtml (Consultado em 19/01/2021)

81
à saúde; direito à alimentação; liberdade de expressão; liberdade de in-
vestigação acadêmica e crime de ecocídio (LIMA, 2019)
Mais recentemente a empresa Monsanto sofreu novo revés em seus
negócios em função do decreto do governo mexicano que interditou
o glifosato e o milho transgênico. O produtores agrícolas terão 3 anos
para se adequar a estas normas. A partir deste decreto, os órgãos públi-
cos estão proibidos de adquirir, utilizar, distribuir, promover e importar
o glifosato ou produtos que o tenham como princípio ativo. No caso do
milho transgênicos o decreto impede que novas licenças sejam emitidas
e ordena a revogação daquelas já autorizadas até 31 de janeiro de 2024.13
De maneira crítica e combativa e através da mobilização da sociedade
civil, temos a ONG internacional Greenpeace, que vem expondo e questio-
nando o modelo agrícola brasileiro, bem como o uso de OGMs, a expansão
da agropecuária sobre as florestas nativas, o uso massivo de agrotóxicos e os
impactos socioambientais e climáticos daí advindos (GREENPEACE, 2017).
Mais recentemente, a Secretaria do Conselho de Direitos Humanos
da ONU emitiu Relatório tratando da temática do Direito Humano à Ali-
mentação Adequada - DHAA, o qual foi amplamente noticiado nos mais
diversos meios de comunicação de massa em que dizia, de forma geral,
que a “ONU desmentia a necessidade da utilização de pesticidas para ali-
mentar o mundo”14. O referido relatório fazia a defesa de uma transição
agroecológica em relação ao modelo de produção alimentar do planeta,
sob pena de violação do DHAA e da solidariedade intergeracional, dada
a insustentabilidade das atuais práticas de produção agrícola (SHAREED,
2017). O próprio relatório da missão realizada no Brasil pelo representan-
te da ONU, Baskut Tuncak, citado anteriormente, expõe, de forma clara

13. Para maiores informações ver: https://operamundi.uol.com.br/meio-ambiente/68034/


mexico-proibe-glifosato-e-milho-transgenico-agronegocio-tem-3-anos-para-se-adequar (Con-
sultado em16/01/2021)
14. Exemplifique-se pela matéria feita pela redação da Revista Veja com a seguinte chamada:
Necessidade de pesticidas no combate à fome é um mito, diz ONU. Disponível em: https://veja.
abril.com.br/ciencia/necessidade-de-pesticidas-no-combate-a-fome-e-um-mito-diz-onu/.
(Consultado em 19/01/2021)

82
e contundente o posicionamento fortemente crítico da ONU em relação
aos rumos que o país está tomando no que se refere a vários temas e, par-
ticularmente, em relação aos agrotóxicos.
Todo o cenário acima citado parece aterrador, todavia, conforme
temos trazido ao longo do capítulo, o governo Bolsonaro tem atua-
do para torná-lo ainda mais sombrio. Trata-se de um governo que
está longe de buscar a promoção de uma agricultura mais responsável
com humanos e não-humanos, não falamos aqui nem mesmo de uma
transição agroecológica já que as políticas que existiam a partir do
PNAPO - Política Nacional de Agroecologia e Agricultura Orgânica
foram praticamente extintas neste governo (Saborin et al, 2020). In-
dicação de que os rumos adotados, no que se refere aos agrotóxicos,
não são nada animadores poderá ser melhor visualizado no tópico a
seguir, em que trataremos, de forma específica, do registro de aprova-
ção de novos agrotóxicos no país nos anos de 2019 e 2020.

3. O MONITORAMENTO DE REGISTROS DE APROVA-


ÇÃO DE NOVOS AGROTÓXICOS ATRAVÉS DO PROJE-
TO @ROBOTOX

Diante do cenário que caracteriza o modelo agroprodutivo brasileiro, for-


temente dependente do uso de agrotóxicos e transgênicos, e considerando
seus potenciais efeitos deletérios à saúde humana e ao meio ambiente é
que se torna interessante o acompanhamento do registro de aprovação de
novos pesticidas no país. Esse acompanhamento ganha ainda mais relevân-
cia diante de um executivo federal dominado pelos interesses do agronegó-
cio representado por uma poderosa Bancada Ruralista que catalisa os diver-
sos interesses do setor, incluindo os das grandes indústrias dos agrotóxicos.
Diante do recorte assinalado no objetivo geral, nos debruçaremos
sobre os anos de 2019 e 2020, ou seja, os primeiros dois anos do go-
verno Bolsonaro e utilizaremos como principal campo de observação
o perfil do Twitter batizado de Robotox.

83
Robotox nada mais é do que um robô que trabalha publicando no
Twitter todas as novas liberações de agrotóxicos concedidas pelo Go-
verno Federal. Ele é fruto do projeto “Por Trás do Alimento”, sendo
originado de uma parceria entre a Agência Pública e o Repórter Brasil.
Seu lançamento ocorreu no final do mês de abril de 2019 como conse-
quência do elevado número de liberações de agrotóxicos no país, pois
de janeiro de 2019 até o dia 14 de maio do mesmo ano, o Governo Fe-
deral já havia publicado no Diário Oficial da União (D.O.U) a aprovação
de 166 novos registros, sendo 48 deles classificados como extremamen-
te tóxico15. (AGÊNCIA PÚBLICA/ REPÓRTER BRASIL, 2019).
O perfil do projeto está reproduzido abaixo, seu avatar é o de um
robô com máscara de proteção e com um vegetal saindo do topo da
cabeça. Para acessá-lo basta seguir a conta @orobotox, ou clicar no
link: www.twitter.com/orobotox

Figura 1 – print do perfil

15. A chamada de lançamento do projeto Robotox deixa claro que, desde 2016, as liberações
têm batido recordes e que no ano de 2018, 450 pesticidas passaram a ser vendidos no Brasil
em formatos diferentes e que, embora os ingredientes ativos dos produtos já fossem comer-
cializados no país, os novos registros os autorizam para uso em novas culturas, fabricação
por novas empresas ou combinações com outros químicos.

84
Em um levantamento do “Por Trás do Alimento”, site indicado
no perfil do @Robotox, dos 166 pesticidas com registros aprovados
até maio de 2019, apenas 5% eram totalmente produzidos em solo
nacional, sendo demonstrativo, segundo eles, de que estamos nos
tornando cada vez mais, não só consumidores, mas importadores de
agrotóxicos. De acordo com os idealizadores do projeto essa ferra-
menta foi criada “para os cidadãos poderem acompanhar de perto e
com informações oficiais, todos os novos produtos agrotóxicos que
forem liberados no mercado brasileiro. É preciso que essa política te-
nha mais transparência e seja mais debatida com a população”. In-
formam, ainda, que essa é a segunda ferramenta com dados sobre
agrotóxicos lançada no ano de 2019, sendo a primeira o mapa sobre a
contaminação da água que chega às torneiras dos brasileiros. (AGÊN-
CIA PÚBLICA/ REPÓRTER BRASIL, 2019)16.
A persona digital é alimentada através de informações do Diário
Oficial da União (D.O.U) e costuma informar o número total de agro-
tóxicos aprovados, seu grau de toxicidade, o nome do produto, as cul-
turas indicadas para uso e a empresa solicitante da aprovação. O robô
faz postagens todos os dias e quando não ocorrem novas aprovações,

16. “Pioneira do Brasil, a Agência Pública aposta num modelo de jornalismo sem fins lucra-
tivos para manter a independência. Nossa missão é produzir reportagens de fôlego pautadas
pelo interesse público, sobre as grandes questões do país do ponto de vista da população
– visando ao fortalecimento do direito à informação, à qualificação do debate democrático
e à promoção dos direitos humanos. Funcionamos como uma agência: todas as nossas re-
portagens são livremente reproduzidas por uma rede de mais de 60 veículos, sob a licença
creative commons. Entre nossos republicadores estão os maiores portais de notícias do Bra-
sil”. Informações retiradas da página do facebok da agência: : https://www.facebook.com/
agenciapublica (consultado em 17/01/2021)
“A Repórter Brasil foi fundada em 2001 por jornalistas, cientistas sociais e educadores com o
objetivo de fomentar a reflexão e ação sobre a violação aos direitos fundamentais dos povos e
trabalhadores no Brasil. Devido ao seu trabalho, tornou-se uma das mais importantes fontes
de informação sobre trabalho escravo no país. Suas reportagens, investigações jornalísticas,
pesquisas e metodologias educacionais têm sido usadas por lideranças do poder público, do
setor empresarial e da sociedade civil como instrumentos para combater a escravidão con-
temporânea, um problema que afeta milhares de pessoas.” Informações retiradas do site da
organização: https://reporterbrasil.org.br/quem-somos/ (consultado em 17/01/2021).

85
costuma repetir os dados já publicados, descrevendo a contagem atua-
lizada de pesticidas liberados desde o início do ano de 2019 e quantos
produtos são comercializados no Brasil, conforme pode ser observado
no print realizado no dia 05 de janeiro de 2021, ocasião em que o perfil
já contava com 2.182 Tweets, de acordo com a contagem disponível
logo abaixo do nome do perfil, conforme imagem coletada abaixo:

Figura 2 – informações sobre o perfil robotox e sua estratégia de comunicação

Para o presente trabalho, os dados que analisaremos serão aqueles


publicados até a data de 05 de janeiro de 2021, quando o perfil conta-
bilizava 2976 produtos agrotóxicos comercializados em todo o Brasil,
com a aprovação de 910 novos produtos agrotóxicos no governo Bol-
sonaro. Todavia, o ritmo de 2021 parece continuar crescente, pois em
14 de janeiro de 2021, enquanto fechamos as últimas revisões do pre-
sente capítulo, temos mais 88 novos agrotóxicos liberados, perfazendo
um total de 998 novos produtos desde o início do governo Bolsonaro.

86
Conforme já informado, as postagens são maciçamente voltadas
para a contagem dos novos produtos liberados e demais informações
pertinentes, todavia, por vezes, outras postagens são agregadas, seja
através do que se denomina rettweet, (reprodução de uma postagem
de outro perfil) ou de posts próprios, mas sempre orbitando em torno
de temáticas ligadas a persona Robotox, conforme imagens colaciona-
das abaixo:

Figura 3 – exemplos de outros tipos de informações reproduzidos no perfil robotox

O perfil iniciou-se com interações com figuras populares com


grandes números de seguidores como Felipe Neto e Marcelo Adnet,
tática comum para o engajamento digital e trabalho dos algoritmos
dos aplicativos de redes sociais. Em 26 de junho de 2019 ocorreu a
produção de um vídeo, informando que já se tinha o equivalente a

87
mais de 1 agrotóxico registrado por dia no governo Bolsonaro, que
muitos produtos eram de alta toxicidade e que muitas empresas eram
estrangeiras17.
Pelo exposto nas postagens, um artigo não-acadêmico foi feito
com base nos dados compartilhados pela persona na data de 12 de
agosto de 2019, dando origem ao gráfico rettwitado abaixo:

Figura 4 grafico produzido a partir dos dados sistematizados pelo perfil robotox

Em relação ao período pandêmico, o perfil havia alertado sobre as li-


berações exponenciais de agrotóxicos durante a alta curva de contágios,
em maio de 2019, com a liberação de 118 agrotóxicos em dois meses e

17. É o único vídeo postado no perfil e pode ser acessado pelo link: https://twitter.com/
orobotox/status/1144018606654730241 (Consultado em 25/01/2021)

88
meio de pandemia, ou seja, aproveitou-se para “passar a boiada”, con-
forme as palavras do Ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.18
A seguir, apresentamos as postagens que tratam dos novos produ-
tos liberados – foco principal do perfil. Indicaremos as datas dos posts,
os números de novos produtos liberados, bem como os links para
acesso de acordo com o que está contabilizado na página @Robotox.
Com esta tabela expomos os dados de liberação de novos agrotóxicos
de forma mais sistematizadas e, assim, damos uma dimensão geral da
quantidade de produtos e do ritmo de liberação.

Tabela 1 – evolução no número de liberações de novos agrotóxicos

Data Nº de produ- Postagem no twitter


tos liberados
10/01/201919 28 https://twitter.com/orobotox/status/1123286932593807360
10/04/2019 31 https://twitter.com/orobotox/status/1123310958628212739
30/04/2019 14 https://twitter.com/orobotox/status/1123987644927627265
21/05/2019 31 https://twitter.com/orobotox/status/1130901548501020673
24/06/2019 42 https://twitter.com/orobotox/status/1143106163405447169
22/07/2019 51 https://twitter.com/orobotox/status/1153340009702993921
17/09/2019 63 https://twitter.com/orobotox/status/1173896745559973888
03/10/2019 57 https://twitter.com/orobotox/status/1180187097258500096
27/11/2019 57 https://twitter.com/orobotox/status/1199630197969936384
27/12/2019 36 https://twitter.com/orobotox/status/1210486733835399170
04/03/202020 48 https://twitter.com/orobotox/status/1235306914864603136
30/03/2020 18 https://twitter.com/orobotox/status/1244711600570892288
28/04/2020 16 https://twitter.com/orobotox/status/1255241969498042369

18. G1. Ministro do Meio Ambiente defende passar ‘a boiada’ e ‘mudar’ regras enquanto
atenção da mídia está voltada para a Covid-19. Disponível em: https://g1.globo.com/poli-
tica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-re-
gramento-e-simplificar-normas.ghtml (Consultado em: 08 Jan. 2021)
19. Apesar das postagens serem iniciadas apenas em 30 de abril de 2019, os posts de referido
mês trazem informações do dia 10/01/2019 e 10/04/2019.
20. 01/01/2020 começou com 503 agrotóxicos – contabilizados desde janeiro de 2019. Dis-
ponível em: https://twitter.com/orobotox/status/1212525164081975296 (Consultado em:
08 Jan. 2021).

89
Data Nº de produ- Postagem no twitter
tos liberados
13/05/2020 22 https://twitter.com/orobotox/status/1260667874286460931
16/06/2020 27 https://twitter.com/orobotox/status/1272877867999752192
09/07/2020 21 https://twitter.com/orobotox/status/1281152391878807552
10/08/2020 06 https://twitter.com/orobotox/status/1296931847516098560
21/08/2020 28 https://twitter.com/orobotox/status/1296931847516098560
15/09/2020 15 https://twitter.com/orobotox/status/1305961196370235392
23/09/2020 31 https://twitter.com/orobotox/status/1308678787387678720
23/10/2020 12 https://twitter.com/orobotox/status/1319625923486871554
28/10/2020 16 https://twitter.com/orobotox/status/1321362366437601280
24/11/2020 24 https://twitter.com/orobotox/status/1331161941662830592

Através dos resultados extraídos da tabela acima, é possível obser-


var uma certa inconsistência entre os dados apresentados nos posts
que tratam dos números totais de novos produtos liberados – 910 no-
vos pesticidas e a soma da tabela – 694 pesticidas. Há uma diferença
específica de 216 produtos.
Observarmos, entretanto, que algumas postagens feitas ao lon-
go da TimeLine (TL) do perfil apresentam números totais, cite-se o
exemplo do primeiro post que já trazia um montante de 116 agro-
tóxicos e outra chamada de 13 de maio de 2020 que falava de 118
agrotóxicos, em um período de dois meses e meio, e que perfazem,
sozinhos, um total de 234 novos produtos liberados, os quais, so-
mados aos 694 extraídos da tabela elaborada acima, totalizam um
número de 928 novos agrotóxicos, fazendo com que a diferença
entre o total de produtos apresentados nas postagens do perfil e as
analisadas individualmente pela tabela, caia para apenas 18 novos
produtos.
Ao que tudo indica, trata-se de projeto que se utiliza de IA (Inte-
ligência Artificial), o que talvez gere as possíveis insubsistências aqui
apontadas, servindo, de toda forma, a uma visão qualitativa e quanti-
tativa sobre o cenário de aprovação de agrotóxicos no país, que cresce
em marcha exponencial. Aproveita-se o ensejo para a reprodução de

90
gráfico presente no perfil do twitter em comento e que é frequente
no site “por Trás do alimento”, o qual reproduzimos abaixo:

Figura 5 – evolução do número de agrotóxicos21

A curva de aprovação de novos registros vem crescendo de forma


vertigiona desde 2016. No próprio período pandêmico, a prevenção,
controle e erradicação de pragas e doenças, bem como as atividades
de suporte e disponibilização dos insumos necessários à cadeia produ-
tiva, que incluem os defensivos agrícolas, foram consideradas ativida-
des essenciais, não devendo ser interrompidas de acordo com a Medi-
da Provisória 926, convertida na Lei 14.035/20 e o Decreto 10.282/20,
ainda em vigor. Fato criticado pela Campanha Permanente Contra
os Agrotóxicos e Pela Vida que alegou que: “Em meio à pandemia de
coronavírus, confusão generalizada no Governo Federal, caos na saú-
de pública e colapso econômico, o Ministério da Agricultura segue a
marcha do veneno.” (GRIGORI, 2020)

21. Disponível em: https://twitter.com/orobotox/status/1130524227327733761/photo/1


(Consultado em 21/01/2021)

91
Frise-se, ainda, que o o setor agrícola não foi afetado pela cri-
se decorrente do COVID-19. O PIB (Produto Interno Bruto) do
agronegócio cresceu 2,42% em janeiro e fevereiro, segundo uma
pesquisa da USP (Universidade de São Paulo) e a CNA (Confede-
ração da Agricultura e Pecuária do Brasil (GRIGORI, 2020). Aliás,
as exportações chegaram a afetar o valor de produtos essencias na
mesa da família brasileira, pois o preço do arroz disparou nos su-
permercados nos meses de agosto e setembro e um pacote de cinco
quilos, normalmente vendido por cerca de R$ 15,00 chegou a cus-
tar R$ 40,00.
Segundo a Associação Paulista de Supermercados, os aumentos fo-
ram repassados pelos fornecedores e foram decorrentes das variáveis
mercadológicas como maior exportação, câmbio e quebra de produ-
ção. Para a Associação Brasileira da Indústria do Arroz (Abiarroz), o
produto comprado dos produtores pelas indústrias ficou 30% mais
caro só em agosto, a alta do arroz está ligada à valorização do dólar,
que torna as exportações mais lucrativas para os produtores. (CIRIL-
LO, 2020).
O movimento geoeconômico é fulcral para compreender tanto o
preço das commodities, como a liberação de novos produtos agrotóxi-
cos no país, pois durante a análise dos posts oriundos do perfil Robo-
tox, ficou perceptível que boa parte dos novos pedidos de aprovação
são provenientes de gigantes do setor agroprodutivo como: Bayer,
Syngenta, Basf, Du pont, etc., além da brasileira Nortox e da chine-
sa Adama.
Encontramos consonância de referidos produtores no gráfico abai-
xo, produzido por Larissa Bombardi e que sinaliza a participação das
13 maiores empresas de agrotóxicos nas vendas mundiais.

92
Figura 6 Participação das 13 maiores empresas de agrotóxicos
nas vendas mundiais (Fonte: BOMBARDI, 2016, p. 27)

Chama-nos a atenção o fato do atual Ministério das Relações Ex-


teriores (MRE), hoje nas mãos do olavista Ernesto Araújo, se colo-
car contra o globalismo e a China de forma reiterada em posts na
mesma rede social (Twitter), ao mesmo tempo em que o setor do
agronegócio manifesta sua dependência das diversas multinacionais
do veneno, fruto, em grande medida, do multilateralismo das rela-
ções comerciais.
Ressaltamos, por fim, que hoje pouco se fala do ruidoso “Paco-
te do veneno” (PL 6299/2002) e isso talvez seja explicado pelo fato
de que a própria configuração atual de liberações de novos agro-
tóxicos, torna a “PL do veneno” algo obsoleto e suplantado pela
prática de flexibilizações e a facilidade com que ocorre o regis-
tro desses novos produtos. Note-se que trouxemos informações,
no presente tópico, que apontam para o fato de que desde o ano
de 2016 o aumento de liberações de novos produtos agrotóxicos
vem crescendo assustadoramente. Coincidentemente, o último
despacho sobre a PL em questão aconteceu em 2016 e a última

93
movimentação em 2018, conforme imagem coletada do próprio
site da Câmara dos Deputados22.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Antes de tudo é importante reconhecer o papel fundamental que as
mídias vêm cumprindo, especialmente aquelas denominadas como
alternativas, na exposição e denúncia das ações praticada pelo poder
público ou privado e que afrontam os interesses da população e do
meio ambiente. Nesse sentido, a iniciativa da Agência Pública e da
Repórter Brasil em criar um mecanismo de acompanhamento e pu-
blicização em tempo real das liberações dos agrotóxicos na país mere-
ce destaque e reconhecimento. Aqui buscamos, de forma preliminar,
apontar o seu potencial como fonte de dados a ser utilizada por pes-
quisadores interessados neste tema. Consideramos assim, que mais
do que fortalecer a necessária denúncia, este é um exemplo de inicia-
tivas que também são úteis como material de análise no campo das
ciências socais.
Os atores vinculados aos interesses do agronegócio e alguns pes-
quisadores proveniente do campo agronômico defendem essa acele-
ração na aprovação de novos agrotóxicos dizendo, acima de tudo, que
o uso desse produtos são inevitáveis, sem eles o sistema produtivo
atual não seria viável. Apontam ainda que muitos desses agrotóxicos
não introduzem novas moléculas, mas apenas novas marcas mais ba-
ratas no mercado, do que se pode deduzir que não será o custo um
fator a demover o produtores do uso desses pesticidas. Defendem,
além disso, que as aprovações sejam ainda mais ágeis e, para isso, pro-
puseram o Projeto de Lei 6.299/02, mais conhecido com o PL do Ve-
neno em que, dentre outras medidas, propõe que se não for aprovado

22. Para acompanhar o trâmite desse PL ver: https://www.camara.leg.br/proposicoes-


Web/fichadetramitacao?idProposicao=46249
(Consultado em 25/01/2021)

94
dentro de um determinado prazo, esses produtos serão automatica-
mente autorizados caso essa aprovação já tenha ocorrido na Europa
ou EUA. No entanto, nada dizem dos vários produtos proibidos nes-
tes países e aprovados no Brasil.
Como salientamos na introdução desse capítulo, os argumentos téc-
nicos buscam se impor como se fossem verdades naturamente incon-
testáveis ou contestáveis apenas com argumentos dos mesmo campo
de conhecimento. Mas, o que as ciências sociais demonstram é que o
técnico ou a sua materialização na forma de uma tecnologia circunscre-
ve-se ao “âmbito do fazer humano, no campo da ação social” (FIGUEI-
REDO, 1989) e, nesse sentido, está permeado de questões políticas, so-
ciais, econômicas e culturais. Isso fica muito claro quando se analisa
o histórico de gestão pública e privada dos agrotóxicos. Ao redor dos
agrotóxicos se constitui um campo de disputa que envolve atores in-
teressados na sua rápida e massiva aprovação e atores que buscam, ao
contrário, impor restrições e, no limite, eliminar o seu uso23.
Como os dados expostos pelo mecanismo Robotox demonstram, o
contexto político atual, sob a presidência de Bolsonaro e, sobretudo,
sob a liderança da Bancada Ruralista que tem na ministra da agricultura
sua principal representante no executivo, a deputada Tereza Cristina,
famosa, ainda no exercício parlamentar, pela alcunha de Musa do Ve-
neno, tem sido bastante favorável à aprovação de novos agrotóxicos.
A simples constatação desse aumento vertiginoso, quando comparado
aos governos anteriores, é a evidência mais clara de que esse processo é
determinado fortemente pelo contexto político e por questões econô-
micas e não por questões de uma pretensa neutralidade técnica.
Consideramos, pelas análises aqui realizadas, que a liberação mas-
siva de novos agrotóxicos atenta contra a sociedade e o meio am-
biente e se conjuga com o enredo de nossa história recente quando a

23. Para uma análise desse movimentos que contrapões ações e grupos políticos conserva-
dores versus ações e grupos políticos progressistas no tratamento dos agrotóxicos ver: Mou-
ra; Rozendo e Oliveira (2020).

95
democracia foi profundamente abalada. Está relacionada ao fim dos
conselhos participativos em que a sociedade civil organizada exercia
seu poder de influência nas decisões governamentais. Se relaciona
também com os ataques físicos e retóricos às ONGs ambientalistas e
aos movimentos sociais do campo e da cidade. O que aprendemos à
duras penas com o “agrogolpe” é que se a democracia, mesmo essa
limitada pelos interesses burgueses e com suas muitas insuficiências, é
abalada, o país acaba por perder mesmo os pequenos espaços de par-
ticipação e influência na dinâmica política. O que temos acompanha-
do desde 2016 é uma boiada passando desenfreada em muitos temas,
a liberação acelerada de novos agrotóxicos é um deles.

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TRIBUNAL MONSANTO. Relatório. Disponível em: http://es.monsantotribunal.
org/Resultados_1 . (Consultado em 19/01/2021)

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ESPAÇO E LUGAR NOS CONFLITOS
SOCIOAMBIENTAIS INTRATÁVEIS:
REFLEXÕES SOBRE O DIREITO
DE PERMANÊNCIA
Allan Sinclair Haynes de Menezes
Ronaldo Lobão

INTRODUÇÃO
As relações entre Cultura, Natureza e Direito permitem pensar a
multiplicidade de significados que podem ser atribuídos ao meio am-
biente, aos espaços e aos direitos. Todos os três conceitos inegavel-
mente polissêmicos e presentes no que podemos chamar de conflitos
socioambientais. O Grupo de Introdução a Pesquisa Empírica no Di-
reito(GIPED-UFF), vinculado ao “Núcleo de Pesquisa sobre Práticas e
Instituições Jurídicas (NUPIJ-UFF)” tem acompanhado ao longo dos
anos alguns destes conflitos envolvendo estas relações que poderiam
se enquadrar na categoria de conflitos intratáveis (LEWICKI, ROY;
GRAY & MICHAEL. 2003). Esta categoria analítica propõe pensar que
determinados conflitos não conseguem chegar a uma resolução pe-
las vias tradicionais, podendo durar longos períodos de tempo e mui-
tas vezes recrudescer diante de tentativas de mediação ou até mesmo
quando judicializados.
Os conflitos intratáveis podem ainda ser designados de acordo
com a forma como estes são percebidos pelos atores envolvidos, onde
estas percepções acerca do conflito, as significações atribuídas pelos
atores ao que está em disputa, podem oscilar conforme o tempo e
contextos (LOBÃO, 2014).

99
Um elemento comum ao interagir e observar estes conflitos foi a
percepção de que havia uma incompatibilidade entre a forma como
os diversos atores envolvidos no conflito compreendiam o objeto
central destas disputas. O meio ambiente, os espaços naturais, pos-
suíam significados não compartilhados pelos sujeitos, fazendo com
que constantemente o exercício de direitos para alguns fosse percebi-
do e significado enquanto crime ou ilegalidade para outros.
Esta inquietação acerca destes significados não compartilhados e
consequentemente dos conflitos oriundos deste processo apareceu
pela primeira vez no Morro das Andorinhas, localizado na zona oceâ-
nica de Niterói no bairro de Itaipu, onde uma família que mantinha
uma relação harmoniosa com aquele espaço natural, lugar que vi-
viam desde o século XIX, se viu ameaçada de lá permanecer na medi-
da em que este se tornou uma área de proteção ambiental.
Foi a partir desta trajetória no Morro das Andorinhas, cuja as ca-
racterísticas apareceram posteriormente de forma similar em outros
lugares onde meio ambiente, cultura e a luta pela permanência eram
elementos chave do conflito, que a provocação sobre o direito de per-
manência surgiu. A permanência enquanto um objeto a ser pensa-
do no âmbito dos conflitos socioambientais é a proposta apresentada
nesta breve reflexão, fruto de um acúmulo coletivo por meio da inte-
ração com estes conflitos intratáveis.

1. ESPAÇO E LUGAR NOS CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS


Yi-Fu Tuan, geógrafo sino-americano, a partir de uma leitura que
transcende a própria geografia enquanto campo, buscou abordar as
ligações afetivas entre o homem e o meio-ambiente. Seu conceito de
Topofilia (2012) ao trazer a ideia do afeto pelo “lugar” permite pensar
as relações entre homem e natureza e natureza e cultura. A percep-
ção geográfica de Tuan se associa a um sentido de “lugar” compreen-
dido por meio das escalas da ação e da experiência.

100
Este topos, ou seja, o lugar, aliado a filia enquanto aconchego, en-
volvimento, traz a possibilidade de refletir sobre os laços entre o am-
biente físico e as formas de viver, da economia e sua relação com a
construção de valores ambientais, de significados acerca da natureza a
partir da cultura. Como apontado por Tuan, cultura e meio ambiente
determinam em grande parte os sentidos, no mundo moderno, no
entanto, tende-se a privilegiar a visão em detrimento de outros senti-
dos como olfato, tato e paladar. Esses últimos exigem uma proximi-
dade e um ritmo mais lento na relação com o espaço vivido, o que
não se coaduna com a aceleração do tempo, fruto das relações eco-
nômicas e sociais da modernidade que provocam um distanciamento
dos vínculos construídos com os espaços afetivos.
Diferentes formas de significar os espaços são produto de diferen-
tes formas de percepção sobre o ambiente. Não se trata, é claro, de
um relativismo vulgar, onde tudo pode ser qualquer coisa, mas co-
locado pela perspectiva da interação dos homens entre si e com os
espaços, o que afeta inequivocamente a forma como grupos ou socie-
dades atribuem significado, por exemplo, ao meio ambiente.
Em Espaço e Lugar (2013), Tuan busca distinguir o “espaço indi-
ferenciado” do “lugar significado” através das noções de proximidade
e distância, envolvimento ou não envolvimento. Se o espaço é uma
necessidade biológica de todos os animais e psicológica, social, espi-
ritual (Tuan, 2013, p.77) e também econômica dos seres humanos, o
lugar é a transformação deste espaço a partir de vínculos e referências
familiares conhecidas e construídas. Quando o espaço se torna intei-
ramente familiar passa então a ser um lugar.
A humanidade construiu diferentes concepções acerca do Espaço e
do Lugar. Na tradição ocidental, espaço, tempo e lugar tem suas origens
no pensamento grego e hebreu, que se tornaram dominantes ao longo
da consolidação da hegemonia cultural judaico-cristã no ocidente. Se as
cidades-estado gregas eram pequenas para que as pessoas pudessem se
conhecer e criar vínculos com os espaços, a configuração dos modernos

101
Estados Nação tornou os espaços grandes demais para isso. A invenção
e desenvolvimento dos Estados Nação fez com que afeições locais, an-
tes baseadas na experiência e no conhecimento local, fossem aos poucos
substituídas por algo simbolicamente maior, de modo que o Estado ga-
nhasse feições quase religiosas. Por meio da arquitetura, da construção de
monumentos e da criação de símbolos, determinados espaços se transfor-
mam em lugares de culto, de modo que pudessem ser experimentados.
Olhar para o ambiente como um simples espaço ou como lugar
afetivo depende, desta forma, de como se percebe, e, portanto, de
como se vivencia as experiências. Se no romance de Daniel Defoe,
para Robson Crusoé (1970), o náufrago à imagem do colonialismo
britânico, a ilha era como uma terrível provação ao ser isolado da
vida moderna, uma prisão de natureza, esta mesma ilha para o na-
tivo era seu lar, seu lugar, ainda que esta perspectiva fique oculta
pelo viés da narrativa. O autor, influenciado pelo individualismo na
sociedade moderna, construiu a imagem de uma ilha em um senti-
do bíblico, um paraíso perdido marcado pelo domínio e conquista
do homem moderno, que por meio do trabalho e do conhecimento
científico aprisionou o tempo e domesticou o nativo selvagem.
É possível, portanto, pensar o ambiente sob múltiplos aspectos,
enquanto produto das experiências, sentimentos e até mesmo de inte-
resses ou necessidades. François Ost (2005) em um exercício dialético
ao pensar direito e literatura afirma que enquanto o direito codifica
a realidade, a literatura permite abrir caminho para as possibilidades.
Nesta relação o autor defende que a literatura pode devolver ao direi-
to uma dimensão cultural que foi deixada de lado por este.
Ronaldo Lobão (2006), ao tratar das representações de tempo e
espaço na modernidade clássica, traz as figuras de Rea e sua filha
Gaia, que eram quase idênticas. Para os gregos Gaia era uma Terra
genérica enquanto Rea era uma Terra com um aspecto mais hu-
manizado, não indistinto como Gaia (IBIDEM, p.170). Do mesmo
modo Kairós, pouco mencionado no panteão olímpico é o filho de

102
Zeus que representa a experiência do tempo oportuno, não linear,
em oposição a Crono, seu avô, que representava um tempo do reló-
gio, linear e aprisionador.
Se a natureza por si é um espaço indiferenciado, para uma família
que lá constrói sua casa e faz deste seu lar, este toma outra feição.
Produz-se desta forma, no espaço inicialmente indistinto um outro
significado, construído através das relações que se perpetuam no tem-
po vivido a parir das experiências e que geram uma diferenciação em
relação ao espaço natural tomado genericamente. Se por um lado ali
ainda está a natureza, de outro também existe agora a cultura, Gaia se
torna Rea. Práticas, afetos, formas de viver e de se relacionar com esta
natureza passam a determinar a forma com a qual se dá significado ao
ambiente. Homens e mulheres conscientes de que aquele é seu lugar,
criado, transformado e também preservado por estes, impregnado de
sentimento passa a estar repleto de significado. Este “lugar sentido”
pode adquirir um profundo significado mediante a intensidade deste
sentimento de pertencimento ao longo do tempo, pois modos de fa-
zer e viver enquanto experiência influenciam a forma de significar o
meio ambiente.
A topophilia permite pensar a importância destas experiências,
das formas de viver os espaços que construídos culturalmente pas-
sam a definir a forma como os indivíduos enxergam e compreendem
sua relação com o ambiente, de tudo aquilo que pode ser percebido
pelos laços afetivos e simbólicos. Desta forma, os indivíduos ou um
determinado grupo podem se sentir tanto vinculados quanto indife-
rentes em relação a um determinado espaço. Enquanto uns podem
guardar com estes intensos laços, carregados de memória e emoções,
outros podem restringir esta relação a uma mera percepção visual.
Nem sempre proximidade geográfica e proximidade social são
sinônimos, pois são as experiências concretas que permitem atri-
buir significados diferentes as coisas ou aos espaços com os quais se
está em relação. A forma de reconhecer a partir da experiência uma

103
determinada planta para o uso medicinal, qual a melhor lua para cor-
tar a madeira, que tipo de peixe está relacionado a determinada esta-
ção do ano mostra o quanto a relação da natureza ou do “meio am-
biente” com os indivíduos e os grupos são determinantes para que os
espaços ganhem “personalidade” os transformando em lugar.
O desafio trazido a partir da contribuição de Yi-Fu Tuan nos con-
textos de conflitos socioambientais está na possibilidade de ainda per-
ceber a existência destas relações de proximidade no microcosmos.
Ainda que a velocidade do mundo moderno com a ampliação dos
espaços em meio as transformações urbanas, de um modelo hege-
mônico de progresso e de um tempo capturado e comprimido pela
circulação do capital possam fazer crer que este tipo de experiência
não tenha mais correspondência no mundo.
É possível pensar que ainda existem estes “lugares” onde a expe-
riência ainda tenha algo a contribuir. Quem sabe estas pequenas for-
mas de resistência possam ajudar a compreender melhor e ressignifi-
car estas relações entre Natureza e Cultura.

2. DIREITO, CULTURA E NATUREZA: UM OLHAR DA EX-


PERIÊNCIA A PARTIR DO MORRO DAS ANDORINHAS

A construção de um Acordo Socioambiental no Morro das Andori-


nhas está ligada ao processo de luta pela permanência no interior do
Parque Estadual da Serra da Tiririca, processo que se efetivou por
meio de um Termo de Compromisso que tornou possível que a famí-
lia de Leonel Siqueira, que ocupa o platô do Morro das Andorinhas
desde o século XIX, lá permanecesse.
Durante quase 20 anos a família, hoje “comunidade”, resistiu para
permanecer em seu lugar. A partir do momento que sua presença se
tornou “visível” ao mundo pelo Direito, com a abertura por parte do
Ministério Público Estadual (MPE) de um Inquérito Civil que visa-
va apurar eventuais danos ao Meio Ambiente em Área de Proteção

104
Permanente (APP) do município, teve início o conflito intratável no
Morro das Andorinhas (SINCLAIR, 2019).
Depois da instalação, em 2002, de uma Ação Civil Pública (ACP)1
para a remoção da comunidade, violências físicas e simbólicas foram
cometidas contra a comunidade, mas rechaçadas com o estabeleci-
mento de uma parceria da comunidade com pesquisadores da Univer-
sidade Federal Fluminense (UFF).
Em 2007 a ACP foi extinta com a anexação do Morro das Ando-
rinhas ao Parque Estadual da Serra da Tiririca (PESET). Neste con-
texto, a família, agora reconhecida como comunidade tradicional do
morro das andorinhas passou a ocupar uma unidade de proteção inte-
gral2. A Associação da Comunidade Tradicional do Morro das Ando-
rinhas (ACOTMA) também foi criada neste período e pensada com o
intuito de representar a comunidade de maneira mais formal. A nova
conjuntura, no entanto, fez com que novas investidas contra sua per-
manência fossem encetadas.
Em 2011, o Ministério Público Federal, em sede de outra ACP até
então desconhecida, desta feita contra um condomínio de classe mé-
dia alta localizado na encosta de Itacoatiara, recomendou à Prefeitura
a demolição da “favela”3 existente no topo do morro, ou seja, da Co-
munidade Tradicional do Morro da Andorinhas.
A administração deste conflito que perdurava a décadas somente
chegou a um bom termo por meio do esforço da comunidade e da ges-
tão da UC para se chegar a um acordo no âmbito do processo federal
que não reproduzisse uma lógica contratual de obrigações, mas de um
compromisso conjunto onde fosse possível operar as ressignificações
necessárias tanto por parte da gestão ambiental da unidade quanto da
comunidade para a viabilização do direito de permanência. Este acordo

1. Ação Civil Pública n° 2000.002.004290-4.


2. O Sistema Nacional de Unidades de Conservação foi criado pela lei 9985 de 2000.
3. O termo aparece no relatório de um perito na Ação Civil Pública 2001.051.02.005142-8

105
socioambiental se efetivou por meio de um Termo de Compromisso
Ambiental (TCA) celebrado no dia 3 de Dezembro de 2011.
Nesta trajetória uma família se tornou comunidade, mas sobre-
tudo um espaço natural de proteção integral4 pôde ser ressiginifca-
do.5 Percebido pelos agentes públicos como um espaço de preserva-
ção ambiental, todo o vínculo entre a presença histórica da família da
Leonel Siqueira e a preservação da natureza no local permaneceu in-
visível na narrativa até então existente sobre o Morro das Andorinhas.
Somente no desvelar do conflito e de seus múltiplos significados foi
possível atribuir a permanência da família de Leonel Siqueira um ca-
ráter que não se opunha ao objetivo da proteção ambiental no morro.
A compreensão de que o Sítio da Jaqueira (lugar onde vive a co-
munidade) e o Morro das Andorinhas eram afetados duplamente en-
quanto unidade de conservação da natureza, mas também de preser-
vação dos afetos e da memória local permitiu que natureza e cultura
encontrassem uma nova conexão.
A permanência da comunidade foi efetivada por meio deste Acor-
do Socioambiental, pensado enquanto um processo de inovação en-
volvendo experiência local e proteção ao Meio-Ambiente.
Este direito buscou amparo no artigo 215 da Constituição, que de-
termina que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos
culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará
a valorização e a difusão das manifestações culturais.” (BRASIL, 1988)
com o complemento de seu parágrafo primeiro onde “o Estado pro-
tegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-bra-
sileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional”. Assim como no artigo 216 e seu parágrafo primeiro, onde:

4. Este modelo de unidade de conservação não permite a presença humana em seu inte-
rior, conforme artigo 7º da lei 9985 de 2000.
5. O conflito no Morro das Andorinhas está densamente descrito em uma série de tra-
balhos do NUPIJ sob diferentes perspectivas, destaco o de Tatiana Calandrino Maranhão
(2007), Juliana Latini (2010) e mina tese de doutorado (SINCLAIR, 2019).

106
[...] constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza ma-
terial e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores
de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos for-
madores da sociedade brasileira, nos quais se incluem:
(...) II - os modos de criar, fazer e viver;
§ 1º O poder público, com a colaboração da comunidade, promoverá e
protegerá o patrimônio cultural brasileiro, por meio de inventários, re-
gistros, vigilância, tombamento e desapropriação, e de outras formas de
acautelamento e preservação (BRASIL, 1988).

Estes modos de criar, fazer e viver se aproximam da perspectiva


Yi-Fu Tuan, onde as formas de bem viver variam conforme as expe-
riências que envolvem as múltiplas dimensões do devir humano. Es-
tes elementos, enquanto parte do que pode se chamar de Cultura,
transformam o natural também em cultural, criam aquilo que se con-
vencionou chamar de “território”, de um lugar tradicional.
O decreto 6.040/2007 ao criar a Política Nacional de Desenvolvi-
mento Sustentável dos Povos ou Comunidades Tradicionais, reforçou
em seu artigo 3º, inciso II, o que seriam “territórios tradicionais” e sua
necessária relação com a reprodução social e cultural destes grupos:

[…] os espaços necessários a reprodução cultural, social e econômica


dos povos e comunidades tradicionais, sejam eles utilizados de forma
permanente ou temporária, observado, no que diz respeito aos po-
vos indígenas e quilombolas, respectivamente, o que dispõem os arti-
gos. 231 da Constituição e 68 do Ato das Disposições Constitucionais
Transitórias e demais regulamentações. (BRASIL, Decreto 6.040, art.
3º, inciso II)

Soma-se a este novo marco de reconhecimento dos direitos cul-


turais no Brasil, a Convenção sobre a Proteção e a Promoção da
Diversidade das Expressões Culturais – CPPDC – da UNESCO, já

107
incorporada ao ordenamento jurídico nacional6 com o objetivo de
proteger e promover a diversidade das expressões culturais e criar
condições para que as culturas floresçam e interajam livremente em
benefício mútuo.
É verdade que “Cultura” pode ser compreendido de muitas for-
mas (tal qual o próprio conceito de meio ambiente), o que leva a uma
discussão sobre como este conceito se conecta a esta perspectiva de
reconhecimento de direitos.
A própria Constituição de 88 ao tratar de Cultura dá a esta um
caráter polissêmico. Tanto enquanto uma manifestação singular que
engloba o coletivo, na ideia de uma “cultura nacional” (caput artigo
215) quanto em uma perspectiva plural na forma de manifestações
singulares de diversos grupos: “(...)cultura popular, indígena e afro-
brasileira e de outros grupos participantes do processo civilizatório
nacional” (art. 215, parágrafo primeiro). Ao estabelecer o Plano Na-
cional de Cultura, a Constituição inclusive menciona suas “múltiplas
dimensões”, sinalizando que o conceito não se restringe somente a
um aspecto artístico ou paisagístico, englobando também a valori-
zação da diversidade étnica e regional (art. 215, parágrafo terceiro,
inciso V).
A Antropologia, da mesma forma, apresenta tantos conceitos de
cultura possíveis quanto o número de pesquisadores destinados ao
seu estudo. Desta forma, existe certamente o risco de que o conceito
de Cultura leve a conclusões essencialistas entorno do que seria cultu-
ra e sobre a questão das identidades culturais.
Ronaldo Lobão lembra, no entanto, que a Cultura tem um caráter
histórico sempre influenciado pelo grupo o qual lhe atribui sentido.

6. Incorporado pelo Decreto nº 6.177, de 1º de Agosto de 2007. Cabe ressaltar que os tra-
tados e convenções internacionais sobre direitos humanos incorporados ao ordenamento
jurídico brasileiro pela forma comum, ou seja, que não passaram pela regra do artigo 5º, §3º,
da Constituição Federal, possuem, segundo a posição que prevaleceu no Supremo Tribunal
Federal, status supralegal, mas infraconstitucional (RE 466.343-SP, HC 90.172-SP).

108
Na Inglaterra vitoriana a Cultura era o que destacava o Homem da Na-
tureza, algo que se opunha à Natureza. Na mesma época, na França o
positivismo comtiano a definia não só como aquilo que distinguiria o ho-
mem dos animais, mas também o que hierarquizaria os grupamentos
sociais, ou seja, a Civilização. O romantismo alemão recusou a ideia de
progresso material como índice e afirmou que cada grupo social possui-
ria sua própria cultura (com minúscula), sendo impróprio falar de uma
Cultura (com maiúscula) universal, ou em uma escala de culturas. “O
pensamento de Herder partia “do pressuposto de que cada cultura ou
sociedade exprime à sua maneira o universal [e] a mônada de Leibniz
[... seria] ao mesmo tempo um todo em si mesmo e um indivíduo em
um sistema unido nas suas próprias diferenças” (Dumont, apud Peirano,
1999, p. 89). (LOBÃO, 2010a, p.5).

Desta forma cada cultura é moldada a partir de sua própria histori-


cidade, onde os integrantes de cada grupo, classe social, reconhecem
e legitimam seus próprios conjuntos de valores, suas formas de fazer
e de bem viver. Uma relação dialética onde determinadas práticas so-
cais definem o grupo e o grupo as define, dentro de uma perspectiva
espaço-temporal. Um movimento constante que permite a cultura
sobreviver as transformações sociais em um processo de atualização
e adaptação, ou ainda ser preservada por meio das mais variadas for-
mas de memória.

Não deve haver problema algum com a multiplicidade de sentidos e


formas pelas quais as culturas podem se manifestar. As culturas sempre
dirão algo sobre aqueles que as reivindicam e as enunciam, bem como
aqueles que as reconhecem e as representam (IBIDEM, p.6).

Mas como estas diferentes formas de cultura se relacionam com


o Estado? No Brasil, restou aos grupos não relacionados nominal-
mente na dimensão étnica trazida pela constituição de 88 (negros e

109
indígenas) o abrigo do decreto 6.040/2007. O que levou a uma luta
por direitos pautada em “territórios tradicionais”, que nada mais se-
riam do que os lugares onde estes exerceram estas formas de criar,
fazer e viver.
O Acordo Socioambiental celebrado no Morro da Andorinhas
apontou a possibilidade de exercício do direito a permanência em
uma área afetada como unidade de proteção integral, a priori avessa
a presença humana em seu interior. Este reconhecimento se deu a
partir de um processo que permitiu incorporar a própria comunida-
de um caráter histórico-cultural enquanto parte da UC7. Não houve,
neste sentido, uma separação entre a comunidade e o parque enquan-
to elementos apartados, mas a necessária construção de um elo que
conectou a comunidade ao Morro. Este elo foi justamente o reconhe-
cimento da presença da comunidade enquanto uma forma colabora-
tiva de viver em meio a natureza, além da preservação da memória
viva sobre o próprio Morro das Andorinhas.

3. A PERMANÊNCIA ENQUANTO UM DIREITO: POSSI-


BILIDADES E DESAFIOS A SEU EXERCÍCIO.

Existem incontáveis formas de se relacionar com o lugar em que se


vive, diferentes mecanismos formais ou informais que organizam a
posse, o domínio, a transferência e a sucessão de patrimônio.
Compreender as relações entre os homens e as coisas é sempre
uma tarefa difícil mas implica por vezes a necessidade de abandonar
um olhar superficial e distante e se aproximar ao nível destas relações
sem a necessidade de enquadrá-las em categorias ou classificações. A
propriedade ou a faculdade de ser dono, por exemplo, pode ser com-
preendido tanto como uma relação de pertença da coisa em relação
ao indivíduo, onde poderes exclusivos lhe se são autorizados pela

7. Este reconhecimento figura no próprio plano de manejo do PESET.

110
ordem jurídica quanto a partir de um duplo pertencimento onde tan-
to a terra pertence ao homem quanto o homem pertence terra.
Estas relações que não se restringem a oficialidade do instituo jurí-
dico “propriedade” pensado singularmente, possibilita admitir que o
ato de possuir algo ou ser dono não possui um único significado, sem-
pre nos obrigando, paradoxalmente, como menciona Grossi (2006,
p.11) a ajustar contas com aquele singular, onde sobre o plural pesa
sempre “a sombra ameaçadora da propriedade”. Grossi complemen-
ta dizendo que a propriedade apesar de um problema de ordem técni-
ca não se restringe a uma questão técnica, tendo em vista a complexi-
dade das relações entre os homens e as coisas.

A propriedade é seguramente também um problema técnico, mas nunca


é somente, no seu contínuo emaranhar-se com todo o resto, um proble-
ma técnico: por debaixo, os grandes arranjos das estruturas; por cima; as
grandes certezas antropológicas põem sempre a propriedade no centro
de uma sociedade e de uma civilidade. A propriedade não consistirá ja-
mais em uma regrinha técnica, mas em uma resposta ao eterno proble-
ma da relação entre os homens e as coisas; da fricção entre o mundo dos
sujeitos e mundo dos fenômenos(...) (IBIDEM, p.16).

No Morro das Andorinhas o sentido contratual de propriedade


não existe, tanto por uma impossibilidade jurídica ligada à sua afeta-
ção ambiental quanto a de uma memória ligada a história da comuni-
dade, onde o loteamento nunca foi sequer pensado enquanto forma
de organização local. O conflito fez com que a compreensão do mor-
ro enquanto um espaço que passou a ser classificado como Unidade
de Conservação da Natureza não significasse para a comunidade a
perda do direito de lá permanecer, mas a afirmação da permanên-
cia enquanto uma reivindicação. A ideia da permanência no Morro
das Andorinhas foi, desta forma, construída ao longo do tempo con-
forme as próprias especificidades implicadas no viver dentro de uma

111
unidade de conservação de proteção integral, onde a relação com o
espaço não poderia ter o mesmo sentido da propriedade liberal.
Este processo de ressignificação levava em consideração alguns
elementos já presentes no local, como a divisão praticamente inexis-
tente entre o espaço ocupado por cada uma das casas e sua forma
de transmissão vinculada a comunidade e não somente ao núcleo
familiar. O que diferenciava o exercício de “ser dono” da comunida-
de no lugar da forma como comumente se dá tratamento a proprie-
dade, em lotes cercados e vinculado a uma transmissão patrimonial
vertical.
Este último elemento, que fugia a lógica do direito civil, apareceu
pela primeira vez em uma das reuniões realizadas no Sítio da Jaquei-
ra. Na ocasião, duas das casas haviam ficado vagas devido a morte de
Ermi, um dos moradores mais antigos e a descida de Wanda (irmã
por parte de mãe), que se encontrava muito doente e não possuía
filhos.
Foi neste contexto que duas dimensões ficaram em evidência. En-
quanto a comunidade e a ACOTMA se relacionavam institucional-
mente com a gestão do Parque, sempre contando com o auxílio da
universidade e onde as decisões possuíam um caráter público, a fa-
mília representava uma dimensão privada, onde tinha lugar a admi-
nistração de outros conflitos inerentes aos laços de sangue e afetivos.
Como toda a família, os herdeiros de Leonel Siqueira possuíam
mais ou menos proximidades conforme sua divisão em quatro ramos
a partir do patriarca: os descentes de Américo (Seu Bichinho) vincula-
do a Arsênio por parte de mãe, de Ermi, irmão de Seu Bichinho que
havia falecido, a parte ligada a Adriano e José Siqueira (Thydi), filhos
de Manoel Siqueira e o de Gilberto, filho de Arsênio. Todo a dimen-
são do conflito acerca de quem iria viver nas casas estava, portanto,
reservada a esfera familiar.
Em relação a primeira casa, a divisão entre todos os filhos seria im-
provável, uma vez que além de não atender a todos do ponto de vista

112
da capacidade espacial, a própria venda de uma casa em uma área de
Parque seria um obstáculo. Isto porque as casas existentes no Sítio
da Jaqueira, enquanto parte integrante de uma Unidade de Conser-
vação, podem ser comparadas a meras benfeitorias. A casa de Ermi,
deste modo, ficou destinada ao seu neto, Leonardo, que permanecia
morando no local, permanecendo dentro do mesmo ramo da família.
Já a casa de Wanda teve um destino diferente, sendo destinada a Thia-
go, filho de Alice e neto de seu Bichinho, que já vinha cuidando da
casa e fazendo reparos desde sua saída.
Margarida Maria Moura (1978) já havia trazido uma discussão em
seu trabalho sobre o campesinato, onde em determinados contextos
uma herança não poderia ser dividida entre todos os herdeiros de um
pequeno sítio rural. Tal divisão, nos moldes da propriedade clássica
do direito civil não seria capaz de garantir a subsistência de cada novo
ramo familiar oriundo de novos casamentos.
Ainda nesta esteira, é possível pensar outras múltiplas formas de
como se efetiva a transmissão patrimonial. Em favelas no Rio de Ja-
neiro, por exemplo, Alexandre Weber (2012) diz que muitas destas
formas de transmissão da “propriedade” não estão em conformidade
com o Direito Civil, Direito Urbanístico, Direito Tributário ou outras
formas de regulação. Uma moradia de sala e dois quartos pode ser
divida em duas e os donos podem vender apenas um quarto a outra
pessoa, se assim decidirem. Em Niterói, no Bairro do Ingá, nos “fun-
dos” da Faculdade de Direito da UFF, na comunidade do Morro do
Palácio toda a positivação dos Direitos Reais, não acontece. Ativida-
des como a compra, venda e aluguel de imóveis, são transacionadas à
margem das regras do direito positivo (LOBÃO & SINCLAIR, 2014).
As práticas locais passam, desta forma, a reger a transmissão patri-
monial, legando a apenas um herdeiro a “propriedade” da terra, em
geral aquele que ficou tomando conta dos pais. Isto se dá uma vez
que o campesinato, enquanto um modo de vida diferenciado dota
a terra de um sentido econômico autônomo e vinculado a unidade

113
familiar, onde a propriedade está inserida no próprio bem-estar fami-
liar. Um sentido de transmissão patrimonial fruto de uma tradição
cultural que leva em consideração a capacidade de sustento advindo
do cultivo da terra, na medida em que a fração ideal para cada filho
de um pequeno sítio rural ao longo do tempo não seria mais capaz de
continuar com sua função social local.
A “herança”, deste modo, cede lugar a tradição ou ao compromis-
so. No Morro das Andorinhas prevaleceu o acordo entre os ramos
da família, de modo a estabelecer um consenso sobre quem passaria
a ocupar as casas. A sucessão da permanência enquanto um direito
a ser negociado internamente, além de estar em conformidade com
o estatuto da ACOTMA, não ia de encontro ao conteúdo do acordo
firmado, visto que tanto os ramos da família quanto a comunidade
eram partes integrantes do termo.
Uma dimensão de preservação da memória coletiva também se fez
presente neste processo. A casa que passaria a ser ocupada por Thiago,
anteriormente pertencente a Wanda, guardava ainda as características
centenárias das casas mais antigas do Sítio da Jaqueira. A casa, no en-
tanto, precisava de reformas pois as paredes já não estavam mais tão
fortes e ameaçavam colapsar. A decisão sobre o que fazer, de modo a
conciliar a segurança do novo morador e sua família e a preservação
da memória presente naquelas estruturas antigas, cabia mais uma vez
a família. Após algumas semanas de discussão a solução foi apresenta-
da na renovação dos termos de compromisso, decidiu-se por remover
os antigos telhados da estrutura ainda preservada da casa de Wanda e
recolocá-los na casa de Tide, resguardando deste modo a segurança da
família, porém sem perder o histórico e todo sentimento vinculados a
trajetória de luta pela permanência no Sítio da Jaqueira.
A passagem da propriedade ligada ao título para uma relação de
permanência, se de um lado fez com que a comunidade “abrisse
mão” do sentido liberal clássico da propriedade, dotado das faculda-
des de dispor e fruir do bem, de outro promoveu uma ressignificação

114
sobre o que era viver em uma área de proteção ambiental. Superou-se
desta forma, ainda que em um contexto específico, um importante
pilar da cultura ocidental na ordem burguesa, a dimensão contratual
da propriedade e sua manutenção por meio da herança.
A experiência de viver o espaço enquanto lugar se diferencia do
mero aspecto espacial inexpressivo contido na ideia de um lote. Por
si só, casas no Sítio da Jaqueira não nos dizem nada, mas na medida
em que estes espaços ganham um significado eles se transformam.
Este significado diz respeito a construção de um sentido particular,
onde tanto sentimento quanto experiência permitem que uma casa
não seja só uma casa, que um conjunto de casas no alto do morro
não seja uma somente uma ocupação. É possível ser proprietário de
um espaço a distância, mas é impossível vivê-lo enquanto lugar sem a
proximidade que permite uma pausa no tempo.
Enquanto o espaço se restringe a uma questão biológica e/ou
meramente material, o lugar possui uma dimensão simbólica que
transcende o espaço enquanto dimensão meramente física. A perma-
nência é neste sentido um direito inerente a complexidade existente
nessas relações de pertencimento e que não se encerram nas possi-
bilidades limitadas do direito civil. O direito de permanência implica
pensar novos instrumentos de política urbana e socioambiental que
não sejam a reprodução de um estatuto de posses precárias para ci-
dadãos de segunda categoria, a permanência enquanto um direito
demanda reconectar e ressignificar as relações do homem com seus
lugares de criar, fazer e viver.

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116
NEOEXTRATIVISMO, O DESASTRE DE
MARIANA E A (IN)SUSTENTABILIDADE
AMBIENTAL DA ATIVIDADE
MINERÁRIA NO BRASIL
Alessandra Dale Giacomin Terra
Napoleão Miranda

INTRODUÇÃO
Apesar do potencial de degradação e de resultar numa intensificação
dos conflitos socioambientais, o discurso da sustentabilidade ambien-
tal é intensamente acionado pelas grandes empresas mineradoras,
como forma de legitimar o extrativismo fóssil, que permanece como
atividade imprescindível para o progresso nacional em razão de seu
potencial de gerar divisas.
Desastres de grandes proporções, como Mariana (2015) e Bruma-
dinho (2019), ambos decorrentes do rompimento de Barragem de re-
jeitos de mineração e que resultaram em grande repercussão pública,
não só evidenciam esta contradição como também vem resultando
em uma intensificação dos embates simbólicos, o que merece atenção
uma vez que os conflitos ambientais não se operam apenas nos espa-
ços de apropriação material (luta direta no espaço de distribuição do
poder sobre a base material), mas também no âmbito simbólico, ou
das representações culturais, em que tem-se o embate pela legitimi-
dade sob a distribuição de poder (ACSERALD, 2004).
Este artigo pretende problematizar sobre esta contradição em re-
lação ao Desastre de Mariana, considerando o neoextrativismo não
só em seu aspecto contextual, ao imprimir as condições genealógicas

117
para o desastre, como também seu papel enquanto paradigma ideoló-
gico, que conjuntamente com a ideia de desenvolvimento sustentável
alicerçam a legitimidade da atividade extrativa mineral.
Para isso, além de apresentar uma revisão bibliográfica de litera-
tura sobre neoextrativismo, pretende-se refletir sobre a retórica da
sustentabilidade minerária, observando a problemática da publicida-
de em relação a Fundação Renova, pessoa de direito privado criada
para executar os programas de compensação e reparação ambiental
do Desastre de Marina.
A metodologia qualitativa com método dedutivo-hipotético em-
pregada consiste em revisão de literatura e análise de dados oficiais,
inclusive das atas das reuniões do Conselho Curador da referida fun-
dação, órgão de cúpula da instituição, dos anos de 2016 a 2019.

NEOEXTRATIVISMO: A INDÚSTRIA DO DANO COMO


PROMOTORA DO DESENVOLVIMENTO NACIONAL

As empresas minerárias são apresentadas por Benson e Kirsch (2010)


como expoentes da Harm Industry ou “indústria do dano”, isto é,
como empresas capitalistas que se baseiam em práticas destrutivas ou
prejudiciais às pessoas e ao meio ambiente, sendo que nestas corpo-
rações o dano é inerente ao seu funcionamento normal. Contudo,
apesar da atividade minerária resultar em graves impactos sociais e
ambientais e não promover distribuição de renda, esta permanece
sendo tida como imprescindível para o desenvolvimento do país, por
seu potencial de produzir riqueza.
Além do potencial de degradação e de promover um consumo in-
tensivo de recursos naturais (inclusive de água), a atividade minerária
compete e até mesmo inviabiliza outras atividades se desenvolverem
no território, como agricultura, a pesca, ou o turismo, impedindo
que outras vocações e formas de desenvolvimento emergirem, o que
acentua a dependência da atividade. Ademais “gera, em sua fase de

118
operação, uma quantidade restrita de empregos, geralmente de baixa
qualidade, reforçando um ciclo perverso de reprodução de desigual-
dades socioeconômicas” (MILANEZ et al, 2013, p. 175). Além disso,
o extrativismo fóssil está associado a diferentes danos e riscos à saú-
de, alguns decorrentes das propriedades de certos minérios, como no
caso do amianto por exemplo bastante conhecido mesmo entre os
leigos por suas propriedades cancerígenas, enquanto outros causam
problemas à saúde dos trabalhadores (MILANEZ et al, 2013, p. 178).
A atividade minerária se dá primordialmente a partir de grandes
projetos de investimentos estrangeiros ou de infraestrutura que se
impõe sobre o território reconfigurando o com novas dinâmicas, es-
truturas produtivas, e controle, que como dito acima implicam em
uma dependência à economia de mercado, afetando as comunidades
locais, e com isso resultando em conflitos, inclusive agrários (GON-
ÇALVEZ, MILANEZ e WANDERLEY, 2018):

Isto posto, ampliaram-se as pressões territoriais por meio de dispositi-


vos ilegais característicos de conflitos agrários em áreas de exploração e
explotação [sic] mineral, tais como compra ilegal de terras em áreas de
assentamentos por empresas mineradoras, grilagem, ameaças de morte,
pressão psicológica, perseguições, assassinatos etc. (BEDINELLI, 2016).
Além disso, ainda existem as ações do Estado para servir aos interesses
do capital mineral nacional e estrangeiro (como leis, projetos de leis,
medidas provisórias, uso de força policial contra indígenas, campone-
ses etc.). Por conseguinte, unidades de conservação, áreas de fronteiras,
terras indígenas, territórios quilombolas, comunidades camponesas e as-
sentamentos de reforma agrária metamorfoseiam-se em territórios em
disputa confrontados com as políticas e os projetos de interesse mineral
(GONÇALVEZ, MILANEZ e WANDERLEY, 2018, p. 353).

A instalação destes empreendimentos geralmente se dão em ter-


ritórios remotos, afastados dos centros urbanos, resultando em uma

119
expansão do capitalismo sobre áreas, e comunidades situados às mar-
gens do capitalismo, onde não raro preponderam relações solidárias-
-comunais, que são rompidas pela instalação do empreendimento, ao
mesmo tempo em que os recursos naturais são apropriados e conver-
tidos em mercadorias, razão pela qual estudos compreendem a ex-
tração mineral como estratégias de acumulação por espoliação (DE
MATOS e MEDEIROS, 2013; GONÇALVES e MENDONÇA, 2015),
em referência a categoria cunhada por HARVEY (2004). Este proces-
so de espoliação recai principalmente sobre grupos vulneráveis e re-
sulta em uma intensificação dos conflitos:

O processo de expansão capitalista em escala nacional e global tem im-


plicado na intensiva exploração dos recursos naturais, particularmente
em áreas que até recentemente eram economicamente marginais, bem
como na expansão das fronteiras econômicas sobre territórios ocupa-
dos pela agricultura familiar, povos tradicionais e minorias étnicas. Não
obstante o processo de democratização do país, que culminou com a
criação de um marco regulatório ambiental e com o reconhecimento de
direitos diferenciados de cidadania, observa-se o acirramento de confli-
tos entre populações locais, agências do governo e grupos empresariais.
Essa proliferação de conflitos acompanha a intensificação de investi-
mentos nos chamados projetos de desenvolvimento, ocorrida na última
década no Brasil (ZHOURI, 2012, p. 11).

Contudo, Zhouri e Laschefski (2010) ressalvam que estes sujeitos


atingidos pelos megaempreendimentos não são meras vítimas pas-
sivas, e acabam se organizam coletivamente em variadas formas de
associativismo como movimentos, redes, e associações, passando a
denunciar o cenário de desigualdade e conflito, resistindo às injusti-
ças ambientais impostas (ZHOURI, LASCHEFSKI, 2010). Destaca-se
no caso do desastre de Mariana, o Movimento de Atingidos por bar-
ragens (MAB) e o Movimento Pela Soberania Popular na Mineração

120
(MAM) que conjuntamente com outros grupos de resistência ou en-
tidades estatais relacionada a defesa de direitos humanos, acabam por
confrontar o discurso hegemônico de sustentabilidade largamente
conclamado pelas corporações minerárias e denunciar os conflitos e
as injustiças ambientais.
Assim, apesar de consubstanciar uma atividade potencialmente de-
gradadora, a mineração permanece enquanto modelo de desenvolvi-
mento nacional, sendo que a empresa Vale e outras mineradoras por
ela controladas vem adotando desde os anos 2000 políticas de “marke-
ting verde”, defendendo que a atividade mineradora promoveria um
“desenvolvimento sustentável”1. Este discurso, porém, não foi uma ini-
ciativa isolada desta ou daquela empresa, como veremos a seguir.
Somado ao discurso ambiental tem-se a justificativa da importân-
cia da mineração para a receita pública e para a balança comercial
brasileira, com promessas de desenvolvimento e de geração de em-
prego2, o que vem fundamentando uma relativização dos danos so-
ciais e ambientais, que acabam em segundo plano em nome do pro-
gresso nacional, convertendo as comunidades do entorno em zonas
de sacrifício (BENSON e KIRSCH, 2010; VIÉGAS 2006), expressão
cunhada por Steve Lerner para denunciar as disparidades nos encar-
gos sociais se referir a comunidades de baixa renda ou de minorias
raciais que suportam a maior parte dos danos ambientais relaciona-
dos à poluição, contaminação, resíduos tóxicos e indústria pesada

1. A Vale enquanto era Companhia Vale do rio Doce (CVRD) já possuía alguns programas
voltados à questão ambiental, como por exemplo o Programa Ambiental da Vale, criado em
1994 e certificações ambientais (em 1997, a CVRD obteve seu primeiro certificado ambiental
ISO 14001). Em 1988, a Fundação Vale do Rio Doce deixa de dedicar-se apenas à habitação
também empreendendo projetos ligados ao meio ambiente, mesmo ano em que a Vale in-
tegrou o Conselho Mundial de Empresários para o Desenvolvimento Sustentável. Porém o
uso intensivo de “marketing verde” foi a partir de 2001, com a presidência de Roger Agnelli.
2. O discurso da empregabilidade direta e indireta, o que ficou evidente com os movimen-
tos “Justiça sim, Desemprego não” e “Somos todos Samarco”, que defendem que eventuais
punições em face da mineradora devem ser mitigadas e até perdoadas para viabilizar a perpe-
tuação da empresa na localidade de Mariana.

121
(LERNER apud SCOTT e SMITH, 2017, p.863). Schott e Smith (2017,
p.866) em pesquisa sobre energia renovável definem zonas de sacri-
fício citando Peter C. Little como “ um tropo [figura de linguagem]
usado para descrever comunidades desfavorecidas e paisagens despro-
porcionalmente contaminadas e negligenciadas em nome da acumu-
lação de capital”, indicando inclusive a aplicação desta categoria a zo-
nas de risco de extrativismo fóssil.
A dimensão ambiental e os impactos sociais decorrentes da ativi-
dade minerária, que recaem principalmente sobre as comunidades do
entorno destes empreendimentos, são muitas vezes negados, minimi-
zados, ou apresentados como se fossem questões políticas, ou ainda
como necessários “ ‘sacrifícios’ em troca de maiores benefícios para
toda a nação” (GUDYNAS, 2009, p. 205).
A mineração vem sendo definida como essencial para o desen-
volvimento do país e se manteve como uma atividade econômica de
destaque na América Latina, mesmo durante a gestão de governos
de esquerda, entre os anos 2000 a meados dos anos 2010, que antes
de ascenderem ao poder criticavam o modelo extrativista. O extrati-
vismo durante os governos progressistas intensificou-se, constituindo
“um dos pilares das estratégias de desenvolvimento” destes governos,
com aumento de produtos primários nas exportações e passou a ser
nomeado de neoextrativismo (GUDYNAS, 2018).
Gudynas chama atenção de que no neoextrativismo não houve
uma melhoria substancial na resposta estatal aos impactos sociais e
ambientais, considerando inclusive que houve retrocesso em alguns
países, como no Brasil, em que se teve uma “flexibilização” da legisla-
ção e das licenças ambientais, bem como um aumento dos conflitos
socioambientais e dos protestos contra o extrativismo (GUDYNAS,
2018). Além disso, a facilitação de licenciamentos e a impunidade de
infratores ambientais estão ligadas a anseios desenvolvimentistas de
facilitar empreendimentos (GUDYNAS, 2009), atraindo investimen-
tos e em uma competição internacional entre países.

122
Para Gudynas, no neoextrativismo haveria uma legitimação po-
lítica por meio de arrecadação de recursos por meio de tributação e
royalties para financiamento de projetos sociais, legitimando-se as
atividades extrativistas e os governos, além de contribuir para “apa-
ziguar as demandas sociais locais” (GUDYNAS, 2018, p. 312). Outros-
sim, o mito do progresso muitas vezes é utilizado para atacar grupos
locais de resistência, destacando que o neoextrativismo “reformula
os discursos sobre o desenvolvimento, devendo as comunidades lo-
cais aceitar os sacrifícios dos impactos como forma de se conquistar
supostas metas nacionais, em troca da oferta de um leque de medidas
de compensação” (GUDYNAS, 2018, p. 314-315).
Enquanto no extrativismo clássico o Estado tinha um papel me-
nor e, com isso, uma menor arrecadação diante do ideário liberal,
no neoextrativismo a obtenção de recursos por parte do Estado por
meio de impostos e royalties, ou pela realização direta da atividade
extrativista, é algo fundamental para financiar planos e projetos so-
ciais, muitos voltados para setores populares, com características as-
sistenciais, como o Bolsa Família. Isso gera legitimidade social não
só para os governos, como para estas atividades extrativistas, além
de resultar em uma amortização das demandas sociais (GUDYNAS,
2009). Com isso “... o neoextrativismo é aceito como um dos motores
fundamentais do crescimento econômico e uma contribuição funda-
mental para o combate à pobreza em escala nacional”, legitimando-se
a reboque a própria mineração (GUDYNAS, 2009, P. 213).
Segundo Gudynas (2009), a legitimidade oriunda desta compen-
sação social gerada para os governos e os empreendimentos, resulta
também em uma estigmatização dos movimentos sociais ou indiví-
duos contestadores deste modelo de desenvolvimento, tidos como
inimigos do progresso nacional.
As discussões sobre como esses recursos excedentes do neoex-
trativismo serão gastos e a ideia de que os programas sociais imple-
mentados seriam uma compensação pelos impactos negativos destas

123
atividades, acabam servindo para uma apaziguamento social e impe-
dindo que se avance em uma análise crítica sobre a atividade extra-
tiva e o modelo de desenvolvimento adotado, além de reforçar um
protagonismo das multinacionais junto às comunidades locais, uma
vez que concentram-se os debates e as disputas na distribuição dos
recursos arrecadados, asfixiando contestações sobre o modelo neoe-
xtrativista e os problemas resultantes da mineração (GUDYNAS,
2009,p. 210).
Além disso, a atividade minerária é defendida pelo Banco Mundial
e sua agenda neoliberal como meio de obtenção de investimentos es-
trangeiros, ou seja, de atrair capital privado de empresas transnacio-
nais (BENSON e KIRSCH, 2010, p.471). Estes investimentos, disputa-
dos pelos Estados em uma concorrência global, vêm se concentrado
em enclaves territoriais, “com pouco ou nenhum benefício econômi-
co para a sociedade em geral e protegidos por segurança privada ou
estatal, pois são mais atraentes para o investidor estrangeiro” (FER-
GUSON, 2005).
O neoextrativismo resulta, dessa forma, em uma reconfiguração
do território, ignorando as territorialidades pré-existentes e implican-
do na sua fragmentação, pois se baseia em “economias de enclave”,
ou seja, tem-se por base enclaves extrativistas em que há uma grande
concentração de poder das multinacionais, com presença mínima do
Estado, que fornece proteção policial ou militar, ou seja com um per-
fil ausente ou repressivo para assegurar a atividade econômica. Estes
enclaves estão conectados aos mercados internacionais por meio de
corredores de transporte e energia, que os ligam para outras áreas do
país ou para os portos onde serão escoados os produtos e onde são re-
cebidos insumos e equipamentos, resultando em mais impactos am-
bientais e sociais além dos inerentes à atividade extrativa, em razão
da necessidade obras de infraestrutura e energia (GUDYNAS, 2009).
Além das profundas mudanças na configuração territorial, o neoe-
xtrativismo também impõe transformações nas relações dos atores

124
entre si e entre os diferentes níveis do espaço ao interior de um país.
Citando Bebbington e Hinojosa Valencia (2007) Gudynas destaca que
o neoextrativismo geraria uma “desintegração comunal”, e gera ou-
tros tipos de relação entre os espaços nacional e internacional (GU-
DYNAS, 2009, p. 202).
Uma vez implementado o enclave, as condições e dinâmicas ter-
ritoriais passam a ser ditadas pela corporação e pelo mercado inter-
nacional, de modo que o território passa a ser afetado por normas
empresariais e variações do preço das commodities no mercado inter-
nacional, como ocorreu em Açailândia/MA, em que houve um consi-
derável aumento do desemprego como reflexo da crise econômica de
2008 (MILANEZ et ali, 2013), gerando uma sujeição local ao mercado
internacional.
Gudynas nos lembra de que estes enclaves muitas vezes implicam
em uma “abertura de zonas remotas” a atividades e grupos que ten-
dem a aumentar a violência e os conflitos (como atividade agropecuá-
ria, narcotraficantes e madeireiras), acentuam as desigualdades locais
e resultam em casos de contaminação ou de perda de biodiversidade
(GUDYNAS, 2009).
O avanço da onda conservadora em países Latino-Americanos ali-
cerçados na ideologia neoliberal vem implicando em uma repaginada
do extrativismo enquanto um neoextrativismo liberal-conservador
(GUDYNAS apud GONÇALVES, MILANEZ e WANDERLEY, 2018).
Gonçalves, Milanez e Wanderley (2018) apontam que estamos
frente a uma variação do neoextrativismo em que se manteve a preo-
cupação com a expansão da mineração, sendo que o governo deixa
que ela ocorra sob o controle das forças de mercado, havendo tam-
bém uma tendência de transferência da renda mineral capturada pelo
Estado para o setor financeiro.
Durante o governo Temer (2016-2018) foi verificada uma re-
dução do papel do Estado na mineração, passando a se autointitu-
lar como um Estado “fomentador” voltado para atrair investidores

125
internacionais, empreendendo uma flexibilização da legislação - que
os autores denominaram como “fatiamento do Código Mineral”-, e
promovendo uma abertura de novas áreas para a expansão do setor
mineral, destacando o leilão das áreas do CPRM (Cia. De Pesquisa de
Recursos Minerais, empresa governamental ligada ao Ministério das
Minas e Energia), a alteração dos procedimentos de ofertas de títulos
minerais para leilão eletrônico do DNPM (Departamento Nacional
de Produção Mineral, autarquia federal ligada ao Ministério das Mi-
nas e Energia) e a extinção da RENCA (Reserva Nacional de Cobre e
Associados) (GONÇALVES, MILANEZ E WANDERLEY, 2018).

SUSTENTABILIDADE E MINERAÇÃO
Um caso emblemático de mineração foi o da contaminação resultante
da mina de cobre e ouro Ok Tedi, em Papua Nova Guiné, que descar-
regou mais de um bilhão de toneladas métricas de resíduos de rocha e
rejeitos nos rios Ok Tedi e Fly entre os anos de 1984 e 2013. Após a ju-
dicialização em face da empresa mineradora australiana BHP (Broken
Hill Proprietary Company), que era acionista majoritária e sócia geren-
te da mina Ok Tedi, pelo escritório de advocacia Slater & Gordon (em
um processo de 30.000 pessoas atingidas), a mineradora, que adotou
durante décadas uma política de negação da contaminação, realizou
um acordo de cerca de US$ 500 milhões de dólares, um dos maiores
acordos em processos ambientais daquela época, em razão da publi-
cidade negativa do caso repercutir sobre a imagem da empresa (BEN-
SON e KIRSCH, 2010), atingindo assim o seu capital reputacional, isto
é “aquela porção do valor de mercado da empresa que pode ser atri-
buída à percepção que se tem da firma como uma corporação de boa
conduta no mercado”(MACHADO FILHO e ZYLBERSZTAJN, p. 88).
Alguns anos depois da transação, com a diminuição da atenção de
ONGs e da mídia, a empresa passou a adotar “gestos simbólicos de re-
cuperação e melhoria”, ao invés de realizar as medidas necessárias para

126
resolver o dano ambiental previstas no acordo. A realização de novos
estudos que demonstraram os efeitos prejudiciais da mina e geraram
nova onda de crítica pública fez a empresa retomar as atividades de ges-
tão dos danos e implicou em outro processo judicial, por não ter cum-
prido o acordo e ter continuado a poluir os rios. Posteriormente a fusão
da BHP com a Anglo-Dutch Billiton, em 2001, levou a corporação a
sair do empreendimento, transferindo sua participação para um fundo
fiduciário de Cingapura e encerrando a demanda judicial (com a perda
de US$ Um bilhão dos lucros nos últimos anos de operação da empre-
sa), protegendo-se de críticas (BENSON e KIRSCH, 2010).
Este caso evidencia não só como há uma preocupação das empre-
sas mineradoras com sua imagem e seu capital reputacional, pois da-
nos à imagem, interrupção das atividades e contestações sociais têm
consequências financeiras, considerando que abalos na credibilidade
da empresa no mercado internacional, também têm repercussões pa-
trimoniais no valor de mercado destas empresas.
A preocupação com a imagem da empresa e seu capital reputacio-
nal resulta não só em gastos intensos com publicidade, mas também
vem implicando na adoção por parte das transnacionais minerárias
de técnicas voltadas para gerir ou neutralizar conflitos, camufladas
por terminologias de mercado como gestão do “risco social”, “licença
social para operar”, ou Responsabilidade Social da Empresa.
Esta “licença social” é uma expressão que surgiu nas interações
entre corporações mineradoras e o Banco Mundial e está associada
a uma aprovação das comunidades próximas dos empreendimentos
à atividade. Porém, como problematiza Gaviria, ela se consubstancia
em “uma estratégia empresarial de intervenção política orientada à
consecução do consentimento, quando considerado relevante para
fazer mais eficiente a atividade extrativa ou mesmo para garantir sua
continuidade” (GAVIRIA, 2015, p. 143).
Neste contexto, programas sociais passam a ser implementados a
fim de obter uma “estabilidade política extramuros da empresa”, em

127
que a adoção de técnicas de antecipação e neutralização de conflitos
tenderia a “esterilizar no nascedouro” o debate sobre desenvolvimen-
to sufocando-se as contestações e mobilizações sociais (ACSERALD,
2018 p. 10-11).
Segundo Acselrad “as empresas envolvidas em atividades econô-
micas fortemente dependentes do território passaram a investir na
estabilização sociopolítica dos “entornos” dos estabelecimentos pro-
dutivos” (ACSERALD, 2018 p. 10).
As comunidades do entorno, no caso das indústrias mineradoras,
são vistas como o principal risco para a atividade, e por isso “os diri-
gentes de corporações mineradoras se esforçam para ampliar as coa-
lizões desenvolvimentistas em seu favor, alegando que a presença de
conflitos os leva a deixar de investir milhões de dólares” (ACSERALD,
2018, p. 35).
Observando as Atas do Conselho Curador da Fundação Renova3
(2016-2019) notamos uma preocupação reiterada com os conflitos e o
capital reputacional da instituição, em vários de seus documentos, ex-
pressa em: manifestações sobre a necessidade de estabelecimento de
“estratégias de mitigação de riscos, comunicação e engajamento nas
comunidades afetadas” (Ata do Conselho Curador realizado em 06 de
outubro de 2016, p. 3); e de “aprofundamento do processo de comu-
nicação para reduzir os atritos e conflitos” (Ata do Conselho Curador
realizado em 06 de outubro de 2016, p.4); a aprovação da contratação

3. Organização não governamental privada e sem fins lucrativos, constituída em 2 de março


de 2016, em razão de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), firmado
entre a SAMARCO e os Governos Federal e do Estado de Minas Gerais, além da Agência Na-
cional de Águas (ANA) e o Instituto Chico Mendes, entre outros órgãos. Ela tem o dever de
reparar os danos causados pelo rompimento da barragem de Fundão ocorrido em novembro
de 2015 nas instalações da mineradora localizadas em Bento Rodrigues, distrito de Mariana/
MG. A instituição foi criada para conduzir a reparação e compensação dos danos causados
pelo desastre. É sua a responsabilidade de realizar o cadastro dos atingidos, o manejo do
rejeito depositado ao longo da Bacia do Rio Doce, a reconstrução das vilas atingidas, definir
e pagar as indenizações, além da restauração florestal, a recuperação de nascentes e o sanea-
mento para os municípios ao longo do rio Doce, entre outros.

128
de empresas especializadas como a Herkenhoff & Prates pelo valor
de R$6.882.500,52 (seis milhões, oitocentos e oitenta e dois mil, qui-
nhentos reais e cinquenta e dois centavos) e prazo de vigência de seis
meses (Ata do Conselho Curador realizado em 17 de abril de 2019);
os relatos sobre o monitoramento das mídias (grande mídia e redes
sociais) quanto a menções à Fundação (Ata do Conselho Curador rea-
lizado em 16 de janeiro de 2018 e Ata do Conselho Curador realizado
em 02 de agosto de 2018; Ata do Conselho Curador de 20 de setem-
bro de 2017; Ata do Conselho Curador realizado em 21 de novembro
de 2017); a realização de pesquisas de reputação da Fundação Reno-
va (Ata do Conselho Curador realizado em 19 de outubro de 2017 e
Ata do Conselho Curador realizado em 21 de fevereiro de 2018); as
referências a mapeamento de stakeholders; a preocupação com mo-
vimentos sociais e “invasões a ferrovias”(que interrompem as ativida-
des/escoamento da produção - Ata do Conselho Curador realizado
em 27 de abril de 2017; Ata do Conselho Curador realizado em 10 de
julho de 2017; Ata do Conselho Curador realizado em 01 de agosto
de 2017) e com invasões nos escritórios da Fundação, lideradas pelo
MAB — Movimento dos Atingidos por Barragens (Ata do Conselho
Curador realizado em 18 de junho de 2019); as referências desenvol-
vimentistas como “ Presidente do Conselho salientou a necessidade
de deixar claro para os stakeholders que a Fundação é uma oportuni-
dade de incremento socioeconômico para a bacia do Rio Doce.” (Ata
do Conselho Curador realizado em 11 de janeiro de 2017, p. 11) e re-
ferências a legado (Ata do Conselho Curador realizado em 18 de abril
de 2018) ou “atuação catalisadora de transformações da sociedade no
longo prazo, no aspecto multiplicador da Fundação Renova (Ata do
Conselho Curador realizado em 26 de agosto de 2016, p. 4), entre ou-
tros exemplos.
Outro ponto de destaque é a questão da legitimidade, presente, nas
atas em trechos que evidenciam a preocupação com a “aceitação social
e acadêmica da fundação” (Ata do Conselho Curador realizado em 06

129
de outubro de 2016, p.2 e 3); a uma “ conhecida recusa do MPF em legi-
timar a Fundação Renova” (Ata do Conselho Curador realizado em 21
de fevereiro de 2018, p. 5); a uma preocupação em se desvencilhar das
mantenedoras (Ata do Conselho Curador realizado em 06 de outubro
de 2016; Ata do Conselho Curador realizado em 30 de novembro de
2016; Ata do Conselho Curador realizado em 20 de setembro de 2017);
ou, ainda, reforçando a necessidade de construção de narrativas:

O Conselheiro Sr. Alberto Ninio ressaltou a necessidade de articular


uma estratégia de comunicação estruturada para desconstituir a narra-
tiva sobre a falta de legitimidade da Fundação Renova. Precisamos ter
uma abordagem voltada para as entregas da Fundação Renova baseada
na defesa dos programas do TFAC. O Diretor Presidente ressaltou que
as mantenedoras devem também estar alinhadas a essa narrativa, para
evitar a apropriação da Fundação e de seus trabalhos” (Ata do Conselho
Curador realizado em 10 de julho de 2017).

Benson e Kirsch apontam que o caso de Ok Tedi, conjuntamente


com outros de grande escala que ocorreram concomitantemente neste
período, geraram uma “crise de confiança” que levou a uma produção
de literatura sobre mineração enquanto “desenvolvimento sustentá-
vel”, que passou a pregar que tais atividades e suas receitas criariam
“oportunidade de negócios e empregos”. Os autores ressalvam que esta
ideia de sustentabilidade teria um caráter basicamente econômico, es-
vaziando a referência original ao meio ambiente e que, posteriormen-
te, foi criado o Conselho Internacional em Mineração e Metais (ICMM)
como organização voltada a representar os interesses de tal setor (BEN-
SON e KIRSCH, 2010, p. 747). Segundo estes autores,

A retórica da mineração sustentável ajuda a disfarçar os verdadeiros im-


pactos ambientais da indústria e a evitar que surjam formas mais robus-
tas de regulamentação governamental (Szablowski 2007) Reivindicações

130
da indústria em relação ao meio ambiente e à responsabilidade também
geraram capital simbólico na forma de alianças estratégicas com vários
das maiores e mais influentes ONGs ambientais, incluindo Fundo Mun-
dial para a Natureza [WWF] e União Internacional para a Conservação
da natureza. (BENSON e KIRSCH, 2010 p. 473- tradução nossa).

Assim, a ideia da mineração sustentável está associada a uma pro-


dução de discurso que busca legitimar tal atividade extrativista e afas-
tar as empresas mineradoras de uma imagem de passivos ambientais,
enquanto associam-se a instituições ambientais pautadas em uma vi-
são do ambientalismo relacionado com o culto ao silvestre ou culto à
vida selvagem (ALIER, 2007).
Nas atas do Conselho Curador da Fundação Renova verifica-se
uma maior preocupação e ênfase na questão ambiental, como, por
exemplo, no estabelecimento de parcerias e acordos de financiamen-
to de pesquisas com temática preservacionista sobre biodiversidade
(incluindo aquática) e recuperação ambiental, em detrimento de pes-
quisas sobre aspectos sociais. Além disso, tem-se parcerias com enti-
dades preservacionistas, como, por exemplo, a aprovação do acordo
com a The International Union for Conservation of Nature - União
Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) pelo período
de 5 anos por USD$ 959.400,00 (novecentos e cinquenta e nove mil e
quatrocentos dólares), e com a Sociedade de Investigações Florestais
e a Universidade Federal de Viçosa (UFV), no valor de R$2.231.884,80
(dois milhões, duzentos e trinta e um mil, oitocentos e oitenta e qua-
tro reais e oitenta centavos).
Conforme Scotto, Carvalho, e Guimarães (2007) o conceito de
desenvolvimento sustentável é um conceito em disputa discursiva,
com múltiplas interpretações do que é sustentável, e que envolve um
interesse de legitimar ações como sustentáveis e, portanto, “corre-
tas”, positivas. Os autores destacam que a ambiguidade do conceito,
que propunha um desenvolvimento sem enfrentar as suas principais

131
contradições, buscando conciliar economia e ecologia sem romper
com o modelo de desenvolvimento vigente que estava na origem da
crise ambiental, tornou-o de fácil assimilação por ambientalistas e
pelo empresariado.
Assim este paradigma, consagrado na década de 1990, propõe
uma conciliação entre a “critica ambiental e a sociedade industrial”
apresentando a natureza como uma instância externa à sociedade
e às relações sociais, como uma simples variável a ser “manejada”,
administrada e gerida, de modo a não impedir “o desenvolvimento”
(ZHOURI, LASCHEFSKI E PEREIRA, 2005, p. 15).
Esta separação entre natureza e sociedade e a possibilidade de ne-
gociações diante de problemas sociais e ambientais, obtêm legitimi-
dade por meio das ideias de “sociedade civil”, participação, parceria e
“empoderamento” (ZHOURI, LASCHEFSKI E PEREIRA, 2005), que
empresta a estas palavras um tom democrático. Essa associação da
ideia de desenvolvimento sustentável no campo semântico também
é realizada em relação à governança ambiental, conceito este relacio-
nado a uma ideia de consenso, de concertação, de “conciliação entre
os “interesses” econômicos, ecológicos e sociais, abstraindo dessas di-
mensões as relações de poder que, de fato, permeiam a dinâmica dos
processos sociais” (ZHOURI2008) .
Schoto (2018) destaca a apropriação do conceito de desenvolvi-
mento sustentável por grandes empresas de mineração, articulan-
do a atividade minerária à preservação ambiental, a preocupações
sociais (sob a forma de “responsabilidade social”) e aos chamados
“sistemas de governança”, com o que se “busca legitimar o mode-
lo extrativista exportador de modo geral, e minerador em particu-
lar, mas oculta de forma sistemática os graves e profundos impac-
tos sociais e ambientais de tais empreendimentos’ (Ibase 2011:20)”
(SCOTTO, 2018).
Zhouri e Laschefski (2010) apontam que o paradigma do de-
senvolvimento sustentável resultou em novas legislações, políticas

132
ambientais e iniciativas corporativas. A partir da “Responsabilidade
social e ambiental” as corporações passaram a estabelecer parce-
rias com antigos adversários, como ambientalistas e o movimen-
to social. Alguns ambientalistas estariam promovendo medidas de
“pedagogia do capitalismo” com ações de “esverdeamento do em-
presariado”, no sentido de convencê-los a adotar medidas ambien-
tais e sociais. Os autores problematizam que, porém, na prática se
tem adotado soluções que “visam à eficiência energética material
na produção, o desenvolvimento de novas mercadorias “ecologi-
camente corretas”, o desenvolvimento de mecanismos de mercado
(certificação ambiental, mercado de carbono) e os melhoramentos
das condições de trabalho, sempre encaixadas numa racionalida-
de produtiva que objetiva a abertura de novos mercados”. A mo-
dernização ecológica, ou paradigma da adequação ambiental, está
voltada mais ao aumento de eficiência ou expansão de produtos e
mercados do que propriamente à preservação do meio ambiente
(ZHOURI e LASCHEFSKI, 2010, n.p.). Além disso, a “moderniza-
ção ecológica enquanto paradigma reformador se coloca na con-
tramão dos percursos que visam à construção de um paradigma
transformador para a sustentabilidade” (ZHOURI, LASCHEFSKI E
PEREIRA, 2005, p. 17).
Conforme problematiza Acserald, nas ações da “modernização
ecológica” destinadas essencialmente a promover ganhos de eficiên-
cia (evitando desperdícios e reduzindo gastos de insumos) e a ativar e
expandir mercados, consistindo em um agir pautado pela lógica eco-
nômica em que se atribui ao próprio mercado a tarefa de resolver a
degradação ambiental, e em que se empreende esforços para a obten-
ção de eficiência e ampliação de mercados - “abordagem conservado-
ra da crise ecológica” -, não se contesta a desigualdade social presente
na exposição aos riscos sociais, e ressalta a oposição do movimento da
justiça ambiental enquanto cresce a desigualdade de acesso à prote-
ção ambiental (ACSELRAD, 2004, p. 23-24).

133
No corrente debate sobre sustentabilidade, a ideia de uma conciliação
entre os “interesses” econômicos, ecológicos e sociais ocupa papel cha-
ve. Prevalece a crença de que os conflitos entre os diferentes segmentos
da sociedade possam ser resolvidos por meio da “gestão” do diálogo en-
tre os atores, com a finalidade de se alcançar um “consenso”. Essa polí-
tica de gestão utiliza-se, inclusive, de diversas técnicas e estratégias que
visam atender à premissa da “participação”, essa última compreendida e
empreendida, na maioria das vezes, apenas como uma oitiva da socieda-
de, com ênfase numa imprecisa noção de “população local”. Problemas
ambientais e sociais são entendidos como meros problemas técnicos e
administrativos, passíveis, portanto, de medidas mitigadoras e compen-
satórias. Os efeitos não-sustentáveis do desenvolvimento - pautado esse
na ideia de crescimento econômico via industrialização direcionada à
exportação de mercadorias, com o objetivo de acumulação de riqueza
abstrata no contexto da globalização - são percebidos como solucioná-
veis por meio da utilização de novas tecnologias e de um planejamento
racional (ZHOURI, LASCHEFSKI E PEREIRA, 2005, p. 12).

A GESTÃO DO DESASTRE DE MARIANA E A RETÓRI-


CA SUSTENTÁVEL

Os desastres são processos sociais não rotineiros que se diferenciam


do acontecimento (“causalidade imediata”) que o deflagrou. Eles im-
plicam em uma ruptura social e podem ser classificados como desas-
tres naturais e desastres tecnológicos. Enquanto aqueles estão relacio-
nados a manifestações das forças da natureza, este são “atribuídos a
origem humana”, destacando-se “os fenômenos derivados de falhas,
rupturas ou utilizações indevidas (consciente ou inconscientemente
assumidas) do desenvolvimento tecnológico-industrial” (RIBEIRO,
1995.p. 23-24).
Neste mesmo sentido, Zhouri et al defendem que categoria a ser
adotada para o Desastre de Mariana, resultado do rompimento da

134
barragem de rejeitos de mineração de Fundão, em 05 de novembro
de 2015, deveria ser a de desastre tecnológico que conceitua como
“um desastre atribuído em parte ou no todo a uma intenção humana,
erro, negligência, ou envolvendo uma falha de um sistema humano,
resultando em danos (ou ferimentos) significativos ou morte”, elen-
cando como exemplos o 11 de setembro, o massacre da escola Co-
lumbine e o desastre de Chernobyl (ZHOURI, 2016, p. 37).
Com as políticas neoliberais e a desregulamentação consequente
que se segue à adoção deste modelo econômico, as empresas passam
a ter a responsabilidade de monitorar o próprio impacto, de modo
que comumente são adotadas estratégias para burlar a legislação e
os procedimentos de licenciamento, tal como ocorreu no Desastre
de Mariana em que os licenciamentos foram realizados de forma
fragmentada. Muitas vezes estas estratégias somente vêm à tona
após processos judiciais serem ajuizados como forma de contestação
(BENSON e KIRSCH, 2010).
Além da judicialização, a resolução dos problemas ambientais
e sociais acaba muitas vezes sendo negociada com o poder público,
o que permite o restabelecimento da sensação de normalidade das
atividades minerárias, seguindo a tendência internacional de adoção
de técnicas de resolução negociada, também denominada Alternative
Dispute Resolution (ADR) (NADER, 1994), que permitem às empresas
continuar operando, após parcialmente arcarem com os prejuízos
causados (BENSON e KIRSCH, 2010).
Na gestão do desastre de Mariana, por meio da ideologia do ADR,
foram estabelecidos acordos entre as empresas mineradoras causado-
ras do dano e a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito
Santo, no qual convencionaram um modelo para gestão do desastre,
que recebeu a denominação de Governança Interfederativa. Esta se
baseou na criação de uma “estrutura” chamada Comitê Interfede-
rativo (CIF), que é composta por diversos órgãos e entes estatais e
teria a função de fiscalizar a execução dos programas de reparação

135
e compensação ambiental, e também por uma Fundação Privada a
ser criada pelas empresas mineradoras, que teria a missão de executar
estes programas, tendo sido constituída para este fim a Fundação Re-
nova, acima mencionada.
Esta Governança Interfederativa implementada para a gestão do
desastre de Mariana, vem implicando em uma despolitização da po-
lítica e dos conflitos e uma redefinição do Estado e da dinâmica do
relacionamento dele com a população e as empresas, tal como ana-
lisamos em outro artigo (TERRA, CAMARA e MIRANDA, 2019),
o que remete à crítica de Deneault (2018) de que as multinacionais
constituem uma nova forma de poder, e que elas empreendem es-
forços para a produção de uma cultura e de uma semiótica, a fim de
influenciar o ideário e o vocabulário político.

Meu segundo ponto é que chegamos finalmente, pela força das coisas, a
abandonar completamente o vocabulário político do Estado de Direito
e, num tipo de revolução anestesiante, passamos a integrar ao nosso vo-
cabulário, na vida cotidiana, na nossa cabeça, um discurso empresarial
que não tem nada a ver com a política. Trata-se do discurso da “boa go-
vernança”, e a boa governança é o título de um novo corpus político, de
um novo léxico político que visa substituir as expressões tradicionais da
política por expressões gerenciais (DENEAULT, 2018, p. 18-19).

Para Deneault (2018) com as multinacionais passamos a ter dois


tipos de leis: as leis tradicionais, em que “o governo proíbe certo nú-
mero de coisas a um certo número de pessoas” e as leis desenvolvidas
pelas multinacionais, ou seja a “lei do mercado”, que além de con-
substanciar-se em um poder enorme para as multinacionais, resultam
em uma inversão, em que o Estado precisa se adaptar às leis de mer-
cado, o que resulta em transformações legislativas, ou melhor, nas
palavras deste autor, “levando os Estados, por vontade própria ou à
força, a transformarem os seus próprios dispositivos legislativos, as

136
leis no sentido tradicional do legislador, fazendo-as se assemelhar, ao
fim e ao cabo, à lei do mercado apresentada pelas escolas do comér-
cio” (DENEAULT, 2018, p.22).
O Estado passa a intermediar interesses em um cenário em que o
mercado é convertido em parceiro e o cidadão em consumidor, e em
que a aparência de relações horizontais e consenso, mascaram as desi-
gualdades e uma gestão/controle dos cidadãos.
As indústrias do dano se engajam neste processo, de forma a miti-
gar as críticas e a mobilizar a opinião pública, a fim de manter sua le-
gitimidade. Há ainda um processo de produção de “resignação” e de
asfixiamento da crítica, mascarada pela responsabilidade corporativa
(BENSON e KIRSCH, 2010).
A Fundação Renova, assim como suas “empresas-mães” possui
uma intensa prática de publicidade e, por conseguinte, dispende um
grande volume de gastos com isso. Estes gastos estão dispersos em
diversos programas desenvolvidos por ela, em especial no “Progra-
ma 06 Comunicação, Participação, Diálogo e Controle Social”; no
“Programa 35 Informação para a População”; e no “Programa 36
Comunicação Nacional e Internacional”, os quais são, em regra,
justificados como prestação de informação às comunidades acerca
das atividades e projetos empreendidos pela instituição, para promo-
ver uma comunicação com as mesmas.
A propaganda corporativa é essencial para a construção de narra-
tivas que relacionem as empresas mineradoras à ideia de sustentabi-
lidade. Como destaca Schoto, o público alvo destas propagandas não
são potenciais “consumidores” de minérios, mas o público em geral
uma vez que tais corporações buscam através da publicidade “ven-
der” uma imagem positiva de si para melhorar sua “reputação” pe-
rante a sociedade e seus funcionários (SCHOTO, 2018, p. 41).
Analisando as atas do Conselho Curador da Fundação Renova, no-
tam-se diversas referências quanto a uma construção de narrativas,
como, por exemplo: “vem sendo desenvolvida uma proposta, que

137
parte de criar uma narrativa de apresentação da Fundação para di-
versos formadores de opinião a partir da segunda semana de outubro
de 2016 e, em paralelo, será feita uma abordagem junto à imprensa e
veículos de comunicação” (Ata do Conselho Curador realizado em 06
de outubro de 2016, p. 7)4; o alinhamento de estratégias da área de
comunicação entre a Fundação e as mantenedoras (Ata do Conselho
Curador realizado em 10 de julho de 2017,p.3 ); sobre “a necessidade
de desenvolvimento de planos de contingência para potenciais mídias
adversas que podem atingir a Fundação” (Ata do Conselho Curador
realizado em 16 de março de 2017, p.3); e também:

Aprofundando na temática da comunicação, o Gerente de Comunicação


apresentou a estratégia para a área, que passa pelas histórias da repara-
ção, discussão dos dilemas e complexidades da narrativa e ser uma fonte
primária e confiável de informação e relacionamento. Além dos conteú-
dos que são requeridos à Fundação, precisamos levar os conteúdos que
são do interesse do processo de reparação, como governança, complexi-
dade, restauração florestal, saneamento e desenvolvimento de conheci-
mento. Para o segundo semestre, o Gerente de Comunicação apresen-
tou o planejamento, basicamente segregado em dois momentos, um
focado na potência de comunicação e outro focado no período crítico.
Iniciaremos a produção de material pata o site de internet www.cami-
nhodareparacao.com, especialmente produzido para esse terceiro ano

4. Outra referência à criação de narrativas pode ser encontrada em agosto do mesmo ano:
“Para apresentar o relato de comunicação foram convidados o Sr. Cristiano Cunha e a Sra.
Juliana Machado, que iniciou um resumo das atividades da força-tarefa para o marco de dois
anos do rompimento da Barragem de Fundão, que compreendem a criação de narrativas,
a definição dos materiais e bases de comunicação, o engajamento ativo e a priorização de
entregas. A Sra. Juliana Machado abordou o fichário com as informações das temáticas prin-
cipais de pessoas e comunidades, terra e água e reconstrução de vilas. Em complemento,
a Diretora de Desenvolvimento Institucional apresentou a estratégia de engajamento para
esse marco temporal, ressaltando a definição de prioridades de abordagem, o cronograma
de atuação e os pontos focais de abordagem”(Ata do Conselho Curador realizado em 01 de
agosto de 2017).

138
após o rompimento da Barragem de Fundão, onde estarão disponibili-
zados todos os materiais relacionados ao processo de reparação. Outra
ação é a realização de seminário de reparação de tragédias, em parceria
com a revista Exame, no sentido de promover o debate entre especialis-
tas, organizações não governamentais, academia, imprensa, movimen-
tos sociais e todos aqueles que possam contribuir com a reparação (Ata
do Conselho Curador realizado em 02 de agosto de 2018)

No caso do Desastre de Mariana, nota-se que a publicidade é dire-


cionada não só a dar ciência à população das atividades desenvolvidas
pela Fundação Renova, mas também em construir narrativas com
a preocupação de desvencilhar a fundação (e por consequência, as
empresas mineradoras causadoras do dano) da imagem do desastre,
substituindo esta imagem por uma narrativa de recuperação e repara-
ção ambiental e promoção de desenvolvimento econômico.
A Recomendação conjunta de 29 de novembro de 2020, firmada
pelo Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado de
Minas Gerais, a Defensoria Pública da União, a Defensoria Pública do
Estado de Minas Gerais e a Defensoria Pública do Estado do Espírito
Santo, relata que a Fundação Renova firmou contrato de publicidade
de R$147 milhões, para campanha de publicidade dirigida ao público
em geral e não aos atingidos, “com claro propósito de promover a
imagem das empresas causadoras do dano”, além de haver contradi-
ções entre as informações divulgadas com os relatórios dos especialis-
tas contratados (MPF et. al, 2020, n.p).
Souza em análise realizada por meio das ferramentas do shadow e
do silent reports5, concluiu haver uma “uma tendência de divulgação

5. Segundo Souza, “os relatórios sombra e silencioso configuram técnicas que a contabili-
dade utiliza para identificar diferenças entre o desempenho socioambiental observado pelos
usuários interessados nas atividades da empresa (shadow report) e o desempenho que as
empresas alegam ter alcançado por meio de suas demonstrações e relatórios divulgados pu-
blicamente (silent report)”(SOUZA, 2018, p.18).

139
socioambiental de informações de caráter positivo” nos relatórios da
Fundação Renova, havendo assim uma divulgação seletiva de dados
(SOUZA, 2018, p. 7).
Esta prática não é uma inovação da Fundação Renova. Outra pes-
quisa, que analisou os Relatórios de Administração da Samarco entre
2008/2014 e o Balanço de Ações publicado em 2015 (no ano do De-
sastre de Mariana, a Samarco não publicou relatório de administra-
ção)6, concluiu que “a empresa procura sempre vincular seu nome
às boas práticas” (GALVÃO, MONTEIRO E LIMA, 2018, p.8). Este es-
tudo também destaca um aumento de referências a questões ambien-
tais nos referidos relatórios de contabilidade, o que interpretou como
uma busca de legitimidade da empresa perante a sociedade, conside-
rando que a importância dada a tais informações visariam passar uma
imagem de boas práticas e transparecer responsabilidade pelo uso dos
recursos, ou seja, um comportamento socialmente responsável (GAL-
VÃO, MONTEIRO E LIMA, 2018).
Esta busca por legitimidade teria levado a um aumento, já a partir
da década de 1980, de divulgações de informações ambientais nos de-
monstrativos contábeis, como meio de se evidenciar uma responsabi-
lidade das empresas por questões sociais e ambientais e que a corpo-
ração estaria atuando “dentro de limites que a sociedade indica como
comportamento social aceitável” (GALVÃO, MONTEIRO E LIMA,
2018, p. 3).
As ações publicitárias da Fundação Renova nos remetem a Schoto,
que, ao analisar os processos simbólicos presentes na construção dos
discursos minerários de sustentabilidade, cunhou a expressão “novo

6. Acrescenta-se que “assim, entende-se que a empresa antes do desastre apresentava uma
postura sobre a divulgação de informações ambientais, sendo que após a tragédia esta pro-
curou uma forma de se legitimar perante a sociedade, elaborando um relatório separado
sobre as ações pós-desastre dando uma atenção especial aos aspectos ambientais, visto que
a participação ambiental no relatório de 2015 foi maior que a média apresentada nos anos
anteriores analisados” (GALVÃO, MONTEIRO e Lima, 2018, p.11 e 12).

140
espírito da mineração” (SCOTTO, 2016) para analisar as mudanças
no setor após a década de 1990, afirmando que:

“Espírito” com um forte cunho moral e ideológico, que se traduz em


práticas e discursos em “prol do desenvolvimento sustentável e da mi-
neração responsável” com o objetivo de lograr tanto o apoio e adesão
dos stakeholders nos locais onde opera (a “licença social para operar”),
como o acesso ao público e às instâncias internacionais que cobram -
através de indicadores de sustentabilidade - a responsabilidade social e
ambiental das empresas, um “diferencial para alcançar novos mercados”
(Lemos 2013:119) (SCOTTO, 2016).

Para Schoto esta publicidade busca destacar “‘boas’ ações sociais e am-
bientais, mas também divulgar a crença na importância da atividade da
mineração no dia a dia das nossas vidas”, sendo que “para isso mobiliza
um conjunto de representações sociais, de símbolos e de valores alheios à
atividade econômica propriamente dita” (SCHOTO, 2018, p. 41).
A autora analisa os mecanismos discursivos das mineradoras, ado-
tando a expressão “alquimia narrativa” para identificar um processo
comunicacional e semiótico nos discursos das mineradoras em que se
aproximam noções antagônicas e conflitantes (mas sem paradoxo),
além de realizar um deslocamento semiótico do significado da “mi-
neração”, que passa a ser apresentada “como indústria de transforma-
ção e de agregação de valor” ao invés de extração de metais (SCHO-
TO, 2018, p. 46).
Outra alquimia narrativa seria a o discurso da mineração susten-
tável dedicada ao “cuidado da natureza” e a “preocupação com o fu-
turo do planeta”, que segundo a autora se daria com representações
imagéticas e audiovisuais sobre a “Natureza” e o “meio ambiente”
enquanto flora e fauna e por meio da cor verde, ocultando a essência
“extrativista da atividade minerária associada à riqueza/ produção de
valor (SCHOTO, 2018).

141
Segundo a autora há um duplo movimento presente nas propa-
gandas institucionais das mineradoras:

1) Um movimento de ocultamento da dimensão extrativista da mi-


neração, transformando-a em “indústria”. Ao mesmo tempo, as em-
presas mineradoras se apresentam como peças chaves no processo
evolutivo da sociedade, na medida em que são as responsáveis pela
transformação de minérios em bens manufaturados (Schoto, 2018).
Um segundo movimento [é aquele] através do qual se dissociam os
minérios da Natureza. É esta Natureza (sem minérios) a que passa a
ser representada como o objeto do DS. Por isso as empresas podem
mostrar suas ações de cuidado com o planeta, de preocupação com a
Natureza, porque o minério, transformado em “recurso” não é parte
dela (SCHOTO, 2018, p.50).

A autora considera a incorporação, por parte das mineradoras, do


discurso do desenvolvimento sustentável, como um deslocamento
do capitalismo, ou seja, citando Boltanski e Chiapello (2009), ressalva
que o capitalismo diante de críticas e ante a necessidade de respon-
dê-las, incorpora uma parte dos valores em que é criticado, a fim de
desarmar as críticas (SCHOTO, 2018).
Por outro lado, Schoto destaca que os desastres ambientais desa-
fiariam o discurso da mineração sustentável e relativizariam o poder
de deslocamento do capital, pois evidenciariam a dimensão insusten-
tável das atividades extrativistas e os impactos sociais e ambientais ne-
gativos, citando os desastres de Marina (2015) da Samarco, e da Anglo
American (2018) com vazamento no mineroduto da empresa em Mi-
nas Gerais (SCHOTO, 2018).
O Desastre de Mariana causou grande comoção nacional, repercu-
tindo também internacionalmente, impactando o discurso de susten-
tabilidade empreendido pelas empresas mineradoras causadoras do
dano, a Vale, a BHP Biliton e sua joint venture, a Samarco. Os desastres

142
corporativos têm um potencial maior de mobilização da opinião pú-
blica e de ampliar contestações:

Powerful events have spurred public outrage against industry, for


example, the release of the 1964 Surgeon General’s report on smo-
king and cancer, which substantially altered popular perceptions and
meanings of smoking, or the publication of Rachel Carson’s (1962)
watershed Silent Spring, which catalyzed a broad-scale critique of
the industrialized food system (see McWilliams 2008). These tipping
points have the potential to galvanize social activism, what Ulrich
Beck (1992:78) calls the “enabling power of catastrophes.” However,
these events are not always or fully threatening to corporations, whi-
ch push back by proliferating doubt and responding in ways that pro-
mote a sense of political resignation. When successful, these corpo-
rate responses fragment social movements and forms of critique that
coalesce around tipping points, leading to policy changes focused on
reform rather than wholesale restructuring of society and economy.
(BENSON e KIRSCH, 2010, p. 465).

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste artigo buscamos analisar como a mineração, sendo uma ativi-
dade tipicamente poluidora e incapaz de implicar em redistribuição de
renda, mesmo após dois crimes socioambientais de proporções trági-
cas, permanece intensamente utilizando o discurso da sustentabilidade
e sendo considerada essencial para o desenvolvimento do Brasil.
A legitimidade da mineração ainda permanece ligada a uma natu-
ralização da histórica exploração da atividade de commodities em países
subdesenvolvidos e em ex-colônias, ratificada pelo Estado e o neoextra-
tivismo, bem como pelo discurso do desenvolvimento sustentável.
Dessa forma, buscou-se refletir sobre a produção simbólica de
verdades pelo setor extrativista fóssil e sobre o papel do Estado na

143
incorporação das estruturas cognitivas como naturais no inconscien-
te coletivo.
Vimos que a mineração é classificada como indústria do dano,
pois isto é inerente à sua atividade, e elencamos alguns destes danos
sociais e ambientais, que recaem primordialmente sobre as comuni-
dades do entorno, convertidas em zonas de sacrifício em nome do
progresso nacional.
A instalação destes empreendimentos configura uma forma ex-
pansão do capitalismo (de acumulação de capital por espoliação) e se
dá por meio de enclaves extrativistas, que implicam em dependência
econômica dos mercados internacionais e sufocam outras atividades,
vocações e alternativas de desenvolvimento, impedindo que se desen-
volvam no território. Destacam-se neste cenário uma baixa quanti-
dade de empregos gerados, normalmente de baixo escalão (“chão de
fábrica” ou terceirizados), os danos à saúde coletiva ou dos trabalha-
dores, a abertura do território a madeireiras ilegais, a narcotraficantes
e à agropecuária, e os conflitos decorrentes de obras de infraestrutura
ou de energia.
Porém os danos sociais e ambientais são rotineiramente relativi-
zados sob a justificativa da importância da mineração para a receita
pública e para a balança comercial brasileira, somada às promessas de
desenvolvimento e de geração de emprego.
A mineração vem sendo definida como essencial para o desen-
volvimento do país e se manteve como uma atividade econômica de
destaque na América Latina, mesmo durante a gestão de governos
de esquerda. Durante este período (Neoextrativismo progressista) a
arrecadação de recursos por meio de tributação e royalties para finan-
ciamento de projetos sociais legitimava as atividades extrativistas e os
governos, além de contribuir para o apaziguamento social.
Vimos o caso emblemático de mineração da mina de cobre e ouro
Ok Tedi em Papua Nova Guiné, que evidencia a importância da ima-
gem e do capital reputacional para as empresas mineradoras, uma vez

144
que danos à imagem, interrupção das atividades e contestações so-
ciais afetam a credibilidade da empresa no mercado internacional, ge-
rando repercussões patrimoniais no valor de mercado das empresas.
Neste contexto, de “crise de confiança” pós desastre de Ok Tedi, teve-se
o desenvolvimento de uma literatura sobre mineração enquanto “desen-
volvimento sustentável”, que defendem tal atividade como forma de de-
senvolvimento e geração de empregos, dando um viés econômico ao con-
ceito ao mesmo tempo que a referência original ao meio ambiente. Esta
retórica da mineração sustentável permite disfarçar os danos sociais e am-
bientais da atividade, afastando contestações e uma maior regulação am-
biental, e mostra o caráter verdadeiramente insustentável desta atividade.
Assim, a ideia de uma mineração sustentável está associada a uma
produção de discurso que busca legitimar tal atividade extrativista e
afastar as empresas mineradoras de uma imagem de passivos ambien-
tais, bem como na adoção de medidas de “esverdeamento do empre-
sariado” ligadas a políticas de contenção de conflitos, à publicidade e
à “modernização ecológica” que está mais voltada para garantir um
aumento de eficiência (reduzindo custos) ou a expansão de produtos
e mercados do que propriamente em preservar o meio ambiente.
Observando as atas do Conselho Curador da Fundação Renova
notamos uma preocupação reiterada com os conflitos, com a pro-
dução de narrativas que fortalecessem a legitimidade da Fundação e
referências à questão ambiental numa leitura apartada do meio am-
biente e sociedade, com privilégio para parcerias e atividades ligadas à
temática da biodiversidade.
A Governança Interfederativa implementada para a gestão do de-
sastre de Mariana, vem implicando em uma despolitização da polí-
tica e dos conflitos e uma redefinição do Estado e na dinâmica dele
com a população e as empresas, em um cenário em que o mercado é
convertido em parceiro do Estado e em que a aparência de relações
horizontais e consenso, mascaram as desigualdades e uma gestão/
controle dos cidadãos.

145
Vimos que a Fundação Renova, assim como suas “empresas-mães”
possui uma intensa prática de publicidade, empregada mais para a
construção de narrativas que relacionem as empresas mineradoras à
ideia de sustentabilidade do que para informar a população.
No caso do Desastre de Mariana, nota-se que a publicidade é direcio-
nada não só a dar ciência a população das atividades desenvolvidas pela
Fundação Renova, mas também são empreendidas com a preocupação
de desvencilhar a fundação (e por consequência as empresas minerado-
ras causadoras do dano) da imagem do desastre, em substituição a uma
narrativa de recuperação e reparação ambiental e promoção de desenvol-
vimento econômico. Este desvirtuamento da propaganda foi objeto da
Recomendação Conjunta de 29 de novembro de 2020 (MPF et al, 2020),
Vimos também que tais publicidades utilizam o que Schoto denomi-
nou de “alquimia narrativa”, um processo comunicacional e semiótico
utilizado nos discursos das mineradoras em que se aproxima noções
antagônicas e conflitantes (mas sem paradoxo). Utilizam-se ideias opos-
tas como se naturalmente fossem convergentes, manipulando com oxi-
moros ou figuras de linguagem a percepção das pessoas sobre a realida-
de, a fim de construir uma legitimidade para a empresa.
Porém, desastres como o de Mariana causam grande comoção na-
cional, repercutindo também internacionalmente, impactando o dis-
curso de sustentabilidade empreendido pelas empresas mineradoras
em suas propagandas corporativas e ampliando as contestações públi-
cas, demonstrando a insustentabilidade deste modelo de desenvolvi-
mento tão pouco problematizado em nosso país.

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RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 10 de julho de 2017.
RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 16 de março de 2017.
RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 01 de agosto de 2017.
RENOVA, Ata do Conselho Curador de 20 de setembro de 2017.
RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 19 de outubro de 2017.
RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 21 de novembro de 2017.
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RENOVA, Ata do Conselho Curador realizado em 18 de abril de 2018.
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149
A GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA DO
DESASTRE TECNOLÓGICO DE MARIANA:
UMA REFLEXÃO SOBRE A GESTÃO DE
CONFLITOS SOCIOAMBIENTAIS
Alessandra Dale Giacomin Terra
Andreza Aparecida Franco Câmara
Napoleão Miranda

INTRODUÇÃO
Este texto pretende refletir sobre a Governança Interfederativa imple-
mentada para administrar as consequências socioambientais e econô-
micas decorrentes do Desastre Tecnológico de Marina (ZHOURI, et
al., 2016). Objetiva-se refletir sobre esta configuração governamental,
compreendendo Comitê Interfederativo (CIF) como espaço de apro-
priação material e de disputa pela distribuição do poder material e
simbólico (BOURDIEU,1976;1989).
A metodologia qualitativa com método dedutivo-hipotético em-
pregada consiste em revisão de literatura, análise de dados fornecidos
pelos órgãos, empresas mineradoras, Fundação Renova e do Comitê
Interfederativo, uso de entrevistas com diversos atores locais e análise
das falas do Seminário Rio Doce: Desafios da Governança Interfede-
rativa, ocorrido em agosto de 2017.
Se por um lado, esta reconfiguração da atuação administrativa se
mostra um importante avanço na busca da eficiência pela adminis-
tração pública, ao permitir que diferentes órgãos de diferentes entes
federativos possam trabalhar em conjunto com a iniciativa privada,
por outro lado, cumpre problematizar sobre como esta estruturação

151
alijou a sociedade civil do processo decisório e fiscalizatório, e sobre
como esta basear-se na idéia de governança, foi estruturada mitigan-
do a participação popular.
Acredita-se que esta realocação dos conflitos em agrupamentos
técnicos e o uso de técnicas de resolução negociada acabam por ge-
rar um apaziguamento fictício e a idéia de superação do desastre, vi-
sados pelas empresas mineradoras para um restabelecimento de sua
imagem e atividades, bem como que isso dificultaria o processo de
participação da população e de formação de sua identidade enquanto
atingido.
Logo neste artigo, objetiva-se refletir sobre como através desta
reconfiguração governamental, o Estado vem operacionalizando res-
postas ao Desastre Tecnológico, bem como intermediando sua rela-
ção com as empresas mineradoras e os atingidos.

A GOVERNANÇA INTERFEDERATIVA COMO PRODUTO


DA ADOÇÃO DE TÉCNICAS DE RESOLUÇÃO NEGOCIADA

Após o Desastre Tecnológico de Mariana foram constituídos agru-


pamentos técnicos, com a finalidade de avaliar os impactos sociais,
ambientais e econômicos do Desastre1.
Os 41 programas resultado das ações destes agrupamentos técni-
cos mais tarde vieram a compor Termo de Ajustamento de Condu-
ta (TAC) celebrado em 02 de março de 2016 pelas empresas mine-
radoras Samarco, BHP Billiton Brasil Ltda e pela Vale S.A, a União
e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo. Neste acordo
se estabelecia que tais empresas arcariam com a quantia de R$ 20

1. Tem-se destaque a Portaria nº 2, de 6 de janeiro de 2016, do Ministério do Meio Ambien-


te, que instituiu um Grupo de Trabalho com a finalidade de Coordenar a “posição ambiental
na esfera federal”, bem como o Decreto s/nº de 12/11/15, que instituiu o Comitê de Gestão
e Avaliação de Respostas ao desastre ocorrido nas barragens do Fundão e de Santarém no
Município de Mariana

152
bilhões de reais, a título de reparação pelo desastre, valor que seria
gerenciado por uma Fundação de direito privado que deveria ser
instituída para executar as medidas previstas no acordo. O acordo
previa ainda que a constituição pessoa jurídica de direito privado
seria fiscalizada por um Comitê Interfederativo (CIF) e seria objeto
de auditoria independente (Tendo sido escolhida a empresa de Au-
ditoria Ernst & Young).
Mesmo tendo sido liminarmente suspensa a homologação do
acordo pelo STJ, em 30 de junho de 2016, em sede da Reclamação nº
31.935 - MG (2016/0167729-7), foram constituídos o Comitê Interfe-
derativo e a Fundação Renova, passando respectivamente a gerenciar
e executar os agora 42 programas socioeconômicos e socioambien-
tais definidos enquanto compensação e reparação.
O CIF teria por finalidade orientar, acompanhar, monitorar e fisca-
lizar a execução das medidas previstas no TTAC e no TAC-Gov pela
Fundação Renova. Assim, convém destacar que a gestão interfedera-
tiva se refere apenas a responsabilização civil, não abarcando a res-
ponsabilização administrativa e penal, ou seja, o CIF tem a função de
função de orientar as ações reparatórias e compensatórias não sendo
responsável por aplicar sanções, exceto no caso das Clausulas 247 a
252 do TTAC e da Clausula Centésima Décima do TAC- Gov, relati-
vas a multa por descumprimento dos acordos.
Em 25 de junho de 2018, foi firmado o TAC- GOVERANÇA, desta
vez contando com a aceitação dos Ministérios Públicos e Defensorias,
por trazer mudanças nas estruturas que permitiriam uma maior par-
ticipação popular2.

2. Sobre o tema conferir MPF. Desastre do Rio Doce: Como o TAC Governança assegu-
ra direitos dos atingidos. 2018 disponível em http://www.mpf.mp.br/para-o-cidadao/
caso-mariana/duvidas-sobre-o- tac- governanca/desastre-do-rio-doce-como-o-tac-gover-
nanca-assegura-os-direitos-dos-atingidos (Acesso em 05/04/2019) e https://www.mpmg.
mp.br/comunicacao/noticias/acordo-altera-governanca- da-fundacao- renova-para-garan-
tir-participacao-dos-atingidos-pelo-rompimento-da-barragem-de- fundao.htm (Acesso em
05/04/2019).

153
O TAC-GOV trouxe modificações no Comitê Interfederativo e
suas Câmaras Técnicas, previu a formação de comissões locais (antes
só havia as comissões de Mariana e Barra Longa) e de Câmaras Re-
gionais, e promoveu modificações no Conselho Consultivo da Fun-
dação Renova. Em razão disso foi elaborado um novo Regimento In-
terno para o Comitê-Interfederativo, absolvendo estas mudanças. Em
síntese, pode-se elencar as principais modificações na figura abaixo:

Figura 01. Quadro comparativo da organização do CIF no TTAC e no TAC- Governança

Comitê Interfederativo
Regimento TTAC Regimento TAC-Gov
Natureza “instância externa e inde- Idem
pendente da FUNDAÇÃO”
[RENOVA](art.
1,
parágrafo único)
Representantes 2 do Ministério do Meio 02 do Ministério do Meio Ambiente 02
Ambiente; do Governo Federal; 02 do ESTADO
2 do Governo Federal, DE MINAS GERAIS
2 do ESTADO DE MINAS 02 do ESTADO DO ESPIRI-
GERAIS, TO SANTO
2 do ESTADO DO ES- 02 dos MUNICÍPIOS atingidos de
PÍRITO SANTO; 2 dos Minas Gerais
MUNICÍPIOS de Minas 01 dos MUNICÍPIOS atingidos do
Gerais 1 dos MUNICÍPIOS Espírito Santo
do Espírito 03 pessoas atingidas ou técnicos por
Santo elas indicados (dos Estados de Minas
1 do Comitê de Bacia Gerais e do Espirito Santo) 01
Hidrográfica do Doce Técnico indicado pela DEFENSORIA
(CBH-Doce) 01 representante do CBH- DOCE
Previsão de presença, com direito a voz
e sem direito a voto, de 02 (dois) inte-
grantes do MINISTERIO PUBLICO e 01
(um) da DEFENSORIA PUBLICA
Presidente Indicado dentre A escolha permanece com o Ministro
os representantes pelo do Meio Ambiente, porém especifica-
Ministério do Meio Am- -se que deve ser escolhido dentre os
biente, art. 3 representantes da União no CIF.

154
Comitê Interfederativo
Regimento TTAC Regimento TAC-Gov
Municípios São indicados pelos gover- Há previsão de rodizio entre os muni-
atingidos nadores de seus respetivos cípios afetados, sendo os representan-
Estados. tes indicados pelos
Não há alternância prefeitos (por até 2 (dois) anos por
prevista. município, sem recondução)
Custeio do CIF não há previsão Custeio do Orçamento do CIF pela
Renova por Gerenciador escolhido
pelo CIF dentre os indicados pela
Fundação (art. 19)
Reuniões Or- a cada 2 meses (art. 12). reuniões mensais (art. 10). Sessão
dinárias Sessão pública pública
Quórum mínimo dois terços de seus mem- idem (art. 12)
de instalação bros (art. 15)

Quórum da maioria simples dos seus idem (art. 12)


votação membros, exceto para
imposição de multas em
que exige-
se quórum qualificado
(art. 18)

Desta forma, na gestão deste conflito socioambiental de larga es-


cala, optou-se pela adoção de técnicas de resolução negociada, ou
Alternative Dispute Resoluction (ADR), sob justificativas de celeridade
e eficiência, justificativas estas verificadas nas falas dos membros do
CIF, durante o Seminário - Rio Doce: Desafios da Governança
Interfederativa, que ocorreu entre os dias 24 e 25 de agosto de 2017,
como a do Secretário-adjunto de estado de Meio Ambiente e desenvol-
vimento sustentável de Minas Gerais, Germano Luiz Gomes Vieira:

Nós tivemos diversas ações e.. mas ações também de outros estados e
ações administrativas, como a quantificação do dano no primeiro mo-
mento, o auxílio às vítimas, a formação de comissões por todos os gover-
nos, que nos trouxe uma outra constatação: a necessidade de nós termos
um modelo mais holístico, consensual, de convergência, para que a gente

155
pudesse cada um atirar para o mesmo lado... né ? esse modelo consensual
justamente aquilo que originou o TTAC, o Termo de Transação e Ajusta-
mento de Conduta, com algumas premissas que para todos nós éramos..
eram inegociáveis, como a recuperação integral dos impactos ambientais
e dos impactos socioeconômicos, a garantia de consideração dos impac-
tados sejam eles pessoas, famílias, comunidades, agricultores, pescadores,
areeiros, pequenas empresas. Transparência, como disse a presidente do
Ibama, em todas as nossas ações, e como diz também o Leonardo, ah...
visando através das ações compensatórias ter uma Bacia do Doce em me-
lhores condições que nós tínhamos antes sequer da tragédia. Enfim além
de todas essas ações, nós tivemos como também foi dita, que um modelo
inovador de governança, que hoje após todos esses meses nos traz real-
mente a certeza de que não optar por uma via tradicional, de batalhas
judiciais que se arrastam anos no poder judiciário, como temos diversos
exemplos do Brasil, como caso de Goiânia do Césio 137, do despejamen-
to de 2000 na bacia da Guanabara, processos que ainda estão em fase de
instrução do Poder Judiciário. E menos de 4 meses do acidente, nós tive-
mos uma modelação de um acordo para tentar de uma forma imediata,
atendendo o princípio de recuperação ambiental que é de imediata e inte-
gral recuperação, o início das nossas ações que mesmo diante de todas as
dificuldades nós podemos dizer e afirmar categoricamente se tivéssemos
ocupados por outras vias, hoje nós não teríamos condição de mostrar
isso aos senhores e mais do que isso a certeza também de que com vá-
rias ações que hoje correm que existem de recuperação da Bacia do doce,
aquelas que hoje se apresenta de maneira mais concreta são aquelas que
originaram do TTAC (Vieira, 2017).

O uso de tais técnicas de gestão de conflitos se insere em um contex-


to de tendência de alocação de atividades na América latina em busca
de recursos naturais territorializados, em que o uso de resoluções nego-
ciadas vem constituindo a principal forma de estabilização social utiliza-
das pelo capital a fim de despolitizar o conflito e afastar a aplicação da

156
lei, retirando-se o conflito da esfera pública sob justificativa de busca de
eficiência e da harmonia (ACSERALD e BEZERRA, 2007).
Conforme NADER ocorre um “deslocamento da preocupação com
a justiça para uma preocupação com a harmonia e a eficiência, de uma
ética do certo e errado para uma ética do tratamento” (NADER, 1994).
Esta ideologia da harmonia vem ganhando espaço não só por ir ao en-
contro com preceitos cristãos de valorização da concórdia, mas também
por um interesse de mercado na ideia de estabilidade (NADER, 1994).
O processo de contratualização (ACSELRAD, 2014), realiza-se, de
fato, em detrimento dos espaços e possibilidades de participação dos
atingidos e apoiadores, segmentos que não foram ouvidos ou consul-
tados quando da elaboração, por exemplo, do Termo de Transação e
de Ajustamento de Conduta – TTAC (ZHOURI, 2017, p. 37-38).

PARTICIPAÇÃO SOCIAL E GOVERNANÇA INTERFE-


DERATIVA

Desta forma, a estruturação da governança interfederativa se deu


sem participação da população atingida, por meio da adoção de téc-
nicas de resolução negociada e a partir da dos programas elaborados
por agrupamentos técnicos em que também não havia participação
social, o que foi objeto de ressalva do Conselho Nacional dos Direitos
Humanos (CNDH):

A situação que salta aos olhos no CIF e suas Câmaras Técnicas, as quais
têm expedido recomendações para as empresas, é a total ausência de parti-
cipação dos atingidos em seus processos deliberativos, de critérios, prazos,
prioridades, deliberações, que não possuem dimensão unicamente técnica.
A deliberação n. 5, por exemplo, considera que, em relação à Categoriza-
ção de Impactados (ANEXO I) apresentada pela empresa, as hipóteses de
impacto listadas estão corretas e adequadas. Essa categorização, comu-
mente conhecida como debate do conceito de “atingido”, é polêmica e,

157
geralmente, restritiva, o que tem por consequência a negação de direitos
para aqueles que não se enquadram nas categorias, como já vem ocorren-
do nos casos negados de cartão para alimentação e subsistência. Ademais,
não houve qualquer processo de participação social para validação/aprova-
ção dessa “categorização”, confirmando aquilo que os atingidos denuncia-
ram quando da celebração do acordo entre órgãos de Estado e empresas,
ou seja, que não havia participação dos mesmos na celebração do acordo,
como não está ocorrendo agora nestes acordos, definições fundamentais
para impedirem-se novas violações (CNDH, 2017,p.42).

Na página relativa ao Relatório de atividades da Fundação Re-


nova3, a primeira mensagem que se lê, e que apresenta com grande
destaque é “GOVERNANÇA Todos participam das decisões”. Logo
abaixo, vem em destaque a mensagem: “As atividades e soluções pro-
postas e executadas pela Fundação Renova seguem um processo de
envolvimento, participação e construção conjunta com diversos pú-
blicos interessados: população atingida, especialistas e agentes públi-
cos – estes últimos, como representantes da sociedade.”

Figura 02. Imagem obtida do site da Fundação Renova em que


nota-se o destaque dado a ideia de Governança

3. https://www.fundacaorenova.org/relato-de-atividades/governanca/ Acesso em 03/06/2019

158
Segundo a Fundação Renova não só há participação dos atingidos
no processo, como a política da entidade se dá a partir de uma gover-
nança participativa (RENOVA, 2016, p.20).
Porém nota-se que até o momento há uma carência de instâncias
em que os atingidos possam efetivamente influir no processo de de-
cisão, conforme inclusive foi destacado pelo Relatório do CNDH4 e
pela Recomendação Conjunta nº 10 (MPF et. Al; 2018). A Governan-
ça Interfederativa se estrutura a partir do Comitê e de Câmaras téc-
nicas, que priorizam o discurso científico e não apresentam espaços
de participação popular. Antes do TTAC de 2016 e do CIF, os agru-
pamentos técnicos supracitados também se organizavam a partir de
representantes de órgãos federais sem espaço para representação ci-
vil. A ausência de espaços de discussão também se verifica na Renova
cuja participação dos atingidos está limitada a ouvidoria e canas de
atendimento5, ou seja, a atuação dos atingidos se dá sem uma arena
pública que permita a deliberação. Além disso, apesar de a Fundação
Renova ter realizado diversas reuniões com os atingido, as mesmas
foram objeto de crítica por consistirem em apresentações de projetos
consolidados, sem possibilidade de participação dos atingidos (MPF
et al; 2018).
Essa questão merece análise considerando que a governança tem
por epicentro as idéias de democracia e participação social.
Os textos sobre governança remontam à década de 1970, porém
tal categoria ganhou destaque na década de 1990, em um contexto
de reforma de Estado e após ser apresentada pelo Banco Mundial en-
quanto como o Estado que visa desenvolvimento deve exercer seu

4. Por exemplo segundo o CNDH: “A situação que salta aos olhos no CIF e suas Câmaras
Técnicas, as quais têm expedido recomendações para as empresas, é a total ausência de parti-
cipação dos atingidos em seus processos deliberativos, de critérios, prazos, prioridades, deli-
berações, que não possuem dimensão unicamente técnica” (CNDH; 2017, p.38- 42).
5. A estrutura da Renova prevê a participação de 5 representantes da comunidade (3 de MG
e 2 do ES) no Conselho curador, porém isso é objeto de crítica pela quantidade e por eles
serem indicados pelo CIF.

159
poder, relacionando medidas voltadas à obtenção de crescimento
econômico, desenvolvimento social e promoção de direitos humanos
(World Bank, 1995).
DINIZ destaca que com a categoria governança a definição da
qualidade gestão pública deixou de ser pautada em termos estrita-
mente econômicos, para considerar as dimensões sociais e políticas,
enfatizando que “Em sentido amplo, capacidade governativa não
mais seria avaliada em função apenas dos resultados das políticas go-
vernamentais, passando a significar a forma pela qual o governo exer-
ce seu poder” (DINIZ, 2016, p. 60. Porém para a autora, a idéia de boa
governança não pode ser reduzida a modus operandi das políticas, pois
refere-se também a padrões de coordenação e de cooperação entre
atores sociais e políticos (DINIZ, 2016).
A governança representa uma proposta de nova estruturação das
relações entre o Estado e sociedade civil, e é apresentada por auto-
res, como KISSLER e HEIDEMANN, como alternativa ao modelo da
administração pública gerencial (new public management) (KISSLER e
HEIDEMANN, 2006).
Este raciocínio foi endossado por DINIZ, que entende a governan-
ça como uma alternativa a crise do estado autoritário, e ao neolibe-
ralismo:

Superar o atual impasse representado pela intratabilidade de pro-


blemas cruciais como a inflação, a desigualdade e a exclusão social
requer a ruptura com o enfoque tecnocrático e com a postura neoli-
beral. O primeiro, ao privilegiar o insulamento das elites estatais e a
primazia do saber técnico, conduz a uma despolitização artificial dos
processos de formulação e execução de políticas. O segundo, ao en-
fatizar unilateralmente a redução do Estado, ignora a estreita relação
entre a revitalização do aparelho estatal e o êxito de suas políticas
(DINIZ, 2016, p. 64).

160
Por outro lado, BEVIR destaca que a governança teria origem e
seria influenciada pelo neoliberalismo:

A governança surgiu então em duas ondas analiticamente distintas da


reforma do setor público. A primeira consistiu nas reformas associadas
ao conceito econômico de racionalidade – o neoliberalismo, a Nova
Administração Pública [New Public Management3] e a terceirização. A
segunda consistiu em reformas associadas a conceitos sociológicos de
racionalidade - a Terceira Via4, a governança joined-up5 e redes e parce-
rias. Uma primeira onda de reformas baseou-se na insatisfação pública
com a burocracia e também no neoliberalismo e na teoria da escolha
racional, ambos os quais explicaram e legitimaram essa insatisfação. Os
neoliberais comparam o modo de organização estatal – hierárquico, de
cima para baixo com a estrutura descentralizada e competitiva do mer-
cado. Eles argumentam que o mercado é superior ao Estado e concluem
que quando possível os mercados ou quase- mercados devem substituir
a burocracia. A busca por eficiência conduziu-os a propor que o Estado
transferisse organizações e atividades para o setor privado: as organiza-
ções poderiam ser transferidas por meio da privatização, isto é, da trans-
ferência de bens do Estado para o setor privado por meio da abertura de
capital ou da cessão do controle acionário; as atividades poderiam ser
transferidas por meio da terceirização, isto é, o Estado pagaria a uma
organização do setor privado para que esta realizasse tarefas em seu be-
nefício (Bevir, 2011 p.107)

KISSLER e HEIDEMANN compreendem que a governança seria


baseada nas ideias de autonomia, coordenação e cooperação, e que
por se estruturarem por meio de redes Inter-organizacionais consis-
tiria em uma alternativa para a uma gestão baseada na hierarquia e
ao estado gerencial. Na governança ter-se-ia um Estado cooperativo,
que atua em conjunto com a sociedade e o mercado, por meio de
parcerias:

161
Seu significado original continha um entendimento associado ao debate
político-desenvolvimentista, no qual o termo era usado para referir-se a
políticas de desenvolvimento que se orientavam por determinados pres-
supostos sobre elementos estruturais — como gestão, responsabilidades,
transparência e legalidade do setor público — considerados necessários ao
desenvolvimento de todas as sociedades (pelo menos de acordo com os
modelos idealizados por organizações internacionais como a Organização
das Nações Unidas [ONU] ou a Organization for European Cooperation
and Development [OECD]) (KISSLER e HEIDEMANN, 2006, p.481).

As idéias de “cooperação” e parceria entre atores, que como des-


tacado são consideradas típicas da governança, estão presentes na
governança interfederativa. O CIF é defendido com uma estrutura
inovadora e bem sucedida de gestão das externalidades negativas do
desastre tecnológico de Mariana, em que haveria uma lógica de coo-
peração e parceria, e não de conflito, como pode ser percebido no
trecho também de Suely Araujo:

É consenso entre as organizações envolvidas que as medidas de conten-


ção, reparação, recuperação e compensação são urgentes, complexas e,
por isso, precisam ser disciplinadas. Esse disciplinamento tem sido cons-
truído de forma cooperativa e inovadora por meio do Comitê Inter-
federativo – CIF e das Câmaras Técnicas Permanentes que o assessoram.
Criado pelo Termo de Transação e Ajustamento de Conduta – TTAC, o
CIF surge como alternativa de arranjo interinstitucional e interfederati-
vo que permite a ação coordenada dos envolvidos, cada um com suas
competênciase responsabilidades, muitas vezes sobrepostas e que
precisam ser coordenadas na busca por soluções que se somem e não
sejam conflitantes (RENOVA, 2016).

Isso se pode inferir da fala de Suelly Araujo, ex- presidente do IBA-


MA e do CIF:

162
É isso que eu queria destacar. O esforço coletivo que está sendo feito,
juntamente com a Fundação Renova, que é nossa parceira, em todos
esses programas. É importante consolidar a gestão desses programas
sobre a titularidade Renova. Uma coisa as empresas que tem a ver com
a com o Rompimento da Barragem, isso é outra coisa, o que vai ser ge-
renciada na Justiça. Os órgãos ambientais têm aplicada as ações necessá-
rias em relação ao rompimento. Só o IBAMA aplicou a Samarco 24 autos
de infração. Eu acabei de confirmar três multas de 50 milhões na Samar-
co. Então uma coisa é o que os órgãos ambientais fazem no Exercício do
seu poder de polícia, isso não pode ser misturado com a gestão dos 42
programas na estrutura CIF Renova. Nós estamos com essa estrutura
para fazer com que esses programas de certo. A gente quer recuperar
o meio ambiente. A gente que indenizar as pessoas. A gente quer fazer
que aquilo que ocorreu tem a resposta... né. Uma coisa é lado punitivo.
No CIF não é o lado punitivo. CIF, Renova é gestão de programas e
fazer com que os programas tenham resultado. Essa é a lógica... né.
Isso é uma parceria muito importante (ARAUJO, 2017).

Contudo, cumpre refletir sobre os efeitos simbólicos do uso destas


expressões em um conflito socioambiental de grandes proporções.
Acredita-se que esta representação das empresas causadoras do dano
como parceiros e de sua atuação como cooperativa tende a endos-
sar uma negação do conflito e do caráter der responsabilização das
medidas empreendidas, o que se mostra no mínimo conveniente a
imagem das empresas.
Além da caracterização das empresas mineradoras responsáveis
pelo crime ambiental como parceiras, as mesmas são por vezes re-
feridas como “empresas relacionadas à tragédia de Mariana”5, o que
simbolicamente atenua a responsabilidade das empresas. Daí a im-
portância de se analisar o CIF enquanto como espaço de apropriação
material e de disputa pela distribuição do poder material e simbólico
(BOURDIEU, 1976; 1989).

163
Por outro lado, Ronconi destaca que a necessidade de se ter na
governança de participação de pessoas não associadas com a demo-
cracia representativa (RONCONI, 2011), o que nos leva a reflexão so-
bre a necessidade do agregar não só servidores públicos, políticos e
as empresas causadoras do danos, mas também os atingidos, que não
devem constituir um mero elemento de consulta de medidas pré-de-
terminadas.
RONCONI vê a governança como política pública dialógica, por
meio do qual iam ser instituídos espaços estabelecimentos de espaços
públicos de debate, possibilitando uma conexão entre representantes
e representados, além dos modelos típicos de representação e criando
novas dinâmicas (RONCONI, 2011).
KISSLER e HEIDEMANN ressalvam que “esta convergência tem
um preço, a saber: a economicização ou mercadização do setor pú-
blico, ou seja, a transformação do setor público em um empreendi-
mento econômico” (KISSLER, Leo; HEIDEMANN, 2006, 486), o que
nos remete no caso concreto, não só na operacionalização da gestão
da tragédia pela lógica mercadológica como na possibilidade do CIF
constituir um espaço de disputa (principalmente pelos municípios) de
obtenção de recursos. Ao despolitizar o debate e categorizar como
parceiros os causadores do dano, as ações de compensação são tra-
tadas como concessões individuais de (ainda que em quantitativo de
massa), afastando a disputa por direitos, característica da cidadania.
Os atingidos, mantém uma condição passiva de receptores dos pro-
gramas predefinidos.
Apesar de basear-se na idéia de governança, o CIF vem operando
mais como um círculo técnico do que uma arenas de negociação
que agregue aos atingidos, sob justificativa do conteúdo técnico
das discussões. Além disso, se considerarmos que seus membros
são constituídos basicamente por atores estatais e pela Fundação
Renova percebe-se que não há uma superação de hierarquias bu-
rocráticas, já que há uma hierarquização decisória concentrada no

164
protagonismo do Ministério do Meio Ambiente, ou seja, da União.
Isso é ainda mais evidente quando se considera que há apenas três
municípios atingidos, em regime de rodizio. Na tabela abaixo sin-
tetizamos a composição do CIF, prevista no TAC Governança, res-
salvando que ainda não há representantes dos atingidos compondo
efetivamente o quadro.

Figura 03. Quadro com a composição atual de representantes do Comitê Interfederativo

Segundo Bevir, a Ciência Social modernista colaborou para um in-


sulamento técnico, pois “Uma justificativa importante para a criação
de uma burocracia crescentemente insulada e centralizada foi a ne-
cessidade de lidar com abusos e irracionalidades nos processos demo-
cráticos.” (Bevir, 2011, 106).
Verifica-se um processo de burocratização do conflito ambiental,
que passa a ser discutido e gerido no âmbito de grupos técnicos e
de comitês. As decisões ganham o manto da tecnicidade, afastando
a participação popular uma vez que a população leiga está alheia ao
discurso científico. Esta ausência de espaços públicos de discussão e
concentração das decisões em uma tecnocracia tem por efeito um
processo de desmobilização e despolitização dos atingidos, dificulta-
do não só a participação e mas também a formulação de identidades e
os laços de solidariedade social necessário a um associativismo.

165
Acredita-se que esta estrutura burocrática presente na governança
interfederativa tende a ter os mesmos efeitos da burocratização tradi-
cional, ou seja, tende a implicar em uma “redução dos níveis de liber-
dades do indivíduo e do processo de formação de vontade política”
(AVRITZER, 1996).
Este cenário remete a crítica de Avritzer a Schumpeter e sua pro-
posta de democracia de elite. Assim como as elites eram apontadas
por este último enquanto grupo que deveria concentrar o poder de-
cisório (com exceção da eleição de representantes) sob justificativa de
serem portadoras de racionalidade (em contraste com a irracionali-
dade do eleitorado do homem comum), verifica-se que os técnicos
e especialistas passam a fundamentar na detenção do conhecimento
científico o processo decisório, alijando a população por sua leigalida-
de (AVRITZER, 1996).
Conforme um membro do MAB destaca:

[...] é o MAB então lutou muito para criar esse conceito [atingido] e nós
entendemos né aí depois primeiro a luta Popular, depois da Academia
ajudou, então teve vários pesquisas sobre isso também, então e a gente
conseguiu pressionar na época o Governo Federal para criar um decreto
presidencial com com esse cadastro socioeconômico que foi um grande
avanço . Porém quando foi regulamentada esse decreto ele já adiciona-
ram no conceito uma parte do conceito de atingido que piorou, que diz
que o atingido é toda pessoa que se desconsideradas atingida, prejudica-
da no polígono do empreendimento. O polígono empreendimento foi
uma área delimitada, que quem delimita, aí tem lá na metodologia para
definir, Mas é uma uma metodologia de exclusão é um polígono é cem
km para cá, 1000 km para lá, mas espaço traça uma área para dizer, atin-
gido é só quem está nessa área. e que isso não também não é realidade.
aqui por exemplo, no caso do Rio doce, você tem atingido que está 10
metros e você tem atingido que 5 km, por exemplo pescador. Inclusive
arenova faz isso atualmente. Ela traçou uma metodologia para indenizar

166
pescadores pescadores não profissionais que ela faz isso, até 1 km do Rio
ela indeniza, passou de um km não indeniza. aí você tem pescador que
numa rua que tá indenizando e na outra rua do lado já não é indenizado.
Uma coisa absurda, que inclusive gera problemas jurídicos além dos pro-
blemas sociais. Diante disso, para não trazer todo essa essa carga, trazer
a história de lutas atingidos, também trazer a identidade atingido pela
barragem, eles usaram o termo impactado, e aí também tem os pesqui-
sadores que falam né que as empresas elas tem uma tática de tecnificar
o debate. Tratar o debate como uma coisa técnica. E não é técnico coisa
nenhuma é um debate político. você tá discutindo quem tem direito e
quem não tem, quem vai ficar quem vai ganhar e quem vai perder. Isso é
um debate político, fundamentalmente político e eles tentam dizer que
não, é técnico, que tudo que a gente faz é técnico, tudo que a Fundação
renova faz é técnico, que elas têm técnicos, ela tem câmaras técnicas que
vai fazer resoluções, e aí tem o CIF, e ela vai seguir só o que ... mentira,
ela tem um corpo de dirigentes e ela faz o que os dirigentes mandam ela
fazer e os dirigentes obviamente estão seguindo as diretrizes das empre-
sas. Então mas uma das coisas que eles fazem é esse discurso técnico e o
tema impactado é um termo importado da física, Impacto é um concei-
to da Física, não é um conceito da sociologia, da biologia, da sei lá o que
for, inclusive tem uma pesquisa que fala, o termo adequado para se usar
é dano porque impacto inclusive pode ser positivo, pode ser negativo,
e eles mesmo usam isso. Ah tem o Impacto positivo e negativo. Não o
termo correto é correto é dano, porque alguma coisa foi destruída, dani-
ficada. mas aí eles usam e relutam em usar.” (G., 2018)

Importante destacar que a Governança Interfederativa não impli-


cou na constituição de uma nova pessoa jurídica, não havendo uma
lei criadora ou autorizadora do CIF. Ele é definido em seu Regimen-
to, no art. 1º, parágrafo único, como uma “instância externa e inde-
pendente da FUNDAÇÃO” [Renova] e é definido por sua Secretaria
Executiva como “como uma iniciativa, desprovida de personalidade

167
jurídica”6. Isso é uma atecnia grave que viola o princípio da legalida-
de administrativa ante a ausência de fundamento normativo para se
criar uma nova pessoa jurídica da administração pública, ainda que
adotando a nomenclatura de instância. Convém destacar que o CIF
tem competências próprias e até exclusivas previstas no Regimento
Interno, e que a questão merece reflexão por implicar em despesas7 e
possivelmente em desvio de pessoal.

CONCLUSÃO
Neste texto, vimos que a própria constituição da governança inter-
federativa se deu sem participação popular, ou seja, o CIF foi cons-
tituído sem discussão pública e estrutura sua ação em programas
definidos sem participação social, bem como que esta permanece
operando a cima de tudo por uma logica burocrática, em que o
diálogo está limitado ao setor publico e as empresas mineradoras
(mercado).
Estabeleceu-se uma instituição sem formato legal para gerenciar as
externalidades negativas e os conflitos sociais do desastre tecnológico,
e que se estrutura em uma burocracia técnica impermeável à partici-
pação popular e seu discurso leigo, mas que ao mesmo tempo se apro-
priou da categoria governança, inclusive em sua nomenclatura.
Acredita-se que esta “adoção” do modelo de governança é im-
portante para fins de legitimação, considerando-se o valor simbólico
que apresenta por remeter as idéias de eficiência e democracia. Isso

6. COMITE INTERFEDERATIVO, Relatório Bianual 2016/2017, Reatório nº 01/2018 SE-


CEX/CIF. P.01. Disponível em http://www.ibama.gov.br/phocadownload/cif/relatorios/
cif-rel-secexmg-18.pdf (Acesso em 08/04/2019).
7. O Art. 19 do Regimento Interno atual prevê que a Fundação Renova irá custear despesas
do CIF. Porém é possível verificar no portal da transparência da União gastos com passagens
e diárias para participação de reuniões do CIF, constando inclusive diversso órgãos como
fonte responsáveis pelo pagamento. Ver http://www.portaltransparencia.gov.br/busca?ter-
mo=comite%20interfederativo (Acesso em 04 de maio de 2019).

168
se mostra problemático considerando que a governança tem em seu
centro a ideia de participação, que na estrutura tecnocrática do Comi-
tê Interfederativo é mitigada.
A idéia de governança em si é um avanço, pois permite a parti-
cipação social nas tomadas de decisões estatais e a constituição de
espaços públicos de discussão, o que auxiliaria no processo de par-
ticipação social, fiscalização e de acúmulo de capital social por seus
membros. Porém a governança interfederativa, por sua lógica tecni-
cista opera como forma de amortização e pacificação social por meio
de imposição de consensos e negação de conflitos e tende a se tornar
um elemento de democracia participativa inócua e meramente legi-
timadora.
Desta forma, acredita-se que a estatização do conflito em agrupa-
mentos técnicos sem esferas públicas de discussão vem permitindo
que o Estado gerencie não só as medidas compensatórias dos impac-
tos socioambientais decorrentes do Desastre Tecnológico, mas tam-
bém uma gestão dos conflitos e da população atingida. Esta proble-
mática pode mudar uma vez que o TTAC Governança, homologado
no ano de 2018, previu algumas modificações na estrutura do CIF e
da Renova, de modo a permitir maior participação dos atingidos8,
porém acredita-se que isso pode ser dificultado pela lógica tecnicista
com que opera a governança interfederativa.

8. Por exemplo estabeleceu a formação de comissões locais (antes só haviam as comissões


de Mariana e Barra Longa) e a criação de Câmaras Regionais. O CIF também passará por
modificações aumentando o número de assentos em mais 3 representantes dos atingidos, 2
membros do MP e 1 da Defensoria Pública. As câmaras Técnicas também passaram a contar
com 1 representante do MP, 1 da Defensoria Pública, que serão indicados pelos atingidos e só
terão direito a voz. O Conselho Consultivo da Renova passará a ter 7 representantes e estes
passarão a ser indicados pelas Comissões Locais (e Não mais pelo CIF), 3 representantes de
instituições acadêmicas (indicados por Fundação Renova, CIF e MP) , 2 membros de ONGs
atuantes em direitos humanos (indicados por MP e Defensoria) e 1 representante de entidade
atuante em desenvolvimento econômico (indicação da Renova) , 4 representantes da Bacia
Hidrográfica do Rio Doce, 2 representantes de ONGs ligadas à vida marinha (indicação do
CIF) e direitos ambientais (indicação do MP).

169
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STJ.CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 144.922 - MG (2015/0327858-8) RELA-
TORA : MINISTRA DIVA MALERBI (DESEMBARGADORA CONVOCADA TRF
3ª REGIÃO)
UNIÃO, Instituto Brasileiro de Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis,
Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade, Agência Nacional de
Águas, Departamento Nacional de Produção Mineral, Fundação Nacional do Índio,
BHP Billiton Brasil Ltda. (2016). Termo de Transação e de Ajustamento de Condu-
ta. Brasília
VIEIRA, Germano Luiz Gomes., fala enquanto Secretário-adjunto de estado de
Meio Ambiente e desenvolvimento sustentável de Minas Gerais durante o Seminá-
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172
ZHOURI, Andréa; VALENCIO, Norma; OLIVEIRA, Raquel; ZUCARELLI, Mar-
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Cultura, v. 68, n. 3, jul-set., São Paulo, 2016, p. 36 - 40.
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segura-os-direitos-dos-atingidos (Acesso em 05/04/2019)
https://www.mpmg.mp.br/comunicacao/noticias/acordo-altera-governanca-da-
fundacao-renova-para-garantir-participacao-dos-atingidos-pelo-rompimento-da-
-barragem-de-fundao.htm (Acesso em 05/04/2019)
http://www.portaltransparencia.gov.br.

173
POBRES E PRETOS NO MEIO DO
CAMINHO: RESISTÊNCIAS DO QUILOMBO
QUEIMADAS, EM SERRO ( MG) FACE
AOS PROJETOS DE MINERAÇÃO
Thaís Henriques Dias
Wilson Madeira Filho
Ana Maria Motta Ribeiro

INTRODUÇÃO
O quilombo Queimadas simboliza uma luta muito maior de resistên-
cia e reconhecimento, não apenas por sua trajetória de sobrevivência
diante das diversas modelagens da oligarquia local como diante dos de-
safios dos empreendimentos do extrativismo minerário na atualidade.
Esta comunidade remanescente de quilombos ocupa tradicionalmente
as terras localizadas na divisa dos municípios de Serro e Santo Antônio
do Itambé, em Minas Gerais, a uma distância aproximada de 5km da
sede do Serro. Atualmente, a comunidade é composta por, aproxima-
damente, 54 famílias e 245 pessoas, que, no geral, se dedicam à explo-
ração de atividade agropecuária, sobretudo para produção de queijo
artesanal, e agricultura, em regime de economia familiar, adotando
uma forma de vida tipicamente camponesa. Queimadas foi reconhe-
cida como remanescente de quilombo, por meio da Portaria n. 177,
de 31 de agosto de 2012, emitida pela Fundação Cultural Palmares e
publicada no Diário Oficial da União em 3 de setembro de 2012, mas
cujas terras ainda não foram tituladas (LEITE: 2018, p. 2108).
Em Minas Gerais, a expansão da fronteira extrativa mineral está in-
serida em uma nova onda de exploração minerária, baseada em uma

175
tecnologia moderna, que permite a exploração em larga escala de ita-
biritos com baixo teor de ferro. Dessa forma, a região da Serra do Es-
pinhaço entre Conceição do Mato Dentro e Serro desponta como uma
nova fronteira de mineração, no contexto de uma nova configuração
econômica denominada “neoextrativista”. Trata-se da atualização do
modo de apropriação instrumental da natureza, em grande escala, nos
territórios localizados na América Latina, desde a invasão colonial. No
município do Serro, a tentativa de implantação desse modelo de explo-
ração minerária tem sido feita a partir da proposta de mineração numa
área localizada a cerca de cinco quilômetros da sede do município, na
Serra do Condado (Figura 1), muito próximo a áreas de preservação
permanente, como o Parque Estadual Pico do Itambé, e sobre aquí-
feros importantes, além de atingir as bacias do rio do Peixe e do rio
Guanhães. Além disso, o projeto desconsidera os direitos do quilombo
Queimadas, que está na área de influência direta do empreendimento
(CEDEFES, 2019). Tal empreendimento foi denominado “Projeto Ser-
ro”, pela empresa mineradora Anglo American de Ferro Brasil S/A e
atualmente está sob responsabilidade do Grupo Herculano Mineração.

Figura 1 - Localização da Serra do Condado – MG

Fonte: Pifano et al. (2010, p. 57)

176
No dia 12 de maio visitamos o quilombo Queimadas, no municí-
pio do Serro, e ouvimos de seus moradores os problemas relacionados
às ameaças e conflitos desencadeados pelo Projeto Serro1. A partir da
constatação de que também no município vizinho, Conceição do Mato
Dentro, as comunidades negras rurais foram invisibilizadas no processo
de licenciamento ambiental da Anglo American, percebemos dimensões
do racismo ambiental e práticas empresariais de expulsão e controle dos
territórios de que dependem para exploração do minério de ferro e da
água. Dessa forma, a fim de contribuir com a visibilização do conflito,
este estudo tem como objeto a repercussão da resistência do quilom-
bo Queimadas ao assédio empresarial e pseudo-desenvolvimentista nas
decisões políticas municipais controversas e em processos de judiciali-
zação. Dividimos o texto em três partes: uma pequena síntese histórica
do quilombo Queimadas; a descrição e análise das formas de ameaças e
os conflitos da mineração nas comunidades quilombolas no Serro, com
foco nas decisões políticas municipais sobre o Projeto Serro; e, por fim,
o processo de judicialização do conflito, como meio de disputa entre os
diferentes sujeitos e grupos e seus projetos de vida e de sociedade.

1. PEQUENA SÍNTESE DAS ORIGENS HISTÓRICAS DO


QUILOMBO QUEIMADAS

O quilombo Queimadas simboliza uma luta muito maior de


resistência e reconhecimento, não apenas por sua trajetória de

1. Este trabalho surgiu a partir de uma viagem de campo exploratória, por meio de disci-
plina itinerante, do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Direito da Universidade
Federal Fluminense (PPGSD/UFF), coordenada pelo professor Wilson Madeira Filho. Em
maio de 2019, percorremos caminhos marcados pelo extrativismo mineral em Minas Gerais,
para conhecer os conflitos decorrentes e seus efeitos e danos socioambientais. Também par-
ticiparam do projeto (em ordem alfabética): Bruno Henrique Tenório Taveira (doutorado),
Larissa P. O. Vieira (doutorado), Lilian Regina Furtado Braga (mestrado), Luiza Alves Cha-
ves (doutorado), Mara Magda Soares (mestrado), Marcelino Conti de Souza (doutorado),
Marina Marçal do Nascimento (doutorado), Patrícia de Vasconcellos Knöller (doutorado) e
Ubiratan Alves da Silva (especialização).

177
sobrevivência diante das diversas modelagens da oligarquia local
como diante dos desafios dos empreendimentos do extrativismo mi-
nerário na atualidade. Esta comunidade remanescente de quilombos
ocupa tradicionalmente as terras localizadas na divisa dos municípios
de Serro e Santo Antônio do Itambé, em Minas Gerais, a uma distân-
cia aproximada de 5km ao norte da sede do Serro (Figura 2).

Figura 2 - Mapa de macrozoneamento do território municipal de Serro MG

Fonte: Fundação Israel Pinheiro (2018, p. 111)

178
Na divisão político-administrativa do Estado de Minas Gerais, o
município do Serro está localizado na região do Alto Jequitinhonha
e da Serra do Espinhaço, em uma área de transição entre os biomas
da Mata Atlântica e Cerrado, com rios que vertem sentido para o
Vale do Jequitinhonha e para o Vale do Rio Doce. Dois importantes
rios nascem no Serro: o rio Jequitinhonha e o rio do Peixe, um dos
afluentes do rio Doce. Essa região foi colonizada por bandeiran-
tes no início do século XVIII, cujas atividades econômicas eram de
mineração de ouro e diamante, de extração de madeira para pro-
dução de carvão vegetal e pecuária extensiva, feitas com base no
modo de produção escravista, por meio da exploração do trabalho
humano compulsório de pessoas escravizadas trazidas como mer-
cadorias da África para as Américas (MOREIRA COSTA: 2017, p.
15-21). De acordo com o Relatório Antropológico de Caracteriza-
ção Histórica, Econômica, Ambiental e Sociocultural da Comuni-
dade Quilombola do Baú – Serro – MG (2015, p. 70 apud LEITE:
2018, p. 2108), os dois grandes grupos humanos de origem africana
nessa região eram:

[...] os sudaneses, oriundos das regiões africanas de Daomé (Benin),


Nigéria e Guiné, na África Ocidental, e os bantos, originários da Áfri-
ca Central, geralmente de Angola, Congo e Moçambique, que, embora
possuíssem uma matriz cultural e linguística comum, na verdade, englo-
bam centenas de subgrupos étnicos diferentes.

A formação histórica e territorial dessa região também se deu pelas


resistências à escravidão e ao regime colonial e oligárquico local2, a
diversidade na produção do trabalho e serviços realizados pelas

2. Um exemplo dessas resistências foi a revolta escrava de 1864 contada por Isadora Moura
Mota (2006, p. 39), a fim de “compreender as experiências da escravidão no norte de Minas
no contexto político dos anos 1860 [...] onde a mineração há muito havia garantido uma for-
te presença centro-africana e o crescimento da população livre de cor”.

179
pessoas negras escravizadas e pelas libertas do cativeiro3 e a reprodu-
ção e reexistência de seus modos de vida. Tais elementos constituíram
inúmeras comunidades negras e quilombolas ao longo do município
do Serro com territorialidades próprias, voltadas à reprodução da sua
existência material, simbólica e afetiva (MOREIRA COSTA: 2017, p.
22-4; FERREIRA: 2009, p. 17). A permanência dessas relações campe-
sinas nesses territórios constituem atualmente cinco comunidades re-
manescentes de quilombos: Ausente, Baú, Queimadas, Fazenda Santa
Cruz e Vila Nova, certificadas pela Fundação Cultural Palmares (FCP),
desde o ano de 2007, mas cujas terras ainda não foram tituladas.
De acordo com Moreira Costa (2017: p. 25-6), a maior parte des-
sas comunidades formaram-se em torno da atividade do garimpo,
sobretudo aquelas que margeiam o rio Jequitinhonha e seus afluen-
tes, com exceção de Queimadas, cuja ocupação territorial e história
está “[...] ligada ao desenvolvimento das fazendas de cana-de-açúcar
e café que se formaram naquela região”. A prática dos latifundiá-
rios consistia em “doar” pequenos pedaços de terra aos trabalha-
dores, para que estes ficassem próximos às fazendas e fornecessem
mão-de-obra barata ou gratuita. Dessa forma, “conforme as fazen-
das iam se expandindo pelo território, também iam se formando
os ranchos e sítios de trabalhadores destas fazendas”, de modo
que a comunidade de Queimadas ocupou esses pedaços de terra,

3. Segundo Mota (2006, p. 44-5), “Na comarca do Serro, muitos ex-escravos atuavam como
pequenos proprietários, artesãos, viviam de suas “agências” ou trabalhavam como “jorna-
leiros”, por exemplo na mineração de ouro e diamantes. No trabalho coletivo de extração e
lavagem das pedras nas lavras, labutavam lado a lado com os cativos. Além de minerar, ou-
tras atividades eram desempenhadas conjuntamente: escravos e forros buscavam lenhas nas
matas, dormiam nos ranchos da beira dos rios diamantinos, frequentavam as mesmas vendas
ou compareciam às igrejas e irmandades locais. (Cf. SOUZA). A polícia temia especialmente
os libertos que serviam como falas dos quilombolas, isto é, informantes que os alertavam so-
bre a organização de expedições de combate, serviam de parceiros comerciais ou ofereciam
refúgio, quando necessário. Em 1864 muitos deles ajudaram os escravos a conseguir arma-
mento e a espalhar a notícia da insurreição, servindo como “ponte” de comunicação entre as
cidades e as matas do norte mineiro”.

180
intensificando suas práticas de agricultura familiar e reprodução so-
cial territorializadas no espaço rural.
As origens históricas do campesinato negro e a permanência dos
quilombos, em sua constante reelaboração, ganham importância no
processo de construção de uma identidade quilombola, quando as-
pectos da memória e dos saberes historicamente territorializados fun-
damentam o direito institucional ao território (FERREIRA: 2009, p.
4-8; GONÇALVES: 2016, p. 19; LITTLE: 2020, p. 10). Em seu exercí-
cio de macro análise antropológica sobre a questão fundiária no Bra-
sil, Paul Little (2002, p. 4) fez “uma breve contextualização histórica
dos processos de territorialização no Brasil colonial e imperial”. Ele
relacionou as transformações territoriais dos últimos séculos aos pro-
cessos de expansão de fronteiras, dentre as quais estão as entradas ao
interior pelos bandeirantes, nos séculos XVI e XVII, e as frentes de
mineração em Minas Gerais e no Centro-Oeste, ambas a partir do
século XVIII. Segundo ele, esses processos de expansão resultaram na
instalação da hegemonia do Estado-nação e suas formas de territoria-
lidade, de forma que todas as demais territorialidades são obrigadas a
confrontá-la. Assim, foram produzidos “choques territoriais”, “novas
ondas de territorialização” e “processos de etnocídio e etnogênese”
dos povos tradicionais, seja por múltiplas formas de resistência, seja
por “processos de acomodação, apropriação, consentimento, influên-
cia mútua, e mistura entre todas as partes envolvidas”. Nos termos do
intelectual e lavrador quilombola Antônio Bispo dos Santos (2018),
mais comumente conhecido como Nêgo Bispo, tais processos são en-
frentamentos que conceitua como colonização e contra-colonização.
Dessa forma, contra-colonizar consiste em reeditar as suas trajetórias
a partir das próprias matrizes e particularidades socioculturais frente
ao colonialismo.
Nesse sentido, as novas frentes de expansão desenvolvimentis-
tas no século XX mantiveram os territórios sociais dos povos tradi-
cionais à margem dos parâmetros legais definidos pelo regime de

181
propriedade vigente no Brasil (LITTLE: 2002, p. 7-12). Dessa forma,
as leis e instrumentos jurídicos que impuseram a necessidade de con-
tratos escritos e com registro nas instituições reconhecidas pelo Es-
tado, significou uma forma de controlar e dificultar o acesso à terra
pelos povos tradicionais e perseguir os quilombos. Isso porque, os
contratos das sociedades formadas pela população negra eram feitos
por meio da oralidade, em que a terra é de uso comum e lugar de ma-
nifestação das redes de parentesco e sociabilidade de uma comunida-
de. Sem os registros escritos e documentos exigidos pelo Estado para
o reconhecimento da propriedade sobre a terra, a maioria das terras
historicamente ocupadas pelas comunidades tradicionais no Brasil
passou a ser considerada espólio (SANTOS: 2018; SILVA: 2018). É o
caso da Lei de Terras de 1850 que, dentre outras coisas, estabeleceu
que a aquisição de terras públicas somente seria efetivada por meio
da compra e do registro, criando as condições para a sujeição do tra-
balho da população negra aos proprietários de terra, em latifúndios,
após a abolição da escravatura (GONÇALVES: 2016, p. 30; PACHE-
CO e PACHECO: 2010, p. 273).
De acordo com Alfredo Wagner de Almeida (2004), o surgimento
dos movimentos sociais no campo e seus processos de territorializa-
ção, a partir de 1970, expressaram uma diversidade de formas de exis-
tência coletiva de diferentes povos e grupos sociais em suas relações
com a terra e com a natureza, no que ficou denominado de “terras
tradicionalmente ocupadas”. Ainda que tendo diferentes formações
históricas, essa categoria foi instituída no texto constitucional de 1988
e reafirmada nos dispositivos infraconstitucionais4 e se tornou um

4. Alfredo Wagner (2004) cita o art. 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias
(ADCT), que estabelece o direito à propriedade definitiva aos remanescentes das comunida-
des dos quilombos, o parágrafo 1º do art. 231 da Constituição Federal de 1988, na qual pre-
ponderou a expressão “terras tradicionalmente ocupadas” e a ratificação da Convenção 169
da Organização Internacional do Trabalho (OIT), por meio do Decreto Legislativo n. 143,
entre outras legislações estaduais e municipais, que reconhecem diversas formas de apropria-
ção e uso comum da terra por povos tradicionais.

182
preceito jurídico marcante para a legitimação de territorialidades es-
pecíficas e etnicamente construídas. Dessa forma, a articulação dos
povos tradicionais para transformar a regularização de terras pela
escrita em uma forma de defender seus territórios, forçou o Estado
brasileiro a incluir distintos regimes de propriedade dentro de seu
marco legal único, apesar da dificuldade de efetivação desses dispositi-
vos legais e tensões relativas ao seu reconhecimento jurídico-formal5.
As comunidades quilombolas localizadas no município do Serro inse-
rem-se nesse cenário de luta pela efetivação desses direitos e pela ti-
tulação das terras, frente ao avanço da fronteira extrativa mineral em
Minas Gerais e, especificamente, à ameaça de implantação de um em-
preendimento minerário onde vivem ou próximo de seus territórios.

2. AS AMEAÇAS E OS CONFLITOS DA MINERAÇÃO NAS


COMUNIDADES QUILOMBOLAS NO SERRO

De um ponto de vista macroeconômico, o Brasil tem uma das maio-


res reservas de minério de ferro do mundo e está entre os principais
países responsáveis por sua produção6. A expansão da produção bra-
sileira de minério de ferro a partir dos anos 2000 ocorreu, sobretudo,
para atender à demanda chinesa por “recursos naturais”, processo
em que a economia brasileira foi se especializando nas exportações
de produtos primários. Uma das consequências dessa política de re-
primarização da economia foi a expansão territorial das frentes de

5. Segundo Lobão e Maranhão (2014), a identidade se destaca quando há um conflito e pode


ser uma estratégia de defesa na medida em que a reivindicação da identidade pode ser um
caminho para a construção de direitos. Assim, em cada identidade, o sujeito encontra e busca
concretizar direitos diferenciados, que são acessados por diferentes regimes de identidade,
que balizam o reconhecimento formal dos grupos sociais formadores da nação brasileira:
índios, remanescentes de quilombo e povos ou comunidades tradicionais.
6. O Brasil tem 9,8% das reservas de minério de ferro do mundo, estando em quinto lu-
gar, atrás da Ucrânia (20%), Rússia (16,5%), Austrália (13,2%) e China (13,5%). Em 2007, os
maiores produtores foram China, Brasil, Austrália, Índia e Rússia, segundo dados do DNPM,
em 2009.

183
mineração, que se deu a partir das condições favoráveis propiciadas
pelo Estado à atração de investimentos internacionais, como as fa-
cilidades oferecidas à operação de transnacionais nas economias la-
tino-americanas, o que resultou em níveis variáveis de desregulação
social e ambiental. Essa nova configuração econômica é denominada
“neoextrativista”, que sob a égide do capital financeiro, intensificou
os conflitos históricos entre essas atividades e comunidades locais e
geraram novas injustiças e danos ambientais nos territórios onde há
extração e beneficiamento mineral (ACSELRAD: 2018; MILANEZ e
SANTOS: 2013, 2010; SVAMPA: 2019; ACOSTA: 2016).
De acordo com o Mapa de Conflitos envolvendo Injustiça Am-
biental e Saúde no Brasil7, há conflitos causados pelas atividades de
mineração em todas as regiões do país, sobretudo nas regiões Norte e
Sudeste, devido à quantidade de conflitos identificados no Pará e em
Minas Gerais. Tratam-se dos estados onde há maior concentração de
produção de minério de ferro (BRASIL: 2019) e onde aparece maior
quantidade de casos de injustiças ambientais associadas à extração de
minérios. No caso de Minas Gerais, a expansão da fronteira extrativa
mineral está inserida em uma nova onda de exploração minerária, ba-
seada em uma tecnologia moderna, que permite a exploração em lar-
ga escala de itabiritos com baixo teor de ferro. De acordo com Zhou-
ri, Oliveira e Laschefski (2012, p. 24), “A Serra do Espinhaço, entre
Conceição do Mato Dentro e Serro, e a descoberta de jazidas em Rio
Pardo de Minas, Grão Mogol e Salinas despontam como uma nova
fronteira de mineração no estado”.

7. O Mapa dos Conflitos é um dos resultados da cooperação entre a Fundação Oswaldo


Cruz (Fiocruz) e a Federação dos Órgãos para Assistência Social e Educacional (Fase) iniciada
em 2004, cujo objetivo principal é apoiar os movimentos em favor da justiça ambiental no
país, sobretudo as demandas e ações da Rede Brasileira de Justiça Ambiental (RBJA). Nele,
há a identificação e sistematização dos conflitos ambientais provenientes das lutas contra
as injustiças e o racismo ambiental nos territórios onde foram, estão ou serão realizados
diferentes projetos econômicos e políticas governamentais no Brasil. Disponível em: http://
mapadeconflitos.ensp.fiocruz.br/. Acesso em: 14 out. 2020.

184
Em Serro, a tentativa de implantação desse modelo de exploração
minerária foi apresentada pela primeira vez, em 2008, pela empresa
MMX Mineração e Metálicos S/A, empresa de mineração do grupo
EBX, do empresário Eike Batista. Como requisito para iniciar o pro-
cesso de licenciamento ambiental nos órgãos estaduais de política
ambiental8, a empresa MMX obteve a declaração de conformidade do
empreendimento minerário por parte da prefeitura municipal do Ser-
ro. Neste documento, a prefeitura declarou a conformidade do em-
preendimento à legislação aplicável ao uso e ocupação do solo do local
em que se pretendia instalar o empreendimento minerário, num mo-
mento político de desmobilização da sociedade civil local. Além disso,
num contexto econômico de baixa do preço do minério de ferro, a
MMX não iniciou o processo de licenciamento ambiental e vendeu os
direitos minerários para a mineradora sul-africana Anglo American de
Ferro Brasil S/A, cuja sede está no Reino Unido. A Anglo American
assumiu o controle acionário da MMX e tentou iniciar o processo de
licenciamento ambiental em 2014 (LEITE: 2018; JESUS et al.: 2020;
STELZER et al.: 2020). É importante destacar que a Anglo American
também comprou o complexo minerário “Projeto Minas-Rio” da em-
presa MMX, localizado na divisa dos municípios de Serro, Alvorada de
Minas e Conceição do Mato Dentro, e é responsável por diversos con-
flitos e injustiças ambientais naquela região9. Além disso, o município
de Serro já sofre com problemas no abastecimento de água, o que é
comum nas regiões tomadas por mineração, pelo fato de esta ativida-
de ser intensiva no uso, exploração e contaminação da água.

8. Para entender como funciona o processo de licenciamento ambiental no município do


Serro, ver Leite (2018, n.4).
9. O projeto Minas-Rio é um complexo minerário composto de minas, mineroduto e porto,
além da linha de transmissão de energia, e se estende por mais de 500 km, do interior de
Minas Gerais ao litoral do Rio de Janeiro. Para saber mais sobre os conflitos ambientais no
contexto do projeto Minas-Rio, ver Becker e Pereira (2011), Pereira, Becker e Wildhagen
(2013), Tôrres (2014), Vieira (2015), Santos e Milanez (2015), Taveira (2016), Zucarelli e San-
tos (2016), Ferreira (2016), Santos (2018) e Santos, Ferreira e Penna (2018).

185
Em novembro de 2014, a mineradora Anglo American apresen-
tou o requerimento administrativo à prefeitura municipal do Serro,
para que esta emitisse a declaração atualizada de conformidade do
empreendimento, como requisito para o licenciamento ambiental.
Segundo Leite (2018, p. 2109):

O empreendimento minerário denominado “Projeto Serro” pretendia


realizar lavra de minério de ferro, em escala de produção de 500.000 to-
neladas/ano, e posterior beneficiamento a seco, de acordo com o Estudo
de Impacto Ambiental e Relatório de Impacto Ambiental (EIA/RIMA,
Volume I, 2014, p. 13). O EIA/RIMA foi elaborado pela consultoria Arca-
dis logos S.A., que fora contratada pela empreendedora para a realização
dos estudos ambientais necessários à solicitação de licenciamento am-
biental do empreendimento minerário.

Este requerimento foi encaminhado pela prefeitura ao Conselho


Municipal do Desenvolvimento do Meio Ambiente (CODEMA)10
que, no âmbito de um procedimento administrativo, requisitou ao
empreendedor a apresentação do Estudo de Impacto Ambiental/Re-
latório de Impacto Ambiental (Eia/Rima)11, com a finalidade de se
conhecer a área geográfica a ser direta e indiretamente afetada pelo
empreendimento. O EIA/RIMA foi objeto de análise de um grupo
de pesquisas, multidisciplinar, de caráter extensionista, formado por
professores e estudantes da Pontifícia Universidade Católica de Minas

10. Criado pela Lei Municipal nº 1816 de 27 de dezembro de 2005, posteriormente alterada
pela Lei Municipal nº 2.827 de 2014 de 16 de Outubro de 2014, o CODEMA é um órgão
consultivo e deliberativo de assessoramento ao Poder Executivo Municipal sobre as questões
ambientais do município do Serro, que conta com a participação de representantes da socie-
dade civil e do poder executivo municipal.
11. Segundo Leite (2018, p. 2012), “O EIA/RIMA apresenta as principais características do
empreendimento proposto pela empresa mineradora, as condições sociais e ambientais da
área onde ele será inserido, prevê os impactos socioambientais esperados (positivos e nega-
tivos), bem como propõe as ações e programas necessários para assegurar a preservação da
qualidade ambiental, social e cultural do projeto”.

186
Gerais (PUC/MG), por meio do projeto de extensão “A luta pelo re-
conhecimento dos direitos fundamentais das comunidades remanes-
centes de quilombo” (OLIVEIRA et al.: 2017; LEITE: 2018, p. 2113).
O trabalho realizado por pesquisadores juntamente às lideranças dos
quilombos, apontou uma série de problemáticas no Estudo de Impac-
to Ambiental, dentre as quais destacamos a de que não existiria co-
munidades quilombolas nas áreas de influência do empreendimento,
quando existem cinco. Segundo Leite (2018, p. 2114),

As comunidades quilombolas do Ausente, Baú, Fazenda Santa Cruz e


Vila Nova estão localizadas na área de influência direta (em relação aos
impactos sociais) e na área de influência indireta (em relação aos impac-
tos aos meios físicos, químicos e biológicos) do empreendimento mine-
rário. A comunidade quilombola de Queimadas está localizada na área
de influência direta do empreendimento minerário, tanto em relação
aos impactos físicos, químicos e biológicos, quanto em relação aos im-
pactos sociais.

Leite (2018) destacou ainda que o empreendedor sabia da existên-


cia de comunidades quilombolas no município, na medida em que
obteve informação do Secretário Municipal de Obras e Urbanismo da
existência de convênio entre o município e a Fundação Nacional de
Saúde (FUNASA), para a implantação de sistema de abastecimento
de água nas comunidades quilombolas de Ausente de Cima, Ausente
de Baixo, Baú, Queimadas e Fazenda Santa Cruz, conforme o EIA/
RIMA da empresa de consultoria Arcadis Logos S.A, realizado em
2014. Segundo ele, o objetivo da mineradora era invisibilizar as co-
munidades quilombolas que seriam afetadas pelo empreendimento
minerário, a fim de expulsá-las de seus territórios. Também no caso
do Projeto Minas-Rio, os estudos iniciais de impacto ambiental, ela-
borados por consórcio de empresas liderado pela Brandt Meio Am-
biente Indústria, Comércio e Serviços Ltda., contratada pela Anglo

187
American, não mencionaram a existência de comunidades tradicio-
nais nas áreas diretamente afetadas pelo empreendimento. Contudo,
antes da concessão da Licença Prévia, durante o processo de licen-
ciamento, em uma vistoria técnica à área, representantes do Sistema
Estadual de Meio Ambiente (SISEMA) notificaram a presença de fa-
mílias negras nos municípios de Conceição do Mato Dentro e Alvo-
rada de Minas. O estudo complementar ao EIA/RIMA confirmou a
sua ocorrência e foram identificadas dez comunidades negras rurais
nessas áreas, destas, três estão localizadas imediatamente abaixo da
barragem de rejeitos, onde havia cento e sete famílias (DIVERSUS:
2014, p. 17; TAVEIRA: 2016, p. 85).
Nesse sentido, Dias e Madeira Filho (2019) argumentam que a prá-
tica das empresas de mineração em não reconhecer a existência dessas
comunidades tradicionais nas áreas que serão mais diretamente afeta-
das por seus empreendimentos pode significar a prática de uma das
dimensões pela qual o racismo se manifesta, nesse caso, a dimensão
institucional12. Dessa forma, a ausência desses territórios no processo
de licenciamento do empreendimento pode ser entendida como uma
prática empresarial das mineradoras de controle do território. A ten-
tativa de invisibilizar e excluir esses grupos sociais dos processos deci-
sórios sobre a instalação e operação da mineradora e de alimentar o
discurso de serem entraves para o desenvolvimento da cidade a partir
da inferiorização de seus modos de ser, fazer e viver pode visar a uma
desarticulação de sua ação política. Além da presença de minerais, a
desigualdade política e econômica entre esses grupos também pode
ser um fator preponderante para a escolha do local de instalação de
empreendimentos poluidores, justamente pela dificuldade em evitar,
limitar ou estabelecer os parâmetros de instalação e operação dessas

12. De acordo com Silvio de Almeida (2018, p. 36), a dimensão institucional é uma das for-
mas pela qual o racismo é reproduzido, pois o poder é elemento constitutivo das relações
raciais, que possibilita o domínio de determinados grupos sobre outros por meio do seu
controle direto ou indireto sobre o aparato institucional.

188
empresas. A precariedade e obstáculos ao acesso às instituições pú-
blicas e as desigualdades tornam essas populações, em um primeiro
momento, desfavorecidas e prejudicadas pela sua histórica exclusão
das instâncias oficiais de exercício de poder e tomadas de decisão que,
aliado às possibilidades do mercado, faz diferença na decisão de esco-
lha do território onde será instalado o empreendimento (PACHECO
e FAUSTINO: 2013).

3. A JUDICIALIZAÇÃO DO CONFLITO
A articulação de diferentes ações em torno da luta pela efetivação dos
direitos territoriais das comunidades quilombolas, frente às ameaças
das empresas mineradoras sobre seus territórios, foram descritas por
Oliveira et al. (2017), Leite (2018), Jesus et al. (2020) e Stelzer et al.
(2020), tanto no âmbito acadêmico, quanto no debate público mais
amplo. Tais descrições nos aproximam dos enfrentamentos feitos
nos procedimentos estatais institucionalizados, seus espaços e tem-
poralidades, para a tomada de decisões, sobretudo no âmbito do
CODEMA, do poder executivo municipal e do poder judiciário. O
CODEMA é vinculado à Secretaria Municipal de Obras, Transporte,
Urbanismo, Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável da Pre-
feitura do Serro, com competência deliberativa e consultiva sobre as
questões ambientais e as formas de uso dos espaços geográficos cor-
respondentes ao município. A resistência do quilombo Queimadas ao
assédio empresarial e pseudo-desenvolvimentista, a organização da
população e o poder corporativo das mineradoras repercutiram em
decisões políticas municipais controversas e em processos de judicia-
lização dos conflitos. Desde as recentes ameaças e conflitos da mine-
ração no Serro, o CODEMA sofreu reformulações a fim de acomodar
os interesses das mineradoras, contrários à participação popular e à
proteção socioambiental previstos na sua legislação para a definição
da política ambiental municipal.

189
No caso do Projeto Serro, em 2015, o CODEMA deliberou, por
unanimidade, a recomendação de declarar a não conformidade so-
cioambiental do empreendimento minerário até que seja realizada
consulta livre, prévia e informada à comunidade quilombola Queima-
das, conforme os termos da Convenção 169 da OIT, especificamente
o seu art. 6º13. Segundo Oliveira et al. (2017, p. 55-6), esta decisão foi
fruto da construção de um discurso jurídico em defesa do direito à
consulta prévia e ao consentimento no âmbito do CODEMA, com
base na estratégia jurídica de reivindicar a aplicação da Convenção
169 da OIT. Tal estratégia teve como referência a defesa dos direi-
tos territoriais e étnicos utilizados pelos povos indígenas Mapuches e
Tehuelches, “[...] que obtiveram êxito na resistência à implantação de
megaempreendimento de mineração de ouro na região da Chubut,
situada na Patagônia Argentina”. A recomendação do CODEMA foi
acatada pelo prefeito municipal, que declarou a desconformidade do
empreendimento minerário às leis municipais. Contudo, após tentar
reverter essa decisão por via judicial e não conseguir, a Anglo Ameri-
can vendeu os direitos minerários referentes ao Projeto Serro para o
grupo Herculano Mineração.
Em 2018, a Herculano Mineração fez retornar à pauta de delibera-
ções do CODEMA, o requerimento da declaração de conformidade
do empreendimento minerário, para fins de licenciamento ambien-
tal, e apresentou um “novo” estudo relativo ao Projeto Serro, ela-
borado em conjunto com a empresa Geomil Serviços de Mineração

13. O art. 6º da Convenção 169 da OIT estabeleceu que: “Ao aplicar as disposições da pre-
sente Convenção, os governos deverão: a) consultar os povos interessados, mediante proce-
dimentos apropriados e, particularmente, através de suas instituições representativas, cada
vez que sejam previstas medidas legislativas ou administrativas suscetíveis de afetá-los dire-
tamente; b) estabelecer os meios através dos quais os povos interessados possam participar
livremente, pelo menos na mesma medida que outros setores da população e em todos os
níveis, na adoção de decisões em instituições efetivas ou organismos administrativos e de
outra natureza responsáveis pelas políticas e programas que lhes sejam concernentes; c) esta-
belecer os meios para o pleno desenvolvimento das instituições e iniciativas dos povos e, nos
casos apropriados, fornecer os recursos necessários para esse fim”.

190
(OLIVEIRA et al.: 2017; LEITE: 2018; JESUS et al.: 2020; STELZER et
al.: 2020). O estudo apresentado pela mineradora ao CODEMA, foi
objeto de análise crítico-científica quanto aos aspectos de hidrogeolo-
gia e de espeleologia, isto é, quanto às águas subterrâneas e cavernas,
por Rodrigues e Gonçalves (2019), geólogo e geógrafo, respectiva-
mente, que identificaram, dentre outras coisas, a tentativa de mani-
pulação das informações para forjar uma suposta proteção hídrica
subterrânea, impossível de ocorrer nas condições apresentadas pelo
estudo da empresa; e a omissão de danos previsíveis e informações
fundamentais para análise do projeto. Essa análise foi corroborada
pela pesquisadora Alessandra Vasconcellos (2019, p. 8), que destacou
a impossibilidade de projetos minerários não “impactarem” o lençol
freático e que “[...] o impacto sobre o rio de uma dada bacia pode
influenciar os rios adjacentes, como é o caso do Rio do Peixe, o Cór-
rego Siqueira e o Ribeirão de Lucas”, descumprindo a legislação mu-
nicipal de uso e ocupação do solo.
Devido a esses e a outros problemas encontrados no Projeto
Serro, o Ministério Público de Minas Gerais (MPMG) expediu reco-
mendação ao CODEMA e à Prefeitura para a retirada de pauta do
pedido de anuência ambiental da Herculano Mineração, até que as
irregularidades fossem resolvidas14. As argumentações da Promoto-
ria Pública evidenciaram as irregularidades identificadas no Projeto
Serro, com base em leis de proteção ambiental, da política urba-
na municipal, de improbidade administrativa, dentre outros, dan-
do um panorama geral, do ponto de vista jurídico, sobre o proces-
so de tentativas de implantação da mineração na área em que vive
o quilombo Queimadas e onde há aquíferos importantes para o

14. O documento de recomendação orientou o órgão municipal a consultar o Instituto Bra-


sileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) antes da apreciação
do pedido da empresa devido à previsão de destruição de áreas de Mata Atlântica, evidenciou
a ausência de comprovação da posse do direito minerário envolvendo o empreendimento, a
inexistência de processo válido de licenciamento ambiental e a ausência das audiências públi-
cas (ALMEIDA: 2019).

191
abastecimento de água na região (MPMG: 2019). Contudo, em 17
de abril de 2019, o CODEMA aprovou a declaração de conformida-
de mesmo sem a apresentação do EIA-RIMA pela empresa, da prova
da cessão dos direitos minerários sobre a área e a sem consulta pré-
via aos quilombos, evidenciando a invisibilidade dos povos tradicio-
nais no processo decisório (CEDEFES: 2019).
Por meio de uma Ação Civil Pública (ACP), em maio de 2019, o
MPMG entrou com pedido de medidas liminares na justiça da co-
marca do Serro, a qual anulou a declaração de conformidade emiti-
da pelo CODEMA e concedida à Herculano Mineração. Além des-
ta anulação, foi exigido que a empresa corrigisse as irregularidades
presentes no Projeto Serro e que realizasse o EIA/RIMA, caso soli-
citasse uma nova declaração de conformidade ao município (SER-
RO: 2019a). Além de ser juridicamente legitimado para agir em de-
fesa dos direitos coletivos relativos ao meio ambiente, a atuação do
Ministério Público foi motivada pelas mobilizações sociais locais e
por requerimento da Federação das Comunidades Quilombolas de
Minas Gerais (N’Golo)15, a qual tem sido importante na defesa dos
direitos das comunidades quilombolas e na sua articulação em nível
estadual. Além disso, em novembro de 2020, representantes dos Mi-
nistérios Públicos Federal e Estadual atuantes na comarca do Serro
foram ao quilombo Queimadas, para uma reunião, em que os mo-
radores relataram os danos sofridos desde a chegada da mineração,
como o fechamento da escola da comunidade, falta de informações
sobre o projeto de exploração minerária naquela região e o não
reconhecimento do quilombo como área afetada pelo empreendi-
mento (MAM: 2020).

15. Criada em 2005, a Federação das Comunidades Quilombolas do Estado de Minas Gerais
(N’Golo) é uma organização política das comunidades quilombolas de Minas Gerais, que
se articulam desde 2003 em torno da mobilização social e dos direitos territoriais e políticas
públicas para os quilombos, em parceria com outros movimentos sociais, organizações e
instituições. Para saber mais sobre a Federação, ver: https://www.facebook.com/quilombo-
lasmg/. Acesso em: 30 nov. 2020.

192
Antes da emissão da declaração de conformidade pelo CODEMA,
a Federação N’Golo também acionou o poder judiciário, por meio de
um mandado de segurança coletivo, em janeiro de 2019. O objetivo
consistiu no reconhecimento do direito à consulta prévia, livre e in-
formada às comunidades quilombolas, antes de qualquer deliberação
e decisão do município quanto ao projeto minerário. A medida limi-
nar foi deferida e determinou que o CODEMA não deliberasse sobre
a conformidade do empreendimento minerário até que se realizasse a
consulta livre, prévia e informada dos órgãos representativos da comu-
nidade quilombola de Queimadas, com obtenção do consentimento
da comunidade, entre outras questões (SERRO: 2019b). A Herculano
Mineração recorreu ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e
o desembargador concedeu efeito suspensivo ao recurso apresentado
pela empresa, no sentido de que o município poderia deliberar sem
fazer a consulta. Tal decisão foi fundamentada no argumento de que o
decreto de licenciamento ambiental não prevê a consulta prévia. A Fe-
deração Quilombola recorreu contra esta decisão, mas o recurso ainda
não foi julgado, passado mais de um ano. Por outro lado, as deman-
das jurídicas apresentadas ao Tribunal pela empresa são prontamente
atendidas, demorando em média dois meses para serem respondidas
pelo desembargador-relator do processo16 ( JESUS et al.: 2020). Além
disso, a empresa Herculano Mineração, por meio da Mineração Co-
nemp, entrou com uma ação judicial de Tutela Inibitória contra o ad-
vogado popular da Federação N’Golo, Matheus Mendonça Leite, para
que ele fosse proibido de divulgar quaisquer informações sobre o Pro-
jeto Serro e sobre a atuação da empresa no município, além de exigir a
sua retratação pública, a qual foi indeferida pelo TJMG.

16. Segundo Jesus et al. (2020), a Federação N’Golo propôs uma correição parcial no Conse-
lho da Magistratura, com pedido de afastamento imediato do desembargador-relator, uma
reclamação disciplinar no Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e uma reclamação, no Supre-
mo Tribunal Federal (STF), contra a decisão do TJMG, nos autos do agravo de instrumento
nº 1.0671.19.000050-3/001.

193
CONCLUSÃO
As diferenças de acesso e julgamento das demandas apresentadas pela
entidade representativa dos quilombolas e pela empresa de minera-
ção, apresenta aspectos que permitem referir o conflito também en-
quanto um caso de racismo ambiental, manifestado em sua dimensão
institucional. A invisibilização dos povos tradicionais nos territórios
tradicionalmente ocupados nos processos de licenciamento ambien-
tal pode ser observada nos casos de projetos de mineração tanto no
Serro como em Conceição do Mato Dentro. Na medida em que tais
povos estabelecem estratégias de luta e resistência frente aos projetos
de mineração, eles se tornam “entraves” para os projetos de desenvol-
vimento neoextrativistas, intensivos na exploração e contaminação
da natureza. A utilização da coerção e intimidação, por meio das es-
truturas de poder estatais, torna-se mais evidente no caso de tentativa
de criminalização do advogado popular da entidade quilombola. A
criminalização e as violências contra as pessoas que se contrapõem a
estes projetos são comuns em diversos casos de conflitos ambientais
entre atividades minerárias e comunidade locais. Dessa forma, a atua-
ção das empresas mineradoras no município de Serro é um caso em-
blemático de como a mineração se utiliza da coerção e intimidação
para se instalar nos territórios.
Além disso, as alterações estratégicas dos representantes do CO-
DEMA e suas práticas e deliberações sobre a política ambiental muni-
cipal podem nos indicar mudanças nas estratégias corporativas sobre
esses espaços, que estão em disputa. Foi possível mapear nas ações ju-
diciais analisadas e nos debates públicos no âmbito do município, dis-
cursos e práticas empresariais formulados como respostas às críticas
de suas práticas. São os casos do financiamento das festas da cidade
e de atividades do comércio local pela Herculano Mineração, que se
utiliza também do discurso da geração de emprego e renda e de que o
empreendimento não prejudicará o abastecimento de água sem, con-
tudo, apresentar estudos técnicos que demonstrem tais resultados.

194
Tais estratégias podem ter a capacidade de gerir as interações ins-
titucionais, políticas e sociais, como forma de controle das condições
sociopolíticas do entorno espacial do empreendimento (ACSELRAD:
2018). Para ser implantando, o Projeto Serro depende dos recursos
territorialmente situados em áreas com aquíferos, áreas protegidas
e o quilombo Queimadas. A área de afetação do empreendimento é
muito maior do que a prevista pela empresa, pois se localiza a pou-
cos quilômetros da sede do município e do seu patrimônio histórico,
além da proximidade com os outros quilombos, que também podem
sofrer processos de expulsão de seus territórios e o desfazimento das
relações sociais baseadas no uso coletivo da terra, com a chegada do
empreendimento.
As disputas entre organizações da sociedade civil, quilombolas,
grupos de pesquisa e extensão e movimento sociais frente às em-
presas de mineração e ao poder executivo municipal, evidenciam o
caráter intrinsecamente conflitivo da questão ambiental, pois estão
colocados projetos antagônicos de sociedade, para a orientação de
políticas ambientais no Serro. São temas que, em geral, também se
apresentam transversais em boa parte dos conflitos socioambientais
no país, eis que representam a dicotomia entre modelos de desenvol-
vimento, de um lado fortes projetos desenvolvimentistas amparados
em discursos já não tão convincentes de geração de emprego e renda
e melhoria futura, e de outro lado, em falas identitárias, de reconhe-
cimento territorial, afirmação racial e noções emergentes de autoges-
tão coletiva.
Nesse campo de disputas, o poder judiciário tem sido uma alterna-
tiva para ambos os lados, seja para garantir um processo de licencia-
mento ambiental democrático, participativo e que atenda às garan-
tias de proteção socioambiental, seja para avançar nos procedimentos
necessários entendidos como etapas burocráticas para instalar o em-
preendimento minerário. Numa conjuntura em que o licenciamen-
to ambiental tem sido flexibilizado para torná-lo mais célere na

195
aprovação de licenças para a mineração, a pressão social sobre o CO-
DEMA e sobre o poder executivo municipal torna-se uma importante
estratégia na disputa e na resistência aos modelos de desenvolvimen-
to neoextrativistas, mas são etapas. Os modelos de desenvolvimento
da modernidade exigem inovações tecnológicas, que deverão se pau-
tar tanto pela busca de ferramentas mais ecologicamente adequadas
como, no campo sociojurídico stricto sensu, procedimentos mais efeti-
vos, transparentes e democráticos necessitarão ser acionados.

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200
O ITINERÁRIO DE RECONHECIMENTO
DAS COMUNIDADES TRADICIONAIS
DO PROJETO AGROEXTRATIVISTA
JURITI VELHO
Lílian Regina Furtado Braga
Marcelino Conti de Souza
Wilson Madeira Filho

INTRODUÇÃO
O município de Juruti, como quase todos os municípios às mar-
gens do Rio Amazonas, tem a sua data de fundação coincidente
com a do período de colonização portuguesa, sendo Yuru ti uma
área portuária que recebia os vapores que circulavam o Rio Ama-
zonas. A população local notadamente possui traços indígenas, fru-
to de uma origem em um território de nativos Mundurucus. A mi-
neração, que se instalou no local, provoca grande mobilidade em
virtude de suas intervenções, tendo algumas comunidades mudado
de lugar em confronto e em conformação com essa nova realidade
econômica.
Pertencente à mesorregião do Baixo Amazonas, o município de
Juruti tem um distrito onde, inicialmente, se localizava sua sede e
que, posteriormente, com a mudança da sede para um local que faci-
litaria a chegada de embarcações na calha do rio Amazonas, passou a
chamar-se de Juruti Velho ou Vila Muirapinima.

201
Figura 1. Juruti Velho.

Fonte: http://portaljuruti-velho.blogspot.com

O presente texto pretende destacar o protagonismo das comunida-


des de Juriti, enquanto ação de resistência e confronto ao modelo he-
gemônico de desenvolvimento propugnado pela atividade de mine-
ração. A força organizativa e reativa das comunidades fez com que o
processo fosse diferenciado em Juruti Velho. Esta, contudo, não pode
ser descrita como uma vitória isolada num contexto dual, mas, ou-
trossim, como a vitória conjugada de várias articulações, que empres-
taram ao cenário concreto dos conflitos socioambientais, um modelo
negocial plausível.

1. ECOS DE JURUTI VELHO


Registros de uma rebelião dos povos Mundurucu nos anos de 1795,
contida por tropas do governador Manoel da Gama, que mandara
prender os rebeldes, debilitados e doentes, teria causado, um ano de-
pois, o êxodo de milhares de mundurucus que teriam vindo a formar
a povoação de Canoma, Maués e Juruti (CERQUEIRA E SILVA, 1833,
p. 139).
Uma forma de controlar essa população fora promover o aldea-
mento em 1818 na região conhecida como Juruti Velho, na missão
Jesuíta de Juruty, ligada a paróquia de Nossa Senhora da Saúde (FER-
REIRA PENNA: 1869, p.46). Em 1883, a então Villa de Juruty foi

202
elevada à categoria de Município, o que durou até 1900, sendo seu
território anexado aos municípios de Faro e Óbidos. Em 1884, essa
freguesia foi transferida por ordem do presidente da Província e do
Prelado Diocesano para Maracauassú-Tapera, na margem direita do
rio Amazonas, em frente à ilha de Santa Rita, facilitando o acesso pela
navegação; com uma população contadas em 200 almas, em face da
resistência dos moradores de Juruti Velho de transferir-se para o novo
local (FERREIRA PENNA, 1869, p. 49).
O termo almas, ao dissociar raças e etnias, reflete bem a estética jesuí-
ta colonizatória que marcou e ainda marca aquele território. É fato com-
provado que Juruti Velho constitui um território com organizações dos
mais diversos tipos: social, cultural, política e econômica. Essa estrutura
sociológica tem uma história enraizada na tradicionalidade, alicerçando
a formação de agrupamento coletivo e a presença da Igreja Católica, por
meio das Irmãs Franciscanas de Maristella, que serviram (e ainda ser-
vem) de apoio intelectual capaz de possibilitar às comunidades o acesso
a uma leitura social e a uma perspectiva de projeto de sociedade, além
de conectar essas comunidades ao mundo, com a formação e transmis-
são de informações para outras redes da sociedade, seja no âmbito re-
gional, nacional ou internacional. Isso significa que durante muito tem-
po a vocalização das demandas das comunidades de Juruti teve a Igreja
como principal amplificadora. Fato que ocorreu em diversos processos
na Amazônia e noutras localidades no Brasil e no mundo.
É no distrito de Juruti Velho que se concentra boa parte do pla-
tô mineral de bauxita, explorado pelo Projeto Juruti da Alcoa. O Mi-
nistério Público Federal no Pará destacou, na Ação Civil Pública n.
2005.39.02.001667-1, que questiona o licenciamento ambiental do
projeto minerador de bauxita de Juruti, que

É conhecida a vocação minerária do Estado do Pará, que já hospeda im-


portantes empreendimentos de exploração mineral, alguns deles repre-
sentativos dos mais lucrativos negócios da balança comercial brasileira.

203
Boa parcela de tais empreendimentos, todavia, foi implantada ainda sob
a ótica de um modelo não democrático de participação política, o que
retirou da sociedade a possibilidade de, influindo na decisão, ver repar-
tidos os lucros da atividade, evitando que apenas os prejuízos viessem a
ser socializados.”1

A discussão trazida para o questionamento da implantação de um


projeto minerador é o espelho das movimentações sociais no Muni-
cípio de Juruti e especialmente no distrito de Juruti Velho, ao vislum-
brar a instalação de um empreendimento que ignorou, inicialmente,
a existência de pessoas na região e invisibilizou aquele distrito.
Note-se nas expressões trazidas na ACP2:

Talvez a maior falha, no aspecto socioeconômico, além daquelas relacio-


nadas às políticas públicas e seu financiamento (como adiante será co-
mentado), está relacionada ao desconhecimento ou desconsideração dos
impactos potenciais da supressão do ecossistema florestal que se encon-
tram sobre os platôs a serem explorados e seus efeitos sobre as comuni-
dades lindeiras. Esses impactos são tão importantes que devem atingir
diretamente a cerca de um terço da população atual do município e não
possuem definição de responsabilidade financeira a cobri-los.

A Vila Muirapinima necessitava trazer a lume suas histórias e es-


pecialmente seu projeto de vida dentro daquele espaço amazônico,
lentamente ocupado pela mineração.
A vida do município de Juruti, antes do processo de ocupação mine-
rador, dispunha de 9.000 habitantes na sede do município e na sua zona
rural em torno de 12.000 habitantes, e alguns poucos veículos automoto-
res. Em 2008, na sede do município havia tão somente uma rua asfaltada.

1. Cfe. http://www.mpf.mp.br/atuacao-tematica/ccr6/dados-da-atuacao/acao-civil-publi-
va-1/mineracao-garimpo-1/acp_licenciamento_juruti_pa.pdf.
2. Idem.

204
No cenário cultural, aquele pequeno povoado passou a de-
senvolver uma festa que remete à histórias e ritos tribais e que se
transformou num dos maiores festivais culturais do Pará, conside-
rado patrimônio cultural paraense: a FESTRIBAL, disputa entre
as tribos folclóricas MUIRAPINIMA e MUNDURUKU. Porém, no
ambiente da economia amazônica, Juruti Velho tinha na produção
de farinha da agricultura familiar destaque no cenário regional, as-
sim como a produção pesqueira que é referência em toda região do
Baixo Amazonas, somando-se aos municípios de Oriximiná e Óbi-
dos e os redutos pesqueiros de Terra Santa e Faro que abastecem
boa parte do que é indicado como produção pesqueira do Estado
do Amazonas.
Lugar de beleza natural indescritível em muitos momentos, pois
cada verão se desenham novas praias e a cada inverno o rio forma
novos igapós. Sendo esta realidade não fruto da imaginação poética
do ribeirinho ou do pesquisador, o território Muirapinima passou a
sofrer diversas interferências, inclusive no regime das águas, que co-
meça a causar estranheza entres os habitantes.
A mineração é ambientalmente altamente impactante. A or-
ganização das comunidades no distrito de Juruti Velho é composta
de dezenas de comunidades ribeirinhas que ao longo de décadas se
agregou, compartilhando de um mesmo território e formas comuns
e próprias de subsistência e utilização espacial, característico das po-
pulações ribeirinhas do interior da Amazônia. Lindomar Silva (2014,
p. 211) aponta que a comunidade é “uma forma de pensar, sentir e
acreditar”:

É um fenômeno cultural que é construído e possui forte significado para


as pessoas, por meio de recursos simbólicos. A comunidade é um símbo-
lo que expressa as suas próprias fronteiras, símbolo que é apropriado co-
letivamente pelos seus membros, no entanto os seus significados variam
conforme as perspectivas pessoais.

205
A economia da vida na Amazônia, em maior ou em menor escala,
está esculpida exatamente na utilização dos recursos naturais distribuídos
nos territórios. Porém compreender as complexas relações comunitárias
é descortinar o itinerário traçado por estas para sair da invisibilidade e
trazer a lume o reconhecimento de sua forma de viver e relacionar-se
com o território. Nesse sentido, pode-se compreender como ponto de
inflexão para se estabelecer o conflito, o rompimento das relações de ter-
ritorialidade. E, ao contrário da visão funcionalista, para a qual os con-
flitos são um simples sinal de que algo não vai bem, trazendo críticas ao
sistema e permitindo-lhe autorregulação permanente, há que se consi-
derar que na recusa dos atores, há também uma positividade. E que esta
positividade não é apenas constitutiva de sujeitos, que se definem com
frequência em um movimento de recusa, mas ela tem efeitos também
sobre o modo como se organizam as relações espaciais e as formas de
apropriação do território e seus recursos (ACSERALD, 2004).
As comunidades de Juruti Velho buscam uma forma de organização
para garantia de seu modo de vida. Inicialmente estes grupamentos de
famílias se reuniam em torno do cultivo da mandioca, da produção da
farinha e da pesca, com o desenvolvimento de pequena produção típica
da agricultura familiar como feijão, jerimum, melancia, hortaliças. Um
segundo aspecto que constitui uma potencialidade presente nas comu-
nidades é a prática coletiva construída historicamente como alternativa
à limitação tecnológica, econômica e como prática de convivência social
e colaboração mútua: o puxirum, como é conhecido o desenvolvimento
de mutirão em Juruti. O puxirum é a grande arte do fortalecimento dos
laços comunitários, especialmente nos fazeres da roça e na construção
e/ou melhoramentos das casas dos membros das comunidades.

2. VIBRAÇÕES ASCENDENTES
A teoria social da crítica da razão indolente (Santos, 2000), sustenta que
estamos vivendo em um momento de transição paradigmática, no

206
qual o paradigma da modernidade se encontra em declínio, em fun-
ção do colapso do pilar da emancipação no pilar da regulação, fruto
da convergência do paradigma da modernidade e do capitalismo. Este
período transicional possui duas dimensões principais: uma episte-
mológica e outra societal. A transição epistemológica ocorre entre o
paradigma dominante da ciência moderna e o paradigma emergente
(conhecimento prudente para uma vida decente). A transição societal
ocorre do paradigma dominante (sociedade patriarcal, produção capi-
talista, consumismo individualista, identidades-fortaleza, democracia
autoritária e desenvolvimento global e excludente) para um conjunto
de paradigmas que ainda não sabemos exatamente o que vem a ser - o
que o autor vai denominar vibrations ascendences, conceito empresta-
do de Fourier (Santos, 2000).
Em sua construção teórica, o autor afirma que o projeto da mo-
dernidade possui duas formas de conhecimento: o conhecimento re-
gulação e o conhecimento emancipação. Os pontos extremos do pri-
meiro são o caos (ignorância) e a ordem (conhecimento); do segundo
são o colonialismo (ignorância) e a solidariedade (conhecimento). O
pilar da regulação é composto pelo Estado, o mercado e a comunida-
de, enquanto no pilar da emancipação encontramos três formas de
racionalidade: a estético-expressiva, a cognitivo-instrumental e por úl-
timo a racionalidade prático-moral do direito. A absorção do pilar da
emancipação pelo pilar da regulação se deu através da convergência
entre modernidade e capitalismo e a consequente racionalização da
vida coletiva baseada apenas na ciência moderna e no direito estatal
moderno (Santos: 2000, p. 42).
A sobreposição do conhecimento regulação sobre o conhecimento
emancipação, portanto, se deu através da imposição da racionalida-
de cognitivo-instrumental sobre as outras formas de racionalidade e
a imposição do princípio da regulação do mercado sobre os outros
dois princípios, Estado e comunidade. Portanto, a emancipação es-
gotou-se na própria regulação e, assim, a ciência tornou-se a forma

207
de racionalidade hegemônica e o mercado, o único princípio regula-
dor moderno. É o que o autor vai definir como a hipercientificização
e a hipermercadorização da regulação. Segundo Santos, o princípio
da comunidade e a racionalidade estético-expressiva são as represen-
tações mais inacabadas da modernidade ocidental, e por isso seriam
os princípios que poderiam colaborar para a construção de um novo
pilar emancipatório. O princípio da comunidade é “o mais bem colo-
cado para instaurar uma dialética positiva com o pilar da emancipa-
ção” (Santos: 2000, p. 75). Duas são as dimensões fundamentais deste
princípio: participação e solidariedade.
Em função da colonização através do princípio científico, a partici-
pação ficou restrita a uma noção de esfera política entendida a partir
da concepção hegemônica da democracia: a democracia representati-
va liberal. O Welfare State foi o resultado da colonização do princípio
da solidariedade. A racionalidade estético-expressiva foi a que mais
ficou fora do alcance da colonização. Assim como a colonização do
prazer se deu através do controle das formas de lazer e dos tempos
livres, o autor sustenta que:

[...] fora do alcance da colonização, manteve-se a irredutível individuali-


dade intersubjetiva do homo ludens, capaz daquilo a que Barthes chamou
jouissance, o prazer que resiste ao enclausuramento e difunde o jogo en-
tre os seres humanos. Foi no campo da racionalidade estético-expressiva
que o prazer, apesar de semi-enclausurado, se pode imaginar utopica-
mente mais do que semi-liberto (Santos, 2000, p. 76).

Essa espécie de copo democrático, metade cheio, metade vazio,


permite enxergar a aparente vitória estrutural da comunidade tradi-
cional de Juriti Velho diante da escalada extrativista do minério tam-
bém como uma tutela estilizada, eis que mediada pela Igreja Cató-
lica, pelo INCRA e pelo Ministério Público e até mesmo pela Alcoa.
Dessa forma, uma suspensão da sobreposição do conhecimento

208
regulação sobre o conhecimento emancipação teria sido possível
nesse contexto sui generis.

3. O IMPÉRIO DA BAUXITA
O Brasil está entre os cinco primeiros países em reserva de bauxita no
mundo. A mina de bauxita de Juruti tem uma expectativa de exploração
para cerca de cinco décadas e, com o melhoramento industrial na pro-
dução do alumínio, ganhou destaque mundial por passar a fazer parte da
fabricação de talheres, utensílios de cozinha e automóveis. A Alcoa, veri-
ficando que as redes de relação no território de mineração se modificam
com o surgimento do alumínio, passa a incorporar novos territórios. Juru-
ti, passa a fazer parte destes territórios “apropriados” pela empresa minera-
dora, que se encontra em disputa internacional no mercado de alumínio.
No Brasil, a Alcoa ocupa territórios de mineração desde Santa Ca-
tariana, quando iniciou sua atuação em 1986, em Tubarão SP, até no
Pará, quando iniciou, em Juruti, suas incursões em 2005, porém com
presença bem anterior em Barcarena, onde já se desenvolvia a indús-
tria de beneficiamento da bauxita extraída no Pará, como possibilidade
de aproveitamento do mercado minerador que se descortinava, ultra-
passando tão somente a extração bruta da matéria prima: bauxita. A
presença da mineradora no território de Juruti causa inicialmente con-
fusão, pois em um município muito pequeno que sobrevivia da agricul-
tura familiar, uma tímida produção de gado para corte e de empregos
públicos – na maioria na sede do município, vê chegar negociadores de
panelas e espelhos, que desejavam incialmente informações da confor-
mação territorial. História muito nova, mas com fazeres muito antigos,
como se pode observar em Costa e Sudério (2009, p. 11).

A espinha dorsal da ocupação portuguesa da Amazônia foi o indígena:


seu braço, seu cérebro e o ventre da mulher índia. O índio amazôni-
co foi à ponta-de-lança que garantiu à Portugal na época do Tratado

209
de Madri (1750), o maior território possível na Amazônia. Por isso,
como afirmou Joaquim Nabuco, “os gentios foram às muralhas do
sertão”. Sua importância não se restringiu ao papel do soldado ou ao
explorador das “drogas da mata”, que só ele sabia onde encontrar. Foi
também o remo, a bússola, o provedor de alimentos e de braços. Em
suma, o instrumento para a implementação do projeto geopolítico da
Coroa portuguesa em seus enfrentamentos com outros colonizadores
europeus.

Com estes mesmos fazeres se inicia a prospecção mineral em Ju-


ruti, que gerou um passivo socioambiental, discutido em uma mesa
de indenização por perdas e danos, que vem se construindo como um
novo paradigma nas relações de empreendimentos mineradores na
Amazônia.
Madeira Filho e Taveira (2015) indicam que uma das características
específicas da mineração é a rigidez locacional. De fato, o empreen-
dedor não possui liberdade na escolha do local, no qual desenvolverá
sua atividade, uma vez que as minas, necessariamente, serão lavradas
onde a natureza as colocou. Na Amazônia, em Juruti, o minério da
bauxita se encontra sob os pés de populações tradicionais ribeirinhas.
Eis a pauta de conflito! A degradação ambiental é inerente à ativida-
de de mineração. A utilização dos recursos naturais é a garantia de
sobrevivência das comunidades tradicionais. É no território que essa
disputa acontece.
Souza e Azevedo Filho (2018, p.6) citam que as lideranças locais,
apoiadas pelo movimento social, passaram a exigir esclarecimentos
da empresa pelas incertezas e dúvidas relativas ao futuro da popula-
ção do município. Essas reações vinham principalmente das comuni-
dades rurais que mais se sentiam prejudicadas, como as comunidades
do lago Juruti Velho que, por meio da Associação das Comunidades
da Região de Juruti Velho (ACORJUVE), pressionavam ao diálogo
com a sociedade jurutiense.

210
O Projeto Juruti – mineração de bauxita da AWA (ALCOA) - é um
empreendimento de exploração mineral e consiste na exploração da
lavra mineral, beneficiamento do minério de bauxita, transporte do
produto e expedição por navio. Seguindo o curso para implantação
do projeto minerador em território de comunidades tradicionais, em
2004 a empresa iniciou processo de licenciamento ambiental junto à
Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (SECTAM) que cul-
minou, em 2007, na emissão de Licenças de Implantação para ativi-
dades de extração de minério, construção de ferrovia e de instalações
portuárias. A reserva de bauxita foi estimada em 205 megatoneladas
de minério, um longo percurso exploratório, o que obrigaria ao em-
preendimento conviver/relacionar-se com as comunidades tradi-
cionais que se encontram em processo de regularização fundiária;
processo notadamente marcado pela incrementação de projetos do
governo federal e estadual de concessão do direito real de uso às co-
munidades tradicionais, em territórios onde houve arrecadação de
terras por parte do Estado.
É o caso do Projeto Agroextrativista (PAE) JURUTI VELHO. O
precedente estabelecido em decisão do STF no caso Raposa Serra do
Sol deixou insculpido que

Há perfeita compatibilidade entre meio ambiente e terras indígenas, ain-


da que estas envolvam áreas de “conservação” e “preservação” ambien-
tal. Essa compatibilidade é que autoriza a dupla afetação, sob a adminis-
tração do órgão ambiental. (Petição nº 3.388, rel. min. Ayres Britto, DJE
de 25/09/2009).

Esse diálogo tem como referências legais e doutrinárias, nos es-


teios da regularização fundiária, a Convecção 169 da Organização
Internacional do Trabalho, detidamente nos dizeres dos artigos 13 e
14, apontando caminhos desse processo. Nesse sentido, para Duprat
(2008, p.1): “cabe ao direito assegurar-lhes o controle de suas próprias

211
instituições e formas de vida e seu desenvolvimento econômico, e
manter e fortalecer suas entidades, línguas e religiões, dentro do âm-
bito dos Estados onde moram”. Assim, a defesa da identidade cultural
passa a ser, para os estados nacionais, um imperativo ético, insepará-
vel do respeito à dignidade da pessoa humana.
A presença da empresa Norte-Americana coloca as comunidades
de Juruti no rol daquelas que passaram a vivenciar o conflito ocasio-
nado pela expansão capitalista. No caso, o domínio do território das
comunidades, como sua tradicionalidade, foi amplamente questiona-
da, numa clara tentativa de “remover obstáculos jurídico-formais e
político-administrativos, que reservam áreas para fins de preservação
ambiental ou para atender a reivindicações de povos e comunidades
tradicionais” (ALMEIDA, 2010, p.117). Em sentido correlato, Gott-
man (2012, p. 526) trata sobre essa perspectiva territorial e que desafia
a comunidade jurídica:

As constantes dificuldades experimentadas pelos juristas demonstram a


necessidade de se aceitar que o território é um conceito, e um conceito
mutável. Como geógrafo, sinto que seja indispensável definir território
como uma porção do espaço geográfico, ou seja, espaço concreto e aces-
sível às atividades humanas. Como tal, o espaço geográfico é contínuo,
porém repartido, limitado, ainda que em expansão, diversificado e or-
ganizado. O território é fruto de repartição e de organização. Tal como
todas as unidades do espaço geográfico, ele deve ser, em teoria, limitado,
embora seu formato possa ser modificado por expansão, encolhimento
ou subdivisão.

Os caminhos traçados pelas comunidades ribeirinhas da região do


entorno do lago de Juruti Velho, no município de Juruti/PA, em bus-
ca da regularização fundiária de seu território e o reconhecimento
de sua tradicionalidade, indicam que sua organização foi pressiona-
da pela ocupação territorial e pela pressão do mercado minerador.

212
O movimento nacional de destinação das áreas públicas, com o fim
de se ter uma definição dos territórios e sua possibilidade de utiliza-
ção econômica, colocou no cenário Juruti Velho e os percursos para
ter a área do PAE JURUTI VELHO reconhecida em seu Contrato de
Concessão de Direito Real de Uso (CCDRU) como comunidade tradi-
cional ribeirinha. Todas essas histórias devem ser colacionadas neste
processo, pois não foi apenas o Instituto Nacional de Colonização e
Reforma Agrária (INCRA), lançando mão da legislação já existente,
que firmou espontaneamente esse conceito. Tampouco foi a Alcoa
que, desejando apresentar no mercado internacional relações de sus-
tentabilidade, reconheceu que deveria dialogar com as comunidades
tradicionais do lago Juruti Velho. Foram, outrossim, as comunidades
que se colocaram no debate e fizeram toda espécie de enfrentamen-
to, não deixando qualquer outra possibilidade ao Estado e ao em-
preendedor. As 49 comunidades distribuídas por todo o Projeto de
Assentamento Extrativistas, que são representadas pela ACORJUVE,
trouxeram para os debates de mineração no Brasil o reconhecimento
ao pagamento do direito de lavra ao posseiro, aquele que está sob o
território.
O território assim concebido indica espacialidade; o local cultu-
ralmente construído a partir de lutas identitárias. Quer-se com isso
trazer presente o conceito de posse agroecológica e a importância
de estudar as regras construídas de legitimação do direito de pro-
priedade nas áreas de apossamento comum e o funcionamento do
direito de propriedade em relação ao homem e a seus usos da natu-
reza, como fator de implementar uma efetiva proteção dos recursos
naturais e respeitar os costumes locais. Portanto, o território passa
a ser concebido como algo que designa a condição de existência, de
produção e reprodução social. Os processos imateriais e as múltiplas
formas de conhecimento, como também a possibilidade de criar al-
ternativas de superação de condições de invisibilidade e silêncios im-
postos pela prática colonial do pensamento ocidental, foram fatores

213
que estiveram presentes na luta e na resistência das comunidades de
Juruti Velho, questionando a racionalidade econômica dominante e
o modelo de desenvolvimento e bem-estar, produzindo experiências
de articulação e mobilização, além de afirmar, como base central de
sua reivindicação, o binômio território-identidade. Desta forma, as
comunidades subverteram a racionalidade dominante, ao tomarem,
como bandeira de luta, saberes, temporalidades e o reconhecimento
do território, contrapostos à sociabilidade ocidental e ao direito, na
sua expressão legal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Ministério Público, por meio da celebração e acompanhamento de
um Termo de Ajustamento de conduta (TAC), promoveu condições
institucionais adequadas para a realização do Estudo de Perdas e Da-
nos do PAE Juruti Velho e o cálculo da indenização devida pela Alcoa
em razão de danos e restrições de utilização dos bens ambientais.
Nesse sentido, ocorreu a articulação de interesses divergentes e
opostos para alcançar o melhor arranjo de resultados. A principal di-
ficuldade encontrada no processo talvez tenha sido justamente lidar
com os limites do licenciamento ambiental enquanto espaço de ne-
gociação. Algumas condições institucionais de participação e contro-
le no processo de discussão pública ambiental auxiliaram a alcançar
esse resultado festejado: a começar pela capacidade organizacional da
ACORJUVE, representativa dos interesses das comunidades ribeiri-
nhas, para defender seus direitos; unida à capacidade técnica e profis-
sional do INCRA Santarém e à capacidade presente no grupo empre-
sarial da Alcoa, que possibilitou assumir compromissos avançados na
solução de conflitos com populações tradicionais .
Nos dias atuais, muitas organizações comunitárias se estruturam
e criam suas próprias redes e articulações, como os povos indígenas,
extrativistas e comunidades quilombolas. Fica então a pergunta: as

214
comunidades de Juruti conseguiram participar de uma rede capaz de
potencializar suas dimensões sociais, culturais e políticas? Esses as-
pectos constituem algo emblemático para a organização das comu-
nidades de Juruti, já que no desenvolvimento do processo ocorreu
espontaneamente uma divisão da tarefa, em que os agentes eclesiais,
até pelos recursos disponíveis, ficavam responsáveis em fazer a pon-
te entre a comunidade e o mundo; e as lideranças comunitárias, em
organizar e garantir a mobilização. Notadamente, essa divisão não
pode ser algo rígido, relacionado a algum tipo de hierarquia, mas sim
como arranjos estruturais de momento, como forma de garantir o
processo. Nesse sentido, as comunidades de Juruti ainda são carentes
de uma rede capaz de retroalimentar, de maneira autônoma, sem tu-
tela, os seus aspectos específicos.
Com organização e mobilização as comunidades de Juruti Velho
alcançaram suas reivindicações, como o reconhecimento da condição
de comunidade tradicional, com participação nos royalties e titulação
coletiva do território de Juruti Velho, através do Projeto de Assenta-
mento Extrativista. Essas conquistas constituem fato inédito na histó-
ria das comunidades de Juruti. Acredita-se que as conquistas obtidas
pelas comunidades de Juruti podem ser entendidas a partir da com-
preensão de que há fatores externos ou conjunturas que favorecem
os avanços das reivindicações. Esses aspectos têm conjuntura política,
com relação histórica com organizações sociais, sindicais, religiosas e
comunitárias.
Outro fator importante foi a existência, desde a década de 1970,
da congregação de Irmãs Franciscanas ligada à Igreja Católica e vin-
culada à Teologia da Libertação e à Pedagogia do Oprimido, a qual,
durante anos, contribuiu para a formação e organização das comu-
nidades, possibilitando, assim, o surgimento de lideranças políticas,
sindicais e sociais em Juruti. Além dos fatores já relacionados tem-
-se, como hipótese, que existem elementos internos, ligados à com-
posição orgânica dessas comunidades, que servem de potencialidade,

215
possibilitando a coesão capaz de impulsionar as ações coletivas, difi-
cultado a cooptação e a divisão no interior das comunidades.
Entende-se que todo o processo de mobilização capaz de mover
as comunidades em vista de um interesse comum possui raízes mais
profundas que simples objetivos econômicos. Essas raízes são histori-
camente construídas a partir de uma relação associativa, materializa-
da na comunidade de indivíduos que construíram as relações sociais,
econômicas, políticas, culturais e ambientais coletivas como estra-
tégia para superar as dificuldades materiais e imateriais. Portanto, a
comunidade constitui uma primeira potencialidade interna presente
em Juruti. Tal aspecto permite uma habilidade associativa capaz de
mobilizar os indivíduos para a defesa dos interesses comuns.

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217
GRANDES EMPREENDIMENTOS,
PLANEJAMENTO MUNICIPAL
E VIOLÊNCIA: OS EFEITOS
DAS EXPECTATIVAS E DO
FRACASSO DO COMPERJ

Valter Lúcio de Oliveira


Carlos Alberto do Valle Amorim
Jorge Carlos Dias de Sousa Jr

INTRODUÇÃO
No dia 28 de janeiro de 2007, já no segundo mandato do Presi-
dente Lula, foi lançado o Programa de Aceleração do Crescimen-
to (PAC) e a Petrobrás ficou responsável por diversas obras pre-
vistas no programa, dentre as quais o Complexo Petroquímico
do Rio de Janeiro (COMPERJ) a ser construído no município de
Itaboraí-RJ.
Conforme descrição apresentada em Jardim (2013), apesar de
muitas variações e controvérsias, o COMPERJ foi considerado o
maior empreendimento da história da Petrobrás e o terceiro maior
do Brasil ainda enquanto estava sendo construído a partir de seu pro-
jeto inicial. Era para ser composto por duas refinarias que processa-
riam o petróleo explorado na bacia de Campos visando à produção
de matéria prima para produtos plásticos (polietileno, polipropileno
e PET), óleo diesel, nafta, querosene de aviação, GLP e óleo com-
bustível. A área total diretamente ocupada pelo COMPERJ chegou a
“45 milhões de metros quadrados, o equivalente aproximado a mais de seis

219
mil campos de futebol”1, correspondente a aproximadamente 10% da
área do município. O valor do investimento projetado inicialmente
foi orçado em US$ 6,5 bilhões, mas a ampliação do projeto inicial e
falhas no planejamento elevaram este valor para algo ao redor de
US$ 13,5 bilhões, custo inicialmente previsto para a conclusão, em
2016 e já com 5 anos de atraso, de apenas uma das refinarias (a me-
nor delas). A segunda refinaria ampliaria este custo para US$ 30,5 bi-
lhões com previsão de conclusão para 20212. Com a crise provocada
pela operação Lava Jato toda obra foi paralisada em 2015 e, apesar
das promessas e anúncios de retomada, seu projeto inicial foi aban-
donado pelos governos que se seguiram ao golpe de 2016.
Os efeitos da presença da Petrobras, ali materializado nas obras do
COMPERJ, se manifestam de modo mais evidente através da alteração da
paisagem urbana decorrente da construção de prédios e shoppings, da ins-
talação de grandes redes comerciais e de hotelaria, da valorização imobi-
liária, da ampliação da circulação de veículos, da chegada de grande núme-
ro de trabalhadores, da realização de greves e das expectativas de emprego
e melhoria na oferta de serviços públicos. (BEZERRA, 2015, p.212).
Desde o momento de seu anúncio, o que imediatamente gerou
enormes expectativas e especulações até o seu já considerado fracasso,
o COMPERJ é um empreendimento que até o momento não colocou
no mercado nenhum dos produtos previstos, mas produziu diversos
efeitos na dinâmica do município e da região. As forças políticas e eco-
nômicas desta região definiram que 15 municípios (inicialmente eram

1. Conforme site do COMPERJ: http://www.comperj.com.br/Localizacao.aspx (consulta-


do em 10/11/2011).
2. Diferentes fontes apontam diferentes valores e não há a divulgação de dados a partir de
fontes oficiais. Ver: Valor Econômico: http://www.valor.com.br/u/3511692 (Consultado
em 09/04/2014); O Estado de São Paulo: http://economia.estadao.com.br/noticias/ge-
ral,comperj-ja-custa-o-dobro-e-acumula-problemas,177445e (09/02/2014); EBC: http://bit.
ly/1imTbSY (Consultado em 15/04/2014); O Globo: http://g1.globo.com/economia/ne-
gocios/noticia/2014/04/atraso-erro-e-sobrepreco-multiplicam-custos-de-refinarias-da-petro-
bras.html (Consultado em 14/08/2014)

220
apenas 11 municípios) seriam diretamente afetados pelo empreendi-
mento: Itaboraí, Araruama, Cachoeira de Macacu, Casimiro de Abreu,
Guapimirim, Magé, Maricá, Niterói, Nova Friburgo, Rio Bonito, São
Gonçalo, Saquarema, Silva Jardim, Tanguá e Teresópolis. A partir des-
ses municípios foi constituído o Consórcio Intermunicipal de Desenvol-
vimento da Região Leste Fluminense (CONLEST) visando coordena-
rem entre si, com o poder público (estadual e federal) e com a empresa
os efeitos positivos e negativos na região e para se organizarem em tor-
no dos royalties. Também visando planejar e acompanhar os seus efei-
tos regionais, foi construído um Plano Diretor Metropolitano.
De acordo com a descrição de um funcionário do terceiro escalão
da prefeitura de Itaboraí, a questão das disputas políticas entre o Parti-
do dos Trabalhadores (PT) e o Partido da Social-Democracia Brasileira
(PSDB) teve influência decisiva na escolha da localização do empreendi-
mento. No governo de Fernando Henrique Cardoso especulava-se so-
bre a construção de uma refinaria de petróleo em São Paulo, estado em
que o PSDB tem grande força política, ou no Nordeste, onde o antigo
Partido da Frente Liberal (PFL) era predominante e integrava o poder
central. Entretanto, o foco voltou-se para o estado do Rio de Janeiro
quando o PT chegou ao poder. As cidades inicialmente priorizadas fo-
ram Campos dos Goytacazes, devido à bacia de petróleo, e Itaguaí, por
abrigar uma zona portuária adequada para exportação. Contudo, o pri-
meiro município era dominado politicamente pela família “Garotinho”,
de oposição ao governo federal, e Itaguaí tinha restrições geográficas
para abrigar tal empreendimento. Assim, Itaboraí, cuja prefeitura à épo-
ca era do PT, foi escolhida como cidade sede do complexo.
Os argumentos oficiais e públicos para a localização do COMPERJ
se restringiram, evidentemente, aos aspectos técnicos3. Segundo o
Relatório de Impacto Ambiental - RIMA (PETROBRÁS, 2007), quatro

3. Há, conforme será discutido, muitos contra-argumentos técnicos que colocam em dúvi-
da tal escolha (argumentos que foram apresentados em Audiência Pública realizada no dia
06/08/2012 na Procuradoria da República do Estado do Rio de Janeiro)

221
principais motivos fizeram priorizar o estado do RJ: abrigar a Bacia de
Campos, que forneceria a matéria-prima ao complexo; proximidade
do mercado consumidor formado por São Paulo, Minas Gerais e o
próprio estado; infraestrutura adequada e a presença do Centro de
Pesquisa Leopoldo Miguez de Mello (CENPES), responsável por de-
senvolver as tecnologias empregadas no empreendimento.
Argumentou-se ainda que sua localização se beneficiaria do Proje-
to de construção do Arco Metropolitano do Rio de Janeiro, uma rodo-
via que deveria integrar a Região Metropolitana desde o Porto de Ita-
guaí até Itaboraí, como representado pelo mapa abaixo, mas que até
o momento chegou apenas até Duque de Caxias e já consumiu 1,9 bi-
lhão de reais. No entanto, este é um argumento de efeito tautológico,
uma vez que a justificativa para sua construção é justamente atender
à demanda que seria gerada pelo COMPERJ. Ainda que o projeto de
construção desse Arco exista desde 1970, apenas a partir da instalação
do complexo é que as obras foram iniciadas. Seriam, no total, 145 km
previstos para serem concluídos em 2016, mas até o momento apenas
este primeiro trecho até Duque de Caxias foi concluído4.

Figura 1: Localização do COMPERJ e do Arco metropolitano

Fonte: Petrobras (2007).

4. Conforme notícia obtida em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/07/moradores-


-cobram-conclusao-de-obras-do-arco-metropolitano-em-mage.html (Consultado em 14/08/2014).

222
Desde o início, a escolha do local foi alvo de muitas outras contro-
vérsias. De forma genérica, para a construção de uma atividade indus-
trial potencialmente poluidora é necessária uma licença ambiental,
que toma por base a realização prévia de um Estudo de Impacto Am-
biental (EIA). Nele, estão contidos dados sobre as regiões que foram
consideradas para receber o empreendimento, com os impactos que
seriam causados e suas respectivas soluções, ou suas medidas com-
pensatórias. Se aprovado, o órgão responsável emite a licença prévia
e é redigido o RIMA, que deverá ser apresentado à sociedade civil.
Apenas após esse processo é emitida a Licença de Instalação, que per-
mite o início das obras. Se, ao final de sua construção, não tiverem
cumprido as medidas previstas, não será emitida a última licença, a
de Operação.
No caso do COMPERJ, a obtenção da Licença de Instalação en-
frentou contundentes indagações da sociedade civil5. Tais contesta-
ções enfatizaram que o EIA foi muito superficial e negligente com
relação a diversos aspectos ambientais e sociais. Alegaram que o lo-
cal escolhido foi o pior dentre as opções que haviam sido cogitadas,
que, na ocasião, incluíam além dos já mencionados Campos dos Goy-
tacazes e Itaguaí, Cachoeiras de Macacu e São Gonçalo. Essas ques-
tões motivaram a abertura de um inquérito civil a partir de ação civil
pública proposta Ministério Público Federal (MPF) para apurar tais
irregularidades.6 Devido a tal inquérito, já naquele momento parte
das obras do COMPRJ chegou a ser paralisada e tiveram as licenças
ambientais anuladas.

5. Organizações ligadas a pesca, associações de moradores, universidades e de representan-


tes do poder público, como da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guapimirim, do Institu-
to Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA) e do Instituto
Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).
6. Conforme notícia publicada em: http://noticias.pgr.mpf.mp.br/noticias/noticias-do-
-site/copy_of_meio-ambiente-e-patrimonio-cultural/mpf-rj-justica-determina-paralisa-
cao-de-obras-do-comperj-por-irregularidades-em-licencas-ambientais-1 (Consultado em
14/08/2014).

223
Como resposta a esse processo, o COMPERJ lançou projetos so-
ciais e ambientais e prometeu cursos de capacitação profissional
para os habitantes do seu entorno7. Entre as iniciativas estavam os
convênios com a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Fun-
dação Euclides da Cunha e com o Programa das Nações Unidas
para os Assentamentos Humanos (ONU-HABITAT), no intuito de
acompanhar as mudanças ocasionadas aos vizinhos do empreen-
dimento. Também foram promovidas iniciativas como o Fórum
COMPERJ, que está de acordo com o Decreto Estadual que exige
a criação de canais de diálogo com o Poder Público e a socieda-
de civil; o Convênio de Excelência na Gestão de Investimentos e
as Agendas 21 COMPERJ. As Agendas 21 foram organizadas em
cada um dos 15 municípios influenciados pela Petrobrás além de
uma organização conjunta e constituiu uma atividade de grande
visibilidade dirigida diretamente por agentes da Petrobras. Além
dessa direção, elas reuniram representantes da sociedade civil orga-
nizada, do poder público e do privado para debaterem medidas que
promovessem o desenvolvimento sustentável da região.
Atualmente a Petrobras abandonou o projeto inicial do COMPERJ
e o converteu em uma pequena fração destinada ao processamento
de gás natural e a uma termoelétrica. A maior parte das obras já reali-
zadas está completamente deteriorada
Todo esse processo aqui brevemente descrito demonstra o
quanto um empreendimento da magnitude do COMPERJ produz
efeitos importantes nas dinâmicas dos municípios de seu entorno.
Ao longo desses quase 15 anos que se passaram desde o seu anún-
cio Itaboraí experimento um boom imobiliário que provocou o
inflacionamento no valor dos imóveis, viu também a chegada de
novos moradores em busca de oportunidades de emprego abertas

7. Os principais cursos oferecidos eram o de cabeleireiro e produção de artesanato, que não


representavam opções significativas de inserção profissional.

224
com o empreendimento. No seu auge o COMPERJ gerou senti-
mentos contraditórios, por um lado, a expectativa de geração de
riquezas na região e a perspectiva de fortalecimento do país como
um importante ator global no ramo dos derivados do petróleo. Por
outro lado, a convivência com os efeitos já provocados e projetados
em termos sociais e ambientais.
Se os problemas relacionados à implantação do COMPERJ deixa-
vam dúvidas sobre a pertinência de tal empreendimento, os efeitos
provocados pelo seu fracasso não deixam dúvidas que os prejuízos
para a população e para o país são enormes. Após tantos recursos in-
vestidos e, sobretudo, após tantos problemas econômicos e socioam-
bientais provocados a decadência e o abandono do empreendimen-
to parece também arrastar o município e seu entorno para o fundo
do poço.
Como discutiremos neste capítulo, o planejamento do municí-
pio de Itaboraí, materializado no seu Plano Diretor, foi pensado e
construído em função das necessidades do empreendimento e não
da sua população. Isso será abordado na primeira parte do capítulo
em que buscaremos demonstrar que apesar das obrigações contidas
no Estatuto da Cidade, as relações de poder e os interesses dos gru-
pos dominantes determinaram os rumos do planejamento munici-
pal. Diretamente relacionado a esse processo em que a precariedade
desse planejamento se manifesta em diversos problemas sociais e
econômicos, a segunda parte analisará os problemas dessa falta de
planejamento ou, mais propriamente, um tipo de planejamento que
além de não contemplar os interesses da população, foi construído
submetendo toda sua dinâmica à dinâmica do COMPERJ. Um de
seus efeitos mais perversos é a ampliação significativa dos merca-
dos ilegais e o consequente fortalecimento do crime organizado na
forme do tráfico e das milícias. A violência urbana é a face mais
visível da decadência do município e da ausência ou inoperância do
Estado.

225
RELAÇÕES DE PODER E DINÂMICAS DE PARTICIPAÇÃO
NO PLANEJAMENTO MUNICIPAL DE ITABORAÍ-RJ

Simultaneamente ao anúncio da implantação do COMPERJ em 2006


houve a formulação do primeiro Plano Diretor (PD) do município de
Itaboraí. Esse plano, como muitos funcionários da própria prefeitura
pontuaram foi “feito às pressas para a chegada do Complexo Petro-
químico”:

O Plano Diretor de Itaboraí foi elaborado a partir da influência de atores


com destacados poderes econômicos e políticos e sem nenhum acom-
panhamento dos diversos grupos sociais atingidos pelas mudanças que
o plano introduziu. Indica ainda que foi efetivado para atender às neces-
sidades referentes à implantação do COMPERJ. (OLIVEIRA; BUHLER,
2015, p.4).

Os interesses de Itaboraí, a partir de 2006, passam a ser em certo


ponto, os mesmo que o do COMPERJ, isso se dá pelo caráter totali-
zante que o empreendimento passa a ter no município. O município
passa a ser tratado, em diversas matérias produzidas pela mídia como
“a cidade do COMPERJ” e todo esse ideário é permeado por promes-
sas de desenvolvimento econômico e social, associados a geração de
empregos, crescimento demográfico e urbano (BEZERRA, 2015).
Diga-se de passagem, o Itadados (2006), documento da Secretaria de
Planejamento e Coordenação, cita o COMPERJ através das especula-
ções de geração de empregos que ele traria ao município sem a pre-
sença de nenhuma informação sobre os efeitos do empreendimento e
nem mapas da região ocupada por ele.
Nesse primeiro momento de ascensão, tanto documentos como
o Plano Diretor ou Itadados, não deixaram tão visíveis o poder de
influência do COMPERJ no território. Para transparecer isso, a análi-
se de entrevistas feitas com agentes ligados a prefeitura da época em
questão, evidencia como ocorreu essa dinâmica. Um funcionário da

226
secretaria de obras, em entrevista1 feita em 2012, explica que em ou-
tubro de 2005 havia um Plano Diretor que estava quase pronto, mas
teve de ser “abandonado” para a chegada do Complexo Petroquími-
co. Segundo ele, em março do ano seguinte a prefeitura teve aproxi-
madamente 45 dias para formular um novo Plano Diretor, deixando
escancarada a relação em que o setor público cria “todas as condições
para atrair a empresa oferecendo uma série de facilidades e passando
a se pensar e a organizar a sua dinâmica municipal e regional a partir
da presença de tal empreendimento e de suas consequências.” (OLI-
VEIRA, BUHLER, 2015, p.22).
Ao que tudo indica o primeiro PD do município foi feito, antes de
tudo, para criar as condições espaciais e infraestruturais que atendes-
sem as demandas do COMPERJ, mesmo que essa relação fique pouco
aparente em documentos da prefeitura gerados nos períodos próxi-
mos a implementação do complexo. Mas ao analisar o zoneamento
proposto no PD, nota-se que a macrozona rural do município desapa-
rece se transformando em zona de interesse industrial e é justamente
nessa região onde irá se instalar o COMPERJ, configurando uma das
principais características deste planejamento: a invisibilização do ru-
ral. Além da nova área de interesse industrial, o documento passa a
considerar outras áreas rurais como urbanas, nele a palavra urbano
aparece mais de 100 vezes, enquanto “ao longo das 120 páginas do
Plano Diretor de Itaboraí a palavra “rural” aparece apenas 5 vezes”
(OLIVEIRA,BUHLER, 2015, p.3). Vale ressaltar que 2 delas estão re-
lacionadas a turismo rural e as outras 3 não especificam a forma de
desenvolvimento que se pretende alcançar.
Itaboraí possui parte do seu território com características conside-
ravelmente rurais, como é o caso do distrito de Sambaetiba, parcial-
mente utilizado pelo COMPERJ. A produção agropecuária do mu-
nicípio em 2009 foi ao redor de 4.000.000,00 kg, com influência em
apenas 0,36%do PIB municipal da época (WILKINSON, 2011), porém
parte dessa produção é responsável pelo abastecimento de 30% dos

227
alimentos da merenda escolar da região segundo matéria presente no
site da prefeitura de Itaboraí8. Com baixa produção animal o municí-
pio se sobressai em insumos de origem vegetal sendo regionalmente
conhecido pela sua produção de laranja dentre outros cítricos.
Ao ser questionado sobre o desaparecimento da zona rural do
município, o ex-secretário de obras da prefeitura9, passa a embasar
seus argumentos na baixa produtividade agropecuária da região para
justificar o zoneamento, partindo do princípio de que o rural é algo
antigo que não possui mais relevância para a sociedade daquele terri-
tório. Sobre a transformação da macrozona rural em zona industrial,
o mesmo afirma que ali “já não tinha mais a característica de zona
rural, tinha três caras plantando e o resto já não era mais zona rural”.
Tal concepção evidencia que para estes operadores do poder público
o rural se reduz e é sinônimo de agrícola. Assim, se a produção agrí-
cola não é relevante economicamente, não se justifica manter uma
zona destinada ao rural.
Percebe-se que, a invisibilização social do rural no PD de 2006 se
traduz no seu desaparecimento enquanto uma macrozona e também
em falas como a do secretário de obras, que endossam este apagamen-
to a partir do momento em que a justificativa para a transformação de
um território de rural para industrial é a sua baixa produção agríco-
la. Muitos pesquisadores do mundo rural apontam que esta lógica de
associar rural a produção agrícola é comum em políticas públicas no
Brasil. A crítica apontada pelos autores abaixo vai nesse sentido:

Seguindo a conhecida afirmação de Robert Merton (1970) sobre as pro-


fecias que se autocumprem, se o rural é percebido como equivalente a
atividade agropecuária, portanto espaço de produção, que vem se re-
duzindo em termos populacionais, ou o lugar do atraso que necessita

8. A matéria pode ser consultada em: https://www.itaborai.rj.gov.br/28046/prefeitura-de-i-


taborai-oferece-merenda-de-qualidade/ (Consultado em 20/01/2021)
9. Em entrevista feita para Valter Oliveira em 2011.

228
intervenção para se modernizar, a legislação e as políticas públicas aca-
bam tendo o poder de fazer que a realidade se transforme e confirme a
própria previsão, reafirmando o diagnóstico inicial. (CHIODI; MORUZ-
ZI; MURIDIAN, 2018, p.119).

Ou seja, se um território possui baixa produção agrícola qualquer,


outra forma de ruralidade é apagada e esse apagamento irá se tra-
duzir na forma de se planejar o uso do espaço e de seu pensar novas
possibilidades de desenvolvimento. Entende-se aqui ruralidade como
“diferentes formas de representação social e de apropriação dos bens
materiais e simbólicos das localidades rurais.” (CHIODI; MORUZZI;
MURIDIAN, 2018, p 242). É dizer que determinar um único destino
ao rural irá significar desconsiderar que a realidade social é definida
pelo social, ou seja, reificar o rural como agrícola pode significar a
eliminação de múltiplas possibilidades de inserção e experimentação
desse meio por parte de seus moradores10. Entender estas outras pos-
sibilidades tornam o desenvolvimento do território municipal mui-
to mais complexo, algo que foi completamente negado no caso de
Itaboraí.
Até hoje, a poucos km do centro da cidade podemos encontrar
sítios, pequenas propriedades com criação de animais e à medida que
nos afastamos para a periferia essas e outras formas de representação
do rural ficam cada vez mais comuns. A renda desses proprietários
não está totalmente ligada à agropecuária, combinando atividades
agrícolas com atividades não agrícolas, constituindo as chamadas pro-
priedades pluriativas (GRAZIANO, GROSSI, 1998). A prestação de
serviços, empregos gerados pelo COMPERJ e outras formas de renda
se misturam com atividades rurais.
Ao mapear as condições de desenvolvimento do território rural
dos municípios afetados pelo COMPERJ, o Perfil Rural/Agrícola de

10. Sobre pensar o rural numa perspectiva mais ampla, ver Carneiro (2008).

229
Municípios Diretamente Influenciados pelo COMPERJ, concluído
em 2011 pela Rede de Desenvolvimento Ensino e Sociedade (RE-
DES), que tem como coordenador o professor John Wilkinson, apon-
ta para necessidade de entender multifuncionalidade e a economia da
pequena e média propriedade rural. Tendo como objetivo o papel de
redefinir “a monetarização da vida social rural em novos arranjos so-
ciais, novas políticas e novos formatos institucionais que, em síntese,
conduzem a novos desafios econômico-distributivos.” (WILKINSON
et al, 2011, p.11), porém, como estes autores observam o planejamen-
to de Itaboraí parece ir contra a isso. E mesmo que a lei orgânica de
Itaboraí preveja o desenvolvimento do rural em várias instâncias e
ainda assuma no seu segundo capítulo que o Plano Diretor é “o ins-
trumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana e
rural” os agentes formuladores e implementadores do plano parecem
ignorar completamente essa perspectiva e mencionar o rural apenas
de forma protocolar e sem nenhum sentido de fato operativo.
Com as limitadas perspectivas de planejamento para o rural, todo
o desenvolvimento do município fica associado ao “não rural”, e nes-
te caso destaca-se a atenção dada ao urbano e o ambiental. Ambiental
que até então estava associado, conforme as representações sociais e
estudos acerca das novas ruralidades, mais diretamente ao rural, mas
que, a partir da promessa do estabelecimento de várias indústrias no
município, ganhou outro sentido ao ser tratado e pensado a partir de
interesses industriais. Nesse processo a velha dicotomia entre o urba-
no e o rural se faz presente e com isso o apagamento deste último,
através do discurso desenvolvimentista criado pelo COMPERJ que
acaba por se mesclar com o caráter urbanizador do PD de 2006 e os
resultados disso se manifestam no território (OLIVEIRA, 2019).
O processo de urbanização segue um ritmo quase sempre acele-
rado e desordenado pela especulação imobiliária que, em Itaboraí,
assumiu novos patamares. Novos prédios e novas galerias são cons-
truídas no centro da cidade e muitos deles nunca tiveram suas obras

230
concluídas ou, mesmo quando construídos, não foram ocupados
ou tiveram que se adaptar para cumprir funções diferentes daquelas
previamente planejadas. Para além disso, a paisagem muita das ve-
zes destoa com os prédios que parecem não representar a realidade
do território. É preciso observar que a especulação e o Plano Diretor
estão intimamente ligados. Isso porque quando o município passa a
considerar a maior parte do seu território como urbano o valor da
terra agrícola aumenta, ampliando a especulação imobiliária (OLI-
VEIRA; BUHLER, 2015). Dessa forma, o processo iniciado com o
apagamento do rural no principal documento de planejamento mu-
nicipal acaba por ser o prenúncio de um processo que vai se concreti-
zando e produzindo efeitos na vida de pessoas que tinham suas exis-
tências diretamente relacionadas a modos de ser e de habitar o rural
(WANDERLEY, 2009).
Outra característica que chama atenção na dinâmica de concep-
ção e construção do primeiro Plano Diretor de Itaboraí é que ele não
adotou nenhuma estratégia visando promover o envolvimento da po-
pulação no planejamento do município. Não se nota nenhum esforço
por parte da prefeitura em criar mecanismos de participação e diálo-
go com os moradores. Como foi visto anteriormente, o plano foi fei-
to em 45 dias o que, por si só, não viabilizaria tal participação. E mes-
mo que já se notasse um certo clima de empolgação geral e grandes
expectativas em relação a chegada do grande empreendimento e ao
esperado desenvolvimento do município, havia setores da população
que já se preocupavam e de certa forma se posicionavam contra tal
modelo de desenvolvimento e que também mereciam ser considera-
dos, como por exemplo o Fórum Popular do COMPERJ.
Tanto a constituição de 1988 como o Estatuto da cidade apontam
para a importância e a necessidade de participação da população na
elaboração do PD (BRASIL, 2002) visando uma maior democratiza-
ção do planejamento da cidade. Em seu livro Cidades Rebeldes, Da-
vid Harvey ao jogar luz sobre a teoria lefebvriana do direito à cidade,

231
cita o Estatuto da Cidade como exemplo de mecanismo legal para a
democratização das instâncias de decisão municipal apontando para
a importância da sociedade e dos movimentos sociais na construção
desse processo. Chamando a atenção para o fato de que, mesmo com
a neoliberalização do final do século XX, o PD consegue convergir
para uma tentativa de democratização da cidade (HARVEY, 2014).
Harvey (2014) acrescenta ainda, que “direito” por definição é o
objeto de uma luta, assim o direito à cidade seria fruto de uma luta
constante. O Plano Diretor, na teoria, acaba por ser a arena onde essa
luta pode e deve acontecer, assim no momento que o poder executivo
de Itaboraí, possivelmente pressionado pelo COMPERJ e devido ao
pouco tempo que tinham, formula o planejamento do município sem
promover espaços para o debate com a população, ele acaba por in-
viabilizar uma das formas legais de democratização do planejamento
e do desenvolvimento municipal.
Esses levantamentos nos ajudam a destacar que as disputas po-
líticas no planejamento municipal do PD aconteceram de forma
desigual, já que as influências político-econômicas de determina-
dos agentes e grupos se sobressaem em relação a outros. No caso
de Itaboraí em 2006, fica evidente que a influência e o poder polí-
tico da Estatal Petrobras, que pelo seu poder político e por meio
de um discurso desenvolvimentista, faz com que seus interesses se
imponham e sejam acatados sem maiores resistências já que esta-
belecem um tipo de relação de poder com a sociedade local em
que, por diferentes meios, fazem crer que os seus interesses são,
necessariamente, os mesmos interesses daquela sociedade. A pró-
pria noção de “Interesse Público” acionada pelo poder público para
justificar uma série de medidas e arbitrariedades, incluindo o deslo-
camento compulsório dos moradores daquela (e de outras) locali-
dade afetada pelo empreendimento aponta nesse sentido. São prá-
ticas que remetem a essa compreensão de que mesmo sem criarem
mecanismos de escuta e participação da população local, aquilo

232
que foi planejado nos gabinetes dos burocratas governamentais ou
não governamentais e, muitas vezes, a partir de negociações que
nem sempre poderiam ser trazidas à luz do dia, constituem uma es-
pécie de caridade, de dádiva e que, portanto, qualquer contestação
seria tomada como sinal de incompreensão, ignorância ou radica-
lismo de grupos extremistas.
Os anos seguintes ao PD de 2006 e à implementação do COM-
PERJ são marcados pela crise da Petrobras produzida pela Operação
Lava-Jato, greves de trabalhadores e obras inacabadas que vão marcar
um momento de declínio do mega projeto. Esse momento de queda,
que já era reparado anteriormente, mas que se acentua a partir de
2015 perdura até hoje. Vale lembrar que desde então o COMPERJ
não atingiu seus objetivos estabelecidos inicialmente, dentre os quais
o de ser um complexo petroquímico com o objetivo de agregar va-
lor ao petróleo extraído do pré-sal, possuindo suas principais obras
paralisadas. Aliás, esses objetivos iniciais não deverão ser alcançados,
ao menos no contexto atual, já que foram abandonados pelos gover-
nos que chegaram ao poder após o golpe de 2016. O curto governo
do golpista Michel Temer adotou uma gestão do Estado determinada
por uma lógica fortemente neoliberal. Modelo que também caracte-
riza o governo Bolsonaro em que o Estado se retira de vários inves-
timentos produtivos adotando, de forma declarada, uma política de
desinvestimento. E, neste caso, a Petrobras é uma das estatais mais
atingidas por estas políticas neoliberais.
Já em 2018 o município passou pela primeira revisão do PD e, nes-
te caso, contou com a promoção de mecanismo de participação da
população no planejamento do território e mesmo com algumas con-
tinuidades inevitáveis em relação aos efeitos decorrentes do PD de
2006 a nova proposta possuiu mudanças significativas, sendo a prin-
cipal delas a preocupação com a retomada do zoneamento rural do
município, trazendo uma nova perspectiva para o desenvolvimento
municipal.

233
A revisão do Plano Diretor foi dividida em “4 etapas no decorrer
de quase 2 anos onde se realizaram cerca de 45 reuniões em todos
os distritos, com a sociedade civil e inúmeros seguimentos técnicos.”
(ITABORAÍ; 2019; p.16). Segundo a Secretaria de Urbanismo e Meio
Ambiente a primeira etapa do PD foi puramente técnica, onde a equi-
pe da prefeitura revisou o plano de 2006 produzindo novos mapas e
zoneamentos, para que na segunda etapa fossem apresentados para a
população que pode opinar e fazer propostas para a equipe. Já a ter-
ceira etapa, quando teve o início o trabalho de campo dessa pesquisa,
foi o momento em que a prefeitura voltava com as propostas e os
mapas elaborados em cima daquilo que a população apresentou para
eles, havendo assim outro momento de debate.
A formulação do plano foi feita através de audiências organizadas
pela prefeitura nos 8 distritos do município e a população destas lo-
calidades foi convidada a participar do debate sobre as prioridades e
o zoneamento do município junto com a equipe técnica do plano.
Na etapa em que passamos a acompanhar como parte do trabalho
de campo que desenvolvemos, as reuniões aconteceram aos sábados
durante aproximadamente 1 mês, ocorrendo 2 reuniões por dia, uma
pela parte da manhã e outra pela parte da tarde, como duração apro-
ximada de 1h30 cada.
Apesar da criação de mecanismos que proporcionassem a partici-
pação da população, por diferentes fatores que não discutiremos aqui,
constatamos que a participação foi baixa. Mas envolveu muitos agen-
tes do poder público indicando, ao menos, um espírito original de
seguir as diretrizes contidas no Estatuto da Cidade.
O distrito em que se contou com a maior participação e interven-
ções de seus moradores foi Sambaetiba. Não por acaso, este distrito
foi onde o COMPERJ instalou a maior parte de sua área e, para isso
viu seu território ser convertido em Zona Urbana de uso Estritamen-
te Industrial (Zupi) (ITABORAÍ, 2019), sendo o distrito que foi mais
diretamente modificado pelas mudanças desse empreendimento.

234
Como foi observado por Oliveira e Bühler (2015) a produção agrope-
cuária do distrito foi fortemente afetada pelo complexo:

Anteriormente à chegada do COMPERJ, o local era caracterizado por


ser uma grande bacia leiteira, mas os proprietários estão sendo obriga-
dos a buscar novas opções produtivas devido ao fato do caminhão que
recolhia o leite daqueles produtores considerar economicamente inviá-
vel tal recolha. Os pecuaristas do local argumentam que o volume pro-
duzido diminuiu imensamente com as desapropriações, não alcançando
uma escala de produção que justifique a circulação de um caminhão lei-
teiro. (OLIVEIRA; BUHLER, 2015; p. 12).

Com todas essas questões antes citadas, foi observado que durante
a reunião no distrito de Sambaetiba os moradores se manifestaram
diversas vezes e uma de suas principais preocupações era o desapa-
recimento do rural no Plano Diretor de 2006. Um morador, que se
identificou como pequeno proprietário rural, demonstrou-se indig-
nado com o zoneamento do antigo plano e o desaparecimento das
zonas rurais, repetindo diversas vezes que o município era rural e que
o antigo zoneamento prejudicava moradores como ele.
Discurso que teve respaldo dos outros moradores presentes, que
concordavam endossando a fala dele com outros argumentos favo-
ráveis ou com gestos afirmativos com a cabeça. Este território pos-
sui agora zonas que possibilitam o avanço de um processo de urba-
nização como a Zona Urbana de Uso Diversificado (ZUD) e outra
considerada como Zona Urbana de Expansão. O que se constatou, a
partir de entrevistas com moradores daquela localidade, é que gran-
de parte do território é ocupada por sítios que, mesmo não tendo
sido desapropriados pelo COMPERJ, acabaram sendo abandona-
dos em função da instalação e das dificuldades produzidas pelo em-
preendimento ou em função de outras obras (como os vários gal-
pões) construídas para dar suporte ao COMPERJ, estando ligados

235
direta ou indiretamente a ele. Donas de sítios da região reclamaram
do aumento de galpões ligados ao complexo na região e da dificul-
dade de vender suas propriedades devido a falta de interesse em
função da grande movimentação de caminhões pesados na região e,
mais recentemente, ao aumento a criminalidade, todos esses relatos
são processos observados muito antes da revisão já em 201111.
Mesmo com toda essa preocupação da população citada anterior-
mente, na entrega simbólica do PD na prefeitura no ano de 2019 um
importante integrante do poder executivo municipal apresentou um
discurso esperançoso sobre a relação entre o COMPERJ e o municí-
pio. Esse agente, em sua fala, demonstrou ser positivo as negociações
de parte da refinaria da Petrobras com empresas chinesas, relacionan-
do a futura compra dessa parcela do empreendimento diretamente
com melhorias na qualidade de vida da região e dando como exem-
plo melhorias na infraestrutura urbana, segurança e educação.
Já em 2020, através de entrevista feita de forma remota, um agen-
te e ex membro do Fórum Popular do COMPERJ, quando questio-
nado sobre a volta das obras do complexo apresentou uma fala pes-
simista, deixando evidente que seria ótimo se todas as promessas
de desenvolvimento do município acontecessem. Porém, por outro
lado, o morador afirma que já há alguns anos Itaboraí vive um mo-
mento de crescimento urbano desordenado atrelado a problemas
socioambientais, desemprego e violência que segundo ele estão di-
retamente ligados a chegada do COMPERJ. Na seção seguinte co-
locaremos acento no quanto esse processo desencadeado pela che-
gada do COMPERJ e, sobretudo, pelo seu fracasso, vem deixando
marcas muito graves no cenário municipal. O planejamento, ou a
falta dele, associado à um contexto nacional de enfraquecimento do
Estado abrem brechas para que outros poderes emerjam ou se for-
taleçam, como é o caso do crime organizado na forma do tráfico

Conforme observado por Oliveira e Bühler (2015).


11.

236
ou, mais recentemente, na forma de milícias. Isso tudo acompanha-
do pela deterioração dos serviços públicos de segurança, estrutura
viária e de transporte e políticas sociais.

OS EFEITOS SOCIAIS DAS EXPECTATIVAS E DO FRA-


CASSO DO COMPERJ NO PLANEJAMENTO URBANO
MUNICIPAL

Mudanças de ordem sociais (saúde, educação, lazer, mobilidade ur-


bana, habitação, transporte), ambientais (lixo, emissão de gases po-
luentes, contaminação dos rios, enchentes e inundações), questões
relacionadas a política estatal de gerenciamento da dinâmica urbana
e rural, aliadas à expectativa melhoria na qualidade de vida, foram
anunciadas por lideranças políticas locais, e esperadas pela população
e pelos novos moradores que chegavam atraídos pela propaganda
do emprego e de bons salários. As poucas mudanças que podem ser
consideradas positivas vivenciadas por Itaboraí em função das obras
de implantação do COMPERJ se concentraram nas suas áreas mais
nobres, enquanto que a sua periferia só viu precarizar ainda um reali-
dade já bem precária.
A histórica carência de recursos destinados às periferias de urbani-
zação incompleta de Itaboraí há muito vem sendo denunciada a par-
tir das lutas dos movimentos sociais, associações de moradores, pas-
torais ligadas a teologia da libertação e partidos políticos de esquerda.
O município experimentou um significativo crescimento urbano
a partir do anúncio da instalação do COMPERJ, algo na ordem de
16,68% entre 2000 e 2010 (BIENENSTEIN ET AL, 2018), mas não viu
os investimentos em infraestruturas e políticas de planejamento urba-
no serem realizados na mesma proporção. A crise do COMPERJ agra-
vou ainda mais essa situação uma vez que esse aumento populacional
se concentrou, em grande medida, nos bairros próximos ao empreen-
dimento que foi localizado nas áreas periféricas, de transição urbana e

237
com demandas estruturais recorrentes. Ainda segundo Bienenstein et
al (2018), São Gonçalo no mesmo período, e também pertencente ao
CONLEST, teve um crescimento de 2,23%, sendo superado apenas
por Cachoeira de Macacu, também integrante do consórcio que apre-
sentou crescimento de 17,87%, apresentando também o COMPERJ
com a principal justificativa deste crescimento.

CRESCIMENTO URBANO E A DISPUTA TERRITORIAL


ENTRE O TRÁFICO E A MILÍCIA

Segundo Souza (2000), o território deve ser compreendido como


“fundamentalmente um espaço definido e delimitado por e a partir
de relações de poder” e, consequentemente, “essencialmente um ins-
trumento de exercício de poder” (SOUZA, 2000, p.78, 79). Portanto,
através dessa perspectiva teórica entende-se que os territórios podem
ser definidos como “relações sociais projetadas no espaço” mais do que
espaços concretos (SOUZA, 2000, p. 87). O território, nesse sentido, é
o produto das relações sociedade-natureza.

O território pode ser acionado também para pensar a escala nacional


em associação com o Estado como grande gestor (se bem que, na era
da globalização, um gestor cada vez menos privilegiado). No entanto,
ele não precisa e nem deve ser reduzido a essa escala ou à associação
com a figura do Estado. Territórios existem e são construídos (e des-
construídos) nas mais diversas escalas [...]; territórios são construídos (e
desconstruídos) dentro de escalas temporais as mais diferentes [...]; terri-
tórios podem ter um caráter permanente, mas também podem ter uma
existência periódica, cíclica. (SOUZA, 2006, p. 81).

Sendo assim, as escalas institucionais do Estado, por si só, não


determinam o território, sendo os mesmos, uma produção social,
estabelecida pela dinâmica em que o poder se exerce nas condições

238
espaciais as quais se aplicam. Essa aplicabilidade estará presente em
Itaboraí na análise que faremos a partir do contexto em que a violên-
cia se apresenta nas territorialidades presentes.
O crescimento da área urbana quase sempre não determina a che-
gada de infraestrutura que garanta a qualidade de vida e bem estar
dos antigos e novos moradores. Tal crescimento apenas aponta para a
mudança nas relações espaciais, principalmente com novas atividades
econômicas que sucumbem as antigas relações de produção baseadas,
principalmente, no setor primário dando lugar a outras formas de in-
serção econômica, formais ou informais. Demonstrando o avanço da
desigualdade e da segregação impulsionada pela dinâmica produtiva a
qual o capital e o estado submetem as pessoas e a natureza.
Sendo assim, a dinâmica de produção capitalista do espaço, como
nos chama a atenção David Harvey (2006), interfere diretamente no
contexto social, provocando não somente a reprodução do lucro, mas
também a reconfiguração dos territórios. Estes territórios são geridos
de forma direta ou indireta pelo estado e pelo capital e produz rearran-
jos tanto no circuito superior, quanto no inferior, configurando novos
mercados, legais ou ilegais. Estes mercados são ditados pelas relações
capitalistas, disputam consumidores, buscando se consolidar no terri-
tório e se estabelecendo de forma intencional e, por vezes, violenta.
Visam a exclusividade na obtenção de lucros e na exploração de servi-
ços não prestados e não regulamentados pelo estado nesses territórios.
Analisaremos nesta parte o caso das milícias que se estabeleceram no
momento em que ocorreu a retomada parcial das obras do COMPERJ.
De acordo com investigações divulgadas pela mídia,

A milícia começou a atuar em Itaboraí entre o final de 2017 e começo de


2018, de acordo com a Promotoria. Nesse período, o grupo criminoso
começou a cobrar “taxas de segurança” e serviços ilegais de televisão
por assinatura. (...) “A gente acredita que Curicica tenha vislumbrado
implementar milícia aqui [em Itaboraí] por causa do COMPERJ. Isso

239
pode ter despertado o interesse dele, pois com maior número de mora-
dores haveria uma arrecadação maior [com as extorsões]”12

Fica evidente que a inserção do COMPERJ no município am-


plia o mercado consumidor em todas as suas formas, materiais e
imateriais, legal e ilegal, propiciando relativo aumento do poder de
compra e da diversidade de mercadorias oferecidas aos moradores,
principalmente nas áreas centrais da cidade. Esse efeito provoca
o reordenamento dos territórios sob o comando do estado e do
narcotráfico, com a expansão do Comando Vermelho (CV), que já
atuava no município mantendo um longo domínio sobre o bairro
da Reta Velha, com poder bélico e restrições que levam as autori-
dades de segurança a classificá-la como uma área em que pratica
extrema violência.

Segundo o que foi apontado nas entrevistas com os representantes da


PMERJ, o tráfico de drogas em Itaboraí acontece em duas modalidades:
o tráfico ostensivo e armado e o “estica”, utilizando-se aqui uma catego-
rização local. O tráfico armado se dá de forma semelhante ao da capital,
com uma facção criminosa que domina uma comunidade e gerência as
atividades de venda de entorpecentes no local, mais particularmente na
Comunidade da Reta. O tráfico identificado como “estica” seria a venda
de drogas em menor escala, feita por pessoas desempregadas e usuárias
de entorpecentes, que vão até a capital, compram pequenas quantidades
de droga para seu próprio consumo e uma quantidade a mais para ven-
der. Essa atividade foi identificada na comunidade de Itambi como uma
dinâmica de tráfico de drogas distinta da que ocorre na Comunidade da
Reta’ (Araújo ET AL, 2012, p.12).

12. Para mais detalhes ver reportagem “Polícia prende membros de milícia no RJ e apura
suposta extorsão ao COMPERJ” em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2019/07/04/policia-civil-mandados-prisao-milicia-rio.htm?cmpid=copiaecola (Consul-
tado em 19/01/2021).

240
Esta descrição ilustra bem o cenário em que se desenvolvem as re-
lações nos diferentes territórios e como essas relações são dinâmicas
no tempo e no espaço, influenciadas e, em muitos casos, determina-
das pelas intervenções de outros atores. Esses atores são resultados do
processo dialético do espaço e do território enquanto categorias que
constroem socialmente.
A partir de pesquisa empírica, constatamos o estabelecimento de
milícias nos bairros de Porto das Caixas, Visconde e Areal, alterando
drasticamente as configurações territoriais, formando zonas de fron-
teiras e conflitos. As informações coletadas nestes locais e a partir da
mídia apontam para o aumento de caso de homicídios ocultação de
cadáveres, ações violentas e, disputas por mercados com e controle de
territórios com o tráfico de drogas dessas localidades.
Segundo a Polícia Civil, o grupo passou a atuar na região após a
expulsão de traficantes de drogas. O aumento no número de mor-
tes na localidade chamou a atenção dos investigadores, que perce-
beram a expansão do grupo paramilitar por meio do assassinato de
moradores e traficantes. Os investigadores apontam que a organi-
zação criminosa é responsável por “inúmeros casos de homicídios,
torturas, extorsões, desaparecimento de pessoas e cemitérios clan-
destinos”.
O promotor Rômulo Simões explicou que os corpos dos rivais
eram abandonados nas ruas como forma de demonstrar poderio.
Posteriormente, para não chamar mais atenção da polícia, eles passa-
ram a esconder os corpos em um cemitério clandestino.

Eles mudaram a dinâmica de atuação. Passaram a não mais atacar e de-


monstrar poderio. Queriam dificultar as identificações [dos corpos] e a
partir disso o número de homicídios passou a cair e a aumentar o de pes-
soas desaparecidas. Aí observamos que havia um cemitério clandestino.
Eles matavam rivais para dominar o território. Quem não se enquadrava
nas normas era torturado, moradores chegaram a ser expulsos de casa”,

241
complementou Simões. O delegado, por sua vez, diz acreditar que mais
de 50 corpos ainda estejam no local.13

O segundo ponto para o qual chamamos a atenção, quanto ao


modelo de organização do tráfico de drogas em Itambi, trata-se da
denominação “estica’’ caracterizado pelos autores citados acima.
Essa modalidade de organização vigorou por muito tempo, tendo
sido alterada mais recentemente com a chegada da milícia. Segun-
do Antônio, um de nossos entrevistados, nota-se uma nova confi-
guração territorial em que se verifica “a troca” dos territórios de
menor envergadura na hierarquia dos mercados ilegais, por terri-
tórios cujas localidades e negócios já estejam consolidados e estru-
turados, principalmente após divergências internas no Comando
Vermelho.
Em Itambi, especificamente, não encontraremos esta demons-
tração bélica intensiva do tráfico, como ocorre na Reta Velha, mas
essa demonstração de força foi verificada quando da tentativa de ex-
pansão territorial da milícia, hoje ocorrendo nas áreas próximas às
fronteiras com Visconde, como o bairro Grande Rio e bairro Ama-
ral. Nestes locais as regras e o controle se fazem com maior vigilân-
cia. Nesse mesmo período em que se agravam os conflitos, disputas
por território e violências, ocorreu uma chacina num outro ponto
do município, no bairro de Marambaia, fronteira com São Gonça-
lo, em que 10 pessoas foram assassinadas, segundo reportagem, em
consequência de confronto entre grupos traficantes rivais. Outra
versão aponta para a vingança devido ao assassinato, dias antes, de
um policial militar.

13. Para mais detalhes ver reportagem “Polícia prende membros de milícia no RJ e apura
suposta extorsão ao COMPERJ” em: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noti-
cias/2019/07/04/policia-civil-mandados-prisao-milicia-rio.htm?cmpid=copiaecola (Consul-
tado em 19/01/2021).

242
A CRISE DO COMPERJ E SUAS CONSEQUÊNCIAS SO-
CIOESPACIAIS

A paralisação das obras intensifica o problema da violência. Num pri-


meiro momento, temos um aumento no número de desempregados,
um forte crescimento populacional nos últimos anos, um processo de
urbanização sem nenhum planejamento, ausência e precarização das
políticas públicas e exacerbação do caráter neoliberal de tais políticas,
decomposição dos conselhos participativos e fiscalizadores até então
existentes, ocupação irregular de áreas com difícil acesso, reconfigu-
ração do controle dos territórios como resultado das disputas exis-
tentes no âmbito local e metropolitano, radicalização dos conflitos
e do controle bélico dos territórios, maior aquisição e circulação de
armas, evidencias de aumento nos casos corrupção agravado pela cri-
se econômica.
Surgem novas modalidades de crime, principalmente nos bairros
por onde passa o Arco Metropolitano, como Itambi, que também é a
porta de entrada para a área do COMPERJ. Naquela região o roubo
de carros na modalidade conhecida como “arrastão”, na mesma ro-
dovia, tem se intensificado. Também aumentou a ocorrência de ho-
micídios de moradores locais. Esses crimes, ao invés de mobilizar o
Estado e suas forças de segurança em associação com medidas e ações
públicas voltadas para o social o que tem se verificado é a atração da
milícia, que tem buscado, insistentemente, se inserir e dominar esta
localidade. Vale dizer que o aumento das operações policiais, não sig-
nifica maior segurança para a população, mas apenas maiores confli-
tos e mortes.
O principal produto oferecido pela milícia é a venda de seguran-
ça privada aos moradores, comerciantes e empresários locais. Essa
prática faz da milícia um elo fundamental no processo de circulação
do capital uma vez que, teoricamente, garante a “livre” circulação de
mercadoria naquela localidade. Essa prática já nasce de maneira com-
pulsória e na forma de extorsão e, posteriormente se expande para

243
outras demandas e ações, que em algumas áreas de Itaboraí (Viscon-
de e Porto das Caixas ) têm encontrando pouca resistência, diferente-
mente do que ocorre em Itambi e Reta Velha, onde as disputas e as
operações policiais passam a ser frequentes.

Assim que a milícia entra num novo território, ela não adota o padrão
para atuar no tráfico. O padrão da milícia é entrar, eliminar o CV, dar
entrada para o Terceiro Comando e fazer o acordo com ele. Essa facção
paga o aluguel da área e opera o tráfico de drogas, enquanto a milícia
fica mais refluída, mais oculta; é assim que tem sido no Rio de Janeiro.
Estamos num cenário tal, que nem sei quantas áreas hoje são dominadas
pelas milícias. Saber quanto eles movimentam financeiramente é mais
difícil ainda, porque a milícia pulverizou a sua prática de cobrança de
taxa, que é cobrada semanalmente. Por exemplo, do pipoqueiro, a mi-
lícia cobra 40 reais, do mototaxista, 70 reais, do cabeleireiro, 50 ou 100
reais de salões maiores, das lojas do comércio, varia de 200 a 500 reais,
dos supermercados, fala-se em mil reais. Os areeiros — tratores ilegais
de areia — pagam em torno de mil reais para continuar funcionando.
Esse é apenas um dos vários negócios da milícia, apenas a “taxa de segu-
rança”, mas tem o transporte clandestino, o tráfico de drogas, a venda
de votos, a pesca do camarão na Baía de Sepetiba. No período do defeso
— em que não pode pescar —, eles estão pescando, estão conseguindo
ganhar dinheiro com isso fora de época. Também controlam o acesso a
empregos no Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro’ (Alves, 2019).

Com base na entrevista concedida pelo sociólogo José Claudio


Alves, ao Instituto Humanitas Unisinos14, em março de 2019, perce-
bemos a estratégia distinta da milícia em exercer o domínio sobre o
território, caracterizando-se em impor sua mercadoria à população,

14. Ver: http://www.ihu.unisinos.br/159-noticias/entrevistas/592300-a-milicia-avanca-nos-


-territorios-do-comando-vermelho-entrevista-especial-com-jose-claudio-alves (Consultado
em: 19/01/2021).

244
a partir da venda da segurança, ou seja, o combate à violência é a
mercadoria a ser vendida, com o estabelecimento de regras que clara-
mente define o território. Esta prática se deu de maneira exitosa em
Porto das Caixas e Visconde, o que obrigou a reformulação do tráfico
em outras áreas.

A estrutura política e econômica das milícias no Rio de Janeiro hoje co-


meça a ganhar vários outros contornos, que não eram perceptíveis e que
agora se manifestam. Vou dar alguns exemplos. Um deles é em Itaboraí,
uma cidade metropolitana do Rio de Janeiro, onde está sendo construí-
do o Complexo Petroquímico do Rio de Janeiro - COMPERJ, cujas obras
do governo federal estavam paradas e foram retomadas recentemente.
Várias empresas terceirizadas estão atuando na construção da obra e a
milícia está controlando quem vai trabalhar nessas empresas. Isso já é
um passo à frente em relação à atuação das milícias anteriormente: a
milícia detecta onde o capital está se manifestando — nesse caso é um
capital público em parceria com empresas privadas — e, ao ficar a par
da situação, manipula essa informação e passa a controlar de forma vio-
lenta o acesso a esse emprego, cobrando taxas e valores das pessoas que
querem trabalhar nessas empresas. Assim esses empregados terão que
repassar parte dos seus salários para os milicianos. Essa é uma novidade
nesse campo no Rio de Janeiro. (Alves, 2019).

Ainda na avaliação de Alves (2019), a atuação da milícia no interior


das empresas terceirizadas do COMPERJ, recebendo parte do salário
dos trabalhadores, demonstra sua influência em setores do capital pri-
vado em conveniência com o capital público. A diversidade de ações
facilita a lucratividade e o domínio sobre o território para além do
poder bélico.
Conforme apontado na entrevista citada acima, a entrada da milícia
como componente da violência, em Itaboraí, se dá pelas transforma-
ções produzidas com o estabelecimento do COMPERJ. Em seu auge

245
e em função de sua magnitude, as obras do COMPERJ atraíram um
grande contingente de trabalhadores e outros moradores o que, já sig-
nificou alterações importantes na dinâmica urbana do município e no
surgimento de mercados legais e ilegais. Essa situação se agrava ainda
mais em seu período de decadência culminada com a paralização das
obras em função das ações da Operação Lava-Jato e, sobretudo, a partir
do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff, ocorrido em 2016, quan-
do se inaugura uma nova perspectiva de “desenvolvimento” apoiada
fortemente em princípios neoliberais. Essa clara mudança nas priori-
dades e nos rumos do país fica evidente em medidas com a diminuição
dos direitos trabalhistas e previdenciários e pela imposição de um teto
de gasto voltado para as políticas sociais. Nota-se, de forma inconteste,
que a paralisação das obras significou o abandono e a degradação do
espaço urbano e a emergência de novos negócios ilícitos. Além disso,
Itaboraí se torna rota de fuga de criminosos e área de articulação em
rede de territórios contíguos. A estrada auxiliar do Arco Metropolitano,
UHOS (Ultra Heavy Over Size15), que corta várias comunidades carentes,
ligando Itambi a São Gonçalo, projetada para o transporte de máquinas
destinadas ao COMPERJ (OLIVEIRA, CANDIDO, 2018 p 91), durante
sua fase operacional é um exemplo de uma via que tem servido a fins
não previstos, como a circulação de criminosos e mercadorias ilegais.
Assim como na Reta Velha, Itambi não apresenta o domínio da
milícia, apesar de ser fonte de constantes disputas. O que parece pre-
dominar nesta localidade atualmente, é o tráfico de drogas com forte
influência dos traficantes da Reta Velha, conforme apontado por um
de nossos entrevistados. Esta influência se dá por “arrendamento” de
áreas de maior poder bélico sobre os outros, com o intuito de manter
o mercado e o território, buscando, assim, evitar a ampliação dos ter-
ritórios dominados pela milícia.

15. “um sistema logístico de circulação de cargas especiais e de grandes dimensões para o
COMPERJ.” (CANDIDO, 2019, p.19)

246
Em entrevista realizada com Carlos, de 56 anos, morador de Itam-
bi a mais de 40 anos, ex-trabalhador do COMPERJ, atualmente de-
sempregado e atuando como motorista de aplicativo, este assinalou
o crescimento da violência como consequências das obras do COM-
PERJ, e de seu declínio. Também relatou que o abandono e os pro-
blemas estruturais (ruas esburacadas, falta de iluminação, congestio-
namentos, obras inacabadas...) contribuíram para o aumento desta
situação de insegurança e precariedade. Segundo este entrevistado,
o bairro vem sofrendo certas imposições de regras, como a de ligar o
pisca-alerta para se identificar, bem como o aparecimento de picha-
ções em muros indicando a qual grupo “pertence” aquele território,
a existência de barricadas e de operações policiais, o risco em circular
pelas ruas tarde da noite, a restrição a entregas de mercadorias. As
pessoas que foram entrevistadas em Itambi apontam que essas situa-
ções vêm sendo experimentadas apenas em anos mais recentes (entre
5 e 6 anos) e feito com que a população local enfrente sérias limita-
ções e dificuldades diminuída ainda mais a qualidade de vida em um
bairro que já enfrentava sérias dificuldades devido ao abandono do
poder público
As indefinições em relação ao COMPERJ e sua herança deixada,
não ajudam a avançar numa proposta que atenda aos interesses da
população de Itaboraí, principalmente aquelas que residem em bair-
ros periféricos, onde as demandas estruturais são cada vez maiores e
contribuem com a baixa qualidade de vida e a menor expectativa de
mobilidade social.

CONCLUSÃO
Há um certo consenso em considerar que os governos petistas que
governaram o país de 2003 a 2016, quando foram retirados do po-
der por um Golpe de Estado, se caracterizaram por uma orienta-
ção político-econômica lastrada no que se convencionou definir por

247
“neodesenvolvimentismo” (MILANEZ; SANTOS, 2013). O COM-
PERJ é um empreendimento que expressa essa perspectiva de desen-
volvimento em que o Estado cumpre um papel determinante. Foi em
empreendimento que despertou a atenção e produziu efeitos em es-
cala global, nacional e regional. Global: no sentido de que o seu pro-
jeto movimentou o mercado internacional do petróleo, assim como,
a divisão internacional do trabalho (DIT), e suas especificidades na
geopolítica do petróleo e das fontes energéticas; nacional na medida
em demonstrava uma busca na consolidação da autossuficiência e na
substituição de importações, tendo o beneficiamento da matéria pri-
ma como um passo importando do projeto neodesenvolvimentista;
e Regional na medida em que apontava para a reestruturação terri-
torial e a descentralização dos investimentos no interior da Região
Metropolitana do Rio de Janeiro (RMRJ), (OLIVEIRA, CANDIDO,
2018, p 71), atraindo indústrias do setor petrolífero e a diversificação
do setor terciário, com propostas de mudanças absolutas e relativas
na forma, na estrutura e na função nos municípios envolvidos no pro-
jeto de organização espacial, motivada pela empregabilidade de mão
de obra, migração e aumento populacional. Mas, como demonstra-
mos, é no território local em que se manifestaria as transformações
mais visíveis, agora não na perspectiva de um determinado foco de
desenvolvimento, mas como expressão máxima de uma lógica neoli-
beral de governo em que se promove políticas econômicas de desin-
vestimento tanto na produção quanto no cuidado social.
As análises apresentadas neste capítulo buscaram destacar o quan-
to determinadas leis, mesmo quando dotadas de um conteúdo que
visa fortalecer a participação, não se efetiva nas ações públicas. Esse
é o caso do Estatuto da Cidade, uma lei em que se determina que os
PDs devem ser realizados e revisados de forma participativa e con-
templando toda a área do município, mas fica claro que essa determi-
nação assume sentidos e conduzem a práticas muito distintas e con-
traditórias. Ou seja, como vimos, o fato é que poucos seguem essa

248
determinação e aqueles que seguem nem sempre conseguem contar
com a participação da população local. Itaboraí construiu seu plano
diretor de 2006 completamente distante da população e voltado cla-
ramente para os interesses do COMPERJ, das indústrias que visavam
atrair e outros interesses econômicos locais. Sua revisão finalizada em
2019, apesar de criar as condições para a participação da população,
pudemos constatar que tal participação foi insignificante. A princípio
é nestes espaços em que se potencializa o jogo de interesses que mo-
bilizam diversos agentes e onde o mercado de bens simbólicos mais
se expressa. Pensar a participação política em um contexto local nos
ajuda também a pensar o tratamento dado aos espaços de participa-
ção verificados no atual contexto político nacional, quando o governo
Bolsonaro tem eliminado ou limitado a intervenção ou acompanha-
mento de suas ações pela sociedade civil.
Até a chegado do COMPERJ, Itaboraí era considerado um “mu-
nicípio dormitório”, local de moradia para muitos que trabalhavam
em Niterói, São Gonçalo e Rio de Janeiro. Itaboraí também se cons-
tituía em um local de residência secundária, sítios de final de sema-
na. Ou seja, era uma região valorizada por determinados atributos
relacionadas à tranquilidade e maior contato com a natureza. A ex-
pectativa gerada pelo COMPERJ era de que o município experimen-
taria um forte crescimento econômico e passaria a ser um polo de
atração de novos empreendimentos e de trabalhadores, deixando,
assim, de ser uma cidade dormitório para se destacar como fonte de
trabalho e renda para sua população e para a população migrante. A
redução do COMPERJ a uma pequena fração de seu projeto origi-
nal não significou apenas um desperdício de recurso público. Signi-
ficou, sobretudo, o agravamento dos problemas já enfrentados pelo
município, uma vez que as expectativas geradas pela magnitude
do empreendimento fizeram aumentar ou produziram, na mesma
proporção, efeitos danosos à realidade socioambiental e econômica
que o município e a região enfrentam atualmente. Se parte destes

249
problemas já eram apontados por especialistas como resultados es-
perados ou como efeitos incontroláveis produzidos pela chegado do
COMPERJ, havia, ao menos, a perspectiva de um balanço entre a
geração de problemas e, ao mesmo tempo, a geração de condições
para solucioná-los ou amenizá-los. A expressão dessa contradição se
manifestava na forma de conflitos, mobilizações, cobranças, engaja-
mentos políticos. Os rumos que foram sendo adotados resolveram
essa contradição eliminando as expectativas de crescimento econô-
mico e geração de emprego e renda em favor apenas dos problemas
gerados ou agravados.
A violência é, certamente, a expressão mais grave dessa situa-
ção. As organizações criminosas não apenas exploram os merca-
dos ilegais, mas praticam o assassinato e a violência como forma
de consolidação de poder frente aos grupos rivais e frente ao Esta-
do. Se a crise do COMPERJ é a expressão das políticas econômicas
neoliberais reinauguradas com o golpe de 2016, o avanço da vio-
lência Estatal e paraestatal é a expressão clara do governo Bolso-
naro. A consolidação da milícia e o seu domínio e expansão terri-
torial, agravada pela aliança ou rivalidade com o tráfico de drogas,
se conjuga e se beneficia do contexto político atual em que o poder
dominante não apenas relativiza o papel das milícias, mas deu mos-
tras suficientes para concluirmos que são coniventes com esse tipo
de organização criminosa.

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252
REFLEXÕES SOBRE AS CONDIÇÕES DE
POSSIBILIDADE DA JUSDIVERSIDADE
EM UM CONTEXTO POSCOLONIAL
Gabriel Calil Maia Tardelli
Lucas Cravo de Oliveira
Ronaldo Lobão

INTRODUÇÃO
A partir da descrição de três situações etnográficas, pretendemos ana-
lisar as condições de possibilidade do exercício da jusdiversidade no
contexto brasileiro, marcado por relações interétnicas. Por jusdiversi-
dade entendemos a convivência de diferentes sentidos de justiça (KANT
DE LIMA, 2010) ou sensibilidades jurídicas (GEERTZ, 2004), o que
implica em diferentes formas de administração de conflitos e no re-
conhecimento da diversidade sociocultural em um mesmo “Estado”.
Este não deve ser aqui compreendido como uma espécie de Leviatã,
isto é, como algo abstrato, universal e definitivo, mas enquanto uma
construção permeada de processos constantes de objetificação e de
subjetivação (SOUZA LIMA, 2013).
Os dois primeiros casos ocorreram no estado de Roraima. O
primeiro, que se passou na Comunidade Manoá, situada na Terra
Indígena Manoá-Pium, diz respeito à morte de um indígena provo-
cada pelo seu próprio irmão. A descrição dessa situação se basea-
rá na dissertação “Quando o tuxaua manda amarrar e o juiz manda
prender”: as condições de possibilidade da jusdiversidade em um contex-
to interétnico, defendida por Moraes (2015) no Programa de Pós-
-Graduação em Antropologia da Universidade Federal Fluminense
(PPGA/UFF).

253
O segundo caso refere-se à realização de um júri popular indí-
gena na Terra Indígena Raposa Serra do Sol, cujo corpo de jurados
foi composto por indígenas. O julgamento girava em torno de uma
tentativa de homicídio praticada por dois indígenas da Comunidade
da Enseada contra um indígena da Comunidade Orinduque. Como
membros do Núcleo de Pesquisa sobre Práticas e Instituições Jurídi-
cas (NUPIJ)1, nós fizemos o registro audiovisual daquele evento, além
da utilização do caderno de campo.
Por fim, no terceiro caso, nos debruçaremos sobre a indenização por
dano espiritual paga pela companhia aérea Gol ao povo Kayapó que vive
na Terra Indígena Capoto-Jarina, no norte do Mato Grosso, em função
da queda de um de seus aviões em uma área indígena. Essa descrição
terá como base a análise de documentos jurídicos e de matérias jorna-
lísticas.
A compreensão desses casos passa, a nosso ver, pelo entendimento
das relações de poder (FOUCAULT, 1995; 2018) que são estabelecidas
nessas situações entre diferentes atores e instituições. Isso implica em
observarmos a atualização e o exercício do poder tutelar que incide
sobre os povos indígenas e seus territórios (SOUZA LIMA, 1995), as-
sim como a configuração neocolonial que assume aquilo a que cha-
mamos de “Estado brasileiro”.

QUANDO O MONOPÓLIO LEGÍTIMO DA VIOLÊNCIA É


COLOCADO EM XEQUE

Nos idos de 2009, na comunidade indígena Wapixana do Manoá,2 situa-


da na Terra Indígena Serra da Lua, no entorno do município de

1. Grupo de pesquisa da Faculdade de Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF),


sob a coordenação do antropólogo Ronaldo Lobão, vinculado ao Instituto de Estudos Com-
parados em Administração de Conflitos (InEAC).
2. “A Comunidade Manoá é uma dentre as seis comunidades que formam a TI Manoá-Pium,
localizada na região Serra da Lua. Homologada em 16.02.1982, a TI Manoá-Pium possui

254
Bonfim, ocorreu um evento que parece ter modificado a estrutura de
significados (SAHLINS, 1990) dos habitantes daquela localidade. Denil-
son Trindade Douglas, embriagado, feriu seu irmão Alanderson Trinda-
de Douglas pelas costas. Levado para o Hospital Geral de Roraima, em
Boa Vista, Alanderson não resistiu ao ferimento e faleceu horas depois.
Em seu depoimento, Denilson mostrou-se arrependido e disse que
era amigo de seu irmão. Ele contou que, naquela data, havia trabalha-
do durante todo o dia e havia bebido muito. Disse que não conseguia
se lembrar do que aconteceu e que apenas tomou ciência do seu ato
quando sua avó lhe interpelou no dia seguinte. Atordoado, saiu da
casa da avó rumo ao Centro da Comunidade Manoá, onde estava lo-
calizada a casa de seus pais. Sua mãe lhe disse para não sair da comu-
nidade, pois a polícia chegaria logo (MORAES, 2015).
A denúncia foi recebida em março de 2012 por uma juíza substitu-
ta, para quem o material que constava no inquérito era o bastante e
comprovava a autoria e a materialidade do crime. Após ser citado, o
réu, a princípio representado por uma advogada particular, apresen-
tou sua resposta: argumentou

que ele sempre viveu em harmonia com seu irmão e demais moradores
do Manoá, e que a introdução de bebidas alcoólicas na comunidade era
realizada de maneira ilegal, e esse tratava da maior fonte de criminalida-
de entre os povos indígenas (MORAES, 2015, p. 26).

Além disso, a defesa sustentou que Denilson já havia sido julgado


e condenado pelo seu próprio povo:

Além de não poder se ausentar da Comunidade do Manoá sem permis-


são do tuxaua e do conselho, Denilson também deveria tirar 800 estacas

43.336 ha e foi a primeira terra indígena a ser demarcada na região Serra da Lua. Está locali-
zada próxima à fronteira Brasil-Guiana, fazendo limite com o Rio Tacutu, marco natural que
separa os dois países” (MORAES, 2015, p. 21).

255
para curral da comunidade a ser construído por ele, construir também
uma casa de fazenda para a comunidade e uma casa para a viúva de
Alanderson, frequentar a Igreja Evangélica Assembleia de Deus, partici-
par de todas as reuniões da comunidade e dar continuidade aos projetos
iniciados pelo irmão morto (MORAES, 2015, p. 27).

Em decisão preliminar, o juiz decidiu que, uma vez que não identi-
ficou nenhuma causa excludente da ilicitude do fato, tornava-se inviá-
vel a absolvição sumária do réu. Indicou, ainda, que seria necessária
a produção de provas, o exercício do contraditório e a ampla defesa.
Depois, a Procuradoria da Advocacia Geral da União (AGU) res-
ponsável pela Seção Indígena em Roraima ingressou no processo na
qualidade de defensor do réu. Seguindo a linga de defesa da advoga-
da, o procurador argumentou que, como Denilson já havia sido con-
denado pela sua comunidade, ele não poderia ser processado, julgado
e condenado por aquele juízo.
Não obstante, depois de ter cumprido a pena estabelecida ante-
riormente, que foi acompanhada pelas lideranças do Manoá, o Con-
selho de Tuxauas decidiu por uma nova sanção: Denilson deveria
permanecer exilado durante 10 anos. A depender de seu comporta-
mento, o tempo da pena poderia ser reduzido. O destino do exilado
seria a Comunidade Indígena do Anauá, Terra Indígena Wai-Wai. Lá,
ele deveria respeitar as lideranças locais, aprender a cultura e a língua
Wai-Wai, não ingerir bebidas alcoólicas e participar dos trabalhos co-
munitários, assim como de reuniões e eventos daquela comunidade.
Em contrapartida, o Ministério Público (MP) posicionou-se contraria-
mente à tese apresentada pela Seção Indígena da AGU. Para o órgão
de acusação, o caso em questão não dizia respeito a uma disputa de
direitos indígenas, como previsto no artigo 231 da Constituição de
1988. E mais: ainda que Denilson tivesse sido condenado pela sua co-
munidade, não se tratava de bis in idem, instituto jurídico que se confi-
gura quando um mesmo fato é julgado mais de uma vez.

256
Na sentença, o juiz sustentou que aquela situação configurava um
duplo jus puniendi, isto é, um duplo direito de punir. Para ele, “o ritual
normalmente feito pelo Estado através do juiz já havia sido cumprido
no interior da comunidade indígena” (MORAES, 2015, p. 30). Nesse
sentido, decidiu pela “ausência do direito de punir do Estado, uma
vez que Denilson já havia sido julgado e condenado por aqueles que
detêm tal direito, a comunidade indígena” (MORAES, 2015, p. 31).
No exercício da magistratura, Aluizio Vieira, o juiz daquele caso, ha-
via se deparado com muitas disputas envolvendo comunidades indíge-
nas. Quando julgara o “caso Denilson”, estabelecera critérios para ten-
tar lidar com a existência de duas formas distintas de administração de
conflitos: a do Direito estatal e a dos povos indígenas. As regras são as
seguintes: 1) se o autor e a vítima forem indígenas, se o fato ocorrer em
Terra Indígena e se não houver julgamento do fato pela comunidade in-
dígena, o Estado deterá o direito de punir, atuando subsidiariamente; 2)
se o autor e a vítima forem indígenas, se o fato ocorrer em Terra Indíge-
na e se houver julgamento do fato pela comunidade indígena, o Estado
não deterá o direito de punir (CABRAL DE ARAÚJO SILVA, 2017).
O MP, contudo, recorreu da decisão. De acordo com o promotor,
o monopólio da ação penal restringe-se ao órgão ministerial, moti-
vo pelo qual o magistrado não poderia ter reconhecido a competên-
cia da jurisdição indígena. Em segundo lugar, em função do princípio
da inafastabilidade da jurisdição, que obrigado o juiz a julgar quando
provocado, ele não poderia eximir-se de tomar uma decisão. Por fim,
quando se manifestou acerca da existência da “jurisdição indígena”,
o juiz teria exercido uma função que caberia ao Poder Legislativo,
extrapolando, portanto, suas atribuições.
Favorável à sentença do juiz, a AGU criticou o monismo jurídico
do Estado brasileiro e defendeu a “importância da compreensão da
diferença cultural e étnica” (MORAES, 2015, p. 32). O parecer da pro-
curadora do Ministério Público Estadual, que atua na segunda instân-
cia, corroborou a tese da AGU.

257
À época da conclusão da pesquisa de Moraes (2015), o recurso de
apelação ainda não havia sido julgado. Até a conclusão deste traba-
lho, não conseguimos ter acesso ao andamento processual. De todo
modo, havia a possibilidade de o Tribunal de Justiça de Roraima mo-
dificar a sentença que havia reconhecido o “modo Wapixana” de ad-
ministração de conflitos.

QUANDO UM MALOCÃO VIRA TRIBUNAL


No dia 23 de abril de 2015 a Terra Indígena Raposa Serra do Sol (TR-
SS),3 localizada a 50 km do município de Uiramutã, nordeste do es-
tado de Roraima, serviu de palco para a realização do “primeiro júri
popular indígena do Brasil”, como era chamado pelos seus organiza-
dores e como ficou conhecido pelos meios de comunicação.4
Na ocasião, seriam julgados os irmãos indígenas Élcio e Valdemir
da Silva Lopes, da Comunidade Macuxi da Enseda. Eles foram acusa-
dos de tentar matar Antonio Alvino Pereira, morador da Comunida-
de Indígena de Orinduque, formada por grupos Patamona e locali-
zada na Etnorregião Ingarikó, na região das Serras, na TRSS. Os três
engalfinharam-se em uma briga no Mercado do Peão, em Uiramutã,
no dia 23 de janeiro de 2013. Antonio saiu da confusão com o pescoço
e o braço cortados. Élcio e Valdemir alegaram legítima defesa e afir-
maram que Antonio estava dominado pelo canaimé. Os réus foram
presos em flagrante5 e ficaram detidos por 10 dias na Penitenciária
Agrícola de Monte Cristo (PAMC), em Boa Vista.

3. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol possui 470 comunidades distribuídas em dez etnias
devidamente identificadas na região, quais sejam, Macuxi, Yanomami, Patamona, Ingaricó,
Wai Wai, Taurepang, Sapará, Wapixana, Jaricuna e Xiriana. Além disso, há etnias que ainda
não foram devidamente descritas (CABRAL DE ARAÚJO SILVA, 2017).
4. Disponível em: http://g1.globo.com/rr/roraima/noticia/2015/04/juri-indigena-absol-
ve-reu-de-tentativa-de- homicidio-e-condena-outro-em-rr.html. Acesso em: 16 jan. 2019.
5. À polícia cabe um procedimento administrativo (não jurídico) denominado inquérito po-
licial. Este é iniciado pelo registro de um flagrante pela polícia – como ocorrera com Élcio e

258
A categoria canaimé é adotada por diferentes grupos indígenas de Ro-
raima, assumindo significados distintos a depender das etnias e dos con-
textos em que é acionada. Trata-se de uma categoria de acusação lan-
çada a um outro com o qual não se tem e/ou não se pode ter relações,
mediações ou contatos. Enquanto categoria acusatória, designa grupos
e seres violentes causadores de mortes; como categoria explicativa, for-
nece explicações para mortes sem causa aparente. Sua representação é
elaborada a partir de diacríticos como “selvagem”, “sujo”, “estrangeiro”,
“negros”, moradores de lugares distantes nas serras (LOBÃO, 2015).
A ação penal TJRR-0045.13.000166-7 tramitava na comarca6 de
Pacaraima (RR), onde atua o juiz Aluizio Vieira, que havia julgado o
“caso Denilson”. Ao se debruçar sobre o processo, notou que todos os
envolvidos eram indígenas – os acusados, a vítima e as testemunhas –,
salvo o dono do mercado onde ocorrera a agressão. Além disso, apa-
rentemente, não teria havido nenhuma tentativa de administração do
conflito em conformidade com as práticas locais. Como se tratava de
uma tentativa de homicídio, deveria ser julgado pelo Tribunal do Júri,
conforme previsto no Código de Processo Penal brasileiro.7 Mas, com
o objetivo de reconhecer a diversidade étnica indígena, o magistrado
passou a sustentar que o corpo de jurados deveria ser formado por
indígenas e que o julgamento deveria ocorrer dentro da própria co-
munidade (CABRAL DE ARAÚJO SILVA, 2017).
Nos bastidores, para que a ideia do júri popular indígena saísse
do papel, Aluizio Vieira costurara relações com órgãos estatais, bem

Valdemir – ou quando é informada da ocorrência de um crime (KANT DE LIMA, 1995). De


caráter inquisitorial, nessa fase é proibida a participação da defesa do acusado, que é inter-
rogado de modo a obter dele informações ou a confissão. Se se concluir que o acusado é o
autor do delito, o delegado deverá indiciá-lo, remetendo o inquérito para o Judiciário. Com
base no inquérito, o promotor, membro do Ministério Público, poderá fazer ou não a denún-
cia. Caso o faça, o processo penal será iniciado (KANT DE LIMA, 1995).
6. Território ou circunscrição territorial em que o juiz de direito de primeira instância exerce
sua jurisdição.
7. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689.htm. Acesso
em 15 jan. 2019.

259
como com as comunidades indígenas e suas respectivas lideranças
(CABRAL DE ARAÚJO SILVA, 2017), que poderiam concordar ou
não com a ideia do magistrado. Depois de inúmeras consultas junto à
Comunidade Maturuca, localizada na região das Serras, ficou acorda-
do que o júri seria realizado no Centro Comunitário Maturuca, que
congrega mais de cem comunidades indígenas no interior da Raposa
Serra do Sol, dentre as quais a Comunidade da Enseada.
A escolha do local fora bastante significativa. Lá, há duas grandes
malocas chamadas de malocão. Trata-se de construções circulares
cujos tetos são constituídos por mais de 18 mil palhas de buriti (Mau-
ritia flexuosa).8 O primeiro, construído em 1998, simboliza a demar-
cação da Terra Indígena Raposa Serra do Sol; o segundo, que é maior,
data de 2005 e servira de palco para que as comunidades indígenas
celebrassem a homologação da mesma terra. Eis o motivo pelo qual
são chamados de “Malocão da Demarcação” e “Malocão da Homolo-
gação”, respectivamente. O júri ocorrera na segunda construção.
Durante o júri, enquanto o promotor Carlos Paixão, sempre cas-
murro, apostava em um tom intimidador e sarcástico, o defensor públi-
co José João aparentava amabilidade e cordialidade. Em voz baixa, com
gestos menos bruscos do que os do promotor, parecia tentar manter
uma conversa quase informal com aqueles que eram interrogados. Ele,
assim como o promotor, levantava-se a todo instante de seu assento.
Por outro lado, o promotor Diego Oquendo e a advogada de defesa
Thaís Lutherback permaneceram sentados a maior parte do tempo.
Durante o interrogatório da vítima pela acusação, o promotor levan-
tou-se de seu assento, caminhou até Antonio, suspendeu o pescoço do
mesmo para verificar o corte e, em seguida, o expôs à vista dos jura-
dos e disse: “Jurados, foi isto aqui que os réus que estão ali fizeram com
o pescoço da vítima”. Antonio ficou com a cabeça tombada para trás,

8. Palmeira muito alta, nativa de Trinidad e Tobago e das Regiões Central e Norte da Amé-
rica do Sul, notadamente na Venezuela e no Brasil.

260
enquanto Carlos Paixão insistia para que os jurados mirassem a ferida.
No fim do interrogatório, Antonio revelou a tentativa frustrada de acor-
do entre tuxauas – principais lideranças das comunidades indígenas da-
quela localidade – e, em lágrimas, relatou sua situação financeira.
O laudo antropológico, realizado pelo antropólogo Ronaldo Lo-
bão, nomeado pelo juiz Aluizio Vieira, foi questionado pelo promo-
tor ao longo de toda a sessão. Ainda durante o interrogatório de An-
tonio, Carlos Paixão lhe indagou se ele havia sido procurado por um
antropólogo. Antonio respondeu negativamente.
O discurso do defensor público José João, por outro lado, anun-
ciava uma outra estratégia, que consistia em uma tentativa de apro-
ximação e de identificação em relação não somente aos personagens
interrogados e aos que decidiriam, isto é, os jurados, mas, também,
àqueles que assistiam como espectadores. Quanto à figura do canai-
mé, a defesa também se prontificou a desconstruir as supostas associa-
ções de Antonio com aquela entidade.
A abordagem da advogada Thaís Lutterback seguia pela via da se-
renidade. Sem levantar a voz, dirigia-se calmamente aos depoentes.
Assim como o defensor, tentava uma aproximação com aquelas pes-
soas. Ambos, aliás, disseram que, em ocasião “apropriada”, beberiam
uma “cachacinha” no Mercado do Peão, o que desagradou muitos
indígenas, ao contrário do que pretendiam, já que o uso de bebidas
alcóolicas tem sido condenado moralmente naquela região. Um traço
diferencial do discurso da advogada em relação aos discursos tanto
do promotor quanto do defensor dizia respeito às suas tentativas de
“traduzir”, para os indígenas ali presentes, os sentidos de um julga-
mento nos moldes do Direito oficial. Em outro momento, durante o
interrogatório do tuxaua Severino da Silva Souza, da Comunidade da
Enseada, a advogada reforçou a importância das comunidades envol-
vidas naquele caso – Enseada e Orinduque – chegarem a um acordo.
Para ela, a realização de um júri não era necessariamente a melhor ou
a única forma de se administrar um conflito.

261
Sempre questionando a legitimidade do laudo antropológico e da
realização daquele júri indígena, em tom agressivo, praticamente aos
gritos, o promotor indagou ao tuxaua Severino: “O senhor acha que
os réus devem ser absolvidos, aqueles dois lá? O que o senhor acha, o
senhor é o tuxaua!”. Em meio ao burburinho, o defensor pediu “ques-
tão de ordem” e o juiz interviu dizendo que a pergunta do promotor
era muito subjetiva. Mas, atordoado, o tuxaua respondeu afirmativa-
mente, isto é, que os réus deveriam ser absolvidos.
Antes do início do interrogatório dos réus, que seria feito somente
pelo próprio juiz e pela defesa, o magistrado Aluizio Vieira, que até
então havia pronunciado pouquíssimas palavras, admoestou os mem-
bros da acusação e da defesa por conta de gritos e ofensas que haviam
protagonizado até aquele momento.
Em seus depoimentos, os réus endossaram o que já haviam con-
fessado: Élcio afirmou que havia ferido o pescoço de Antonio com
uma faca de “cortar laranja”, enquanto Valdemir disse que havia co-
metido o delito, mas que ele e Élcio defenderam-se contra as investi-
das de um Canaimé.
Em seguida, iniciou-se um outro ato formal do júri: as sustentações
orais da acusação e da defesa, cada uma com 2:30h de duração. Em fun-
ção do cansaço de todos, o juiz suspendeu a sessão por 30min para que
os participantes pudessem lanchar. Mas, antes, pediu desculpas aos jura-
dos pelos “atos não muito educados” perpetrados pela acusação e pela
defesa e solicitou que os jurados começassem a “formar sua convicção”.
Após o término dos debates, o juiz, os jurados, o defensor públi-
co, a advogada e os promotores retiraram-se para uma sala secreta.
Lá, seguindo o roteiro do ritual do júri, os jurados devem responder
“sim” ou “não” às perguntas formuladas pelo juiz (quesitação), tendo
a concordância da acusação e da defesa. Nessa etapa, os jurados não
podem discutir previamente e o voto é secreto. O resultado corres-
ponderá à maioria dos votos dados a cada um dos quesitos (KANT
DE LIMA, 1995).

262
No desfecho do júri, que durou mais de 13 horas, o juiz leu a de-
cisão tomada pelo corpo de jurados indígenas: Élcio foi absolvido
do crime de tentativa de homicídio e Valdemir foi condenado por
lesão corporal leve. Em entrevista ao portal de notícias G1, Zedoe-
li Alexandre, coordenador regional da região das Serras – que havia
se pronunciado nos momentos anteriores ao início do atos formais
–, afirmou que o julgamento do “brancos” era “brutal” e que o júri
mudará a forma como os indígenas lidarão com os conflitos de suas
comunidades.

QUANDO A QUEDA DE UM AVIÃO GERA DANOS ESPI-


RITUAIS

Um acidente aéreo improvável acontece no território brasileiro, no


dia 29 de setembro de 2006. Um jato modelo Legacy 600, estava sen-
do conduzido pela empresa norte-americana Excel Aire, em uma rota
comercial doméstica. Na mesma direção, em sentido contrário, tra-
fegava um avião conduzido pela Companhia Aérea GOL. Confor-
me amplamente divulgado pelos grandes veículos de comunicação,
ambos se chocaram. O jato Legacy continuou em trânsito aéreo. O
Boeing 737, sob responsabilidade da GOL, caiu no solo, em meio à
floresta amazônica. O local da queda está próximo ao Rio Xingu, den-
tro dos limites da Terra Indígena (TI) Capoto-Jarina. Dentre tripulan-
tes e passageiras, 154 pessoas morreram no acidente.
Quando há um grande derramamento de sangue em uma área,
como o ocorrido neste caso, para o povo indígena Mẽbêngôkre Ka-
yapó, esta região se torna uma mekaron nhyrunkwa. Em português,
isto significa algo aproximado à casa dos espíritos. Os Mẽbêngôkre
Kayapó constituem a etnia que possui o usufruto da TI Capoto-Ja-
rina – a despeito de haver outros povos na mesma TI. Como esta
área ganha sacralidade com a queda do avião, houve uma viola-
ção que afeta o universo espiritual deste povo. E as consequências

263
disto, por sua vez, possuem implicações na vida cotidiana. A área
afetada – de aproximadamente 1200 km² – não pode mais ser ha-
bitada. Uma aldeia que estava mais próxima ao local do acidente
precisou ser reorganizada. A pesca, a caça, a cultura de roçado e o
estabelecimento de aldeias são atividades que nunca mais poderão
acontecer nesta região.
Em 2013, os Mẽbêngôkre Kayapó mobilizaram o Ministério Públi-
co Federal (MPF) para que a GOL retirasse os destroços do avião e re-
parasse os danos causados. Um inquérito civil público foi instaurado
com a finalidade de apurar a responsabilidade da empresa. Em março
de 2017, após ampla negociação, firmou-se um acordo extrajudicial
que prevê indenizações de ordem material e imaterial, abarcando os
danos ambientais e culturais. Dentre os prejuízos a serem ressarcidos,
está incluído o que interferiu na ordem espiritual deste povo. Com
uma indenização no valor de 4.000.000 reais, ficou acordado que a
GOL estava quitando todos os débitos perante o povo Mẽbêngôkre
Kayapó. Além desta quantia, acordou- se que a empresa não retiraria
os destroços do avião, levando em consideração que uma operação
desta magnitude seria de alto risco e provavelmente traria mais da-
nos a outras áreas de floresta. Os dados expostos na descrição do caso
constam no Termo de Acordo 01/2017, assim como ao longo do In-
quérito Civil 1.20.004.000070/2016-55, instaurados na Procuradoria
da República no município de Barra do Garças – instituição compo-
nente do MPF.
Os danos sofridos pelos Mẽbêngôkre Kayapó assumiriam diferentes
formas e sentidos. Nos grandes veículos de comunicação, no laudo an-
tropológico, e em algumas reuniões registradas, a categoria utilizada foi
danos espirituais. O laudo antropológico também adotou a categoria da-
nos socioculturais, enquanto no acordo extrajudicial apareceu o termo da-
nos culturais. Esses documentos parecem apontar para as incongruências
da solução compartilhada por tantos atores distintos, de modo que “(...)
as vozes dissonantes são fundamentais, porque apontam as contradições

264
destes processos sociais de comensurabilidade entre ‘mundos de senti-
do’ radicalmente distintos” (OLIVEIRA, 2017, p. 266).

DAS CONDIÇÕES DE POSSIBILIDADE DA JUSDIVER-


SIDADE

A Constituição de 1988 prevê normas que expressamente versam sobre


os direitos indígenas. No plano internacional, o Brasil é signatário da
Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, que garante
os direitos dos povos tradicionais. A despeito de a relação entre “brancos”
e indígenas ser historicamente marcada pelo poder tutelar, sendo este um
traço da formação estatal brasileira (SOUZA LIMA, 1995), teria havido
uma suposta virada interpretativa com a nova carta constitucional.
Em tese, a Constituição rompeu com a perspectiva integracionista
e assimilacionista que orientou o Estado brasileiro ao longo da se-
gunda metade do século XX. Parece ter havido um deslocamento da
tutela sobre os povos indígenas para a tutela sobre os direitos dos po-
vos indígenas. A questão que se impõe a partir daí é em que medida
os atores e instituições estatais são capazes de lidar com concepções
de justiça que sejam culturalmente diferentes das suas. Isso porque
contextos culturais distintos podem implicar em visões igualmente
distintas acerca do que é o direito. Se o observarmos como um siste-
ma de normas que pretende administrar conflitos (KANT DE LIMA,
2012), os sentidos de justiça (KANT DE LIMA, 2010) ou as sensibilidades
jurídicas (GEERTZ, 2004) – enquanto percepções particularizadas do
que deve ser o direito – não assumem necessariamente tônicas idênti-
cas em grupos sociais diferentes.
Dessa forma, os casos descritos brevemente acima suscitam uma
questão central: o Direito “oficial” brasileiro está aberto para outras
concepções de justiça? Sob a perspectiva normativa, o ordenamento ju-
rídico brasileiro admite a confluência entre concepções de justiça cultu-
ralmente diferenciadas? Como os atores e instituições lidam com essas

265
questões? Na administração de conflitos desta natureza, os diversos
sentidos de justiça são tratados de maneira simétrica ou assimétrica?
No esforço de buscar a confluência, nem sempre é possível traduzir
expectativas de direitos distintas em uma gramática comum. As difi-
culdades de construir um diálogo intercultural se devem tanto à defla-
gração de conflitos muitas vezes intratáveis, uma vez que os atores não
compartilham o mesmo significado do objeto em disputa e as resolu-
ções são sempre instáveis e provisórias (LOBÃO,2016), quanto ao fato
de que essas relações interétnicas configuram-se de maneira assimétri-
ca, o que é próprio das práticas de dominação (OLIVEIRA, 2017).
Sob essa perspectiva, a afirmação de que a promulgação da Constitui-
ção de 1988 teria modificado a relação tutelar do Estado brasileiro com
os povos indígenas deve ser colocada em xeque. Isso porque uma suposta
ruptura com o regime tutelar – do ponto de vista normativo – não signi-
fica necessariamente o desaparecimento de práticas e representações de
caráter tutelar perpetradas por agentes e instituições estatais.
Pensar em termos de uma jusdiversidade pode ser uma chave para
administrar concepções de justiça a partir da interlegalidade (LOBÃO,
2016). Mas não devemos perder de vista a forma desigual com a qual
partes distintas são tratadas em um modelo de administração de confli-
to extraestatal – como a Alternative Dispute Resolution (ADR) –, tampou-
co devemos deixar de observar como a ideologia da harmonia opera
ocultando conflitos e neutralizando determinados grupos sociais que
se encontram em situação de vulnerabilidade (NADER, 1994).

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES FINAIS: DO PODER TU-


TELAR EM AÇÃO

As situações etnográficas descritas acima podem ser compreendidas


com o auxílio da noção de campo político de Bourdieu (2015), que o
definiu como um espaço onde ocorre uma luta de forças entre polos
opostos. Estes (indivíduos, grupos, partidos etc.) lutam “pelo poder

266
propriamente simbólico de fazer ver e fazer crer, de predizer e de
prescrever, de dar a conhecer e de fazer reconhecer, que é ao mesmo
tempo uma luta pelo poder sobre os ‘poderes políticos’ (as adminis-
trações do Estado)” (BOURDIEU, 2015, p. 179).
A luta política pode ser entendida, pois, como uma “guerra subli-
mada” (BOURDIEU, 2015) ou enquanto uma guerra continuada por
outros meios (SOUZA LIMA, 1995; FOUCAULT, 2018) na qual o Es-
tado aparece não como algo abstrato, universal e definitivo mas en-
quanto uma construção permeada de processos constantes de objeti-
ficação e de subjetivação “que operam construindo e desconstruindo
realidade no plano da vida diária, adquirindo a dimensão de automa-
tismos, oriundos ou não de imposições emanadas de um corpo admi-
nistrativo apoiado em leis e normas” (SOUZA LIMA, 2013, p, 561).
Sob esse ponto de vista, “descrever instituições estatizadas – a um
tempo imaginárias e imaginadas – é também descrever ideias, pois ao
fim e ao cabo política é ação simbólica” (SOUZA LIMA, 1995, p. 77).
Um outro complemento analítico pode ser encontrado na noção
de poder elaborada por Foucault (1995; 2018), para quem o poder não
é algo unívoco ou supra-histórico; trata-se, ao contrário, de uma ca-
tegoria relacional e histórica. Nesse sentido, falamos em relações de
poder que exercem poder sobre as ações dos indivíduos. É uma forma
de poder que produz sujeitos e assujeitamentos, isto é, “que categoriza
o indivíduo, marca-o como sua própria individualidade, liga-o à sua
própria identidade, impõe-lhe uma lei de verdade, que devemos reco-
nhecer e que os outros têm que reconhecer nele” (FOUCAULT, 1995,
p. 235).
As relações de poder que foram explicitadas no decorrer das três
situações etnográficas descritas acima revelam o modus operandi do po-
der tutelar, isto é, um modo de integração territorial e política, “uma
forma de ação sobre as ações dos povos indígenas e sobre seus terri-
tórios” (SOUZA LIMA, 1995, p. 73). O poder tutelar é também um
modo de relacionamento e governamentalização de poderes. Em

267
caso de disputas, ele pode mediar sem tomar partido, arbitrá-las de
modo a contribuir para a manutenção do conflito ou produzir inten-
cionalmente o dissenso através de um princípio romano: divide e impe-
ra (SOUZA LIMA, 1995). O conflito aparece, portanto “como forma
estruturante fundamental da interação (SOUZA LIMA, 1995, p. 40),
em conformidade com Gluckman (2010) e Simmel (1983).
Os limites das condições de possibilidade da jusdiversidade são de-
finidos, portanto, por um Estado cuja justiça assume ainda hoje um
caráter inquisitorial (KANT DE LIMA, 2010) e cujos atores e institui-
ções exercem um poder tutelar (SOUZA LIMA, 1995) sobre povos e
territórios culturalmente diferenciados. Não se trata apenas de “res-
quícios” do período colonial, mas de um processo de longa duração
através do qual as práticas de poder e o regime discursivo do colonia-
lismo são reproduzidos e atualizados recorrentemente ao longo do
tempo através de práticas e discursos aparentemente novos.

REFERÊNCIAS
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diversidade étnica indígena na prática jurídica: o caso do primeiro tribunal do júri in-
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Estudos Latino- Americanos, Universidade de Brasília, Brasília, 2017.
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Paul. Michel Foucault, uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo e da her-
menêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
. Em defesa da sociedade. 2. ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2018.
GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. 7.
Ed. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
GLUCKMAN, Max. Análise de uma situação social na Zululândia moderna. In.
FELDMAN- BIANCO, Bela (Org.). Antropologia das sociedades contemporâneas: méto-
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KANT DE LIMA, Roberto. Da inquirição ao júri, do trial by jury à plea bargaining:
modelos para a produção da verdade e a negociação da culpa em uma perspectiva

268
comparada Brasil/Estados Unidos. 1995. 72 f. Tese (Professor Titular em Antropo-
logia). – Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminen-
se, Niterói, 1995.
. Sensibilidades jurídicas, saber e poder: bases culturais de alguns aspectos do di-
reito brasileiro em perspectiva comparada. Anuário Antropológico, 2009 – 2, pp. 25-
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LOBÃO, Ronaldo Joaquim da Silveira. Laudo antropológico. 2015.
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MORAES, Patrícia Louise de Moura. “Quando o tuxaua manda amarrar e o juiz man-
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NADER, Laura. Harmonia Coerciva: A Economia Política dos Modelos Jurídicos.
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parte dos processos de formação estatal. Revista de Antropologia (USP. Impresso), v.
55, p. 559-564, 2013.

269
ENQUANTO PASSA A BOIADA:
UMA NECESSÁRIA PERSPECTIVA
AMBIENTAL EMANCIPATÓRIA
Laone Lago
Wilson Madeira Filho
Napoleão Miranda

INTRODUÇÃO
“Nós vamos a uma conferência sobre o meio ambiente, sobre a ação
humana na biosfera e vamos dizer que despejamos cento e cinquenta
toneladas de DDT na Amazônia?” (URBAN: 1998, p. 263). “É a mes-
ma coisa que o Brasil ir a um congresso de odontologia e se vanglo-
riar que extraiu quarenta e cinco dentes, usando um porrete como
anestesia” (URBAN: 1998, p. 264). Foi assim que Alceo Magnanini, à
época representante do Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Flo-
restal – IBDF, advertiu o então representante do Ministério da Saú-
de, após este ter escrito no relatório que seria apresentado pelo Bra-
sil durante a Conferência Mundial das Nações Unidas sobre o Meio
Ambiente Humano – a Conferência de Estocolmo –, de 1972, que o
governo brasileiro utilizou cento e cinquenta toneladas de Dicloro-
-Difenil-Tricloroetano – DDT para erradicar a malária nos igarapés
da Amazônia.
O trágico e real relato aqui narrado reflete o fenômeno ambiental
no Brasil, o qual não é linear – jamais foi –, sendo, em verdade, natu-
ralmente complexo, em todos os seus aspectos e circunstâncias (MO-
RIN: 2011). Essa complexidade, repleta de desafios e obstáculos, é re-
latada de forma clara em diário publicado em formato de livro por
Paulo Nogueira-Neto. Em certa passagem, datada de 18 de agosto de

271
1976, o autor escreveu – “É agora ou nunca” –, referindo-se ao fato
de que a Secretaria Especial do Meio Ambiente – SEMA, órgão vin-
culado à Presidência da República, estava “explodindo, com repon-
sabilidades e solicitações imensas” (NOGUEIRA-NETO, 2009, p. 49).
Prossegue para registrar sua particular preocupação com a continui-
dade da área ambiental, pois – pontua –, se “perdermos o pé e não
acompanharmos o que se espera de nós, naufragaremos [haja vista
que as diversas demandas] estão exigindo uma retaguarda que ainda é
fraca numericamente” (NOGUEIRA-NETO: 2009, p. 50).
Em outra passagem do seu diário, datada de 29 de setembro de
1976, Paulo Nogueira-Neto descreve uma situação no mínimo inu-
sitada, no entanto, da máxima preocupação, a qual envolveu o pro-
nunciamento do ministro do Exterior do Brasil na Organização das
Nações Unidas – ONU, oportunidade em que teria afirmado “que os
países desenvolvidos usam os problemas ambientais para manter os
países em desenvolvimento numa situação de dependência” (NO-
GUEIRA-NETO: 2009, p. 50). Trata-se de entendimento diametral-
mente oposto ao que apresentado pelo próprio Paulo Nogueira-Neto
dias antes à Câmara Americana do Comércio, onde afirmou “exata-
mente o contrário, ou seja, que tal receio não tinha razão de ser e era
coisa do passado” (NOGUEIRA-NETO: 2009, p. 50). A linha de con-
clusão alcançada pelo autor é tanto óbvia quanto preocupante, sendo
possível ver “com mais clareza, que o setor que nos tem mais causado
algumas dores de cabeça possui respaldo no primeiro Escalão. Parece
até que não existiu a Conferência de Estocolmo em 1972!” (NOGUEI-
RA-NETO: 2009, p. 50).
Os desafios dentro da própria estrutura pareciam ser uma cons-
tante, mais especificamente nos escalões superiores da Administração
Pública brasileira, naqueles idos fundacionais da política ecológica
brasileira, cujos parâmetros mais críticos ainda vincavam nas mãos
de conservacionistas com influência da Biologia Profunda e que, em
alguma medida, postulavam o olhar positivista dos militares, eis que

272
a pátria verde-amarela era metade verde e a Amazônia era nossa e se
tratava mais de convencer os colegas de farda a zelar ambientalmente
por nossas fronteiras.
Nos dias atuais, esse fenômeno tornou-se uma corruptela, alter-
nando os vetores, não só a principal autoridade ambiental na hierar-
quia administrativa federal, no caso, o ministro do Meio Ambiente,
Ricardo Salles – em sua (tragicômica) frase: “ir passando a boiada”1
–, como também dialoga intensamente com o Chefe do Poder Exe-
cutivo federal, o Presidente da República, Jair Bolsonaro. Em uma
cerimônia de formatura de novos diplomatas do Instituto Rio Bran-
co – IRB, referida autoridade foi taxativa ao afirmar que nada está
queimando na Amazônia, assim como sequer há um hectare de selva
devastada2. Manifestação, esta, que acontece às vésperas de uma via-
gem em que o vice-Presidente Hamilton Mourão pretende levar em-
baixadores de dez países à Amazônia3, tendo em vista contundente

1. “Precisa ter um esforço nosso aqui, enquanto estamos nesse momento de tranquilidade
no aspecto de cobertura de imprensa, porque só se fala de covid, e ir passando a boiada, e
mudando todo o regramento (ambiental), e simplificando normas”, conforme reunião mi-
nisterial havida em 22 de abril de 2020, a qual foi tornada pública por meio de decisão do
ministro Celso de Mello, relator originário no Inquérito n. 4831, no Supremo Tribunal Fe-
deral – STF. SHALDERS, André. Passando a boiada: 5 momentos nos quais Ricardo Salles
afrouxou regras ambientais. BBC News, Brasília, 1 out. 2020. Brasil. Disponível em: <https://
www.bbc.com/portuguese/brasil-54364652>. Acesso em: 29 out. 2020.
2. Nas palavras do Presidente da República, “estamos ultimando uma viagem Manaus-Boa
Vista, onde convidaremos diplomatas de outros países para mostrar naquela curta viagem
de uma hora e meia, que não verão em nossa floresta amazônica nada queimando ou sequer
um hectare de selva devastada”. In: MAZUI, Guilherme. Bolsonaro diz que não há ‘sequer
um hectare de selva devastada’ na Amazônia. G1, Brasília, 22 out. 2020. Política. Disponível
em: <https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/22/bolsonaro-diz-que-nao-ha-se-
quer-um-hectare-de-selva-devastada-na-amazonia.ghtml>. Acesso em: 31 out. 2020.
3. “Faz parte da estratégia comercial dos países europeus essa questão da cadeia de supri-
mento, isso é uma barreira. Existem barreiras tarifárias e não tarifárias, então, isso a gente
tem que fazer a negociação, não só comercial, mas diplomática, como a ambiental também”.
In: GOMES, Pedro Henrique. Mourão e ministros devem levar embaixadores de 10 países à
Amazônia na próxima semana. G1, Brasília, 29 out. 2020. Política. Disponível em: <https://
g1.globo.com/politica/noticia/2020/10/29/mourao-e-ministros-devem-levar-embaixado-
res-de-10-paises-a-amazonia-na-proxima-semana.ghtml>. Acesso em: 31 out. 2020.

273
carta aberta enviada pelos países que integram a Parceria das Declara-
ções de Amsterdã4 ao Brasil, nela constando de forma expressa as di-
versas preocupações com a Amazônia e o próprio futuro das relações
bilaterais ou mesmo multilaterais (FRAZÃO: 2020).
Parece que no Brasil de hoje, assim como de outrora, especialmente
na Administração Pública federal, seja na pessoa da liderança da pasta
ambiental, seja no personagem do Chefe do Poder Executivo, ultrapas-
sou-se (em muito) na monocultura da mente5, adentrando-se em uma
verdadeira psicose, perturbação que impede alguns indivíduos do alto
escalão (ainda que não só eles) de perceberem realidade distinta daquela
colocada pelo mercado de commodities e ampliando setores negacio-
nistas6. Fato é – e os números são muitos – que se está diante de uma
crise de civilização, a qual, inevitavelmente, reflete uma (e sobre uma)
crise ambiental, o que cada vez mais clama por uma nova racionalidade,

4. “A Parceria das Declarações de Amsterdã consiste em sete países europeus comprome-


tidos em eliminar o desflorestamento das cadeias de suprimento agrícolas à Europa: Ale-
manha (atualmente na presidência), Dinamarca, França, Itália, Holanda, Noruega, Reino
Unido; Bélgica associa-se à carta aberta”. KLÖCKNER, Julia; MÜLLER, Gerd. Carta aberta
ao vice-Presidente Mourão da Parceria das Declarações de Amsterdã. Representações da Repú-
blica Federal da Alemanha no Brasil. Disponível em: <https://brasil.diplo.de/blob/2385172/
60916265ca79223dbcec6d341826b220/carta-aberta---amsterdam-declaration-partnership--a-
dp--data.pdf>. Acesso em: 2 nov. 2020.
5. Segundo Vandana Shiva, “[t]al como a roca [de fiar], tornada retrógrada e obsoleta pela
industrialização, as sementes nativas seriam obsoletas diante das novas tecnologias de pro-
dução de sementes, expressões do progresso. O desenvolvimento milenar das variedades
nativas, pela seleção natural e humana, seria primitivo. É a passagem dos processos ecológi-
cos de reprodução para os processos tecnológicos de produção que está por baixo tanto do
problema do empobrecimento dos agricultores quanto da erosão genética. In: Monoculturas
da mente: perspectivas da biodiversidade e da biotecnologia. Tradução de Dinah de Abreu
Azevedo. São Paulo: Gaia, 2003, p. 172.
6. Pensamento esse que é fortemente permeado pelos ensinamentos de Bertrand Maria José
de Orléans e Bragança, materialização dessa patologia em forma de livro, conforme revela a
seguinte passagem: “As discussões ambientais viraram debates sobre dogmas de fé, e quem
contrariar as ecoverdades será condenado à fogueira. Se bem que essa nova inquisição, a do
aquecimento global, não possa enviar ninguém para a fogueira, porque a lenha e o nosso
corpo são feitos de carbono e queimá-los liberará gases que vão incrementar o aquecimento
global”. In: Psicose ambientalista: os bastidores do ecoterrorismo para implantar uma religião
ecológica, igualitária e anticristã. São Paulo: IPCO, 2012, p. 43.

274
uma racionalidade efetivamente democrática – e fortemente ambiental
–, tendo como foco o diálogo entre as mais diversas formas de vida. A
possível solução para o cenário atual não está na pós-modernidade, que
mais reflete um sintoma, sim em um novo acordo, uma nova Constitui-
ção, que registre a emancipação coletiva (associação entre humanos e
não-humanos), o que implica tanto reconhecer quanto revisitar pensa-
mento e ação diante do evidente processo de desconstitucionalização da
constitucionalização em matéria ambiental no Brasil.
Os ataques à temática ambiental no Brasil (ainda mais em uma ótica
constitucional) são massivos, conforme inúmeros precedentes do Su-
premo Tribunal Federal – STF, tais como, por exemplo, importação de
pneus usados, amianto, Código Florestal, outorga de direito de uso de
recursos hídricos, espaços territoriais especialmente protegidos, reser-
va legal, cenário este que se agravou com a pandemia do coronavírus,
causador da COVID-19, afetando a saúde e a vida dos povos indígenas,
assim como políticas públicas ambientais estagnadas (Fundo Amazônia
e Fundo Clima). O presente trabalho envolve, portanto, uma pesquisa
descritiva-exploratória, pois, de um lado, visa identificar características,
e, de outro, objetiva ampliar o entendimento acerca de um específico
e determinado tema – a desconstitucionalização da política ambiental
como um sintoma do neopopulismo –, reunindo informações pretéritas
sobre o assunto para revisitar e refinar a questão pesquisada (GIL: 2002).

1. CONSTITUCIONALIZAÇÃO DA TEMÁTICA AM-


BIENTAL NO BRASIL – CONSTITUIÇÃO DE 1988

O termo Estado Ambiental ganhou notoriedade nas palavras de


Michel Kloepfer, mais especificamente no texto intitulado A cami-
nho do Estado Ambiental?7. Trata-se de trabalho elaborado em 1989,

7. Michel Kloepfer reconhece, ainda que em uma nota de rodapé (n. 11), que o termo “Es-
tado Ambiental”, Umweltstaat, foi originariamente cunhado pelo jurista austríaco Norberto
Eimmer, no ano de 1976.

275
oportunidade em que o referido autor alemão direciona seus ar-
gumentos às transformações que estariam ocorrendo por meio da
proteção ambiental e especialmente sob a perspectiva da ciência
jurídica e, por conseguinte, recairiam sobre o sistema político e
econômico. Logo no principiar das suas reflexões, a clássica teoria
dos três elementos formadores do Estado é questionada, tendo em
vista, segundo seu entendimento, que “[u]m Estado apto a subsistir
precisa de mais do que um povo, um poder e um território estatal.
Ele necessita de um meio ambiente no e em torno do seu território
que não ponha em risco a continuidade de sua existência” (KLOEP-
FER: 1989).
Nessa linha de ênfase, uma das obras que deve e merece al-
guns grifos no que tange à temática ambiental, especialmente por
conferir ao assunto uma perspectiva constitucional, é o trabalho
Direito ambiental constitucional, de autoria de José Afonso da Silva,
obra publicada pouco tempo após promulgada a atual Constitui-
ção (1994)8. Segundo entendimento do professor da Universidade
de São Paulo – USP, o ambiental (meio ambiente) deve ser a inte-
ração (e o resultado) “do conjunto dos elementos naturais, arti-
ficiais e culturais, que propiciem o desenvolvimento equilibrado
da vida em todas as suas formas”, fazendo com que suas reflexões
se inclinem para uma “concepção unitária do ambiente”, logo,
tratando-se de uma visão que aproxima e interconecta recursos
naturais e culturais, sem desprezar o papel e a importância do
homem nessa configuração, ou mesmo reconfiguração (SILVA:
2000, p. 20).

8. Vale também referir que a obra se correlaciona a outra obra do autor e que o consagrou
no cenário acadêmico, Curso de direito constitucional positivo, onde fica melhor expressa sua
noção impositiva de tutela do homem sobre o ambiente, e mesmo sobre o conflito socioam-
biental, ao definir liberdade: “o homem se torna cada vez mais livre na medida em que am-
plia seu domínio sobre a natureza e sobre as relações sociais. O homem domina a necessi-
dade na medida em que amplia seus conhecimentos sobre a natureza e suas leis objetivas”
(SILVA: 1998, p. 234).

276
Direcionando esse olhar à Constituição da República Federativa
do Brasil promulgada no dia 5 outubro de 1988, a expressão meio am-
biente pode ser encontrada de forma explicita dezoito vezes, dentre
as quais uma nos direitos e garantias fundamentais, três na organi-
zação do Estado, uma nas funções essenciais à justiça, três na ordem
econômica e financeira e dez na ordem social, pontualmente no capí-
tulo reservado ao meio ambiente, com oito inserções, conforme qua-
dro que abaixo segue, senão vejamos.

Quadro 1 – Meio ambiente explícito na Constituição 1988:

Palavra Título: Capítulo: Dispositivo:


de busca:
Meio ambiente: Dos direitos e garan- Dos direitos e deveres indivi- Artigo 5º,
tias fundamentais duais e coletivos LXXIII.
Da organização Da organização político-ad- Artigo 23, VI.
do Estado ministrativa Artigo 24, VI.
Artigo
24, VIII.
Da organização dos Das funções essenciais à Artigo 129, III.
poderes justiça
Da ordem econômi- Dos princípios gerais da Artigo 170, VI.
ca e financeira atividade econômica Artigo
174, §3º.
Da política agrícola e fundiá- Artigo 186, II.
ria e da reforma agrária
Da ordem social Da seguridade social Artigo
200, VIII.
Da comunicação social Artigo 220,
§3º, II.
Do meio ambiente Artigo 225.

Nessa perspectiva, a expressão – meio ambiente – se insere em


cinco Títulos, oito Capítulos, distribuindo-se em onze artigos, com
especial concentração no artigo 225, caput, parágrafos e incisos, da
Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, o qual deve

277
ser lido na íntegra, sendo vedada, segundo preceitua Eros Roberto
Grau (1997, p. 176-177), uma leitura em tiras (ou aos pedaços) dos
dispositivos constitucionais, pois a interpretação de qualquer dispo-
sitivo constitucional impõe ao intérprete a proteção da Constituição.
Tendo-se como foco os Capítulos constitucionais, ao menos para os
fins de alguns delineamentos, o primeiro deles envolve direitos e de-
veres individuais e coletivos, portanto, fundamentais. O artigo 5º, da
CRFB/88, não só é taxativo ao afirmar que “todos são iguais perante
a lei” – garantias formais –, ele vai além ao pretender deixar claro
que não pode haver distinção de qualquer natureza seja aos brasilei-
ros seja aos estrangeiros, sendo-lhes garantida a “inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à proprieda-
de” – garantias substanciais –, o que deve ser observado “nos termos
seguintes” – incisos, parágrafos e alíneas relacionados ao caput do
referido dispositivo constitucional.
Segundo o inciso LXXII, do artigo 5º, todo e qualquer cidadão –
pessoa física, nacional (nata ou naturalizada), no pleno exercício dos
seus direitos políticos – é parte legítima para propor ação popular que
tenha como pedido e causa de pedir a anulação de ato lesivo ao patri-
mônio público ou de entidade de que o Estado participe, consistindo
em afronta à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patri-
mônio histórico e cultural. Destaque-se que o autor da ação popular,
salvo comprovada má-fé, será isento das custas judiciais e do ônus su-
cumbencial, medida constitucional que visa preservar e garantir uma
maior participação do povo nas decisões proferidas pelo Poder Pú-
blico – trata-se de controle social da Administração Pública exercido
pelos cidadãos brasileiros.
Em matéria de organização político-administrativa, os dispositivos
que tratam do meio ambiente envolvem, de um lado, competência
comum para que todos os entes (União, Estados, Distrito Federal
e Municípios) protejam o meio ambiente e combatam a poluição
em qualquer de suas formas – exercida por todos, visa materializar

278
atividade ou sua incumbência9 –, e, de outro, competência concor-
rente10 para que União, Estados e Distrito Federal legislem acerca da
proteção do meio ambiente e da responsabilidade por danos ao meio
ambiente – compete à União editar normas gerais, o que não exclui
competência suplementar dos Estados, ou mesmo seu exercício ple-
no até superveniência de lei federal.
No que tange às funções essenciais à justiça, tem-se o artigo 129,
inciso III, no qual consta ser atribuição institucional do Ministério Pú-
blico brasileiro o manejo de inquérito civil e ação civil pública visan-
do a proteção do meio ambiente. Trata-se de instituição permanente
e essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa
da ordem pública, do regime democrático e dos interesses sociais e
individuais indisponíveis. Registre-se, ainda, ser o Ministério Público
brasileiro órgão singular e sem precedentes históricos (ao menos até
o presente momento), tendo sido ele resultado de um longo percurso
evolutivo, especialmente dos debates ocorridos durante a Assembleia
Nacional Constituinte – ANC (LOPES: 2000), o que lhe conferiu in-
dependência, bem como lhe facultou apoio à expansão da cidadania,
visando a defesa do Estado Democrático de Direito (SILVA e LAGO:
2015, p. 47-91).
Nos princípios gerais da atividade econômica, duas são as passa-
gens em que o meio ambiente pode ser encontrado. A primeira, afir-
ma que em matéria de ordem econômica, deve-se assegurar a todos

9. “São aquelas às quais não corresponde a edição de uma norma jurídica, tratando-se da
materialização de uma atividade ou incumbência pública definida pela Constituição. Podem
ser exclusivas ou comuns. (...) Competência comum é aquela exercida por todos os entes
federativos do País (art. 23)”. In: LOPES, Júlio Aurélio Vianna. Lições de direito constitucional.
Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 108.
10. “A competência legislativa concorrente institui um regime de competência solidária em
que não só um ente político poderá editar leis para complementar a legislação de âmbito
nacional e, se for o caso, estadual em prol das suas necessidades, como também a omissão
legislativa de um ente político autorizará que os demais legislem de forma plena sobre a ma-
téria”. In: LAGO, Laone. Planos estaduais de resíduos sólidos: política pública, gestão associada
e sustentabilidade. Belo Horizonte: Fórum, 2017, p. 81.

279
a existência digna, o que inclui a defesa do meio ambiente, inclusive
mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental
dos produtos e serviços, assim como seus processos de elaboração e
prestação, o que implica em considerar (atualmente) que homem e
atividade econômica estão limitados diante das perturbações de um
ambiente desequilibrado. A segunda passagem está diretamente vol-
tada à atividade garimpeira em cooperativas, a qual necessita ser favo-
recida, porém, deve-se levar em conta a proteção do meio ambiente,
situação que se equilibra no limite entre o humano (dignidade da pes-
soa humana) e a natureza (seus inevitáveis impactos).
Ainda na ordem econômica e financeira, o meio ambiente tam-
bém é encontrado no título reservado às políticas públicas agrícolas e
fundiárias, inclusive da reforma agrária, oportunidade em que o texto
constitucional é taxativo ao afirmar que a função social da proprieda-
de rural somente será cumprida quando, simultaneamente, estiverem
presentes o aproveitamento racional e adequado da terra, as relações
de trabalho nela existentes estejam em perfeita consonância com a
legislação vigente, o bem-estar dos proprietários e dos trabalhadores
deve ser a tônica, bem como, e muito especialmente, a utilização ade-
quada dos recursos naturais disponíveis e a preservação do meio am-
biente consiste em exigência inafastável, pois inerente à própria sus-
tentabilidade do ambiente produtivo, sob pena de não suportar sua
demanda, podendo inclusive colapsar. Registre-se que ao contrário da
função social da propriedade urbana, a função social da propriedade
rural não representa um conceito aberto, muito menos indetermina-
do, pois a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 foi
taxativa ao determinar (e exigir) a presença e o cumprimento simul-
tâneo dos cinco requisitos constitucionalmente estabelecidos (ALBU-
QUERQUE: 2012).
Na ordem social, por sua vez, mais especificamente na seguri-
dade social, ao tratar do Sistema Único de Saúde – SUS, consta de
sua competência, dentre outras, a colaboração na proteção do meio

280
ambiente, nele compreendendo o meio ambiente do trabalho. E em
tempos de pandemia, essa previsão demonstra a forte abrangência de
suas premissas. No capítulo reservado à comunicação social, garante-
-se expressamente que a manifestação, sob qualquer forma, processo
ou veículo não sofrerá restrição, desde que observe o que disposto
no texto constitucional, o qual estabelece ser de competência de lei
federal o estabelecimento de meios que protejam a pessoa e a família
de produtos, práticas e serviços que possam ser nocivos à saúde e ao
meio ambiente.
O último (e mais relevante) é o Capítulo reservado ao meio am-
biente – Do meio ambiente –, composto pelo próprio artigo 225, da
CRFB/88, o qual integra a ordem social. Seu caput é inconteste, dei-
xando claro que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamen-
te equilibrado”, o qual deve ser entendido como bem de uso comum
do povo, além de “essencial à qualidade de vida”, devendo ser defen-
dido e preservado para as presentes e futuras gerações tanto pelo Po-
der Público quanto pela coletividade. O direito ao meio ambiente,
como objeto tutelado, não é tanto aos seus elementos constitutivos,
sim a qualidade do meio ambiente, em função da qualidade de vida,
isto é, “pode-se dizer [com isso] que há dois objetos tutelados, no
caso: um imediato – que é a qualidade do meio ambiente – e outro
mediato – que é a saúde, o bem-estar e a segurança da população [que
é a qualidade de vida]” (SILVA: 2007, p. 836).
No parágrafo 1º, do artigo 225, o legislador elencou série de con-
siderações prospectivas para o então modelo de desenvolvimento,
ao qual se colocavam limites qualitativos, incumbindo ao poder pú-
blico: “I - preservar e restaurar os processos ecológicos essenciais e
prover o manejo ecológico das espécies e ecossistemas”, vale dizer,
ecossistemas e espécies não podem dar lugar a externalidades nega-
tivas do processo de ampliação da agropecuária, por exemplo; “II -
preservar a diversidade e a integridade do patrimônio genético do
País e fiscalizar as entidades dedicadas à pesquisa e manipulação de

281
material genético”, estabelecendo necessidade de controle e gestão
mesmo em face das patentes relativas ao material genética, sua pira-
taria e exploração; “III - definir, em todas as unidades da Federação,
espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente pro-
tegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através
de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos
atributos que justifiquem sua proteção” – política que veio a ser estru-
turada pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC),
através da Lei 9.985/2000, substanciando a maior política ambiental
brasileira stricto sensu; “IV - exigir, na forma da lei, para instalação de
obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degrada-
ção do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se
dará publicidade” fornecendo substancia aos estudos já então apon-
tados pelo Código Florestal da época (Lei 4.771/1965), que passam
a ganhar maior roupagem, viabilizados em exigências de Estudos de
Impacto Ambiental (EIA) e seus correlatos Relatórios de Impacto ao
Meio Ambiente (RIMA), sua versão mais didática, contando ainda
com elementos subsidiários, como as Resoluções do Conselho Nacio-
nal de Meio Ambiente (CONAMA) previsto pela Política Nacional do
Meio Ambiente, Lei 6.938/1981, recepcionada pela CF 88, e ainda sua
conjugação aos elementos da ISO 14000, dentre outros; “V - controlar
a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e
substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o
meio ambiente”, ou seja, a reestruturação da política contra a polui-
ção e elaborando estética administra preventiva ao risco; “VI - promo-
ver a educação ambiental em todos os níveis de ensino e a conscien-
tização pública para a preservação do meio ambiente” – valorizando
culturalmente a perspectiva ambiental; “VII - proteger a fauna e a flo-
ra, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua
função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam
os animais a crueldade” – dando o primeiro passo na direção de um
Direito próprio dos animais e a um direito próprio da Natureza.

282
Os demais parágrafos do artigo 225 apontam largo espectro, vejamos:
“§ 2º Aquele que explorar recursos minerais fica obrigado a recuperar o
meio ambiente degradado, de acordo com solução técnica exigida pelo
órgão público competente, na forma da lei” – apontando obrigações para
uma atividade em ampliação de escala, a qual já foi responsável nesse in-
terim pelos mais graves crimes ambientais cometidos no país e talvez no
planeta, com desastres como os de Mariana e de Brumadinho, em Mi-
nas Gerais; “§ 3º As condutas e atividades consideradas lesivas ao meio
ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções
penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar
os danos causados” – vinculando as ações lesivas ao ambiente ao prin-
cípio da responsabilidade civil direta; “§ 4º A Floresta Amazônica brasi-
leira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a
Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na for-
ma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio
ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais” ampliando o
leque de áreas protegidas, para além das unidades de conservação pre-
vistas no SUC e das áreas de preservação permanente previstas no Códi-
go Florestal (Lei 12.651/2012); “§ 5º São indisponíveis as terras devolutas
ou arrecadadas pelos Estados, por ações discriminatórias, necessárias à
proteção dos ecossistemas naturais”, vale dizer não poderá haver perdão
administrativo ao dano ambiental, que independe de culpa; “§ 6º As usi-
nas que operem com reator nuclear deverão ter sua localização definida
em lei federal, sem o que não poderão ser instaladas”, em alerta a um
modelo energética o qual, mesmo francamente questionado em diversos
países, vinha assumindo foros de investimento mais amplo no Brasil; “ §
7º Para fins do disposto na parte final do inciso VII do § 1º deste artigo,
não se consideram cruéis as práticas desportivas que utilizem animais,
desde que sejam manifestações culturais, conforme o § 1º do art. 215
desta Constituição Federal, registradas como bem de natureza imaterial
integrante do patrimônio cultural brasileiro, devendo ser regulamenta-
das por lei específica que assegure o bem-estar dos animais envolvidos’

283
criando aqui forte conflito com o direito animal insurgente e servindo,
na prática tal parágrafo como declaração antecipa de constitucionalidade
para esses casos polêmicos, como a indicar a paulatina desativação dessas
práticas, pela ampliação da educação ambiental igualmente prevista.
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 é, por-
tanto, e sem sombra de dúvidas, um verdadeiro marco na temática
ambiental brasileira, pois a esse assunto dedica inúmeras passagens,
assim como um capítulo inteiro à proteção (defesa e preservação)
ambiental, tendo como foco erigir bases para uma temática ambien-
tal equilibrada (ambiente sadio) como um direto fundamental do in-
divíduo. Operou-se, com a constitucionalização do ambiental, uma
quebra de paradigma do ordenamento jurídico, implicando em uma
“virada ecológica de índole jurídico-constitucional”, verdadeira “con-
sagração da proteção constitucional do ambiente no âmbito da Cons-
tituição”, inovando-se com a “centralidade que os valores e direitos
ecológicos passaram a ocupar no ordenamento jurídico brasileiro”
(SARLET e FENSTERSEIFER: 2014, p. 240-241).
Importante ainda ressaltar que o contexto “ecológico” que emol-
durou a base constitucional ambiental brasileira, permeou-se de pers-
pectivas socioambientais e a hermenêutica constitucional passou a
conjugar diversos elementos da ordem social e cultural constitucio-
nais, em especial os direitos indígenas, quilombolas e de demais povos
e comunidades tradicionais, assim como a qualidade de vida nas cida-
des, por via de consequentes planos diretores municipais, enquanto
temas imprescindíveis e em constante correlação.

2. DESCONSTITUCIONALIZAÇÃO DA TEMÁTICA AM-


BIENTAL ÀS PORTAS DO STF – FRATURA EXPOSTA

A temática ambiental é assunto que rotineiramente bate às portas do


Poder Judiciário brasileiro, especialmente do seu órgão de cúpula, o
Supremo Tribunal Federal – STF. Não poderia ser diferente, tendo

284
em vista versar sobre questão de caráter humanitário, cultural, social,
econômico, dentre inúmeras (e múltiplas) outras perspectivas ine-
rentes à sua complexidade. Ademais – em uma ótica jurídica sobre o
ambiental –, trata-se de tema que restou constitucionalizado, confor-
me texto promulgado após debates ocorridos durante o período da
Assembleia Nacional Constituinte – ANC (1987-88). Referida ascen-
são constitucional, reflete fenômeno político-normativo no qual as
Constituições deixaram de ser vistas pura e simplesmente como ins-
trumentos de estruturação e organização do Estado, tornando-se ver-
dadeiros centros de aplicabilidade e de efetividade dos direitos e das
garantias fundamentais. A Constituição ganhou (e incorporou) força
normativa (HESSE, 1991), o que significa dizer que a Carta Magna
ascendeu ao ápice do ordenamento jurídico, estabelecendo-se como
“Constituição-garantia” (KELSEN: 2005), responsável essencialmen-
te por limitar o Estado, fixando as condições de exercício do seu po-
der, assim como delimitando a totalidade do ordenamento jurídico.
O movimento de fortalecimento constitucional avançou no tempo,
o que ensejou por deslocar a Constituição do ápice para o centro do
ordenamento, tornando-a verdadeiro núcleo, espécie de “Constitui-
ção-programa” (CANOTILHO: 2001).
Fato é que existe um histórico (com avanços e retrocessos) acer-
ca da temática ambiental no STF, conforme exemplificativos prece-
dentes envolvendo desde a temática da importação de pneus usados
(ADPF n. 101), a polêmica (e o perigo) do amianto (ADI n. 4.066,
ADI n. 3.937, ADI n. 3.406), até o Código Florestal (ADI n. 4.901),
assim como o Seguro Obrigatório de Danos Pessoais Causados por
Veículos Automotores de Vias Terrestres, ou por sua Carga, a Pes-
soas Transportadas ou Não – DPVAT (ADI n. 4.350), além da dispen-
sa de outorga de direito de uso de recursos hídricos (ADI n. 5.016),
espaços territoriais especialmente protegidos e reserva legal (ADI n.
4.717), bem como edificação por particulares em Áreas de Preserva-
ção Permanente – APP (ADI n. 4.988). Durante a atual pandemia do

285
coronavírus, causador da COVID-19, a temática ambiental ganhou
ainda mais escala, podendo-se grifar, também de forma exemplificati-
va, a imprescritibilidade por dano ambiental (RE n. 654.833), a saúde
e a vida dos povos indígenas em face da COVID-19 (ADPF n. 709), a
omissão inconstitucional na execução do Fundo Amazônia (ADO n.
59), a omissão também inconstitucional na execução do Fundo Clima
(ADO n. 60, recebida como ADPF n. 708) e a saúde, a vida e o am-
biente de grupos vulneráveis (ADI n. 6421).
Conferindo-se – por todas – um olhar mais atento à Ação Dire-
ta de Inconstitucionalidade por Omissão – ADO n. 59, a qual trata
do Fundo Amazônia, assim como à Arguição de Descumprimento
de Preceito Fundamental – ADPF n. 708, a qual se volta ao Fundo
Clima, percebe-se haver flagrante omissão ou mesmo ação incons-
titucional da União à adoção (ou não adoção) de providências ad-
ministrativas por parte da Administração Pública federal quanto à
implementação das obrigações de proteção da Amazônia Legal, o
que restaria por afetar diretamente (e de forma intencional) a im-
plementação (ou a continuidade) de políticas públicas ambientais
necessárias à adequada e efetiva proteção e preservação do meio
ambiente daquele bioma. Referido cenário omissivo (e também co-
missivo) parece refletir política “oficial” de governo atualmente em
curso, o que nitidamente afrontaria o direito de todos os brasileiros
(quiçá do próprio planeta Terra) a um ambiente saudável, conduta
que colide diretamente (e frontalmente) com o teor do caput, do
artigo 225, da CRFB/88, no qual consta insculpido que todos têm
direito a um meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de
uso comum do povo e essencial à qualidade de vida, obrigação que
se impõe ao Poder Público e à coletividade, visando defender e pre-
servar para as gerações atuais e futuras.
As demandas identificadas – para ficar apenas nessas últimas duas
–, refletem (em certa medida) ações e omissões persistentes, as quais
recaem sobre as mais diversas e variadas autoridades, assim como

286
ensejam violações massivas a direitos fundamentais, o que – ao que
parece – levaria (ou configuraria) a existência de um estado de coisas
inconstitucionais em matéria ambiental. Referido estado de coisas
não indica (ou reflete) um ato específico do Poder Público, pelo con-
trário, está-se diante de um conjunto de ações e omissões notórias,
as quais configuram um estado inconstitucional generalizado por fa-
lha na estrutura do próprio sistema. Em outras palavras, vai-se além
do direito de todos a um meio ambiente saudável, produzindo refle-
xos sobre um amplo conjunto de outros direitos fundamentais, tais
como, por exemplo, direito à vida (artigo 5º, CRFB/88), à saúde (ar-
tigo 6º, CRFB/88), à segurança alimentar e à água potável (artigo 6º,
CRFB/88), à moradia, ao trabalho (artigo 7º, CRFB/88), podendo,
ainda, impactar o direito à identidade cultural, o modo de vida e a
subsistência de povos indígenas, quilombolas e demais comunidades
tradicionais (artigo 23, inciso III, artigo 215, caput e §1º e artigo 216
c/c artigo 231, CRFB/88 e artigo 68, ADCT).
Nesse sentido, e apenas como exercício pontual, poder-se-ia cote-
jar os mesmos pontos apreciados no quadro de referências constitu-
cionais ambientais e relacionar todas as iniciativas do governo federal
para desconstruir a política ambiental estrutural, seja substituindo
gestores por outros com inclinação negacionista, desvinculando ver-
bas, deixando de coibir incêndios, facilitando o comércio ilegal de ma-
deiras, retirando fiscalizações, deixando de tomar providências com
poluição na costa brasileira perdoando multas a desmatadores. É um
governo de tropeiros, passando a boiada, na certeza que o Judiciário
lento, não há de alcançar a manada.

3. PERSPECTIVA AMBIENTAL EMANCIPATÓRIA – AS-


SOCIAÇÃO ENTRE HUMANOS E NÃO-HUMANOS

Segundo Manuel Castells (1999) a qualidade de vida ou mesmo bus-


car uma vida ecológica, são ideias que (especialmente, ainda que

287
não somente) remontam ao século XIX, só que “restritas às elites
ilustradas”, espécie de aristocracia que se encontrava esmagada pela
industrialização. Foi só nos anos 1960 – pontua o autor – que “surgiu
um movimento ambientalista de massas, entre as classes populares
e com base na opinião pública, que então se espalhou rapidamente
para os quatro cantos do mundo” (CASTELLS: 1999, p. 154). Refe-
rido fenômeno, ao qual o autor reconheceu e o chamou de “o ver-
dejar do ser”, envolve “todas as formas de comportamento coletivo
que, tanto em seus discursos como em sua prática, visam corrigir
formas destrutivas de relacionamento entre homem e seu ambiente
natural” (CASTELLS: 1999, p. 143), estabelecendo (e fixando), com
isso, as bases de resistência à lógica estrutural e institucional então
dominante.
Manuel Castells se volta às expressões de identidade coletiva,
compreendendo-as como movimentos sociais, os quais – segundo
conceitua – podem ser entendidos como “ações coletivas com um
determinado propósito cujo resultado, tanto em caso de sucesso
como de fracasso, transforma os valores e instituições da sociedade”
(CASTELLS: 1999, p. 20). Restringindo-se ao ambientalismo, per-
cebe-se que Manuel Castells traça uma trajetória histórica, na qual
constrói uma tipologia dos movimentos ambientalistas, apoiando-os
sob algumas bases, destacando que o discurso ambientalista perpassa
tanto pela relação estreita e ambígua com a ciência e a tecnologia
quanto pela definição histórica do espaço enquanto expressão fun-
damental e material da sociedade, assim como pelo projeto de uma
temporalidade nova e revolucionária. Não é por outra razão que o
autor insiste no fato de ser “por meio dessas lutas fundamentais so-
bre a apropriação da ciência, do espaço e do tempo, [que] os ecolo-
gistas inspiram a criação de uma nova identidade, uma identidade
biológica, uma cultura da espécie humana como componente da na-
tureza” (CASTELLS: 1999, p. 159).

288
3.1. ESVERDEANDO A RACIONALIDADE – QUALIDA-
DE OU ESTADO DE SER AMBIENTAL

Vive-se uma crise de civilização, que, inevitavelmente, reflete uma


crise ambiental, produzida pelo desconhecimento do conhecimento,
pois este não representa mais a realidade, “pelo contrário, constrói
uma hiper-realidade na qual se vê refletido” (LEFF: 2012, p. 57-58), o
que exige uma nova racionalidade, tendo como foco o diálogo de
seres e saberes. Ainda que referido processo se encontre em fase de
construção (e consolidação), inúmeros e positivos são os seus resulta-
dos, pois no passado a emergência de uma racionalidade impulsiona-
da pelo iluminismo foi a tônica, movimento embasado na ciência (no
singular mesmo) como caminho para o máximo desenvolvimento do
homem, fazendo da natureza algo (ou alguma coisa) à disposição, e
que deveria ser tanto domada quanto domesticada. Esse pensar res-
tou por separar o homem da natureza, tornando-a um ambiente a ser
conquistado, explorado, pois à disposição e infinito, o que resultou na
sua máxima separação.
Com o passar do tempo, entrou-se em um compasso de aproxi-
mação, tendo em vista a ascensão de novos paradigmas. Muito do
que restou sustentado durante a modernidade – se é que algum dia
fomos realmente modernos (LATOUR: 2013) – consolidou a ciência
(tradicional) da época, especialmente apoiada nos firmes argumen-
tos em prol da simplicidade, da estabilidade e da objetividade, refle-
tindo o fato de que as questões sociais seriam passíveis de análise,
pois permeadas por relações causais lineares, além de serem elas for-
temente determináveis, previsíveis, controláveis e reversíveis, assim
como marcadamente subjetivas. Ocorre que essas bem estruturadas
sustentações estão ruindo, o que marca a ascensão da complexidade
(conexão integral), da instabilidade (do ser ao tornar-se) e da inter-
subjetividade (construção conjunta da realidade) - (VASCONCEL-
LOS: 2013, p. 101-146).

289
A racionalidade ambiental está em processo de formação, indo
além da simples confrontação com a racionalidade econômica já
existente, ambiente que emerge do campo das externalidades das
quais foi lançada pela racionalidade econômica clássica, embasada e
protegida pelo egocentrismo das ciências disciplinares, assim como
aos seus serviços. Em outras palavras – segundo visão persisten-
te de Enrique Leff –, pode-se perceber e entender que “a questão
ambiental veio problematizar as teorias científicas e os métodos de
investigação para compreender uma realidade em visa de comple-
xidade que absorve a capacidade de compreensão dos paradigmas
estabelecidos” (LEFF: 2006, p. 405), devendo ser ela compreendida
como “um problema eminentemente social, gerado por um conjun-
to de processos econômicos, políticos, jurídicos, sociais e culturais”
(LEFF: 2006, p. 241).
Sob o pensamento de Enrique Leff, reconhece-se que a racio-
nalidade econômica clássica, historicamente enraizada nos mais
diversos e variados campos da sociedade e do próprio Estado, in-
corpora-se às bases normativas oficialmente postas (e expostas),
caracterizando os seus sujeitos de direito a partir de suas relações
com os objetos. É nesse sentido – por exemplo –, que a norma jurí-
dica que deveria tutelar a tudo e a todos em sociedade, estabelecen-
do-se uma estrutura de direito para além da norma, sim da justiça,
acaba por ser determinada a partir de padrões proprietários e con-
sumeristas abstratos, os quais fazem com que a proteção do direito
reste apenas existente para os sujeitos que possuam patrimônio ou
potencial aquisitivo. Uma releitura é necessária, exigindo-se novas
configurações com a natureza a partir do contrato natural defendi-
do por Michael Serres (1991), por exemplo, sob a perspectiva tan-
to de um pensamento complexo quanto permeado por uma nova
racionalidade, uma racionalidade obrigatoriamente (e necessaria-
mente) ambiental.

290
3.2. ESVERDEADO O COLETIVO – MODERNIDADE
INVENTADA

A separação entre ciência (técnica) e política (sociedade) foi uma in-


venção que marcou a (suposta) modernidade, segmentando-se, de
um lado, o natural (mundo mediado pelo laboratório), e, de outro, o
social (mundo dissociado dos cidadãos, marcado pelo contrato social,
o qual confere ao Leviatã poder soberano e sem instâncias superio-
res), conforme, pensado e estruturado por cientistas naturais como
Robert Boyle (1627-1691) e Thomas Hobbes (1588-1679). Sob esse
ponto de partida (e perspectiva), Bruno Latour (2013) lança uma críti-
ca contundente sobre as bases em que se apoia a modernidade, a qual
– segundo o autor – nunca funcionou de acordo com a grande divisão
que se funda seus sistemas de representação do mundo, isto é, uma
separação radical entre a natureza (ciência), de um lado, e a cultura
(política), de outro.
O cientista Robert Boyle – ao não fazer uso da lógica, da matemá-
tica e nem da retórica, referências à época tanto confiáveis quanto se-
guras e tradicionais – vai buscar suas bases no até então ridicularizado
método de argumentação consubstanciado na opinião, fundando-se
sobre uma “metafísica parajurídica”, situação em que “testemunhas
confiáveis, bem-aventuradas e sinceras reunidas em torno da cena da
ação podem atestar a existência de um fato (...), mesmo se não conhe-
cerem sua verdadeira natureza” (LATOUR: 2013, p. 23), restando por
inventar o estilo empírico (estilo utilizado até os dias atuais), oportu-
nidade em que não se buscava propriamente a opinião dos envolvi-
dos, sim (e simplesmente) a observação do fenômeno artificialmente
produzido em um ambiente fechado e protegido (abstrato e desco-
nectado das variáveis externas e reais), qual seja, o laboratório.
O cientista político Thomas Hobbes, por sua vez, posicionou-se
por desacreditar por completo o laboratório de Robert Boyle, vol-
tando-se seu foco ao corpo político, tido enquanto resultado amplia-
do do estudo fisiológico e enquadrado em matizes da etologia, do

291
qual emergirá o soberano criado através do contrato social, um Deus
mortal a quem se deve paz e proteção, pois nada mais do que um
representante da multidão. Crente que os corpos imateriais (como os
espíritos, os fantasmas ou as almas) são um problema à paz social –
recorde-se que Thomas Hobbes estava imerso em meio a uma guerra
civil –, defende ele que “o soberano será apenas um ator designado
pelo contrato social”, o que implica dizer que “não há direito divino,
não há instância superior que possa ser invocada pelo soberano para
que ele possa agir como quiser e desmantelar o Leviatã” (LATOUR:
2013, p. 24-25).
Após identificar (e fundamentar) essa separação entre ciência
(técnica) e política (sociedade), conforme artificialmente inventada,
a qual marcou a (suposta) modernidade, a instigante perspectiva de
Bruno Latour descontrói essa modelagem e retoma a crítica ao cen-
tralismo político hobbesiano pela via de uma reestrutura em certa
medida irônica acerca do modelo bicameral pregado (e instituído)
pela Revolução Liberal, agora expressa entre esferas deliberativas,
a dos humanos e a dos não-humanos. Para que essa reconfiguração
aconteça – reaproximando humanos de não-humanos –, faz-se essen-
cialmente necessário “permitir que o mundo exterior invada a cena,
quebre o frasco, derrame o líquido borbulhante e transforme a mente
num cérebro, numa máquina de nervos instalada dentro de um ani-
mal darwiniano que luta pela vida” (LATOUR: 2017, p. 23), fazendo
com que a natureza reste liberta da clausura a que foi submetida e
deformada por uma cuba de vidro.

CONCLUSÕES
Não há dúvidas de que com a Constituição da República Federativa
do Brasil de 1988, operou-se uma virada ecológica, especialmente
em uma perspectiva constitucional, inovando-se na centralidade dos
valores e direitos acerca da temática ambiental, o que reflete uma

292
constitucionalização do ambiental. Não há dúvidas também, que
no Brasil (especialmente dos dias atuais) se encontra em curso uma
massiva afronta (ou mesmo ataque) ao ambiental, ainda mais às suas
previsões constitucionais. As omissões e as ações são persistentes, ad-
vindas das mais diversas e variadas autoridades – desde o Chefe do
Poder Executivo federal, passando pela autoridade maior da pasta, o
ministro do Meio Ambiente, alcançando (e sob essa orientação) os
demais escalões –, revelando (ou configurando) – ao que parece – a
existência de um estado de coisas inconstitucionais em matéria am-
biental. Em outras palavras, o fenômeno da constitucionalização da
temática ambiental (de fundamental importância) não foi suficiente
para corrigir as bases, muito menos os cursos e as rotas, os quais con-
tinuam trilhando sob o impulso de uma invenção. Deve-se retornar (e
retomar) as origens, para se ir mais e além.
Retomada essa que reflete uma crise profunda, uma crise essencial-
mente apoiada no fato de que a sociedade (ingenuamente) ainda espera
colher os frutos das promessas que lhe foram preteritamente oferta-
das, dentre elas o conforto, a convivência, a segurança, o alívio da dor
e do sofrimento, o que envolve uma tentativa insistente e, certamente,
perversa de forçar a natureza a servir obedientemente às necessidades,
ambições e desejos humanos. A pedra de toque (o ponto nevrálgico)
está no bicameralismo, uma criação liberal. Portanto, a possível solução
para o cenário atual não está (e nunca esteve) na modernidade extá-
tica (ou em qualquer uma das suas tentativas de compreensão e deri-
vação), que mais reflete um sintoma, sim em um novo acordo, uma
nova Constituição, que registre a emancipação coletiva (associação
entre humanos e não-humanos), o que implica tanto em reconhecer
quanto em revisitar pensamentos e ações diante do evidente estado de
coisas inconstitucional em matéria ambiental. Dizendo de outra for-
ma, o processo de constitucionalização (ascensão do ambiental ao texto
constitucional) nada mais é do que o resultado (e o esforço) de confe-
rir garantias normativas (ou normatizadoras) para uma pretensão de

293
reconfiguração entre humanos e não-humanos, porém, sem de fato re-
fundar suas bases primeiras, originárias, de partida.
Referida pretensão somente será possível (e factível) se restar reco-
nhecido que vivemos em coletivos, não em sociedade, podendo ser
esta entendida como um artefato imposto pelo acordo modernista,
ao passo que àquela “se refere às associações de humanos e não-hu-
manos” (LATOUR: 2017, p. 358). Configuração, esta, que exige uma
nova Constituição (ou ao menos uma emenda radical à Constituição),
só que agora para estabelecer o “parlamento das coisas” – implodindo
o bicameralismo liberal –, o que significa dizer que “as naturezas estão
presentes, mas com seus representantes, os cientistas, que falam em seu
nome. As sociedades estão presentes, mas com seus objetos que as sus-
tentas desde sempre” (LATOUR: 2013, p. 142), pois – em verdade – não
temos outra escolha, “se não mudarmos o parlamento, não seremos
capazes de absorver as outras culturas que não mais podemos domi-
nar, e seremos eternamente incapazes de acolher este meio ambiente
que não podemos mais controlar” (LATOUR: 2013, p. 143). Trata-se,
portanto, de uma mudança que compete unicamente aos humanos, os
quais devem urgentemente mudar as suas formas de mudar, sob pena
de se continuar historicamente remendando o que não pode ser remen-
dado, e, sim, precisa ser totalmente reconfigurado, desde suas origens,
permitindo-se novas bases de sustentação às novas e reconfiguradas es-
truturas que sobre elas serão apoiadas e, assim, sucessivamente.

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Este livro foi composto em Dante
MT pela Editora Autografia.

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