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SOCIOLOGIA DOS

DESASTRES
CONSTRUÇÃO, INTERFACES E
PERSPECTIVAS NO BRASIL

VOLUME IV
SOCIOLOGIA DOS
DESASTRES
CONSTRUÇÃO, INTERFACES E
PERSPECTIVAS NO BRASIL

NORMA VALENCIO
MARIANA SIENA
ORGANIZADORAS

SÃO CARLOS
2014
© 2014 dos autores
Direitos reservados desta edição
RiMa Editora
Arte da capa
Arthur Valencio

S681s Sociologia dos desastres – construção, interfaces e perspectivas no


Brasil – volume IV / organizado por Norma Valencio e Mariana
Siena : RiMa Editora, 2014.

372 p. il.

ISBN – 978-85-7656-306-8

1. Sociologia dos desastres. 2. Vulnerabilidade. 3 Defesa civil.


4. Mudanças climáticas. I. título. II. autor

CDD 303.4

COMISSÃO EDITORIAL
Dirlene Ribeiro Martins
Paulo de Tarso Martins
Carlos Eduardo M. Bicudo (Instituto de Botânica - SP)
Evaldo L. G. Espíndola (USP - SP)
João Batista Martins (UEL - PR)
Michèle Sato (UFMT - MT)

www.rimaeditora.com.br

Rua Virgílio Pozzi, 81 – Santa Paula


13564-040 – São Carlos, SP
Fone/Fax: (16) 988064652
SUMÁRIO

Sobre os Autores ...................................................................................... vii


Apresentação ............................................................................................ ix

Seção I
Riscos e Desastres em Depoimentos: distintas perspectivas
disciplinares para o aprimoramento da prática
profissional no contexto de crise
Entrevista com Luciano Lourenço, Geógrafo, Coordenador do
Núcleo de Investigação Científica de Incêndios Florestais
(NICIF) da Universidade de Coimbra (UC), Portugal ............................ 3
Excertos da Palestra de Virgínia Garcia-Acosta (CIESAS, México) no
GT “Antropologia dos riscos e dos desastres: olhares transversais”, II
EMBRA – Encontro Mexicano Brasileiro de Antropologia, UnB,
Brasília...................................................................................................... 15
Entrevista com Samira Younes Ibrahim e Luiz Henrique de Sá,
Psicólogos e Psicoterapeutas, coordenadores da Rede de Cuidados-RJ/
Psicologia das Emergências e Desastres, Brasil ....................................... 21

Seção II
Desastres num Contexto Internacional
Capítulo I – Desastres Planejados: megaprojetos e trauma
socioambiental – o caso HidroAysén .................................................. 27
Alex Latta
Capítulo II – Trajetórias, Memórias e Silêncios de um País
Telúrico: a propósito dos saques logo após o terremoto
de 2010 na cidade de Concepción, Chile .......................................... 47
Andrea Roca
Capítulo III – Refugiados Ambientais Haitianos no Brasil:
notas introdutórias de um estudo na perspectiva
da Sociologia dos Desastres ................................................................ 71
Diego Correia

– v–
Seção III
Desastres no Contexto Nacional
Capítulo IV – “A Escolha de Sofia” ou o Dilema da Segurança
Humana nos Desastres: qual agenda brasileira? ................................ 91
Eduardo Marandola Jr.
Capítulo V – Desastres no Brasil: a face hídrica do
antidesenvolvimento ......................................................................... 109
Norma Valencio
Seção IV
Casos Regionais e Inter-regionais
Capítulo VI – A Atenção Social nos Desastres: quando o
deslocamento compulsório acontece ................................................ 151
Mariana Siena
Capítulo VII – Da Produção Social da Enchente à Violência das
Remoções: tensões e conflitos no bairro Chácara Três Meninas,
Jardim Pantanal, município de São Paulo/SP .................................. 179
Carina Bjornstad Lutke
Capítulo VIII – Memórias de um Desastre Vivenciado ....................... 213
Juliana Sartori
Capítulo IX – O Desastre de São Luiz do Paraitinga/SP:
lógicas de poder, discursos e práticas ............................................... 233
Victor Marchezini
Capítulo X – Desastre – Autoridades e Afetados: desiguais
condições de poder ou esforço de negação do dissenso ................... 255
Dora Vargas
Capítulo XI – Por Entre os Escombros: sobre a fragilização
multidimensional e o abandono sociopolítico de
animais em contexto de desastres .................................................... 281
Layla Stassun Antonio
Capítulo XII – Dimensões Sociais e de Saúde Envolvidas no
Contexto da Seca: a pessoa idosa no cerne da questão ................... 307
Aline Silveira Viana
Capítulo XIII – Dimensões Sociopolíticas de Desastres
Relacionados ao Estresse Hídrico e às Chuvas Intensas
no Brasil: a afetação da agricultura familiar .................................... 333
Norma Valencio

– vi –
SOBRE OS AUTORES

Alex Latta – Ph.D., Political Science, York University , M.A. em Political Science,
York University e B.Sc., Geography and Political Science, University of Victoria.
Professor Associado de Estudos Globais na Wilfrid Laurier University, Canadá.
E-mail:alatta@wlu.ca
Aline Silveira Viana – Gerontóloga pela Universidade Federal de São Carlos.
Mestranda em Ciências da Engenharia Ambiental da Universidade de São Paulo.
Integrante do Grupo de Pesquisa “Sociedade e Recursos Hídricos” e pesquisadora
do NEPED/UFSCar. Bolsista CAPES. E-mail: aline_geronto@hotmail.com
Andrea Roca – Antropóloga Social pela Universidad de Chile e mestre em Socio-
logia pela Universidade de São Paulo. E-mail: andrearocav@gmail.com
Carina Bjornstad Lutke – Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Fede-
ral de São Carlos. Pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em De-
sastres/NEPED/UFSCar. E-mail: carinalutke@gmail.com
Diego Correia – Cientista social, mestre em Sociologia pelo Programa de Pós-
graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos/UFSCar. Dou-
torando do Programa de Pós-graduação em Ciências da Engenharia Ambiental
(PPG-SEA/EESC/USP) e pesquisador do NEPED/UFSCar.
E-mail: diego.sociais@gmail.com
Dora Vargas – Assistente Social, doutora em Sociologia. Integra a equipe técnica
da Subsecretaria de Planejamento do Território da Prefeitura de Juiz de Fora e é
Professora no Curso de Serviço Social da Universidade Salgado de Oliveira/UNI-
VERSO-Juiz de Fora. E-mail: doravargas@uol.com.br
Eduardo Marandola Jr. – Possui graduação (Licenciatura e Bacharelado) em Geo-
grafia pela Universidade Estadual de Londrina (2002 e 2003) e Doutorado em
Geografia pelo Instituto de Geociências da Universidade Estadual de Campinas
(2008). Atualmente é Professor (MS3) da Faculdade de Ciências Aplicadas (FCA)
da Unicamp (campus de Limeira), onde coordena o Laboratório de Geografia dos
Riscos e Resiliência (LAGERR), do Centro de Ciências Humanas e Sociais Aplica-
das (CHS) e o Curso de Mestrado Interdisciplinar em Ciências Humanas e Sociais
Aplicadas (ICHSA). Tem trabalhado principalmente com a abordagem fenomeno-
lógica, em busca de abordagens teórico-metodológicas da interdisciplinaridade
contemporânea, especialmente na interface dos estudos urbanos, ambientais e
populacionais. E-mail: eduardo.marandola@fca.unicamp.br
Juliana Sartori – Bacharel e licenciada em Ciências Sociais pela Universidade
Federal de São Carlos e pela Universidade Estadual Paulista. Mestre em Ciências
pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Engenharia Ambiental da Uni-
versidade de São Paulo. Integrante do Grupo de Pesquisa “Sociedade e Recursos
Hídricos” e pesquisadora do NEPED/UFSCar. E-mail: sartoriju@gmail.com.

– vii –
Layla Stassun Antonio – Bacharel em Ciências Sociais pela Universidade Fede-
ral de São Carlos, mestranda do Programa de Pós-graduação em Ciências da En-
genharia Ambiental da Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São
Paulo. Pesquisadora do NEPED/UFSCar. Bolsista CAPES.
E mail: stassun.layla@gmail.com
Luciano Lourenço – Bacharelado e licenciatura em Geografia pela Universidade
de Coimbra. Pós-graduação em Geografia Física pela Universidade de Lisboa. Pro-
fessor de Geografia Física, do Departamento de Geografia da Faculdade de Letras
da Universidade de Coimbra. Diretor do Núcleo de Investigação Científica de In-
cêndios Florestais/NICIF da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
E-mail: luciano@uc.pt
Luiz Henrique de Sá – Psicólogo, Psicoterapeuta, Supervisor Técnico da Atenção
Básica e Coordenador do Caps AD III – Fênix do município de Petrópolis/RJ. Ge-
rente Executivo da ONG Rede de Cuidados-RJ/Psicologia das Emergências e De-
sastres. Especialista em transdisciplinariedade e pós-graduando em Gerenciamento
de Crises. E-mail: femeando@yahoo.com.br
Mariana Siena – Socióloga, mestre e doutora em Sociologia pela Universidade
Federal de São Carlos. Vice-coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais
em Desastres/NEPED do Departamento e do Programa de Pós-graduação em So-
ciologia da UFSCar e docente de sociologia e filosofia do Instituto Atlântico de En-
sino de Piracicaba/SP. E-mail: mari_siena@yahoo.com.br
Norma Valencio – Economista, doutora em Ciências Humanas, coordenadora do
Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres/NEPED do Departamento e
do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São
Carlos/UFSCar e Docente do Programa de Pós-graduação em Ciências da Engenha-
ria Ambiental – PPGSEA da Universidade de São Paulo/USP. Bolsista Produtivi-
dade do CNPq. E-mail: normaf@terra.com.br
Samira Younes Ibrahim – Psicóloga, Psicoterapeuta Humanista-Transpessoal.
Coordenadora da Rede de Cuidados-RJ/Psicologia das Emergências e Desastres.
Facilitadora de grupos. Consultora na área hospitalar. Docente de Pós-graduação
de Enfermagem em Nefrologia. Pós-graduanda em Gerenciamento de Crises.
E-mail: samirayounes@gmail.com
Victor Marchezini –Bacharel em Ciências Sociais, mestre e doutor em Sociolo-
gia pelo Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Federal de São
Carlos. Especialista em Direitos Humanos, Gestão Global de Risco e Políticas Pú-
blicas de Prevenção a Desastres pela Fundação Henry Dunant.
E-mail: victor_marchezini@yahoo.com.br
Virginia García-Acosta – Licenciada e Mestre em Antropologia Social pela Uni-
versidade Iberoamericana do México/UIA. Doutora em História pela Universida-
de Autônoma do México/UNAM. Professora investigadora do CISINAH-CIESAS.
Diretora geral do Centro de Investigações e Estudos Superiores em Antropologia
Social/CIESAS e integrante da AMC. E-mail: vgarciaa@ciesas.edu.mx

– viii –
APRESENTAÇÃO

N o Núcleo de Estudos e Pesquisas Sociais em Desastres (NEPED), da


Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), temos feito uma pequena
troça (ainda que melancólica!) sobre a presente coletânea, que vem a pú-
blico: tratar-se-ia do quarto volume daquilo que, inicialmente, havia sido
pensado como uma trilogia!
No primeiro volume da coletânea Sociologia dos Desastres: construção,
interfaces e perspectivas no Brasil, nascido no ano de 2009, inquietava-nos ver
essa subdisciplina caminhar a passos largos de produção científica nos paí-
ses desenvolvidos em contraposição à tímidez de seu florescimento no meio
científico brasileiro. Diante o nosso compromisso com uma ciência cidadã,
era-nos perturbador duas constatações: de um lado, observar o quanto os
desastres estavam presentes concretamente na vida cotidiana nacional,
perturbando severamente a rotina de diversas comunidades socialmente
vulnerabilizadas – e abrangendo, em média, ¼ dos municípios brasileiros
ao ano, cujas autoridades anunciavam a crise através de decretações de situa-
ção de emergência (SE) ou de estado de calamidade pública (ECP) –, isto é,
ver que os desastres manifestavam-se como um problema socioambiental de
grande abrangência sócio-espacial e importância política. De outro, constatar
a manutenção de um relativo (e incômodo) silêncio, e mesmo indiferença, não
só da Sociologia, mas das Ciências Sociais no Brasil, isentando-se de refletir mais
sistematicamente sobre esse problema.
Para tentar romper esse imobilismo, fizemos um esforço de agregação
e sintetização de resultados parciais e finais das pesquisas científicas bem
como de extensão universitária empreendidos pelos vários autores do gru-
po do NEPED e lançamos o referido volume I. A versão impressa daquele
livro foi viabilizada, à época, com o apoio institucional da Secretaria Naci-
onal de Defesa Civil (SEDEC/MI) que, na ocasião, era conduzida por uma
gestão civil. Reunimos reflexões que estavam, até então, dispersas (em di-
versos projetos, teses, dissertações, encontros científicos, oficinas etc.) e o
fizemos a fim de dar maior visibilidade à interpretação sociológica sobre o
tema dos riscos e dos desastres. Destacam-se, nesse primeiro esforço, uma
reflexão sociológica acerca dos desafios relativos à racionalidade institucional
e à lógica operativa do meio técnico da defesa civil, o compartilhamento de
novas metodologias que o NEPED desenvolveu e testou no referente à edu-

– ix –
cação de crianças para a redução de desastres, a crítica sobre o modo
prevalente de gestão de abrigos temporários e a interpretação de demais
aspectos sociais e políticos de casos concretos no Brasil e em alguns países
africanos. Sendo eminentemente dialógico, o olhar sociológico buscou, no
referido volume, uma aproximação com áreas como a Geografia, a Psicolo-
gia, as Ciências da Engenharia Ambiental e o Direito. Mas, fundamental-
mente, aquela publicação deflagrou uma luta explícita e inédita pela
afirmação da Sociologia dos Desastres como uma subdisciplina necessária
na discussão da Sociologia no Brasil e para incrementar o debate intelectu-
al sobre os rumos do desenvolvimento no país. É de reconhecer que, no
contexto nacional de produção científica, havia esforços sociológicos ante-
riores, de outros pesquisadores e instituições, sobre o tema dos riscos e dos
desastres, como, por exemplo, em estudos abordando a síntese do debate
contemporâneo sobre os riscos, o enfrentamento social de enchentes, os
deslocamentos compulsórios de comunidades das chamadas ‘áreas de ris-
co’, entre outros. Porém, tais estudos mantiveram-se esparsos, estavam
dispersos ou, ainda, optaram por afirmarem-se preponderantemente no
campo da chamada questão ambiental, da questão urbana ou da questão rural
ou de outras questões já bem assentadas no debate das Ciências Sociais.
No volume II, lançado em 2010, cuja versão eletrônica contou com os
auspícios do Conselho Federal de Psicologia – CFP, os pesquisadores do
NEPED trouxeram novos aportes sociológicos para que, respectivamente, o
contexto institucional de defesa civil e os contextos urbanos e rurais suscetí-
veis aos desastres fossem ainda mais destrinchados no que tange à assimetria
de poder e às práticas de racismo ambiental e de solapamento dos direitos
da pessoa humana, entre outras. Com isso, tencionamos fornecer um pano-
rama sociopolítico mais qualificado para subsidiar o aprimoramento da atu-
ação profissional de psicólogos, de assistentes sociais, de bombeiros militares,
de policiais militares e de agentes da defesa civil, dentre outros, num con-
texto de emergência.
No volume III, cuja versão impressa saiu no ano de 2012 e a versão
eletrônica lançada em 2013, esta última financiada pelo Conselho Regio-
nal do Serviço Social do Rio de Janeiro – CRESS/RJ, onze autores com ou-
tros vínculos institucionais colaboraram com o esforço de pensar em siner-
gia com o NEPED, especialmente, em relação à análise do contexto brasi-
leiro. Tais autores provinham, respectivamente, das áreas da Demo-
grafia, da Gerontologia, do Serviço Social, da Psicologia e da Geografia,
além de outras subáreas da Sociologia, e trouxeram novas contribuições
na interpretação da conjuntura, no destaque às especificidades de um dado
grupo social vulnerabilizado e na compreensão de casos locais sobre os
quais o NEPED ainda não tinha se debruçado.

– x–
Nós, do NEPED/UFSCar, julgávamos que ter trazido a público a trilogia
Sociologia dos Desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil, feita por um
coletivo de autores motivados e mobilizados pelo tema dos desastres, era uma
semeadura não só possível, mas proveitosa conquanto contribuísse para a
deflagração de uma mobilização mais contínua, sistemática e ampliada da
Sociologia brasileira e de áreas afins. Infelizmente, nos quatro anos do pro-cesso
de construção da referida trilogia (2009-2013), não identificamos ou-tros grupos
das Ciências Sociais que tivessem tomado para si a tarefa de fortalecer, desde a
Sociologia dos Desastres, uma reflexão crítica e uma articulação de
conhecimentos e saberes sobre o tema dos desastres. embora outras
subáreas da Sociologia, da Antropologia, do Serviço Social, da Geografia,
da Psicologia e da Demografia dedicadas aos temas dos eventos críticos,
das vulnerabilidades e dos riscos permita algum diálogo. E, de outra
parte, as ocorrências de desastres, concretamente, não reduziram no Bra-
sil; ao contrário, estão numa curva ascendente, indicando que as interpre-
tações institucionais bem como as práticas técnicas e os discursos hegemô-
nicos não dão conta do problema ou, o que é ainda pior, agravam-no.
Em alguns outros países, empobrecidos ou emergentes, não tem sido
diferente.
Tais circunstâncias são assaz provocativas e desafiadoras e, no NEPED/
UFSCar, sentimos que não poderíamos dar por concluída a tarefa de pen-
sar o novo (e pior) estágio de enfrentamento das mesmas, ainda que nenhum
horizonte de financiamento público para apoiar esta publicação fosse avis-
tado. A urgência em trazer à tona e difundir um novo conjunto de ideias
sobre o problema mobilizou os nossos recursos pessoais e, com a colabora-
ção indispensável dos autores, que atenderam a prazos exíguos, fazemos o
lançamento dessa 1a edição impressa do volume IV da coletânea.
No presente volume, os autores pesquisadores do NEPED reiteram a
sua satisfação em partilhar este espaço de publicação com autores de outras
instituições bem como em manter o exercício necessário e oportuno de diálogo
da Sociologia dos Desastres com outras áreas e subáreas de conhecimento.
No referente às instituições, partilham com o NEPED/DS/UFSCar au-
tores vinculados à Wilfrid Laurier University (Canadá), à Universidade de
Coimbra (Portugal), ao Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en
Antropologia Social (CIESAS) (México), à Rede de Cuidados-RJ/Psicologia
das Emergências e Desastres, à Universidade de São Paulo/USP (da FFLCH
e do PPGSEA) e à Universidade Estadual de Campinas/UNICAMP (da FCA).
Já no que tange às áreas de conhecimento dos autores e entrevistados, ao
lado da Sociologia, estão a Antropologia, a Ciência Política, a Geografia, o
Serviço Social, a Economia, a Psicologia e a Gerontologia.

– xi –
Em torno do tema principal dos desastres, são recortados inúmeros
subtemas, relacionando-os aos incêndios florestais, aos terremotos, às
secas e estiagens prolongadas, às enchentes e inundações, aos desliza-
mentos de terra, aos grandes projetos de investimento, entre outros.
A coletânea está dividida em quatro Seções.
Na Seção I, intitulada “Riscos e Desastres em depoimentos: distintas pers-
pectivas disciplinares para o aprimoramento da prática profissional no contexto de
crise”, contamos com as entrevistas do Professor Luciano Lourenço, da
Universidade de Coimbra, e de Samira Younes Ibrahim, da Rede de Cuida-
dos-RJ/Psicologia das Emergências e Desastres, os quais apresentam o seu
ponto de vista, respectivamente, da Geografia e da Psicologia, sobre o tema
dos desastres e as articulações e desafios para o melhoramento das práticas
profissionais dos técnicos que atuam nesse contexto de crise. E, ainda,
contamos nesta seção com excertos de palestra proferida pela antropóloga
Virginia García-Acosta na UnB, em novembro de 2013, por ocasião do II
EMBRA (Encontro Mexicano Brasileiro de Antropologia). Virginia é
investigadora do Centro de Investigaciones y Estudios Superiores en
Antropologia Social (CIESAS), México.
Na Seção II, intitulada “Desastres num contexto internacional”, contamos
com os três primeiros capítulos, dois dos quais tratando de desastres no
contexto chileno e o outro, debruçando-se sobre a questão dos haitianos
solicitantes de acolhimento, como refugiados, no Brasil. No capítulo 1, de
autoria do geógrafo e cientista político Alex Latta, discute-se as práticas de
resistência à construção do megaempreendimento hídrico de Aysén, no
Chile e o autor, com originalidade, não vê nas formas eventualmente equí-
vocas de operação e monitoramento do empreendimento a possibilidade de
desastres futuros, mas concebe a implantação do próprio empreendimen-
to, em si mesmo, como um desastre social. No capítulo 2, de autoria de
Andrea Roca, o tema central é o da memória social de catástrofes relacio-
nadas a terremotos no Chile e, mais especificamente, sobre a prática de
saques durante esses episódios (passados e recentes) na localidade de
Concepción. A autora trata, com um olhar antropológico privilegiado, das
diversas formas de violência utilizadas pelas autoridades constituídas para
se contraporem ao temor difuso de saques, bem como aborda as razões pe-
las quais uma parte da população julgava legítimo fazê-lo naquelas circuns-
tâncias. No terceiro capítulo, de autoria do sociólogo Diego Correia, foca-
liza-se a maneira como as autoridades brasileiras recepcionaram (e
decep-cionaram) os haitianos empobrecidos que adentraram ao Brasil
através do Estado do Acre em contraponto ao imaginário de país
acolhedor que as forças militares brasileiras no Haiti produziram através
de sua atuação na MINUSTAH.

– xii –
A Seção III detém-se sobre os “Desastres no contexto nacional”, tra-
zendo dois capítulos, cada qual voltado para um aspecto do panorama atual
dos desafios institucionais. No Capítulo 4, o geógrafo Eduardo Marandola
Jr. discute o reposicionamento de alguns sentidos no debate sobre seguran-
ça humana nos desastres a partir de dois objetivos, quais sejam: fornecen-
do elementos para repensar o sentido ontológico da segurança humana,
deslocando de seu sentido estritamente material e circunstancial que pre-
domina na discussão do tema e centrando-o no sentido do habitar em sua
dimensão fenomenológica. O autor, ainda, busca questionar a agenda
brasileira assumida a partir da incorporação das discussões das mudanças
climáticas, a qual assume a posição mitigadora que reifica as estruturas vi-
gentes da sociedade brasileira. No quinto capítulo, a economista Norma
Valencio aborda a hipótese de que a proliferação e a recorrência dos
desastres são uma face hídrica e inequívoca do antidesenvolvimento
brasileiro e a autora ilustra com casos das macrorregiões Nordeste (Aracati/
CE; Orós/CE; Angicos/RN; Assu/RN) e Sul (Ilhota/SC; São Jerônimo/RS).
Na Seção IV, intitulada “Casos regionais e inter-regionais”, agrupam-
se os oito capítulos finais desta coletânea. Os textos exploram e interpre-
tam sete diferentes casos de desastres, a saber: um na capital paulista (na
Chácara Três Meninas, localizada no Jardim Pantanal); dois no interior do
Estado de São Paulo (São Luiz do Paraitinga/SP, que comparece com dois
diferentes estudos e Ribeirão Preto/SP); um caso fluminense, em Teresópolis/
RJ (com dois estudos também distintos); dois no Nordeste (em Manaíra/
PB e em Aracati/CE) e um no Norte do país (em Porto Velho/RO).
O capítulo 6, de autoria da socióloga Mariana Siena, discute como o
contexto sociopolítico (nacional e municipal) gera soluções que acabam por
deteriorar ainda mais as condições de vida dos grupos sociais empobreci-
dos, mesmo quando as enchentes não mais ocorrem. Partindo da análise do
caso do município de Ribeirão Preto/SP, onde famílias moradoras das fave-
las da Vila Elisa e Tanquinho foram deslocadas para um conjunto habita-
cional do Jardim Wilson Toni, Mariana analisa como a noção de viabilidade
do projeto habitacional foi construída a partir da invisibilização de seus
custos sociais. O sétimo capítulo, de autoria da socióloga Carina Bjornstad
Lutke, retrata o processo sociopolítico de crueldade e violência (física, ma-
terial e simbólica) que levou a comunidade da Chácara Três Meninas a
vivenciar uma inundação por mais de setenta dias subsequentes, em meio
ao qual foi justificada a prática técnica de remoção das famílias, amplian-
do o nível de incertezas em suas vidas. No capítulo 8, de autoria da soció-
loga Juliana Sartori, a memória social dos moradores idosos em São Luiz
do Paraitinga/SP é o aspecto central de entendimento do que foi a vivência
de um desastre relacionado a uma enchente súbita que, além de ocasionar

– xiii –
perdas de cunho privado, pôs abaixo o patrimônio histórico da cidade, que
era a mais importante referência identitária deste grupo social. No capítu-
lo 9, é a vez do sociólogo Victor Marchezini deter-se sobre esse mesmo epi-
sódio das enchentes em São Luiz do Paraitinga/SP, porém, abordando a visão
comunitária acerca dos conflitos e tensões que envolveram o controle
exógeno, especialmente o de caráter militar, sobre a comunidade local no
seu processo de reabilitação, o que se manifesta na forma de um biopoder.
Saindo do Estado de São Paulo, vamos para o Rio de Janeiro, a Paraíba,
o Ceará e Rondônia. No capítulo 10, a assistente social Dora Vargas debruça-
se sobre a luta de classificações em torno do desastre relacionado a enchentes
e deslizamentos simultâneos havido em Teresópolis/RJ e agrupa a vocali-
zação de diferentes sujeitos para interpretá-lo como um discurso de uma
parcela de um coletivo que se opõe à outra no referente ao que é o desastre
e o que fazer nessa situação. Já no décimo-primeiro capítulo, da socióloga
Layla Stassun Antonio, também se mergulha no drama teresopolitano, po-
rém, abarcando o sofrimento dos animais abandonados naquele mesmo
desastre analisado no capítulo anterior. Layla parte da revisão de literatu-
ra, bem como de referências do arcabouço legal e dos planos de contingên-
cia, para problematizar a produção social da indiferença aos animais que
ficaram para trás (feridos, adoecidos, famintos, sedentos) em meio à cena
de devastação e, na falta de possibilidade de autoexpressão destes, enten-
der o problema através dos sujeitos que tomaram para si a tarefa voluntá-
ria de acolhimento dos animais desamparados, o que é feito sem apoio
governamental e com resistência do meio técnico atuante na emergência.
No capítulo 12, a gerontóloga Aline Silveira Viana aborda o tema dos ido-
sos que sofrem em meio aos desastres, mas, desta vez, tratando do contex-
to de secas e estiagens prolongadas em Manaíra/PB e a insuficiência da
aplicação do direito nas políticas públicas que, em tese, deveriam proteger
os direitos do grupo. Por fim, no décimo-terceiro capítulo, retorna a econo-
mista Norma Valencio, que continua a questionar as políticas públicas de
mitigação das perdas e danos nas secas e estiagens prolongadas, mas tendo
como referência as privações de outro grupo social, a saber, os produtores
da agricultura familiar.
Esperamos, assim, que essa diversidade de autores, de perspectivas dis-
ciplinares, de tipos de desastres e de casos forneça ao leitor um repertório
interpretativo oportuno e crítico para pensar o processo social que deflagra
essas crises e as intensifica e, de uma maneira mais abrangente, traga novos
elementos para refletir-se sobre o mundo convulsionado em que vivemos.
Por fim, mas não menos importante, queremos chamar a atenção do
leitor para o fato de que ilustramos a capa do Volume I com a imagem de
Belerofonte que, montado em Pégaso, atacava à Quimera. Através desse

– xiv –
provocativo apelo ao mito, demos foco aos desafios de combate aos desas-
tres ou, mais precisamente, para a tarefa de identificarmos a ‘criatura’ (pro-
cessos, práticas, atores) a que deveríamos combater. No volume II, a imagem
a que recorremos foi a de Hércules capturando o cão tricélafo Cérberus, no
reino de Hades, um dos doze trabalhos mais arriscados a que teve que se
submeter nas circunstâncias de jugo à Eristeu. Cérberus era o guardador do
portal de Hades, ficando em posição de guarda no limiar territorial entre a
vida e a morte. Assim também interpretávamos, figurativamente, o papel
da instituição de defesa civil no Brasil, que deveria proteger, porém,
frequentemente impedia que as almas famintas ou encharcadas de lama
pudessem sair do inferno em que se encontravam. No volume III, foi a
vez de destacarmos a figura de Quíron, um centauro dedicado às artes da
cura e da ciência, mas que padeceu intensamente por uma flechada
imerecida, que lhe causava sofrimento profundo, tal como ocorre no
Brasil aos sujeitos historicamente vulnerabilizados em seu processo de
territorialização – e que são os mais prejudicados nos desastres, mas cujas
demandas de cura (reparação, compensação) não são facilmente atendidas
– bem como aos grupos profissionais atuantes, mas desvalorizados, e à
parcela do meio científico que é obstruído em seu esforço de difundir um
horizonte alternativo de análise de políticas públicas nessa questão.
Por fim, neste volume IV, temos a imagem de Hermes (fundido ao
Mercúrio romano), o mensageiro dos deuses e guia da alma dos mortos, que
apela para a fluidez e a celeridade do mundo. Hermes traz uma agilidade
incomum às comunicações e, assim, tem sido vinculado, no imaginário so-
cial, aos desafios da contemporaneidade. Assim, como Hermes, os autores
dessa coletânea têm urgência em comunicar suas ideias originais, de base
humanística, a um público que, especialmente no meio institucional e no
meio técnico-operacional atuante no contexto de desastres, precisa escutá-
las, mas resistem em fazê-lo. Produzimos essa obra, de forma colaborativa
entre parceiros de instituições brasileiras e estrangeiras, fazendo-o com a
agilidade que nos foi possível, com ‘asas’ na cabeça e nos pés, sem financia-
mento, esforço este que intenta acelerar o ritmo (e, por vezes, alterar o cur-
so) das reflexões no tema dos desastres. Matar a Quimera, trazer Cérberus
à luz do dia, aliviar as dores de Quíron, entregar a mensagem celeremente...
Sim, são imagens primordiais, arquetípicas, que guardam um sentido cole-
tivo; cabe, portanto, ao coletivo, na plasticidade de sua trajetória, recon-
firmá-las ou alterar o enredo.

Norma Valencio
Mariana Siena
NEPED/UFSCar

– xv –
SEÇÃO I

RISCOS E DESASTRES EM DEPOIMENTOS:


DISTINTAS PERSPECTIVAS DISCIPLINARES
PARA O APRIMORAMENTO DA PRÁTICA
PROFISSIONAL NO CONTEXTO DE CRISE
ENTREVISTA

PROFESSOR LUCIANO LOURENÇO

Na entrevista concedida em janeiro de 2013, o Professor Luciano Louren-


ço apresentou o Núcleo de Investigação Científica de Incêndios Florestas
(NICIF) da Universidade de Coimbra, sua trajetória de formação e de pes-
quisa e, ainda, distinguiu alguns conceitos da área, como os termos de ris-
co, perigo e crise.

Norma Valencio: Nós estamos com o Professor Luciano Lourenço, Coordenador do


Núcleo de Investigação Científica de Incêndios Florestas (NICIF) e Diretor do De-
partamento de Geografia, da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, .
Muito obrigada por esta entrevista com a sua equipe. Gostaria que o senhor se apre-
sentasse, falasse da sua formação, da sua trajetória de pesquisa e de extensão e apre-
sentasse sua equipe para o público brasileiro.

Prof. Luciano Lourenço: Sou conhecido por Luciano Lourenço, e sou pro-
fessor de Geografia, mais precisamente de Geografia Física, da Universidade
de Coimbra,. A minha formação escolar [bacharelato (3 anos) e licenciatura
(+ 2 anos) e, mais tarde, doutoramento] foi feita, essencialmente, nesta
vetusta Universidade, a primeira de Portugal e uma das mais antigas da Eu-
ropa. Na Universidade de Lisboa fiz uma pós-graduação, em Geografia Fí-
sica, durante dois anos.
Em termos de especialidade, trabalho nas áreas de geomorfologia,
climatologia e hidrologia, especialmente quando relacionadas com riscos
naturais. Aliás, ultimamente, estou dedicado, quase exclusivamente, ao es-
tudo dos riscos e, muito em particular, aos riscos associados aos incêndios
florestais.
Os meus primeiros trabalhos de investigação e, também, os primeiros
a serem publicados, prendem-se com as minhas raízes, pois sou natural de
uma pequena aldeia situada na bacia hidrográfica do rio Alva, por sua vez
afluente do rio Mondego, que banha a cidade de Coimbra, na vertente Norte
da serra do Açor. Certamente por esse motivo, o meu primeiro trabalho pu-
blicado foi precisamente sobre “As cheias do rio Alva”, a que se seguiu depois
um livro sobre “O rio Alva”, e o meu trabalho de maior fôlego, a minha dis-

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sertação de doutoramento, que partiu da serra do Açor e se alargou às ou-
tras serras de xisto (Lousã, Alvelos, Cabeço Rainho, …) da Cordilheira Cen-
tral portuguesa. Deste modo, o título da tese surgiu com naturalidade “Serras
de Xisto da Cordilheira Central”. Contribuição para o seu estudo geomorfológico e
geoecológico”.
Ao iniciar este estudo, numa perspectiva puramente geomorfológica,
rapidamente percebi que, na atualidade, os incêndios florestais são um dos
principais fatores (se não mesmo o principal) que condicionam essa evolu-
ção geomorfológica. Desde essa conclusão, a querermos compreender o ver-
dadeiro significado dos incêndios, foi um pequeno passo, razão porque não
estranha que, logo depois do Alva, os primeiros artigos publicados tenham a
ver com incêndios florestais, ao ponto do próprio subtítulo da tese ter vindo
a ser alterado, de modo a contemplar esta componente geoecológica.
Por outro lado, também logo desde o início, que me apercebi da com-
plexidade do estudo dos incêndios florestais e, por isso, pensei na criação
de um Núcleo de Investigação Científica especializado em Incêndios Flo-
restais, o NICIF, o qual foi concebido numa tripla perspectiva:
(i) Prevenção, para ajudar a evitar o número de ocorrências de incêndi-
os florestais, que em Portugal é extremamente elevado e não para de
aumentar de ano para ano, pelo que muitos dos estudos foram rea-
lizados sobre as causas dos incêndios florestais, para, conhecendo-
as, se poderem prevenir, o que deu origem a vários projetos de
investigação/extensão, o mais conhecido dos quais é o PROSEPE -
Projeto de Sensibilização e Educação da População Escolar;
(ii) Apoio ao combate, para ajudar aqueles que têm de tomar decisões, o
que deu origem a outra linha de investigação, com diversos traba-
lhos publicados, designadamente sobre os tipos de tempo e as con-
dições meteorológicas que ajudam à ignição e à propagação de
incêndios florestais, com propostas concretas de cálculo de índices
de risco de incêndio florestal;
(iii) Reabilitação, recuperação das áreas varridas pelas chamas, através da
análise das consequências e dos nefastos efeitos dos incêndios flo-
restais, em particular dos fenómenos erosivos que eles ajudam a
desencadear (a tal ligação à geomorfologia) com vários estudos pu-
blicados sobre o Norte e Centro de Portugal, e, muito em especial,
sobre a “minha” serra do Açor e a bacia hidrográfica do “meu” rio
Alva, as duas áreas de eleição para as minhas pesquisas geográficas.
as quais irá conhecer nos próximos dias.

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Estas linhas de investigação permitiram desenvolver várias áreas de ex-
tensão universitária. Deste modo, na área da prevenção, a mais conhecida
é a do já mencionado PROSEPE, que funciona em contexto Nacional, nas
Escolas dos diversos níveis de Ensino (do pré-Escolar ao Secundário), onde
mais de 6000 Professores, formados pelo projeto, fundaram mais de 650
Clubes da Floresta, em que participaram mais de 20 000 crianças, adoles-
centes e jovens, em diversas atividades relacionadas com a floresta e os in-
cêndios florestais, desenvolvidas todas as semanas, ao longo de cada ano
letivo, durante mais de 20 anos. Trata-se do maior e mais longo projeto
educativo desenvolvido em Portugal.
Esta preocupação pela prevenção fez com que tivesse sido chamado ao
Governo de Portugal em 2004, para assumir funções de Diretor-Geral da
Agência para a Prevenção de Incêndios Florestais (APIF), criada na se-
quência dos mais graves incêndios florestais registados desde sempre, ocor-
ridos no ano de 2003, função que desempenhou até à extinção da Agência,
em 2006, extinção feita por razões meramente políticas, como se os incên-
dios florestais tivessem deixado de ser um problema em Portugal!
Antes disso, em setembro de 1997, tinha sido nomeado Diretor da
Escola Nacional de Bombeiros, com sede em Sintra, junto a Lisboa, onde
desenvolvi uma intensa atividade na organização da formação dos bombei-
ros, ou seja, uma função mais ligada à perspectiva do combate a incêndios
florestais. Terminada a “Comissão de Serviço” no final de 2001, também
por razões de índole política, deixei a presidência da direção ENB a 4 de
janeiro de 2002, certo de que o trabalho estava incompleto e de que o rit-
mo de formação abrandaria, como aconteceu. Mas, o mérito do trabalho
então desenvolvido continua a ser reconhecido, ao ponto de, há poucos anos,
ter voltado a ser convidado para assumir essa presidência, convite que de-
clinei, não só por razões de natureza pessoal, mas também por alguma fal-
ta de confiança na capacidade do sistema político ser capaz de assegurar uma
verdadeira e sólida formação dos bombeiros portugueses.
No entanto, qualquer destas duas missões foi sempre desempenhada
em acumulação com as suas funções docentes na Universidade de Coimbra,
de que nunca abdicou para não perder o contato com os estudantes e, tam-
bém, para poder continuar ligado à pesquisa e à coordenação dos projetos
de investigação, nomeadamente dos relacionados com os incêndios flores-
tais. Apesar de me deixarem pouco tempo livre, tenho de reconhecer que
foram gratificantes.
Do ponto de vista das consequências dos incêndios, a vasta investiga-
ção científica desenvolvida granjeou-me algum reconhecimento pelo que,
frequentemente, sou chamado a colaborar com os municípios afetados por

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incêndios florestais, com vista à proposta de soluções que ajudem a mini-
mizar os danos e/ou a prevenir a repetição dessas situações no futuro. O
exemplo mais paradigmático ocorreu no ano de 2006, nas freguesias de
Piódão e Pomares, do município de Arganil, que terei oportunidade de lhe
apresentar no local.
Ora, a tripla perspectiva de pesquisa antes mencionada, está também
associada a outros riscos em que temos trabalhado com uma equipa dedi-
cada e que tem variado ao longo dos anos, porque é constituída, essencial-
mente, por alunos dos cursos de mestrado e de doutoramento em geografia.
Neste momento, estão a trabalhar comigo três estudantes de mestrado,
que são bolseiros do NICIF. O mais antigo é o Dr. Fernando Félix e as cola-
boradoras mais recentes são duas “Sofias”, a Dr.ª Sofia Bernardino e a Dr.ª
Sofia Fernandes e todos estão a desenvolver pesquisas relacionadas com
incêndios florestais,
Todavia, enquanto elas desenvolvem estudos na área das condições
meteorológicas, com a Dr.ª Sofia Bernardino a propor-se afinar as “Condi-
ções meteorológicas que mais favorecem a propagação dos incêndios flores-
tais” e a Dr.ª Sofia Fernandes a procurar contribuir para a compreensão dos
“Incêndios florestais em Portugal continental fora do período crítico”, já o
Dr. Fernando Félix está mais vocacionado para as curvas das estradas e, por-
tanto, para tratar índices de sinuosidade e verificar como é que eles inter-
ferem na movimentação dos veículos de combate aos incêndios florestais.
Trata-se de um trabalho com características diferentes, mas sem dúvida, tam-
bém interessante, sobretudo do ponto de vista da análise da componente
da chegada rápida ao teatro de operações, porque é preciso chegar e quan-
to mais depressa, melhor.
De facto, todos os incêndios começam todos por ser pequenos, poden-
do apagar-se com os pés ou com balde de água. Quando se deixam crescer,
a sua extinção é, depois, bastante mais complicada.
Assim, e em linhas muito gerais, a nossa investigação desenvolve-se um
pouco dentro destas três grandes áreas temáticas: “prevenção”, “combate”
e “efeitos” dos incêndios florestais, ou seja, trabalhamos aspectos que têm
a ver com “antes”, “durante” e “após” a sua ocorrência, cobrindo assim as
áreas temáticas que se estendem das causas até às consequências dos incên-
dios florestais.

Norma Valencio: Professor Luciano Lourenço: nas suas publicações recentes, eu sinto
uma inquietude sua em relação a uma polêmica em torno do conceito de riscos. O que
são os riscos, para o senhor? Essa polêmica é realmente necessária?

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Prof. Luciano Lourenço: Eu penso que a polêmica tem mais a ver com al-
gumas das traduções literais ou inadequadas de alguns conceitos, as quais
introduzem noções que, do meu ponto de vista, estão erradas, porque detur-
pam o significado do uso etimológico tradicional desses determinados termos,
ou seja, do significado que determinados conceitos possuem em português.
Uma dessas traduções veio introduzir muita confusão na diferenciação que
deveria existir, por exemplo, entre os conceitos de “risco” e “perigo” e que na
linguagem corrente podem ser entendidos como sinónimos, mas que na lin-
guagem técnica e científica aparecem bem individualizados.
De acordo com a teoria do risco, que algumas escolas têm defendido,
estes conceitos devem estar hierarquizados e, por conseguinte, nós traba-
lhamos muito numa perspectiva de risco, perigo e crise. São três níveis dife-
rentes. O risco tem a ver com um fator potencial, o qual pode ou não vir a
manifestar-se. Trata-se, portanto, de uma situação para qual devemos de
estar preparados, mas não implica que, obrigatoriamente, se tenha de ma-
nifestar, digamos que é uma probabilidade mais ou menos remota. Trata-
se de um primeiro patamar, que comporta muita incerteza. Quando subimos
para o nível seguinte, que corresponde a uma situação de perigo, a probabi-
lidade dessa manifestação ocorrer já está muito próxima, ou mesmo iminen-
te, pelo que a incerteza diminui e, por isso, constitui o limiar de transição
para a crise, degrau onde se dissipam todas as incertezas sobre a uma hipo-
tética manifestação, já que, in lato sensu, corresponde à manifestação do risco,
e, in stricto sensu, corresponde à plena manifestação do risco, isto é, aos gran-
des desastres ou catástrofes, que não deixam qualquer dúvida/incerteza
quanto à sua manifestação.
Como noutras situações, a definição de limiares nem sempre é fácil.
Vejamos um ou dois exemplos que nos ajudem a melhor compreender esta
hierarquização. Assim, nas regiões sísmicas, o risco de tremores de terra está
sempre presente, mas nem sempre se manifesta, pelo que só haverá perigo,
quando a sua manifestação estiver iminente. Neste caso, a crise desencadeia-
se a partir do momento em que a Terra começa a tremer e deveria terminar
quando regressa à situação anterior, mas, por vezes, os danos que acarreta,
faz com que a crise, ou melhor, os seus efeitos se prolonguem e arrastem
por muito mais tempo.
Normalmente, os maiores danos estão associados ao evento principal
e poderão ser maiores ou menores, em função da intensidade com que o
processo envolvido (neste caso, o sismo) se manifestou, se bem que, para a
mesma intensidade (do processo envolvido) eles possam ser diferentes, dado
que também estão dependentes da vulnerabilidade da área que venha a ser
afetada.

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Dito de outro modo, sismos com intensidades análogas, podem cau-
sar danos completamente diferentes, ou seja, a sua manifestação, a crise, pode
ser maior, uma verdadeira catástrofe, como sucedeu no Haiti, em 12 de ja-
neiro de 2010, com a morte de 100 000 a 200 000 pessoas, num sismo
considerado de magnitude 7,0 Mw. Em contrapartida, sismos de maior
magnitude e, por conseguinte, onde os danos deveriam ser ainda mais avul-
tados, podem provocar crises menores, se as vulnerabilidades tiverem sido
reduzidas. Nos casos a seguir mencionados, os danos teriam sido ainda
muito menores se fosse possível considerar exclusivamente aqueles que es-
tiveram associados ao sismo e deixássemos de lado os que se lhes seguiram,
resultantes do tsunami (que não ocorreu no Haiti e, até por isso, os danos
não são diretamente comparáveis).
Pensemos, agora, no que sucedeu no Chile, em 27 de fevereiro de 2010,
onde, apesar da magnitude ser maior do que a do sismo do Haiti, pois foi
avaliada em 8,8 Mw, os danos foram bem mais reduzidos, com um menor
número de mortos, 723 mortos, a maior parte dos quais devidos ao tsunami
e não propriamente ao abalo sísmico. Foi, também, o que sucedeu no Ja-
pão, no ano seguinte, em 11 de março de 2011, onde a magnitude foi de
8,9 Mw e os danos, bem como o número de vítimas, que resultou do tsunami
subsequente ao abalo, foram bem inferiores aos do Haiti, com a confirma-
ção de 13 333 mortes e cerca de 16 000 pessoas desaparecidas. Em qual-
quer destes dois casos, e apesar da maior magnitude destes dois sismos, os
danos sofridos foram muito menores do que os registados no Haiti, porque
nesta situação a vulnerabilidade era muito maior. Assim, para a dimensão
dos danos importa não só a intensidade com que o processo se manifesta,
mas também a vulnerabilidade da área que vem a ser afetada.
Se pensarmos num outro exemplo, o do risco de incêndio florestal, po-
demos dizer que ele está presente em todo o território do continente por-
tuguês, com uma distribuição no espaço que varia em função das condições
geográficas específicas de cada região, e uma distribuição no tempo, ou seja,
ao longo do ano, que varia em função das condições meteorológicas de cada
estação do ano e, em particular, com a variação da temperatura e da humi-
dade relativa do ar.
Todavia, só afirmamos que há perigo de incêndio, quando se verificam
condições meteorológicas muito especiais, associadas a trovoadas secas que
descarregam faíscas (raios) e que podem originar incêndios com origem
natural, situações que, felizmente são raras, ou, então, como sucede mais
frequentemente, quando o ser humano, por negligência ou deliberadamente,
provoca esses incêndios, ativando uma fonte de energia calórica que inicia
a combustão da floresta e, por conseguinte, atribuindo-lhe uma causa
antrópica.

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De facto, apesar do risco estar sempre presente nas florestas portugue-
sas, só há perigo de incêndio quando ocasionalmente ocorrem trovoadas
secas, ou, então, quando o ser humano anda por essas florestas e, volunta-
riamente ou por desleixo, provoca a ignição.
Neste caso, a crise manifesta-se no espaço, com a ignição do material
vegetal e, se a situação não for rapidamente dominada, levando à extinção
do incêndio, poderá instalar-se no tempo, podendo dar origem a uma crise
maior, uma catástrofe, cujos danos até se podem vir a agravar posteriormen-
te, devido à ausência de cobertura vegetal que, assim, abre portas à atua-
ção de outros processos potencialmente perigosos, designadamente aos
erosivos, especialmente em áreas montanhosas, onde os declives são mais
acentuados.
Em conclusão, poderemos afirmar que o risco tem a ver a probabilida-
de, mais ou menos remota, de um determinado processo potencialmente
perigoso se vir a manifestar (sismo, inundação, deslizamento, …; queda de
aeronave, colapso de infraestrutura, …; sabotagem, terrorismo, guerra, …;
desertificação, poluição, incêndios,…). Quando, depois, essa probabilida-
de passa a muito próxima e, sobretudo, se já está iminente, passamos a fa-
lar em perigo. A partir do momento em que ela se manifesta, passamos a
referir-nos à crise.
É óbvio que quando analisamos a manifestação de um determinado
fenómeno em concreto, estamos a tratar de um determinado processo que
é sempre complexo, pois o risco implica sempre complexidade e implica
também, naturalmente, a produção de danos. De facto, só existem riscos,
como só haverá perigos e, mormente, só falaremos em crises se existirem
consequências, que se materializem através de danos causados. Se a incer-
teza é uma característica do risco, a gravidade dos danos ajuda a entender
os contornos da sua manifestação, ou seja, da crise.
Voltando ao NICIF, seria muito mais cómodo, se ele funcionasse na
cidade de Coimbra, na minha Universidade. No entanto, ele foi criado na
Lousã, porque aqui ao lado, uns metros abaixo, existe o Centro de Opera-
ções e Técnicas Florestais (COTF), um organismo que trabalha na área da
prevenção, muito vocacionado para a formação de quem trabalha na flo-
resta, e porque aqui ao lado, no aeródromo,da Lousã, estão representados
os três pilares em que assenta a Defesa da Floresta Contra Incêndios. As-
sim, além do Instituto de Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF),
representado pelo COTF, está também representada a Guarda Nacional Re-
publicana (GNR), através do Grupo de Intervenção, Proteção e Socorro
(GIPS), e a Autoridade Nacional de Proteção Civil (ANPC), que tutela os
Bombeiros e aqui possui, além dos meios aéreos de combate a incêndios,

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um Centro de Formação da Escola Nacional de Bombeiros, especializado
precisamente no combate a incêndios florestais.
A possibilidade de podermos estar “em cima” dos acontecimentos,
sobretudo no verão, quando os helicópteros e os aviões estão a funcionar
e, assim, acompanhar toda a dinâmica própria do combate ao incêndio flo-
restal, bem como ao longo do ano, quando há mais tempo para a reflexão
com as entidades operacionais, foram algumas das razões que nos levaram
a sediar o NICIF aqui, no aeródromo Lousã, ainda que sempre em estreita
ligação à Universidade de Coimbra.

Norma Valencio: Então, enquanto o meio técnico está agindo, o meio científico está
próximo, pensando, refletindo e gerando subsídios sobre essa ação técnica. Essa par-
ceria me parece imprescindível, não é?
Prof. Luciano Lourenço: De facto assim é, e foi por isso que nós começa-
mos precisamente aqui. Aliás, essa componente aplicada continua a razão
de ser da nossa componente científica: uma parte técnica e uma parte mais
operacional, voltada para a aplicação prática. Nós começamos, basicamen-
te, a trabalhar no desenvolvimento de índices de risco de incêndio flores-
tal, baseados nas condições meteorológicas, para fazermos o cálculo do risco
de incêndio e o acompanhamento da sua tendência (previsão) para o dia
seguinte. Esta pesquisa era feita com com meios muito simples, algo rudi-
mentares - os computadores davam os primeiros passos e as comunicações
ainda só eram feitas por radio, dado que os telemóveis ainda não existiam.
Com base nessas informações, foram feitas as primeiras experiências de
balanceamento de meios aéreos e de ataques iniciais musculados. Eu recordo,
a título de exemplo, já lá vão uns anos, um dia em que os aviões deste Cen-
tro de Meios Aéreos foram deslocados mais para o interior, para o aeródromo
da Covilhã, para reforço dos meios lá existentes, porque nessa região lavra-
vam vários incêndios e porque a nossa previsão apontava para um risco re-
duzido no litoral. Todavia, no dia seguinte, apesar desse teatro de operações
continuar complicado, como a nossa previsão para os dias seguintes, apon-
tava para que também pudéssemos ter problemas aqui, mais no litoral, o res-
ponsável não hesitou e mandou regressar os aviões, com muita contrariedade
de quem, lá no interior, em meio aos incêndios, também estava a precisar deles.
“Vão retirá-los agora, precisamente quando mais estamos a precisar deles
aqui?”, uma frase que recordarei por anos que viva, dada a aflição com que
foi proferida. Mas, no dia seguinte, os meios aéreos cá estavam e ainda bem
que regressarem, porque foram muito necessários e úteis, uma vez que não
lhes faltou trabalho. Portanto, a previsão permite fazer uma gestão mais efi-
caz dos meios, designadamente em termos do seu balanceamento e este é
apenas um exemplo das muitas situações em que os índices de risco podem
ter utilidade.

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Recordo uma outra situação, vivida num incêndio aqui bem próximo,
nas imediações da Foz de Arouce, quando o ataque inicial ainda era feito
com, relativamente, poucos meios e já nós insistíamos que era necessário
atuar com uma força adequada, logo no início da intervenção. Nesse caso,
baseado nesta filosofia e atendendo ao local da ocorrência, o responsável
mobilizou uma razoável quantidade de meios. Uns dias mais tarde confiden-
ciava-me que tinha sido uma sorte ter mobilizado tantos veículos, porque
de outra forma, atendendo às características do local e ao vento que se fa-
zia sentir, teria sido impossível dominar o incêndio na sua fase inicial e,
certamente, ele teria evoluído para um grande incêndio que, assim, foi evi-
tado com esta mobilização musculada. Com efeito, é preferível que haja ex-
cesso de um ou dois veículos de combate, desde que, naturalmente, não haja
exagero, do que faltem esse um ou dois meios, porque, depois, será necessá-
rio mobilizar muitos mais, para colmatar a falta deles no início da operação.
Deste modo, a nossa filosofia de atuação tem sido a de uma intervenção dis-
creta, longe dos meios de comunicação social, mas próxima dos operacionais
e que, paulatinamente, com o trabalho desenvolvido a partir do NICIF e as
ideias nele amadurecidas, tem contribuído para ajudar a alterar a filosofia da
prevenção e combate aos incêndios florestais em Portugal.

Norma Valencio: Parabéns professor Luciano Lourenço, parabéns ao NICIF e a


toda a equipe. Muito obrigada pela entrevista.
Prof. Luciano Lourenço: Obrigado pela visita e sucesso para o trabalho que
está a desenvolver na área dos desastres no Brasil, porque ainda há muito
por fazer.

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EXCERTOS DA PALESTRA DE VIRGINIA GARCÍA ACOSTA (CIESAS,
MÉXICO) NO GT “ANTROPOLOGIA DOS RISCOS E DOS DESASTRES:
OLHARES TRANSVERSAIS”
II EMBRA – II ENCONTRO MEXICANO BRASILEIRO DE
ANTROPOLOGIA, UNB, BRASÍLIA, NOVEMBRO DE 2013

PREÂMBULO
(por Norma Valencio)

Virginia García Acosta é uma renomada antropóloga mexicana, mes-


tre em antropologia social pela Universidade Iberoamericana (UIA) e dou-
tora em história pela Universidade Autônoma do México (UNAM). Virgínia
está encerrando sua extensa contribuição como diretora do Centro de
Investigaciones y Estudios Superiores en Antropología Social – CIESAS, mas
continua em atividade como professora-investigadora desse importante
Centro. Virginia tem se dedicado, nas últimas décadas, ao estudo da histó-
ria e da antropologia no tema dos riscos e dos desastres e produziu impor-
tantes publicações no tema.
Suas reflexões sobre o tema dos riscos e dos desastres merecem desta-
que e as mesmas são especialmente proveitosas para pensarmos esse tema
no contexto sócio histórico latino-americano e sob uma perspectiva analí-
tica crítica. Para prová-lo, elencamos abaixo alguns trechos (nossa tradução)
de suas obras recentes:
Recordando os ensinamentos de Fernand Braudel e Edward Thompson,
destacamos a importância do diálogo permanente entre ciências sociais e
história para, a partir daí, “determinar conceitos, identificar problemas,
destacar determinados elementos e, com isso, avançar na percepção e na
compreensão dos processos históricos”, apreender com um olhar diacrônico
o “estudo conjunto da ameaça e do contexto cujo resultado é o desastre”
(...) significa reconstruir histórias nas quais o desastre, como resultado de
processos sociais e econômicos, constitui o fio condutor (...) ao largo do
qual é possível ir tecendo diversas histórias que, de uma maneira ou de
outra, se relacionam com ele.
Virginia García Acosta
In: Historia y desastres en América Latina, Volumen III
(coord. Virginia García Acosta),
México, CIESAS/La RED, 2008

– 13 –
a) As sociedades não são nem nunca têm sido entes passivos ante a presença
de ameaças naturais;
b) Historicamente, as comunidades têm formulado caminhos sociais e cultu-
rais para enfrentar riscos e desastres potenciais;
c) As sociedades têm desenvolvido, ao longo da história, estratégias sociais de
prevenção e adaptação em sua interação com o meio natural.
(...)
consideramos que resulta urgente identificar, recuperar, reforçar e atuali-
zar essas estratégias, essas construções culturais identificadas como “me-
lhores práticas” ou “práticas efetivas” (...) Dito resgate deve fazer-se
privilegiando a escala local ou regional e de maneira comparativa em dis-
tintas latitudes e culturas.
Virginia García Acosta
In: Estrategias sociales de prevención y adaptación
(coords. Virginia García Acosta, Joel Francis Audefroy & Fernando Briones),
México, CIESAS, 2012

Ao conceber os desastres como processos esses oferecem, necessariamen-


te, um panorama histórico que permite localizar as comunidades estuda-
das em seu contexto específico (...) existe um alarmante incremento dos
fatores que contribuem para uma crescente construção social do risco de
desastre os quais, por sua vez, estão intimamente relacionados com as
modalidades de desenvolvimento implantadas, adotadas e, inevitavelmente,
adaptadas na América Latina.
Virginia García Acosta
In: La construcción social de riesgos y el huracán Paulina, México,
CIESAS, 1997.

Podemos dizer que a ideia central da abordagem culturalista é a de que o


homem, ou, nesse caso, a sociedade, vê os riscos através de lentes calibra-
das a partir de suas determinações culturais. A visão que parte da ênfase
em variáveis socioeconômicas faz referência aos imaginários reais contras-
tados com os imaginários formais, o que tem provocado verdadeiros
desencontros nos modelos de prevenção e manejo de desastres, particular-
mente na América Latina e no resto dos países de menor desenvolvimento
relativo.
Virginia García Acosta
El riesgo como construcción social y la construcción social de riesgos.
Desacatos, septiembre-diciembre, n. 19, 2005.

– 14 –
Dentre os destacados esforços científicos de Virgnia Garciía Acosta
nesse tema, está o de fundação da Rede de Estudos Sociais em Prevenção
de Desastres na América Latina – La RED (www.desenredando.org).
No mês de novembro do ano de 2013, ocorreu na Universidade de
Brasília (UnB) o II Encontro Mexicano Brasileiro de Antropologia - II
EMBRA, de onde trazemos alguns excertos da Palestra proferida por Virginia
García Acosta no GT “Antropologia dos riscos e dos desastres: olhares trans-
versais”. A palestra foi proferida em espanhol e transcrevemo-la, logo abai-
xo, em português, a fim de que os ensinamentos de Virginia García Acosta
sejam de pronto absorvidos pelo público lusófono.
Vamos à Palestrante!

***
EL SURGIMENTO DE UNA LÍNEA DE INVESTIGACIÓN: HISTORIA Y
ANTROPOLOGIA DE LOS DESASTRES EN MÉXICO

Virginia García Acosta

Pensamos que era conveniente falar de como havia surgido essa linha
de investigação no México em torno da história e da antropologia dos desas-
tres, desde quando começamos a praticá-la e onde estamos nesse momento.
No México, os tremores de terra de 1885 constituíram um marco nesse
tipo de investigação, um separador de águas nesse campo de estudo.
E o CIESAS, desde um primeiro momento, se encontrou no estudo dos
tremores de terra. Em particular, desde as diferentes especialidades que,
todavia, tem a instituição, especialidades disciplinares: os linguistas fizeram
o seu trabalho, os historiadores o seu, os antropólogos...
(...)
Trabalhamos, basicamente, na elaboração de catálogos sobre tremores
de terra no México. Um deles, publicado em 1996, numa compilação dos
sismos ocorridos no México desde a época pré-hispânica até o século XX e
o segundo volume é a análise que um historiador e uma antropóloga fazem
sobre essa informação. Seguimos a mesma metodologia dos catálogos, da
época pré-hispânica até o século XX, sobre o que denominamos de desas-
tres agrícolas no México, quero dizer, desastres associados, neste caso, a pe-

– 15 –
rigos hidrometeorológicos, furacões, granizos, secas, ao largo de quinhen-
tos anos.
(...)
Temos, já, essa enorme quantidade de informação, mas somos inves-
tigadores, não somos compiladores. Havia que se fazer a análise de toda essa
informação e a primeira coisa que começamos a fazer é saber que tipo de
análise se havia feito e onde estavam essas análises.
Esse interesse da antropologia, descobrimos depois.
Iniciou-se na Grã-Bretanha e, depois, nos Estados Unidos, na década
de 1950, a partir de estudos de casos também ‘detonados’ por algum de-
sastre. Exemplos paradigmáticos são: a erupção de Lamington, o tornado
em Worcester, os tufões em Los Yap. Os antropólogos que fizeram esses
estudos estavam preocupados em identificar quais mudanças sociais havi-
am provocado a presença dessas ameaças naturais, as quais haviam provo-
cado os desastres.
(...)
Para os antropólogos, interessava mais os efeitos em certas esferas da
cultura e os métodos e técnicas próprios do trabalho da antropologia, como:
o trabalho de campo, a observação direta e participante.
(...)
Um pouco insatisfeitos com o que existia e com o que havia, com vá-
rios investigadores na América Latina decidimos impulsionar os temas que
nos interessavam. Mais particularmente, o tema da vulnerabilidade e da
prevenção. E fundamos, em 1992, a Rede de Estudos Sociais em Preven-
ção de Desastres na América Latina, sobretudo, tendo a vulnerabilidade com
ênfase e não [o fizemos] na atenção e na emergência. É dizer, a prevenção.
E, daí, o próprio nome que a Rede teve.
A Rede foi sumamente produtiva. Era a Década Internacional para la
Reducción de Desastres nas Nações Unidas e havia recursos dos quais nos
aproveitamos muito bem, através do coordenador da Rede, e fizemos uma
série de estudos comparativos na América Latina e nós já estávamos no tra-
balho em torno disso desde o CIESAS.
Começamos a recompilar trabalhos, a comparar, e os exemplos que lhes
mostro é o da “Historia y Desastres en América Latina”, publicados dois volu-
mes. O terceiro publicado em 2008, onde há estudos de casos comparati-
vos em diferentes partes da América Latina, incluindo de casos brasileiros,
sobretudo, atendendo o assunto das secas.
(...)

– 16 –
De novo, um desastre, que foi o [relacionado ao] furação Isidore, que
tomou outra série de trabalhos. Foram publicados dois números da revista da
Universidade Autónoma de Yucatán, com dois trabalhos: um deles, o de
Esteban Krotz, “Reflexiones desde la antropologa sobre el huracán Isidore” e, o ou-
tro, em que já começamos a insistir que furacão e desastre não deveriam ser
sinônimos, não são sinônimos, não deveriam ser sinônimos e deveriam seguir
como um encontro entre uma ameaça natural e uma sociedade vulnerável.
(...)
De novo, um desastre relacionado ao furacão Paulina, que afetou a
Costa Pacífica do México. Nesse trabalho, publicamos o estudo de duas es-
tudantes, agora já doutoras, que fizeram trabalho de campo em Oaxaca e
Guerrero, por Claudia Villegas e Gabriela Vera Cortêés. Este foi um finan-
ciamento que tivermos da Universidade de Geórgia e começamos a traba-
lhar com esse conceito que tem sido fundamental, o da construção social dos
riscos, com ênfase não nas ameaças e, sim, a vulnerabilidade nesse contexto.
(...)
Qual é a metodologia que, em termos gerais, temos utilizado?
Não vou detalhar toda ela, mas, é uma combinação entre a larga dura-
ção, a comparação, a dimensão sincrônica e diacrônica, a ecologia cultural e a ecologia
histórica. Essa parte dos mestres tem sido fundamental para a metodologia
que utilizamos em nossos trabalhos históricos e antropológicos.
Sobre desastres, uma reflexão ao redor disso que apareceu na revista
Relaciones, do Colegio de Michoacán, em que falamos dessa necessária com-
binação entre história e antropologia, ao reconhecer que os desastres são pro-
cessos, os desastres se constroem com o tempo.
(...)
O que nos mostra esse olhar antropológico, com evidência empírica,
histórica – com dados de quinhentos anos – antropológica, com trabalho
de campo?
Que os riscos e os desastres relacionados a ameaças de origem natural
incluem processos, processos multidimensionais e multifatoriais que resul-
tam da associação da ameaça com um contexto determinado vulnerável.
(...)
Os desastres são processos resultantes de condições críticas preexis-
tentes, dentro das quais, a vulnerabilidade e, particularmente, a construção
social de risco, que ocupam um lugar determinante em associação a uma
determinada ameaça natural.

– 17 –
Os desastres, portanto, não são naturais.
E esta foi a primeira publicação de La RED, precisamente, com o títu-
lo “Los desastres no son naturales”.
Dois conceitos fundamentais que trabalhamos desde essa época, e se-
guimos, a vulnerabilidade com suas diferentes dimensões:
t a vulnerabilidade global,
t a vulnerabilidade diferenciada,
t a vulnerabilidade acumulada e
t a construção social dos riscos.

E a entendemos como a forma como a sociedade em sua interação com


os outros sistemas constroem contexto vulneráveis e criam as ameaças.
A construção social de riscos é uma construção histórica, os desastres
são processos.
(...)
Depois de haver trabalhado com esse conceito, a construção social dos
riscos, a origem dos processos, como os mesmos se constroem, esses pro-
cessos desastrosos perante a presença de uma ameaça natural, havia que ter
o outro lado da moeda: como se tem construído outras formas, como se tem
construído a maneira de enfrentar as ameaças?
E é isso que estamos trabalhando atualmente.
É a partir de uma hipótese: a sociedade não tem sido ente passivo ante
a presença histórica e recorrente de determinadas ameaças climáticas, e nesse
caso, ante os ciclones e furacões. Os tremores de terra são mais complica-
dos, nesse caso. Decidimos tomar em conta as ameaças recorrentes, que tem
estado sempre, por gerações, diante as quais a hipótese é aplicável, digamos.
(...)
Corolário: o estudo histórico social sobre risco e desastre tem demons-
trado que – temos dados, temos quinhentos anos de tremores de terra, agora
furacões, secas, granizos, nevascas – os desastres têm se tornado mais frequen-
tes. Não é porque se apresentam maior número de ameaças, senão porque,
com o tempo, nossas comunidades têm se tornado mais vulneráveis.
(...)
Trabalhar desde a resiliência e da prevenção – lamento muito usar o
termo resiliência, não gosto nada, é um anglicismo, mas não encontrei algo

– 18 –
similar, como uma habilidade desenvolvida a partir do planejamento e da
criação de estratégias – é trabalhar sobre um conceito (...) que é o da cons-
trução da prevenção dos desastres.
Passar da construção social dos riscos para a construção social da pre-
venção, porque partimos da hipótese de que os grupos e as comunidades
são a origem dos desastres para desconhecer a solução. A sociedade cons-
trói riscos, mas também os grupos e as comunidades podem ser a fonte ge-
radora de estratégias de prevenção, de estratégias de adaptação formuladas
como resposta à recorrência de ameaças.
(...)
Para terminar, só uma pequena amostra das publicações que sobre o
tema tem o CIESAS. Não todas estão disponíveis em internet. Mas, sim,
as publicações de La RED estão todas em internet e as podem consultar e
baixar em: www.desenredando.org.
E assim [mostrando um glifo prehispánico] é que, na época pré-hispâ-
nica (no Códice Telleriano-Remensis), se representava um tremor de terra,
uma queda de granizo e uma erupção vulcânica.

Muito obrigada!

– 19 –
– 20 –
ENTREVISTA VIRTUAL CONCEDIDA, EM JULHO DE 2014, POR
SAMIRA YOUNES IBRAHIM E LUIZ HENRIQUE DE SÁ, MEMBROS
IDEALIZADORES, FUNDADORES E PARTICIPANTES DA REDE DE
CUIDADOS-RJ/PSICOLOGIA DAS EMERGÊNCIAS E DOS DESASTRES

Norma Valencio: Quais são as circunstâncias que motivaram a construção da Rede


de Cuidados?
Samira e Luiz Henrique: No início de 2008, vivenciamos uma grande en-
chente no município de Petrópolis. Mais uma situação de enchentes e
deslizamentos, que fazem parte da história dos municípios da região serra-
na do Estado do Rio de Janeiro. Na época, fazíamos parte da comissão
gestora para a região serrana do Conselho Regional de Psicologia do Rio de
Janeiro e a comissão escolheu levar para a região a discussão sobre psicolo-
gia e desastres e o papel do psicólogo nesse contexto. Durante as discus-
sões da comissão sobre o assunto, gestamos a criação da Rede de Cuidados.
Inicialmente a proposta da Rede de Cuidados era levar a discussão do
tema desastres para todos os municípios da região serrana do Estado do Rio
de Janeiro, começando com reuniões locais com os psicólogos, mapear os
desastres por municípios, mapear os recursos locais, promover reuniões com
representantes dos municípios (foram convidados representantes de secre-
tarias de saúde e educação, defesa civil e associações de moradores). Tendo
como proposta formar núcleos da Rede de Cuidados em cada município,
contando com equipes multidisciplinares, associações, comércio, outros con-
selhos, etc. Contribuir para a formação e preparação dos participantes. No
primeiro momento, pensamos em dois eixos: prevenção e ação. Com o even-
to de 2011, incorporamos o terceiro: reconstrução.
O marco do começo da Rede de Cuidados foi o I Seminário da Rede
de Cuidados/Psicologia das Emergências e dos Desastres, em outubro de
2008, no município de Petrópolis-RJ. Todos os seminários são abertos ao
público em geral os municípios da região serrana são convidados, órgãos
públicos, associações, ongs, etc e, até hoje, não cobramos inscrição.
A partir do lançamento, iniciamos a mobilização da região serrana com
reuniões municipais e intermunicipais.
Em 2010, foi realizado o II Seminário da Rede de Cuidados, Petrópolis.
Em 2011, constituímos a organização não governamental Rede de
Cuidados-RJ.
O III Seminário foi realizado em 2012 e o IV em 2013.

– 21 –
Norma Valencio: Quem se articulou dentro da mesma? (quais profissionais e de
que municípios)?
Samira e Luiz Henrique: A Rede tem como foco o resgate emocional de
pessoas que sofrem com os desastres. Buscamos desenvolver junto às comu-
nidades, profissionais e lideranças, ações que considerem a multidimensio-
nalidade humana e possibilitem a formação de agentes de transformação
pessoal e social. Trabalhamos também com suporte emocional também para
as equipes que trabalham com desastres.
Temos realizado seminários, oficinas com comunidades e profissionais,
promovendo discussão, informação e aprofundamento de temas ligados a
emergências e desastres.
Iniciamos nossa atuação no município de Petrópolis, com os psicólogos
da comissão gestora e outros colegas voluntários. Os segmentos escolhidos
para dar inícios aos trabalhos foram: psicólogos, professores, lideranças co-
munitárias e religiosas. Posteriormente, outros profissionais uniram-se às
discussões, trabalhos e participação nos eventos (assistente social, advoga-
do, guarda florestal, médico, enfermeiro, agente de saúde, radioamador,
engenheiro, etc), assim como associações de moradores, defesa civil, uni-
versidades.
Os municípios, além de Petrópolis, onde já realizamos reuniões e ofi-
cinas foram: Teresópolis, Nova Friburgo, São José do Vale do Rio Preto,
Cordeiro, Sumidouro. Sobre a participação nos seminários: além dos cita-
dos anteriormente, contamos com a presença dos municípios de Bom Jar-
dim, Cachoeiras de Macacu, Macuco, Trajano de Moraes, Cantagalo,
Cordeiro, Santa Maria Madalena, São Sebastião do Alto, Carmo, Areal, Rio
de Janeiro e São Gonçalo.

Norma Valencio: A que práticas a Rede de Cuidados vem se dedicando em crises


crônicas (como a de 2011) e na crise social crônica (tb. entendida, pela defesa civil,
como normalidade)? Dê exemplos, como a dos seminários realizados. Com qual apoio
material as realiza?
Samira e Luiz Henrique: Na situação de 2011, contamos nos primei-
ros meses com o apoio logístico do CRP-RJ [Conselho Regional de Psicolo-
gia do Rio de Janeiro] e, posteriormente, seguimos por conta própria e
algumas parceiras. Voluntários somaram-se aos psicólogos que já participa-
vam da Rede de Cuidados. Atuamos realizando mapeamento dos municí-
pios atingidos, plantão psicológico nos abrigos do município de Petrópolis,
acompanhamento dos voluntários, facilitação de reuniões intersetoriais,
reuniões nos outros municípios. Temos parcerias com Universidades, De-
fesa Civil, Médicos Sem Fronteiras, Koinonia, Associação de Moradores.

– 22 –
Na crise social crônica, seguimos mobilizando e contribuindo para
formar massa crítica sobre o tema, através dos seminários, oficinas com co-
munidades, participação em cursos, debates, congressos, etc. Sobre o apoio
material: às vezes, conseguimos pequenas parcerias para algumas ações, mas
insuficientes para a amplitude de nossas propostas de investimento no hu-
mano, quando colocamos nossos próprios recursos, como, por exemplo, nos
dois últimos Seminários da Rede de Cuidados, em algumas oficinas em co-
munidades, na participação em congressos.

– 23 –
SEÇÃO II

DESASTRES NUM CONTEXTO


INTERNACIONAL
CAPÍTULO I

DESASTRES PLANEJADOS:
MEGAPROJETOS E TRAUMA
SOCIOAMBIENTAL – O CASO
HIDROAYSÉN
Alex Latta

INTRODUÇÃO: MEGACENTRAIS E CONFLITO AMBIENTAL

Durante a última década, os conflitos sobre as centrais hidrelétricas


redefiniram a identidade da região de Aysén, tanto para seus habitantes como
também na imaginação geográfica do país. Apesar do fato de que o plano de
ordenamento territorial vigente (SERPLAC, 2005) e de que a Estratégia de
Desenvolvimento 2009-2030 (GOBIERNO REGIONAL DE AYSÉN;
CEPAL, 2009) poucas vezes mencionarem as centrais hidrelétricas durante
o processo de definição de uma visão para o desenvolvimento da região, os
debates sobre o futuro dos rios de Aysén serão fundamentais para determi-
nar o caráter de sua futura evolução social, cultural e ecológica. Até o presente
momento, a Patagonia Chilena, especialmente a região de Aysén, é mantida
longe dos efeitos socioambientais do desenvolvimento econômico associado
com o modelo neoliberal que tem transformado o centro e norte do país
(ALTIERI; ROJAS, 1998; CARRUTHERS, 2001). De tal maneira, a Pata-
gonia apresenta uma realidade única dentro do Chile, captada no slogan de
uma rede de organizações que promove uma visão alternativa para o futuro
desenvolvimento da região de Aysén: Aysén Reserva de Vida. Entretanto, gra-
ças a sua tremenda potência hídrica, Aysén chama a atenção de investido-
res que veem a possibilidade de transformar os fluxos de águas glaciais em
fluxos de eletricidade e capital.

A versão anterior deste capítulo foi publicada anteriormente na revista Sociedad Hoy, nú-
mero 20, 2011: 111-129. Disponível em www.sociedadhoy.cl. O autor agradece a todas as
pessoas que participaram no transcurso da pesquisa para este estudo, algumas como repre-
sentantes de suas respectivas organizações e outras simplesmente como cidadãos e mem-
bros das comunidades da região de Aysén. A pesquisa foi possível graças ao apoio do Conselho
Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá.

– 27 –
Em 2003, o movimento ecológico conseguiu dar um basta nas ambi-
ções da empresa Noranda, que propunha uma refinaria de alumínio basea-
da na geração de eletricidade na bacia do rio Cuervo. Outra versão desse
projeto foi promovida por uma associação das empresas transnacionais Origin
Energy (Austrália) e Glencore (Reino Unido/Suíça). Entretanto, trata-se de
outro megaprojeto que define o debate sobre o futuro da região: as centrais
de HidroAysén, uma associação formada pelas empresas ENDESA (de Enel,
Itália) e Colbún (de capital chileno). Ingressado no sistema de avaliação
ambiental (SEIA) em 2008, o projeto se transformou em um dos temas
ambientais mais polêmicos em nível nacional (LATTA; CID AGUAYO, 2012).
Sua aprovação ambiental em 2011 produziu manifestações significativas em
todo Chile e contribuiu de forma importante para a mobilização cidadã que
deixou a Região de Aysén paralizada por várias semanas durante o verão de
2012 (McCALLISTER, 2012). No início de 2014, a aprovação presidencial
para HidroAysén ainda estava pendente, enquanto era esperada a avaliação
ambiental da linha de transmissão associada com o projeto.
A seguinte análise abarca o projeto HidroAysén como parte da proble-
mática mais ampla dos chamados “megaprojetos”. Muitos processos de
mudança e conflito ambiental provocados pelos processos de globalização
econômica têm um caráter incremental, como por exemplo o desmatamento,
o esgotamento dos recursos marinhos, a concentração de terras e o cresci-
mento da agroindústria. Em contrapartida, as convulsões socioecológicas
associadas com os megaprojetos são normalmente agudas. Os projetos de
grande envergadura, como as represas, a extração de minérios ou petróleo
e as fábricas de celulose, provocam mudanças drásticas e conflitos radicais
que irrompem no cenário político de tal maneira que freqüentemente exer-
cem uma influência determinante sobre as políticas ambientais e sociais de
regiões e países inteiros. No Chile, os casos da Central Hidrelétrica Ralco,
construída pela Endesa, a contaminação do rio Cruces pela fábrica de ce-
lulose Arauco e o projeto mineiro Pascua Lama realizado pela Barrick Gold,
são exemplos bastante claros desse fenômeno.
Há uma literatura sobre os impactos e conflitos associados aos mega-
projetos específicos, como as represas (por exemplo, CUMMINGS, 2009;
LATTA, 2007; McCULLY, 2004; WORLD COMISSION ON DAMS,
2000), ou as minas (por exemplo, O’CONNOR; BOHÓRQUEZ, 2010;
SVAMPA; SOLA ÁLVAREZ, 2010; TRISCRITTI, 2013; URKIDI, 2010).
Não obstante, nota-se a carência de um marco analítico que nos permitiria
identificar os megaprojetos como um fenômeno em si, que pelo tamanho e
características sociais, políticas e ecológicas, tais projetos tendem a provo-
car a mesma cadeia de reações e impactos em cada caso. Em um passo em
direção a tal marco teórico, este artigo propõe comparar os impactos dos

– 28 –
megaprojetos com a série de trastornos associados com os desastres am-
bientais provocados pelas falhas da tecnologia – conhecidos como “desas-
tres tecnológicos” – como por exemplo o derrame petrolífero do Exxon
Valdez, nos Estados Unidos, ou o acidente catastrófico da fábrica Union
Carbide, em Bhopal, Índia. À raíz de tais desastres surgem não somente
problemas diretamente relacionados com os impactos no ambiente e na
saúde da população afetada, mas também uma série de perturbações
psicosociais em nível comunitário que derivam dos vínculos entre ecologia,
economia, identidade, instituições e relações interpessoais (KROLL-SMITH;
COUCH, 1993; PICOU; GILL, 2000). Os afetados por tais perturbações
sofrem de um alto nível de insegurança sobre seu futuro, juntamente com uma
perda de confiança nos atores institucionais (EDELSTEIN, 1988; RITCHIE;
GILL, 2007). Em nível comunitário é possível identificar uma espécie de
trauma coletivo (ERIKSON, 1994), que leva uma comunidade a diversos
conflitos internos que, por sua vez, geram uma descomposição das relações
de reciprocidade que são indispensáveis para o equilíbrio e bem-estar soci-
al e interpessoal. (PICOU; MARSHAL; GILL, 2004; RITCHIE; GILL,
2007).
Com algumas adaptações, o marco analítico desenvolvido na litera-
tura sobre desastres tecnológicos promete uma inovadora forma de enten-
der os conflitos socioambientais associados com os megaprojetos. Através
de uma comparação entre o caso de HidroAysén e os desastres tecnológicos,
propõe-se que, de certa maneira, deve-se entender os megaprojetos como
desastres planejados. Diferentemente dos eventos que normalmente qualifi-
camos como desastres, os impactos dos desastres planejados começam du-
rante sua elaboração, graças ao debate e ao conflito prévio envolvendo a
massiva e permanente modificação biofísica do entorno natural. Ainda que
o presente capítulo limita-se a demonstrar a utilidade dessa perspectiva no
caso das megacentrais hidrelétricas, também é apresentada uma análise de
uma série de processos socioambientais que são facilmente comparáveis
através de diferentes tipos de megaprojetos. Assim, o capítulo aponta para
uma nova agenda de investigação para explorar tal comparatividade atra-
vés de outros casos.
A análise do caso do projeto HidroAysén apresenta um estudo explo-
ratório e não uma investigação quantitativa, com o propósito de documentar
a frequência ou severidade dos fenômenos que identifica; baseia-se em en-
trevistas e observação participativa realizada pelo pesquisador durante duas
visitas a Aysén, uma em 2009 e outra em 2010, totalizando quatro sema-
nas. Durante tal período, foram visitadas as comunidades de Coyhaique,
Cochrane, Chile Chico, Caleta Tortel, Puerto Guadal, Puerto Tranquilo,
Bahía Murta e Cerro Castillo. No total, foram realizadas mais de cinquenta

– 29 –
entrevistas com atores de diferentes setores, incluindo representantes de
serviços públicos, líderes dentro das organizações ambientalistas, prefeitos
e vereadores, dirigentes comunitários e sindicais, e moradores das comuni-
dades da região. As entrevistas tinham um caráter etnográfico, cada uma
dirigida pelo investigador segundo o perfil do entrevistado, com as pergun-
tas focalizadas nos seguintes objetivos: (a) investigar as dinâmicas do confli-
to e a interação entre diferentes atores públicos, privados e da sociedade civil,
(b) conhecer as visões e experiências do conflito desde diferentes setores den-
tro da sociedade de Aysén e desde diferentes localidades na região, e (c) do-
cumentar os impactos do conflito ao nível das relações de convivência dentro
de cada comunidade. Dado o alto nível de desconfiança evidente em relação
ao tema do conflito, e para proteger os participantes dos riscos percebidos com
o ato de compartilhar opiniões com um pesquisador acadêmico, as entrevis-
tas não foram gravadas na maior parte dos casos. Pela mesma razão, os no-
mes dos participantes e outros detalhes que poderiam delatar suas identidades
(o que em muitos casos inclui o nome das comunidades quando são associa-
dos com observações específicas) foram omitidos.
A análise começa com uma exploração da literatura sobre os proces-
sos socioecológicos iniciados pelos desastres tecnológicos, a fim de desen-
volver um quadro geral analítico que possa ser aplicado aos megaprojetos.
A segunda fase do capítulo consiste em um resumo de evidência etnográfica
que demonstra a utilidade desse quadro para caracterizar os impactos
psicossociais provocados pelo conflito socioambiental associado com
HidroAysén.

O QUADRO ANALÍTICO: DOS DESASTRES


TECNOLÓGICOS AOS MEGAPROJETOS

É fundamental entender os desastres não somente através de seus


impactos na saúde das pessoas ou da economia, mas também como acon-
tecimentos mediados por filtros e processos socioculturais. De acordo com
Picou et al. (2009, p. 282), “a história sociocultural local que estabelece as
concepções de cultura e organização social también vincula as comunida-
des ao seu meio biofísico”. Tal abordagem tem como base a perspectiva eco-
lógica-simbólica de Kroll-Smith e Couch (1991), que enfatiza a relação de
interdependência entre a experiência das mudanças na natureza e a sua
construção social na dimensão cultural. A partir de tal perspectiva, como
argumentado em Picou e Gill (2000, p. 145), “Precisamos observar a dete-
rioração física do ambiente natural, a construção social deste legado e as
consequências posteriores para a comunidade humana dentro de um con-
texto sociocultural dinâmico” (ver também PICOU; MARSHAL; GILL,

– 30 –
2004; PICOU et al., 2009). No presente contexto, é importante salientar
não somente a influência da cultura na interpretação dos desastres, mas
também os trastornos na esfera simbólica provocados por graves mudan-
ças ambientais (ver também RITCHIE; GILL, 2007; EDELSTEIN, 2000).
Para aumentar esse quadro sociológico com um ponto de vista antropoló-
gico, Oliver-Smith (2002, p. 26) afirma que “Os desastres revelam em seus
desdobramentos as ligações e as interpenetrações das forças naturais ou
agentes, estruturas de poder e arranjos sociais, valores culturais e sistemas
de crenças”.
Resumidamente, os desastres são fenômenos simultaneamente
biofísicos e socioculturais. Assim, é posível concluir que o caráter de qual-
quer desastre necessariamente varia conforme suas propriedades materiais –
seus impactos ecológicos – e segundo as relações socioculturais que interagem
com tais propriedades. Assim, os pesquiadores que investigam os desastres
tecnológicos oferecem argumentos convincentes para distinguir tais desastres
dos desastres naturais. Ainda reconhecendo que não é possível fazer uma
distinção absoluta entre os dois tipos de fenômeno, tais pesquisadores sus-
tentam que os desastres tecnológicos colocam em andamento uma sequência
de processos que produzem impactos a longo prazo – o “prejuízo psicosocial
crônico”, como apontado por Kroll-Smith e Couch (1993, p. 79).
Por um lado, as características do dano provocado pelos desastres
tecnológicos estão vinculadas à natureza e à duração de seus efeitos ecoló-
gicos. Diferentemente dos desastres naturais, os desastres tecnológicos
freqüentemente incluem ou são formados pela contaminação do meio am-
biente (GILL; PICOU, 1998; KROLL-SMITH; COUCH, 1993). O dano
arquitetônico causado por um terremoto, desabamento ou furacão normal-
mente pode ser revertido—através da reconstrução e da restauração—mas
é bem mais complexo (e às vezes impossível) sanear por completo um meio
que tenha sido contaminado com químicos tóxicos, metais pesados ou ra-
diação. De tal modo, um desastre como o recente acidente nuclear no Ja-
pão, ou a catástrofe da British Petroleum no Golfo do México em 2010,
constituem um dano ecológico cujos efeitos perduram por anos ou até dé-
cadas, apresentando assim um risco de comprometimento à saúde huma-
na, difícil de quantificar e mitigar.
Por outra parte, além de suas características ecológicas, os desastres
tecnológicos também se distinguem por suas conseqüências na dimensão
psicosocial. Como aponta Erikson (1994, p. 229), “É como as pessoas rea-
gem a eles, em vez de o que são, que dão aos acontecimentos qualquer ca-
racterística traumática que eles possam ter”. Essa afirmação poderia ser
aplicada a qualquier tipo de catástrofe, mas existe um elemento chave no
carácter dos desastres tecnológicos que condiciona as relações sociais que

– 31 –
os rodeiam: o fato de que estão claramente vinculados à ação (e negligên-
cia) humana. Como será explorado mais adiante, tal elemento faz com que
as feridas ecológicas produzam fortes réplicas no âmbito social.
Antes de elaborar uma comparação com os impactos dos mega-
projetos, os efeitos psicosociais dos desastres tecnológicos merecem ser ex-
plorados mais detalhadamente. Podem ser divididos em efeitos em nível
pessoal e efeitos comunitários. Em nível pessoal, os estudos realizados de-
monstram que as pessoas expostas a um desastre tecnológico costumam
sofrer uma perda de confiança, tanto em seu ambiente natural como no
governo e nas outras instituições e organizações de seu âmbito socioeco-
nômico (EDELSTEIN, 1988; RITCHIE; GILL, 2007). Sua relação com o
meio ambiente sofre um transtorno que é manifestado em uma forma si-
multaneamente material e simbólica: um entorno que uma vez sustentou
a vida, hoje mostra-se débil ou até mesmo perigoso. Se uma pessoa não pode
confiar em seu ambiente natural, é ainda menos provável que possa descan-
sar na confiabilidade dos atores humanos. Com base na negligência huma-
na que resultou em desastre, empresários e políticos são mais uma vez vistos
como parciais e preocupados apenas com os seus próprios interesses, incom-
petentes ou até mesmo corruptos. Esta desconfiança freqüentemente vem
acompanhada pela percepção de que o ator responsável pelo desastre, ou
as agências do estado que supostamente velam pelo interesse público, des-
valorizam ou desumanizam as vítimas do desastre – principalmente quan-
do tentam fugir de suas responsabilidades (BROWN; MIKKELSEN, 1990;
ERIKSON, 1994). Tal cenário produz alienação, vulnerabilidade e insegu-
rança – uma coleção de emoções, organizada a partir do conceito de segu-
rança ontológica, desenvolvida por Anthony Giddens (RITCHIE; GILL,
2007). A segurança ontológica é uma forma de caracterizar a confiança que
as pessoas têm na estabilidade de suas personas (identidade e bem estar) e
de seus ambientes (relações sociais e ambiente biofísico). Como apontado
por Ritchie e Gill (2007, p. 115), as mudanças negativas no ambiente de
vida (“lifescape” em inglês) podem diminuir o nível de segurança ontológica
nas pessoas (GILL; PICOU, 1998). Erikson captura o mesmo sentido de um
dano invasivo ao tecido do mundo ecológico, simbólico e psicosocial:
Os seres humanos são cercados por camadas de confiança, que
radiam em círculos concêntricos, como as ondas em um lago. A ex-
periência de trauma, na pior das hipóteses, pode significar não só a
perda de confiança em si, mas uma perda de confiança no andaime
de família e comunidade, nas estruturas do governo humano, nas
grandes lógicas pelas quais a humanidade vive, e nos caminhos da
própria natureza. (ERIKSON, 1994, p. 242)

– 32 –
Com base em tal visão, é possível afirmar que a confiança é inerente
às relações que vinculam pessoas com seu entorno socioecológico. Assim, a
desconfiança também pode ser entendida como o elemento chave nos im-
pactos coletivos associados com os desastres tecnológicos, atuando como
outra espécie de toxina para desarticular as relações que unem os membros
de uma comunidade. Outra vez Erikson ajuda a conceitualizar o que ele
denomina trauma coletivo: “Por trauma coletivo, por outro lado, refiro-me a
um duro golpe para os tecidos básicos da vida social que danifica os laços
inerentes as pessoas e prejudica o sentido predominante de comunalidade»
(idem, p. 233). Picou, Marshall e Gill (2004) observam que diferentemente
das comunidades afetadas pelos desastres naturais, àquelas impactadas pe-
los desastres tecnológicos tem uma alta tendência ao conflito intracomuni-
tário. Assim, Kroll-Smith e Couch (1993) argumentam que a resposta social
à contaminação biosférica chega a constituir sua própia fonte de estresse para
as comunidades afetadas – um fenômeno freqüentemente denominado “co-
munidade corrosiva” ou “desastre secundário” (GILL; PICOU, 1998; PICOU
et al., 2009; PICOU; MARSHAL.; GILL 2004; RITCHIE; GILL, 2007). Em
diversos casos, a resposta contraditória aos desastres tecnológicos encarna-
se em batalhas legais, que aguçam as divisões comunitárias (PICOU;
MARSHALL; GILL, 2004; RITCHIE; GILL, 2007).
Existem vários processos relacionados aos desastres tecnológicos que
influenciam na produção de estresse e conflito intracomunitário. Ao explorar
um dos casos mais estudados – o derramamento de petróleo de Exxon Valdez
em 1989, que afetou a costa do Alasca na região do Estreito de Príncipe
William – podemos numerar os fatores na comunidade corrosiva através de
exemplos mais concretos. O primeiro fator está relacionado às diferentes
interpretações dos eventos e impactos, segundo a experiência e visão do
mundo de cada pessoa e grupo afetado. Tais interpretações também são afe-
tadas pelas diferentes relações com atores externos. No caso do derramamento
de petróleo de Exxon Valdes, Gill e Picou (1998) documentam as tensões que
surgiram nas comunidades já que os impactos econômicos foram distribuí-
dos de maneira bastante desequilibrada. Alguns se beneficiaram do aumen-
to da população durante os meses de limpeza, enquanto outros (como os
pescadores) sofreram uma perda total de seu modo de ganhar a vida. Esta
tensão foi agravada quando alguns moradores aceitaram trabalhos lucrativos
com a empresa nas obras de saneamento, abrindo assim profundas divisões
na comunidade. As relações contenciosas relacionadas com tais diferenças
foram aguçadas pelos processos de litigação, que duraram até uma década
depois do desastre (PICOU; MARSHALL; GILL, 2004).
Para voltar ao início, o efeito líquido de tais processos para as comunida-
des foi o crescimento de desconfiança entre os habitantes. Ritchie e Gill (2007)

– 33 –
destacam o vínculo entre tal desconfiança e a diminuição de relações de reci-
procidade que são fundamentais para manter o tecido comunitário. É propos-
to que podemos entender tal efeito dos desastres tecnológicos como uma crise
de “capital social”, que deixa as comunidades sem as ferramentas e vias de co-
municação para abordar seus problemas e surgir como coletividade.
A próxima seção de análise explora o caso de HidroAysén para iden-
tificar um conjunto de impactos associados com o megaprojeto que asse-
melham o complexo de trastornos individuais e coletivos aqui enumerados
aos desastres tecnológicos. As semelhanças são verdadeiramente surpreen-
dentes, mas há uma diferença fundamental que existe entre os dois fenô-
menos: os desastres são eventos marcados e intrinsicamente imprevisíveis,
enquanto os megaprojetos são planejados e podem levar anos para serem
materializados. Não obstante, ambos fenômenos possuem uma caracterís-
tica temporal que permite-nos deduzir uma dinâmica psicossocial comum.
Vimos que, ainda que os desastres tecnológicos possam ter suas raízes em
eventos catastróficos, os impactos psicossociais que são gerados têm dinâ-
micas quase independentes. Ao caracterizar o trauma associado com os
desastres tecnológicos, Erikson (1994, p. 229) afirma que “o ‘trauma’ tem
que ser entendido como resultando de uma constelação de experiências de
vida, assim como a partir de um acontecimento discreto, a partir de uma
condição persistente, assim como a partir de um evento agudo». Se consi-
deramos que o “desastre secundário” da deterioração nas relações sociais
não pode ser separado do mesmo evento biofísico de uma catástrofe am-
biental, é imprescindível entender cada etapa dos impactos socioecológicos
em relação às etapas anteriores. O trauma do evento é revivido e reinterpretado
como o ponto de referência e o elemento integrador para as experiências do
transtorno psicossocial que o seguem como impactos secundários.
Assim, é levantada a possibilidade de inverter a lógica dos desastres
tecnológicos e identificar os megaprojetos como uma espécie de catástrofe
socioecológica que se desenvolve ao contrário. Tal como a contaminação
ambiental, um megaprojeto traz mudanças no ambiente natural que per-
duram no tempo. Mas nesse caso é a ameaça de tais mudanças que serve
como o elemento integrador para provocar um estresse psicossocial gerado
por um desastre “secundário” (o desenvolvimento de relações comunitári-
as corrosivas) desatado pelo conflito que prefigura a modificação do meio
ambiente. Tal como os desastres tecnológicos, os megaprojetos são produ-
tos da ação humana, mas diferentemente dos desastres, há uma intenção
inerente no que diz respeito ao planejamento, à antecipação e ao resultado
dos megaprojetos. São desastres planejados, e distante de compensar pelos
fatores associados aos impactos dos desastres tecnológicos, a intencio-
nalidade que os impulsa aponta precisamente para o agravamento da dinâ-

– 34 –
mica de contenção e desconfiança que produz o processo de corrosão soci-
al em uma comunidade.

O PROJETO HIDROAYSÉN: DIMENSÕES DE UM DESASTRE PLANEJADO


É evidente que o projeto HidroAysén promete mudanças dramáticas
para a XI região do Chile. A proposta compreende a instalação de cinco
represas, duas no rio Baker e três no rio Pascua, que inundariam cerca de
5.910 hectares (HIDROAYSÉN, 2011). Também implica a construção de
uma linha de eletricidade de mais de dois mil quilômetros para transportar
a eletricidade ao seu ponto de injeção no sistema interconectado central.
Para alguns, os impactos de tal infraestrutura seriam diretos. No caso mais
extremo, a comunidade dos Ñadis, perto de Cochrane, seria inundada por
um dos reservatórios no rio Baker. Durante 2010 e 2011, os habitantes de
Ñadis foram pressionados por representantes da HidroAysén a considerar
suas opções para relocação e a maioria teve que optar por negociar sem
nenhum apoio por parte das autoridades para velar por seus direitos. Por
sua vez, outros habitantes da região verão seus campos afetados ou suas
paisagens alteradas pelas torres de alta tensão. Muitos outros sofreriam
impactos que são ainda mais difíceis de identificar ou quantificar, em alguns
casos porque o estudo de impacto ambiental (EIA) realizado pela
HidroAysén não considera certos tipos de impactos “indiretos” do projeto
e em outros casos porque o EIA carece de linhas de base suficientemente
detalhadas para poder prognosticar as eventuais conseqüências das modi-
ficações massivas à ecologia dos rios e suas proximidades.1 Apesar da incer-
teza sobre a magnitude dos impactos das represas, é possível numerar as
preocupações expressadas pelos habitantes da região, e pelas organizações
comunitárias e não governamentais que exerceram influencia durante os
debates sobre o projeto.
Segundo as observações recolhidas durante o processo de investigação
etnográfica, tais preocupações podem ser classificadas em cinco categorias:
1. Existe um medo – compartilhado por muitos habitantes da região –
de que o projeto implicaria uma modificação fundamental nos
ecossistemas de Aysén. Por exemplo, é frequentemente mencionado

1. O estudo de impacto ambiental elaborado pela HidroAysén não cobre os impactos sociais,
culturais e psicológicos. Em geral, há diversos debates sobre os impactos ambientais ge-
rados pelo projeto. Os opositores do projeto indicam que há uma série de deficiências no
que diz respeito à dimensão ambiental, inclusive a falta de informação adequada para
determinar os impactos sobre a flora e fauna, na produção agrícola, no fluxo de sedimentos
e nutrientes em ecossistemas aquáticos e marinhos e atividade sísmica na região
(HARTMANN, 2010; IRN, 2009).

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o estado sumamente frágil da população de huemules (Hippocamelus
Biaculu), uma espécie de cervo em perigo de extinção. Da mesma
maneira, os habitantes das regiões próximas à foz expressam medo
e preocupação com a alteração do rio e os impactos que pode ter nos
recursos marinhos – um risco que conhecem devido à atividade de
pesquisadores na região, cujos estudos começaram a indagar os vín-
culos entre rios, sedimentos e produtividade nos ecossistemas ma-
rítimos dos fiordes de Aysén (SILVA; VARGAS; PREGO, 2011;
VARGAS et al., 2011).
2. Para outros habitantes da região, o projeto concretiza uma ameaça
associada à privatização da água. Em uma parte do mundo onde a água
sempre foi abundante, os pequenos agricultores temem perder seu
acesso. Os agricultores locais, cujo emprendimento é a base da eco-
nomia da região, vem usando usam água como um bem comum por
várias gerações. Não obstante, a construção das represas exige a
concretização dos direitos legais à água pertencentes a Endesa no tre-
cho do rio onde se pretende construir as represas.2 A proteção de tais
direitos implica a perda do uso de tal água pelos habitantes que vi-
vem em partes superiores das bacias dos rios Baker e Pascua. A viabi-
lidade da produção agrícola e pecuária sob tais condições é duvidosa.
3. A terceira preocupação fortemente registrada durante o processo de
investigação, intimamente relacionada com a anterior, é a perda do
modo de vida e cultura tradicional da região. Existe uma veneração
pela geração de pioneiros que abriram Aysén para a colonização. Não
obstante, as pressões associadas à precariedade da economia pecuá-
ria em face à fragilidade dos solos, a migração da juventude para as
cidades e para outras regiões de Chile, e a compra de terras para
conservação e turismo, resultam no desaparecimento gradual do
gaúcho e da família tradicional da região da Patagônia, junto com suas
vestimentas, música y outros costumes. Também é possível perce-
ber o quão ameaçados outros aspectos mais genéricos da vida rural
se encontram: a tranquilidade, o ritmo do tempo no campo, as rela-
ções de convivência com os vizinhos. Ainda que os entrevistados
dêem boas vindas ao “progresso”, aqueles que expressaram preocu-
pação pelas represas diziam que a forma de progresso trazido pelas
represas promete acelerar a perda da autenticidade da vida em Aysén.

2. Os direitos à água nos rios Baker e Pascua foram inscritos pela Endesa enquanto ainda
era uma empresa estatal nos termos do Código de Águas de 198, depois de ser incluídos
com os outros bens da empresa, quando foi privatizada durante os últimos anos da dita-
dura. Atualmente, os direitos à água em todos os principais rios da região estão nas mãos
de corporações transnacionais.

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4. Para parte das pessoas entrevistadas, a inquietude sobre rápidas mu-
danças no estilo de vida resulta especialmente aguda graças à sua
vulnerabilidade com relação aos impactos associados com a chegada
de milhares de trabalhadores durante a etapa de construção (10-15
anos), o que produziria um transtorno na economia local (principal-
mente na comunidade de Cochrane), provocando incrementos no
custo de propriedade e insumos de todos os tipos. Aquelas pessoas que
são contra o projeto asseguram que a renda de uma população de tra-
balhadores mudaría profundamente a sociedade da região, atraindo
valores urbanos e instalando o consumo das drogas e a prostituição
como novos problemas sociais. Tais medos foram parcialmente con-
firmados pelos efeitos socioeconômicos experimentados durante o
crescimento súbito da população durante o período do EIA.
5. Finalmente, muitas pessoas entrevistadas declararam que o projeto
de HidroAysén ameaça a forte relação existente entre as pessoas da
região e o ambiente natural, um fenômeno nunca valorizado no EIA.
Tal preocupação demonstra os potenciais impactos na ordem sim-
bólica, na qual a mesma presença de barragens, reservatórios e tor-
res de transmissão de alta tensão deixaria una marca psicológica que
constitui um impacto emocional e espiritual.

Em muitos casos, essas preocupações apontam para fatores que não


foram compreendidos no EIA para o HidroAysén. Entretanto, o propósito
em mencionar tais preocupações não é discutir o real alcance de eventuais
impactos. Ao contrário, propõe-se que as sensações de vulnerabilidade e in-
certeza perante tais riscos percebidos constituem a base para um ciclo de
estresse e trauma que já repercute pelas comunidades da região, apesar de
que os muros e reservatórios ainda não serem nada mais que uma coleção
de planos, orçamentos e autorizações.
Para entender melhor as características de tais efeitos psicossociais
provocados pelo projeto HidroAysén durante a fase de planejamento e de-
bate político, é necessario examinar mais detalhadamente os sintomas de
desastre que se manifestam nas comunidades da região. Como discute
Barkin (2009), a construção dos megaprojetos implica nada além que a
“reconstrução do mundo”. Embora tal impacto na dimensão ecológico-sim-
bólica alcança seu ponto culminante com o levantamento do muro de uma
represa, a mesma ameaça de mudança dramática no ambiente de vida, ex-
perimentada durante um período significativo, tem que ser reconhecida
como um impacto em si. Kroll-Smith e Couch (1991) discorrem sobre o
“estado crônico de perda contingente” (p. 84) que experimenta as pessoas
expostas ao risco de contaminação tóxica. Não deveria ser surpreendente que

– 37 –
os megaprojetos em fase de proposta e aprovação gerem um estado psico-
lógico semelhante, tanto pelo longo período de planificação e decisão como
pelo desconhecimento geral entre o público sobre a precisa natureza dos
impactos eventuais. No decorrer da pesquisa, foi possível não somente en-
trevistar pessoas com opiniões marcadas sobre o conflito mas também con-
versar de maneira informal com os moradores da região. Em tais conversas
informais o estresse provocado pelo conflito se evidenciava por um lado em
uma relutância geral de expressar-se com respeito ao debate sobre as repre-
sas, como se fosse um tabu. Quando as pessoas opinavam sobre o projeto era
comum escutar expressões explícitas de ansiedade e impotência perante o
poder e influência das corporações por trás do HidroAysén. Em outros casos,
como expressão de essa impotência, as pessoas mostravam uma resignação
com relação ao projeto e uma rejeição veemente quanto à possibilidade de
esperança de que tal projeto não fosse realizado. Aqui, é de especial relevân-
cia o argumento de Erikson, que o trauma psicossocial pode surgir tanto de
uma “condição persistente” como de um evento agudo. As sensações de in-
certeza e vulnerabilidade associadas com as ameaças percebidas perante a
proposta de HidroAysén podem ser consideradas geradoras de um estresse
que se acumula através do tempo até potencialmente constituir uma experi-
ência de trauma vinculado ao futuro evento da construção do megaprojeto.
A abordagem do tema de HidroAysén pelas autoridades contribuiu,
sem dúvida, para essa experiência de estresse e trauma. Ao invés de criar as
condições para um debate informado e transparente, o governo gerou uma
dinâmica de desconfiança, produto de uma dissonância política-institucional
no processo do EIA. Por um lado, ministros e outros funcionários estatais
com cargos políticos insitem que a aprovação do projeto depende de consi-
derações legais e técnicas. Como assegurou Ricardo Raineri antes de assu-
mir seu cargo de ministro de Energía em 2010, em seu opinião, as centrais
de HidroAysén poderiam ser uma opção favorável “à medida que se ajus-
tem à normativa vigente e respeitem os aspectos ambientais” (ESTRATEGÍA
ONLINE, 2010). Por outro lado, foi manifestado que o projeto disfruta de
um alto nível de apoio político, tanto dos ministros Marcelo Tokman (Ener-
gia) e Sergio Bitar (Obras Públicas) durante o governo de Michel Bachelet
como o próprio Ricardo Raineri e o ministro Rodrigo Hinzpeter durante a
presidência de Sebastián Piñera.3 Tal apoio se transforma em pressão sobre

3. Alguns exemplos dos pronunciamentos destes ministros estão nas seguintes reportagens:
Tokman (EL DIVISADERO, 2008), Bitar (LA NACIÓN, 2008), Raineri (ESTURILLO,
2010). A declaração de apoio ao projeto por Rodrigo Hinzpeter, Ministro do Interior, que
foi expressa apenas horas antes da decisão da CEA, é talvez o exemplo mais impactante
de apoio oficial para o projeto (LA TERCERA, 2011a).

– 38 –
os funcionários das agências públicas responsáveis por avaliar o projeto, e
também sobre os Seremi que participam nas decisões da Comissão de Ava-
liação Ambiental (CEA) – algo denunciado pelos mesmos funcionários nos
dias depois da decisão de aprovação para o projeto emitido pela CEA em
maio de 2011 (CHÁVEZ, 2011; RADIO ADN, 2011).
Essas e outras irregularidades dentro do processo do EIA – que durou
quase três anos – produziram um cinismo penetrante entre grande parte da
população; ao invés de velar pelos seus interesses e preocupações, as auto-
ridades mostraram sua cumplicidade com as ambições da empresa. Durante
conversações informais com moradores da região, a resposta mais comu-
mente expressada em torno do debate sobre o HidroAysén é uma de resigna-
ção; afirmam que apesar das inquietudes e opiniões expressadas pelas
pessoas da região “vão construir de qualquer maneira”. Enquanto isso, aque-
les que se pronunciam fortemente contra o projeto expressam uma frustra-
ção e desconfíança profunda com relação às autoridades, percebendo que
seus interesses e preocupações foram desvalorizados e descartados. Por
exemplo, várias vezes pessoas que opinaram durante a fase de participação
cidadã do EIA comentaram que suas opiniões foram excluídas. Um verea-
dor expressou sentimentos semelhantes, dizendo que os habitantes da zona
não tem “nem voz nem voto” na decisão de aprovar o projeto. E um mora-
dor comentou que tanto o Estado como a empresa mostraram “uma falta
de respeito para com os cidadãos”, e que o processo de avaliação não era
nada mais que “um atropelo dos direitos humanos”.
Na experiência de ser ignorado e até violado, junto com a insegurança
sobre o futuro e os potenciais impactos do projeto, podemos ver um con-
junto de fatores muito semelhantes aos que geram a insegurança ontológica
tão notável como parte do trauma psicossocial dos desastres tecnológicos.
Em tal circunstância, é difícil que as pessoas tenham projetos futuros no
meio em que vivem – uma realidade revelada na confissão da operadora de
um negócio de turismo na região, que confessou que alguns dias se levanta
sem energia para continuar lutando, e esperando. Ele se pergunta se não seria
melhor começar de novo em outro lugar.
Esses impactos individuais do projeto também influenciam e são refle-
tidos em altos níveis de estresse coletivo observados nas comunidades da re-
gião. Talvez mais difícil de distinguir, no centro urbano de Coyhaique, a tensão
gerada no tecido social se vê acumulada apenas debaixo da superficie das re-
lações cotidianas nas comunidades menores como Cochrane, Chile Chico,
Cerro Castillo, Puerto Tranquilo ou Caleta Tortel. É manifestada particular-
mente como uma atmosfera de desacordo e repúdio entre moradores com
opiniões contrárias com respeito às represas. Ainda que a população de Aysén

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tenha registrado um alto nível de consenso en sua oposição às represas,4 a
opinião pública não é unânime e está fortemente dividida. Em parte, tal di-
visão tem como base os distintos interesses econômicos dos moradores; como
no caso do Exxon Valdez, alguns veem a construção das represas como uma
possível fonte de trabalho ou de benefícios econômicos indiretos. Contudo,
além de diferentes interesses concretos, há também divergências em crenças
pessoais, tendências políticas e relações simbólicas com o entorno, que influ-
enciam da mesma maneira a orientação das pessoas com relação às represas.
No contexto dos desastres tecnológicos, Kroll-Smith e Couch (1993) quali-
ficam as diferenças marcadas entre interpretações de eventos, impactos e
riscos futuros como uma “separação da realidade” (p. 87), que geram ou
acentuam tensões em comunidades afetadas pelos desastres, resultando em
processos contenciosos e divisionistas.
Se existir tal serparação nas comunidades de Aysén, ela terá o efeito
de corroer as relações de convivência e reciprocidade dentro das comuni-
dades, o que pode transformar a desconfiança e insegurança experimenta-
da em nível pessoal em uma dinâmica inserida nos processos sociais. Como
evidência de tal tendência, ficou clara, nas entrevistas com os moradores a
evidência de uma tendência de inibição de falar em público sobre o tema
de HidroAysén, e que este silêncio termina gerando rumores sobre o posicio-
namento das figuras importantes dentro da comunidade: os prefeitos e ve-
readores, os diretores e professores das escolas, os dirigentes dos sindicatos,
as associações comerciais e os conselhos de moradores. Em cada comuni-
dade visitada durante a pesquisa, tais rumores foram registrados, alimen-
tados pela forte suspeita, freqüentemente expresada, de que certas pessoas
usavam sua posição ou influência para obter benefício pessoal como resul-
tado de seus contatos com a empresa, agências do estado, políticos ou
ambientalistas. Em parte, tais rumores refletem a realidade: efetivamente,
certas pessoas nas comunidades decidiram trabalhar com a empresa ou acei-
tar os benefícios oferecidos; outras adotaram posições consoantes àquelas
de seus prefeitos para assim melhorar suas possibilidades de receber proje-
tos da prefeitura; ainda outras fizeram uma aliança com as organizações
ambientalistas como uma forma de defender seus interesses como empre-
endedores turísticos na região. Ao mesmo tempo, em uma situação em que
as pessoas manifestam uma impotência perante aos grandes poderes eco-
nômicos e políticos, os diversos rumores ouvidos durante o curso da pes-

4. Uma pesquisa feita pela Fundação Aysén Futuro em julho de 2011 (EL DIVISADERO,
2011) mostrava que na região os níveis de desaprovação para os projetos foram seme-
lhantes aos níveis registrados em nível nacional depois que o projeto foi aprovado pelo
CEA em maio de 2011 (LA TERCERA, 2011b). Cerca de três quartos dos entrevistados
em cada caso discordou da decisão da Comissão.

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quisa também aparecem como um modo de adaptação psicossocial para
suportar a tensão e tornar perceptível o conflito em uma escala familiar.
Infelizmente, através dessa estratégia de adaptação, as pessoas chegam a ver
os seus própios vizinhos como as fontes de suas insegurança e desassossego.
Depois de escutar numerosos rumores e acusações durante as entre-
vistas, pode-se assegurar que as condições em Aysén produziram algo seme-
lhante à “comunidade corrosiva” que caracteriza os impactos secundários
dos desastres tecnológicos. Se comparamos ao caso do Exxon Valdez, exis-
te a mesma divisão entre os que procuram trabalhar com a empresa e os que
se negam a aceitar a presença do HidroAysén em suas comunidades. O pro-
grama de “responsabilidade empresarial” do HidroAysén conseguiu entrar
em quase todas as comunidades de alguma maneira. Nos jornais da região
são publicadas reportagens sobre os programas do HidroAysén para bene-
ficiar às pessoas: as bolsas de estudo, dinheiros para equipamento esporti-
vo, espaços verdes patrocinados pela empresa, as capacitações em feramentas
digitais, etc. O programa gerou debates em toda a região, tanto em nível
político como popular. Até março de 2010, quando a controladoria afirmou
que existia um conflito de interesse (EL DIVISADERO, 2010), algunas
prefeituras aproveitaram o fluxo de benefícios enquanto outras se negaram
a aceitar o dinheiro da empresa. Depois da sentença da controladoria, a
empresa adaptou sua estratégia para destinar dinheiro diretamente às or-
ganizações comunitárias, inclusive canalizando fundos para indivíduos atra-
vés de associações de turismo ou câmaras de comércio.
Segundo as opiniões expressadas nas entrevistas e observadas geralmen-
te durante a investigação, podemos assegurar que, no nível das relações entre
moradores, a decisão de aceitar ou não a ajuda do HidroAysén marca uma
distinção ético-moral. Entre certos grupos ou associações comuns a pressão
de trabalhar com os apoios da empresa tem provocado acrimônia, em al-
guns casos dividindo os membros em grupos, isolando certos membros e
provocando mudanças de liderança. Vários entrevistados expressaram a
opinião de que a empresa usa seus fundos de “responsabilidade empresari-
al” de uma maneira calculada para semear divisões e isolar líderes comuni-
tários. É uma tática especialmente efetiva para dividir o movimento contra
as represas. Entre os opositores ao HidroAysén, a decisão de aceitar fundos
da empresa é percebida como uma espécie de traição, e várias pessoas rela-
taram histórias de indivíduos que, em principio, tinham uma postura fir-
me contra as represas e que, diante da pressão persistente da empresa,
terminaram por aceitar um trabalho ou um fundo do HidroAysén. A tal fato
é atribuído um forte peso moral: diz-se que as pessoas “se venderam”. In-
clusive durante o curto tempo de pesquisa foi possível observar diretamen-
te dois casos em que esta dinâmica havia acabado com a liderança de pessoas

– 41 –
que anteriormente foram destacadas por sua oposição ao projeto dentro de
suas comunidades.
Ao mesmo tempo que a intervenção da empresa produziu divisões
dentro das comunidades da região, no curso das entrevistas e nas comuni-
cações informais com os moradores foi registrado também um nível de ten-
são associado com o acionamento das organizações ambientalistas com base
em Coyhaique ou Santiago que dirigem a campanha nacional contra
HidroAysén. Apesar da opinião pública majoritariamente contra às repre-
sas, durante a investigação foram registrados comentários indicando que a
influência de tais organizações nas comunidades da região não foi sempre
bem vinda. Isso se deve, em parte, à tendência em comunidades rurais de
manter uma postura conservadora em relação às pessoas e influências ex-
ternas, mas podemos supor que é por outra parte uma reação relacionada
com as sensações de vulnerabilidade e impotência que brotam perante a
grande escala do megaprojeto e o debate político associado. Nesse contex-
to, surgiu a crença de que as organizações ambientalistas, tal como a em-
presa, utilizaram pessoas das comunidades para avançar seus própios
interesses.5 Graças à essa dinâmica, os moradores que verbalizam publica-
mente sua resistência ao HidroAysén também arriscam a reprovação de seus
vizinhos, principalmente se colaboraram com as organizações ambientalistas
e/ou se não nasceram e foram criados na região.

CONCLUSÕES: FERIDAS PROFUNDAS

Para o pesquisador, este é o segundo caso em ele foi testemunha dos


impactos secundários de um “desastre planejado”. A mesma “corrosão de
comunidade” foi observada em um estudo conduzido no Alto Bío Bío du-
rante e depois da construção da Central Ralco, inaugurada no ano 2004
(LATTA, 2006, 2007). O nó de relações entre as comunidades Pewenches
e os atores externos (empresa, governo, carabineiros, ONGs), junto com o
nível de contenção gerado pelo projeto dentro e fora da zona, deixou as
comunidades com feridas profundas que seguem refletidas em sua luta para
seguir adiante nos anos subsequentes à inauguração da central (LATTA,
2009). A desarticulação de seus laços comunitários e o transtorno de sua
cultura são refletidas em reportagens recentes que delatam um aumento
preocupante no índice de suicídio no Alto Bío Bío (LA NACIÓN, 2010).
Durante a elaboração deste artigo, no caso de Aysén, seguem outras
etapas na batalha para os Ríos Baker e Pascua: a batalha legal e o EIA da
linha de transmissão. Para o povo de Aysén, significa que seu futuro conti-
nua em perigo por mais alguns anos; seu “estado crônico de perda contin-
gente” é prolongado. Uma análise informada a partir das experiências dos

– 42 –
desastres tecnológicos é uma forma de entender melhor que está em jogo
para o povo de Aysén, enquanto outros decidem o destino de sua região.
Costumamos discutir os megaprojetos supondo que os impactos e conse-
quências começam quando são lançadas tarefas. Contudo, os impactos sen-
tidos previamente às fases de construção e funcionamento de uma
megacentral também merecem nossa consideração, sendo talvez tão signi-
ficativos no nível psicossocial como as eventuais mudanças ecológicas e
socioeconômicas. Para resumir, no caso de Aysén pode-se observar sentimen-
tos de vulnerabilidade e incerteza perante a ameaça de mudanças socioam-
bientais significativas, o que contribui aos altos níveis de estresse e
ansiedade. A experiência desse estresse, prolongada por anos, e alimentada
pela sensação de haver sido ignorado, desvalorizado ou violado pela empresa
e/ou as autoridades do governo, gera cinismo, desconfiança e uma incapa-
cidade de expressar esperança para o futuro. Ao mesmo tempo, vimos que
tal experiência em nível individual está vinculada à geração de uma situa-
ção coletiva que poderíamos qualificar como um exemplo de “comunidade
corrosiva”, caracterizada pela prevalência de rumores e acusações, criando
uma atmosfera de desconfiança, divisão e repúdio. Ademais, pode-se afir-
mar que as ações e intervenções de atores externos, especialmente o pro-
grama de responsabilidade empresarial da empresa, tem influenciado
fortemente na deterioração das relações de convivencia nas comunidades.
Da mesmo maneira que um megaprojeto tem impactos extensivos
através do espaço, é importante reconhecer que seu impacto é mais senti-
do através do tempo, começando com sua idealização e o conflito socioam-
biental que se desenvolve antes de sua construção. Considerando tal
característica temporal, não é suficiente conceber os impactos de um
megaprojeto – seja por exemplo uma central hidrelétrica, uma fábrica de
celulose ou uma mina a ceu aberto – como uma lista de eventualidades as-
sociadas com a execução das obras. Tais impactos são melhor caracteriza-
dos como um processo ou uma síndrome que começa a desenvolver-se com
o primeiro anúncio público de um projeto, e que tem uma duração indefi-
nida no tecido social das comunidades afetadas.

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– 46 –
CAPÍTULO II

TRAJETÓRIAS, MEMÓRIAS E SILÊNCIOS DE


UM PAÍS TELÚRICO: A PROPÓSITO DOS
SAQUES LOGO APÓS O TERREMOTO DE
2010 NA CIDADE DE CONCEPCIÓN, CHILE
Andrea Roca

INTRODUÇÃO: A SELETIVIDADE PRESIDENCIAL

No Chile, por situar-nos no “Círculo de Fogo do Pacífico” – área geo-


lógica submetida ao constante atrito das placas de Nazca e Sudamericana –,
ecos de megassismos reverberam até nós desde os tempos mais longínquos. Aqui,
a maior parte de nós, tem um terremoto que marca nossa recordação; so-
mos testemunha diretas, ou, ao menos, indiretas, desse fenômeno, pois te-
mos ouvido acerca dos cataclismos pelos quais passaram nossos pais e avós.
Grandes sismos, são, assim, eventos com potencial de se transformar em ele-
mentos constitutivos de memórias, balizas com a faculdade de estruturar
narrações do passado, tanto no campo individual como no coletivo; em ou-
tras palavras, considerarmos plausível pensá-los como um desses raros acon-
tecimentos nacionais que podem chegar a afetar “ao mesmo tempo todas
as existências” (Halbwachs, 2006, p.99), oferecendo aos indivíduos, deste
modo, pontos comuns de referência no tempo.
A partir dessa reflexão, não surpreende que em Concepción, a tercei-
ra maior área metropolitana do Chile, homens e mulheres maiores de 50
anos – segundo informam Concha e Henríquez (2011) –, tinham escolhi-
do, precisamente, os terremotos de 1939 e 1960 como os eventos mais
marcantes no século XX, sendo ultrapassados só por um outro acontecimen-
to que deu início a mais uma catástrofe coletiva no país, mas de natureza
diferente: o Golpe de Estado de 1973.
Dada a periodicidade de eventos telúricos no território nacional, desde
os inícios da República, no século XIX, múltiplas vozes atrelaram uma su-
posta particularidade geográfica com uma possível identidade da nação, exal-
tando, mormente, a inteireza dos chilenos e chilenas para enfrentar as

– 47 –
calamidades naturais; assim, imagens sobre o “caráter telúrico” do Chile,
fazem parte do mundo do folclore e da cultura popular, como também, do
campo intelectual (RIQUELME; SILVA, 2011; ONETTO, 2011).
Aquela dilatada tradição foi reencenada em Concepción em outubro
de 2013, na inauguração do memorial dedicado às vítimas do terremoto e
tsunami de 27 de fevereiro de 2010. Nessa oportunidade, o então presiden-
te, Sebastián Piñera, além de se debruçar nos avanços na reconstrução –
cifras, aliás, muito discutidas pelos afetados –, sublinhou no seu discurso a
necessidade de honrar os falecidos, bem como os inúmeros “heróis anôni-
mos” que, sacrificando até suas próprias vidas, dedicaram-se ao resgate de
compatriotas. Ato seguido e de modo previsível, Piñera, poucos meses an-
tes do fim de seu mandato, louvou a “inteireza” do povo chileno, pois, a
despeito da recorrência de terremotos, o Chile demonstrou, uma vez mais,
que o “espírito da nação” não desaba.
O colossal artefato de memória, composto por 8 blocos de mais de 20
metros de altura – que logo seria grafitado como ato de protesto por um
grupo de damnificados1 –, foi interpretado pelo mandatário, como um gesto
de unidade e de futuro para todo o país, tentando corporificar no monu-
mento aquela narrativa heróica da identidade nacional ancorada a um pas-
sado telúrico comum. Resulta importante apontar, nesse sentido, que o
memorial, o primeiro de grande escala construído pelo Estado para reme-
morar um evento telúrico – com um investimento de 4 milhões de dólares –
, faz parte do conjunto de construções e atos dedicados ao bicentenário do
país celebrado em 2010; assim, pode-se falar do intuito governamental de
re-atualizar, como iremos ver, a tríade catástrofe, comemoração e identida-
de nacional.
Contudo, a performance de Piñera dista de ser um episódio isolado.
Dois anos antes, o ex-presidente, Ricardo Lagos, ao revisar em retrospecti-
va alguns dos terremotos do passado, concluía que no Chile era possível ob-
servar como, no meio dos desastres, abrolhava uma comunidade de
consenso, prevalecendo por sobre as diferenças políticas a solidariedade, se
re-fundando, assim, a nação enquanto um todo.
Los terremotos generan siempre en Chile otro tipo de constantes: surge
un sentimiento de unidad nacional frente a la catástrofe. La ciudadanía
tiende a ordenarse en torno al Jefe de Estado. Así, a lo largo del siglo XX
cada tragedia de esta naturaleza provocó una suerte de suspensión en
la pugna política (LAGOS, 2011, p. 59). (grifos nossos).

1. Expressão usual na língua espanhola, para se referir as pessoas afetadas nos desastres.

– 48 –
Porém, invocar logo do terremoto de 2010 exclusivamente o ethos so-
lidário e a obediência popular como atributo duradouro da nação, consti-
tui, no nosso entender, um ato de desmemória deliberada (ROCA;
CÁCERES, 2014). Com efeito, as versões presidenciais da catástrofe de
2010, bem no caso de Piñera como de Lagos, com o intuito de cristalizar
um tipo particular de rememoração do telúrico, deixam na surdina uma série
de acontecimentos que foram identificados por residentes de Concepción
como o mais marcante do megassismo: os multitudinários saques que se
estenderam por pouco mais de três dias, sobretudo – mas não exclusivamen-
te –, em Concepción. Crise de segurança, acrescente-se, que levou a Michelle
Bachelet a decretar Estado de Excepción por Catástrofe e toque de recolher, este
último, dispositivo que não era acionado desde o retorno da democracia,
em 1990.
A depurada narrativa oficial sobre o terremoto de 2010 é um relato
no qual se obliteram os conflitos e temores vividos pelos habitantes de
Concepción logo depois do abalo sísmico; amnésia, de certo modo, para-
doxal, si se pensa no alvoroço que causaram na opinião pública os primei-
ros reportes acerca das lojas e supermercados saqueados em Concepción,
alguns deles, localizados, ironicamente, a poucos metros do lugar onde hoje
descansa o memorial. Esquecimento seletivo, conquanto, no ano do desas-
tre, o instrumento governamental que mensura os níveis de segurança ur-
bana no país incluiu nas zonas afetadas a inédita pergunta: “¿Cree usted
que el aumento de la delincuencia se habría dado sin el terremoto del 27
de febrero?” (MINISTERIO DEL INTERIOR, 2010).
Sobre os multitudinários eventos – esperáveis, tal vez, para um ob-
servador externo com as imagens de Porto Príncipe e Nova Orleans ainda
na retina2 –, é importante advertir, que no Chile, no entanto, os saques e o
medo foram interpretados como acontecimentos inéditos na história naci-
onal; isto é, como episódios nunca antes vistos, ou, pelo menos, como even-
tos ausentes na memória comum. Com efeito, o ciclo de roubos e furtos pós
27F, provavelmente, o maior nossa história republicana (CÁCERES;
MILLÁN, 2011), veio a desestabilizar uma certa auto-imagem do país
construída com base a indicadores de sucesso macroeconômico, solidez
institucional e ordem, que diferenciariam positivamente o Chile do resto
da região. De aí que no cerne do debate pós-desastre, segundo remarca Volk
(2010), colocara-se a pergunta: o quê ou a quem se devia culpar pelos atos

2. Para uma crítica do enquadramento dos desastres pela mídia, ver: Solnit (2009). Sobre o
caso haitiano, em especial, ver: Thomaz (2010; 2011). Acerca do papel dos meios de co-
municação no caso Katrina e na difusão das imagens do “caos”, ver: Dynes e Rodríguez
(2010).

– 49 –
de incivilidade, esperáveis no caso do Haiti – onde, aliás, o Chile participa,
desde 2004, na MINUSTAH –, mas não em nosso país?
Nesse ínterim, proliferaram no debate nacional interpretações sobre
o “lado escuro da alma nacional”3 ou a separação entre “civilização e bar-
bárie”,4 acusando, ora a debilidade dos governos da Concertación para repri-
mir o crime, ora os nefastos valores do neoliberalismo que caracterizariam
o Chile pós-ditadura (VOLK, 2010; HAN, 2010). Desde o mundo militar,
autoridades como Juan Emilio Cheyre, ex comandante do Exército, quem
trabalhou nas operações de ajuda humanitária logo do terremoto no Haiti,
em janeiro de 2010, explicava o sentimento de “vergonha” experimentado
ao ver as imagens dos saques no sul do país um mês depois:
[...] ni en la intervención en Haití vi esas imágenes. Al revés, vi gente can-
tando, rezando, uniéndose con las manos y nadie justificando lo injusti-
ficable... Nosotros hemos tenido en Chile muchos terremotos y nunca había
pasado esto. Acá hay una enfermedad y hay que asumirla como tal… El
vandalismo es una cosa que va a durar mucho más que los efectos del terre-
moto, porque las casas y los caminos se van a reconstruir, pero la conducta
de ciertos sectores de la sociedad van a seguir con estas malas prácticas. Eso
no es de un pueblo como Chile 5 (grifos nossos).

Por sua vez, a presidente Bachelet, referiu-se aos episódios de violên-


cia coletiva enquanto “sintoma de deterioro moral” das pessoas que busca-
ram lucram no meio do desastre. Com efeito, os saques inspiraram múltiplas
modulações acerca do certo e do errado, sendo tratados como um “tópico
moral”6 (FASSIN, 2008), tanto nas falas da elite, bem como nos testemu-
nhos de observadores, perpetradores e/ou vitimizados em Concepción.
O presente ensaio procura providenciar elementos que ajudem a ex-
plorar o eixo diacrônico que sustentaria tal excepcionalidade do vivido em
Concepción logo do terremoto. A relação dialógica entre o terremoto de
2010 e terremotos passados, parece-nos decisiva para o sucesso de tal em-
preitada; assim, com base a entrevistas, fontes historiográficas e de imprensa,
buscamos rastros sobre possíveis vínculos entre violência coletiva, temor e
terremotos. Nesse sentido, a pergunta fundamental: seria a primeira vez

3. NOVOA, Jovino. “Lado oscuro del alma nacional” em jornal Estrategia, edição dia 07 de
março de 2010.
4. INSUNZA, Jorge. “Barbarie y civilización” em jornal El Mercurio, edição dia 7 de mar-
ço de 2010.
5. Jornal The Clinic, edição de dia 7 de março 2010.
6. Jornal La Tercera, edição dia 8 de março de 2010.

– 50 –
que isso acontecia no Chile?, em aparência simples, abriu uma região do
passado onde rumores e silêncios compõem intrincadas tramas. Porém, mais
do que tentar reconstruir os fatos realmente acontecidos – the brute fact, para
usar a expressão de Veena Das (2007) –, no que segue, arriscamos re-pen-
sar a liame entre conflitos e desastres sócio-naturais com base em diferen-
tes registros do passado. Para isso, é necessário atender os complexos
processos de negociação e disputa das memórias, nos que olvidos e silênci-
os devem ser entendidos como mecanismos ativos da gestão da memória,
tanto no campo individual e coletivo, bem como nas memórias chamadas
nacionais (POLLAK, 1989).

DIÁLOGOS INTERTELÚRICOS: DESLOCANDO A EXCEPCIONALIDADE

O terremoto de 8,8º na Escala de Richter e o tsunami que afetaram,


na madrugada de sábado, dia 27 de fevereiro de 2010, grande parte do cen-
tro-sul do Chile, tiveram 526 vítimas fatais, 25 desaparecidos, 220 mil
moradias destruídas e múltiplas perdas em infraestrutura, equivalentes a
18% do PIB nacional.7 Contudo, ao longo da história do país, já ocorreram
terremotos de intensidade e mortandade ainda maior, mas, junto ao terremo-
to de Valparaíso em 1906, seriam, segundo a Memória Chilena – plataforma
virtual dependente do organismo do Estado preocupado da construção da
memória coletiva nacional, a Dirección de Bibliotecas, Archivos y Museos –,
os únicos seguidos de problemas de segurança pública, nomeadamente, pi-
lhagens e saques.8
Logo iniciado o trabalho de campo no verão de 2012, em Concepción,
a questão da excepcionalidade dos multitudinários saques e as estratégias
de autodefesa nos bairros, colocou-se de modo incontornável nas falas de
homens e mulheres entrevistados;9 para isso, trouxeram em diferentes mo-
mentos e de modo espontâneo as lembranças de desastres ainda presentes
na memória. Efetivamente, a experiência telúrica de 2010 foi narrada por
suas testemunhas, através de outros terremotos; tal questão, propomo-nos

7. Dados fornecidos por Sebastián Piñera, em ocasião de seu discurso na inauguração do


“Memorial 27F”, disponível em: http://www.gob.cl/legado-bicentenario/2013/10/23/dis-
curso-del-presidente-pinera-al-inaugurar-memorial-de-victimas-del-27f.html. Acessado
em: 25/10/2013.
8. Ver: “Los terremotos en Chile (1570-2010)”. Disponível em: http://www.memoriachilena.
cl/602/w3-article-3576.html. Accesado em: 05/09/2013.
9. Os nomes dos entrevistados foram trocados por outros, fictícios, para resguardar sua identi-
dade. O material empírico apresentado neste artigo faz parte da minha dissertação de mestrado
em sociologia: “Catástrofe, Estado de Exceção e Violência: Memórias de Insegurança Urba-
na logo do terremoto de 2010 na cidade de Concepción, Chile”, defendida no Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo em março de 2014.

– 51 –
chamá-la, provisoriamente, de intertextualidade telúrica, com o intuito de
aproveitar o potencial heurístico da suposição que, todo texto, seja oral ou
escrito, urde-se sob vínculos mais ou menos manifestos e/ou velados, com
outros textos.
Em razão do acima exposto, Marcos, professor de uma tradicional
escola privada de Concepción, dois anos depois do terremoto, cogitava que,
conquanto o terremoto tenha sido terrível e preocupante, no geral, sentiu-
se um nível de temor controlável com base as experiências telúricas prévi-
as, no seu caso, o terremoto de 1985. Para quem não sofreu perdas materiais
nem humanas, como de fato aconteceu com grande parte da população da
cidade, o sinal mais marcante do 27F, não foi o próprio terremoto, mas an-
tes, ver como as pessoas “robaban por robar, saqueaban por saquear”. Aque-
la máxima emergiu também nos depoimentos de quem em 2010 vivenciou
o seu primeiro terremoto, como no caso de Loreto, que trabalhava como
repositora de mercadorias e foi testemunha de vários saques a supermerca-
dos. Para ela, os episódios de violência contra a propriedade e o temor a ser
vitimizado, constituíam eventos inesperados. Com base nos relatos ouvidos ao
longo de sua vida, imaginava que logo depois do terremoto, todos ficariam
em casa, abraçados, preocupados pela falta de serviços básicos e comida, mas
ela nunca pensou a possibilidade de que centenas de pessoas sairiam as ruas
a saquear. Daí que seja plausível dizer, que, os episódios de violência e inse-
gurança não faziam parte do “campo de possíveis” (REVEL, 1998).
Atente-se, portanto, que nesse deslizar que vai do medo do terremo-
to ao medo dos outros, achar-se-ia, com efeito, a novidade do 27F, oscila-
ção que é sintetizada por Loreto na seguinte frase: “Ya no le tenía miedo a
los temblores. ¡Le tenía miedo a la gente! De que lo que no te hizo el terre-
moto, te lo hiciera la gente”. Assim, adquiria mais força o que uma pesqui-
sa já sublinhava em 2010: 43,9% da população de Concepción considerou
que “a pior coisa vivida” durante os 30 dias posteriores ao megassismo, fo-
ram os saques e o medo nos bairros, superando a falta de serviços básicos e
o próprio terremoto e tsunami (BIOBARÓMETRO, 2010).
De forma análoga, Cecília, de pouco mais de 50 anos, que trabalha-
va no momento do terremoto de 2010 como assistente administrativa no
principal hospital de Concepción, asseverava que mais que sentir medo do
terremoto, experimentou temor do que ela nomeou, “mar de saques”. Na
avenida Los Carrera, zona de comércio atacadista no centro da cidade, no
dia seguinte ao cataclismo, ela assistiu como centenas de pessoas corriam
de um lado para outro carregando mercadorias, no entanto os carros ten-
tavam avançar sem atropelar os erráticos transeuntes, muitos dos quais,
fugiam com carrinhos de supermercados. Era uma “guerra impressionan-
te”, no dizer dela, algo nunca visto, nem sequer no terremoto de 3 de mar-

– 52 –
ço de 1985 em Valparaíso, quando por causa do tremor, perdeu, infelizmen-
te, a sua casa. Sobre o recente sismo explicava:
Nunca había visto eso, por eso estábamos asustados… Nunca había vis-
to eso, claro, el terremoto sí, pero nunca había visto saqueo, ¡nunca! Si
antes no habían saqueos po… porque en Valparaíso cuando fue el
epicentro ese allá, nadie abría nada, ¡ninguna cosa! Ni una cosa saca-
ban… Si yo misma, nosotros dejamos la casa botada ese día… y al otro
día fuimos a sacar todas las cosas porque la casa se quebró entera.

No terremoto acontecido na última fase da Ditadura de Pinochet, ao


que parece, não sucederam saques nem roubos; com efeito, em 2010, sau-
dosos simpatizantes do regime ditatorial, enfatizavam a falta de distúrbios
nessa época, resultante da eficaz “mano dura” do ditador em matéria de
segurança. Contudo, é de salientar que no campo das violências, o cataclis-
mo de 1985 – que deixou 177 mortos e pouco menos de um milhão de
damnificados–, irrompeu num período quando a ditadura, apesar de sua cru-
enta repressão,10 foi contestada por diversas expressões de “violência polí-
tica popular” (SALAZAR, 2006).
Com efeito, no ínterim de 1983 e 1987, registraram-se nas principais
cidades do Chile variadas insurreições como passeatas, ataques a carabineros,
barricadas e cacerolazos nas poblaciones. Desse modo, através de multifacetadas
formas de ação popular direta, exigia-se o fim da ditadura, reivindicavam-
se valores universais como o direito à vida, mas também, demandavam-se
soluções habitacionais e levavam-se a cabo ações de caráter terrorista como,
por exemplo, o falido atentado perpetrado em dezembro de 1986 contra
Pinochet (SALAZAR, 2006). Nos protestos, registraram-se, em certas oca-
siões, saques a supermercados e lojas, ataques coordenados por grupos
“milicianos” a caminhões que carregavam comida, assaltos que eram cha-
mados nessa época de “recuperaciones” (SILVA, 2006).
El ataque, dentro de la confusión producida, a supermercados,
tiendas y otros negocios, puso de manifiesto el nivel de las insatis-
facciones básicas de la masa poblacional como su predisposición a
desconocer de hecho algunos de los principios arquitecturales de la
sociedad dominantes (como el derecho de la propiedad) (SALAZAR,
2006, p. 302).

10. Poucos dias depois do terremoto, no dia 29 de março, os irmãos Toledo Vergara foram
assassinados por policiais e, no dia seguinte, 30 de março, três reconhecidos dirigentes
sociais foram degolados por agentes das forças policiais nas proximidades de Santiago.

– 53 –
Isso torna ainda mais significativo que, segundo se lembram parte de
nossos entrevistados, no cenário desse terremoto não se registraram saques.
Ao que parece, foi mais preocupante – segundo a imprensa da época –, o
rol dos “especuladores” que subiram os preços do pão e velas, prática que
foi punida pelas autoridades.11 Contudo, ao revisar as manchetes dos jor-
nais desses dias,12 identificamos referências a pilhagens como argumento
para decretar toque de recolher e prevenir, assim, esse tipo de prática.13
O caráter inédito conferido em geral aos saques de 2010, contudo, foi
possível de ser relativizado com base nos depoimentos de Osvaldo, dono
de uma livraria no centro de Concepción, quem já tem a idade suficiente
para ter vivenciado três grandes terremotos; entre eles, o maior registrado
na história, que atingiu a zona sul do país no domingo, dia 22 de maio de
1960. Ao rememorar o vivido em 2010, o comerciante estabeleceu simili-
tudes e divergências entre esses dois desastres, além de se debruçar acerca
das condições sociais e urbanas de Concepción, sublinhando, que, assim
como a cidade atual era outra (baixos níveis de marginalidade com respei-
to aos anos 60), as pessoas eram e reagiam de modo diferente:
¡De todas maneras no hay comparación! O sea, hubo noticias, se
conoció noticias [em 1960] de que en el sur hubo algún problema
con gente… pero la orden era muy tajante… los militares tenían
instrucciones de ejecutar y ¡así fue! No me acuerdo si fue Estado de
Emergencia o estas cosas, pero la población reaccionaba diferente.

Mesmo que Osvaldo tivesse reconhecido os saques de 2010, assim


como os outros entrevistados, enquanto eventos “nunca antes vistos” por
sua escala e magnitude, nessa passagem, emergem reminiscências acerca de
acontecimentos de insegurança logo após do megassismo de 1960, pista que
abriu um eixo de exploração não contemplada na pesquisa até então. Na

11. La Segunda, edição dia 5 de março de 1985. A principal manchete indica: “Especuladores
se aprovechan del terremoto”.
12. La Cuarta, edição dia 5 de março de 1985. Na capa do jornal indicava-se: “Toque de
queda para combatir el pillaje”. No jornal La Vanguardia, edição dia 5 de março de 1985,
aponta que existiram saques na mesma noite do domingo 03 de março.
13. Ao longo dos 17 anos de ditadura de Pinochet, ocorreram mudanças em relação aos dis-
positivos de exceção ativados: no caso de 1985, estava em vigência o Estado de Sitio,
decretado uma vez mais em 1984, logo depois de um período de suspensão, em 1983,
conforme as supostas políticas de abertura do Regime Militar. Mas, o Estado de Sitio
alternava-se com o Estado de Emergência, decretado novamente em fins de 1985, e tam-
bém podia-se complementar com um outro decreto chamado “Estado de Peligro de
Perturbación de la Paz”, graças ao qual se reforçavam os poderes presidenciais para su-
primir as liberdades individuais e vulnerar os direitos de civis.

– 54 –
verdade, resultou ser um campo difícil de devassar: as escassas fontes, são
confusas e contraditórias, conformando uma historia abafada em compa-
ração com a exaltação da solidariedade nacional pós-desastre.
Na busca de registros, deparamos com as crônicas de um reconhecido
escritor, José Donoso, em Puerto Montt, a 600 km ao sul de Concepción.
No seu relato, indica que, imediatamente depois do terremoto, circularam
boatos na cidade sobre o fuzilamento de 15 homens por pilhagens (DO-
NOSO, 2011, p. 185). Sem poder constatar a veracidade dos rumores, um
policial, explicou ao escritor que nos primeiros momentos de pânico, acon-
teceram, de fato, alguns roubos motivados pela necessidade de roupa e car-
vão, perante o qual, decidiram disparar como medida dissuasiva. De tal
forma, concluía o oficial, nasceram os boatos dos assassinatos.
Porém, rumores sobre fuzilamentos também circularam na cidade de
Castro: o jornal El Siglo, do partido comunista (bancada de novo legaliza-
da em 1958 logo depois de 10 anos de proibição), publicava em 30 de maio
de 1960, as declarações do encarregado do cemitério da cidade a respeito
de sete pessoas fuziladas e sepultadas ali após o terremoto. Os supostos
fuzilamentos alcançaram notoriedade no debate político da época, marca-
do pelas tensões da Guerra Fria. O então presidente, o conservador, Jorge
Alessandri – quem tinha sido eleito ao ganhar só por uns poucos pontos
porcentuais do socialista, Salvador Allende –, através de declarações públi-
cas, descartou rotundamente as denúncias de ferimentos e mortos em mãos
dos militares, e ainda mais, conforme Benedetti (2010), as autoridades in-
dicaram que os responsáveis por tais calunias, seriam levados à justiça.
Embora a versão oficial, rastreamos relatos similares na cidade de
Valdivia, epicentro do terremoto. Segundo as memórias do deputado soci-
alista, Hernán Olave (1961), no dia 23 de maio de 1960, o Intendente da
cidade, Víctor Kunstmann, proclamou de modo inconstitucional, Estado
de Exceção e toque de recolher. Contudo, o então reitor da Universidade
Austral, Eduardo Morales, testificaria que a ordem foi dada logo da resolu-
ção de um cabildo abierto.
En la plaza estaban el griterío y el desorden más espantoso. Ahí se
me acercó el comandante del regimiento y me dijo que o me hacía
cargo de la situación o me hacía responsable. Tuve que hacerlo, y
convoqué a un Cabildo Abierto en el lugar para decidir cómo
mantener el orden, porque ya llegaba cuentos de saqueos. Todas la vías
de comunicación estaban cortadas y no había manera de recibir
instrucciones, entonces decidimos instaurar toque de queda (DE
VOS E MUSEO HISTÓRICO DE CHILE, 2009, p. 120) (grifos
nossos).

– 55 –
Determinar se, com efeito, aconteceram saques e fuzilamentos nas ci-
dades de Valdívia, Puerto Montt e Castro, fica com uma questão aberta para
posteriores pesquisas, mas, com base nos rumores, pode-se inferir que o medo
de situações de insegurança pública, pelo menos, fazia parte do debate na
emergência pós-desastre, diferente do esperado no terremoto de 2010.

PROTESTOS E TREMORES: A ELITE E SEUS MEDOS

A diferença do caso de 1960, recuando na história telúrica do século


XX, vários testemunhos sobre fuzilamentos por pilhagens chegam até nós
através de fotografias e detalhadas crônicas sobre o terremoto que, em 16
de agosto de 1906, deixou em ruínas a florescente cidade portuária de
Valparaíso. Nessa oportunidade, a ordem pública foi uma preocupação
imediata para as autoridades locais, as que decidiram destinar, rapidamen-
te, 250 agentes da marinha para vigiar a desabada cidade, enquanto polici-
ais foram dispostos no cárcere com o intuito de evitar fugas. Decretou-se,
além disso, a ocupação militar da Praza de Armas, onde se coordenaram as
estratégias de ação entre a polícia, marinha e exército, a fim de salvaguar-
dar a ordem e o respeito público (RODRÍGUEZ; GAJARDO, 1906).
Com essas disposições ativadas, os administradores da cidade anun-
ciaram que todo delito contra a propriedade e as pessoas, seria reprimido
energicamente, até com execução sumária, se fosse necessário. De tal for-
ma, sob a lei marcial, 15 fuzilamentos foram perpetrados em nome da or-
dem: “triste y dolorosa medida, pero indispensable en aquella ocasión para
reprimir los desmanes de esas chusma inconsciente, siempre dispuesta al
bandolerismo y pillaje” (RODRÍGUEZ; GAJARDO, 1906, p. 195).
Veja-se que, em 1906, de modo inusual, as edificações dos bairros rico
da cidade resultaram gravemente afetadas; danos, destroços e mortes em
setores como El Almendral, conseguiram uma grande atenção por parte da
imprensa, em contraste com o vivido nos populares morros de Valparaíso.
Es muy fácil, pues, revivir las muertes y resurrecciones, las miserias
y las alegrías y, más que nada, las entrañables virtudes de los muertos
ilustres, pero es trabajo de galeotes rastrear en las crónicas de
entonces para saber qué pasó con el pueblo, ese pueblo notable y
silencioso, acorralado contra los cerros, colgando por el borde de las
laderas escarpadas, y cuya muerte es siempre un fenómeno colectivo,
una muerte en masa (MANNS, 1972, p. 71).

Mesmo concordando com a dificuldade de achar registros acerca do


sofrimento dos mais pobres, discrepamos da ideia de “povo silencioso”
presente no excerto anterior. Com efeito, só três anos antes do terremoto,

– 56 –
aconteceu em Valparaíso uma multitudinária greve de trabalhadores por-
tuários que veio a desafiar a ordem hegemônica. Em 12 de maio de 1903,
dos morros da cidade começaram a descer centenas de trabalhadores que
corresponderam os chamados dos grevistas. No centro, atacou-se com pe-
dras uma unidade policial, enfrentamento que terminou com um manifes-
tante morto a tiro pela polícia; o corpo foi carregado pela multidão, exigindo
a intervenção do Intendente, quem, decretou a proteção imediata dos bair-
ros da elite e do porto. Apesar disso, o prédio da Campañía Sudamericana
de Vapores foi incendiado; segundo a pesquisa de Covarrubias (2009), os
manifestantes repartiram objetos e víveres do local , para impedir, assim,
saques descontrolados. Nesse percurso, a filial do jornal conservador, El
Mercurio, também resultou alvo da violência.
Sobre aqueles episódios, Peter De Shazo (1979) providenciou uma
outra versão, segundo a qual, os saques se estenderam pelo porto, onde
participaram, não só os grevistas, mas também, agentes da marinha. No-
meadamente, logo do incêndio do jornal, os assaltos teriam se estendido pelo
centro da cidade: “The city lay at the mercy of the mob, since the marines
were busy sacking the docks and police alone could not maintain control”
(DE SHAZO, 1979, p. 153). Assim, os protestantes, teriam atacado lojas
onde compravam no dia a dia, como casas de penhores, padarias, mercea-
rias e sapatarias. Além disso, algumas casas de aristocratas teriam sido ape-
drejadas, mas sem causar danos maiores, muito longe dos estragos efetuados
nos outros locais.
Nos enfrentamentos, cerca de 100 pessoas morreram; muitos dos cor-
pos, alguns decapitados, foram amontoados nas ruas e morros da cidade (DE
SHAZO, 1979). Três anos depois, no terremoto, em Valparaíso, a funesta
exibição retornaria. Segundo Samuel Martland (2009), reativaram-se na
cidade formas de castigo anteriores, como as de tipo corporal e a pena ca-
pital; assim, por exemplo, Bartolo Rubio Araya, de 17 anos, recebeu 200
açoites por tentar roubar dinheiro de uma escola e supostamente intentar
prender fogo nesse e outros prédios, sendo morto a tiro e seu cadáver exi-
bido na rua com um cartaz que indicava: bandido e incendiário. Em alguns
casos, junto aos cadáveres, crianças, homens e mulheres posaram para o
fotógrafo, num registro arrepiador. Alguns desses corpos, segundo uma tes-
temunha da época, foram pendurados em postes durante a noite toda, “cual
harapos humanos” (RIED, 1956, p. 95).
Entre as medidas adotadas pelas autoridades, acha-se a peculiar pena
capital para as ocorrências de “roubo” de água; tal decisão foi tomada de-
vido à propagação de incêndios ao longo da cidade, os quais eram difíceis
de controlar ante o mau funcionamento da rede de água ocasionado pelos
danos do sismo. Aliás, muitos desses incêndios foram atribuídos como ação

– 57 –
intencionada do populacho, sem fundamentos concretos, mas inspirados nas
lembranças dos incêndios acontecidos na greve de 1903.
A first glance, the preoccupation with guards and security seems
beyond all proportions to the number of potential criminals in or
near Valparaíso, even a Valparaiso broken up into a looter’s paradise.
The context, however, suggests that Larraín and the rest feared not
just habitual criminals, but a general uprising (MARTLAND, 2009,
p. 75). (grifos nossos).

É de se remarcar que, além do grande temor das elites a possíveis revol-


tas populares, no contexto do terremoto de 1906, com mais de 3 mil mortos
na cidade, segundo Martland, não aconteceu nada comparável aos anos an-
teriores e que os saques, ao que parece, foram escassos. A respeito das execu-
ções que foram realizadas, o autor pergunta-se pelos preconceitos de classe
que subjazeram nessas decisões: afinal, como distinguir no meio dos escom-
bros entre quem eram os donos das propriedades e os designados saqueadores?
Pela roupa que usavam? Pela forma que falavam? (MARTLAND, 2003).
Diferentemente ao vivido no ano de 2010, para as autoridades e a eli-
te de Valparaíso, multitudinários atos de violência formavam parte do ho-
rizonte de possibilidades logo após ao terremoto. O temor da elite, de modo
provável, viu-se reforçado pelos eventos de 1905, quando 25 e 50 mil pes-
soas protestaram em Santiago pelo aumento do preço da carne. Durante
três dias, segundo De Ramón (2007, p. 195), multidões de trabalhadores,
camponeses e marginais, “pusieron un ‘gran miedo’ entre los habitantes de
la ciudad”; alguns deles, participaram em assaltos a mais de 100 lojas como
drogarias, sapatarias e bancos. À repressão policial, somaram-se guardias
blancas, conformadas por indivíduos da elite que receberam do próprio go-
verno de Germán Riesco, armamento para atacar os manifestantes. Nas
palavras de Benjamín Vicuña Subercaseaux, membro da elite, os assassina-
tos, embora lamentáveis, justificavam-se pela defesa de valores maiores da
sociedade civilizada, como a família, propriedade privada e justiça. O ano
seguinte, nos abatidos bairros aristocratas de Valparaíso, guardias blancas se
conformaram no cenário do terremoto.
O ano seguinte, o novelista Jorge Edwards – por certo, membro da eli-
te de Valparaíso –, celebrava a figura de Luis Gómez Carreño, oficial da
marinha que dirigiu as ações repressivas no cenário pós-terremoto:
De otra parte, la ciudad se libraba de sus ruinas gracias a sus gran-
des hombres. Si en el terremoto de Lisboa se reveló el genio de Car-
valho e Mello, en el de Valparaíso nos reveló el carácter de don Luis
Gómez Carreño. Su mano salvó a la ciudad del terror… Fueron tres días

– 58 –
de terror, no sólo a causa del terremoto, sino, asimismo, por la fiera
humana que apareció entre las ruinas y las llamas.14 (grifos nossos).

As palavras de Edwards foram resgatadas do olvido mais de 100 anos


depois, em 28 de fevereiro de 2010, no jornal La Tercera, para demonstrar
como a “fiera humana” foi controlada, a diferença de Concepción, de modo
exemplar no começo da centúria. Não obstante, embora esses registros exis-
tam e sejam públicos, não são imagens facilmente evocadas; além de deter-
minados jornais, intelectuais e militares que trouxeram à memória a figura
de Carreño no 27F, os eventos de 1906 não estavam presentes no campo
das representações de terremotos circulantes nos relatos de nossos entre-
vistados. Mas, com aquela rememoração promovida pela imprensa, esses
fatos cobraram, por um momento, a vida novamente.15
Sobre aqueles episódios é interessante notar que o ex-presidente La-
gos, no texto citado na introdução, ao percorrer a história telúrica nacional
traz à memória os eventos de 1906, mas sem esboçar vínculo algum entre
esses acontecimentos e os vivido em 2010, insistindo, de tal forma, na
obliteração dos últimos eventos para sustentar suas elucubrações sobre a
perene solidariedade e ordem nacional nas calamidades.

TERREMOTOS, IDENTIDADE NACIONAL E HEROÍSMO

Um terremoto ainda presente na memória viva nos relatos dos mais


velhos é o cataclismo que na terça-feira, dia 24 de janeiro de 1939, destruiu
a cidade de Chillán. Numa primeira aproximação aos registros do passado,
nessa ocasião não teria acontecido nada parecido ao vivido em 1906, em
matéria de insegurança. Do mais mortífero terremoto do Chile no século
XX, quando morreram mais de 24 mil pessoas, as memórias oficiais lem-
bram-se da criação da Corporación de Reconstrucción y Auxilio, órgão estatal que
atendeu as urgências em matéria de vivenda, especialmente, para os seto-
res mais carentes, assim como desenhou novas normativas de construção,

14. Jornal La Tercera, edição dia 2 de março de 2010, “Gómez Carreño: el ‘sheriff ’ que
controló Valparaíso en el terremoto de 1906”.
15. A prática de revisar terremotos históricos quando uma zona do país é afetada por um
desses fenômenos, é recorrente no Chile; assim, no caso de 1906 o terremoto relembrado
pela imprensa foi o desastre de 1647 (LÓPEZ, 2011). Por sua vez, Hernández (2009),
quem pesquisara as memórias do terremoto de 1960 em Valdivia, destaca como a im-
prensa conforma uma certa memória escrita sobre este tipo de eventos, registros
construídos no imediato e, que por tanto, podem incluir erros sobre o vivido, e que iro-
nicamente, serão repetidos pelas mesmas fontes a abordar o mesmo desastre em tem-
pos posteriores.

– 59 –
incorporando princípios antissísmicos que ajudariam a enfrentar de melhor
forma os seguintes terremotos. Junto a isso, lembra-se a mobilização de
notáveis redes de solidariedade tanto na escala nacional como internacio-
nal, ativadas para socorrer aos milhares de danificados da zona sul do país,
tarefas na qual destacou o então presidente, Pedro Aguirre Cerda, quem
incorporou a “solidariedade social” como princípio para governar o país após
o desastre.
O funesto terremoto, no qual morreu a metade da população de
Chillán, impactou sensivelmente a artistas da época; assim, Gabriela Mistral
publicou no jornal El Tiempo de Bogotá, em 6 de fevereiro de 1939, “La
tragedia andina”, texto onde desenvolveu sua particular visão sobre a na-
tureza “heróico-trágica” do “estóico povo chileno”.
Mi gente sepulta a los muertos de la catástrofe con ese estoicismo
que es el hueso mismo de Chile; ella acarrea a sus heridos a los
hospitales llevando el pulso firme que nos viene del minero y pes-
cador; ella cuenta a los vivos con los ojos enjutos y ella regresará en
dos hebras al campo y a la fábrica a regar el plantel y apresurar las
industrias de alimentos. La desventura no ha logrado un colapso en
el país de las pruebas que siempre las vio llegar y les dio la cara.

Nesse mesmo ano, Mistral também escreveu “Una crónica del terre-
moto: Guillermo Diaz, velador nocturno”, na que narra a história de um
jovem de 15 anos, zelador da central elétrica de Chillán, quem, em vez de
salvar a sua própria vida, se sacrificou para desligar a energia da fábrica e,
assim, evitar um incêndio que aguçara ainda mais a tragédia. Mistral louva
a figura deste “muchacho maravilloso”, que perdurará – conforme as apre-
ciações da escritora –, na memória de todo o povo de Chillán por seu no-
bre sacrifício. Isso pode ser apreciado no seguinte trecho:
[...] la cinta rojinegra de estampas del temblor, los sobrevivientes las
matarán en su memoria, para que ellos no los maten. Pero esta flor
absoluta de heroísmo, esta simple rosa de Sarón, quedará en ellos,
sobre el cogollo de su memoria, sola y llameando de vida eterna
(MISTRAL, 2011, p. 175).

A poetiza, comovida pela história do herói popular, escrevia no final do


texto: a cidade de Chillán “em bronze o fará” para assim continuar ele sendo
o “coração civil” da urbe; mas isso, contudo, não chegou a acontecer. Porém,
o esquecimento particular do jovem Diaz não atenua a vigência da ideia de
continuidade da resistência frente à adversidade telúrica enquanto rasgo
constitutivo da identidade chilena (RIQUELME; SILVA, 2011).

– 60 –
A raiz do mesmo cataclismo, Pablo Neruda, na sua condição de côn-
sul chileno no México, fez as gestões necessárias para que o governo mexi-
cano financiasse a reconstrução de uma escola em Chillán, a que foi
enfeitada com murais dos artistas David Alfaro Siqueiros e Xavier Guerrero.
Paralelamente, conforme informa Rubilar (2011), Neruda publicou “Cata-
clismo”, escrito, primeiramente, com o objetivo de arrecadar dinheiro para
os danificados, onde exclamava: “nuestro deber es abrir las manos y los ojos/
y salir a contar lo que muere y lo que nace/ … construyamos el muro, la
puerta, la ciudad/ comencemos de nuevo el amor el acero/ fundemos otra
vez la patria temblorosa” (NERUDA, 1974, p. 252).
Conforme a dissertação doutoral de Quinn Dauer (2012), debruçada
na ligação entre os desastres naturais e a formação do Estado-Nação nos
casos de Chile e Argentina, pode-se identificar a potencialidade das cala-
midades naturais para unir as distintas regiões de uma nação, associadas para
além das diferenças, no ritmo das urgências e demandas da reconstrução.
No caso de 1939, por exemplo, o presidente Aguirre Cerda conseguiu da
oposição recursos e permissões que sem a tragédia teriam sido impossíveis
de obter. Mas, as catástrofes – aponta o historiador –, têm tanto a faculda-
de de revelar experiências e memórias que atrelam a nação, acompanhadas
no geral, por abundantes discursos de caráter patriótico, como também a
virtude de tornar visíveis as línhas de fratura da sociedade.
Através da revisão de imprensa, Dauer revela que o medo de saques e
comportamentos antissociais, formou parte das preocupações imediatas ao
abalo sísmico de 1939; o governo chamava à população a manter a calma e
resolveu decretar lei marcial nas áreas devastadas para prevenir potenciais
desordens. O temor de levantes populares, explica o historiador, foi, con-
tudo, sobrestimado tanto pela imprensa, bem como pelos ministros do gover-
no e pelos sobreviventes; isto, em comparação com os isolados reportes de
violência acontecidos nesses dias. Ao contrário dos medos circulantes, no
caso de Chillán, grupos teriam coletado bens que ficaram entre as ruínas
para ser levadas as autoridades locais, com o fim de determinar seus pro-
prietários, aponta Dauer. Com o avançar dos dias, frente às múltiplas ur-
gências de resgate e socorro, os temas vinculados à manutenção da ordem
pública nas cidades afetadas, entre elas, Concepción, ecoaram com menor
força. Mas, mesmo assim, os temores se re-ativaram quando foi decretada
a evacuação da cidade, como medida sanitária, já que muitos residentes
teriam duvidado, segundo a imprensa, de ir embora por medo a que as
moradias fossem roubadas.
Com respeito ao terremoto de 1960, ano da comemoração dos 150
anos da Independência do Chile, Riquelme e Silva (2011) identificaram,
entre os discursos da elite e dos intelectuais da época, um grande reforço

– 61 –
da noção da identidade adstrita ao território, concepções que antecederi-
am à própria conformação do conceito da nação chilena. Nessa perspecti-
va, o acontecimento telúrico constitui uma qualidade ancestral e perene do
Chile, e o caráter sísmico, comporia parte da essência da “chilenidad” e sua
capacidade de enfrentar as calamidades. Assim, em revistas da época, é
possível achar artigos discorrendo sobre a identidade nacional: “De ahí que
el chileno sea reacio y sufrido... por sobre calamidades telúricas levanta su
serenidad plasmada en el duro yunque del dolor y enjuagando las lágrimas,
sus ojos miran siempre el porvenir”.16
De acordo a Onetto (2007), essa tradição remonta à época colonial; logo
após ao terremoto que, em 1647, atingiu a cidade de Santiago, a valorização
e idealização do território, invisibilizou a possibilidade de que os próprios
habitantes ao longo do tempo e por motivos estratégicos, conscientes ou não,
fossem os que construíssem aquela imagem fatalista do país. Segundo as
análises do autor, é a partir dessa catástrofe que os hispano-crioulos do Chi-
le começaram a narrar os desastres naturais na forma de aporias fatalistas.
Anteriormente, os conquistadores obliteravam os terremotos dos relatos ofi-
ciais já que o centro dos discursos era posto na guerra contras os mapuches sob
o formato de épicas heroicas. A tese de Onetto é que a explicitação dos terre-
motos podia desestimular os já paupérrimos investimentos da Coroa Espa-
nhola na empresa conquistadora no Chile. Não obstante, a partir do
cataclismo de 1647, se consolidou uma sensação de fatalismo resignado ante
as inseguranças do território o qual modificou o modo de construir e pensar
o espaço físico das cidades. Nessa época, Santiago havia alcançado certa
tranquilidade – dentro de sua precariedade –, e um mínimo de edificações
lograva materializar a ordem e o controle procurados pelos fundadores da
cidade. Ver como todos os avanços terminaram no chão em minutos impactou
de modo profundo na comunidade e se instalou, o desastre de 1647, no ima-
ginário popular como o maior sismo da época colonial.
Já no nascimento da República, no século XIX, é possível identificar
nos discursos de historiadores liberais a operação, mediante estereótipos,
que vincula a exclusividade espacial e “eventual” do Chile catastrófico com
uma possível identidade nacional. Onetto destaca que: “Conceptos como
el de ‘exclusividad territorial’, ‘pueblo sufrido’ o que el poblador chileno
tiene un ‘carácter telúrico’ han sido desarrollados y explotados en la cultu-
ra oral, el folclore y también en la academia bajo un gran consenso”
(ONETTO, 2010, p. 28).
Na década de 1980, desde a historiografia, Rolando Mellafe debru-
çou-se sobre a necessidade de elaborar uma historia das mentalidades que

16. Revista En Viaje, nº 321, edição julho de 1960.

– 62 –
atentasse não só nos fatos conscientes, racionais e no acontecer político feliz,
senão, também, num outro tipo de registro vinculado a momentos de cri-
ses de diversas índoles, o que ele chama de “acontecer infausto”,
temporalidade marcada pelas vivências de terremotos e outras calamidades,
eventos relevantes na compreensão das “personalidad” dos povos: “La con-
tinua recuperación y pervivencia al acontecer infausto, reiterado a lo largo
de los siglos, refuerza muchos de los elementos más valiosos del ego colectivo
e individual de los pueblos” (MELLAFE, 2004, p. 238).
Onetto (2011) polemiza com esse autor, indicando que Mellafe só
conseguiu estabelecer uma série de premissas históricas metafísicas com
respeito ao território, sem uma base historiográfica rigorosa; ao contrário,
teve como consequência uma retórica holística segundo a qual o Chile tem
uma identidade desastrosa por natureza, caindo num certo determinismo
histórico-geográfico. Além disso, acrescente-se que a proposta de Mellafe,
foi enunciada quando o país atravessava um dos momentos mais adversos
de sua história recente, a ditadura de Pinochet; contudo, o autor preocu-
pou-se de contabilizar e descrever calamidades ditas naturais, enquanto
parcelas da população eram torturadas, assassinadas e/ou desaparecidas pelo
Terrorismo de Estado.17
Podemos acrescentar, ainda nesse sentido, que no contexto do desas-
tre de 2010, essas sentenças nacionalistas cobraram uma re-atualização de
certos discursos, de um modo mais ou menos mecânico. Um acadêmico,
referindo-se às condutas dos chilenos nas catástrofes naturais, e invocan-
do Mellafe, achava que “esta capacidad natural de sobreponerse frente a la
adversidad [...] La otra, es esta suerte de resignación del carácter chileno,
pensando que esto fue lo que nos tocó vivir” (grifos nossos).18
Além da polêmica, o que nos interessa dizer é que achamos pertinente
tomar aquelas questões entre território, catástrofes e identidade para tentar
iluminar os processos de gestão das memórias sobre eventos telúricos, gra-
ças às quais parecem dominar (antes de 2010, pelo menos) visões solidárias
e estóicas em relação aos modos de reagir da população no Chile, que dispu-
tam nos meandros do olvido com aquelas situações e eventos mais confli-
tuosos registrados nos cataclismos, como revisamos ao longo do texto.
Ao percorrer diferentes eventos telúricos do século XX, rastos sobre
tensões em matéria de segurança pública emergiram em diversos registros

17. Comentário que gentilmente apontou para nós, o professor Gonzalo Cáceres Quiero.
18. Depoimentos de Luis Ortega. Disponível em: noticias.universia.cl/vida-universitaria/no-
ticia/2010 /04/01/264024/experto-asegura-serie-catastrofes-han-moldeado-conducta-
chilenos.html.

– 63 –
do passado. Nesses relatos, as decisões dos governantes no meio da emer-
gência pareciam obedecer mais a temores e medos que a ocorrência factual
de desordens e revoltas por parte das camadas populares, pelo menos, na
escala em que foram projetadas, e que justificavam a gestão militarizada das
catástrofes, nos casos revisados de 1906, 1939 e 1960. Ou seja, ao que
parece, foram os rumores e o medo circulante sobre possíveis saques, mais
que os próprios saques em si que, esporadicamente, em um ou outro caso,
sucederam no cenário especifico pós-terremoto, os que mobilizaram recur-
sos e decisões de mando próximas a uma lógica militar.
Assim como na gestão da memória, não se pode negligenciar os efei-
tos de silêncios e olvidos; os rumores, embora sua indeterminação, são um
elemento central nos relatos compilados. Veena Das (2007), ao revisar em
retrospectiva a influência dos trabalhos de George Rudé e E. P. Thompson,
os historiadores da multidão, destaca como as análises se centraram na fun-
ção crítica que teriam os rumores, entendido como instrumento de trans-
missão rebelde dos grupos subalternos, ao invés da elite, que enquadraria
esse tipo de comunicação como indicador da irracionalidade própria das
massas. Contudo, aponta Das, é importante toma avaliar a ideia de “con-
tágio”, pois nessa condição poderia radicar a característica gramatical prin-
cipal dos rumores: ter sido concebido para se espalhar.
Thus while images of contagion and infection are used to represent
rumor in elite discourse, this is not simply a matter of
noncomprehension, on the part of elites, of subaltern forms of
communication: it also speaks to the transformation of language,
namely, the instead of a medium of communication, language
becomes communicable, infectious, causing things to happen almost
as if they had happened in nature (DAS, 2007, p. 199).

A força perlocucionária e performativa das palavras, faz sentido quando


enunciados propagados numa voz coletiva anônima, que desencadeiam
consequências concretas ao serem anunciados. Mas, nem todo rumor é acei-
to como plausível; devem ser enunciados em contextos ideológicos e histó-
ricos a fim de serem acreditados e postos em circulação. Nesse sentido,
autores como Stewart e Strathern, destacam que será o contexto, mais que
as palavras em si, que produz os efeitos, mas acrescentam: “this context is
itself the product of repeated conversations and memories from the past,
sedimented into patterns of presupposition and interpretative though that
are employed to understand all events in the world, not just matters of
gossip” (STEWART; STRATHERN 2004, p. 30) (grifos nossos).
Nesse sentido, sobre os eventos explorados, pode-se dizer, ainda, e a
modo de hipóteses, que foram as lembranças de “desordens” vividas em

– 64 –
contextos diferentes aos telúricos, de greves e confrontos entre governados
e governantes, os elementos que, de fato, poderiam ajudar a entender os
campos de rumores, boatos de estados de exceção, toque de recolher,
fuzilamentos reais e imaginários e demais, que podemos rastrear com es-
forço nos terremotos do século passado, nas tramas e fios vinculados a dis-
cursos altissonantes de caráter patriótico e orgulhoso da identidade chilena
no instante de enfrentar os “desígnios da terra”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As contribuições de Halbwachs no campo de estudos da memória, ain-


da ecoam até nos; no destaque do âmbito social, enquanto dimensão ine-
rente do processo de recordação, resulta uma de seus maiores aportes. As
memórias, com efeito, passaram a ser entendidas, a diferença das teses
psicologizantes da sua época, como uma reconstrução do passado inscritas
na práxis dos indivíduos e grupos e que, portanto, são construídas em fun-
ção de representações, visões de mundo e símbolos que permitem aos gru-
pos pensar seu presente. Daí, entende-se que os testemunhos não explicam
a realidade passada, mas antes, a verdade do presente tal como a sociedade
que rememora a constrói.
Nesse sentido, Pollak (1992) asseverava que as preocupações do momen-
to presente constituem um elemento estruturante das memórias, assim, as
flutuações das lembranças estão em razão do momento em que são articula-
das; a memória, por conseguinte, passa a ser compreendida como fenômeno
construído, como ativo processo de organização, no qual certos elementos se
recalcam, se excluem e outros, são lembrados. De tal forma, as memórias são
necessariamente plurais, multiformes e se inscrevem em diversos tempos
sociais e espaços apropriados por diferentes grupos (LAVABRE, 2007).
Mas, se a abordagem de Halbwachs preocupou-se mais com as funções
positivas, como continuidade e estabilidade que permitem a coesão social,
assiste-se à inversão dessa perspectiva, preocupando o debate sobre o cará-
ter potencialmente problemático da memória coletiva, que, às vezes, pode
vir a ser forma de dominação e expressão de violência simbólica, destaca
Pollak (1989). “A memória entra em disputa”, nas palavras do sociólogo
francês, multiplicando-se, como consequência, uma série de pesquisas que
se debruçaram no caráter destruidor, uniforme e opressor da memória dita
nacional. Disso, cobram importância as questões relativas às posições hie-
rárquicas no campo social dos atores e instituições que lembram, bem como
as disputas inerentes a esses processos de constituição e formalização das
memórias. Quê, como e para quê se lembra?, abriram-se enquanto eixos de
profunda discussão teórica, mas sobretudo, política.

– 65 –
Vinculado ao anterior, Nestrovski (2009, p. 143) realça como se tor-
nou consenso aceitar o paradoxo que a constituição da narrativa historio-
gráfica, ela mesma, configura-se como forma de esquecimento em jogo
“daquilo que não deveria jamais ser esquecido”. Em outras palavras, a
memória é uma forma de esquecimento, pois, no momento em que se
condensa como memória, serve para anestesiar uma lembrança. Assim sen-
do, a memória ao ser já representação, constitui uma modalidade ativa de
esquecimento muito mais poderosa, em seus efeitos, do que poderia ser
qualquer representação. Portanto, adverte, deve-se “sempre lembrar que
‘lembrar’ é, ao mesmo tempo, uma forma de esquecer” (Ibid., p.144).
Nesse campo de inquietações, Augé (1998) propõe, ainda, que os re-
latos são o resultado da memória e do esquecimento, trabalho de composi-
ção e recomposição que da conta da tensão exercida pela espera do futuro
sobre a interpretação do passado. É assim que o esquecimento pode adqui-
rir um sentido diferente, em especial, quando começa a ser percebido não
como vazio, senão, contrariamente, enquanto um componente mesmo da
própria memória: olvido é, por conseguinte, força viva da memória.
O Memorial 27F foi resultado do chamado do governo de Piñera para
apresentar obras dedicadas às vítimas do terremoto. Atentando para crité-
rios econômicos, e até turísticos, a “vitória” de Concepción por sobre ou-
tras localidades, também afetadas pelo desastre, como Talcahuano, Isla Juan
Fernández, Dichato e Talca, abre espaço para certas interrogações. Por que
estabelecer, nessa cidade, cenário de multitudinários episódios de violência
e temor que escandalizaram o país, a monumental estrutura, interpretada –
como vimos na introdução –, como uma mensagem de unidade para o país?
No nosso entender, o memorial constitui um intento de patrimonialização
de uma memória viva, movimento uniformizador, onde os empreendedores
da memória, neste caso, os representantes do Estado, “poderosos encenadores
da memória histórica” (JEWSIEWICKI, 2010, p. 327), plasmaram sua ver-
são dos fatos dentro do imaginário coletivo “legítimo” para as autoridades,
aquele do heroísmo e consenso nacional no pós-terremoto. A cerimônia inau-
gural do memorial, expressão de uso público da memória, pode ser decifrada
enquanto um sermão presidencial acerca do certo e do errado, acerca do quê
o povo chileno realmente seria; uma narrativa moralizante dedicada a uma
cidade que, em 2010, tencionou coletivamente, o imaginário do irrestrito
respeito à propriedade e às autoridades.
De certo modo, as palavras presidenciais podem constituir – acom-
panhando a reflexão de Lucas Amaral de Oliveira (2013, p. 93) sobre Pierre
Nora –, em uma “memória como dever”, característica própria de lugares
de memória, “sempre mais esquecida de sua própria história porque trans-
formada em monumento estático, celebrativo e memorativo apenas”. Os

– 66 –
saques pós-terremoto constituem memórias controvertidas, não há dúvida,
lembranças que alguns administradores, usaram e modularam conforme fins
políticos particulares. Porém, os residentes de Concepción observam com
receio os monumentais blocos, memorial soberbo que, provavelmente, de-
cidiu não dar conta das multifacetadas memórias da cidade, relatos de dor,
solidariedade, temor, incertezas e raiva, com suas clivagens temporais den-
sas, intrincadas e espinhosas, que derrubam qualquer intento por homo-
geneizar o vivido, especialmente quando se trata de enxergar como os
eventos “excepcionais” se acham – para citar uma vez mais Das (2007) –
atrelados por “tentáculos” à vida cotidiana.

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– 69 –
CAPÍTULO III

REFUGIADOS AMBIENTAIS HAITIANOS


NO BRASIL: NOTAS INTRODUTÓRIAS DE
UM ESTUDO NA PERSPECTIVA DA
SOCIOLOGIA DOS DESASTRES
Diego Correia

INTRODUÇÃO – OS DESASTRES E O REGIME DE REFÚGIO


AMBIENTAL EM TEMPOS DE ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS

Os desastres socioambientais, potencializados pelos fenômenos das


mudanças climáticas, têm se tornado uma das principais causas do deslo-
camento forçado de populações entre países. Embora existam conjecturas
e analogias conceituais, normativas e institucionais sobre a necessidade de
proteção da dignidade e dos direitos humanos para os denominados refugi-
ados ambientais em relação ao refugiado politico, não se verificam ações con-
cretas contra a vulnerabilidade sócio-espacial dos primeiros, tanto nos
espaços de origem, quanto nos espaços além fronteira onde estes buscam a
“acolhida” circunstancial.
O sismo e o tsunami ocorridos em sequencia no Oceano Índico, em
2004, foram um marco para que governos e formuladores de políticas em
todo o mundo articulassem estudos e o desenvolvimento de respostas mais
eficazes para as populações locais que foram desenraizadas pela devastação
ambiental resultante. Do mencionado evento, Cohen e Bradley (2010)
contabilizaram o número de 250 mil vítimas fatais em 11 países da Ásia e
da África bem como de países europeus. Ainda anotam que, mesmo depois
de seis anos, persistiam os esforços para a reconstrução da infraestrutura,
da limpeza, da garantia de água potável e de saneamento, que deverão per-
durar por décadas.
Desde então, em todo o mundo, foram contabilizadas cerca de cinco
milhões de pessoas desterritorializadas por conta de desastres socioam-
bientais. Dessa forma, um cenário de aumento de riscos de desastres tende

– 71 –
a produzir um movimento maciço de pessoas deslocadas à sua revelia, ge-
rando um fenômeno migratório por vezes inusitado (em termos de escala)
no interior dos territórios nacionais, o que pode gerar uma infinidade de
problemas ou conflitos sociais e econômicos entre os deslocados e os gru-
pos sociais dos novos territórios que os primeiros tencionam se estabelecer
provisória ou definitivamente, tais como: o inchaço desestruturado das ci-
dades; a proximidade e o conflito armado entre grupos sociais e étnicos di-
ferentes pela disputa por recursos naturais; dentre outros. Não obstante, o
processo de desenraizamento resulta no aumento dos deslocamentos inter-
nos, mas que também pode se desdobrar na imigração, na maioria das ve-
zes, nesses casos de desastres, caracterizados pela marca da ilegalidade e da
negação a quem chega; isto é, de uma intolerância aos que vivenciaram uma
situação multidimensional de perdas e chegam sem condições materiais
próprias para se recuperar. Sobre esse último ponto, cabe menção ao rela-
tório da Christian Aid (citado em Cohen & Bradely, 2010), que estima o
deslocamento internacional relacionado aos fenômenos relacionados à
mudança climática, entre os anos de 2007 e 2050, algo em torno de 250
milhões de pessoas.
A Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados,
também conhecida como Convenção de Genebra de 1951, define um refu-
giado como toda pessoa que, no temor devido à sua condição, de ordem
social ou de classe, sente-se obrigado a buscar refúgio em outro lugar que
não no seu país de origem.
O PNUMA (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente)
define o conceito de refugiado ambiental nos seguintes termos:
Refugiados ambientais são pessoas que foram obrigadas a abandonar
temporária ou definitivamente a zona tradicional onde vivem, devi-
do ao visível declínio do ambiente (por razões naturais ou humanas)
perturbando a sua existência e/ou a qualidade da mesma de tal ma-
neira que a subsistência dessas pessoas entra em perigo. No entanto,
devemos salientar que ser refugiado implica, necessariamente, em atra-
vessar a fronteira de um país. Os deslocados internos são tratados
apenas do ponto de vista social e humanitário. “Por declínio do am-
biente se quer dizer, o surgir de uma transformação, tanto no campo
físico, químico e/ou biológico do ecossistema que, por conseguinte, fará
com que esse meio ambiente temporário ou permanentemente não
possa ser utilizado.” (PNUMA1 apud ACNUR, 2013, s/n).

1. PROGRAMA DAS NAÇÕES UNIDAS PARA O MEIO AMBIENTE. Environmental


Refugees. ONU: PNUMA, 1985.

– 72 –
Por declínio do ambiente se quer dizer, o surgir de uma transforma-
ção, tanto no campo físico, químico e/ou biológico do ecossistema que, por
conseguinte, fará com que esse meio ambiente temporário ou permanen-
temente não possa ser utilizado. (Environmental Refugees, PNUMA, 1985,
tradução).
Nesse sentido, os refugiados ambientais não são, necessariamente, per-
seguidos, mas aqueles que se sentem obrigados a fugir para garantir sua existên-
cia física, já que não podem ganhar um sustento seguro em sua terra natal
por conta da seca, da erosão do solo, da desertificação, do desmatamento e
tantos outros problemas ambientais, seguramente, associados às pressões
populacionais e à profunda pobreza (RAMOS, 2011).
Embora seja um fenômeno crescente, ainda não é consensualmente re-
conhecido ou contabilizado no Direito Internacional. Nessa esteira, a maior
parte dos países tende a considerar os refugiados ambientais como imigran-
tes, envoltos pela situação de ilegalidade e interpretados pelas autoridades
sob o prisma predominantemente socioeconômico (RAMOS, 2011; COS-
TA, 2009). As autoridades públicas, dos serviços de fronteira, tem nesse pris-
ma o intuito de evitar uma extensão generalizada do direito ao asilo/
assistência humanitária para aqueles que foram deslocados por força da
degradação ambiental. Desassociam a demanda do refugiado por nova in-
serção espacial do fenômeno do desastre vivido por este, por uma questão
também política.
Logo, é pertinente indagar: quais têm sido, de fato, as garantias recupe-
rativas de refugiados ambientais, isto é, práticas públicas que viabilizem uma
nova oportunidade de uma construção social de lugar?
Para trazer elementos que embasem esse questionamento, focalizare-
mos o caso das trajetórias dos refugiados ambientais haitianos e seus per-
calços no contexto brasileiro.

O HAITI – DA VULNERABILIDADE SOCIAL AO DESASTRE DE 2010


A República do Haiti está localizada na América Central, e ocupa o
terço ocidental da ilha de Hispaniola, a qual compartilha com a República
Dominicana. Seu território é de 27.750 km2, e sua população é de aproxi-
madamente 10 milhões de pessoas. Possui duas línguas oficiais, o francês e
o creole.

2. Dados retirados do site da PNUD – Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento,
em <http://www.ht.undp.org/content/haiti/fr/home/countryinfo/>.

– 73 –
Há muitas décadas, o Haiti é considerado o país mais pobre do hemis-
fério ocidental. O Programa das Nações Unidades para o Desenvolvimen-
to (PNUD) expõe em seu sitio-web1, os seguintes dados do país, antes do ano
de 2010:
t 78% da população viviam em situação de pobreza (<US $ 2 por dia).
t O adulto médio frequentava apenas 5 anos de escola.
t 54% da população viviam em pobreza extrema (<US $ 1 por dia).
t A taxa de mortalidade entre as crianças menores de cinco anos foi
de 78 óbitos por mil nascidos vivos, e a taxa de mortalidade mater-
na foi de 630 mortes por 100 mil nascidos vivos (as maiores taxas
da América Latina).
t 47,7% dos jovens estavam desempregados em nível nacional.
t Apenas 58% das crianças foram imunizadas contra o sarampo.
t 40% das famílias não tinham acesso confiável aos alimentos.
t 30% das crianças sofriam de desnutrição crônica. 58% da popula-
ção não tinha acesso à água potável.

Em janeiro de 2010, um catastrófico terremoto matou mais de 200 mil


pessoas no país. Para efeitos comparativos, é uma fração semelhante aos
mortos pela bomba atômica em Hiroshima ou Nagasaki ou ao conjunto de
pessoas de dezenas de países que morreu no sismo-tsunami do Índico em
2004. Nesse quadro, é evidente que o desastre relacionado ao terremoto no
Haiti foi muitíssimo intenso e agravou os já elevados níveis de desequilíbrio
social e econômico precedentes. Após os abalos sísmicos, do terremoto prin-
cipal e suas réplicas, estima-se que 1.3 milhões de pessoas passaram a viver
em acampamentos temporários na região metropolitana e 600 mil pessoas
deixaram as áreas afetadas para buscar refúgio em outras partes do país (OLI-
VEIRA, 2010; RESERVE, 2013).
A precariedade institucional desnudada aos olhos internacionais pelo
terremoto tem raízes históricas, sedimentada num legado colonial francês,
e em relações políticas autoritárias, construídas, sobretudo, durante as di-
taduras de François Duvalier – Papa Doc (1957-1971), de Jean Claude
Duvalier – Baby Doc (1971-1987) e dos governos de Jean-Bertrand Aristide
(1991; 1994-1996; 2001-2004) que, entre outras ações, facilitaram a ação
de empresas transnacionais de alimentos, fragilizando o setor agrícola lo-
cal, gerando uma desordenada migração rural-urbana. Embargos econômi-
cos também foram uma constante (ver mais em LEITÃO, 2013). Ainda, há
de se notar uma influência marcante de diferentes atores externos, como a
presença de forças de segurança externas, bem como de Organizações Não-

– 74 –
Governamentais estrangeiras, o que denota um marcador saliente de uma
espécie de “soberania limitada”, “de jure e de facto” (BARANYI, 2012, p. 3).
Do ponto de vista social, as sequelas do terremoto de 2010 seguiram
como marcas até os dias de hoje. Além dos danos aos edifícios e à infraes-
trutura, o terremoto também causou perdas significativas de capital huma-
no – aproximadamente 18 mil policiais foram mortos no terremoto, além
de 1.500 funcionários da educação. Em 2012, por volta de meio milhão de
pessoas ainda viviam em um dos 600 acampamentos do entorno da capi-
tal Porto Príncipe. Não obstante, dois furacões, Isaac e Sandy (agosto e
outubro de 2012, respectivamente) atingiram o país já fragilizado, geran-
do novas perdas em vidas (cerca de 100 pessoas) e de bens materiais, acar-
retando ainda mais miséria e desolação ao país, sobretudo, àqueles que
viviam nos campos de refugiados (idem).
Pelo exposto no boletim nº 25 da MINUSTAH, há um cálculo de cer-
ca de 120 mil pessoas infectadas pela cólera durante 2013, devido à degra-
dação das condições sanitárias provocadas pela destruição relacionada à
passagem dos supramencionados furacões (contabilização de 7 mil vítimas
fatais, segundo a PNUD1). Os desastres subsequentes ao terremoto também
incidiram negativamente sobre aproximadamente metade da população
rural haitiana, que ainda enfrentaria a insegurança alimentar (RESERVE,
2013).
Boa parte dos recursos de “ajuda humanitária” alocadas por governos
e organismos multilaterais foi utilizada para pagar empresas estrangeiras ao
invés de pessoas locais. De acordo com a análise realizada pela Associated
Press, as empresas haitianas conseguiram ganhar somente 1,6% do valor total
dos contratos para reconstrução financiados pelos Estados Unidos. Mesmo
com a subcontratação de empresas locais em determinados contratos, pou-
cos trabalhadores nativos foram empregados. Assim, boa parte dos recur-
sos financeiros acabou em contas bancárias dos EUA, nas mãos de
empreiteiras, minimizando a capacidade de alívio gerada por tais recursos,
tal como relatado por Patrick Burn, empresário local:
Você pode imaginar que, se não podemos vencer os contratos por nós
mesmos. Tornamo-nos totalmente dependentes de empresas estran-
geiras e organizações sem fins lucrativos, o que não nos dá muita es-
perança [...] Podemos não ter a capacidade técnica de uma empresa
dos EUA, mas somos corretos. Mantemos bons livros de registros,
temos fornecedores estrangeiros, temos um bom crédito, pagamos
nossos impostos e as dívidas contraídas (MENDONZA, 2011, p. 1,
nossa tradução).

– 75 –
Desde 1994, após oito desastres socioambientais acontecidos no Haiti,
é possível observar uma intensificação de sucessivos movimentos migrató-
rios de centenas de milhares de haitianos, com o intuito de não só escapar
dos desdobramentos perversos do último desastre, como também para evi-
tar um próximo desastre.
Nesse ponto, é conveniente frisar a observação de Murray e Williamson
(2011) de que a imigração vem sendo uma ferramenta mais poderosa para a
recuperação do Haiti do que a ajuda internacional. Em primeiro lugar, o Banco
Mundial calcula que as remessas internacionais para o Haiti (nas transferên-
cias unilaterais de familiares do exterior para seus parentes que permanece-
ram no país) são duas ou três vezes maior do que a soma total da assistência
oficial dada pelos países e organismos internacionais. Em segundo, porque é
caracterizado pela transferência de renda direta à população, ao contrário da
ajuda internacional. Para efeitos de comparação, apenas dos Estados Unidos
para o Haiti é estimada a transferência anual (de família para família) do
volume de US$ 2 bilhões, quase o dobro do montante prometido pelo go-
verno dos Estados Unidos, durante a Conferência de Doadores, em 2010. Ou
seja, o ato de imigrar não corresponde apenas a uma tática pessoal, ou parti-
cular, mas contém em si a esperança de ajuda ou amenizar as agruras para
aqueles que ficam, mantendo-se, assim os vínculos sociais.

O BRASIL COMO PORTO DOS REFUGIADOS AMBIENTAIS HAITIANOS

Tradicionalmente, sobretudo no período entre as Grandes Guerras


Mundiais, o Brasil foi um destino privilegiado para imigrantes, inclusive para
refugiados de guerra de países como a Itália, Japão, Síria, Líbano, entre ou-
tros. Porém, a aparência de um país subdesenvolvido, de baixas perspecti-
vas sociais e econômicas, fez deste um país com uma das mais baixas taxas
de cidadãos estrangeiros no mundo (ver mais em WHITEFIELD, 2013).
A crise financeira internacional no final da década de 2000, que
desestabilizou economias desenvolvidas, como os EUA e o bloco europeu,
mas não tanto outras economias emergentes, subverteu à lógica determinista
do Brasil como um país exportador de migrantes.
O Estado brasileiro viu benefícios dessa exposição do país como um
“país vencedor” e “vendedor de sonhos”, principalmente pelo potencial em
atrair quadros qualificados (sobretudo engenheiros de diversos tipos) para
operar as grandes obras de construção civil, relacionadas ao Programa de
Aceleração do Crescimento (PAC), e dotar o país de maior conhecimento
tecnológico. Porém, o efeito perverso e não previsto foi o de atrair popula-
ções pobres de países vizinhos, como é o caso dos migrantes bolivianos (ver
mais em ILLES; TIMOTEO; FIORUCCI, 2008), e dos refugiados haitianos

– 76 –
(PAULA et al., 2013), que chegaram ao país, na maioria das vezes, por meio
ilícitos, inseridos no fenômeno de tráfico humano.
Segundo alguns autores e autoridades brasileiras, os refugiados hai-
tianos chegaram ao Acre por meio de agenciadores chamados coiotes. Esti-
mativas da Secretaria de Justiça e Direitos Humanos do Acre contabiliza,
somente no Estado, a soma de 6 mil pessoas apenas no ano de 2013, dum
total de 8 mil desde 2010, ano do terremoto (LEITÃO, 2013). O municí-
pio de Brasileira (AC), fronteiriço com a Bolívia, tem sido a principal porta
de entrada e concentração dos refugiados.
A principal rota observada foi a do deslocamento dos haitianos por
meio de avião para o Equador e o Peru. Depois, estes fariam uma longa vi-
agem, através da floresta amazônica, para os municípios brasileiros de
Tabatinga, no Estado do Amazonas, e de Assis Brasil, no Estado do Acre.
Os haitianos chegam, na quase totalidade, sem vistos diplomáticos, se apre-
sentando como refugiados. Embora o caso não se encaixe diretamente nos
efeitos da Convenção de Genebra de 1951, relativa ao Estatuto de Refugi-
ados (ratificada pelo Brasil), entende-se, aqui, a leitura de que a migração
haitiana, advinda do desastre pós-terremoto e pós-furacões, os encaixe nessa
tipologia, com o qualificativo adicional ambiental. Assim como o refugia-
do ambiental não se enquadra linearmente no fenômeno de perseguição
política direta também não deveria ser reduzido ao fenômeno de migração
internacional por busca de trabalho e renda, visto que o sentido do deslo-
camento para garantia da sobrevivência, sua e da família que permanece no
país de origem, teve por origem uma crise aguda coletiva que minou mui-
tas das atividades econômicas ali antes realizadas.
O principal ponto de concentração dos haitianos no Brasil é no muni-
cípio acreano de Brasiléia. A maioria ali aportada é do sexo masculino (84%),
com predominância de jovens, com baixa escolaridade (porém, há a exis-
tência de pessoas com ensino superior completo), de variadas profissões
(Figura 1).
É de destacar que uma das razões facilitadoras da escolha do Brasil
pelos refugiados haitianos foi a presença militar brasileira no Haiti desde o
ano de 2004, como parte da Missão das Nações Unidas para a Estabiliza-
ção do Haiti (MINUSTAH). A empreitada militar brasileira teve como prin-
cipal justificativa o discurso de solidariedade Sul-Sul e isso, em certo sentido,
favoreceu a desviar o olhar de uma parcela do emigrante haitiano sobre des-
tinos como os EUA.

– 77 –
– 78 –
Figura 1 Infográfico elaborado em 14/10/2013, a partir dos dados de Stochero (2013), obtidos junto à Polícia Federal do Brasil.
Soma-se a esses fatores, a disseminação do Brasil como grande polo de
desenvolvimento econômico do mundo (“o gigante acordou”, diziam as
mídias pelo mundo), e a expansão da força política do Brasil, nas duas ges-
tões de Lula, nas questões políticas internacionais – fosse na resolução de
conflitos, como o caso nuclear da Síria ou na promoção pelo mundo de uma
idealização de país humanitário e fraterno, materializado, por exemplo, na
realização do jogo da seleção brasileira contra a seleção local, no Haiti, em
agosto de 2004, para a arrecadação de recursos em prol daquele país. Tam-
bém é importante lembrar que países tradicionalmente atrativos, como são
o caso dos EUA, vêm implementando políticas cada vez mais restritivas à
entrada de imigrantes, sobretudo de migrantes pobres e provenientes dos
países mais pobres ou ligados a algum ativismo político dentro da cultura
mulçumana.
A reportagem de Stochero (2013) revela alguns traços tecidos pelo
imaginário social dos refugiados sobre o Brasil. A principal justificativa dos
entrevistados para vir ao país tem a ver com a propagação da crença que o
povo brasileiro é “bom garay”, que significa “gente boa” em créole, o dialeto
local. Nesse sentido, acreditaram numa boa recepção e acolhida, ampara-
do numa relação fraternal e de proximidade, tal como relata a cozinheira
Sanon Williana, de 38 anos: “[...] eu quero ir, pois o brasileiro é o melhor
do mundo, acolhe bem os haitianos. Temos costumes parecidos, somos da
mesma cor. O Brasil é nosso irmão mais velho que deu certo” (idem, p. 1).
Porém, para muitos haitianos e demais migrantes que chegaram ao
Brasil, as expectativas de segurança ambiental e de refúgio foram quebra-
das logo de início. Segundo relatório produzido pela Conectas, Organiza-
ção Não-Governamental de Direitos Humanos, sediada em São Paulo, em
agosto de 2013, foram contabilizados cerca de 800 imigrantes – quase to-
dos eles haitianos – vivendo dentro de um galpão-abrigo com capacidade
limite para apenas 300 pessoas, em condições consideradas insalubres
(CONECTAS, 2013). Em 2014, esse número chegou a ser de 2.500 pesso-
as (CONECTAS, 2014). Tratava-se de uma obra de 200 metros quadrados
com a cobertura de um telhado de zinco, cortinas improvidas com lonas de
plástico preto, aonde não raro a temperatura chegava aos 40ºC. Nesse es-
paço, todos os instalados dividiam apenas 10 lavatórios e 8 chuveiros, onde
não havia sabão e pasta de dente, e eram verificados vazamentos de esgoto
que proliferavam no entorno. O hospital local relata que 90% dos morado-
res do acampamento têm ou tiveram diarreia. E, mesmo com o abrigo ope-
rando em quatro vezes a capacidade, cerca de 40 novos haitianos chegavam
a cada dia (CONECTAS, 2013).
O relatório produzido pela referida instituição ainda trazia outros de-
talhes sobre o cotidiano dos imigrantes. Estes dormiam amontoados uns so-

– 79 –
bre os outros, em pedaços de espuma em degradação, em um lugar onde os
objetos pessoais eram misturados entre si. Cerca de 20 crianças estavam
desacompanhadas dos pais, ou responsáveis. Outra queixa comum era a da
má qualidade da comida, parte explicada pela diferença de paladar entre bra-
sileiros e haitianos, e pouco estava sendo feito para atender ou minimizar
as queixas. As refeições eram embaladas e servidas em recipientes de alu-
mínio, sob o olhar atento da polícia militar que ficava de guarda sobre o
movimento das de mais de 800 pessoas, justificado pela existência de bri-
gas na fila da espera pela refeição.
Também, havia reclamação sobre o processo de liberação do “visto
humanitário”: falta de clareza dos procedimentos a serem executados, o pe-
dido de pagamento de taxas por intermediários e a solicitação de currícu-
los para dar “preferência a chamada ‘imigração’ qualificada” para o Brasil,
sem levar em conta a natureza ‘humanitária’ destes vistos. A lógica do campo
parece ter um poder de provocar o estresse, como descrito abaixo:
O campo e o hospital não dispõem de nenhum tradutor. Os poucos
funcionários tentam falar espanhol, mas os haitianos, na imensa mai-
oria dos casos, falam apenas creole. As instruções para formar filas
ou entregar documentos são feitas no grito, o que aumenta a incer-
teza e a ansiedade dos haitianos, que muitas vezes se aglomeram e
brigam por espaço diante do pequeno trailer da Polícia Militar, que
serve de escritório da administração do campo. Não há nenhuma
senhalética no campo, ou serviço de amplificação de voz. Os pou-
cos cartazes em creole estão escritos à mão. No campo, não há carta-
zes sobre DST/Aids nem sobre hábitos de higiene, assim como
cartilhas sobre direitos ou qualquer outro material comunicacional
com orientação aos recém chegados (CONECTAS, 2013, p. 2).

Quase todos os haitianos entrevistados pela Conectas, entre 4 e 6 de


agosto de 2013, queixaram-se de dor abdominal e diarreia. A instituição
visitou o Hospital Raimundo Chaar, que tem 46 leitos e é responsável por
tratar os casos de emergência na cidade de Brasiléia. De acordo com mem-
bros da equipe do hospital, houve surtos de diarreia, que obrigou-os enviar
40 haitianos para a sala de emergência, todos ao mesmo tempo. Um dos
funcionários explicou que o hospital não recebe qualquer financiamento
adicional para tratar a entrada de haitianos. ”Os políticos estão lidando com
isso como se fosse uma questão diplomática, mas, entretanto, todos os dias,
estamos importando miséria e da doença sem ser capaz de lidar com isso”,
disse o funcionário, revelando um pouco do preconceito e rejeição existen-
te na cidade. A informação foi confirmada pelos médicos assistentes, que
confessaram estarem alarmados com o novo quadro, visto o recebimento

– 80 –
médio diário de quatro pacientes haitianos por dia. O tratamento é admi-
nistrado sem a ajuda de tradutores e, de acordo com fontes do hospital,
“90% dos casos são por diarreia e 10% são de doenças respiratórias”
(CONECTAS, 2013, p. 1-3).
Nesse sentido, o coordenador do acampamento, Damião Borges, liga-
do ao governo do estado do Acre, informou que o aumento do número de
recém-chegados está criando um caos social para os haitianos no Brasil, e
também para a estrutura estadual:
Isso precisa chegar ao fim, porque nós ficamos sem recursos. O esta-
do do Acre tem uma dívida de R$700.000 com a empresa que for-
nece comida para o abrigo e o prazo para pagamento é 15 de
agosto. Precisamos urgentemente de ajuda do governo federal. Em
dois anos e oito meses, recebemos R$ 4,5 milhões do governo esta-
dual e R$ 2 milhões do governo federal. Mas o verdadeiro fardo está
sendo realizado pela cidade de Brasiléia. Isso não deveria aconte-
cer a um pequeno e modesto município como este (idem, p. 2).

Para complementar o quadro de vulnerabilidade experimentada no


estado acreano, em fevereiro de 2012, os haitianos em Brasiléia tiveram que
enfrentar, junto com os moradores locais, as intempéries decorridas pela en-
xurrada do Rio Acre. Por volta de 95% da área urbana do município foi in-
vadida pelas águas, interditando casas e comércios, e incapacitando os
sistemas de água, de energia e de telefonia, sendo decretado “estado de ca-
lamidade pública”. A grande maioria dos haitianos ficou isolada no assen-
tamento (BRASIL, 2012).
Apesar da elevação dos níveis das águas ter sido praticamente igual
à registrada na grande inundação de 1997, quando o nível do rio
atingiu 17,67 metros, o número de atingidos quase dobrou, aproxi-
madamente 120 mil pessoas em todo o estado. Queremos destacar
com isto o fato de que um mesmo tipo de fenômeno natural, inun-
dações graduais, associou-se, em um intervalo de 15 anos, a desas-
tres mais graves, o que indica que o estilo de desenvolvimento em
curso no estado é problemático. Brasiléia ficou quase toda sob as
águas, com decretação municipal de estado de calamidade pública
decorrente de enchentes, reconhecida pelo Governo Federal (Brasil,
2012), e muitos dos haitianos que assistiram a isso já tinham pas-
sado, em sua terra natal, pelos furacões pós-terremoto, como se es-
sas adversidades estivessem seguidamente coladas em suas trajetórias
(PAULA et al., 2013, p. 62).

– 81 –
Numa cidade onde é baixa a dinâmica social e local, a possibilidade
de conflitos é uma constante. O município de Brasiléia, com população apro-
ximada de 20.000 habitantes, já passou por um crescimento populacional
imprevisto, entre os anos de 2006 e 2011, com o retorno de centenas de
camponeses brasileiros expropriados de suas residências na fronteira bolivia-
na (ver mais em SILVA, 2012). Apesar de, no início, ter havido um sentimento
de solidariedade e consternação da população local em geral, ultimamente,
o descontentamento com a chegada dos imigrantes tem sido uma constante,
pois os moradores locais passaram percebê-los como concorrentes em vagas
dos serviços públicos de saúde, de educação, emprego e renda. A dificuldade
na comunicação pelas diferenças linguísticas, e pelo preconceito racial (PAULA
et al., 2013) também se mostra um determinante no distanciamento entre
os grupos sociais locais e os haitianos (CONECTAS, 2013).
Decidido a evitar o fluxo de entrada dos refugiados haitianos, com a
justificativa de fragilizar a ação dos coiotes, o governo brasileiro limitou o acesso
aos vistos aqueles que estavam no Haiti. Um aparato militar foi organizado
para impedir a entrada de haitianos, deixando-os ao relento na fronteira pe-
ruana ou boliviana. Para Thomaz (2012, p. 1), ao “recusar genericamente as
demandas de um grupo extenso de pessoas da mesma nacionalidade, o Bra-
sil violou direitos inalienáveis do solicitante de refúgio: ter a sua situação
analisada individualmente e adquirir uma documentação provisória que lhe
permita acessar serviços básicos”, e somente aos haitianos essas prerrogati-
vas foram negadas, ou seja, uma nova situação, de uma espécie de desastre
humanitário, foi suscitada pela forma de proceder do Estado brasileiro.
Para defender a impossibilidade de reivindicar refúgio, membros do atual
governo e vozes da mídia alegaram que a vinda de haitianos estaria
atrelada às carências econômicas e não à perseguição em decorrência
da instabilidade política do país de origem. Recorreram a uma interpre-
tação estreita dos compromissos assumidos pelo país diante do regime
internacional de proteção de refugiados. Paradoxalmente, a instabili-
dade política do Haiti é utilizada como justificativa para a missão mili-
tar chefiada pelas Forças Brasileiras, renovada anualmente desde 2004.
As sucessivas crises políticas e econômicas que vêm minando o Haiti
nas últimas décadas são responsáveis pela grande incerteza com rela-
ção ao seu presente e futuro (THOMAZ, 2012, p. 1).

DA VULNERABILIDADE DA CHEGADA À TERRITORIALIDADE NEGADA –


TERMOS QUE OPERAM EM DESFAVOR AO REFUGIADO AMBIENTAL

Como apontam Marandola e Hogan (2006, p. 35), “o reconhecimen-


to de que a vulnerabilidade envolve uma gama de fenômenos de natureza
multidimensional e multifacetada, torna imperativo o diálogo e um olhar

– 82 –
mais abrangente diante do tema”. Segundo Adger (2006), um dos aspec-
tos da vulnerabilidade é a exposição de indivíduos ou grupos a um estresse
(mudanças inesperadas e rupturas nos sistemas de vida) resultante de mu-
danças socioambientais.
Assim, para estudos sobre o regime de refugiados ambientais, se faz
necessário a reflexão sobre a relação entre a construção histórica dessa
vulnerabilidade e a as precariedades estruturais e circunstanciais de espacia-
lização/territorialização. Segundo Milton Santos (2006, p. 39), a constru-
ção do espaço social está vinculada à elaboração dos sistemas de objetos (o
ser em sua existência física) e dos sistemas de ação (o ser em sua sociabili-
dade com o mundo), “[...] de um lado, os sistemas de objetos condicionam
a forma como se dão as ações e, de outro lado, o sistema de ações leva à
criação de objetos novos ou se realiza sobre objetos preexistentes [...]”.
É nessa construção, tendo como referência suas trajetórias e práticas,
que sujeito dá sentido à sua vida. Cria-se assim, a dinâmica na elaboração
e transformação do “espaço”, conceito interpretado por Santos (2004) como
uma estrutura subordinada e subordinante, resultado da ação humana, e
reflexo e condição da sociedade.
O espaço é hoje um sistema de objetos cada vez mais artificiais, po-
voado por sistemas de ações igualmente imbuídos de artificialidade,
e cada vez mais tendentes a fins estranhos ao lugar e a seus habitan-
tes. Os objetos não têm realidade filosófica, isto é, não nos permi-
tem o conhecimento, se os vemos separados dos sistemas de ações.
Os sistemas de ações também não se dão sem os sistemas de obje-
tos (SANTOS, 2004, p. 40).

Sem o ambiente pleno, os sistemas de objetos e ações – em torno do


qual os sujeitos definem seus os papeis sociais – são quebrados, tanto na
esfera privada (dentro da esfera familiar) como na esfera pública (no mun-
do do trabalho, do lazer, da religiosidade e de outros). Assim, além do de-
sastre sacramentar uma perturbação nos sistemas que, por vezes, já se
encontravam antecedente fragilizados, também perturba o sentido de exis-
tência do sujeito.
Para se manter como ser social, os sujeitos que vivenciam um desastre
necessitam se reinventar naquilo que restou para sobreviver, ressignificando
o seu entendimento de alimentação, moradia, trabalho, e ter garantida uma
expectativa de resposta positiva do outro frente as suas demandas por so-
brevivência e recuperação. Em virtude da desagregação instaurada, o desastre
incita – além das perdas materiais como a casa, os recursos financeiros, os
instrumentos de trabalho – um empobrecimento ou restrição das possibili-

– 83 –
dades de sociabilização, pois há uma quebra dos sentidos e das estratégias
de relações consolidadas num ambiente no qual o sujeito elaborou o seu
habitus (ver mais em BOURDIEU, 2003). Dessa forma, tanto num viven-
ciamento de desastre socioambiental quanto um contexto de desastre hu-
manitário cria-se o risco da deterioração identitária da coletividade afetada,
pois as subjetividades e repertórios anteriormente construídos pelos grupos
já não servem mais como parâmetros.

À GUISA DE CONCLUSÃO – AINDA HÁ MUITO A REFLETIR...

Como anteriormente destacado, os refugiados ambientais são aqueles


que, mediante a falta de condições institucionais e ambientais que garan-
tam a sua existência, tentam reelaborar sua espacialização em outros paí-
ses que não aquele de origem. Porém, na maioria das vezes, percebem como
negadas as suas expectativas de uma nova territorialidade.
Para Hannah Arendt (2009), os refugiados são o grupo mais sintomá-
tico da política contemporânea pós-Segunda Guerra. Em sua leitura, en-
quanto os regimes totalitários tinham feito o máximo para espalhar o
desenraizamento e a miséria nos tempos modernos, a existência dos refu-
giados destacariam as contradições no coração dos ditos “Estados Demo-
cráticos de Direito”. A principal contradição é entre o compromisso
professado pelos Estados liberais, e aqui podemos inserir àqueles que assi-
naram à Declaração Universal dos Direitos Humanos,3 e a sua simultânea
e permanente reivindicação a um tipo de soberania nacional que preserva
seu poder para adotar as desumanas políticas de blindagem territorial con-
tra a entrada de grupos socialmente desamparados, os quais reivindicam o
direito de serem reconhecidos como refugiados. Nesse prisma, estamos di-
ante de uma ação estatal que busca restringir à entrada daqueles que che-
gam precarizando as formas de recepção e de reconhecimento de sues
direitos. Esse estratagema, percebido aqui como uma reivindicação ao di-
reito de reter a entrada de “indesejáveis”, é também uma recusa ao direito
do indivíduo (refugiado) de gozar de sua dignidade e dos direitos univer-
sais não possibilitados no seu espaço original. Esta exclusão de direitos está
em desacordo com o universalismo e a inalienabilidade dos Direitos Huma-
nos, sobre a qual o Estado brasileiro veicula se fundar, e o faz conforme o
seu interesse de exposição política ou econômica global.
Dentro do cerceamento à vida activa (ver em ARENDT, 2007) dos re-
fugiados nos acampamentos no Brasil, é instituída a mesma prática existente
hoje no Haiti. As forças de segurança e de “solidariedade” normatizam o

3. Ver mais em <http://portal.mj.gov.br/sedh/ct/legis_intern/ddh_bib_inter_universal.htm>.

– 84 –
acesso às coisas (água, comida, alimentos) e suas práticas (forma como co-
mem, dormem, se alojam), dentro de uma lógica de inviabilização para que
o sujeito constitua a sua própria sociabilidade e territorialização, e, assim,
fortalecer a sua atuação política e identitária.
Tais práticas trazem consigo o uso de técnicas de ação sobre o corpo,
métodos de controle minuciosos, por meio de uma coerção ininterrupta e
constante, que vela mais sobre os processos de atividade do que pelos re-
sultados, esquadrinhando ao máximo o tempo, o espaço e os movimentos,
elevando uma subserviência com muitos atores ao mesmo tempo, todos de
caráter autoritários. Tem-se assim uma relação entre controle e docilidade,
que Foucault denomina de “disciplina”:
Uma anatomia política, que é também igualmente uma mecânica de
poder, está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o
corpo dos outros, não somente para que façam o que se quer, mas
para que se operem como quer, com as técnicas, segundo a rapidez
e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos sub-
missos e exercitados, corpos dóceis. (FOUCAULT, 1987, p. 119)
Esse modelo, instaurado sob a abrangência do sistema de Estado-Na-
ção, significa que é possível que milhões de pessoas sejam desumanizadas
e não sejam capazes de recuperar o direito de pertencer a algum tipo de
comunidade organizada, tornando-se refugiados apátridas, que não tem pro-
teção do seu próprio Estado e não recebam status legal em quaisquer outros
países. O sujeito apátrida não carrega consigo seu status político aonde quer
que esteja, pois não há mais, no planeta, uma “terra de ninguém”, em que
um grupo ou indivíduo possa escapar. Os refugiados não podem, simples-
mente, ir apara outro lugar e criar uma nova comunidade. Apenas um Es-
tado nacional, qualquer que seja, pode prover as necessidades básicas de
acolhimento. Recusado, o refugiado se vê excluído de elementos plenos para
a garantia dos seus mínimos vitais, sua construção identitária, como um
grupo, e de viabilização de um arremedo de lugar, referido àquele pra onde não
se vê em condições de tornar.
Caso as possibilidades dessas construções simbólicas continuem a ser
sistematicamente recusadas, teremos instaurada uma espécie de violência
muito séria contra a dignidade humana.

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com.br/educacao/por-que-nao-o-haiti>. Acesso em: 3 set. 2013.
WHITEFIELD, M. Brazil is in the Market for immigrants – millions of them. 2013.
Miami Herald. Disponível em: <http://www.miamiherald.com/2013/03/25/3306268/brazil-
is-in-the-market-for-immigrants.html#storylink=cpy>. Acesso em: 3 set. 2013.

– 87 –
SEÇÃO III

DESASTRES NO
CONTEXTO NACIONAL
CAPÍTULO IV

“A ESCOLHA DE SOFIA” OU O DILEMA


DA SEGURANÇA HUMANA NOS
DESASTRES: QUAL AGENDA BRASILEIRA?
Eduardo Marandola Jr.

INTRODUÇÃO
Sophie’s Choice (A escolha de Sofia, no Brasil), é um livro escrito pelo
estadunidense William Styron e publicado em 1979 (STYRON, 2010).
Ficou mundialmente famoso por conta do filme homônimo dirigido por
Alan J. Pakula, em 1982, que rendeu o Oscar de melhor atriz a Meryl Streep,
pela atuação como personagem-título.
Sofia é uma mãe polonesa num campo de concentração nazista durante
a Segunda Guerra Mundial. Seu drama é ter que escolher entre um de seus
filhos para ser morto. Incapaz de realizar tal escolha, o drama da narrativa
se desenvolve sob estc tensão e suas consequências.
A situação atual da sociedade brasileira me parece indigestamente pa-
recida quando pensamos a condição da segurança humana e dos desastres.
Os desastres se intensificam e com eles os riscos, os danos e a vulnerabilidade.
E isso ocorre ao mesmo tempo em que há grandes esforços institucionais e
acadêmicos de construir infraestrutura e condições de gerir e dar resposta aos
desastres, como planos nacionais, centros de monitoramento, articulações
nacionais nunca vistas antes e que estão recebendo grande incentivo e se
estruturando nos últimos anos. Mas a segurança não parece aumentar na
mesma proporção dos esforços, ou da necessidade. A sensação de segurança
não apresenta sinais de estabilizar, ao contrário. Em algumas regiões acumu-
lamos eventos ano após ano, e a recorrência sem tempo de reestruturação
aprofunda e compromete a capacidade de resposta gradativamente.

Este texto foi desenvolvido no contexto do Projeto GERMA – “Geografia dos riscos e mu-
danças ambientais: construção de metodologias para o estudo da vulnerabilidade” (FAPESP
n. 2012/01008-2), desenvolvido no Laboratório de Geografia dos Riscos e Resiliência
(LAGERR/CHS/FCA/Unicamp).

– 91 –
Por que comparar tal situação à escolha de Sofia? Porque estamos no
meio de uma problemática que impõe um desafio quase insolúvel do ponto
de vista social e político: temos milhares de pessoas vivendo em áreas de ris-
co, em áreas com evidente insegurança e vulnerabilidade, sujeitas a desastres,
cujas ações emergenciais e imediatas gritam diante de nós. Ao mesmo tem-
po, no entanto, nem há tempo de escolher qual frente ou local enfrentar, outras
áreas de risco e outros desastres já se efetivaram. O próprio desastre é, na
verdade, cotidiano e corriqueiro, não uma eventualidade, como mostra
Valencio (2014). A escolha que se apresenta é: implementamos capacidades
de resposta para aqueles que estão em situações de risco, ou trabalhamos para
mudar as estruturas que produzem as situações de risco? A resposta, tal como
de Sofia, não pode ser outra senão a de que devemos enfrentar os dois pro-
blemas simultaneamente. Mas, também como no caso de Sofia, parece que
somos incapazes de realizar as duas coisas ao mesmo tempo.
Nossa maneira de dar respostas sociais aos problemas é através de uma
abordagem setorizada, não globalizante. Isso significa que no plano da ação
estatal e da sociedade civil, os dois problemas são tratados e geridos de for-
ma separada. Uma coisa é atender vítimas de desastres, outra é pensar o
planejamento urbano, que é feito ainda dissociado de uma compreensão
mais ampla da distribuição espacial da população (MARTINE, 1999;
MARTINE; GUZMAN, 2002; OJIMA, 2011) ou das mudanças ambientais
e dos riscos (HOGAN, 2005; 2007; 2009).
Com o próprio problema fragmentado (como dois irmãos independen-
tes), continuamos um ciclo cego de enfrentamento dos desastres a conta-go-
tas, sempre respondendo a emergências, de um lado, enquanto de outro
estamos montando uma grande estrutura de resposta baseada na mitigação
e na racionalidade técnico-científica. No fundo, o que fazemos é atender ao
mesmo “filho”, sem atacar a raiz do problema, ou seja, sem atacar a gênese
dos desastres que seria a única forma de garantir segurança em amplo espectro.
Há, portanto, dois problemas a enfrentar, para sairmos do impasse da
escolha impossível: devemos desfocar a discussão sobre a emergência (como
se fosse algo natural e inevitável), e focar naquilo que produz as situações
de insegurança, que são os elementos materiais de produção de risco e dis-
tribuição de perigos em nossa sociedade. Isso tem sido feito em parte pela
sociologia dos desastres (VALENCIO, 2009a, 2012, 2014) e pela geogra-
fia crítica dos riscos (HEWITT, 1983; 1997; PIGEON, 2005; REBOTIER,
2012). Ambas apontam para os mecanismos de reprodução social de desi-
gualdades territorialmente manifestas e o conteúdo propriamente político
dos riscos e dos desastres. Constituem, assim, uma crítica à naturalização
dos desastres e contextualizam a questão da segurança humana no âmbito
da própria produção e reprodução social do espaço.

– 92 –
No entanto, no amplo debate travado socialmente (e nos diferen-
tes setores da gestão pública) prevalecem perspectivas setorialistas que
priorizam proposições de soluções mitigadoras e tecnificadas, contribu-
indo para a manutenção do sistema emergência-desastre e seu uso polí-
tico. Beck (2010) já alertava para este uso desde suas primeiras formulações
sobre a sociedade de risco, e o que vemos no caso do debate da seguran-
ça humana e dos desastres no Brasil é uma radicalização deste uso, es-
pecialmente ligado a uma lógica eleitoral que articula os desastres ao
próprio ritmo da política no país, tanto em âmbito local quanto federal
(VALENCIO, 2014).
Para enfrentar tal cenário negativo, portanto, entendo ser necessário
reposicionar alguns sentidos no debate, para fazer coro às perspectivas críti-
cas ora elencadas. O objetivo deste reposicionamento é duplo: (1) fornecer
elementos para repensar o sentido ontológico da segurança humana, deslo-
cando de seu sentido estritamente material e circunstancial que predomina
na discussão do tema, centrando-o no sentido do habitar em sua dimensão
fenomenológica; e (2) questionar a agenda brasileira assumida a partir da
incorporação das discussões das mudanças climáticas, a qual assume a posi-
ção mitigadora que reifica as estruturas vigentes, vedando qualquer possibi-
lidade de sairmos do dilema de Sofia posto a toda sociedade brasileira.
A ideia central que articula estes dois pontos é simples: ao reposicionar
a ideia de segurança humana para seu âmbito ontológico podemos dar ou-
tro fundamento para a agenda ambiental brasileira, descaracterizando-a
enquanto um tema setorial, centrando-o no sentido propriamente huma-
no daquilo que ela deveria tratar: a possibilidade, na forma de direito, de
ser e estar no mundo, a partir de um habitar digno garantindo a constitui-
ção de um lar.

SEGURANÇA ONTOLÓGICA, LUGAR E VULNERABILIDADE

Nas situações de desastres, a sensação de segurança pode ser atingida


amplamente, tanto em sentido material quando psicológico e social. No en-
tanto, a dimensão fundamental e por isso mesmo mais difícil de lidar é a
ontológica. Giddens (2002) chama atenção que a segurança ontológica é fun-
damental para compreendermos as situações de risco e perigo, especialmen-
te na sociedade contemporânea na qual a construção da auto-identidade é
um processo social e individual aberto, dinâmico e fluido. As identidades na
contemporaneidade, segundo o autor, não são mais dadas ou pré-dadas pela
tradição, mas constituídas num processo tensionado do eu no mundo, num
contexto não favorável de incertezas e de falta de elementos suficientes para
as tomadas de decisão.

– 93 –
Se a própria construção da auto-identidade é repleta de incertezas,
referentes às tomadas de decisão sobre os riscos, também lançadas para o
âmbito do indivíduo (BECK, 2010), tornam a insegurança ontológica (in-
segurança em relação à própria existência e ao sentido do ser) ainda mais
ambígua e desconcertante. Para Giddens (2002), esta insegurança é um dos
males existenciais mais profundos provocados pela modernização reflexiva
e pelos processos de desencaixe da atualidade.
Situações de risco e o sentimento de insegurança têm permeado a ex-
periência contemporânea, tornado a busca por segurança algo inerente e
presente no discurso político, embora hoje tenha tomado formas particu-
lares em consonância com as mudanças ambientais.
Uma das vertentes da preocupação com a segurança vem na esteira das
discussões sobre a vulnerabilidade. Pensar a vulnerabilidade é uma forma
de focar as fragilidades, insuficiências e ao mesmo tempo compreender as
capacidades e recursos que pessoas, lugares ou cidades têm para enfrentar
perigos, sejam sazonais, estruturais ou excepcionais (WISNER, et al., 2004;
THEYS, 1987).
Mas, que é estar seguro na sociedade contemporânea? A segurança,
assim como a experiência, tem diversas facetas que precisam ser pensadas
em conjunto para podermos avançar na sua compreensão. Em primeiro
lugar, podemos dividir dois tipos de proteção: a social e a civil. A civil se
refere ao estado de direito e à proteção da propriedade privada e da liber-
dade, enquanto a segunda se refere ao bem estar social (CASTEL, 2005).
Essas duas formas de proteção têm sido providas ou não pelo Estado (em
suas diferentes instâncias) e, em tempos de flexibilização e de liberalismo,
têm sido gradativamente terceirizadas para o setor privado (BAUMAN,
1999; 2007).
Uma série de direitos e deveres que o Estado assumiu no último sécu-
lo foi transferida para empresas que têm se proposto a garantir a seguran-
ça. Empresas de seguros diversificam cada vez mais sua atuação, indo além
da garantia do bem-estar físico e material. A garantia da saúde, educação,
integridade física e da propriedade, razões pelas quais o Estado Moderno
liberal foi instituído, são gradativamente passadas para empresas que trans-
formaram os direitos civis em direitos de mercado.
Os direitos sociais também foram privatizados, pois o bem-estar se
tornou marca de qualidade de empreendimentos imobiliários, de programas
de férias, de propaganda de tudo. O grande ‘porém’ dessa privatização é que
aquilo que era direito se tornou privilégio, acessível a poucos. Por outro lado,
se a segurança se tornou uma mercadoria, é necessário que haja inseguran-
ça para que ela possa continuar a ser vendida e valorizada.

– 94 –
Esse raciocínio, no entanto, não pode nos conduzir à fácil conclusão
de que aqueles que tem mais materialmente estão em segurança, deixando
os que tem menos mais inseguros. Proteção e segurança são fenômenos pró-
ximos, mas que não significam a mesma coisa. A proteção envolve meca-
nismos que evitam danos, perigos ou perdas, enquanto a segurança, assim
como a insegurança, envolve sensações, percepções e sentidos. Quando se
fala em segurança, não se pode perder de vista que estamos lidando com o
sentimento de pessoas e com o imaginário social, e por isso o mercado uti-
liza a propaganda para, a partir do sentimento de insegurança, fabricar a
necessidade da proteção: a busca da segurança. Sistemas de proteção e de
mitigação de riscos estão no campo da materialidade e das instituições.
Pensar na segurança vai além, sendo fundamental compreender como a
sensação de segurança/insegurança é construída e por quem.
Quero pensar a segurança/insegurança do ponto de vista ontológico,
ou seja, referente à existência. A ontologia se refere ao pensar sobre o ser
que, a partir de um questionamento fenomenológico, pode ser entendida
como o pensar a essência do ser, que se refere à própria existência. Realizar
o questionamento ontológico é colocar a questão da existência em primei-
ro lugar, como valor e como motivador. Mas que é existência?
Existir é distinto de sobreviver. Quando o humano não tem suas pos-
sibilidades e potencialidades desenvolvidas, sua existência é mecânica, in-
completa, relegada a uma condição precária de humanidade (ARENDT,
2012). Uma das maiores violências e injustiças que a sociedade ocidental
produziu foi a técnica racionalizada que subjugou o homem à sua própria
revelia. Em sua famosa análise sobre “A questão da técnica”, Heidegger
(2001a) afirma que é a técnica racionalizada moderna, da qual uma parte
significativa é nossa própria ciência, a responsável pelo ocultamento do ser,
ou da questão do ser, eliminando toda possibilidade de pensar o homem em
seus atributos básicos. O grande perigo, para o filósofo, não estava na téc-
nica em si, mas no ocultamento do ser, pois isso implica a impossibilidade
de pensar as questões que são fundamentais, que estão num terreno ulteri-
or de reflexão e que, sem esse questionamento, permanecem não apenas
ocultas, mas inacessíveis. Entre esses questionamentos estão o verdadeiro
sentido da justiça, da sustentabilidade, do homem e do seu relacionamen-
to com o ambiente.
O grande problema de focar apenas a dimensão material da vida é que
constatamos e explicamos a realidade a partir da sobrevivência ou não das
pessoas, e não de sua existência, do significado e dos valores que suas vidas
impõem ao mundo, transformando-o e significando-o. Não é possível pen-
sar em justiça, de qualquer tipo, sem pensar que é homem e perguntar pelo
sentido do ser. Não é possível, igualmente, pensar em uma relação socieda-

– 95 –
de-natureza de forma mais equilibrada e que não implique no desprezo pela
vida, de qualquer tipo, enquanto não criarmos condições para que o homem
viva em liberdade sua própria condição humana. As necessidades que nos-
sa sociedade acelerada e globalizada nos impõe, ajudam no atual ocul-
tamento do ser, já que há questões prementes que se reclama que tenhamos
o que dizer, que contribuamos com o planejamento e que proponhamos
soluções. Enquanto isso, o homem continua sozinho, sem que lhe dê aten-
ção enquanto outro, enquanto co-existente, enquanto ser humano. Redu-
zimos tudo a números, a impessoais esquemas analíticos, a explicações
macro-estruturais, enquanto para muitos bastava ser ouvido ou apenas con-
siderado enquanto um, não enquanto multidão. Encontrar o equilíbrio entre
o uno e o múltiplo, entre o ser e o ente, passa pela significação, que perma-
nece associada ao devir que lhe sugere (LÉVINAS, 1993). Não se trata de
uma postura a-histórica, mas de entender a história do ser em sua relação
intencional com as formas materiais.

A CENTRALIDADE DO LAR: A QUESTÃO DO HABITAR

No caso dos desastres, em especial os urbanos, temos como centro da


problemática uma questão espacial: a habitação. Morar, como e onde é o
cerne da própria gênese das áreas de risco. Em vez de serem um problema
em si, estas áreas, consideradas impróprias para habitação, são o diagnós-
tico da situação principal: a não incorporação de todos no planejamento das
cidades. Excludentes em sua essência, a cidade capitalista produz áreas de
risco no seu próprio mecanismo de reprodução espacial e social.
Mas habitar, não é apenas ter um teto. Habitar é, para uma tradição de
pensamento fenomenológico, a própria ação viva de ser-e-estar-no-mundo, ou
seja, expressão própria da existência e da verdade do ser (HEIDEGGER,
2001b). É pelo habitar, portanto, que é possível ter segurança ontológica,
garantindo a própria condição humana, a construção da auto-identidade e o
desenvolvimento existencial da pessoa, da família, do lugar.
A vulnerabilidade é um conceito fundamental nessa discussão porque
permite conectar essas dimensões. Entendida como neutra, como um qua-
litativo que se refere às capacidades e características intrínsecas que inter-
ferem na forma como pessoas, lugares ou grupos populacionais reagem a
perigos (MARANDOLA JR., 2009; MARANDOLA JR.; D’ANTONA,
2014), a vulnerabilidade permite que olhemos para além da materialidade
(sistemas de proteção) e da segurança/insegurança (sentimentos e percep-
ções) (FUREDI, 2007). Ela considera de igual importância as estruturas e
as mentalidades, permitindo assim que compreendamos e investiguemos as
relações entre elas.

– 96 –
Nas cidades contemporâneas, essa problemática se manifesta de dife-
rentes maneiras, permeando a própria experiência. Aqui quero enfatizar as
repercussões espaciais e a importância que os lugares e a experiência do es-
paço têm na constituição da segurança e da própria vulnerabilidade.
Para isso, precisamos entender o lugar para além da sua constituição
material. Não como um mero ponto, uma coordenada geográfica. Ele é um
acontecer coletivo/individual fruto de uma dada relação homem-meio. Lu-
gar é significado, atribuído a porções do espaço que, por assim dizer, são
iluminadas por determinada experiência (RELPH, 2012). A intensidade da
vivência marca a intensidade da relação e a importância ou densidade da-
quele lugar. A duração (tempo) é fundamental, pois para envolver-se é ne-
cessário tempo e intimidade (TUAN, 2013).
O ponto mais significativo deste tipo de relação é casa. Esta remete ao
útero, à ligação mais primitiva do homem com a Terra (BACHELARD,
1993). Imagem da proteção materna, a casa garantia na antiguidade a pre-
servação da estirpe, da raça, da linhagem. Ela própria era a guardiã da me-
mória de uma família, de uma cultura, de uma nação. Na modernidade
adquire o papel de guardiã dos bens e da família, onde o homem liberal é
soberano e onde nem mesmo o Estado pode intervir sem ferir o direito à
propriedade e à liberdade.
Uma das promessas que a modernidade fez e não cumpriu foi a de que
a casa permaneceria como uma ‘fortaleza’ do indivíduo, onde ele estaria a
salvo, protegido. A dissociação da casa e do local de trabalho atribuiu à casa
o papel doméstico, do descanso e da família. Esse modelo sofreu alterações
oriundas das transformações no mercado de trabalho e do estilo de vida que
acompanha/repercute nas novas formas urbanas, como as associadas à de-
cisão do onde morar. Com a possibilidade de morar cada vez mais distante
do local de trabalho e o tempo gasto nesse deslocamento, diminui o tempo
na própria casa e, em consequência, a sua densidade e o envolvimento nos
lugares do bairro. Muitas das necessidades (como o comércio imediato) é
feito no trajeto, diminuindo em diferentes sentidos o envolvimento com o
entorno. A casa tende a torna-se um ponto isolado, com o enfraquecimen-
to da noção de bairro associada à vizinhança, como um sistema do lugar,
articulando diferentes esferas, não necessariamente mais densas sempre
(PINSON; THOMANN, 2001).
A intensa mobilidade, também expressa pela migração e pela pendu-
laridade, contribui para este enfraquecimento do adensamento entorno da
casa, tornando-a cada vez mais atomizada. Bairros e cidades com muitos
migrantes ou população pendular podem ter comprometido vários proces-
sos sociais tradicionalmente centrados no bairro e no lugar, mudando o papel

– 97 –
da casa em termos da constituição de mecanismos de proteção e estratégi-
as de lidar com desastres e riscos (MARANDOLA JR., 2008, 2014;
MARANDOLA JR.; MODESTO, 2012).
O que quero destacar aqui é a importância que a casa, enquanto lar,
tem para a segurança existencial. Casa tomada no sentido de lar represen-
ta o laço fundamental que o ser estabelece com o espaço. É o lugar por ex-
celência, onde sua manutenção está garantida e onde sua existência está
baseada. Quando até a casa é colocada em risco, a própria pessoa está em
risco de forma particularmente dramática, já que não tem mais para onde
correr.
A imagem da casa foi belamente expressa no mapa “Lar”, do Atlas da
Experiência Humana, de Louise van Swaaij e Jean Klare. Nesse trabalho sin-
gular, os cartógrafos associam os sentimentos humanos a metáforas geográ-
ficas, tais como montanhas, vales, cidades e campos (VAN SWAAIJ e
KLARE, 2004). Temos ali de forma muito particular os significados da casa
em termos espaciais e culturais (Figura 1).

Figura 1 Lar, de Louise van Swaaij e Jean Klare.


Fonte: Van Swaaij e Klare (2004, p.28-29).

Vários são os elementos que tornam uma casa, local físico, um lar, lu-
gar em seu sentido mais profundo. Um deles é essa capacidade de perma-
nência e de abrigar nossas memórias. É por isso que Bachelard (1993) afirma

– 98 –
que habitamos somente uma casa, a da nossa infância, e que todas as de-
mais são uma continuação daquela primeira e única casa. É por isso que para
que nossa casa exerça seu papel de Lar, ela precisa fornecer um porto segu-
ro e uma combinação de intimidade, deleite e aconchego, que os cartógrafos
representaram no mapa por uma planície bem regada, com uma capital:
Seguro. A principal cidade de Lar é baseada na matriz energética Seguran-
ça, que fornece a base para a cidade. Esta fica no meandro do rio, entre as
cidades de Conforto, e o distrito de Colo, logo ao norte da região do Acon-
chego.
A localização de Lar é um misto de proteção e potencialidade: locali-
zada entre as férteis terras da Verdadeira Natureza, da Proteção, do Habi-
tual, do Aconchego e do Sofá. Algumas de suas localidades centrais são os
lugares da infância, além de pequenos acontecimentos diários que são fun-
damentais: Jantar à Mesa, Chinelos, Dormir em Casa e Chocolate Quente.
Lar é banhado pelo Mar das Possibilidades, mas tem o estuário de Porto
Seguro para onde sempre se pode voltar com certeza.
Tuan (1999) afirma que este é a essência do lar: o lugar para onde sem-
pre se volta. Precisamente: entre o mar de possibilidades para se navegar,
mas o porto seguro para onde sempre se retorna, em segurança. Esta segu-
rança é expressa por Tuan na ideia do descanso e do sono: o verdadeiro sono
de descanso é onde consideramos o nosso lar, pois é onde conseguimos
dormir verdadeiramente desarmados, plenamente vulneráveis por nos sentir
plenamente seguros.
Mas casa e lar não são apenas símbolos ou lugares de proteção. Neles
também estão perigos e insegurança. Descontrole (o aeroporto), Displicên-
cia, Gritaria, Impertinência e Levantar com o Pé Esquerdo são algumas das
localidades que geram transtornos e produzem animosidade em Lar. Na
enseada de Porto Seguro há o farol da Vigilância, que sempre tem que es-
tar atento. Por outro lado, o Bosque Tenebroso é o Hábito, o Tradicional e
o Caminho Batido, que fazem parte da Proteção, mas podem conduzir ao
Interminável. Lar não é um país das maravilhas, mas é um lugar para se
voltar sempre quando se precisa revisitar as raízes e de um pouco de sosse-
go. Mas aqueles mais empreendedores e inquietos buscarão sempre ultra-
passá-lo, com a certeza de para ele poder voltar sempre que necessário.
Tuan (1999) aponta este lado negativo do lar quando pensa no lugar
e seu conservadorismo. O controle social presente na comunidade é nega-
do pelo autor, que escolhe o cosmopolitismo. Para Tuan, a metrópole, ou
os lugares cosmopolitas promovem maior liberdade de construção de iden-
tidades, em oposição ao lugar centrado em comunidades, que seriam mais
controladores destes sentidos.

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Assim, Lar está longe de ser uma região perfeita; está, assim como a
experiência contemporânea, permeada de ambiguidades e ambivalências
que, segundo Bauman (1999), caracterizam nossa modernidade líquida. A
busca pela segurança privada, como tem sido característico do nosso tem-
po, procura eliminar toda e qualquer fonte de ruído, distúrbio ou desassos-
sego. Essa pretensa homogeneidade espacial não contém bases sólidas para
perdurar, já que essa assepsia elimina com a diversidade as possibilidades
de ser e de querer. O ter padronizado não garante duração por tornar o
envolvimento banal. Os lugares se parecem, incentivando o movimento
constante e a busca de um progresso que parece não ter fim. Nesse cenário,
não há motivo nem tempo para se envolver, pausar e ficar.
Como pensar em segurança humana no contexto de desastres sem
considerar que se trata, acima de tudo, do lar das pessoas? Não é uma ques-
tão de abrigo, materialmente falando. O que está em jogo é a própria exis-
tência de tais pessoas, em seu sentido ontológico próprio. Sem o lar, a
insegurança existencial se torna um fardo insuportável. Sem um lar para
onde voltar, as pessoas perdem as referências e o contínuo reconstruir os
laços os torna suscetíveis a outras flutuações.
Se queremos aumentar a segurança no mundo contemporâneo, é fun-
damental que se dê maior atenção à casa, enquanto lar e lugar. Casa é lu-
gar tanto de risco como de proteção, podendo conter ambos no mesmo
movimento, trazendo uma forma muito particular de compor a vulne-
rabilidade. A relação com o lugar-casa permite pensarmos a segurança no
mundo contemporâneo, estando atreladas a ela as estratégias e recursos para
lidarmos com os perigos em termos imediatos, no âmbito da experiência.
A questão do habitar, é crucial para garantir segurança e proteção, seja em
termos absolutos ou relativos. É dela que estamos tratando, em última aná-
lise, no contexto dos desastres contemporâneos.

QUAL AGENDA BRASILEIRA? A RESPOSTA GOVERNAMENTAL

O contexto atual de enfrentamento de desastres no Brasil está domi-


nado pelo tema das mudanças climáticas. Desde 2007 este é o tema pre-
dominante e mobilizador de todo esforço ambientalista, seja na academia
ou fora dela, ocupando a posição que em outras épocas já foi do desma-
tamento, do buraco na camada de ozônio, da poluição industrial, dos
agrotóxicos na agricultura, etc. Visto por este ângulo, mudanças climáti-
cas não é propriamente uma questão nova, especialmente quando pensa-
mos nas dimensões humanas e suas implicações para a sustentabilidade,
mas é o carro-chefe ou o contexto prioritário das ações que envolvem toda
a discussão ambiental.

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A discussão das mudanças climáticas, com seu caráter cataclísmico e
seu alcance mundial, leva esta discussão ao extremo, colocando em xeque
o sistema global atual, seu modelo de política, produção e consumo e sua
lógica baseada na desigualdade e na produção e distribuição de riscos in-
trinsecamente. Mas junto com a difusão da preocupação com as mudanças
climáticas vieram também as propostas de enfrentamento, um pacote que
envolve duas faces: mitigação e adaptação.
A primeira se refere a paliativos, a ajustes de conduta ou de eficiência
de processos para diminuir as emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE) ou
implementando capacidades de resposta em áreas e populações em risco.
A segunda envolve a revisão de modelos de desenvolvimento, substituição
de tecnologias e de processos (cadeias produtivas inteiras, se for o caso),
visando alterar a relação sociedade-ambiente na sua base. É óbvio que as
primeiras são preferidas em relação às segundas, pois despendem menos
recursos e não implicam em mudanças substanciais no status quo.
Estas propostas têm sido feitas bastante unilateralmente, na forma de
pacotes e diretrizes que, no mínimo, ignoram que os Estados, as regiões e
os lugares têm especificidades e sua própria agenda de prioridades. De ou-
tro lado, ações apenas mitigadoras têm sua eficácia fortemente questiona-
da em garantir a sustentabilidade ambiental.
O que quero problematizar é a forma como estas agendas têm sido
construídas, problematizando as prioridades brasileiras, ainda centradas no
enfrentamento setorial dos problemas, diante das atuais políticas que têm
sido implementadas ou construídas, as quais têm priorizando, sobretudo,
a mitigação versus a adaptação.
No cenário desenhado internacionalmente, o papel do Brasil no que
se refere às mudanças climáticas está ligado aos Gases de Efeito Estufa (GEE)
emitidos pelo desmatamento, devendo ao Brasil, portanto, mitigar tais
emissões. Fazendo isso, o Brasil estaria cumprindo sua parte.
Esta leitura, muito ligada a números e a uma visão bem europeia do
processo que prioriza a mitigação, está bem longe de focalizar a raiz do pro-
blema, que é o próprio modelo de desenvolvimento que reproduz uma so-
ciedade desigual em que tudo recebe um valor, inclusive a sustentabilidade,
estabelecendo a base da diferenciação entre as pessoas, países, lugares, etc.
O Brasil possui sua própria posição neste processo, e mais, possui uma
agenda ambiental do século XX que não foi completada ainda, ou seja, nem
o básico nós fizemos: saneamento básico, qualidade e distribuição de água
potável, energias renováveis e sustentáveis, controle de poluição, qualida-
de de vida para toda a população. Todos conhecemos as condições das pe-

– 101 –
riferias urbanas, ou de áreas rurais com extrema precariedade e exposição a
riscos característicos da industrialização, ainda. Portanto, o caso do Brasil
e de outros países da América Latina não é o mesmo dos países europeus,
pois temos uma sobreposição de riscos, de épocas diferentes, e as priorida-
des e o contexto de enfrentamento aqui, baseado no nosso sistema políti-
co, é outro.
Cabe, portanto, a pergunta: quais as prioridades, em termos dos im-
pactos e riscos oriundos das mudanças climáticas, para o Brasil? Seria o
controle do desmatamento na Amazônia? Ou os desastres ambientais ur-
banos (enchentes e deslizamentos)? Ou os efeitos na saúde e o envelheci-
mento? O saneamento básico e os níveis de poluição, ainda não satisfatórios?
Ou seria as emissões de GEE e nossos padrões de consumo? Ou a urbani-
zação, ainda incompleta e com sérios problemas de habitação? Deveríamos
focar a adaptação, a mitigação ou a vulnerabilidade?
Enquanto esta discussão não for realizada seriamente e de forma am-
pla no contexto da sociedade, ficaremos à mercê de agendas internacionais
que adotamos acriticamente, com o preço alto a se pagar de não vermos
mudanças significativas políticas e sociais significativas.
Isso fica muito claro quando acompanhamos as políticas implemen-
tadas neste campo recentemente, no país, nas quais me deterei brevemen-
te, a seguir.

MITIGAÇÃO VERSUS ADAPTAÇÃO

Um bom exemplo de como o governo brasileiro tem feito a opção pela


mitigação, foi dado tanto pela Política Nacional sobre Mudança do Clima
(PNMC), instituída em 29 de Dezembro de 2009 pela Lei n.12.187, que
tem como principais ações metas de mitigação, especialmente referente à
diminuição de emissões de Gases de Efeito Estufa (GEE), como os esforços
que vão se somando, desde então, entorno da preparação do país de uma
das ações e política de enfrentamento aos desastres.
Em 2011, o governo federal brasileiro, através do Ministério da Ciên-
cia, Tecnologia e Inovação (MCTI) criou o Centro Nacional de Monitora-
mento e Alertas de Desastres Naturais (CEMADEN) com o objetivo de
aumentar a capacidade da sociedade de enfrentar os efeitos dos desastres
naturais a partir do fornecimento de informações sobre risco iminente de
desastres naturais. Este serviço teria a incumbência de monitorar e comu-
nicar aos 109 municípios hoje monitorados nas regiões Sul (23), Sudeste
(75), Norte (02) e Nordeste (09) o momento em que as condições hidro-
lógicas e meteorológicas atingirem níveis críticos, podendo evoluir em de-
sastres com vítimas.

– 102 –
Um novo capítulo deste esforço do governo brasileiro de dar resposta
ao aumento constante dos desastres começou a ser escrita este ano, com o
anúncio, no dia 08 de Agosto de 2012, do Plano Nacional de Gestão de
Risco e Respostas a Desastres Naturais. O Plano visa articular iniciativas
anteriores, como o próprio CEMADEN e o Centro Nacional de Geren-
ciamento de Risco e Desastres (CENAD), ligado à Defesa Civil, que acaba
de receber novas instalações também. Estas iniciativas, ainda em implan-
tação, têm a difícil missão de suprir uma séria lacuna na política nacional
brasileira que não possuía, até então, nenhuma ação articulada que visava
preparar o país para dar resposta sistemática aos desastres e outros riscos.1
Parte da responsabilidade por estas políticas está no movimento que
envolve sociedade civil, academia e militância que se fortaleceu muito após
a divulgação do IR4, em 2007, e que tem desde então conseguido fortes
avanços no sentido de implantar ações políticas e instituições preparadas
para enfrentar, em diferentes níveis e contextos, os desastres, com o foco
nos eventos climáticos extremos, mas com potencial para aproveitar o mo-
vimento e suprir uma carência antiga. Ainda está fresco, em nossa memó-
ria, a dificuldade criada pelo furacão Catarina que atingiu o sul do país em
2005, e tantos exemplos de desastres urbanos em que voluntários e órgãos
mal equipados e com poucos investimentos lutam quase que heroicamen-
te para enfrentar e socorrer vítimas, sempre na cultura da emergência.
Este conjunto de iniciativas pode transformar a forma como o país,
num âmbito institucional, dá resposta aos desastres, incluindo outras ações
para além da emergência no momento do desastre. O Plano Nacional de
Gestão de Risco e Respostas a Desastres Naturais, por exemplo, possui qua-
tro eixos, conforme anunciou a presidenta Dilma Roussef em seu discurso
de lançamento (o documento ainda não está disponível para consulta pú-
blica): prevenção, mapeamento, monitoramento e alerta e resposta a
desastres.
Segundo a apresentação, a prevenção será tratada especialmente em
termos de realização de obras estruturantes, procurando sanar gargalos para
os quais a engenharia tem resposta como contenção de encostas, drenagem,
contenção de cheias, barragens, adutoras, sistemas de abastecimento. O
mapeamento é fundamental no plano para identificar áreas críticas, que
necessitam de obras chamadas de preventivas e para realização do moni-
toramento e alerta. Já está incluído no plano um conjunto de municípios
mapeados, com previsão de um total de 821 até 2014. Estes serão a base
do monitoramento e alerta, que será comandado pelo CEMADEN e pelo

1. Valencio (2009b) analisa este processo e suas consequências com foco na estruturação
recente da Defesa Civil.

– 103 –
CENAD, em operação articulada. Para isso, os investimentos envolvem,
além da própria implantação do CEMADEN, a compra de equipamentos
e o estabelecimento de uma rede nacional eficiente de alerta, incluindo ra-
dares, pluviômetros, estações meteorológicas, sensores de deslizamentos,
estações agrometeorológicas e sensores de umidade do solo. Nas ações do
eixo resposta, o destaque é para o atendimento emergencial do desastre,
articulando ações de atendimento médico, recursos para as prefeituras,
capacitação da defesa civil (conhecimento e equipamentos), acordos para
agilizar a circulação de recursos e informações, enfim, ações que pavimen-
tem o caminho para que a resposta, nos momentos de emergência, seja
imediata em todos os sentidos.
Analisando o material disponível até agora, o perfil do Plano é para criar
uma cultura institucional, processos e práticas que permitam ao governo
federal dar suporte às ações de emergência. Mesmo aquelas ações dos de-
mais eixos estão ligadas diretamente ao enfrentamento e à mitigação dos
efeitos, procurando dotar a estrutura governamental de capacidade de dar
resposta aos desastres. Por exemplo, se as obras anunciadas como preventi-
vas não forem pensadas em termos estruturais, ou seja, do ponto de vista
da macrodrenagem das bacias hidrográficas e da estabilidade dos sistemas
de vertentes no contexto da expansão urbana (legislação de uso do solo e
do próprio perímetro urbano), não serão mais do que obras de mitigação
de riscos. O mesmo pode-se dizer das ações preventivas que só preveem, no
plano anunciado, obras de infraestrutura, sem incluir a comunicação de risco
ou mesmo a participação da população na identificação e compreensão de
tais riscos, mesmo sabendo que é axiomático em qualquer estudo sobre
avaliação de risco que a percepção da população é um fator preponderante
e que esta não é a mesma dos técnicos ou de outros atores envolvidos no
processo (GREGORY, 1992; DOUGLAS; WILDAVSKY, 1982).
Este plano segue a mesma linha de outros programas do governo fe-
deral, buscando potencializar esforços já realizados em setores diferentes,
e que pouco se comunicam, criando a articulação a partir de órgãos criados
para tal fim.
Em vista disso, embora seja um avanço em relação à situação anteri-
or de nenhuma articulação ou esforço de integração intersetorial e entre
as esferas de governo, este conjunto de iniciativas ainda é insuficiente para
dar uma resposta mais completa aos desastres, por dois motivos. Primei-
ro, apesar da ênfase na previsão, mapeamento e monitoramento, prevale-
ce no plano o implemento de capacidade de resposta imediata quando ele
se manifesta, sem tentar atingir as suas causas. As obras ou o mapeamento
e o monitoramento redundam nas áreas de risco, sem a previsão, no que
foi apresentado, de uma análise mais global da produção dos riscos ou da

– 104 –
identificação de suas matrizes mais gerais, tanto oriundas do sistema físi-
co (análises globais de geossistemas, por exemplo) ou do sistema urbano
(estudos sobre expansão urbana em relação à dinâmica demográfica, por
exemplo). Ou seja, em muitos casos, trata-se de eventos climáticos que
poderiam ser considerados relativamente ‘normais’ num país tropical. Mas,
mesmo os eventos normais não têm sido considerados adequadamente na
nossa prática de planejamento, com consequências graves que se obser-
vam cada vez mais intensas.
Até aqui, os desastres são intensificados pela localização inadequa-
da e pela baixa qualidade construtiva das habitações. Estas característi-
cas são, por sua vez, claramente relacionadas com a lógica excludente da
urbanização brasileira. Entretanto, a intensificação desses fenômenos terá
impactos ampliados se medidas preventivas não forem incorporadas. Esta
contextualização não aparece, na versão anunciada do Plano, em nenhum
momento.
Segundo, essa abordagem é insuficiente porque o número de municí-
pios que podem ser monitorados pelo sistema depende do mapeamento das
áreas de risco de deslizamento em encostas, de alagamentos e de enxurradas.
Além disso, é necessário que o município tenha um estudo que estime o po-
tencial de danos decorrentes destes eventos naturais. Consequentemente, do
total de 5.565 municípios brasileiros, apenas 2% estão sendo cobertos pelo
sistema, e mesmo com as ampliações previstas pelo Plano Nacional recém-
divulgado (chegaremos perto de 15% dos municípios do país, incluindo as
principais regiões metropolitanas), estaremos longe de uma cobertura efeti-
va ou de garantias de perenidade no trabalho dos órgãos envolvidos, especi-
almente a ainda mal equipada e, sobretudo, mal amparada Defesa Civil.
Portanto, há uma etapa anterior necessária que ainda falta cumprir para que
o sistema de monitoramento seja mais abrangente: um maior conhecimento
da situação de vulnerabilidade dos municípios brasileiros contextualizadas em
suas dinâmicas urbanas e ambientais. Sem isso, não é possível implementar
nem um sistema eficaz de alerta em todo o país. E, para compreender os
impactos sociais do fenômeno, a utilização concomitante de informações
demográficas sobre a evolução da dimensão, estrutura e distribuição da po-
pulação é fundamental para compor esse quadro básico.
E como seria de se esperar, a proposta de tais planos não ataca a raiz
do problema, nem considera a variedade de formas de ser-e-estar-no-mun-
do que as populações, em diferentes cidades e contextos, vivem. Monitorar
e prever não considera nem muda a condição de habitação em nossas cida-
des nem garante segurança existencial. Trata-se de ações de mitigação que
não enfrentam o cerne do problema. É necessário, urgente, recolocar a ques-
tão, numa outra ordem de prioridades e valores.

– 105 –
RECOLOCANDO A QUESTÃO

Estes exemplos das recentes políticas nacionais de enfrentamento aos


desastres exemplificam os argumentos anteriores:
1. De um lado a ênfase na emergência se dá justamente porque o Bra-
sil nunca teve uma ação articulada de resposta aos desastres; o que
estamos fazendo, portanto, é algo que deveria ter sido feito ao lon-
go do século XX;
2. Por outro lado, os planos e as políticas enfatizam a mitigação, sem
colocar em cheque o modelo de cidade ou o atual modelo de produ-
ção espacial das cidades que orienta a relação sociedade-natureza e
suas consequências para segurança/insegurança ontológicas dos gru-
pos sociais.

O cerne da questão, a habitação e o habitar, não passam nem de perto


do debate. O esforço está concentrado na previsão, na tentativa de contro-
le e previsão da natureza. A mesma fé na ciência e desprezo pelo sentido
existencial envolvido permeia a formulação das políticas que, ao adotar a
dimensão da mitigação, continua sem propor efetivas mudanças na manei-
ra de compreender ou de enfrentar os problemas.
Se esperamos poder tirar proveito da atenção que as mudanças climá-
ticas impuseram em termos de agendas políticas e econômicas para promo-
ver práticas ambientalmente mais adequadas que promova a diminuição da
exposição da população aos riscos e aos desastres, temos que enfrentar es-
tas duas agendas simultaneamente, utilizando o mote das mudanças climá-
ticas para enfrentar o verdadeiro cerne da questão. Não podemos deixar que
nos imponham “A escolha de Sofia”. Escolher entre mitigar ou adaptar; entre
socorrer na emergência ou evitar que surjam novas áreas de risco não são
escolhas verdadeiras, e por isso devem ser rechaçadas.
O habitar, a condição humana, o direito à auto-realização e à liberda-
de vêm antes de qualquer coisa e por isso temos que recolocar o cerne da
questão; não estamos lidando com a fúria da natureza, nem com uma mera
questão jurídica ou de má gestão: desastres são humanos, e na base está a
existência, digna ou não, de seres humanos. E isso precisa ser priorizado para
além do momento do desastre.
De outro lado, esta agenda deve ser pautada por um enfrentamento
global que potencialize nossas dívidas históricas, tratando os desastres como
sintomas, não como o cerne do problema, e, a partir da questão do habitar,
possamos mobilizar o discurso em prol de uma agenda coerente com nos-
sas prioridades e que façam sentido nos nossos diferentes contextos: naci-
onal, regional e local.

– 106 –
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– 108 –
CAPÍTULO V

DESASTRES NO BRASIL: A FACE


HÍDRICA DO ANTIDESENVOLVIMENTO

Norma Valencio

O desenvolvimento econômico que gera um desenvolvimento social


muito aquém de suas possibilidades (...)
nega-se na perversidade das exclusões sociais que dissemina.
Compromete profundamente a sua própria durabilidade e,
de alguma forma,
abre o abismo da sua própria crise.

A sociedade vista do abismo, J. S. Martins

INTRODUÇÃO
Desastres são fraturas extraordinárias no desenvolvimento brasileiro
ou são processos intrínsecos ao seu desenvolvimento?
Embora essa devesse ser uma pergunta basilar para as autoridades
políticas, científicas e técnicas nacionais debruçadas sobre o tema, ela tem
sido olvidada. O que o prova é a insistência desses atores em tipificar a quase
totalidade dos desastres que ocorrem no país como sendo naturais. Essa
tipificação, contudo, não é ingênua. Como mais de 90% dos desastres que
ocorrem anualmente no Brasil estão relacionados à água – na forma de chu-
vas intensas ou de estresse hídrico – os formadores de opinião produzem
um discurso de antropomorfização dessas manifestações da água, tornan-
do-a uma espécie de vilã, incontrolável, que se transmuta num novo ator
social, capaz de deflagrar fatalidades. Isso invisibiliza os verdadeiros atores
sociais e relações de poder por detrás das cenas de desolação que se ampli-
aram nos últimos anos.
Os meios de comunicação recorrem preponderantemente aos especia-
listas das ciências físicas para descer às minúcias da explicação de fenôme-
nos hidrometeorológicos relacionados a um desastre, mas afastam-se o

Apoio: CNPq, processo 309126/2011-8 e FAPESP processo 12/02919-9. As opiniões, hi-


póteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade da
autora e não necessariamente refletem a visão do CNPq e da FAPESP.

– 109 –
quanto possível dos cientistas sociais, como que repelindo a necessidade de
compreensão das relações sociopolíticas subjacentes a esse acontecimento.
Esse distanciamento confere maior flexibilidade para que os órgãos de im-
prensa difundam o seu próprio repertório de interpretações sociais sobre os
desastres. Esse repertório propende a ser carregado de sentidos valorativos
estigmatizantes ou solidários em correspondência à classe social dos gru-
pos sociais mais prejudicados na ocorrência. Se forem pobres os que perdem
seus pertences, veem suas moradias destruídas e familiares mortos ou de-
saparecidos, muito frequentemente serão apontados como responsáveis pelo
próprio sofrimento. Se forem de setores afluentes da sociedade, as autori-
dades serão pressionadas midiaticamente para garantir os direitos do grupo.
A repetição nauseante do discurso acerca das atipicidades do tempo e
clima como sendo os fatores cruciais dos desastres no Brasil gera uma in-
tencional confusão entre a ocorrência desses fenômenos, a sua significação
como perigos e a priorização dos estudos no tema dentro da agenda de polí-
tica científica e tecnológica sobre desastres. Alega-se que tais estudos pro-
verão os subsídios suficientes às políticas de redução de riscos de desastres
futuros relacionados a perigos idênticos. O monitoramento daquilo que se
passa nos céus gera um tipo de encantamento hipnótico como se apenas nas
nuvens contivesse o pior que possa vir a ocorrer com o meio social. Esse en-
cantamento é também uma força paralisante da evolução e maturidade do
debate sobre os desastres no âmbito das ciências sociais, pois restringe a
formação de uma imprescindível massa crítica no tema.
Uma orientação política atrasada, que age nos bastidores institucionais
do Estado, enfeixa instrumentalmente os domínios científicos no âmbito
das ciências duras para deles extrair produtos e serviços voltados para o meio
técnico-operacional que atua nas emergências e desastres. É de destacar, nes-
se enfeixamento, a aliança com a grande imprensa na produção e difusão
de juízos desqualificadores acerca dos sujeitos desajustados no projeto de
desenvolvimento econômico e que serão interpretados como ‘o’ problema
dentro do desastre. Deles, dir-se-á que não têm percepção de risco, voltam sem-
pre para o mesmo lugar condenado (interditado), não dão valor à vida, não respei-
tam a decisão técnica de remoção e assim por diante. As águas em fúria,
durante as enchentes, ou em sumiço, nas secas, serviriam didaticamente ao
propósito de abater os desajustados enquanto não ‘aprenderem a lição’. Os
desajustados se sentem crescentemente acuados e cada vez mais são acusa-
dos de irresponsabilidade tanto pelo poder público, que os deveria prote-
ger, quanto pela opinião pública, que os observa com intolerância crescente.
O discurso-padrão sobre o ‘flagelo das secas’ ou sobre as ‘chuvas
atípicas’ tem sido assimilado passivamente pelas frações da sociedade que,
mesmo nesta época da hiperconectividade virtual, buscam explicações pron-

– 110 –
tas sobre certas perturbações socioambientais ao derredor. Não se ouve voz
crítica que indague coisas do tipo:
t se a chuva ou a seca foram atípicas, surpreendentes, extraordinári-
as, como os grupos sociais que foram prejudicados podem ser acu-
sados de imprevidência diante do evento?
t quais atores e que processos agem na produção de suscetibilidades
socioambientais frente as quais as chuvas ou as secas se tornam um
perigo recorrente?
t a ocorrência de desastres tem maior relação com um evento natural
ameaçante ou com a qualidade das medidas públicas tomadas diante
o mesmo?
t a prática técnica de remover famílias, alegando que moram em áre-
as de risco, e que é realizada mesmo quando as famílias não tenham
para onde ir, resolve qual problema na vida delas? Tal prática técni-
ca amplia ou reduz a segurança global dessas famílias?

Ao invés de perguntas como essas ou similares, os meios de comuni-


cação, especialistas e autoridades insistem em que os perigos residem nos
céus, cujos fenômenos pegam constantemente as autoridades de surpresa,
fazendo-as se deparar com um desastre já materializado. Sobrevoos de he-
licóptero são realizados por autoridades pasmas e compenetradas, reuniões
de urgência são travadas entre forças civis e militares, recursos financeiros
extraordinários são requisitados pelas administrações estaduais e munici-
pais à esfera federal. Quanto mais repetida essa performance, mais se acen-
tua o seu tom farsesco. E, apesar disso, o mesmo parece não embaraçar quem
as executa e quem as testemunha.
Porém, sem mirar para os céus, mas para as relações sociais no terre-
no, encontram-se muitos dos elementos para entendermos um desastre.
Dentre eles, destacam-se a irresolução de problemas de drenagem em bair-
ros pobres e de habitação popular no meio urbano; a desproteção da pro-
dução rural de base familiar e sua insegurança hídrica frente às prioridades
de expansão territorial do agronegócio; a reorganização do espaço urbano
e rural regional, ditada pelos investimentos em projetos hidrelétricos de gran-
de escala; a deslegitimação dos direitos territoriais de povos tradicionais em
áreas de interesse econômico dos grandes capitais e por aí afora. Tais ele-
mentos, em seu conjunto, denotam a relação sociopolítica deteriorada que
inspira os rumos do desenvolvimento nacional enquanto, por efeito, susce-
tibiliza os processos de territorialização dos grupos sociais em desvantagem
e os expõem a uma multiplicidade de novos perigos, configuração socio-
política cujos resultados são os desastres.

– 111 –
Desastre é um tipo de crise e que, no caso brasileiro, se alastra por todo
o país. Essa crise, então, vira uma espécie de estado normal da sociedade. O
que o cidadão comum parece não se aperceber, mas seria relevante se o fizes-
se, é que essa crise sistemática reorienta a ordem social e as rotinas da admi-
nistração pública através de decretos de emergência reconhecidos por
correspondentes portarias emitidas pela esfera federal de governo. Emergên-
cias oficialmente declaradas atendem a uma lógica própria de administração
pública e constituem uma aparente excepcionalidade que é crescentemente
impermeável ao controle social. A tal lógica subjaz um jogo político no qual
os atores em posição decisória podem tirar proveito das descompensações
sociais, econômicas, morais e emocionais dos grupos sociais revitimizados,
debilitando-os ainda mais. Desprovidos imediatamente da capacidade de
autoprovimento em relação às suas necessidades vitais (abrigo, alimento,
vestuário etc), aqueles que estão no centro de um desastre sofrem não ape-
nas por aquilo que perderam, mas por temerem a retaliação de técnicos em
razão de quaisquer críticas que porventura façam à qualidade do atendimen-
to público e dos parcos provimentos recebidos. Esse processo de assu-
jeitamento político torna um desastre passível de repetição, pois as condições
sociais para isso permanecem dadas.
Ao integrarem-se as perspectivas macro e microssocial, vê-se que os
desastres se proliferam no país banalizando a prática pública de exercício
de autênticos estados de exceção (AGAMBEN, 2004), que se materializam
como padrão de atuação do Estado através dos inumeráveis decretos de
emergência e portarias federais correspondentes. Sob tal contexto político,
torna-se frequente que, para além da cena de devastação, o meio técnico-
operacional se sinta autorizado a provocar o desmonte das rotinas da vida
social de uma coletividade ainda mais abrangente e reordená-la num am-
biente público de exposição e intimidação. Por exemplo, em contexto de
enchentes, não só quem eventualmente tem a moradia danificada ou
destruída fica exposto, à mercê de um acolhimento proveniente da rede
primária ou de um abrigo público, pois essa circunstância de esfacelamen-
to de um lugar autoriza o meio técnico a abordar outros núcleos residenciais
contíguos e retirar compulsoriamente os moradores de lá. Por vezes, o de-
sastre é apenas o argumento derradeiro para legitimar o ato de expulsão de
moradores indesejáveis. Um desastre apenas intensifica, no tempo e no es-
paço, a ação técnica de desterritorialização de grupos sociais cujas raízes
econômicas ou culturais sejam fracas em vista da nova dinâmica que o ente
público acalente ou pretenda dar ao espaço. Enquanto seguimos preocupa-
dos com as próximas chuvas ou secas atípicas, e ouvimos atentamente a
moça do tempo nos telejornais, uma nova ordem social se instaura limitando
as liberdades democráticas.

– 112 –
Tendo em conta a problemática supra, apresenta-se um sintético qua-
dro socioespacial e sociotemporal dos desastres no Brasil para enfeixá-lo à
noção de antidesenvolvimento desenvolvida por Martins (2003). Desde aí,
refletiremos sobre os horizontes de conhecimento e ação para a redução dos
desastres relacionados à água no contexto nacional.

CRISES ESTRUTURAIS OCULTADAS NAS CRISES CONJUNTURAIS:


OS DESASTRES À SOMBRA DO ANTIDESENVOLVIMENTO

Há muitas pistas para a identificarmos a proliferação e persistência dos


desastres no Brasil e o seu link com os problemas de desenvolvimento. Aqui,
elencaremos quatro pistas.
A primeira delas é atentarmos para a trajetória temporal das ocorrên-
cias oficialmente publicadas no âmbito local e reconhecidas no âmbito fe-
deral. Nos últimos dez anos (2004-2013), o país assistiu a 19.441 dessas
ocorrências, que tomaram a forma de decretos municipais de situação de emer-
gência (SE) ou de estado de calamidade pública (ECP), seguidos de portaria
ministerial federal (Tabela 1).

Tabela 1 Número de portarias de reconhecimento de SE/ECP emitidas pela


SEDEC/MI e de municípios solicitantes, período 2004-2013.

Número de Número de % municípios solicitantes em


Ano portarias municípios relação ao total de municípios
emitidas solicitantes brasileiros (n=5565)
2004 1760 1447 26,00
2005 1711 1511 27,15
2006 991 789 14,18
2007 1615 1096 19,69
2008 1502 1028 18,47
2009 1292 1080 19,41
2010 2765 1912 34,36
2011 1282 984 17,68
2012 2776 2342 42,14
2013 3747 1938 34,82
Total 19441 Média = 25,39
Fonte: sistematizado pela autora a partir de informações da SEDEC/MI (atualiza-
do em 11 de julho de 2014).

Em média, no referido período, aproximadamente 1/4 dos municípios


brasileiros (25,39%) entrou em emergência (SE/ECP) por ano. Uma espé-
cie de pandemia de desastres assola o país. No ano de 2012, 42,14% dos

– 113 –
municípios brasileiros solicitaram o reconhecimento de suas respectivas
emergências e no ano de 2013, foram 34,82% dos municípios. Significa dizer
que, embora pareça que desastres sejam ocasiões excepcionais, o país está
mergulhando nessa excepcionalidade. Até meados do ano de 2014 (atuali-
zado pela SEDEC/MI em 10/7/2014) 1583 portarias referentes à solicita-
ção de 1555 municípios já haviam sido emitidas.
A segunda pista a considerar é a repetição dos mesmos tipos de desas-
tres numa certa unidade da federação ou município. Isso pode ser visto como
um sintoma da má qualidade ou insuficiência das estratégias deflagradas
nos diversos níveis de governo para reduzir vulnerabilidades e/ou lidar com
os perigos conhecidos. Ou, ainda pior, pode indicar que a estratégia tácita
para lidar com essa crise não busca resolvê-la, senão coadunar a cronicidade
dos eventos com um fluxo favorável de tramitações decisórias, burocráti-
cas e financeiras que atendam a certos grupos de poder. No Brasil, quanto
mais frequentes são as emergências decretadas, mais as autoridades nos três
níveis de governo aprendem a acessar recursos extraordinários, que são li-
berados sem as exigências burocráticas usuais. Esse aprendizado é eventu-
almente viciante na máquina pública, pois o maior dispêndio público, na
transferência de recursos para estados e municípios solicitantes, não tem
logrado a diminuição de desastres no período subsequente aos que foram
atendidos e, por vezes, a decretação de desastres parece ampliar. Isso vem
ocorrendo tanto em unidades da federação com um baixo IDHM, como a
Paraíba (IDHM = 0,658), como nos que apresentam um alto IDHM, como
Santa Catarina (IDHM = 0,774) e Rio Grande do Sul (IDHM = 0,746,
6.o ligar no ranking nacional).1
Alguns municípios, inseridos em um dos cinco estados brasileiros com
maior número de decretações no conjunto nacional, chegaram a decretar emer-
gências por dez vezes ou mais no período 2004-2013, o que compreendeu
18,30% dos casos catarinenses, 58,70% dos casos cearenses e 41,26% dos ca-
sos paraibanos. Os decretos de emergência açambarcaram, em média, 94,68%
do total de municípios desse conjunto de estados e os decretos recorrentes de
emergência corresponderam a 89,60% dos casos. Santa Catarina foi o estado
no qual a totalidade dos municípios decretou emergência uma vez ou mais no
período (Tabela 2). Casos como esses demonstram que, embora os breves pe-
ríodos nos quais a administração pública local retoma a sua atuação rotineira,
as emergências vão deixando os vestígios da sua cronicidade e, sub-repticia-
mente, instalam uma nova lógica operativa na máquina pública, gerando ou-
tro estado normal, embora chamado de ‘excepcional’.

1. Cf. ranking IDHM 2010, PNUD. Disponível em: <www.pnud.org.br/arquivosqranking-


idhm-2010-uf.pdf>.

– 114 –
Tabela 2 Distribuição de decretos de Situação de Emergência/Estado de Calamidade Pública nas cinco Unidades da Federação (UF)
com maior número de ocorrências no período 2004-2013 (ano-base da SEDEC/MI).

No No de Número de Número de
R Número de
de municípios da municípios com municípios com
A No municípios com
decretos UF com mais de 1 10 ou mais
N total de 5 a 9 decretos
U de decreto de decreto no decretos no
K municíp no período
F emer- emergência período período
I ios da
gência % % % %
N UF
no Nº relativo Nº relativo Nº relativo Nº relativo
G período à UF à UF à UF à UF
R
1o 2631 497 484 97,38 463 93,16 303 60,97 16 3,22
S
S

– 115 –
2o 2095 295 295 100 286 96,95 199 67,46 54 18,31
C
C
3o 1888 184 181 98,37 178 96,74 66 35,87 108 58,70
E
P
4o 1856 223 217 97,31 210 94,17 101 45,29 92 41,26
B
B
5o 1713 417 353 84,65 311 74,58 157 37,65 22 5,28
A
Total 10183 1616 1530 94,68 1448 89,60 826 51,11 292 18,07
Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da Secretaria Nacional de Defesa Civil do Ministério da Integração
Nacional, SEDEC/MI.
A terceira pista é a de que tem havido uma sistemática vinculação das
emergências aos mesmos motivos, o que vai indicando uma inquietante fa-
miliaridade administrativa e social, no nível local, estadual e federal com o
conteúdo desse tipo de crise. A familiaridade com o problema deveria ser,
a rigor, aquilo que favoreceria enfrentá-lo; mas, no caso brasileiro, a famili-
aridade vem indicando uma perpetuação do problema, que parece não es-
tar sendo enfrentado da forma como se deveria com o propósito de saná-lo.
É como se a política não respondesse adequadamente às questões concre-
tas do espaço ou, de modo contrário, como se a política impusesse certa
organização do espaço que inviabiliza que este afaste de sua dinâmica o
fantasma do desastre.
Nos documentos oficiais, problemas graves e coletivos relacionados à
água têm sido a alegação para a quase totalidade dos desastres e dos decre-
tos municipais de emergência correspondentes. Num polo, dá-se destaque aos
acontecimentos descritos como chuvas (intensas ou concentradas) ocasionan-
do um aumento repentino (ou gradual) do volume hídrico nos mananciais
superficiais, levando ao transbordamento da calha dos rios ou dos canais,
piscinões e demais mecanismos que visavam controlar a sua vazão, o que le-
varia à ocorrência de inundações, enchentes ou enxurradas bem como desen-
cadeariam escorregamentos de massa decorrentes da saturação de água do
solo. Noutro polo, destaca-se a ausência de chuvas, ocasionando secas ou
estiagens prolongadas, o que geraria níveis intoleráveis de escassez para o
abastecimento local visando o atendimento de múltiplas finalidades.
Porém, multiplicam-se as localidades nas quais as chuvas aparecem
como um transtorno terrível, que causa um desastre e obriga a autoridade
local à decretação de emergência, sequencialmente a uma decretação de
emergência por secas ou estiagens prolongadas e vice-versa. No entanto, essa
sequência, que poderia ser parte da solução – se as tecnologias de drenagem,
armazenamento, tratamento e distribuição fossem mais eficientes – tem sido
vista como uma dupla adversidade. É como se tivesse havido desastres na-
turais seguidos, que exigem a permanência do estado de exceção.
A título de ilustração do quão alastrados estão esses desastres naturais
no país, e como as sequências ‘muita água – falta d’água’ vão se afirmando
com um discurso aceitável, fiquemos somente com as macrorregiões Nordeste
e Sudeste do país, que são consideradas como polos opostos de desenvolvi-
mento. Nestas macrorregiões tomamos em conta duas unidades da federa-
ção que foram as respectivas líderes em emergências no ano de 2013, a saber:
o estado da Bahia (BA), que apresentou 680 decretos envolvendo 284 mu-
nicípios e o estado de Minas Gerais (MG), com 233 decretos envolvendo 159
municípios. Em ambos os estados, identificamos que a referida sequência
anual municipal de decretação de emergência aparece, no ano de 2013, em

– 116 –
04 casos na Bahia e em 01 caso em MG (Tabela 3); contudo, se estendido
para o período dos últimos cinco anos (2009-2013), passaram a 45 e 51 ca-
sos respectivamente (Tabelas 4 e 5). Destaque-se, na Bahia, o caso de Iaçu,
que passou por três emergências desse tipo no ano de 2013. Na Bahia, no
recorte quinquenal 2009-2013, ocorreram casos da referida sequência de
decretação de emergência nos municípios de Vitória da Conquista, de Go-
vernador Mangabeira, de Euclides da Cunha, de Pedrão, dentre outros. O caso
do município de Lajedinho foi um dos mais emblemáticos, pois além de cin-
co ocorrências em apenas dois anos seguidos (2012-2013), ocorreu de uma
decretação de situação de emergência (SE) relacionada à seca ter sido ‘atro-
pelada’ por uma decretação de desastre relacionado às chuvas, o que gerou
novo decreto, de estado de calamidade pública (ECP). O ECP é um desastre
de magnitude superior a SE. No caso em tela, houve um aumento súbito da
gradação do desastre, só que no polo oposto da emergência em relação à água:
onde faltava água, essa se tornou avassaladoramente abundante, o espaço não
estava preparado para nenhuma dessas circunstâncias. Já no contexto mineiro,
casos de sequência de três emergências ocorrem em municípios como o de
Brasília de Minas, Buritizeiro, Campo Azul; em sequência quádrupla, em
localidades como Coração de Jesus; quíntupla, como em Montes Claros,
Itamarandiba, Jequitaí e Luislândia e sêxtupla, como em Claro dos Poções.

Tabela 3 Municípios com decretos sequenciais de Situação de Emergência/Estado de


Calamidade Pública relacionados às chuvas-inundações-enchentes-deslizamentos/
estiagens-secas nos estados da Bahia (BA, macrorregião Nordeste) e de Minas Gerais
(MG, macrorregião Sudeste) no ano de 2013 (ano-base da SEDEC/MI).

Sequência de solicitações de
Município UF portarias de emergência
Mês Evento
14/01/2013 ESTIAGEM
Iaçu BA 21/01/2013 ENXURRADAS
26/03/2013 ESTIAGEM
31/01/2013 ENXURRADAS
Itaquara BA
13/03/2013 ESTIAGEM
03/09/2013 ESTIAGEM
Lajedinho BA
09/12/2013 ENXURRADAS
08/03/2013 ESTIAGEM
Santa Luzia BA
15/04/2013 ENXURRADAS
CHUVAS
11/03/2013
Serro MG INTENSAS
19/07/2013
ESTIAGEM
Total de municípios – 5

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da Secretaria Nacional


de Defesa Civil do Ministério da Integração Nacional, SEDEC/MI.

– 117 –
Tabela 4 Municípios com decretos sequenciais de Situação de Emergência/Estado de
Calamidade Pública relacionados às chuvas-inundações-enchentes-deslizamentos/
estiagens-seca no estado da Bahia (BA), macrorregião Nordeste,
no período 2009-2013 (ano-base da SEDEC/MI).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
01/09/2008 ESTIAGEM
Abaré 28/05/2009 ALAGAMENTOS
28/09/2009 ESTIAGEM
07/11/2008 ESTIAGEM
Aiquara
21/07/2010 ALAGAMENTOS
09/03/2010 ESTIAGEM
Anguera
30/07/2010 ENXURRADAS
15/01/2010 ESTIAGEM
Araci 19/04/2010 ENXURRADAS
31/01/2012 ESTIAGEM
15/04/2010 ENXURRADAS
Aramari
12/06/2012 ESTIAGEM
18/06/2010 ESTIAGEM
Caatiba
20/11/2011 ENXURRADAS
19/02/2009 ESTIAGEM
Cícero Dantas
13/04/2010 ENXURRADAS
06/09/2011 ENXURRADAS
Crisópolis
27/04/2012 ESTIAGEM
29/04/2010 ENXURRADAS
Elísio Medrado
02/04/2012 ESTIAGEM
19/04/2010 ALAGAMENTOS
Entre Rios
22/03/2012 ESTIAGEM
09/11/2009 ESTIAGEM
Euclides da Cunha 10/08/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
08/04/2010 ENXURRADAS
Feira de Santana
19/01/2012 ESTIAGEM
13/06/2012 ESTIAGEM
Formosa do Rio Preto
08/08/2013 ESTIAGEM
10/11/2009 ESTIAGEM
Governador Manguabeira 15/04/2010 ALAGAMENTOS
16/03/2012 ESTIAGEM
25/01/2010 ESTIAGEM
Ibirapuã
10/12/2010 ENXURRADAS

– 118 –
Tabela 4 (continuação).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
28/10/2009 ESTIAGEM
Ilhéus
14/04/2010 ENXURRADAS
03/08/2009 ESTIAGEM
Ipecaetá 14/07/2010 ENXURRADAS
12/06/2012 ESTIAGEM
15/04/2010 ENXURRADAS
Irara
19/03/2012 ESTIAGEM
25/04/2011 ALAGAMENTOS
Itapicuru
12/06/2012 ESTIAGEM
31/01/2013 ENXURRADAS
Itaquara
13/03/2013 ESTIAGEM
16/03/2009 ESTIAGEM
Iuiú
01/01/2010 ENXURRADAS
28/09/2009 ESTIAGEM
Jaguaquara
29/04/2013 ENXURRADAS
25/10/2011 ALAGAMENTOS
Jandaíra
18/04/2013 ESTIAGEM
14/12/2010 ENXURRADAS
Juazeiro
09/04/2012 ESTIAGEM
21/09/2009 ESTIAGEM
Lafaiete Coutinho
03/08/2010 ENCHENTES
13/03/2012 ESTIAGEM
26/11/2012 ALAGAMENTOS
Lajedinho 08/03/2013 ESTIAGEM
03/09/2013 ESTIAGEM
09/12/2013 ENXURRADAS
17/03/2011 ENXURRADAS
Malhada
12/06/2012 ESTIAGEM
17/03/2010 ESTIAGEM
Mirangaba 20/12/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
16/10/2009 ENXURRADAS
Mundo Novo
17/01/2012 ESTIAGEM
20/01/2012 ESTIAGEM
Muquém de São Francisco 20/01/2012 ENCHENTES
14/01/2013 ESTIAGEM
19/07/2010 ENXURRADAS
Ouriçangas
03/04/2012 ESTIAGEM

– 119 –
Tabela 4 (continuação).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
22/12/2009 ESTIAGEM
Pedrão 13/07/2010 ENXURRADAS
27/04/2012 ESTIAGEM
28/10/2008 ESTIAGEM
Riachão do Jacuípe 19/04/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
16/07/2010 ALAGAMENTOS
Ribeira do Amparo
08/03/2013 ESTIAGEM
12/04/2010 ENXURRADAS
Ribeira do Pombal
05/06/2012 ESTIAGEM
18/09/2009 ESTIAGEM
Ruy Barbosa 25/03/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
08/03/2013 ESTIAGEM
Santa Luzia
15/04/2013 ENXURRADAS
17/06/2010 ENXURRADAS
Santanópolis
05/03/2012 ESTIAGEM
15/07/2010 ALAGAMENTOS
São Domingos
28/07/2011 ESTIAGEM
20/12/2010 ALAGAMENTOS
Saúde
12/03/2012 ESTIAGEM
01/06/2010 ESTIAGEM
Senhor do Bonfim 11/05/2011 ENXURRADAS
18/01/2012 ESTIAGEM
15/04/2009 ESTIAGEM
Serrinha 21/07/2010 ENXURRADAS
22/07/2011 ESTIAGEM
28/10/2009 ENXURRADAS
Serrolândia
21/03/2012 ESTIAGEM
06/10/2009 ESTIAGEM
Teofilândia 15/07/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
13/07/2010 ESTIAGEM
Vitória da Conquista 19/11/2010 ENXURRADAS
28/01/2011 ESTIAGEM
Total de municípios – 45

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da Secretaria Nacional de Defe-
sa Civil do Ministério da Integração Nacional, SEDEC/MI.

– 120 –
Tabela 5 Municípios com decretos sucessivos de Situação de Emergência/Estado de
Calamidade Pública relacionados às chuvas-inundações-enchentes-deslizamentos/
estiagens-seca no estado de Minas Gerais (MG), macrorregião Sudeste,
no período 2009-2013 (ano-base da SEDEC/MI).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
01/09/2008 ESTIAGEM
Abaré 28/05/2009 ALAGAMENTOS
28/09/2009 ESTIAGEM
07/11/2008 ESTIAGEM
Aiquara
21/07/2010 ALAGAMENTOS
09/03/2010 ESTIAGEM
Anguera
30/07/2010 ENXURRADAS
15/01/2010 ESTIAGEM
Araci 19/04/2010 ENXURRADAS
31/01/2012 ESTIAGEM
15/04/2010 ENXURRADAS
Aramari
12/06/2012 ESTIAGEM
18/06/2010 ESTIAGEM
Caatiba
20/11/2011 ENXURRADAS
19/02/2009 ESTIAGEM
Cícero Dantas
13/04/2010 ENXURRADAS
06/09/2011 ENXURRADAS
Crisópolis
27/04/2012 ESTIAGEM
29/04/2010 ENXURRADAS
Elísio Medrado
02/04/2012 ESTIAGEM
19/04/2010 ALAGAMENTOS
Entre Rios
22/03/2012 ESTIAGEM
09/11/2009 ESTIAGEM
Euclides da Cunha 10/08/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
08/04/2010 ENXURRADAS
Feira de Santana
19/01/2012 ESTIAGEM
13/06/2012 ESTIAGEM
Formosa do Rio Preto
08/08/2013 ESTIAGEM

– 121 –
Tabela 5 (continuação).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
10/11/2009 ESTIAGEM
Governador Manguabeira 15/04/2010 ALAGAMENTOS
16/03/2012 ESTIAGEM
25/01/2010 ESTIAGEM
Ibirapuã
10/12/2010 ENXURRADAS
28/10/2009 ESTIAGEM
Ilhéus
14/04/2010 ENXURRADAS
03/08/2009 ESTIAGEM
Ipecaetá 14/07/2010 ENXURRADAS
12/06/2012 ESTIAGEM
15/04/2010 ENXURRADAS
Irara
19/03/2012 ESTIAGEM
25/04/2011 ALAGAMENTOS
Itapicuru
12/06/2012 ESTIAGEM
31/01/2013 ENXURRADAS
Itaquara
13/03/2013 ESTIAGEM
16/03/2009 ESTIAGEM
Iuiú
01/01/2010 ENXURRADAS
28/09/2009 ESTIAGEM
Jaguaquara
29/04/2013 ENXURRADAS
25/10/2011 ALAGAMENTOS
Jandaíra
18/04/2013 ESTIAGEM
14/12/2010 ENXURRADAS
Juazeiro
09/04/2012 ESTIAGEM
21/09/2009 ESTIAGEM
Lafaiete Coutinho
03/08/2010 ENCHENTES
13/03/2012 ESTIAGEM
26/11/2012 ALAGAMENTOS
Lajedinho 08/03/2013 ESTIAGEM
03/09/2013 ESTIAGEM
09/12/2013 ENXURRADAS
17/03/2011 ENXURRADAS
Malhada
12/06/2012 ESTIAGEM

– 122 –
Tabela 5 (continuação).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
17/03/2010 ESTIAGEM
Mirangaba 20/12/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
16/10/2009 ENXURRADAS
Mundo Novo
17/01/2012 ESTIAGEM
20/01/2012 ESTIAGEM
Muquém de São Francisco 20/01/2012 ENCHENTES
14/01/2013 ESTIAGEM
19/07/2010 ENXURRADAS
Ouriçangas
03/04/2012 ESTIAGEM
22/12/2009 ESTIAGEM
Pedrão 13/07/2010 ENXURRADAS
27/04/2012 ESTIAGEM
28/10/2008 ESTIAGEM
Riachão do Jacuípe 19/04/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
16/07/2010 ALAGAMENTOS
Ribeira do Amparo
08/03/2013 ESTIAGEM
12/04/2010 ENXURRADAS
Ribeira do Pombal
05/06/2012 ESTIAGEM
18/09/2009 ESTIAGEM
Ruy Barbosa 25/03/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
08/03/2013 ESTIAGEM
Santa Luzia
15/04/2013 ENXURRADAS
17/06/2010 ENXURRADAS
Santanópolis
05/03/2012 ESTIAGEM
15/07/2010 ALAGAMENTOS
São Domingos
28/07/2011 ESTIAGEM
20/12/2010 ALAGAMENTOS
Saúde
12/03/2012 ESTIAGEM

– 123 –
Tabela 5 (continuação).

Sequência de solicitações de
Município portarias de emergência
Mês Evento
01/06/2010 ESTIAGEM
Senhor do Bonfim 11/05/2011 ENXURRADAS
18/01/2012 ESTIAGEM
15/04/2009 ESTIAGEM
Serrinha 21/07/2010 ENXURRADAS
22/07/2011 ESTIAGEM
28/10/2009 ENXURRADAS
Serrolândia
21/03/2012 ESTIAGEM
06/10/2009 ESTIAGEM
Teofilândia 15/07/2010 ENXURRADAS
22/03/2012 ESTIAGEM
13/07/2010 ESTIAGEM
Vitória da Conquista 19/11/2010 ENXURRADAS
28/01/2011 ESTIAGEM
Total de municípios... 45

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da Secretaria Nacional de Defesa
Civil do Ministério da Integração Nacional, SEDEC/MI.

Casos assim nos leva a ponderar, de início, que a infraestrutura hídrica


para que os municípios lidem melhor com a água, de modo a evitar danos
e prejuízos socioambientais em ambos os contextos hídricos, segue aquém
daquilo que é necessário ao conjunto dos munícipes ou, ao menos, a uma
fração destes que reiteradamente sofrerem danos e prejuízos. É este sofri-
mento, de uma parcela da sociedade local, que justifica as decretações de
SEs e ECPs que, uma vez reconhecidas pelo ente federal, valem para todo
o município. Significa dizer, que a máquina pública local tem endosso para
operar em condições especiais. E os recursos extraordinários obtidos, por
vezes, se deslocam para o atendimento das demandas de outra parcela da
sociedade local, não daquela em nome de quem tais recursos foram acessados
e que deveria ter tido prioridade ou exclusividade no atendimento emer-
gencial. Casos de desastres catastróficos, como o ocorrido em municípios
da região serrana do estado do Rio de Janeiro, como o de Teresópolis, fo-
ram bem elucidativos dos desvios não apenas de dinheiro público, mas de
ações públicas que desprotegeram e aviltaram as famílias que mais tinham
perdido na ocasião (VALENCIO et al., 2011). Mesmo quando um decreto

– 124 –
expressa que o desastre abrangeu a totalidade de um município, as comu-
nidades que o compõem (no centro urbano, nos bairros nobres, nas perife-
rias urbanas, nas comunidades rurais, na de povos tradicionais e outros) são
afetadas de modo diferenciado, pois o sistema de objetos e o sistema de ações
(SANTOS, 1998) de cada lugar estão diferentemente situados e prepara-
dos para a exposição a um determinado perigo (enfrentando-o com maior
grau de sucesso ou fracasso) e este perigo adquire conformações igualmen-
te diversas.
Nesse sentido, vale a pena destacar casos como a de Dona Ana Maria,
49 anos, residente na comunidade quilombola de Córrego de Ubaranas, no
município de Aracati/CE, para quem a seca tem sido vivenciada com maior
dificuldade do que em relação à média dos habitantes do município. Seu
domicílio, assim como os demais dessa comunidade, não está coberto por
rede de distribuição de água. Há oito anos, o domicílio não faz uso da cis-
terna que possui (com capacidade de armazenamento de 16 mil litros), pois
a utilização inviabilizou-se por uma rachadura nesse equipamento. Por isso,
Dona Ana Maria já desmontou o sistema de captação de chuva que havia
no telhado de sua casa e que levaria água para a cisterna quando chovesse.
Quando a entrevistamos, no final do ano de 2013, Dona Ana Maria obti-
nha apenas sobras de água, de má qualidade, para o uso diário da moradia;
era o que havia no fundo do poço de seu quintal. Uma vez que a provisão
emergencial do caminhão-pipa para a comunidade não ser suficiente, a co-
munidade criou uma estratégia própria de abastecimento: um vizinho bo-
tou um motor numa cacimba (particular, de outro morador que foi embora
do lugar) e, através de uma mangueira de uso doméstico, as famílias reti-
ram diariamente a quantidade correspondente a aproximadamente vinte
litros diários para prover o essencial para o corpo e os afazeres domésticos
(beber, cozinhar, prover os animais de estimação e criação, tomar banho,
lavar a louça) (Fotos 01 a 04). Nas palavras de Dona Ana Maria:
Eu costumo dizer que eu prefiro ter água a ter o que comer, porque
sem a água ninguém vive (...) prá beber, aqui é quatro pessoas (...)
pra tomar banho, a gente tira de uma cacimba (...) a gente pede e
ele [um vizinho] liga [o motor], a gente enche o bojão [de 20 litros]
(...) tomar banho é de caneca e bacia (...) lavar roupa eu tou econo-
mizando o máximo, tudo de cacimba (...) a minha cisterna faz oito
ano que não vai água porque, além da dificuldade dos invernos que
não vem muito bom, ela rachou devido às raízes do cajueiro que
atingiram ela (...) agora o caminhão-pipa só pode botar uma pipa pra
abastecer oito casas. Então, não tem condição de botar na minha
sogra, que é muito longe (...) a pipa foi pra Dona Aninha, que lá a
dificuldade é demais, é maior...

– 125 –
Fotos 1 a 4 Dona Ana Maria, quilombola, posa ao lado da cisterna que está inativa há
oito anos, por motivo de rachadura. A cisterna foi doada pelo Ministério do Desenvolvi-
mento Social e Combate à Fome, no ano de 2003, mas, durante esse período, nenhuma
manutenção técnica pública foi providenciada e ela não dispõe de recursos próprios para
fazê-lo. Captar poucos litros diários de água através da rede de solidariedade interna do
quilombo é a única alternativa de que a família dispõe (município de Aracati/CE).
Imagens: Norma Valencio, dezembro de 2013.

Situações como essa nos leva a buscar outras nuances dos desastres,
como a de gestões públicas que, seguidamente, atendem mal as comunida-
des mais indefesas, mas cuja penúria social resultante é o mote para a de-
cretação de novas emergências. As comunidades vão ‘se virando’ através de
suas redes informais de ajuda mútua. Ali, onde a infraestrutura hídrica de
armazenamento segue insuficiente, uma temporada sem chuvas permane-
cerá como sendo um perigo.
Nos casos das secas/estiagens prolongadas, os gestores locais pleiteiam
novas cisternas, carros-pipa, retroescavadeiras, cestas-básicas, dinheiro para
aquisição de água em poços privados e similares; no caso das chuvas/inun-
dações/enchentes/deslizamentos, são pleiteados os cartões-emergência (para

– 126 –
desalojados), cestas-básicas, colchões, kits de eletrodomésticos, o pagamento
de horas-máquina de tratores para a desobstrução de vias, a construção de
pontes, a recuperação de pavimentação asfáltica e obras de contenção. Em
ambas as situações, proliferam os casos nos quais, uma vez obtidos os re-
cursos, uma economia pernóstica em torno do desastre se aquece: dá-se
prioridade de atendimento aos que têm vínculos de compadrio com aque-
les que distribuem os recursos; as práticas de corrupção disseminam-se; no
mercado local, há cobrança de um sobrepreço em produtos essenciais que
a comunidade não consegue obter por outros meios. Além disso, priorida-
des de atendimento se invertem: máquinas pesadas vão trabalhar em obras
de melhoria em bairros menos afetados, mas cuja comunidade exerce mais
pressão sobre a máquina pública; obras realizadas em comunidades cujo
atendimento é urgente, devido a sua grande afetação no desastre, são fei-
tas em desacordo aos anseios e demandas locais; obras nessas comunida-
des ficam inconclusas ou são mal feitas; algumas delas, mesmo custando
acima do preço normal, não duram muito e o seu refazimento é objeto de
solicitação de recursos públicos na próxima emergência; cisternas extras ou
novas vão parar em domicílios ou comércios de gente com influência na
administração local; cestas básicas são desviadas para abastecer a campa-
nha eleitoral de um dado candidato e assim por diante. Nessa lógica polí-
tica, mas também econômica, a decretação de emergência é aquilo que
permite que certos atores usufruam de benefícios. Por isso, no propósito de
redução dos desastres, é inócuo supor que a liberação de vultosos montan-
tes de dinheiro, através de mecanismos burocráticos mais ágeis, seja aquilo
que efetivamente assegurará que dadas emergências não venham a se repe-
tir e que, ainda, sejam as comunidades mais prejudicadas aquelas a serem
contempladas pelas providências públicas compensatórias.
Por isso, talvez valesse a pena considerar a hipótese de que os meca-
nismos de facilitação ao acesso a recursos públicos extraordinários – como
a Medida Provisória (MP) 631, editada pela presidente Dilma, aprovada
no dia 24 e publicada em 26 de dezembro de 2013, que agiliza o repasse
de recursos financeiros e dispensa a apresentação de plano de trabalho para
as ações de resposta – possa se tornar um fator de incremento às práticas
de decretação de emergências, resultando, assim, no efeito inverso àquele
que a esfera federal tentou provocar. A ampla experiência que as burocraci-
as municipais e os vários agentes econômicos foram ganhando nas decre-
tações de emergências ao longo dos últimos anos já os permite adquirir certa
destreza com os papéis e tramitações de forma a atender às exigências do-
cumentais previstas. O governo federal cria meios para retirar obstáculos
da frente dos que não demonstraram, ainda, tal destreza. Uma vez isso, só
falta ‘a ocasião’ para solicitar os recursos extraordinários de liberação rápi-
da. Acompanham-se as nuvens nos céus para descrever, num decreto, que

– 127 –
perigos essas se tornaram e que emergências geraram (algumas, que nem
sequer ocorreram de fato). As suspeitas de vício na condução de procedi-
mentos de acesso a recursos extraordinários relacionados aos desastres não
é um disparate. Está de tal modo presente na relação do nível federal com
administração pública dos municípios que a referida medida provisória já
prevê, em seu Artigo 5.o-A:
Constatada, a qualquer tempo, nas ações de prevenção, de resposta
e de recuperação, a presença de vícios nos documentos apresenta-
dos, a inexistência de risco de desastre, da situação de emergência
ou do estado de calamidade pública declarados ou a inexecução do
objeto, o ato administrativo que tenha autorizado a realização da
transferência obrigatória perderá seus efeitos, ficando o ente bene-
ficiário obrigado a devolver os valores repassados devidamente
atualizados (BRASIL, 2013).

O contexto de edição desta MP foi, sobretudo, o de decretação de


emergências, no mês de dezembro de 2013, no estado do Espírito Santo.
O governo federal, na gestão Dilma, já havia liberado dezenas de milhões
de reais para o Espírito Santo (governado por Renato Casagrande) no perí-
odo de dezembro/2010 a março/2011, quando o referido estado tinha mui-
tos dos seus municípios cobertos por decretos de emergências relacionados
às chuvas (36 emergências envolvendo 31 municípios, correspondendo a
39,74 % do total de municípios do estado). E, apesar disso, entre obras ainda
no papel, em andamento e outras sequer iniciadas, o ano de 2013 se encer-
rou com o estado do Espírito Santo tendo novamente grande parte dos seus
municípios em emergência (54 municípios, equivalente a 69,23% do total
estadual). A presidente Dilma sobrevoou a região na véspera do Natal de
2013 e informou ao mesmo governador Casagrande a liberação de R$ 600
milhões para esta Unidade da Federação que estava lidando, novamente,
com o mesmo problema. Dentre os 22 municípios capixabas que, no espa-
ço de três anos, decretaram o mesmo tipo de emergência estavam os de
Colatina, Itapemirim, Afonso Cláudio, Cariacica, Jerônimo Monteiro,
Itaguaçu, Viana, dentre outros. É preciso, pois, considerar que a redução dos
desastres não depende apenas de medidas para o destravamento burocrá-
tico, como crê o governo federal.
As situações de abandono social nessas ocasiões se exprimem de vari-
adas maneiras. Moradias danificadas ou destruídas expõem demasiadamen-
te as famílias mais empobrecidas que não podem contar com o apoio de
parentes ou amigos para acolhê-los. Os abrigos provisórios (em ginásios es-
portivos, escolas ou acampamentos) são apresentados, pela defesa civil ou
assistência social, como soluções paliativas; porém, os gestores locais ajus-

– 128 –
tam e constrangem os múltiplos espaços privados das famílias ali inseridas
às mesmas regras de convivência (estabelecidas por um administrator ex-
terno), além de haver um reforço ostensivo das medidas de identificação
individual dos desabrigados, no geral, sob o propósito de suspensão ou al-
teração de seus direitos individuais de circulação, de exercício de hábitos
pessoais e afins. Como advertem Das e Poole (2008), a prática de exigên-
cia de identificação em casos similares serve tanto para afirmar o distan-
ciamento social entre quem faz a exigência de saber quem é o outro e quem
se submete a revelar-se quanto para exprimir a autoridade do primeiro para
modificar o cerne da vida diária do último. Nesse sentido, muito frequen-
temente as classificações de inferioridade social, como a de desalojados ou
desabrigados, tem servido para sinalizar que esses grupos podem receber um
tratamento técnico rude, como vários estudos sociológicos sobre diversos
casos brasileiros demonstraram, com destaque ao recorte de gênero
(VALENCIO et al., 2011; VALENCIO, 2009; SIENA, 2009).
No concernente ao pagamento do auxílio-aluguel às famílias desa-
brigadas no contexto de desastres, vários entraves práticos têm sido identi-
ficados, tais como:
t a discriminação do mercado imobiliário, especialmente, em relação
às famílias numerosas e com presença de crianças;
t a baixa oferta de moradia, do mercado imobiliário formal e informal
local, em áreas tidas como seguras pela defesa civil e num valor
monetário correspondente ao do auxílio-aluguel;
t a disparada dos preços no mercado imobiliário local, impedindo a
família de arcar com tais custos adicionais, além dos custos da ener-
gia elétrica, da água encanada, da alimentação, do transporte cole-
tivo etc (sobretudo, quando a perda da moradia e dos meios de
trabalho foi simultânea);
t o auxílio-aluguel que cessa antes que uma solução de moradia per-
manente seja viabilizada, dentre outros.

No que tange aos desafios de recuperação das famílias afetadas nos


desastres, a situação de abandono social tem se caracterizado entre outros:
t pela falta de perspectiva de que venham ser contempladas com uni-
dades habitacionais dentre aquelas erguidas (morosamente) no res-
pectivo município;
t pela obstrução de autoridades locais à possibilidade de retornarem
ao lugar onde se situa a moradia interditada, no entorno da qual
nenhuma infraestrutura foi realizada;

– 129 –
t pela considerável distância geográfica que as escassas áreas destina-
das à reconstrução guardam em relação ao lugar original de vivência
das famílias;
t por fim, no cerceamento constante do direito do chefe da família em
obter os esclarecimentos necessários no atinente aos projetos públi-
cos de reconstrução (por exemplo, no referente ao tempo de execu-
ção e de entrega dos mesmos e na adoção dos critérios de distribuição,
dentre outros) (VALENCIO et al., 2011).

A intersecção entre corrupção e os agravos à saúde pública é outro as-


pecto da proliferação de decretação de emergências, conforme demonstrou
um dos casos mais recentes, ocorrido em Traipu/AL. Durante uma emergên-
cia relacionada à seca, houve denúncias, comprovadas, de um esquema de
negócios envolvendo a utilização de tanques contaminados para o abaste-
cimento de água em carros pipa que serviam comunidades que não tinham
alternativas de acesso à água potável. Isso, somado ao consumo de água con-
taminada de outras fontes locais (poços, cacimbas) formou um ambiente
propício ao surto de diarreia que ocorreu nesta localidade e em outros 24
municípios alagoanos.2 A administração local de Traipu esteve envolvida,
no ano de 2011, com crimes contra a administração pública devido ao des-
vio de recursos através de fraudes em licitação, programas assistenciais ir-
regulares, dentre outros.3
Ainda quando não haja indícios de corrupção, os casos de contamina-
ção, pela bactéria E. coli, de poços públicos que servem à captação de água
através de carros-pipa em municípios nordestinos em emergências relacio-

2. No ano de 2004, a Controladoria Geral da União já havia feito alentado relatório evi-
denciando o mal uso do dinheiro público que chegava das fontes federais ao município
de Traipu/AL (http://sistemas.cgu.gov.br/relats/uploads/10-AL-Traipu.pdf). O caso de
Traipu/AL e de outros municípios alagoanos onde houve a associação de surtos de diarreia
e as formas emergenciais de abastecimento hídricos repercutiu na imprensa e estão dis-
poníveis no Portal G1 (http://g1.globo.com/al/alagoas/noticia/2013/07/surto-de-diarreia-
atinge-25-municipios-de-al-e-registra-45-mortes-neste-ano.html), no Portal R7 (http://
www.isaude.net/pt-BR/noticia/35432/saude-publica/—alagoas-registra-aumento-de-77-
dos-casos-de-diarreia-com-37-mortes) .
3. Esse foi um dos raros casos em que a grande imprensa não deu foco privilegiado nas con-
dições atmosféricas, mas na relação sociopolítica envolvida na indústria da seca. As ações
conjuntas do Grupo de Atuação Especializada de Combate ao Crime Organizado e da
Força Nacional permitiu o recolhimento de vasta documentação comprovando o envol-
vimento do prefeito de Traipu à época, de funcionários públicos e de empresa-fantasma
para articular a formação de beneficiários do falso programa social local, cf. se encontra
no Portal UOL (http://tnh1.ne10.uol.com.br/noticia/politica/2011/10/21/159351/fraude-
em-traipu-incluia-versao-local-do-bolsa-familia).

– 130 –
nadas à seca é mais frequente do que as denúncias alcançam. Alguns mu-
nicípios mantêm o quanto podem essa captação para que não tenham que
recorrer à captação em poços privados, onde a água é cobrada pelos propri-
etários, que não se sentem solidários com o contexto adverso das comuni-
dades ao derredor e auferem lucro com isso. Num dos dois poços públicos
de captação de água para carros-pipa no município de Aracati/CE, na se-
gunda decretação de emergência por seca no ano de 2013, foi comprovada
a presença da bactéria E. coli, o que exigiu a compra de água em poço priva-
do, com ônus financeiro indesejável para a gestão municipal, confirmou-nos
em entrevista a coordenação da defesa civil local.
Enquanto águas de qualidade duvidosa, para o consumo humano, são
captadas em cacimbas e poços que se encontram no limite mínimo da dis-
ponibilidade hídrica, muitas comunidades isoladas, ‘castigadas pela seca’,
seguem testemunhando os seus territórios serem recortados por grandes pro-
jetos hídricos, cujas águas se destinam prioritariamente a outros atores mais
capitalizados (em perímetros irrigados) ou a outras localidades, que se en-
contram num patamar mais elevado de desenvolvimento (segundo o Índi-
ce de Desenvolvimento Humano Municipal, IDHM). A exploração da
disponibilidade hídrica subterrânea ou superficial por atores extraterritoriais
é visto na política regional, como algo aceitável e conecta-se, por esta for-
ma perversa, o atraso e o progresso. Daí, comunidades sem recursos de voz
se resignarem à dependência mais estrita com as águas pluviais para logra-
rem o abastecimento de suas cisternas, cacimbas, poços e afins, esperando
dos céus aquilo que a infraestrutura hídrica de armazenamento e distribui-
ção já existente no espaço a derredor não lhes destina.
Um caso emblemático é o do interior do Ceará, onde os megaem-
preendimentos hídricos de Orós e do Castanhão se fizeram acompanhar, a
partir dos anos noventa, das infraestruturas de distribuição de grande distância
denominadas Canal do Trabalhador e Canal da Integração. Essas infraestru-
turas visaram levar, prioritariamente, a água do interior do estado para a re-
gião metropolitana de Fortaleza e também para o complexo portuário e
industrial do Pecém. A grande maioria dos municípios atravessados por es-
ses canais persistem em sucessivas emergências, relacionadas predominante-
mente a estiagens prolongadas ou secas, tornando-se esse o estado normal da
administração pública local na relação com as comunidades desbastecidas,
que veem a água ‘escapar’ da localidade em que habitam (Tabela 6).
Por fim, mas não menos importante, a quarta pista: os desastres apa-
rentam ser crises pontuais; porém, se analisados de forma agregada, para
capturá-los como um aspecto do contexto macrossocial nacional, os mes-
mos revelam a face hídrica de um modelo de desenvolvimento anacrônico,
no qual o Estado brasileiro insiste em permanecer.

– 131 –
Tabela 6 Número de emergências relacionadas às estiagens prolongadas ou
secas nos municípios no percurso do Canal do Trabalhador e do
Canal da Integração, período 2004-2013.

Quantidade de
Quantidade
emergências
IDHM de
Município relacionadas a
(2010) emergências
estiagens
no período
prolongadas ou secas
Ocara (Canal da Integração) 0,594 15 14
Caucaia (RM Fortaleza)
0,682 15 11
(Canal da Integração)
Limoreiro do Norte (Canal da
0,682 14 12
Integração)
Alto Santo (Canal da Integração) 0,601 13 10
Morada Nova (Canal da Integração) 0,610 13 11
Palhano(Canal do Trabalhador) 0,638 13 10
São Gonçalo do Amarante (RM
0,665 13 12
Fortaleza) (Canal da Integração)
Jaguaribara (Canal da Integração) 0,618 12 12
Cascavel (RM Fortaleza) (Canal do
0,646 11 10
Trabalhador) (Canal da Integração)
Russas (Canal da Integração) 0,674 11 9
Ibicuitinga(Canal da Integração) 0,606 10 9
Maranguape (RM Fortaleza)
0,659 10 10
(Canal da Integração)
Itaiçaba (Canal do Trabalhador) 0,656 8 6
Chorozinho (RM Fortaleza)
0,604 7 6
(Canal da Integração)
Pacajus (RM Fortaleza) (Canal do
0,659 6 5
Trabalhador) (Canal da Integração)
Maracanau (RM Fortaleza)
0,686 4 4
(Canal da Integração)
Pacatuba (RM Fortaleza)
0,675 1 1
(Canal da Integração)
Itaitinga (RM Fortaleza)
0,626 0 0
(Canal da Integração)
Horizonte (RM Fortaleza)
0,658 0 0
(Canal da Integração)
Fortaleza (capital)
0,754 0 0
(Canal da Integração)

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da Secretaria Nacional de Defesa
Civil do Ministério da Integração Nacional, SEDEC/MI.

– 132 –
O ANTIDESENVOLVIMENTO COMO COMBUSTÍVEL
PARA A CRONICIDADE DOS DESASTRES

O modelo de desenvolvimento que o Brasil segue adotando neste sécu-


lo XXI não tem um foco no amadurecimento de uma sociedade de direitos;
ao contrário, os direitos consolidados no arcabouço legal são gradualmente
passíveis a negociação. A propagação das práticas técnicas de mediação dos
conflitos ambientais, filtradas por estruturas decisórias onde prepondera
acentuada assimetria política dos atores em disputa, sinaliza para a incon-
testabilidade da vontade do Estado em aliança com os grandes capitais. As
políticas que propugnam avanços sociais para a nação são continuamente
secundarizadas nas questionáveis escolhas de investimento público – sobre-
tudo cedendo à sedução das megaobras –, na inoperância inerente ao
gigantismo da dispendiosa estrutura burocrática e na má qualidade dos ser-
viços de saúde pública, saneamento, educação, habitação, segurança públi-
ca, transporte, dentre outros.3
A busca pelo crescimento econômico foi uma espécie de slogan e modus
operandi do modelo de desenvolvimento adotado no período da ditadura
militar (1964-1985), o Estado de Exceção em sua plena manifestação. En-
tretanto, tal discurso e prática não foram descartados na redemocratização
do país no pós-1985. Apenas se atualizaram nas versões privatistas, as quais
tomaram respectivamente o rótulo de neoliberalismo, nos governos Fer-
nando Henrique Cardoso (nas duas gestões), e de neodesenvolvimentismo
dos governos Lula (nas duas gestões) e Dilma (na sua primeira gestão que
ora se encerra). As referidas atualizações visaram manter e ajustar o mes-
mo modelo.
Embora sem perder a preocupação central com a proteção ao capital
concentrado, os ajustes feitos no modelo de desenvolvimento serviram para
dar aparente sincronia do mesmo com as recomendações oriundas do âm-
bito multilateral, como as emanadas pelo Programa das Nações Unidas para
o Desenvolvimento (PNUD) – que, desde o ano de 1990, quando do lan-
çamento do Índice do Desenvolvimento Humano (IDH), apontou para a
necessidade de priorização de políticas sociais – e as do Relatório Brutland
(datado de 1987), que conclamavam as nações para que, em escala global,
passassem a se pautar por um novo paradigma, ambientalmente mais res-
ponsável, denominado como desenvolvimento sustentável. Os ajustes que
o Estado brasileiro fez para absorver essas recomendações foram mais apa-
rentes do que efetivos, uma vez que não abriu mão de dar continuidade a
práticas ambientalmente avassaladoras de produção e consumo. Nas me-
trópoles e cidades médias, as periferias urbanas proliferaram e um merca-
do de trabalho precário mantém-se; no campo, milhões de pequenos

– 133 –
agricultores foram expulsos pelo agronegócio e pela extração e exportação
dos recursos naturais, como identifica Leroy (2010), que complementa:
É assim que povos indígenas, comunidades de pescadores artesanais,
seringueiros, pequenos produtores rurais, quilombolas, geraiseiros,
barranqueiros, caiçaras e tantos outros perdem sua identidade, seu
território, seus meios de viver e de se reproduzir. As grandes obras e
os empreendimentos que os expulsaram darão a alguns um traba-
lho provisório. Outros venderão sua força de trabalho e sua saúde
na cidade e na indústria. A maioria se tornará cliente dos programas
sociais compensatórios ou se virará na economia informal, no bis-
cate, no contrabando ou no narcotráfico. Esses povos, essas comu-
nidades, essas pessoas, migrando para um futuro improvável ou
ficando lá onde o desenvolvimento os abateu, são destroços de um
tipo de genocídio cultural (LEROY, 2010, p. 113-4).

De fato, a apropriação do tema ambiental pelo Estado brasileiro foi


superficial e, muitas vezes, deturpada, encaixada marginalmente nas alian-
ças privatistas, populistas e assistencialistas que compõem o quadro mais
geral de governabilidade. Os dispositivos ambientais4 foram produzidos e am-
pliados nas últimas décadas para ajustar práticas sociais – de acesso aos re-
cursos naturais, de descarte de resíduos, de emissão de poluentes etc –
entendidas como danosas aos ecossistemas correspondentes. A seletividade
social de aplicação desses dispositivos (na forma de operabilidade técnica
da legislação, da fiscalização, da penalização) apontou amiúde na direção
dos que incomodavam a diretiva econômica do Estado e, mais recentemente,
afrouxou explicitamente os trâmites e exigências de responsabilidade
socioambiental para investimentos de grande porte que são considerados
pelos gestores públicos como a vitrine do desenvolvimento do país, do es-
tado e do município.
Grandes capitais se embrenham velozmente pela Amazônia brasilei-
ra, tal como já vinha ocorrendo no período da ditadura militar. O Estado
voltou a disponibilizar esse espaço, ecológica e culturalmente sensível e dife-
renciado, para a exploração econômica de grande escala, o que vem resultan-
do em processos de desterritorialização compulsória de povos tradicionais e/
ou na inviabilização de seus respectivos modos de vida. Simultaneamente,
ocorre o desmantelamento arbitrário da capacidade de fiscalização dos ór-
gãos ambientais; o retorno da exploração exaustiva da força de trabalho nos
canteiros de megaobras e sem o devido cumprimento de direitos trabalhis-

4. Referimo-nos numa adaptação à perspectiva foucaultiana.

– 134 –
tas;5 a migração e explosão demográfica nas periferias das maiores cidades
da região, que são desatendidas especialmente em relação ao saneamento,
dentre outros efeitos socioambientais nefastos. Não por acaso, esse proces-
so de desmantelamento induzido da região, para recriá-la com a imposição
dos preceitos e da presença de novos agentes econômicos dominantes, vai
coincidindo com a ocorrência e recorrência de desastres. Na dilaceração de
comunidades, as alternativas precárias de relocalização de famílias empo-
brecidas as expõem a toda sorte de perigos, conhecidos ou inéditos, com os
quais não têm condições próprias de lidar. Os desastres se tornam conse-
quências previsíveis diante a profusão de surgimento de novos lugares pre-
cários, que se apresentam como mais suscetíveis e se caracterizam pela
acentuada incapacidade das autoridades locais de atendê-los a contento. A
decretação de emergência é desencadeada não apenas como uma consta-
tação pública de uma circunstância pontual de adversidade grave nesses
lugares precários, interconectada ou não com danos e prejuízos severos a
outros lugares do tecido municipal, mas como um indício das implicações
perversas dessa modernidade anômala.6 Nesta macrorregião, as capitais dos
estados se mantêm como grandes polos de atração populacional e em cujas
bordas espaciais desatendidas incrementam-se os contingentes mais afeta-
dos nos desastres, isto é, os que ficarão desalojados ou desabrigados.
Num recorte quinquenal incompleto, no período de janeiro de 2010
a junho de 2014, as inundações/enchentes foram as alegações oficialmente
dadas para a decretação de emergência em diversas capitais da referida re-
gião. Em Manaus/AM, isso ocorreu duas vezes (01 no ano de 2012 e 01 em
2013); em Rio Branco/AC, ocorreu sete vezes (01 em 2010, 01 em 2011,
02 em 2013, 01 em 2013 e 02 em 2014); em Boa Vista/RR, ocorreu 01 vez

5. Um dos casos recentes foi o das manifestações de trabalhadores da UHE de Jirau, no com-
plexo hidrelétrico do rio Madeira, em 2011. Quase uma centena de operários denunciou
trabalhar sem a garantia de seus direitos correspondentes, o que resultou na fiscalização
das autoridades competentes. O Ministério Público do Trabalho ajuizou ação civil pú-
blica contra os responsáveis pela obra e, em meio às manifestações dos trabalhadores, uma
tropa da Força Nacional foi solicitada pelo governo estadual ao federal e para lá foi
deslocada, atuando na segurança no canteiro de obra e ampliando o contexto de repres-
são. Houve repercussão na imprensa nacional e estadual, dentre outros em: Rondônia
dinâmica <http://www.rondoniadinamica.com/arquivo/sindsef-funcionarios-abandona-
dos-de-jirau-pedem-socorro-,33761.shtml>; Tudo Rondônia <http://www.tudorondonia.
com/noticias/camargo-correa-mata-mais-um-operario-em-jirau-e-governo-aumenta-
repressao-contra-os-trabalhadores-,35374.shtml>; Portal G1 <http://g1.globo.com/brasil
/noticia/2012/03/rondonia-pede-reforco-da-forca-nacional-para-seguranca-de-jirau.html>.
6. Modernidade anômala é o conceito cunhado por José de Souza Martins (2000) para de-
signar o processo civilizacional brasileiro, caracterizado pela cidadania inconclusa e pela
naturalização do inchamento do aparato burocrático do Estado, o qual não corresponde
e mesmo obstaculiza a interlocução com a parte empobrecida da sociedade civil.

– 135 –
(em 2011); em Macapá/AP, 01 vez em 2013; por fim, em Porto Velho, 02
vezes somente até meados do ano de 2014.
Em Porto Velho/RO, ocorreu o caso mais emblemático e recente dessa
modernidade anômala.
Os megaempreendimentos hídricos do complexo do rio Madeira (as
UHEs de Jirau e de Santo Antônio) suscitaram um fluxo migratório consi-
derável para Rondônia e a periferia urbana da capital inchou. No início do
ano de 2014, uma cheia atípica do rio Madeira – que alguns especialistas,
analistas ambientais e movimentos sociais atribuíram aos referidos empreen-
dimentos7 – atingiu essas áreas periféricas (como os bairros do Mucambo,
Areal e Triângulo). Além dessas áreas residenciais, outras áreas com gran-
des estruturas públicas da cidade foram prejudicadas (o museu ferroviário,
o mercado central, as instalações da justiça eleitoral e outros). Outros mu-
nicípios rondonienses entraram em emergência e essa cheia do Madeira
obstruiu a comunicação terrestre do estado do Acre com o restante do país.
A primeira decretação de situação de emergência em Porto Velho se deu em
13 de fevereiro, mas foi elevada a estado de calamidade pública em 27 de
fevereiro. Passado pouco mais de um mês, foi o governo estadual de Ron-
dônia quem decretou estado de calamidade pública.
Como em todos os casos de desastre, cada família em Porto Velho vi-
veu essa crise de um modo diferente.
Por exemplo, Dona Maria Alice, uma idosa, moradora do bairro de
Areal, 83 anos, teve que sair às pressas de sua moradia, o que fez com o
auxílio de vizinhos. Ficou abrigada, por dois meses, num estabelecimento
religioso. Poucos objetos de sua moradia puderam ser recolhidos, nos con-
ta ela, como um guarda-roupa velho que, quando foi erguido para ser car-
regado num veículo, desmantelou-se por inteiro. Quando os que a auxiliavam
fizeram menção ao descarte da peça, Dona Maria Alice pediu que uma das
portas do guarda-roupa fosse preservada e esta permaneceu consigo, como
um trunfo, e lhe deu ânimo na tarefa de limpeza da lama da casa e de re-
composição das suas rotinas no retorno à mesma. Na dita porta, no seu lado
interno, havia um espelho onde Dona Maria Alice tinha por hábito ver-se

7. Ver: (1) o artigo de opinião do professor Marco Antônio Domingues Teixeira (UNIR)
<http://www.rondoniaovivo.com.br/noticias/artigo-o-rio-madeira-e-a-enchente-do-seculo-
por-marco-teixeira/112422#.U8GkMvldXX1>; (2) o artigo de Felipe Milanez, onde se
encontra a entrevista ao especialista P. Fearnside <http://www.cartacapital.com.br/blogs/
blog-do-milanez/cheias-no-rio-madeira-um-desastre-anunciado-7430.html> e (3) a ma-
nifestação do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) sobre o assunto <http://
www.mabnacional.org.br/en/node/3326>.

– 136 –
diariamente refletida, numa composição simbólica com as fotos de seus
entes queridos, as quais estavam ali todas coladas ao redor (Fotos 5 e 6).

Fotos 5 e 6 Num dos bairros mais inundados em Porto Velho, quando as águas baixa-
ram foi a hora dos moradores limparem suas moradias e retornarem. Dona Maria Alice
foi uma delas e nos mostra a porta de seu guarda-roupa, através da qual entrelaça cotidia-
namente a sua imagem com a de pessoas com a qual está afetivamente ligada.
Fotos e espelho se mesclam simbolicamente. Foi um trunfo para ela preservar essa porta
quando o desastre danificou os seus demais bens móveis e pertences.
Imagens: Norma Valencio, maio de 2014.

Com receio de saques, moradores dessas periferias urbanas e de comu-


nidades ribeirinhas próximas resistiram o quanto puderam em suas mora-
dias, como foi o caso de Dona Alcilene, moradora do bairro Areal Central,
cuja família ficou confinada no andar superior da casa, tentando salvar a
cada dia alguns dos bens ameaçados pela elevação ou contaminação da água
que a tudo invadia (Fotos 7 a 9).
Mas, à medida que o volume de água subia rapidamente, os riscos à
permanência das famílias nos núcleos periféricos aumentavam, em razão
de possibilidade de ataques de animais silvestres, especialmente de cobras
venenosas, de doenças relacionadas ao contato prolongado com água con-
taminada ou pelo comprometimento sério da estrutura física da casa. Os
que ficaram sem alternativas na rede de relações, cederam à ida aos abrigos
provisórios montados em estabelecimentos escolares, religiosos e no gran-
de acampamento no parque de exposição. Nos abrigos que visitamos, cha-
mou a atenção as restrições que o meio técnico havia imposto à possibilidade

– 137 –
de autoexpressão dos chefes de famílias sobre o desastre. No abrigo provi-
sório estruturado nas instalações da Escola Estadual de Ensino Fundamen-
tal Franklin Delano Roosevelt, chefes de família nos disseram que estavam
proibidos de conceder entrevistas e tinham receio em fazê-lo e, em decor-
rência, sofrerem o risco de retaliação da assistência social (Fotos 10 e 11).

Fotos 7 a 9 Uma pontezinha improvisada dava acesso à moradia de Dona Alcilene


e de sua família. Por muitas semanas, a família sofreu os apuros de viver numa
área cuja inundação gerou prejuízos materiais, extensíveis aos vizinhos, que
destacavam os bens perdidos no meio da rua. Dona Alcilene tenta restaurar as
condições de uso do sofá da sala, que ficou sob as águas da enchente.
Imagens: Norma Valencio, maio de 2014

– 138 –
Fotos 10 e 11 Com as moradias destruídas ou danificadas, as famílias afetadas no bairro
precário encontram na escola um espaço provisório para o abrigo, mas as regras técnicas
são muito claras: ajustem-se e obedeçam! Imagens: Norma Valencio, maio de 2014.
No acampamento no parque de exposições, um técnico que supervisi-
onava o local permitiu que entrevistássemos apenas duas das famílias que
refletiam a sua visão sobre quem estava mais ou menos adaptado às roti-
nas ali impostas (Fotos 12 a 14). A família considerada menos adaptada era
a de um indígena residente numa das comunidades ribeirinhas próximas à
capital. O chefe da família – que estava desempregado e havia trabalhado
por meses em serviços de topografia para uma empresa que, segundo ele,
lhe devia o salário correspondente – nos contou que sua casa tinha sido
tomada por uma lama preta, viscosa, e que técnicos da defesa civil dissua-
diram a família a permanecer ali, pois disseram ser arriscado o contato com
aquela água, mas sem explicar-lhe de que substância se tratava. Ocorre que,
no acampamento, sua extensa prole era maior do que o que comportava a
barraca padrão cedida pela defesa civil e, somado ao calor insuportável no
recinto, as suas crianças e adolescentes tinham que ficar a maior parte do
tempo do lado de fora. As tensões dos filhos com outros acampados e as
advertências verbais recebidas chegaram ao ponto deste indígena pedir para
que a sua mãe acolhesse provisoriamente alguns dos seus filhos. No meio
da entrevista, ocorrida em maio de 2014, chegou-nos a notícia de que o
gestor do abrigo, comandante de uma força militar, haveria decidido que, a
partir do dia seguinte, as visitas não poderiam adentrar mais ao recinto do
acampamento, o que, de imediato, surtiu a preocupação e tristeza desta
família com a piora da qualidade no contato quase diário com o restante
de seus membros que se encontravam ‘do lado de fora’, os quais não podi-

– 139 –
am mais fazer refeições ali e nem passar as poucas horas de convivência com
que vinham se acostumando.

Fotos 12 a 14 O acampamento abriga os que fica nas beiradas do progresso, na cidade


moderna que fica ao fundo. Na visão técnica, os mais adaptados ao acampamento são os
que replicam ao máximo as funcionalidades da casa moderna no recinto de uma barraca
(divisão de ambientes, armários, camas) e não reclamam de nada. Os menos adaptados
são as famílias cuja estrutura e as rotinas da vida não cabem na barraca (dormem no
chão, as roupas ficam dependuradas, o ambiente é multifuncional) e sofrem com as regras
impostas por terceiros. Imagens: Norma Valencio, maio de 2014

Este panorama auxilia-nos a compreender as inquietações de Ribeiro


(2012) em relação a atual concepção de desenvolvimento que, segundo o
autor, tem as características de um campo de poder, envolvendo múltiplos
atores, nacionais e internacionais, que ‘atropelam’ os atores mais frágeis:
(...) O campo do desenvolvimento é constituído de atores que repre-
sentam vários segmentos de populações locais (elites locais e líderes
de movimentos sociais, por exemplo); empresários privados, funcio-
nários e políticos em todos os níveis de governo; pessoal de corporações
nacionais, internacionais e transnacionais (diferentes tipos de emprei-
teiros e consultores, por exemplo); e pessoal de organizações interna-
cionais de desenvolvimento (funcionários de agências multilaterais e
bancos regionais, por exemplo). As instituições são partes importan-

– 140 –
tes deste campo; elas incluem vários tipos de organizações governa-
mentais e não-governamentais (ONGs) igrejas, sindicatos, agências
multilaterais, entidades industriais e corporações financeiras (...) os
atores e instituições menos poderosos são grupos locais vulnera-
bilizados por iniciativas de desenvolvimento. Iniciativas que destro-
em as relações entre povos indígenas, seus territórios e culturas – como
reassentamentos realizados para construir represas – fornecem o ce-
nário mais óbvio de vulnerabilidade de populações locais vis-à-vis “de-
senvolvimento” (RIBEIRO, 2012, p. 197-200).

Uma expressão deste campo é o caso das obras da usina hidroelétrica


de Belo Monte, no estado do Pará, a qual muitos dos povos tradicionais lo-
cais, movimentos ambientalistas e representantes da comunidade científi-
ca tentam frear enquanto os empreendedores e o governo federal buscam
meios legais para respaldar a sua continuidade e avanço. Os atores mais
poderosos procuram estabelecer a incontestabilidade pública da referida
obra, cuja materialização abre caminho para outros investimentos de grande
porte e acentua o caráter expansivo do capital na Amazônia brasileira, e o
fazem através de uma relação política, cada vez mais, abertamente autori-
tária. Como identificou Bermann (2012), a construção da UHE Belo Monte
é um paradigma da autocracia energética, que induz (sobretudo através do
Programa de Aceleração do Crescimento – PAC) a expansão da hidroele-
tricidade na região amazônica, apesar das consequências socioambientais
devastadoras, especialmente, para os povos tradicionais locais. E continua:
Os rios amazônicos (Madeira, Tocantins, Araguaia, Xingu e Tapajós)
respondem por cerca de 63% do assim chamado “potencial hidrelé-
trico” (...) Verifica-se que é efetivamente o território amazônico que
vai sofrer a pressão do capital internacional para transformar seus
rios em jazidas de megawatts (...) A tendência crescente de anúnci-
os de construção de hidrelétricas geralmente se ampara na ideia sem-
pre iminente de uma crise de suprimento anunciada para um futuro
próximo. É recorrente o argumento do “apagão” para justificar es-
sas megaobras (...) Em 20 de dezembro de 2011, foi entregue ao
governo brasileiro, no gabinete da Presidência, uma petição com mais
de 1 milhão e trezentas e cinquenta mil assinaturas recolhidas em
um mês, solicitando “a interrupção imediata das obras de Belo
Monte e a abertura de um amplo debate que convoque os brasilei-
ros para refletir e opinar sobre que tipo de progresso que estamos
dispostos a seguir, conscientes das consequências das nossas deci-
sões” (...) A resposta do “Governo Popular e Democrático”, uma
autodenominação empregada pelo Partido dos Trabalhadores (PT)

– 141 –
desde o governo Lula, e agora com o governo Dilma, foi negativa e
definitiva: “As obras não serão suspensas em nenhuma hipótese!”
(BERMANN, 2012, p. 8-19).

Por seu turno, Boito Jr. (2012) denomina como neodesenvolvimento


a frente política populista que congregou o Partido dos Trabalhadores (PT),
uma fração do sindicalismo e da burguesia industrial brasileira – especial-
mente aquela vinculada aos negócios da mineração, do agronegócio, da cons-
trução civil pesada e outros negócios de grande escala – com interesses
mútuos na manutenção de uma visão econômica produtivista. Sendo vito-
riosa, nos governos Lula e Dilma, essa frente implantou e consolidou um
programa de benefícios mínimos voltado para os brasileiros que vivem abaixo
da linha da pobreza, tratando-os como uma massa que, não tendo espaço
no projeto de poder, se sujeita a ser convocada nos processos eleitorais para
votar nos candidatos conforme os interesses da referida frente. Destacam-
se o Programa Bolsa Família e o de Benefício de Prestação Continuada
(BPC), voltados para uma massa pauperizada e marginal que, segundo o
referido autor, é parte importante da base eleitoral desta frente, dando con-
tinuidade à tradição populista da política brasileira. Nessa tradição, pros-
segue Boito Jr., os ganhos sociais obtidos podem ser relativizados, porque
mantêm essa massa, política e ideologicamente, dependente das iniciativas
governamentais.
A constância dessa consciência social alienada tornou-se, assim, parte
constitutiva de um projeto de poder na atual fase de redemocratização do
Brasil e isso resulta, dentre outros efeitos deletérios, na contínua constru-
ção social dos riscos de desastres no país. Uma consciência social alienada
naturaliza a inclusão social perversa, isto é, neutraliza o exercício da crítica
na prática política dos indivíduos e grupos sociais que passam por situações
recorrentes de privação material. Mais do que isso, incita-os a alardear a ação
assistencialista operada pelo Estado como sendo uma forma aceitável de ci-
dadania. Gera nos assistidos o receio de perder o seu patamar diminuto de
consumo recém-conquistado e esse receio os torna algo menos que sujeitos,
facilmente desprezados e nulificados, como bem asseverou Martins (2003,
p. 13), que arremata: “Na medida em que hoje o objetivo do desenvolvi-
mento econômico é a própria economia, podemos defini-lo como um mo-
delo de antidesenvolvimento”.
Ao considerarmos a atual vigência de um modelo de antidesenvolvi-
mento, podemos compreender as razões pelas quais os benefícios das políti-
cas públicas aos grupos sociais em desvantagem seguirão homeopaticamente
distribuídos, suscitando uma corrosão contínua do amálgama social. As
forças econômicas e políticas dominantes que se sentem confortáveis nes-

– 142 –
te modelo perseverarão no uso instrumental dos recursos públicos e agirão
para minar e dissolver, desde a base, os frágeis esforços antagônicos que
porventura intencionarem propor à sociedade brasileira experimentos de um
fazer político alternativo. Tal esvaziamento de possibilidades no universo
democrático nacional não é de pronto notado pela sociedade, mas tanto no
nível macro como no nível microssocial um clima de incertezas e de falsas
certezas se espalha. Em dezembro de 2013, às vésperas do início oficial das
disputas eleitorais presidenciais, as massas ouviram, atemorizadas, o pro-
nunciamento do Grande Pai, o ex-presidente Lula, em publicidade televisiva
do PT,8 no qual afirmou que os outros candidatos (à exceção da candidata
do PT, Dilma) ameaçavam acabar com o Programa Bolsa-Família, o carro
chefe do assistencialismo. Até então, nenhum potencial candidato havia
proferido esse tipo de afirmação contra o referido Programa, mas Lula, atra-
vés de sua dominação carismática e, ainda, protegido por sua condição de
não candidato e presidente de honra do PT, apresentava esse cenário em re-
lação aos eventuais oponentes à Dilma a fim de blindá-la antecipadamen-
te nas disputas que, oficialmente, sequer tinham começado.
Assim, não por acaso, mas por decorrência, as políticas socioambientais
mais consistentes não se firmam devido às tensões com a política econô-
mica expansionista, que repercutem na deterioração dos elementos organiza-
tivos da vida comunitária cotidiana, a começar por sua relação com a água.

PARA CONCLUIR: DESAFIOS DE CONHECIMENTO E AÇÃO


PARA NOVOS HORIZONTES

Para vencer alguns dos mais importantes desafios de conhecimento e


de ação no tema dos desastres, no Brasil, é crucial que se inicie por re-
conhecê-los como crises de caráter eminentemente social. Os danos e per-
das vividos no espaço de uma dada comunidade são apenas uma das
dimensões dessa crise, pois muitos dos fatores explicativos da mesma não
estão contidos na cena desoladora. Há que atentar-se sobre aquilo que o
meio técnico-operacional de defesa civil considera como sendo a causa pon-
tual de cada desastre; mas, convêm que façamos um esforço alternativo de
articulação temporal e espacial entre as inúmeras práticas de decretação de
emergência a fim de termos um posicionamento mais crítico frente aos ar-
gumentos oficiais em torno da irresolução dessas crises.

8. Nas palavras de Lula: “(…) Tem políticos que até hoje defendem cortar as verbas do Bolsa
Família. São os mesmos que ficam falando que é preciso oferecer porta de saída. Como se o
Bolsa Família já não fosse uma grande porta de saída da miséria e a grande porta de entrada
para o futuro melhor (...) Mas, quer saber? Deixa eles falarem. Porque o Bolsa-Família é como
um bolo, quando mais batem, mais ele cresce.” Disponível no Youtube (131023 PGM PT
INTERNET H264) em: <https://www.youtube.com/watch?v=h6CXjnKB4x8#t=27>.

– 143 –
Rechaçar o qualificativo ‘natural’ para definir os desastres é o passo
necessário para o adensamento da discussão acerca da essência dessas cri-
ses sociais relacionadas à água. Voltar os olhos prioritariamente para a análise
da complexa tessitura social é possibilitar que novos atores sejam
visibilizados, clarificar as tensões em que estão imersos e incluí-los legiti-
mamente no debate. Essa inclusão ampliaria as alternativas de reflexão para
a ação coletiva de combate a estas situações ora chamadas de excepcionais,
mas cuja cronicidade é um fato real, que resulta na deterioração da vida
prática de muitos milhões de brasileiros bem como na ameaça à possibili-
dade de vida democrática substantiva do país.
Ao interpretar cada desastre como uma mera cena, onde há um rol de
seletivos itens materiais destruídos ou danificados, os quais são elencados
de modo estanque e numa mensuração objetiva, a narrativa sociotécnica
esvazia a complexidade e a dinamicidade do mundo social. O enredo ofi-
cial se inicia com o destaque a um perigo que veio dos céus, como se hou-
vesse um protagonismo das forças diretas da natureza e, então, anuncia que
tais forças geraram um grave problema socioambiental circunscrito a um
limitado espaço geográfico. Nesse enredo, monitorar as forças da natureza
se torna uma prioridade para ensejar um final feliz para o meio social, o qual
é rebaixado a um personagem secundário, descaracterizado, uma massa. À
medida que esse enredo se repete exaustivamente e se apresenta como um
regime de verdade em torno dos desastres, o mesmo fundamenta a disse-
minação de um ordenamento de exceção no âmbito institucional. As recei-
tas para afastar as tragédias passam a depender de seletas expersites científicas
e técnicas, as quais prescindem e rechaçam a necessidade de uma escuta ativa
a quaisquer outros atores. Como advertiu Siena,9 as chuvas não podem ir
aos tribunais, isto é, não são sujeitos sociais e estão fora da ordem legal. Cul-
par as nuvens é especialmente oportuno para gestões públicas autoritárias
porque torna a produção da política no tema impermeável ao controle di-
reto dos milhões de brasileiros, os quais são levados a crer que estarão pro-
tegidos dos perigos se se mantiverem submissos àqueles que controlam a alta
tecnologia de monitoramento da natureza. Essa crença, contudo, não tem
se materializado em redução dos desastres. Milhões de vidas no Brasil têm
sido continuamente arruinadas em meio à poeira ou à lama, obrigadas a se
reinventarem num patamar maior de precariedade, mas é o tipo de desen-
volvimento tecido no espaço institucional que o explica.
No espaço da administração pública municipal, as práticas técnicas e
burocráticas voltadas para as emergências alastram-se pelo cotidiano de tra-

9. Em seu curto vídeo amador, mas muito elucidativo, intitulado “Chuva culpada?”, dispo-
nível em: <http://www.youtube.com/watch?v=LKVtLC8b4MU>.

– 144 –
balho e os níveis estadual e federal respaldam-no. O tempo cronológico da
emergência, considerado como um período excepcional, é frequentemente
estendido, repetido, torna-se usual, a ponto da emergência virar a regulari-
dade; portanto, passa a ser o estado normal para o serviço público se rela-
cionar com a sociedade civil. Não é surpresa identificar que tal ordenamento
excepcional exija uma forma de condução pela qual o meio civil é visto como
imaturo (referido à técnica ou competência) para lidar. Portanto, ao invés de
se ampliar o controle social sobre o entendimento dos desastres e das solu-
ções postas em curso, esse ordenamento rebaixa as capacidades civis,
descredencia os seus esforços e saberes. Sob a ótica dos governos populistas,
que veem a sociedade civil como uma massa ignara, a condução das políti-
cas no tema dos desastres se resume à criação e expansão de instituições
centralizadoras de pesquisa e tecnologia, coadunadas com atores e raciona-
lidades militares, que assumem espaços de decisão nos três níveis de gover-
no (municipal, estadual e federal). Os raros momentos de consulta pública
para o aperfeiçoamento das políticas e dos programas institucionais se trans-
formam em mera formalidade política.
Um após o outro, os nós que atam as crises conjunturais ou agudas
formam uma crise estrutural, crônica, e nela uma tessitura política quase
impenetrável ao controle social. Em contexto de contínua excepcionalidade
local, são descartadas facilmente as promessas que haviam sido feitas pelas
autoridades quando em campanha junto ao eleitorado (“afinal, agora estamos
numa emergência!”) e prevalece uma lógica econômica peculiar que, eventu-
almente, rende vantagens aos que exploram o mercado de produtos e ser-
viços emergenciais enquanto se dissemina uma benemerência aviltante aos
que mais sofrem nessas circunstâncias. A interpretação técnica municipal
sobre as causas do desastre já ocorrido (municiada pelo teor da capacitação/
treinamento que foi fornecido pelos níveis superiores de governo) é o que
dirige a demanda política por certo tipo de solução, geralmente, condicio-
nada à liberação ágil de recursos financeiros extraordinários. O desastre já
concretizado é a cena que justifica que tudo tem que ser feito às pressas,
reduzindo o ambiente de discussão pública sobre o problema e agindo como
mecanismo de pressão para a adoção de trâmites financeiros mais fluidos
no interior da máquina pública. Esta performance tem sido eficaz e não re-
dunda na redução do número de decretações de emergência; ao contrário,
coincide com a ampliação dessas decretações e de uma pujante indústria do
desastre sendo criada nos bastidores.
Os setores da sociedade que se sentem cada vez mais inseguros no con-
texto de recorrentes decretações de emergências anseiam por um novo rumo
para a agenda pública de proteção e defesa civil e, num nível mais amplo,
os mesmos anseiam por um ambiente mais aberto para discutir criticamente

– 145 –
a visão de desenvolvimento levada a cabo pelo Estado. Realizar tal anseio
implica a necessidade de promover a compreensão coletiva de quatro dis-
tinções, a saber:
t entre chover copiosamente (ou atravessar uma estiagem prolongada) e haver
um desastre;
t entre haver um desastre e decretar-se emergência;
t entre decretar-se emergência e receber recursos extraordinários; e
t entre receber recursos extraordinários e aplicá-los em prol da comunidades
afetadas.

O modelo de antidesenvolvimento vem escamoteando a incapacida-


de pública para lidar tanto com os efeitos de um progresso econômico mo-
vido à base da dilaceração forçada dos lugares quanto com a insuficiência
em proteger e atender os lugares cujas comunidades se sentem indefesas.
Por detrás daquilo que é expresso, num decreto ou numa portaria mi-
nisterial, como sendo uma emergência por “enchente” ou “seca”, há uma
multiplicidade de sujeitos e práticas sociais específicas no âmbito da esfera
pública, que interferem nos sentidos particulares de mundo na esfera pri-
vada. Esta interferência se dá desde os vínculos sociais e afetivos tecidos es-
pacialmente até nos processos ecossistêmicos únicos que se compõem com
o ambiente localmente construído. Quanto mais alto é o nível de governo,
menos as nuances desses níveis locais são notadas. Contudo, os padrões de
interpretação socioambiental e de atendimento são elaborados desde cima,
na esfera institucional federal, o que, em parte, explica o seu mau ajusta-
mento àquilo que é requerido, no plano concreto, por aqueles que deman-
dam acolhimento e proteção de direitos.
Sob essa perspectiva, as estiagens prolongadas e as secas não são a
maior causa da poeira persistente que se esparrama nos lugares e tornam a
paisagem desoladora, assentando-se por sobre coisas e inviabilizando o uso
das mesmas; não é a origem dos perigos que levam a plantação do pequeno
produtor a queimar sob o sol ou o seu gado a morrer de sede e fome, com-
prometendo o trabalho na roça ou os afazeres da casa. A poeira persistente
vai além da sujeira: remete à degradação (física e social) e à morte. “Tu és
pó e ao pó retornarás”, menciona o texto bíblico que ecoa num canto da
memória da cultura cristã popular e atemoriza aqueles que veem tudo pa-
decer ao derredor. Em muitos casos, como no sertão nordestino, a aparên-
cia de abandono social, que a poeira indica, é forjada no tempo social de
transcurso lento, onde as subtrações políticas e materiais de origem oligár-
quica têm profundas raízes históricas, centenárias, que transcendem as ex-
plicações baseadas nas forças da natureza, isto é, nos argumentos técnicos

– 146 –
que enfatizam que o desastre se deve à maior seca dos últimos 60 anos. Mas es-
ses argumentos são exaltados na esfera federal de governo, a começar pela
pasta do Ministério da Integração Nacional, onde o controle decisório
oligárquico nordestino é incontestável e onde está inserida a Secretaria Na-
cional responsável pela condução das políticas em emergências e desastres.
Assim como em relação à poeira, também nos lugares cobertos pela
lama materializa-se a desfiliação social. Em ambos os casos, pessoas se sen-
tem reféns de decisões exógenas e ficam à procura de novos sentidos para
lidar com a perda das coisas, para lidar com o desligamento involuntário
(por morte, desaparecimento ou migração) daqueles com quem se manti-
nha laços estreitos e para lidar com outros aspectos de seu sofrimento psí-
quico. A difusão da crença de que o desastre chega apenas onde o Estado ainda
não está alimenta a suposição de que a aparição súbita dos técnicos gover-
namentais na cena de devastação vivificará a cidadania dos desfiliados so-
ciais que ali padecem. Contudo, a depender do projeto de desenvolvimento
que norteia essa presença, a esperança última de justiça social se esvai.

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2009. p. 34-47.
VALENCIO, N. et al. Abandonados nos desastres: uma análise sociológica de dimensões
objetivas e simbólicas de afetação de grupos sociais desabrigados e desalojados. Brasília:
Conselho Federal de Psicologia, 2011.

– 148 –
SEÇÃO IV

CASOS REGIONAIS E
INTER-REGIONAIS
CAPÍTULO VI

A ATENÇÃO SOCIAL NOS DESASTRES:


QUANDO O DESLOCAMENTO
COMPULSÓRIO ACONTECE

Mariana Siena

CONSIDERAÇÕES INICIAIS
A questão principal que moveu minha tese de doutorado,1 e que será
aqui brevemente abordada, foi construída ao longo da minha formação aca-
dêmica. Minha inserção no tema dos desastres vem desde o período da gra-
duação em Ciências Sociais na Universidade Federal de São Carlos. No ano
de 2004, quando cursava o segundo ano de graduação, cumpri créditos em
uma disciplina de economia brasileira ministrada pela Professora Doutora
Norma Valencio. Na ocasião, tive conhecimento da pesquisa que ela vinha
desenvolvendo no munícipio de São Carlos/SP, a qual analisava alguns as-
pectos da baixa reflexividade na produção social das cidades e a vulnerabi-
lidade dos citadinos frente às ameaças das chuvas.2 Neste momento, a
pesquisa estava no início e a professora buscava estudantes que se interes-
sassem pelo tema para dar andamento à pesquisa.
Dirigi-me até a sala da professora Norma para saber mais sobre a pes-
quisa, já que, num primeiro momento, havia me interessado muito pelo
tema. Chegando lá, me deparei com uma sala pequena onde a professora e

Apoio: FAPESP. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste


material são de nossa responsabilidade e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
1. SIENA, M. A Atenção Social nos Desastres: uma análise sociológica das diversas con-
cepções de atendimento aos grupos sociais afetados. 2012. Tese (Doutorado em Socio-
logia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos,
São Carlos, 2012.
2. Um dos artigos resultantes deste trabalho intitula-se “A produção social do desastre: di-
mensões técnicas e político-institucionais da vulnerabilidade das cidades brasileiras frente
às chuvas”, publicado na Revista Teoria e Pesquisa, n. 44, no ano de 2004. Disponível
em: <http://www.teoriaepesquisa.ufscar.br/index.php/tp/article/viewFile/73/63>.

– 151 –
mais três alunos estavam debruçados sobre um grande mapa do município
de São Carlos. Estavam ali, começando a sistematizar, a partir dos Regis-
tros de Atendimento da Defesa Civil de São Carlos, alguns aspectos de dis-
tribuição, frequência e tipologia dos danos (relacionados às chuvas e raios)
identificados, e a pontuá-los, conforme a localização no município.
Logo, eu estava envolvida com a tipologia dos danos experimentada
pela equipe – que, naquele momento, já se constituíra como um grupo de
estudos, o GEPED/Grupo de Estudos e Pesquisas em Desastres –,3 com a
bibliografia e com as pesquisas de campo sobre desastres no município de
São Carlos. Depois de mapeado os desastres no município, passou-se para
um segundo momento de pesquisa, no qual se buscou analisar alguns tra-
ços distintivos entre representações peritas (da Defesa Civil) e leigas (de
grupos afetados) em torno dos prejuízos relacionados às chuvas, bem como
entre as práticas sociais recomendadas e adotadas por ambas perante as
enchentes, a fim de suscitar uma reflexão sobre as razões da baixa eficácia
das políticas de emergência, tanto no plano local como no do Brasil.4 Nes-
te período, a equipe realizou várias entrevistas em profundida com as fa-
mílias residentes nas moradias que constavam nos Registros de Atendimento
da Defesa Civil de São Carlos.
A partir desta pesquisa maior, que estava em andamento e contava com
a participação de toda a equipe do GEPED, a Profa. Norma sugeriu-me uma
iniciação científica na temática de gênero e desastres, intitulada “Vulnera-
bilidade de populações urbanas frente ao perigo das chuvas: uma análise
sociológica a partir do recorte de gênero” (Apoio: CNPq). O objetivo era
observar e analisar os depoimentos e as práticas das mulheres diante da
afetação de suas residências. E foi a partir desta pesquisa que as tensões entre
afetados e agentes de atenção social nos desastres (principalmente na figu-
ra do profissional de assistente social) começaram a se tornar visíveis e pre-
sentes, pelo menos do meu ponto de vista.

3. Importante ressaltar que a experiência da coordenadora do grupo na temática vem de lon-


ga data. A Profa. Norma Valencio é líder do Grupo de Pesquisa ‘Sociedade e Recursos
Hídricos’, certificado pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) junto ao Con-
selho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), em 1995. Este
grupo de pesquisa foi o primeiro a ser criado na interface da Sociologia com o tema dos
conflitos sociais e dimensões político-institucionais em torno das águas doces no Brasil.
Como desdobramento das pesquisas que vinham sendo empreendidas, privilegiou, a partir
de 2003, a temática dos desastres relacionados à água no Brasil, razão pela qual se cons-
tituiu como um grupo de estudos. (Para maiores informações acessar: <http://www.
ufscar.br/neped/conteudo.php?menu =historico&submenu=>.
4. Um dos artigos resultantes deste trabalho intitula-se “Chuvas no Brasil: representações e
práticas sociais”, publicado pela Revista Política e Sociedade, v. 4, n. 7, no ano de 2005. Dis-
ponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/politica/article/viewFile/1971/1721>.

– 152 –
Em 2005, a equipe do GEPED pôde realizar pesquisas de campo para
além do município de São Carlos, quando lhe foi designada a responsabi-
lidade de coordenar o processo de subsídios à reformulação da Política Na-
cional de Defesa Civil/PNDC. O projeto, denominado “Subsídios ao
aperfeiçoamento da Política Nacional de Defesa Civil” (encomendado pela
Secretaria Nacional de Defesa Civil/SEDEC, realizado com o apoio do Mi-
nistério da Integração Nacional/MI, através do convênio IICA) analisou, por
meio das representações de danos e prejuízos relacionados aos desastres, sob
a ótica dos vários grupos técnicos envolvidos (técnicos de defesa civil, bom-
beiros e técnicos de outros ministérios envolvidos nas medidas de resposta
e recuperação frente aos desastres), as limitações das ferramentas de avali-
ação de danos contidas na PNDC (Notificação Preliminar de Desastre/
NOPRED e Avaliação de Danos/AVADAN), propondo os ajustamentos
necessários a essas ferramentas de gerenciamento de desastres. Para propi-
ciar uma base concreta à análise da efetividade político-institucional do
Sistema Nacional de Defesa Civil, até aquele momento, grupos sociais ur-
banos (especialmente domicílios) e rurais (especialmente de unidades fa-
miliares) recorrentemente afetados nos desastres, nas cinco macrorregiões
do país, foram focalizados e abordados por nossa equipe, e analisou-se so-
ciologicamente as dimensões materiais e imateriais dos danos e perdas ha-
vidos em desastres, especialmente os relacionados às chuvas.
Tal experiência foi significativa em minha formação, já que naquele
momento um trabalho de campo intenso foi realizado em munícipios de di-
versas regiões brasileiras – em diferentes localidades e com especificidades
socioambientais e socioculturais –, o que permitiu observar a abrangência
da temática dos desastres no país e constatar o muito que ainda estava por
se fazer, em termos institucionais, e por vir, em termos da ocorrência de “no-
vos” desastres. Juntamente com estas descobertas, com os novos “voos de
pesquisa”, vieram também as primeiras decepções ao presenciar o resulta-
do de um trabalho de pesquisa acadêmico de tamanha abrangência, enco-
mendado pelo próprio Governo Federal, ser “engavetado” após uma troca
de comando na Secretaria Nacional responsável pela Coordenação Nacio-
nal do Sistema de Defesa Civil. As disputas e defesas corporativas no seio
da instituição abafaram o quanto puderem a necessidade de alterar subs-
tancialmente os rumos da política a partir de uma abordagem participativa.
No segundo semestre de 2006, eu voltaria a me dedicar com mais afinco
à temática de gênero e desastres, ao retomar para algumas questões não
respondidas em minha primeira iniciação científica – como, por exemplo,
à seguinte questão: o que representava, para a mulher, especialmente para
a chefe do lar, ter de abandonar sua moradia, mesmo que circunstancial-
mente, em decorrência de uma enchente? Tendo como centro tal questão,

– 153 –
desenvolvi minha monografia, intitulada “A vulnerabilidade social diante
das tempestades: da vivência dos danos no domicílio à condição de desalo-
jados/desabrigados pelo recorte de gênero”. Neste problema, analisado em
minha monografia de conclusão de curso e focalizando o caso de periferias
urbanas são-carlenses, via-se a necessidade das famílias abandonarem suas
moradias em virtude das enchentes, mesmo que circunstancialmente, o que
as colocava em contato com agentes públicos municipais (neste caso, pri-
mordialmente, a Assistência Social) responsáveis pelas ações de resposta ao
desastre. Em significativos depoimentos colhidos em campo, eu já podia
ouvir as críticasdas chefes do lar afetadas aos juízos de valor que os respon-
sáveis pela atenção social lhe dirigiam nas ações de resposta aos efeitos das
inundações e aos danos e prejuízos havidos.
Um exemplo desse tipo de depoimento é o de Dona Dulce, moradora
do bairro do Varjão, no município de São Carlos/SP, que teve sua moradia
invadida pelas águas contaminadas da inundação e que precisou abando-
nar seu imóvel até que as águas baixassem. Como medida de resposta a este
evento, a prefeitura municipal ofereceu 250 reais (uma espécie de vale-alu-
guel) para as famílias encontrarem outro abrigo, até que pudessem voltar
para suas casas. Conforme relato de dona Dulce:
Com 250 reais não tinha como eu ficar em um lugar igual ao que eu
moro,como a assistente social disse. Ou pelo menos com o mes-
mo número de quartos, porque eu tenho um moço (filho de 19 anos)
e uma mocinha (filha de 10 anos) em casa.

No caso da dona Dulce, o problema de encontrar uma casa compatí-


vel a sua foi resolvido com a ajuda de amigos de sua filha mais velha, que
ofereceram uma chácara, no próprio bairro, mas longe do local mais susce-
tível às inundações. A moradora aceitou, mas só se estes amigos aceitassem
o aluguel que a prefeitura se propôs a pagar, para assim não ficaram lá to-
talmente de graça. Contudo, a chácara já era toda mobiliada e muito “chi-
que”, segundo a própria dona Dulce, e isso foi motivo de ela e sua família
serem hostilizados pela assistente social da prefeitura, pois esta disse
que a Dulce “queria ir para um lugar melhor e mais chique.” Este contato da
afetada com a assistente social ocorria obrigatoriamente, pois quando do
aceitamento do vale-moradia a assistente social, como representante da
prefeitura, dirigia-se até a casa escolhida pelo morador para fazer a cha-
mada “revista”, para confirmar a situação da casa para depois não serem
responsabilizados por futuros danos (SIENA, 2006, p. 55).
A pesquisa da condição de desabrigados/desalojados continuaria a ser
objeto de algumas das minhas reflexões, dessa vez, direcionadas não a um
trabalho científico próprio, mas discutidas no âmbito do NEPED/UFSCar,

– 154 –
quando este teve, em 2006, projeto aprovado junto ao CNPq, intitulado
“Representações Sociais dos Abrigos Temporários no Brasil: uma análise so-
ciológica de base qualitativa da ótica dos gestores públicos e dos abrigados
em contexto de desastre relacionado às chuvas”.Esse projeto teve como
objetivo central analisar comparativamente as representações dos abrigos
temporários, na ótica dos gestores e dos abrigados e, especificamente ana-
lisou: 1) as representações em torno da condição de desabrigado/abrigado,
enfocando o olhar do próprio grupo, com recortes de gênero e etário, bem
como o olhar do Estado sobre o grupo; 2) as práticas sociais admitidas e
recomendadas pelo gestor de abrigos temporários e as rotinas necessárias
aos abrigados, sinalizando semelhanças, contradições e conflitos entre a
concepção de ordem do Estado e a dinâmica da vida social dos abrigados;
e, 3) os impactos da condição de abrigado sobre as demais esferas da vida
cotidiana, com recorte de gênero e etário.
A participação nesse projeto do NEPED/UFSCar motivou-me a escre-
ver meu projeto de mestrado em Sociologia e a desenvolver, no período de
2007-2009, a dissertação “A Dimensão de Gênero na Análise Sociológica
de Desastres: conflitos entre desabrigadas e gestoras de abrigos temporári-
os”. Mais uma vez, agora nos abrigos temporários, a qualidade problemá-
tica da interação entre o grupo social afetado e os agentes de atenção social
ofertada pelo Estado aparecia nos relatos.
Apenas para ficar em um dos exemplos de como os agentes de aten-
ção social apareceram em minha pesquisa de mestrado, a seguir, o relato de
umas das assistentes sociais gestora de um abrigo provisório no município
de Nova Friburgo/RJ, organizado em uma escola pública:
A escola tem uma dispensa natural dela, ao lado da cozinha. Então,
a princípio, nós até pensamos que pudéssemos utilizar aquele espa-
ço. Mas, invadiram a cozinha de noite [desconfia de alguns desa-
brigados], levaram a carne toda [carne bovina e frango] que tinha
no freezer, que é um objeto de luxo, que aqui a gente ganhou.
Então, a gente não pôde mais deixar lá e eu tive que trancar [os
mantimentos] aqui na sala da direção. Então, a gente poderia ter
carne aqui por uns 20 dias, porque o freezer da escola foi bem abas-
tecido. Mas eles fizeram até churrasco, dizem, coisa que eles não
fazem na casa deles (Gestora do abrigo provisório do município
de Nova Friburgo/RJ, jan. 2007).

Tal discurso da assistente social é característico de um preconceito de


classe, que prolonga o desastre como diferença social, na qual os grupos
afetados e atendidos não podem dispor livremente dos víveres para eles en-
viados. E prolonga esta distância social porque o outro (o desabrigados, o

– 155 –
miserável, a população empobrecida) nunca é visto como sujeito de direi-
tos por conta da dimensão de classe. O desabrigado recebe o alimento como
favor, “que aqui a gente ganhou”, não como direito; a carne passa a ser con-
siderada um “objeto de luxo”; os desabrigados fazerem “até churrasco, coi-
sa que eles não fazem na casa deles”, são qualificações (ou desqualificações)
feitas pela agente do Estado dentro de sua relação de dominação para com
os abrigados, sendo justamente o recorte de classe o definidor de tal rela-
ção (SIENA, 2009, p. 94).
Assim, durante o desenvolvimento da minha dissertação outras questões
de pesquisa foram emergindo como, por exemplo, as relativas às políticas e
regularidades das ações da Assistência Social em desastre, principalmente no
que diz respeito ao controle, ao conflito, aos tensionamentos persistentes
entre os afetados e os técnicos responsáveis pela atenção social, motivan-
do-me a refletir cada vez mais a respeito do papel exercido pelos agentes de
atenção social neste contexto, razão pela qual dediquei meu doutorado a
este tema.
Se ao longo da iniciação científica e do mestrado a inserção no traba-
lho de campo costumava se dar logo após o evento de inundação e/ou
deslizamentos de terra em desastres relacionados às chuvas e os depoimentos
do desastre faziam referência à enchente, aos danos materiais e simbólicos
havidos, no doutorado me detive mais na ótica do desastre como processo
social e, particularmente, naquela fase posterior ao desastre visto como fenô-
meno de espetacularização. Houve um “ajustamento de foco” do que vem a ser,
de fato, o desastre. Até então, mesmo que de forma implícita, eu vinha
calcada na concepção de que o desastre era deflagrado quando houvesse a
chuva, por exemplo.
No decorrer da realização desta pesquisa de doutorado, observei que
o desastre não havia sumido, mas sim apenas havia mudado suas feições
sociais complexas. Era um processo longo, com laços para trás e para fren-
te, no passado e no futuro do que era considerado até então e pontualmen-
te como “o momento da tragédia”. Demorei a compreender que os aspectos
constitutivos do desastre eram estruturais, tanto em relação aos grupos so-
ciais que são vulnerabilizados recorrentemente, portanto, historicamente,
em seus espaços vividos, quanto em relação a um Estado já disposto a es-
tigmatizar, por meio de seus agentes, com viés de classe, os grupos mais
pobres. Quando passei a encarar o desastre como um tipo de crise crônica,
atrelado a um processo sociohistórico longo de vulnerabilização, pude en-
tender que o desastre persistia, não enquanto durassem as chuvas, mas
enquanto os grupos vulnerabilizados não tinham garantidos seus direitos
de cidadania. E, mais precisamente, que o desastre já estava instaurado antes
mesmo das chuvas. Assim, podemos utilizar a metáfora do desastre como

– 156 –
um “fantasma”, na qual sua presença não é facilmente identificada, mas que
“assombra” os grupos empobrecidos, independente ou não das nuvens no
céu estarem “carregadas”.
O desvendar deste desastre como um “fantasma” constitui-se, a meu
ver, no maior desafio aos gestores públicos, principalmente aqueles de De-
fesa Civil e Assistência Social e aos estudiosos do tema: desmascarar e arti-
cular os elementos sociais que produzem o desastre, não como um fenômeno
que “atinge” nossas sociedades, mas que é produzido no âmbito das rela-
ções sociais que se expressam nela, no padrão de desenvolvimento que op-
tamos por escolher, nas desigualdades com as quais insistimos em conviver.
Suas feições são identificáveis em âmbito macro e microssociais. Seu teor
está nas relações sociais e enfaticamente na interação dos empobrecidos
com o Estado, na face sociopolítica do desastre. E foi debruçada justamente
nesta interação que produzi minha tesee apresento parte dela neste capí-
tulo. A tese imiscuiu os âmbitos macro e microssociais. Neste capítulo, foquei
no âmbito microssocial, na análise de caso do município de Ribeirão Pre-
to/SP como uma continuidade do capítulo, de minha autoria, já publicado
no livro Sociologia dos Desastres, volume III,5 porém analisando outro tem-
po cronológico desse “desastre fantasma” que assombra milhões cotidiana-
mente no Brasil.

PARA ENTENDER O CASO...

Ribeirão Preto/SP foi selecionado por se tratar de um município que


recorrentemente tem sofrido com os desastres, principalmente aqueles re-
lacionados às chuvas intensas. Segundo a Coordenadoria Municipal de
Defesa Civil de Ribeirão Preto (RIBEIRÃO PRETO, 2008), nos últimos
anos, a cidade vem enfrentando, de maneira cada vez mais frequente e com
maior intensidade, enchentes e alagamentos. Conforme estudos de Maia e
Pitton (2009), Ribeirão Preto tem, em média, cerca de três inundações/ano
que, dentre os diversos lugares afetados, destacam-se os que são vulnera-
bilizados socio-espacialmente. Em razão de ser um dos municípios que mais
sofrem com os danos e prejuízos em decorrência de enchentes e inundações
no interior do Estado de São Paulo, o município foi selecionado pela Secre-
taria Nacional de Defesa Civil para discutir a reformulação da Política
Nacional de Defesa Civil (PNDC) no ano de 2005 – que foi conduzida pelo
NEPED e em cuja equipe eu fazia parte.

5. SIENA. M. A Política de Assistência Social em Contexto de Desastres Relacionados às


Chuvas: um estudo sobre o município de Ribeirão Preto/SP. In: VALENCIO, N. Socio-
logia dos Desastres: construção, interfaces e perspectivas no Brasil. v. III. São Carlos:
RiMa editora, 2012. p. 38-61. Disponível em: < http://www.ufscar.br/neped/pdfs/livros/
E_Book_SociologiaDesastres_Vol_III.pdf>.

– 157 –
Para melhor entender o tempo social que aqui será discutido, faz-se
necessário esclarecer que três coletas de campo foram empreendidas a fim
de lidar com momentos diferentes do desastre entendido como fenômeno
social, por conseguinte como processo. Nelas, adotei procedimentos quali-
tativos que subsidiaram a melhor compreensão do processo sociopolítico em
desastres.
Em busca do discurso institucional local de Assistência Social sobre as
políticas públicas em desastres e de como a instituição tem atendido o gru-
po social de empobrecidos recorrentemente afetado, na primeira coleta de
campo, ocorrida em dezembro de 2010, busquei o contato, por meio da re-
alização de entrevista, com a Secretária Municipal de Assistência Social, logo
após mais um incidente com as enchentes ter acometido grupos sociais já
vulnerabilizados em seus lugares, mais especificamente o grupo de mora-
dores dos núcleos de favela da Vila Elisa, Tanquinho e Vila Zanetti. Outras
entrevistas também foram realizadas com as assistentes sociais que traba-
lharam no atendimento ao grupo de moradores destes núcleos de favela afe-
tados. A partir destas entrevistas, tomei conhecimento do projeto de
deslocamento (idealizado e executado pela Prefeitura Municipal de Ribei-
rão Preto, por meio da Companhia Habitacional Regional/COHAB e da
Secretaria de Assistência Social) que estava sendo colocado em curso no
município, qual seja: o futuro deslocamento dos moradores dos núcleos de
favela recorrentemente afetados em desastres para o conjunto habitacional
do Jardim Wilson Toni.
A segunda coleta de campo ocorreu, em novembro de 2011, pouco
tempo após o projeto de deslocamento ter sido efetivado – entre os meses
de julho e agosto de 2011 os moradores dos núcleos de favela da Vila Elisa,
Tanquinho e Vila Zanetti foram deslocados para o Jardim Wilson Toni.
Nesta etapa da pesquisa, entrevistas foram realizadas com tal grupo de
moradores que sofria constantemente com os danos materiais, emocionais
e simbólicos associados às enchentes que tomavam constantemente os seus
antigos lugares de morar e que agora residiam no Jardim Wilson Toni.6 Nas
abordagens junto destes moradores, busquei, prioritariamente, a configu-
ração de um ponto de vista coletivo sobre o processo de deslocamento. Os
moradores foram interpelados de forma aleatória por mim, nas ruas do
bairro, e alguns deles abriram as portas de suas casas para a realização das
entrevistas em profundidade ou mesmo as concederam nos espaços públi-
cos do bairro – no campo de futebol, no ponto de ônibus, nas calçadas, nas
dependências do condomínio. Nesta fase, identifiquei que novos conflitos

6. Este conjunto é composto por 704 unidades habitacionais (apartamentos de 42m²) dis-
tribuídas entre 88 prédios.

– 158 –
sociais foram surgindo, tais como: o endividamento das famílias, inseridas
na “economia do habitar”, na qual passam a pagar pelos serviços públicos
acessados – mensalidade do condomínio, conta de luz, de água e a presta-
ção da moradia; a falta de infraestrutura pública no novo bairro – a escola
e o posto de saúde eram muito distantes –; a sociabilidade rural, na qual
viviam anteriormente dificultou a adaptação ao viver em apartamentos.
Sendo assim, no caso destes moradores, a mudança para um endereço que
não sofresse com as enchentes não solucionou os problemas, pelo contrá-
rio, criaram-se novos.
A terceira, e última, coleta de campo ocorreu em julho de 2012, perto
da data de aniversário de 1 (um) ano do deslocamento. Os dados contidos
nesta terceira coleta foram determinantes para análise empreendida neste
capítulo. Nesta etapa, novamente, foram entrevistados os moradores do Jar-
dim Wilson Toni a fim de buscar suas visões/avaliações sobre o processo de
deslocamento, de adaptação e construção do novo lugar. Além dos morado-
res, foram entrevistados representantes da área de Habitação Social do mu-
nicípio, demais responsáveis pelo processo de deslocamento e representantes
do executivo municipal para avaliar, sob várias óticas, como está ocorrendo
o processo de adaptação neste novo lugar, como se dá a relação dos agentes
de atenção social com os moradores do Jardim Wilson Toni, como a política
pública foi implementada e quais os novos desafios subjacentes a tais solu-
ções. A seguir, a Figura 1 destaca os atores entrevistados em cada uma das
etapas de pesquisa e o tempo cronológico neste processo de deslocamento.

a
Jul/2012: 3 coleta de
campo - um ano após o
Jul/Ago/2011: moradores
deslocamento.
das favelas da Vila Elisa e
Entrevistados: moradores do
Tanquinho deslocados para
Wilson Toni; representantes
o conjunto habitacional
da área Habitação Social;
no Jd. Wilson Toni.
coordenador de Defesa
Civil.
a
Dez/2010: 1 coleta em a
Nov./2011: 2 coleta de
campo - antes do
campo - após o
deslocamento.
deslocamento.
Entrevistados: Secretária
Entrevistados: moradores
Municipal de
do Jardim Wilson Toni
Assistentes Sociais.

Figura 1 Linha do Tempo – O processo de deslocamento das famílias dos núcleos de


favelas da Vila Zanetti, Vila Elisa e Tanquinho para o conjunto habitacional no Jardim
Wilson Toni e a inserção da pesquisadora na pesquisa de campo.

O CONCEITO DE DESASTRE BALIZADOR DESTA ANÁLISE

Antes de adentrarmos no caso de Ribeirão Preto/SP, e especificamen-


te analisar o tempo cronológico de aniversário de um ano do deslocamento

– 159 –
dos moradores das favelas da Vila Elisa e Tanquinho para o conjunto
habitacional do Jardim Wilson Toni, faz-se necessário esclarecer o concei-
to de desastre aqui utilizado.
O avanço tecnológico tem facilitado a previsão de tempo para geração
de boletins de alerta, permitindo dar avisos antecipados de eventos inten-
sos que se aproximam. A indagação que persiste é: porque os desastres con-
tinuam a ocorrer após a profusão de informações sobre “as forças da
natureza”?Além de ter acesso à informação do tempo/clima/hidrológica e
a informação social, a informação sociológica, especialmente, seria um ponto
de vista importante, já que o desastre é visto como um fenômeno social,
no qual há um desencadeamento não só agudo/abrupto de uma crise7 como
também o problema crônico das rotinas se manifesta (VALENCIO, 2012a).
Tal desencadeamento de rotinas deterioradas, de um dado meio social, ne-
cessita ser entendido como uma relação, ou, como um processo de vulnera-
bilização, no qual se busca o entendimento de algo que é devido como direito
aos sujeitos, por meio da identificação do processo pelo qual suas capaci-
dades de autodefesa são permanentemente subtraídas de relações de
vulnerabilidade (ACSELRAD, 2006).
Assim, para referendar a metáfora dos desastres como “fantasmas”,
utilizo a abordagem de Valencio (2012a) que os apresentam sob duas for-
mas diferentes e indissociáveis, quais sejam: como uma crise aguda e como
uma crise crônica, convergindo, analiticamente, situação e processo. E é exa-
tamente no imbricamento dos aspectos da situação em si com a do proces-
so no qual esta situação é produzida que este capítulo se propõe a trabalhar.
Quando analisamos apenas a crise aguda – num recorte socioespacial que
corresponde à concepção do território como cenário que aglutina a destrui-
ção de um amplo sistema de objetos, públicos e privados, de uso corrente
de um dado grupo social (como, por exemplo, analisar apenas o “momento
trágico” da ocorrência de uma enchente em Ribeirão Preto/SP e, conse-
quente, inundação de moradias) – podemos perder de vista a crise crônica
na qual determinado grupo social está inserido e o faz vivenciar recorren-
temente e/ou continuamente o desastre.

7. Entendendo “crise” conforme os termos de Nogueira (2004, p. 16), “uma crise sempre
destrói e desorganiza: caracteriza-se precisamente por modificar o peso relativo das coi-
sas, tirá-las do lugar ou do fluxo rotineiro, alterar seu sentido, dispô-las de um outro modo.
Numa fase de crise, são suspensos ou postos em xeque os conceitos e ideias com que in-
terpretamos o mundo. Tendemos a nos angustiar porque nos sentimos ameaçados em
nossos próprios fundamentos, naquilo que dominamos e conhecemos, que nos sustenta.
Justamente por isso, fica prejudicado todo o sistema de vínculos e comunicações: entre o
Estado e os indivíduos, o geral e o particular, os grupos e as comunidade, as instituições
e o social, a razão e a emoção”.

– 160 –
Assim, o conceito de desastre aqui utilizado é aquele que o concebe
como um fenômeno social de perturbação do lugar, ameaçando-o de desin-
tegração/ruptura. Um lugar que “não é apenas um quadro de vida, mas um
espaço vivido, isto é, de experiência sempre renovada, o que permite, ao
mesmo tempo, a reavaliação das heranças e a indagação sobre o presente e
o futuro” (SANTOS, 2000, p. 114). Ou seja, um lugar trabalhado na pers-
pectiva de um mundo vivido, que leva em conta outras dimensões do espa-
ço geográfico, conforme se refere Milton Santos (1997), quais sejam os
objetos, as ações, a técnica e o tempo. Por fim, um lugar que não diz ape-
nas respeito aos objetos na paisagem que o configuram, mas às relações
sociais em si (passadas, presentes e futuras), cujo produto é, apenas em parte,
espacialmente visível (VALENCIO, 2012a).
Deste modo, rompendo com a concepção de “desastres naturais”, creio
que não existem apenas fatores de ameaça que incidem aleatoriamente so-
bre um determinado lugar – apreendido na concepção de espaço vivido – mas,
também, e, principalmente, há o processo de vulnerabilização(ACSELRAD,
2006), que precisa ser assim entendido para compreender quais rupturas e
desfiliação social, sejam elas agudas ou crônicas, os desastres causam na
dinâmica da vida social de um grupo que entendemos como afetado.
Há relações sociopolíticas na produção do lugar na forma como é orga-
nizado os seus fixos e fluxos e que tem imbricações socioambientais e socioeco-
nômicas. Nesta análise, a dimensão sociopolítica toma proeminência, pois a
partir dela se podem observar as relações entre os grupos sociais que produ-
zem o lugar e algumas das instituições que são responsáveis em dar materia-
lidade à proteção deste espaço em caso de desastre, como a Defesa Civil e a
Assistência Social. Então, é na convergência ou na divergência entre esses
atores (grupos afetados e agentes de atenção social) que observamos a tessitura
do lugar seja se compondo, recompondo ou deteriorando.

O ANIVERSÁRIO DE UM ANO DA MUDANÇA DE ENDEREÇO DE


MORADIA: O DESASTRE ACABOU?

Retomei esta etapa da pesquisa de campo preocupada com o grupo de


moradores que, supostamente, teriam lidado com o conflito social, resul-
tante da nova territorialização, abandonando seus apartamentos. Para com-
provar tal hipótese, a estratégia de pesquisa era conversar com os moradores
ainda residentes no Jardim Wilson Toni e conseguir contatos daqueles que
de lá tivessem saído. Para minha surpresa – em conversa com os moradores
e segundo os próprios dados oficiais do setor de Habitação Social da Pre-
feitura de Ribeirão Preto (vide Quadro 1) – e refutação de tal hipótese, mui-
tos resistiram no lugar e poucos de lá saíram.

– 161 –
Quadro 1 Relação Quantitativa da Ocupação das Unidades Jardim Wilson Toni.

Situação Unidades Percentual


Regular– unidade ocupada pelo beneficiário 668 95%
Irregular– unidade ocupada por terceiros 24 3,3%
Não ocupada – unidade vazia 12 1,7%
Subtotal unidades irregulares 36 5%
Total 704 100%

Fonte: Prefeitura Municipal de Ribeirão Preto. Habitação Social. Dados atualizados em 11/
07/2012

Com esta constatação a pesquisa tomou um novo rumo nesta etapa,


na qual foi relevante observar, sob várias óticas, como está ocorrendo o pro-
cesso de adaptação nessa nova territorialidade, a resistência no novo lugar,
as relações entre os moradores e o ente público e quais os novos desafios
subjacentes às soluções técnicas de assistência social e habitação visando o
deslocamento compulsório de moradores das ditas “áreas de risco”.
A fim de capturar este processo de deslocamento e adaptação não fo-
ram entrevistados apenas os moradores locais, mas, também, assistentes
sociais, representantes da área da Habitação Social do município, represen-
tantes do executivo municipal que puderam relatar – transcorridos quase
12 meses da solução técnica de deslocamento dos moradores das favelas
da Vila Elisa, Vila Zanetti e Tanquinho para o conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni – sobre este processo a partir de seus olhares e suas
avaliações.
Elegeram-se, para esta etapa do trabalho, além dos moradores do Jar-
dim Wilson Toni, representantes e/ou gestores dos seguintes órgãos gover-
namentais: Defesa Civil; Habitação Social; e Companhia Habitacional
Regional/COHAB. A fim de que o leitor possa entender a conteúdo da
interação dos moradores do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni
com cada um dos representantes desses órgãos correspondentes, alguns es-
clarecimentos são necessários, a saber:
t Defesa Civil: conforme missão institucional, a atuação da Defesa Civil
compreende ações de prevenção, preparação para emergências e
desastres, resposta aos desastres e reconstrução. Em Ribeirão Preto
ela está sob a coordenação da Guarda Civil;
t Habitação Social: é um braço operacional da Secretaria de Assistên-
cia Social do município, criado para suprir as demandas do municí-
pio no que diz respeito à Habitação de Interesse Social/HIS e às
diretrizes do governo federal. Em Ribeirão Preto, não há uma Secre-

– 162 –
taria de Habitação e a responsável pelas políticas de habitação é a
COHAB. Porém, conforme informações coletadas durante a pesquisa,
a COHAB não foca mais seus objetivos no trabalho com a questão da
HIS, voltando-se, primordialmente, nos dias atuais, para uma linha de
mercado. Tal mudança configura-se em uma nova forma de direcio-
namento da instituição, independente da ação de seu corpo técnico.
t COHAB: independente da observação feita acima, a COHAB ain-
da é a responsável legal pela coordenação da Política de Habitação
de Ribeirão Preto, inclusive pela produção de habitação de interes-
se social, concentrando, assim, todo o cadastro de famílias que ne-
cessitam da casa própria no município.

Segundo o coordenador da Defesa Civil de Ribeirão Preto, esta é com-


posta por várias instituições no município e cada qual tem sua função em
caso de desastre, quais sejam:
t a Secretaria de Assistência Social: com a missão de cadastrar essas
famílias [afetadas], de prestar o auxílio no momento;
t A Guarda Civil Municipal: Percorrer as áreas de risco quando começa
uma chuva mais forte, ajudar na interdição das vias juntamente com
a TRANSERP [Empresa de Trânsito e Transporte Urbano], com a
polícia militar, colaborar nas ações de socorro;
t Secretaria de Infraestrutura, Planejamento e Obras: para elaborar as
obras preventivas. No caso, aqui em Ribeirão, teve a maior obra anti-
enchente da história que pega a Jerônimo Gonçalves e a Francisco
Junqueira [avenidas de Ribeirão Preto]. Inclusive, neste último, ano
nós não tivemos inundações registradas e também tivemos a remo-
ção das famílias da antiga favela do Brejo a margem do córrego
Tanquinho, que era o local de maior preocupação nossa, que eram
famílias que estavam questão de meio metro do córrego, então reti-
raram eles dali e ali estão sendo plantadas árvores que é uma área
de preservação permanente (Relato do Coordenador da Defesa Ci-
vil De Ribeirão Preto).

Notamos que a Guarda Civil, coordenadora das ações de Defesa Civil


em Ribeirão Preto, atua apenas no resgate, como também havia relatado a
Secretária de Assistência Social do município. A relação deste órgão com
os moradores do conjunto habitacional no Jardim Wilson Toni se dava quan-
do estes ainda habitavam os núcleos de favela da Vila Elisa, Zanetti e
Tanquinho. Quando ocorriam as enchentes, a Guarda Civil era acionada
para atuar no resgate dos moradores. A atuação local da Defesa Civil é com-

– 163 –
patível com o discurso e as práticas recomendados pelo Sistema Nacional
de Proteção e Defesa Civil, nos quais as ações de resgate constituem-se no
ápice do esforço profissional e balizam-se em medidas pontuais de reabili-
tação mais imediata, operando sobre a lógica de restabelecer uma normali-
dade prévia ao “momento trágico” (ou à crise aguda) que um acontecimento
físico (no caso, as enchentes) desestruturou circunstancialmente. Por isso,
ao indagar o coordenador municipal de Defesa Civil sobre o tipo de rela-
ção que se dava no contato com os grupos sociais afetados este relatou:
Vem o aviso meteorológico que vai ter uma chuva muito forte, tan-
to a Guarda Civil municipal quanto o corpo de bombeiros já ia
para aquele local [dos três núcleos de favela aqui retratados na tese],
inclusive fica até com botes ali. Se precisasse, já entrava em ação,
se não precisasse, melhor, recolhia e ia embora. Então a gente co-
laborava nessa parte (Relato do Coordenador da Defesa Civil de
Ribeirão Preto).

Portanto à coordenação da Defesa Civil de Ribeirão Preto não coube


uma ação verdadeiramente efetiva no processo de deslocamento dos mora-
dores dos núcleos de favela para o Jardim Wilson Toni, apenas fizeram um
acompanhando no que diz respeito ao transporte dos bens materiais dos mo-
radores para a nova residência.
À COHAB coube o papel de coordenação para implantação do con-
junto habitacional do Jardim Wilson Toni. Em parceria com a Caixa Eco-
nômica Federal (via programa Minha casa Minha Vida)8 a COHAB reuniu
um corpo de técnicos (assistentes sociais, arquitetos, advogados) para
direcionar os trabalhos, inclusive aqueles de cunho social. Apesar de ter
como missão institucional garantir o acesso à moradia para os grupos soci-
ais de menor renda desenvolvendo programas habitacionais e “promoven-
do a construção de novas unidades com recursos provenientes do Fundo
Municipal de Habitação e de convênios com agentes financeiros, como a
Caixa Econômica Federal, outras entidades governamentais e iniciativa
privada” (RIBEIRÃO PRETO, s/ano), a COHAB, como dito anteriormen-
te, tem sofrido um redirecionamento institucional voltando-se mais para as
demandas do mercado. Por isso, no desenvolvimento do conjunto habita-
cional do Jardim Wilson Toni foi a Assistência Social municipal que assu-
miu a responsabilidade pelos trabalhos e demandas da área de HIS.
Portanto, no processo de viabilização/implantação deste conjunto
habitacional a COHAB ficou responsável pela demanda aberta (oriunda do

8. Foi na concepção do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni que se deu a primeira
inserção do programa Minha casa Minha vida no município de Ribeirão Preto/SP.

– 164 –
cadastro feito pela própria companhia, a partir do qual a demanda é aten-
dida por meio de sorteios das unidades habitacionais) e a Assistência Social
pela demanda fechada (oriunda de projetos sociais e habitações de risco).
No período que antecedeu o deslocamento dos moradores dos núcle-
os de favela, coube a Assistência Social o “congelamento” de tais núcleos,
a fim de cadastrar os moradores e definir hierarquias de prioridades de aten-
dimento. Além desses cadastros, a Assistência Social realizou reuniões de
modo a “preparar” tais moradores para uma nova lógica a qual seriam in-
seridos: a lógica condominial. Tais reuniões abordavam os seguintes temas:
meio ambiente; relacionamento/convivência; geração de renda; preservação
ambiental. Remetendo a Foucault (1987), podemos afirmar que a Assistên-
cia Social exerceu, neste momento, um papel de disciplinar os grupos soci-
ais empobrecidos pela imposição de normas/condutas externas e estranhas
a eles. Isto é, a política pública habitacional que foi concebida em âmbito
federal, e referendada em nível municipal, impunha um projeto de morar
bem diverso daquele no qual estavam assentados os sentidos de viver, o
mundo vivido, dos grupos sociais empobrecidos que seriam deslocados.
Após o deslocamento, a Assistência Social se manteve no conjunto
habitacional, diariamente, pelo período de 45 dias com o propósito de acom-
panhar as demandas dos moradores:9
A Protenco [construtora] cedeu um apartamento. Ela cedeu um apar-
tamento de uma quadra que ainda não tinha sido ocupada e nós fi-
zemos 45 dias dessa trabalho permanente. E depois, nós fomos
levando, aos poucos, esse trabalho mais de plantão para o CRAS do
território. Nós fomos fazendo a transferência do trabalho para a
Assistência Social do território. Então isso foi aos pouquinhos. No
começo, a gente pedia cesta-básica, porque eles estavam pagando as
primeiras contas, orientava (Relato de uma das assistentes sociais do
município de Ribeirão Preto).

Por meio da observação direta do cotidiano da localidade e da realiza-


ção de reuniões, logo no início da ocupação do novo território, a Assistên-

9. Cabe ressaltar que, passados os 45 dias do deslocamento, e mesmo tendo encaminhado


os moradores para o atendimento no CRAS do território, as técnicas da área de Habita-
ção Social continuaram acompanhando as reuniões de condomínio dos diversos blocos
do Jardim Wilson Toni, prática esta que ainda persistia na data da última coleta de cam-
po (julho de 2012). Segundo informações da própria Assistência Social, esse vínculo se
mantinha porque o órgão de Habitação Social do município havia submetido um proje-
to para a Caixa Econômica Federal, a fim de dar continuidade ao trabalho social. Por isso,
a Assistência Social da HIS se manteve presente no Jardim Wilson Toni.

– 165 –
cia Social detectou conflitos gerados em torno da convivência entre os mo-
radores, tais como: o barulho gerado pela utilização do som alto por alguns
incomodava muitos moradores; os conflitos em torno do espaço de secagem
de roupas – disputas em torno do uso da grade do condomínio –, já que não
havia espaço suficiente para secarem dentro dos apartamentos; e problemas
com o correto acondicionamento do lixo nas áreas comuns do condomínio,
entre outros. A partir da identificação destes conflitos a Assistência Social
passou a realizar um trabalho porta a porta com dois objetivos: o primeiro,
educativo; e o segundo, controle social. Conforme relataram as assistentes
sociais:
Então, nas reuniões o que “pegava” era a questão do comportamen-
to. E, às vezes, a gente tinha que direcionar isso para o individual.
Nós fizemos uma ação de porta a porta, ela tinha dois objetivos:
o primeiro era o educativo, de ensinar a usar o vaso [sanitário], de
não jogar nada no vaso, nada na pia [gordura, óleo], de usar o
interfone; e também alguma parte de controle social [segundo ob-
jetivo], para ver se eles estavam morando, se eles já estavam lá, se
não era outra pessoa. Então, nós fizemos com esse dois objetivos.

Tal trabalho, porta a porta, foi balizado pela distribuição de uma


cartilha entre os moradores do Jardim Wilson Toni. A cartilha, apontando
compromissos e responsabilidades dos moradores no novo lugar, foi um dos
documentos utilizados pela Assistência Social na mediação dos conflitos.
O documento toma a forma de um mecanismo de controle para pacificar e
enquadrar os moradores do Jardim Wilson Toni à nova sociabilidade a que
foram submetidos pela política habitacional empreendida no município.
Desde o desenvolvimento do projeto deste conjunto habitacional, a
Assistência Social municipal propôs a distribuição mais aleatória entre o
grande conjunto de moradores, que descaracterizasse os subgrupos, espe-
cialmente, os oriundos das favelas, a fim de não criar estigmas para deter-
minados prédios/blocos/quadras que viessem a ser ocupados exclusivamente
por grupos sociais provenientes de núcleos de favela. Conforme relatou a
Coordenadora da área de HIS do município:
Então, esta questão da mistura eu bati muito o pé com isso, a equi-
pe aqui [da área de Habitação Social], foi muito favorável à gente
fazer isso. Existia uma resistência, no Executivo, de fazer a mistura
entre demanda aberta e demanda fechada. Mas, se a gente for colo-
car a favela numa quadra só ia estigmatizar essa quadra. Então, a
gente sabia que no começo ia dar muito problema, mas que a coi-
sa ia diluindo com o tempo, porque a gente sabe que as coisas tem
ascendência para melhorar (...) Mas, brigaram muito comigo, a pró-

– 166 –
pria Cohab, e tive que estar sempre justificando isso daí. Mas, eu
acredito que é o melhor caminho e ainda acredito que seja.

A marca social de desqualificação que o morador de favela carrega,


mesmo após ter de lá saído, pode ser entendida nos termos de Goffman
(1980) como o estigma, isto é, uma marca duradoura que classifica os gru-
pos sociais moradores ou advindos de favelas como “perigosos” e “sujos”,
por exemplo. Conforme relataram as assistentes sociais, quando do episó-
dio dos roubos dos botijões de gás (tratado no capítulo de minha autoria
no livro “Sociologia dos Desastres”, volume III), os moradores oriundos
da demanda aberta culpavam os “favelados” pelos roubos. Ou mesmo,
quan-do surgiram problemas com o acondicionamento dos lixos no
condomínio a culpa também era atribuída aos “favelados”.
Para lidar com a mediação/regulação do conflito entre esses dois gru-
pos, a Assistência Social utilizou-se de uma nova ordem discursiva, qual seja:
nomeá-los, todos, como condôminos.
A gente [Assistência Social Municipal] chega lá eles falam “eu sou da
favela tal” ou “fulano é da favela”. Eu falo não, você é do condomí-
nio tal, qual quadra mesmo você mora? Nós temos que trabalhar pra
mudar isso neles, para eles perderem esse vínculo com a questão de
favela. A gente diz: “a senhora agora é um moradora daqui, uma
condômina”. A gente usa esses termos para eles irem se apoderando
destas questões. Então a gente faz eles esquecerem (Relato de uma
das assistentes sociais do município de Ribeirão Preto).

Desta forma, a Assistência Social tentou promover uma integração


entre os dois grupos pela abstração, ou seja, trabalhou no intuito de regu-
lar e estabilizar as diferenças, por meio desta nova ordem discursiva imposta
pela trama relacional do poder que os sujeitam (FOUCAULT, 2009). As-
sim, segundo a Assistência Social municipal este conflito, com este tipo de
regulação, se diluiria com o tempo.
Quase um ano após a ocupação do Jardim Wilson Toni a Assistência
Social fez o seu balanço sobre o processo:
No início, a adaptação, o cumprimento de regras pelos morado-
res foi muito difícil. Não pendurar a roupa lá [grades da área co-
mum do condomínio]; não “mexer” no botijão do gás do outro;
manter limpo; responsabilidade financeira de assumir a prestação da
casa, do condomínio. Esse era o conflito. Hoje não, hoje você já
nem vê mais roupa pendurada (...) hoje, as pessoas nos convidam
para conhecer o apartamento arrumadinho (...) houve uma melho-

– 167 –
ra muito significativa na vida dessas pessoas (Relato de uma das as-
sistentes sociais do município de Ribeirão Preto).

Portanto, podemos concluir que, para a Assistência Social, após um


início que implicou lidar com a mediação de conflitos e no controle dos mes-
mos, as relações sociais se estabilizaram e o processo de deslocamento foi
considerado, no geral, exitoso.
Em busca do discurso dos moradores sobre a vivência no novo lugar,
incluindo aí melhoras e desafios no viver, retornei ao conjunto habitacional
do Jardim Wilson Toni, em meados de 2012.
Ao chegar lá, notei a presença de crianças e adolescentes nas ruas, no
campo de futebol, nas áreas internas e públicas do condomínio (nos blocos)
e muitos soltando pipa.Além das crianças, também vi muitas mulheres nos
espaços públicos de convivência do condomínio, onde ficam observando seus
filhos, realizando algum tipo de serviço doméstico (estendendo roupas,
cuidando das plantas), conversando com a vizinhança. Tal movimentação
me forneceu pistas para o que pude, posteriormente, observar nos depoi-
mentos dos moradores: os apartamentos não comportam o tamanho das
famílias. Quando da realização da primeira coleta de campo junto aos mo-
radores do Jardim Wilson Toni (2, 3 meses após terem se mudado para lá),
o problema do tamanho dos apartamentos para comportar as famílias ain-
da não constituía o discurso dos moradores sobre o novo lugar. Três podem
ser as razões para isso ter acontecido, a saber: 1) o período em que foi rea-
lizada a primeira coleta de campo coincidiu com a chegada do líder do trá-
fico na localidade, ou seja, coincidiu com o momento em que as famílias
sofreram o enquadramento à ordem imposta por ele – a estas pessoas não
era possível expor suas insatisfações por completo; 2) a inculcação, nestas
famílias, do conceito de “melhora de vida” que o ente público (neste caso,
a Assistência Social) exercia, por meio do discurso de oferta compensató-
ria de bens, tratando a vulnerabilidade como condição (mostrando, a todo
o momento, o que antes não tinha e o que agora vai ter/tem); e 3) o curto
espaço de tempo que havia ocorrido a mudança, o qual ainda permitia a tais
famílias relevar condições precárias em comparação a vivência da enchen-
te na localidade onde anteriormente habitavam.
Independente das causas que possam ter invisibilizado o discurso de
insatisfação em relação ao tamanho dos apartamentos no primeiro momen-
to, fato é que, na segunda coleta de campo no conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni, tal discurso é o que causa uma separação analítica entre
os que estão satisfeitos com o novo lugar de moradia e os que não estão.
Ou seja, o tamanho das famílias é o principal marcador de satisfação/insa-
tisfação no morar. Se a família é composta por mais de quatro pessoas, gran-

– 168 –
des são as possibilidades desta não estar satisfeita com a solução de morar
viabilizada pelo ente público. Seguem alguns relatos referentes às famílias
compostas por mais de 4 pessoas:
Tem gente com 5 crianças em apartamento. Dá dó, porque fica tudo
amontoado. Eu acho que eles deviam fazer assim: quem tem mais
de dois filhos eles tinham que dar casa. Não virar essa bagunça que
virou. Da muita dó de gente com um monte de criança (Entrevista-
do 6, morador do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).
Nós somos em 8 crianças e 5 adultos. E tá apertado. Não tem onde
essa molecada ficar e não quero que fique na rua, fico pedindo para
eles fazer as coisa (levar a roupa no varal, varrer a casa, molhar o jar-
dim) (Entrevistado 5, morador do conjunto habitacional do Jardim
Wilson Toni).
Não tem onde essas crianças ficarem, vão tudo pra rua (...) aí, já viu,
né?! Pra “chegar” no crime é um pulo (Entrevistado 1, morador do
conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).

A aflição das mães, devido ao pequeno espaço privado do apartamen-


to, não diz respeito, apenas, a este reduzido espaço físico, mas sim, que por
conta deste, as crianças precisem se socializar no ambiente público do bairro,
onde podem ser aliciados pelo tráfico de drogas presente na localidade.
E, são estas mesmas famílias numerosas as que continuam sofrendo
com o endividamento financeiro (como observado já na segunda coleta de
campo, realizada em novembro de 2011) ao serem inseridas na “economia
do habitar”, na qual passam a pagar pelos serviços públicos acessados. E,
algumas, para não se endividarem, sacrificam a alimentação digna em de-
trimento do pagamento das contas:
Se vê, lá a gente não pagava água, não pagava luz, porque era tudo
gato. Não pagava aluguel. Aqui nós temos que pagar o condomínio
(...) aí que aperta mesmo. Nós tamo com mais de 8 prestação atra-
sada [do financiamento do apartamento] e do condomínio também.
Você paga o condomínio e você não vê o que tá pagando, porque não
aparece (Entrevistado 5, morador do conjunto habitacional do Jar-
dim Wilson Toni).
Que nem agora, to sem nada lá dentro de casa com 3 ou 4 con-
ta pra pagar. Agora a gente tem menos o que comer, se antes com-
prava 3 pacotes de bolacha no mês pra menina, agora compro só
um...e olhe lá (Entrevistado 7, morador do conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni).

– 169 –
Porque tem muuiita gente aqui que passa até necessidade pra
poder pagar as contas, não tem nem aonde cair morto. Enten-
deu?(Entrevistado 6, morador do conjunto habitacional do Jardim
Wilson Toni).
Não vou mentir não bem, vai fazer um ano que eu moro aqui eu pa-
guei duas contas de condomínio. O resto tá tudo atrasado (Entrevis-
tado 8, morador do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).

As três razões citadas anteriormente que podem ter contribuído para o


não aparecimento, num primeiro momento, do discurso de insatisfação dos
moradores do Jardim Wilson Toni sobre o tamanho das famílias em relação
ao espaço físico do apartamento, também podem ter influenciado uma se-
gunda constatação minha nesta coleta de campo, qual seja: a maioria dos
entrevistados, no início da entrevista, afirma que tudo está melhor em suas
vidas do que antes. Somente após algum tempo de entrevista é possível cap-
tar as insatisfações dos moradores no viver no Jardim Wilson Toni. Importan-
te ressaltar que se esta pesquisa fosse de cunho quantitativo, com questões
fechadas, interessada em cobrir o universo de “removidos” e agora residen-
tes no Jardim Wilson Toni, talvez apreendêssemos outro discurso dos mora-
dores sobre o processo de deslocamento e vivência no novo lugar.
Algumas formas de trabalho foram inviabilizadas com a mudança para
os apartamentos, quais sejam: a catação de materiais recicláveis e a criação/
venda de animais, principalmente porcos e galinhas. O espaço público do
condomínio não pode ser utilizado para criação de animais nem para o
armazenamento de materiais recicláveis. Assim, o aumento dos gastos de
algumas famílias veio acompanhado da diminuição de suas rendas – o que
só aumentam as chances para a formação de um quadro de endividamento
financeiro cada vez maior destas famílias.
E lá também eu tinha outro serviço, eu trabalhava com reciclagem.
Aqui eu não trabalho com reciclagem. Aqui eu só limpo o condomí-
nio. Eu sou faxineira (Entrevistado 9, morador do conjunto habita-
cional do Jardim Wilson Toni).
Eu tinha carrinho que eu pegava papelão, mas não podia trazer e eu
não trouxe (...) Antes eu tirava mais dinheiro, mas agora a gente vai
tocando. Eu tinha galinha lá, aqui não pode. Acabei com tudo. Eu
vendia ovo caipira (Entrevistado 11, morador do conjunto habita-
cional do Jardim Wilson Toni).

Em contraposição ao grupo das famílias endividadas financeiramente


e ao do grupo de famílias numerosas estão as famílias compostas por duas

– 170 –
pessoas. Este tipo de família se adaptou melhor à “economia do habitar”,
mas, também, não sem esforços.
Pago condomínio, pago água, pago luz, a parcela da casa, dos mó-
veis, mas to dando conta de tudo pegando mais faxina. Porque eu
trabalho, meu filho estuda então tem a bolsa família. Ele faz um
curso com a assistente social também e ele ganha 80 reais por mês
[família = mãe e filho] (Entrevistado 9, morador do conjunto
habitacional do Jardim Wilson Toni).
Tá tudo direitinho as contas. Mas, a conta de luz tá muito alta. Vem
mais de 100 reais todo mês (...) Então, a gente que é aposentado,
ganha só um salário mínimo. Mas, só o salário mínimo não dá, por-
que aqui vem muita conta pra gente pagar: é condomínio, é água, é
luz, é a prestação do apartamento, é o IPTU. Se for puxar na ponta
da caneta mesmo gasta uns quase 400 reais por mês só com isso.
Agora, se não trabalhar por fora, não tem condições. Eu pego bico
de pedreiro (Entrevistado 10, morador do conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni).
E tá dando [para pagar as contas]. Eu economizo mais o que eu pos-
so, tanto na água quanto na luz para eu não passar aperto pra eu
pagar e não deixar atrasar. Porque a conta se já viu, se você deixar
atrasar [família = casal de aposentados] (Entrevistado 11, morador
do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).

Uma vez inscrita na sociedade, onde os grupos sociais apresentam-se


como portadores de relações e interações diferenciadas com o meio, a polí-
tica habitacional de Ribeirão Preto não pode ser concebida e implementada
de forma una, universal e objetiva, à base do apagamento das diferenças.
Da forma como se concretizou, padronizando a dimensão física dos apar-
tamentos independente do tamanho das famílias, tal política obscurece as
relações de poder que, de fato, existem e promovem o deslocamento do
debate sobre direitos para o debate sobre necessidades. É como se, para os
pobres, qualquer coisa bastasse. Quando a atenção social não detecta esta
diferença de vivência de situação de morar, de habitar o lugar, ela também
opera de forma a homogeneizar as famílias, mantendo assim, sob controle,
apenas a necessidade (a carência) de tais grupos sociais. O debate sobre
direitos passa ao largo deste tipo de política.
O espaço físico reduzido dos apartamentos também interferiu no rit-
mo de algumas rotinas domésticas. Entre elas, a mais impactada foi a lava-
gem/secagem de roupa. No apartamento de 42m², o tanque encontra-se ao
lado da pia da cozinha, disposição esta que se torna um complicador na hora

– 171 –
de lavar roupas de cama, por exemplo. Conforme relatou um dos entrevis-
tados: “se vê que é tudo junto: o tanque e a pia. Se eu for lavar o pano de
chão eu sujo os pratos. Se eu for lavar os pratos eu sujo a roupa que tá no
tanque” (Entrevistada 9, moradora do conjunto habitacional do Jardim
Wilson Toni). (vide Figura 2).

Figura 2 No detalhe, proximidade entre otanque e a pia da cozinha


Imagem: Mariana Siena, julho de 2012.

Porém, a tarefa doméstica ainda mais difícil de ser executada e com-


plementar a atividade acima referida é a secagem da roupa. Presente em to-
dos os relatos, a viabilização desta atividade é a maior causadora de conflito
entre síndicos e moradores e entre estes e a Assistência Social. Nos aparta-
mentos, o espaço para colocação de varais é exíguo. Como não há uma área
de serviço, os varais são improvisados pelos cômodos do apartamento (vide
Figura 3). Todavia, quando a família é numerosa, o espaço dos cômodos não
se faz suficiente para a realização desta atividade. Como alternativa, mui-
tos moradores utilizam do espaço público do condomínio, especificamen-
te das grades que o cercam, para a secagem de roupas.

– 172 –
Figura 3 Varal para secagem de roupas improvisado dentro do quarto.
Imagem: Mariana Siena, julho de 2012.

Vale lembrar que, nas entrevistas com as assistentes sociais, estas rela-
taram que a realização da secagem de roupa não se constituía mais como
um problema na localidade. Afirmaram que os moradores não mais utili-
zavam as grades para tal atividade. Contudo, com apenas uma rápida ob-
servação no bairro, notei as roupas espalhadas pelas grades do condomínio
(vide Figura 4). Para além da observação direta do fato, em depoimentos
coletados junto aos moradores, a realização desta atividade ainda persiste
como um desafio a ser superado pelas famílias no cotidiano doméstico.
Tem que ir lavando aos poucos. Igual eu falo, a minha é fácil, por-
que é só eu e meu filho. Mas, aqui tem pessoa com 4, 5 crianças
ou até mais (Entrevistado 9, morador do conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni).
Aqui já é mais pequeno, porque é lavanderia e cozinha tudo junto.
Até pra colocar a roupa de cama é difícil também (colocar para
lavar e secar). A roupa de cama de tem que colocar uma na outra e
dobrar, senão cai no chão. Quando começa a chover aqui demora 3/
4 dias pra secar roupa. Agora quem tem máquina é rapidinho, por-
que um ventinho que bate já seca (Entrevistado 7, morador do con-
junto habitacional do Jardim Wilson Toni).

– 173 –
Pra seca roupa é fogo. Roupa grossa então. Quando tem jeans assim
eu levo na minha irmã, ela tem quintal, e seca lá (Entrevistado
11, morador do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).
O problema é secar. A gente tá colocando aqui [em cima da casinha
do gás, já que os dois moram no térreo e a janela deles fica em cima
desta casinha]. E meu marido não deixa eu por na cerca, porque
vão dar multa. Então, agora eu to pondo aqui. E lá [dentro do apar-
tamento] cinco varal tá cheinho.To sofrendo pra secar roupa. (Entre-
vistado 10, morador do conjunto habitacional do Jardim Wilson Toni).
O meu varal é aqui [na cerca]. Eles falaram [síndico juntamente
com Assistência Social em reunião de condomínio] que ia dar multa
e eu falei pra eles mandarem que eu rasgo. É uai, quero ver eles
fazer eu pagar uma coisa que eu não tenho nem dinheiro pra pagar.
Só roupa íntima que a gente estende lá dentro, porque aqui fora fica
muito feio (Entrevistado 5, morador do conjunto habitacional do
Jardim Wilson Toni) (vide Figura 5).

Figura 4 Roupas secando na área pública do condomínio (grades).


Imagem: Mariana Siena, julho de 2012.

– 174 –
Figura 5 Crianças recolhendo a roupa seca das grades do condomínio.
Imagem: Mariana Siena, julho de 2012.

Pude depreender, a partir na análise do discurso do entrevistado, que


a “o meu varal é aqui”, marca uma posição do locutor em relação às regras
do condomínio. É uma resistência no lugar e pelo uso dele, onde diariamente
os moradores realizam a gestão de seus recursos. Mas é, também, uma re-
sistência no campo discursivo das mobilizações e reinvindicações, que pro-
curam proteger e afirmar sua legitimidade nas correlações de força que
marcam atualmente seus confrontos com as regras impostas pela vivência
em condomínio.

CONCLUSÕES
Há uma contraposição entre o lugar (como um suporte de ser no mun-
do) e a política habitacional de Ribeirão Preto, pois esta se firma a partir
da estabilização e/ou do apagamento das diferenças (de tamanho de famí-
lias; de ocupação; de sociabilidade – rural e urbana) e não numa análise de
poderes operantes. O local, a partir desta perspectiva, aparece como “uma
paisagem, como um cenário de intervenção da obra transformadora. O cen-
tro dessa abordagem é uma visão provinciana de lugar que retira deste toda
capacidade agenciadora” (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 456). Nesta pers-

– 175 –
pectiva, os moradores do Jardim Wilson Toni passam de cidadãos de direi-
to para “dependentes do Estado” e a Assistência Social de agente de trans-
formação para agente de regulação.
O desastre persiste como crise crônica, como “fantasma” (responden-
do à pergunta feita no título deste subitem: não, o desastre não acabou), já
que a politica de habitação não foi construída considerando as especi-
ficidades dos subgrupos de seu público-alvo. E, da forma como estão e se
dão, estas políticas reverberam na perpetuidade da carência quando deslo-
ca o debate do atendimento dos direitos para o debate das necessidades.
Parece-me que a interpretação que a Assistência Social tem de toda a
problemática aqui exposta é de agrupar dois eixos de maneira hierarquizada,
a saber: o eixo da viabilização do projeto de engenharia; e o eixo das famí-
lias oriundos de “áreas de risco” tenham onde morar. Sempre o eixo das
famílias precisa se ajustar ao eixo da viabilização do projeto de engenharia.
Ou seja, prevalece a noção de viabilidade do projeto habitacional construída
a partir da invisibilização de seus custos sociais (endividamento das famí-
lias, problemas com o tráfico, dificuldades na execução das tarefas diárias).
Mas, não somente invisibilização, como também o controle, a relação de
poder sobre o grupo de moradores.
Deste modo, no plano concreto do espaço vivido, onde o desastre se
constitui, o contexto sociopolítico gera soluções que acabam por deterio-
rar ainda mais as condições de vida dos grupos sociais empobrecidos, mes-
mo quando as enchentes não mais ocorrem. A solução de moradia da forma
como foi concebida, primeiramente pelo governo federal (através do Pro-
grama “Minha casa Minha vida”) – por meio de projetos e programas
habitacionais que pouco consideram a especificidade do local – e posteri-
ormente endossada pelo governo municipal, criou novos obstáculos à
vivência social do grupo ao qual o mesmo se destina. Tudo se passa como
se a dissolução de territorialidades precárias, por meio da “‘remoção” de seus
moradores, resultasse em reduzir a sua vulnerabilização, quando só a des-
loca, posto que os sujeitos degradados e os processos sociais degradantes são
preservados” (VALENCIO, 2012b, p. 93). Os processos sociais degradan-
tes se mantem sob outra roupagem.
Importante ressaltar que estas conclusões não têm o intuito da “críti-
ca pela crítica” ao agente de Estado responsável pela atenção social aos afe-
tados em desastres. A partir da análise in loco, observam-se as condições de
trabalho com as quais estes agentes de Estado precisam lidar (poucos
recursos financeiros e humanos para lidar na resposta/reabilitação/recons-
trução – tanto em nível federal quanto municipal; a Assistência Social de
Ribeirão Preto precisando suprir demandas do setor de habitação que não

– 176 –
fazem parte do escopo de suas responsabilidades profissionais, são alguns
dos exemplos vistos neste trabalho). Porém, tal precariedade do próprio tra-
balho dos agentes do Estado não justifica a pouca abertura para se pensar
reflexivamente e participativamente sobre a atenção social em desastres.
Se para as políticas de Estado o processo de vulnerabilização social
continuar não sendo considerado, as políticas de atendimento aos afetados
em desastres continuarão precárias, balizadas pelo reino das necessidades
(e não dos direitos), não ultrapassando, assim, o suprimento das carências.
Como cientista social, que observa as “nuvens cinzentas”, digo que é pre-
ciso, sim, suprir as carências (e a atenção social é muito importante nesta
fase), num primeiro momento. Mas, o problema reside em não conseguir-
se ultrapassá-las, comprometendo a busca de direitos de cidadania dos que
vivem sob as “nuvens cinzentas” da cotidiana proteção social desigual.

REFERÊNCIAS
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ONAL DE PRODUTORES E USUÁRIOS DE INFORMAÇÕES SOCIAIS, ECONÔ-
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VulnerabilidadeAmb ProcRelAcselrad.pdf>. Acesso em: 15 mar. 2012.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. Tradução de Lígia M. Pondé Vassalo. 5.ed. Petrópolis:
Vozes, 1987.
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Edições Loyola, 2009.
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de Márcia Bandeira de Mello Leite Nunes.Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1980.
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democrática. São Paulo: Cortez, 2004.
RIBEIRÃO PRETO. COMISSÃO MUNICIPAL DE DEFESA CIVIL/COMDEC. Plano de
Ação para emprego dos órgãos municipais integrantes da Defesa Civil, em caso de
enchentes. 2008. Disponível em <http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/dcivil/
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______. COMPANHIA HABITACIONAL REGIONAL/COHAB. Atuação. s/ano. Disponí-
vel em: <http://www.ribeiraopreto.sp.gov.br/cohab/i08atuacao.php>. Acesso em: 23 jun.
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lo: Hucitec, l997.
______. Por uma outra globalização: do pensamento único à consciênciauniversal. Rio de
Janeiro; São Paulo: Record, 2000.

– 177 –
SIENA, M. A vulnerabilidade social diante das tempestades: da vivência dos danos no
domicílio à condição de desalojados/desabrigados pelo recorte de gênero. 2006. Monografia
(Graduação em Ciências Sociais) – Departamento de Ciências Sociais, Universidade Fede-
ral de São Carlos, 2006.
______. A Dimensão de Gênero na Análise Sociológica de Desastres: conflitos entre
desabrigadas e gestoras de abrigos temporários. 2009. Dissertação (Mestrado em Sociolo-
gia) – Programa de Pós-Graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos,
2009.
VALENCIO, N. A crise social denominada desastre: subsídios para uma rememoração coletiva
acerca do foco principal do problema. In:______. (Org.). Sociologia dos Desastres: cons-
trução, interfaces e perspectivas no Brasil. v. 3. São Carlos: RiMa Editora, 2012a. p. 3-22.
______. Para além do ‘dia do desastre’: o caso brasileiro. Curitiba: Editora Appris, 2012b.
ZHOURI, A. OLIVEIRA, R. Quando o lugar resiste ao espaço: colonialidade, modernidade
e processos de territorialização. In: ZHOURI, A.; LASCHEFSKI, K. (Orgs.). Desenvolvi-
mento e conflitos ambientais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 439-462

– 178 –
CAPÍTULO VII

DA PRODUÇÃO SOCIAL DA ENCHENTE À


VIOLÊNCIA DAS REMOÇÕES:
TENSÕES E CONCLITOS NO BAIRRO
CHÁCARA TRÊS MENINAS, JARDIM
PANTANAL, MUNICÍPIO DE SÃO PAULO/SP
Carina Bjornstad Lutke

INTRODUÇÃO
Os estudos sobre os desastres são relativamente recentes no contexto
acadêmico. Segundo Quarantelli (1998), foi a partir da Segunda Guerra que
os cientistas sociais começaram a produzir pesquisas de forma mais recor-
rente sobre situação de desastres com foco em estudos perceptivos e compor-
tamentais das pessoas. Em meio a um contexto de sucessivos alertas das
Nações Unidas de que os desastres passarão a ser cada vez mais frequentes
e intensos, tais estudos mostram-se importantes para melhor compreensão
acerca do tema.
De acordo com Siena (2011), o desastre constitui-se não apenas como
acontecimento físico, mas também como ruptura da dinâmica social exis-
tente, como desaglutinador da ordem social numa dada localidade.
O número de decretos de situação de emergência e estado calamidade
pública reconhecidos pelo Brasil, em 2013, foi o maior nos últimos 10 anos1
e o maior na história da Secretaria Nacional de Defesa Civil (Sedec), atin-
gindo 3.747 decretos. Trata-se de um aumento de 182% em relação ao ano
de 2003. Apesar da quantidade de decretações municipais de desastres no
estado de São Paulo ser pouco significativa no conjunto dos demais esta-
dos da federação, as comunidades que vivenciam essa situação é de sofri-
mento social.

1. Número de decretos reconhecidos no Brasil por ano de 2013 a 2003: 2013 - 3.747,
2012 - 2.776, 2011 - 1.282, 2010 - 2.765, 2009 - 1.292, 2008 - 1.502, 2007 -
1.615, 2006 – 991, 2005 - 1.711, 2004 - 1.760, 2003 - 1.325. Disponível em:
<http://www.integracao.gov.br/>.

– 179 –
De acordo com Pussetti e Brazzabeni (2011), o sofrimento, enquanto
sentimento eminentemente humano, foi por muito tempo imaginado ape-
nas como uma experiência inata, ligada ao corpo natural e, portanto, univer-
sal – fenômeno pan-humano e pré-cultural, associado aos lugares simbólicos
da interioridade. Contudo, a partir de uma análise mais atenta dos estudiosos,
o sofrimento revela-se como um fato social. Sendo assim, o sofrimento so-
cial não pode, então, ser observado e explicado independentemente das
dinâmicas sociais e dos interesses políticos e econômicos que o constroem,
reconhecem e nomeiam. O sofrimento social, nesta perspectiva, resulta de
uma violência cometida pela própria estrutura social e não apenas por um
indivíduo ou grupo que dela faz parte: o conceito refere-se aos efeitos noci-
vos das relações desiguais de poder que caracterizam a organização social.
O mal-estar social deriva, portanto, daquilo que o poder político, econômico
e institucional faz às pessoas e, reciprocamente, de como tais formas de
poder podem influenciar as respostas aos problemas sociais. O sofrimento
social é o resultado, em outras palavras, da limitação da capacidade de ação
dos sujeitos e é através da análise das biografias dos sujeitos que podemos
compreender o impacto da violência estrutural no âmbito da experiência
quotidiana (PUSSETTI; BRAZZABENI, 2011).
O sofrimento multidimensional, por sua vez, é entendido pelo amplo
rol de danos e prejuízos sociais, materiais, psicossociais e simbólicos impli-
cados na vida das comunidades afetadas. Tal sofrimento está relacionado ao
crescente número de pessoas que morrem, são feridas, adoecem ou cujos cor-
pos desaparecem em tais eventos; à danificação ou destruição de objetos de
trabalho; à perda de moradias e bens móveis indispensáveis à vida cotidia-
na, perturbando o sistema de reprodução social da esfera privada dos afe-
tados, que está articulada aos sentidos identitários dos sujeitos; à perda de
funcionalidade de escolas e outros espaços sociais da comunidade (Valencio,
2012). As perdas e os danos daqueles que vivenciam o desastre têm signifi-
cados e sentidos particulares daqueles que as sofrem e não podem ser
mensuradas apenas nos termos de quem atende essas pessoas, e somente
por quem está passando a situação.
A recorrência dos desastres merece mais atenção, principalmente quan-
do se percebe a incidência dos mesmos tipos de desastres, sempre na mes-
ma época do ano, afetando repetidamente e cada vez mais os mesmos locais
e os mesmos grupos sociais. Mesmo os desastres relacionados às chuvas
sendo relativamente previsíveis, devido à concentração da precipitação se
dar sempre no período de verão no estado de São Paulo, não são evidencia-
das respostas satisfatórias de prevenção ou mitigação de danos pelas auto-
ridades competentes frente tais fenômenos. Mas, o discurso das autoridades
expressa a causa do desastre como decorrente puramente do fator ambiental

– 180 –
e indica que foram surpreendidos por tais ameaças. Não se evidencia uma
problematização a questão da vulnerabilidade, entendida pela Sociologia
como fundamental para a contextualização dos desastres.
A omissão do Estado, em relação ao seu dever de apoiar os grupos
vulnerabilizados frente ao contexto de desastre, nos remete ao conceito de
“racismo de Estado” apresentado por Foucault (2005). Segundo o autor, “ra-
cismo de Estado” seria o meio que torna possível a eliminação de uns e não
de outros e que se governe apenas para uma parcela da sociedade, desativando,
portanto, o estatuto de cidadãos de fração populacional. O racismo de Esta-
do é o elemento comum entre os conceitos de poder soberano e biopoder. O di-
reito do poder soberano é o “de fazer morrer ou de deixar viver”, já no
biopoder o direito é o “de fazer viver e de deixar morrer”. O direito de “dei-
xar morrer” pode se dar de forma indireta, trata-se do “fato de expor à mor-
te, de multiplicar para alguns o risco de morte ou, pura e simplesmente, a
morte política, a expulsão, a rejeição, etc.” (FOUCAULT, 2002, p. 306).
A presença de uma distância social que separa mundos contrastantes
e hierarquizados em termos de condições e qualidade de vida é evidente.
Mundos distanciados por uma barreira que separa a classe trabalhadora po-
bre das outras classes sociais que gozam de inúmeros privilégios (ZALUAR,
1985). O conceito de segregação condiz com marginalizar, pôr à margem,
afastar. A noção de segregação sócio-espacial urbana designa as maneiras
como se apresenta dividida a ocupação do espaço no âmbito geográfico e
social em limites urbanos. Territórios específicos e separados para cada gru-
po social caracterizam um cenário urbano de dualidade.
Teresa Caldeira (2000) discorre, em “Cidade de Muros”, que ideais como
os de igualdade, liberdade, tolerância e respeito à diferença, são gradativamente
substituídos pela fragmentação e separação rígida sócio-espacial na cidade.
Nesse contexto, vem à tona o desrespeito à justiça e aos direitos individuais.
Haesbaert (2002) considera a existência da desterritorializações extremas, tam-
bém denominados de aglomerados de exclusão. Estes compreendem os grupos
marginalizados no “sentido de exclusão social de fato, o que significa a própria
exclusão do circuito capitalista explorador, típica da desterritorialização que as
redes das classes hegemônicas promovem no espaço dos miseráveis” (Haesbaert,
2002, p. 185). Para ele, “toda pobreza e, com mais razão ainda, toda exclusão
social, é também, em algum nível, exclusão sócioespacial e, por extensão, ex-
clusão territorial” (Haesbaert, 2004, p. 315). O processo socioeconômico e
político de urbanização acelerado, a industrialização baseada em baixos salá-
rios, o grande contingente de trabalhadores em situação informal e o elevado
fluxo de emigração do meio rural para os centros urbanos caracterizaram um
desenvolvimento desatento aos valores da democracia e dos direitos do cida-
dão. Esse intenso processo se reflete nas desigualdades sócio-espaciais existen-

– 181 –
tes atualmente, decorrentes do planejamento urbano preconizado pelo Esta-
do que sempre favoreceu a instalação dos mais pobres em regiões periféricas,
das quais muitas foram, posteriormente, chamadas de áreas de risco (M-
ARICATO, 2000; MARTINS, 2003).
A fim de substanciar a deslegitimação da moradia e da territorialização
dos cidadãos empobrecidos, o discurso e a prática institucional do Sistema
Nacional de Proteção e Defesa Civil priorizam, através de um fazer técni-
co, a cartografização do risco. Elaboram-se mapas de área de risco com o
intuito de atribuir responsabilidades aos pobres pelos danos ou destruição
de suas moradias. “Implica dizer que, sob uma narrativa de compromisso
com o valor maior da vida humana, se procede a uma cartografização da
cidade que descarta a compreensão dos fatores de ameaça no terreno atra-
vés de uma dimensão sócio-histórica mais abrangente e relacional.” (VA-
LENCIO, 2009, p. 35).
A cartografização do risco se impõe como uma fala técnica que im-
pede a vocalização de direitos dos que ali vivem, descartando simul-
taneamente a necessidade de outras interpretações. Ao delimitar o
lugar de vivência de populações empobrecidas como área de risco, o
referido mapa fundamenta as práticas de remoção compulsória dos
ali inseridos e evita mostrarem o pulsante conflito territorial que
caracteriza a cidade. (VALENCIO, 2009, p. 36).

A progressiva substituição da nominação ‘área carente’ para ‘área de risco’


é um mecanismo político de contestação da territorialização de grupos soci-
ais economicamente menos favorecidos. O conceito de ‘área de risco’ carre-
ga os significados do termo ‘área carente’ e ainda acresce componentes do
ambiente natural com o intuito de problematizar o direito de morar de par-
cela da população. O Estado se utiliza de tal mecanismo político e nominação
para legitimar o desfazimento do lugar e a eliminação da vizinhança inde-
sejada da paisagem urbana. “Trata-se do que o Torres et al. (2003), analisan-
do o caso do município de São Paulo, denominam como hiperperiferias, nas
quais os piores indicadores socioeconômicos coincidem com os riscos de en-
chentes e deslizamentos de terra.” (VALENCIO, 2009, p. 35).
Frente ao processo sócio-histórico baseado na exclusão, somado ao
déficit habitacional e à ausência de alternativas habitacionais regulares, a
população constrói sua moradia como pode, se instala em loteamentos ir-
regulares e, sobretudo, em terrenos susceptíveis como encostas, fundos de
vale e várzeas, o que torna as populações que ali habitam vulneráveis às
chuvas cotidianas (SIENA, 2010). É nesse contexto que surge o problema
socioambiental na Chacara Três Meninas.

– 182 –
A Subprefeitura de São Miguel Paulista - Zona Leste, onde está loca-
lizado o bairro Chácara Três Meninas, apresenta parte significativa dos
aglomerados subnormais do município de São Paulo (Figura 1).

Figura 1 Cartograma: Aglomerados subnormais no Município de São Paulo – 2010


Fonte: IBGE, Censo Demográfico 2010.

– 183 –
Através de discursos e meios midiáticos, passa-se a impressão de que o
fato dessas pessoas morarem em condições precárias, e em terrenos suscetí-
veis às ameaças das chuvas e com dificuldade de drenagem, fosse um risco
autoimposto à vida, uma espécie de escolha arbitrária. Tal discurso condena,
publicamente, a territorialização desses moradores como se fosse algo ilegí-
timo. Desconsidera-se, desumanamente, o contexto sócio-histórico no qual
as mesmas estão inseridas (VALENCIO, 2009). Além disso, quando foca-se
apenas na ameaça natural e não na vulnerabilidade, alocam-se para o indiví-
duo afetado pelos desastres as responsabilidades pelos eventuais danos que
venha a sofrer (idem, 2010a). Como consequência da desqualificação da
moradia dos mais pobres, através do uso político do mapeamento de risco,
verifica-se a prática de remoção – também utilizada pelo Estado como políti-
ca de prevenção. A prática de remoção compulsória, sustentada pelo concei-
to de área de risco, culpabiliza e impede a vocalização dos que ali vivem,
atropela os direitos humanos, o lugar e tudo o que ele representa.
Remover pessoas e suas moradias indica, ainda, a vontade pública de
promover uma intervenção paisagística radical, a fim de criar uma paisa-
gem social saneada, cujas consequências para a vida dos que ali se consti-
tuem são tratadas como algo secundário e não são o fundamento das
preocupações do Estado. Além do descaso das autoridades para com as pes-
soas a serem removidas, desconsidera-se seus vínculos com a comunidade,
a casa e o lar. Não bastasse a imposição da ação, o grupo a ser removido é
destituído de condições de argumentar, de ousar apresentar razões outras
para seus atos, de reivindicar o que quer que seja em prol do desejo de per-
manecer no local (VALENCIO, 2010a).
Tendo em vista a problemática supra, este trabalho descreve e analisa
sociologicamente as tensões vividas pela comunidade do bairro de Chácara
Três Meninas-SP em decorrência da sobreposição de dois fenômenos: a
vivência recorrente de enchentes2 sobre a qual se sobrepõe o fato da constru-
ção do Parque Linear do Tietê como solução para o território. Tal sobreposição
degrada a vida cotidiana e a afirmação identitária dos moradores da região,
que é territorialmente referenciada, além de caracterizar um processo de
desumanização provocado pelo Estado. Tanto o fato das enchentes quanto
da construção do Parque são utilizados, pelo meio técnico de órgãos do
Estado, ou a serviço do mesmo, para justificar o processo de remoção e
desterrito-rialização, o qual a comunidade vem vivenciando desde o ano de
2009.

2. O termo enchente foi utilizado no decorrer do trabalho, por ser a forma com a qual os
moradores se referem às mesmas.

– 184 –
SUJEITOS EM TENSÃO
A Chácara Três Meninas é um dos bairros que formam o denominado
Jardim Pantanal. Está localizada à margem esquerda do rio Tietê, no dis-
trito Jardim Helena, extremo leste do município de São Paulo (Figura 2).

Figura 2 Localização do Distrito Jardim Helena.


Fonte: http://www.nossasaopaulo.org.br/geo/eqpsp.php.

De acordo com dados fornecidos pelo Movimento de Urbanização e


Legalização do Pantanal (MULP),3 atualmente, cerca de 25 mil famílias
habitam o Jardim Pantanal, isto é, aproximadamente 100 mil pessoas. O
distrito Jardim Helena, circunscrito na área da subprefeitura de São Miguel
Paulista, por sua vez, possui aproximadamente 135 mil habitantes e área
de 9,2 km2, segundodados do IBGE de 2010 (Tabela 1).
A ocupação das várzeas do rio Tietê na Zona Leste é reflexo do inces-
sante processo de exclusão sócio-territorial que caracteriza o crescimento
desordenado das grandes cidades brasileiras, relegando, historicamente, a
população de baixa renda a ocupação de áreas periféricas e de risco. As po-
pulações empurradas para tais áreas, além de caírem no esquecimento do
ente público, são estigmatizadas.

3. http://cursinhomulp.wordpress.com/.

– 185 –
Tabela 1 Dados Demográficos dos Distritos pertencentes à
Subprefeitura de São Miguel Paulista.

Densidade Demográfica
Subprefeitura Distritos Área (km2) População
(Hab/km2)
São Miguel 7,70 91.238 11.850
São Miguel Jardim Helena 9,20 134.158 14.580
Paulista Vila Jacuí 7,80 141.900 18.190
TOTAL 24,70 367.296 14.870

Fonte: IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) - Censos Demográficos / SMDU/


Dipro - Retroestimativas e Projeções 2011.4

Parte do bairro Chácara Três Meninas é resultado de um processo de


ocupação de uma área irregular, iniciado em 1986, e que, atualmente, con-
templa parte significativa da população. Segundo Eduardo,5 líder comuni-
tário, 42% da população do Distrito Jardim Helena reside na área de
ocupação. Tal área foi cartografada como Área de Proteção Ambiental (APA).
Contudo, apenas em 1998, isto é, 12 anos após o início da ocupação, esse
lugar foi decretado como APA. Em seguida, o lugar foi cartografado como
uma área de risco – mecanismo técnico para tornar a comunidade ali habi-
tante ‘removível’.
Apesar da difícil condição de vida desses moradores, ressalta-se que os
mesmos têm sua relação material e simbólica intensa com suas casas e com
a comunidade. No local moram idosos, trabalhadores, crianças, bebês e
pessoas com deficiência que constituem famílias, relações sociais, vínculos
afetivos tanto com as pessoas, quanto com o espaço físico que compartilham.
O lugar, isto é, a Chácara Três Meninas, têm sentidos pessoais que vão além
da compreensão do olhar técnico e dos que não partilham do mesmo espa-
ço e universo de significações. O conceito de lugar significa, aqui, o resgate
da categoria de espaço como “esteio da identidade”, como “suporte do ser
no mundo”, como “referenciais que tornam os homens sujeitos de seu tem-
po” (DELGADO, 2006, p. 37).
Os moradores da área irregular do bairro têm suas vidas marcadas pela
falta de urbanização e de infraestrutura básica, o que contribui para as re-
correntes enchentes que atingem o local em época de chuva. Algumas ruas
e casas da região enchem de água recorrentemente, deteriorando a vida dos
moradores da comunidade que ficam expostos a contaminações decorren-
tes dos fluxos hídricos, a perdas constantes de alimentos, além de terem sua
circulação pelo bairro dificultada pela enchente.

4. http://www.nossasaopaulo.org.br/.
5. A fim de preservar a confidencialidade dos entrevistados, todos os nomes utilizados são
fictícios.

– 186 –
As enchentes provocam uma interação entre a comunidade e os assis-
tentes sociais.As lideranças comunitárias entram em contato com os assis-
tentes sociais para solicitar cestas básicas, colchões, móveis, roupas e
remédios, para substituir as perdas dos moradores. Um desastre, que ocor-
reu em dezembro de 2009 na Chácara Três Meninas, colocou a comunida-
de em contato também com a Defesa Civil, a qual seria, teoricamente,
responsável pela prevenção, preparação e mitigação dos danos e prejuízos.
Contudo, de acordo com moradores, apesar das incessantes solicitações fei-
tas por lideranças locais por ações para prevenção e mitigação das perdas,
essa relação, entre Defesa Civil e comunidade, caracteriza-se pela omissão
dessas ações.
Eduardo relata que, quando as ruas e as casas enchem de água, a Polícia
Militar se posiciona em frente à porta das escolas da região impedindo que
os moradores das casas afetadas permançam nas mesmas durante as enchen-
tes. Moradores apontam que a polícia faz uso da força e da violência física
ao lidar com a população local. Em meados de 2009, a comunidade local foi
surpreendida com uma solução do Estado para a região. Contudo, tratava-se
de uma solução para o território que descartava a comunidade e seus mora-
dores: desenvolveu um projeto para construção de um parque linear6 na re-
gião, de forma a legitimar a remoção de parte da comunidade. Essa solução –
para o território e não para os moradores do local - desconsidera todo o so-
frimento envolvido no processo de desterritorialização, de ruptura do lugar
e de desconsideração com o direito dos moradores a uma moradia digna.
No dia 20 de julho de 2009, foi oficialmente lançado o projeto para
construção do Parque Várzeas do Tietê, o qual é de responsabilidade do
Departamento de Águas e Energia Elétrica (DAEE) – órgão estadual. O
Parque Várzeas do Tietê será o maior parque linear do mundo, terá 75 km
de extensão e área total de 107 km² quando finalizado. O Parque será im-
plantado ao longo do rio Tietê, unindo o Parque Ecológico do Tietê (locali-
zado na Penha) e o Parque Nascentes do Tietê (localizado em Salesópolis)
(Figura 3).
O investimento total previsto é de R$ 1,7 bilhão para um prazo de 11
anos, até 2020. Uma parte do financiamento é de responsabilidade do Es-
tado de São Paulo e outra parte de responsabilidade do Banco Internacio-
nal de Desenvolvimento (BID). A programação de construção está dividida
em três fases. A primeira, de 5 anos, entre 2011 a 2016, será implantada

6. Parques lineares caracterizam-se como uma intervenção urbanística associadas aos cur-
sos d’água e tem como principal objetivo proteger e recuperar o ecossistema ligados aos
corpos d’água, afim de controlar enchentes e propiciar áreas verdes destinadas a ativida-
des culturais e de lazer.

– 187 –
num trecho de 25 km entre o Parque Ecológico do Tietê até a divisa de
Itaquaquecetuba. A segunda etapa tem 11,3 quilômetros e abrange a vár-
zea do rio em Itaquaquecetuba, Poá e Suzano, com previsão de término em
2018. E a terceira fase, de 38,7 quilômetros, se estenderá de Suzano até a
nascente do Tietê, em Salesópolis e deverá ser concluída em 2020.

Figura 3 Área de construção do Parque várzeas do Tietê.


Fonte: http://www.daee.sp.gov.br.

Oficialmente, a principal razão de ser do parque é a recuperação e pro-


teção da função das várzeas do rio Tietê, que voltariam a fazer o papel de
reguladoras das enchentes. Contudo, é necessário se atentar que o gigan-
tismo revelado pelo projeto também se reflete no elevado número de famí-
lias que estão previstas de serem removidas. “(...) respaldado por um forte
argumento ambiental, o projeto se legitima e os impactos sociais, especial-
mente aqueles decorrentes das remoções promovidas em função de sua
implantação, são ocultados e negligenciados”, critica o Observatório de
Remoções (CARTA MAIOR, 2012). O número de famílias a serem remo-
vidas não tem precisão: diferentes órgãos informam diferentes números de
famílias a serem removidas. De acordo com Eduardo, cerca de mil famílias
já foram removidas da região. A Secretaria Municipal de Habitação (Sehab)
afirma que 10.191 famílias serão desapropriadas – cerca de 40 mil pessoas -,
enquanto a Secretaria de Saneamento e Energia do Estado estima 7.500 fa-
mílias. De acordo com o Dossiê de Articulação dos Comitês Popular, o nú-

– 188 –
mero de famílias já removidas é de aproximadamente 4.000. Segundo re-
presentantes das comunidades afetadas, a construção do parque já causou
a retirada de 1.800 famílias (S/AUTOR, 2012).
Apesar da falta de informações fornecidas com relação à área exata de
abrangência do Parque, sabe-se que parte da população da Chácara Três
Meninas está inserida em área de construção do Parque Várzeas do Tietê e
terá que deixar suas casas. Os moradores da área de ocupação atualmente
vivenciam a sobreposição de uma dupla tensão: 1) o enfretamento das re-
correntes enchentes em época de chuvas; 2) o processo de deslocamento
compulsório, justificado pela construção do Parque Várzeas do Tietê.
O fato de a Chácara Três Meninas estar inserida na área de constru-
ção do Parque colocaria os moradores da região em contato o governo esta-
dual através do DAEE. Contudo, de acordo com líderes comunitários locais,
os representantes do DAEE não dialogam com os moradores. Apesar da
construção do Parque ser de responsabilidade de um órgão estadual, a Pre-
feitura é a responsável pelas políticas habitacionais, pelo cadastramento das
famílias residentes na área de ocupação e pela remoção das mesmas. Esta-
belece-se, portanto, uma relação entre comunidade e Prefeitura. Eventual-
mente, funcionários da Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) da
Prefeitura de São Paulo, organizam encontros com a população para escla-
recer o funcionamento de alguns processos, como o da eleição de represen-
tantes da região para o Conselho Participativo de São Miguel Paulista, por
exemplo. No entanto, de acordo com moradores, essa relação é vazia de
respostas consistentes por parte do governo municipal com relação ao as-
sunto da construção do Parque e remoção das famílias. Não informa preci-
samente a área sujeita à remoção, assim como não esclarece quando as
remoções ocorrerão. Além disso, a Prefeitura terceirizou os serviços de
cadastramento das famílias a serem removidas e a demolição das casas.
Segundo a repórter da Folha de São Paulo, Laura Capriglione, duas empre-
sas de “gerenciamento social” foram terceirizadas pela Prefeitura, a Cobrape
e a Diagonal.
A Cobrape é responsável pelo cadastramento das casas instaladas na
área irregular. Esse registro se dá através de um selo colado na porta das
residências. Contudo, é um processo feito sem que maiores esclarecimen-
tos sejam dados para as famílias moradoras dessas casas. Esse selo é cha-
mado pelos líderes locais como o “carimbo da besta”. Alguns moradores, que
têm o selo colado em suas casas, demonstraram não saber sobre o que o
mesmo se tratava. Relatavam que “eles” (funcionários da Cobrape) entra-
ram, colaram o selo e saíram sem se identificar e sem explicar o que o
selorepresentava (Figura 4).

– 189 –
Figura 4 “Carimbo da besta”. Selo de identificação para remoção das casas.
Foto: OLIVEIRA (2012).

A Diagonal, por sua vez, é responsável pela demolição das casas e re-
moção das famílias. No ato dessas práticas, os funcionários da empresa
Diagonal são acompanhados por funcionários da Prefeitura e da Polícia
Militar, que age com violência física contra aqueles que resistem ao deixar
suas casas, segundo os moradores entrevistados. Ao demolir as casas com
os tratores, os atores responsáveis pela demolição das casas desconsideram
as representações e laços afetivos da família com o seu lugar, seu lar.

FORMAS DE VIOLÊNCIA

Evidenciam-se na área de ocupação de Chácara Três Meninas diversas


forma de violências que atingem os moradores da região, tais como violên-
cia física, moral e simbólica que perpassam a falta de infraestrutura do lo-
cal, a vivência das enchentes e do processo de remoção em função da
construção do Parque Várzeas do Tietê.
A região ocupada de Chácara Três Meninas é marcada pela ausência
de infraestrutura básica. Apresenta carência de serviços públicos essenciais
(como coleta de lixo, rede de esgoto, rede de água, energia elétrica e ilumi-
nação pública [com exceção de algumas ruas]), não possui pavimentação
nas ruas, que são bastante acidentadas, dificultando a passagem de meios
automotivos. É classificada também uma área “congelada”, isto é, o lugar é
desprovido inclusive de ter acesso a alguns serviços privados. Uma mora-
dora informou que, ao tentar adquirir uma linha de telefone não pôde ser
atendida pois sua residência pertencia a uma área “congelada”.

– 190 –
Frente à carência de saneamento básico, o esgoto fica a céu aberto e a
população precisa construir, como pode, o seu próprio encanamento. As
casas que possuem água encanada apresentam encanamentos construídos
pelos próprios moradores, que acabam cedendo para os vizinhos – nota-se
a construção de laços e relações sociais. Contudo, além de não serem
construídos por técnicos especializados, os materiais utilizados para a
encanação não são fortes ou adequados suficientes. Em virtude das carac-
terísticas do solo e da falta de estrutura na construção dos encanamentos,
os mesmos acabam rachando e se “fundindo”, juntando o fluxo do encana-
mento do esgoto e da água. Um incidente da quebra e fundição das enca-
nações havia ocorrido próximo à data de uma das visitas a campo desta
pesquisa. O assunto foi abordado por um morador local que lamentava a
situação e tentava mobilizar os vizinhos para refazer a encanação. Eduar-
do também relatou ter visto a água, preta e com mal cheiro, saindo na tor-
neira das casas de algumas pessoas. Mesmo em condições “normais”,7 isto
é, de encanações não fundidas, para que os moradores possam beber água
a qual tem acesso, eles precisam fervê-la antes de ingeri-la, a fim de evitar a
contaminação através da mesma. Doenças provenientes da água não trata-
da fazem parte do cotidiano da Chácara Três Meninas. Em todos os dias
de visita desta pesquisa ao bairro, os moradores nos informaram que algu-
ma criança estava com diarreia e dor de barriga (Figuras 5 e 6).

Figura 5 Diversas casas compartilham da mesma saída de água. Imagem: Carina


Lutke, Comunidade Chácara Três Meninas, outubro, 2013.

7. “Normais”, pois, por direito, todos os cidadãos deveriam ter acesso a água e esgoto encanados.

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Figura 6 Moradores lavam a louça na água que escorre pelo chão. Imagem:
Carina Lutke, Comunidade Chácara Três Meninas, outubro, 2013.

Através da observação direta, constatamos a falta de desassoreamento


do rio Tietê na região, a falta de saneamento básico, de iluminação públi-
ca, de asfalto (Figura 7), de espaços públicos organizados, de uma infraestru-
tura de proteção entre a comunidade e o rio, desgaste nas casas decorrente
das enchentes, o que expressa a precariedade dos serviços públicos no local
e, consequentemente, o descaso das autoridades. As condições básicas para
uma população se manter saudável estão precárias no local.
A violência moral e física se entrelaça e se expressa, entre outro, pela
ausência de serviços públicos básicos, como saneamento básico, pela
inviabilizadade de acesso a serviços particulares, por serem estigmatizados,
entre outros. As recorrentes enchentes aviltam a vida dos moradores e per-
petuam o risco de contaminação dos mesmos por doenças infectocon-
tagiosas, além da perda constante de gêneros alimentícios e bens móveis em
contato com essa água contaminada. De acordo com Eduardo, os assisten-
tes sociais exigem que os moradores guardem os alimentos, roupas, móveis
etc. que estragaram para provarem suas perdas e para poderem reivindicar
e receber as substituições. O fato de precisarem guardar os bens estragados
até que os assistentes sociais retornem em visita ao local gera mau cheiro e
degrada a vida dos moradores que tentam manter suas condições de habita-
bilidade dentro de casa.

– 192 –
Figura 7 Ruas sem calçamento e casas de alvenaria sem acabamento.
Imagem: Carina Lutke, Comunidade Chácara Três Meninas, outubro, 2013.

Além das enchentes recorrentes, desde o dia 08 de dezembro de 2009,


os moradores da Chácara Três Meninas têm enfrentado uma de suas maio-
res tragédias. Uma enchente deixou grande parte da área debaixo d’água por
mais de 2 (dois) meses e marcou a vida da população local. Ao se lembra-
rem da tragédia, a dor na fala e no olhar dos moradores afetados é percep-
tível. Pode-se dizer que enfrentam esse incidente até hoje.
De acordo com o Eduardo, no dia 08 de dezembro, às 05h40min da
manhã, a pedido do governo estadual e com o intuito de evitar o alagamento
da Marginal Tietê,8 as comportas da barragem de Mogi das Cruzes foram
abertas e as comportas da barragem da Penha foram fechadas. Essa mano-
bra resultou num alagamento na região do Jardim Pantanal, incluindo a
Chácara Três Meninas. A barragem da Penha localiza-se em um ponto mais
baixo do rio Tietê com relação à barragem de Mogi das Cruzes, de forma
que a região ficou, inevitalmente, alagada. Fabiana Uchinaka (2009) aponta
que, dados fornecidos pelo engenheiro responsável pela barragem da Penha,
João Sérgio, indicam que houve uma clara escolha da empresa responsável:
alagar os bairros pobres da zona leste para evitar o alagamento das margi-
nais e do Cebolão, conjunto de obras que fica no encontro dos rios Tietê e
Pinheiros. “Mesmo fechando as comportas, encheu o [córrego] Aricanduva.
Se eu não tivesse fechado aqui, teria alagado as marginais e toda São Pau-
lo”, justificou Sérgio, que explicou que, apesar de a barragem pertencer ao
Departamento de Águas e Energia Elétrica, a decisão vem da direção da

8. Mais uma vez a assertiva de Foucault “fazer viver e deixar morrer” mostra-se presente.

– 193 –
EMAE (Empresa Metropolitana de Águas e Energia), cuja responsabilidade
é da Secretaria Estadual de Saneamento e Energia (UCHINAKA, 2009). De
acordo com João Sérgio, cada barragem é responsável apenas por adminis-
trar o fluxo de água do local e não sabe o que aconteceu nos outros pontos.
“Não recebo informações de outras barragens. As de cima são administradas
pela Sabesp e as de baixo pela Emae. Eu só respondo por essa barragem e
às ordens da Emae”. Mas ele acredita que as comportas da barragem de Mogi
foram abertas e que isso tenha influenciado no acúmulo de água na região
da zona leste (idem).
Segundo os moradores, a precipitação pluviométrica no momento da
enchente – madrugada do dia 08 - não foi particularmente elevada e é
incomum as enchentes se estenderem por tantos dias, até meses, no caso. Um
dos moradores entrevistados relatou que está na Chàcara Três Meninas des-
de o início da ocupação, há, aproximadamente, 30 anos e nunca tinham fi-
cado tanto tempo com a água estagnada naquele lugar. De acordo com os
depoimentos, em geral o local alaga enquanto chove e, em um ou dois dias,
a água seca ou escoa. O fato de ter inundado quando a precipitação não era
particularmente elevada e a enchente ter durado tanto tempo, fortalece as
informações que indicam que tal enchente tenha sido, de fato, induzida por
funcionários das barragens que cumpriam ordens do governo estadual.
Alguns moradores questionam, ainda, a coincidência de, no mesmo ano
em que foi lançado o projeto oficial do Parque Linear Várzeas do Tietê (ju-
lho 2009), o lugar tenha ficado tanto tempo debaixo d’água. Principalmente,
por ter acontecido em virtude de ações do Estado (abertura e fechamento
das barragens). Alguns moradores acreditam na possibilidade de que esse
tenha sido um violento mecanismo para forçar a população a deixar o lo-
cal, o que seria de interesse público para a construção do Parque. Além do
controle das barragens, mais um fator a ser considerado para a eclosão dos
fatos na forma e dimensão verificados estão relacionados à impermea-
bilização do solo, em parte decorrente da ocupação das várzeas que, ao longo
dos últimos trinta anos vem promovendo, progressivamente, o seu aterra-
mento com a consequente diminuição da calha do rio Tietê. Contudo, o
aterramento da região, embora relevante, não constitui, por si só, explica-
ção para os efeitos nefastos desta tragédia. Certamente os principais fato-
res de aumento da vazão do rio Tietê foram as contínuas intervenções
urbanísticas realizadas pelo Poder Público na tentativa de “domar o rio”,
através de sua retificação,9 para permitir a expansão urbana e a respectiva

9. Retificação de rios: tornar o curso(trajeto) do rio reto, que geralmente são curvos, pois
acompanham o relevo.A retificação promove o aumento da velocidade de escoamento das
águas, bem como o volume de água. Fatores que são agravados pelo assoreamento do rio
e provocam enchentes.

– 194 –
implantação de infraestrutura, e o contínuo processo de degradação am-
biental do rio Tietê, alvo de intensa ação poluidora a medida que o proces-
so de urbanização desordenada (impulsionada pela industrialização)
avançou, trazendo a contaminação do rio, por todo tipo de dejetos indus-
triais e domiciliares, devido a falta de investimentos em saneamento bási-
co (LOUREIRO; SOUZA, 2010).
A combinação entre os efeitos do ciclo hidrológico e a morfologia da
região, aliados às intervenções no corpo d´água, bem como a forma desor-
denada de ocupação do solo urbano, e, principalmente, à inoperância esta-
tal em prol da população local, seja em relação à gestão do sistema de
saneamento ou em relação ao seu planejamento, integram a intensidade do
desastre que deixou centenas de desabrigados,10 e outros milhares expostos
a graves ameaças a saúde física e moral (LOUREIRO; SOUZA, 2010).
O transbordamento do rio Tietê em 2009 atingiu diversas comunida-
des, dentre elas, o Jardim Romano, a Chácara Três Meninas, a Vila das Flores,
o Jardim São Martinho, a Vila Aimoré e a Vila Itaim, afetando, aproxi-
madamente, 10 mil pessoas (LOUREIRO; SOUZA, 2010).
A população atingida pela enchente foi abalada por inúmeros danos
materiais, morais e simbólicos. A enchente impôs a deterioração das casas,
por conta da danificação das instalações de madeira (portas, janelas, portões,
aduelas, piso), das instalações elétricas, e, em alguns casos, até com danos
estruturais, com a queda de paredes e muros, além da perda dos documen-
tos pessoais, de alimentos, de roupas, eletrodomésticos (como televisão,
geladeira, fogão) e dos móveis integrantes dos lares (sofá, cama, guarda-
roupa, estante, etc.). O sentimento de impotência com relação à situação e
a necessidade de renunciar a tentativa de salvar bens materiais, muitas ve-
zes com significado afetivo e identitário, para preservar a própria sobrevi-
vência, permeiam o sofrimento das vítimas da tragédia, intensificado pela
angústia do abandono do Poder Público.
Mesmo com o pedido de ajuda de líderes locais, que tentavam explicitar
a gravidade da enchente, o Poder Público não forneceu assistência imedia-
ta para remediar as necessidades de subsistência, tais como o envio de gê-
neros alimentícios, em substituição àqueles que foram perdidos na água

10. Desabrigados são os que, na ausência de relações de parentesco, compadrio e afins para
provimento de uma acolhida circunstancial, dependem exclusivamente do Estado para
encontrar alojamento. Desalojados, por sua vez, são classificados como aqueles que fo-
ram obrigados a abandonar suas habitações, temporária ou definitivamente, em fun-
ção de evacuações preventivas, destruição ou avaria do imóvel, mas que não necessitam
que as providências de abrigo sejam tomadas pelo Estado, pois encontram apoio de pa-
rentes ou amigos para abrigar-se em sua casa provisoriamente. (CASTRO, 1999).

– 195 –
contaminada, e de água potável, uma vez que estavam sem acesso à mes-
ma.Eduardo, conta que quando chegou para pedir ajuda ao funcionário da
Defesa Civil, o mesmo estava com os pés em cima da mesa do escritório e
disse que só iria até o local depois que a água abaixasse. De acordo com
relatos, os assistentes sociais só foram até o local três dias depois do início
da enchente e, a Defesa Civil, por sua vez, após uma semana.
Os moradores de Chácara Três Meninas lembram-se da correria e do
desespero de ver a água subindo rapidamente. Familiares e vizinhos se aju-
davam mutuamente para tirar as crianças, os idosos e as pessoas com defi-
ciência de dentro das casas. Erguiam os móveis e os eletrodomésticos como
podiam. As pessoas e as casas afetadas ficaram em constante contato com
a água empoçada, que exalava um cheiro pútrido e expunha a população a
uma série de doenças infectocontagiosas. Uma moradora perdeu, em me-
nos de uma semana, a filha que contraiu leptospirose na trágica enchente
induzida.Os moradores contam que encontravam peixes e cobras nas águas
da rua e, às vezes, até dentro de casa. Muitas centenas de pessoas – entre
200 e 300 famílias - ficaram desabrigados, por 72 dias, na Escola Estadual
da região – onde tiveram que passar o Natal e o Ano-Novo nas condições
desumanas do abrigo temporário.
Abrigos temporários ou provisórios são espaços organizados pelo Es-
tado a partir da adaptação de infraestruturas públicas como ginásios
poliesportivos, escolas públicas (como no caso de Chácara Três Meninas)
etc. Tais abrigos têm por objetivo alocar famílias que foram retiradas de áreas
consideradas de risco – em razão das moradias estarem destruídas ou
danificadas ou em áreas sujeitas a riscos – e que não encontram apoio pro-
visório de parentes e amigos (VALENCIO, 2010b). Contudo, os abrigos
provisórios podem ser considerados uma extensão do desastre e do sofrimen-
to das famílias que precisam nele se instalar. O desabrigado perde o chão, é
desterritorializado do ponto de vista material e simbólico; perde a casa e a
trajetória de luta que, em geral, envolve a sua construção; perde o passado
o presente e o futuro que o projeto de família incorporou na casa e nos ob-
jetos que compõem o mundo privado (VALENCIO, 2010b; SIENA, 2009).
O desabrigado tem a sua intimidade invadida. Para fins de acomoda-
ção, fazendo as vezes da casa, que está interditada ou inviabilizada do uso,
as famílias desabrigadas são constrangidas a dividir o espaço, que antes ti-
nha função o tradicional de sala de aula, para fazer as vezes da casa, princi-
palmente do quarto de dormir. Precisam dividir uma mesma sala de aula
com outras famílias, às vezes, desconhecidas. Perde-se a distinção entre es-
paço público e privado e, consequentemente, os papéis sociais da família,
uma vez que são uma construção social fundamentada a partir do mundo
privado. As famílias abrigadas ficam a mercê dos coordenadores do abrigo

– 196 –
indicados pelas autoridades competentes. Não bastasse as condições pre-
cárias as quais os desabrigados ficam expostos, ainda passam a ser estigma-
tizadas por sua condição de desabrigado. Outra dificuldade encontrada nos
abrigos temporários organizados em escolas é a falta de aula para as crian-
ças que a frequentam. Mães relatam que ficam desconsertadas ao terem que
tentar explicar para os filhos o porquê não estão tendo aulas. E, para as cri-
anças, que perderam seu espaço privado de casa e estão no abrigo tempo-
rário, é prejudicial juntar tais lembranças da tragédia com o seu ambiente
de estudo.
Uma característica da região centro sul do país, onde se insere o esta-
do e o município de São Paulo, é de que no período de verão há elevadas
concentrações de chuva. Na localidade de estudo, quando o céu escurece e
percebe-se que a chuva está se aproximando os moradores já ficam apreen-
sivos e com medo das enchentes. A fim de minimizar os danos, moradores
suspendem móveis e eletrodomésticos como podem.
Não bastasse todo o sofrimento e as perdas da enchente de 2009, en-
frentada sem apoio imediato de autoridades competentes, e intensifican-
do ainda mais a tragédia, o Poder Público, concomitantemente com o
incidente, redobrou seus esforços em propor, pura e simplesmente, a remo-
ção imediata de quase toda a população atingida e residente da área de ocu-
pação. Foi oferecido atendimento habitacional de muita duvidosa qualidade,
mesmo quando definitivo, eis que apontava para o reassentamento em áreas
distantes, até mesmo fora do município, com uma infraestrutura ainda pior,
e que acabava por fraturar a possibilidade da preservação das relações já
estabelecidas pela comunidade no seu espaço de origem (LOUREIRO;
SOUZA, 2010). Contudo, de acordo com a Defensoria Pública do Estado
de São Paulo:
Não é possível, decerto, que o Poder Público continue a postergar
uma solução para o escoamento destas águas contaminadas violan-
do o direito a vida e a saúde, e por tabela o direito ao saneamento
ambiental, da população destas Comunidades, sob o argumento de
que, fatalmente, estas terão de ser removidas, especialmente por
conta do Projeto Várzeas do Tietê – Fase I, na medida em que, se
tal efetivamente tiver que acontecer, tal tem que ser resolvido me-
diante um processo sustentável, que envolva gestão democrática, pela
participação da população no processo de escolha das áreas para
reassentamento, nos exatos e precisos termos do art. 80, inc. XXVIII
da Lei 13.430/02 (Plano Diretor do Município de são Paulo) e não
através de soluções prontas e acabadas colocadas pelo Poder Públi-
co, de forma impositiva e inegociável, como vem sendo encaminha-
do, especialmente por conta dos Decretos de declaração de interesse

– 197 –
social, para desapropriação de 09 áreas para construção conjuntos
habitacionais (Decretos Municipais n°s 51.143/09 a 51.155/09).
(LOUREIRO; SOUZA, 2010).
Por morarem em área que, após a sua inserção, foi transformada em
Área de Proteção Ambiental e, agora, também, em área de risco, deslegitima-
se qualquer tipo de reivindicação.

O DESLOCAMENTO COMPULSÓRIO DAS FAMÍLIAS

Na Chácara Três Meninas, evidenciam-se quatro principais processos


relacionados às remoções, compreendidas como um deslocamento compul-
sório, a saber: 1) registro das casas inseridas na área irregular; 2) cadas-
tramento das famílias (que serão removidas) nas filas que dão oportunidade
à moradia cedida pelos projetos habitacionais; 3) remoção das famílias; 4)
demolição das casas,
O registro das residências que estão na área irregular é feito pela
Cobrape através do supramencionado “carimbo da besta”. Esse procedimen-
to violenta moralmente os moradores da região, uma vez que, segundo re-
latos, os funcionários responsáveis não se apresentam e não explicam à
família o que significa a identificação desse carimbo.
As famílias que, segundos os técnicos, têm direito a entrar na fila por
um apartamento construído pela Prefeitura são aquelas que tiveram, e te-
rão, suas casas demolidas. Para o cadastramento das mesmas, é preciso o
documento do responsável pela residência. Ao passar seus dados para o
cadastramento, estaria aceitando a condição do auxílio-aluguel e a demoli-
ção de sua casa. Contudo, moradores relatam que, muitas vezes, os funcio-
nários responsáveis por tal cadastramento, na ausência dos pais e/ou
responsáveis, pedem o documento dos mesmos para quem está na casa; por
vezes, são as crianças que, sem saber do que se trata, trazem os documen-
tos. Além de não saber quanto tempo será de fila, a ‘colaboração’ do Poder
Público, para que essas famílias se abriguem enquanto aguardam, é um
auxílio aluguel de trezentos reais mensais. Esse valor é insuficiente para o
pagamento de contas que aumentam significamente. As famílias passam a
ter contas que não se tinham antes, tais como aluguel, conta de água e de
luz. Além de relatarem que o auxílio aluguel é insuficiente para todas as
contas adicionais, afirmam que o valor oferecido não cobre o aluguel de casas
como as que tinham, mesmo quando procuram em regiões afastadas. De
acordo com a reportagem de Caproglione (2010), o funcionamento do au-
xílio aluguel era explicado para os moradores de forma equivocada, tornando
a situação ainda mais nefasta. Nos postos visitados pela repórter, quem
explicava (erroneamente) o funcionamento do auxílio-aluguel eram empre-

– 198 –
gados temporários da empresa Diagonal e da empresa Cobrape, que vesti-
am jalecos cinza com o logotipo da prefeitura.
“A prefeitura entendeu que vocês precisam de um atendimento para
sair da casa que está alagada. Vocês então vão ter o atendimento seis
meses provisório (sic). Aí vocês vão poder retornar para suas casas
quando a chuva passar, quando a enchente passar.” Em tom pro-
fessoral, foi assim que a coordenadora de uma equipe móvel de
cadastramento (a bordo da kombi branca placas MVW-7928) expli-
cou a uma moradora da rua Rio Manuel Alves, que ela poderia re-
ceber o auxílio-aluguel e depois retornar a sua casa. Não poderá. A
via onde vive está dentro do perímetro do parque que será construído
(CAPROGLIONE, 2010).

A realidade vivenciada pelos moradores é bastante diferente do discurso


da apresentação oficial do Parque Várzeas do Tietê: “os moradores atuais
serão reassentados em moradias dignas e seguras”. Porém, não há moradi-
as “dignas e seguras” para onde as pessoas poderiam ser reassentadas. De
acordo com Eduardo, até o momento não existe nenhum projeto habita-
cional para as famílias que serão removidas do local.
Uma das entrevistadas deixou claro, em seu depoimento, as dificulda-
des vividas pelos moradores de Chácara Três Meninas, dificuldade essa que
se intensificaquando se é dona do lar (que cuida dos filhos e da casa) e che-
fe de família (que traz o dinheiro para casa e a sustenta). Maria, 27 anos, é
mãe solteira, mãe de uma criança de 9 anos mora no bairro desde que nas-
ceu. A entrevistada relata que morou um período com sua avó na área re-
gular de Chácara Três Meninas, mas a predominância de sua estadia e
moradia no bairro se deu na área ocupada. No período da enchente de de-
zembro de 2009, Maria e seu filho tiveram sua casa inundada e afetada pela
água e precisaram ficar no abrigo temporário organizado na escola. Maria
conta da falta de privacidade e desconforto, não apenas no sentido físico,
mas moral de não ter sua casa para estar com e cuidar de seu filho como
gostaria. Após as enchentes, quando as águas baixaram, Maria teve sua casa
demolida e passou a receber os trezentos reais de auxílio aluguel para se
instalar em outra casa – teoricamente teria que deixar a ocupação e ir para
a área regular. Contudo, a entrevistada relata a dificuldade para encontrar
uma casa como a sua (de dois cômodos) que o montante do auxílio aluguel
pudesse pagar “lá em cima” – termo utilizado pela entrevistada para refe-
rir-se à área regular do bairro, “lá em cima é a área asfaltada, vou chamar
de asfaltada para você entender melhor”.
Maria trabalha “lá fora” (ou seja, no centro da cidade) para pagar as
contas da casa e o próprio sustento e o de seu filho. Mesmo trabalhando,

– 199 –
Maria conta a dificuldade que passou para pagar o aluguel da casa nova
(menor do que a que foi demolida), contas de água e luz – despesas que não
tinha na casa anterior. Além das contas, Maria teve que juntar ainda mais
forças para lutar pelo bem de seu filho que foi abusado dentro da escola em
que estuda. Na mesma época do incidente do seu filho e em meio a tantas
dificuldades, o trabalho de Maria solicitou que ela passasse a trabalhar das
7h às 20h, o que significa que ela teria que sair de casa às 5h e retornar às
22h. Maria deparou-se com um dilema comum às mulheres que são dona
do lar e chefe de família: ponderar seus papéis sociais e responsabilidades.
O resultado foi que Maria teve que sair do trabalho para poder cuidar e estar
ao lado do filho naquele momento. A dificuldade financeira, somada à si-
tuação do filho e à falta de amparo dos novos vizinhos, fez com que Maria
retornasse (como muitos outros) para a área ocupada, onde tem o apoio da
mãe, dos amigos e dos vizinhos. Maria conta que “lá em cima” sofriam dis-
criminação, eram estigmatizados como o “pessoal da enchente”.
Na data em que a entrevista com Maria foi realizada, o seu auxílio alu-
guel estava atrasado há 28 dias. Além de ser um valor ínfimo diante as des-
pesas decorrentes da desterritorialização compulsória, a Prefeitura, respon-
sável pelo pagamento, deixa a população sem a certeza de quando virão esses
recursos. É perceptível a força de Maria, e lamenta: “a gente é pequeno perto
deles [autoridades da escola e Poder Público] (...) a gente luta, mas chega
uma hora que a gente perde forças, a gente cansa”. Maria ficou 2 (dois) anos
“lá em cima” (área regular, urbanizada e asfaltada) e precisou voltar. Essa é
a realidade de grande parte da população que recebe auxílio aluguel e ne-
nhum outro suporte. As pessoas não tem como sustentar uma família (mui-
tas vezes de 5, 6 pessoas) com R$ 300 e acabam retornando para o local
que tiveram que sair, ou ocupando outras regiões também consideradas área
de risco, pois é o que conseguem, além de ser a forma e o local que conse-
guem manter a família.
Eduardo relata sobre outros moradores que também tiveram que dei-
xar a região apenas com as (precárias) condições do auxílio aluguel:
Saíram daqui em 2009 com os R$ 300, você vai achar uma casa com
R$ 300 aonde? Não tem apartamento, não tem casa, o vale aluguel
atrasa, o quê que eles têm que fazer? Eles vão ter que retornar para
cá de novo e com razão (...) [Os moradores que deixaram o local]
Estão esparramados, uns estão com parentes, outros estão em Narci
Ribeiro, outros vão tentar outra ocupação em outros lugares.
Em Chácara Três Meninas, as remoções das famílias e a demolição de
suas casas se iniciaram, violentamente, na mesma época do episódio da
enchente em 2009.

– 200 –
Ao menos três são as camadas de violência, concomitantemente mate-
rial e simbólica, sobrepostas à ‘remoção de pessoas’ em ‘áreas de risco’.
A primeira ocorre quando os agentes do Estado e seus meios técnicos
móveis, como caminhões e tratores, vem demolir o sistema de objetos,
privados ecomunitários, que tornam o território um lugar, isto é, tor-
nam-no uma referênciadas famílias para estabelecer e reforçar laços
comunitários enquanto seus membros enredam-se no mundo do traba-
lho, da escola, na busca por serviços de saúde, no exercício comparti-
lhado das crenças, da recreação e outros. A segunda violência ocorre,
particularmente, em relação à destruição das moradias, isto é, dos es-
paços privados nos quais as famílias exercitam seus papéis complemen-
tares cotidianos na intimidade e desde onde os seus membros se
organizam e se preparam para enfrentar o mundo público. Sem a refe-
rência da casa, a família, qualquer que seja sua configuração, fica exposta
e suscetível, pois não há a concha (cf. BACHELARD, 2003) que per-
mita restaurar, aos seus membros, o exercício necessário do habitus re-
servado ao espaço e às relações privadas e reorganizar diuturnamente
o seu sentido de ser no mundo. Por fim, há a violência que se estende à
pessoa de cada morador, quando as exigências de retirada do local não
são negociáveis, o que, além de impactar de maneira diferenciada as
condições objetivas e vida subjetiva de cada qual que sofre a expulsão,
impõe um evidente constrangimento moral identificável no silencia-
mento da vontade, do desejo, da dor emocional; enfim, da expressão
humana do ser compulsoriamente retirado (VALENCIO, 2010a, p.15).

Conforme abordado por Zhouri e Oliveira (2010), a territorialização das


pessoas que habitam determinado território é de importante significado para
a identidade delas. Sendo assim, a construção daquele lugar vai além dos
saberes técnicos. Trata-se de “espaços de reprodução social que conectam o
passado ao presente, esferas de pertencimento que tornam possível a cons-
trução de identidades no presente e que projetam perspectivas futuras de
autonomia” (ZHOURI; OLIVEIRA, 2010, p. 456). Leite (2000), com refe-
rência em Heidegger, faz uma significativa relação da dimensão do reconhe-
cimento de si próprio em conexões estabelecidas com os objetos, que são
entendidos como extensões do próprio indivíduo, isto é, uma espécie de ex-
tensão do ser nas coisas. Portanto, haveria experiências de perda de si nas
coisas, ou seja, “de ruptura com o meio envolvente e, em particular, com os
objectos que acolhem e reflectem a projecção das nossas memórias e afectos”
(LEITE, 2000, p. 213). Cada um conhece o poder particular dos objetos cujo
sentido não está ao alcance de quem olha; razão pela qual muitas vezes as
perdas de objetos nas enchentes não se resumem à perda material do mes-
mo, mas se perfazem por dimensões imateriais envolvidas no objeto.

– 201 –
Para Haesbaert (2004), o território possui dupla conotação: material
e simbólica. Para ele, o território em qualquer acepção, está relacionado ao
poder no sentido mais concreto - de dominação -, quanto a um sentido mais
simbólico - de apropriação. A dominação implica a criação de territórios para
fins utilitários e funcionais. A apropriação, por sua vez, refere-se a uma di-
mensão concreta, e também de ligações afetivas e simbólicas entre um gru-
po social e o seu espaço. A essa apropriação e dominação de um espaço, dá-se
o nome de territorialização, a qual tem por objetivos: abrigo físico, identi-
ficação ou a simbolização de grupos por meio de referências espaciais; a
disciplinarização ou controle por meio do espaço, a construção e controle
de conexões e redes. Haesbaert (2004) retoma Bonnemaison e Cambrèzy
(1996), para os quais perder seu território é desaparecer. O conceito de ter-
ritório, abordado nesse trabalho, não diz respeito apenas à sua função físi-
ca ou ao ter, mas ao ser – isto é, diz respeito à identidade dos moradores,
faz parte de universo de significações.
Os atores que praticam a remoção das famílias e a demolição das ca-
sas na Chácara Três Meninas, desconsideram, violentamente, as ligações
afetivas e identitárias dos moradores com a casa, o lugar e a comunidade.
Além da violência simbólica de retirar uma pessoa do seu lugar, do seu es-
paço onde ela pertence e pratica seus papéis sociais, a Polícia Militar tem
agido com violência física, segundo os moradores, para retirar aqueles que
reivindicam e resistem ao não quererem sair de suas casas. Os moradores
relatam que, quando os funcionários da empresa Diagonal, a Polícia Mili-
tar e os tratores se aproximam das casas para demoli-las, os vizinhos, os
amigos e os parentes também resistem, apanham e são presos. Famílias que
não têm para onde ir e não concordam em sair de suas casas, acabam sen-
do obrigadas a fazê-lo.
Moradores foram removidos sem serem informados sobre a implanta-
ção do parque e sem saber para onde iriam. Depoimentos colhidos por um
comitê popular11 acusam a Polícia Militar e a Guarda Civil Metropolitana
de usar força excessiva para expulsar moradores da Chácara Três Meninas,
área contígua ao parque, sem aviso prévio.12

11. MELLO, D. (2011).


12. “Em nota, a Polícia Militar (PM) de São Paulo rebateu a acusação e garantiu que não
participou da remoção de famílias na Chácara Três Meninas. De acordo com a nota, PMs
participaram apenas de uma ação de reintegração de posse no Jardim Pantanal, em 2009.
A Secretaria Municipal de Segurança Urbana está aguardando informações da
subprefeitura responsável pela área onde teriam ocorrido as supostas desapropriações
denunciadas no dossiê dos comitês populares. A Guarda Civil Metropolitana alegou que
os agentes apenas dão suporte às operações da Polícia Militar.” (MELLO, 2011)

– 202 –
Em 2009 vieram com uma máquina para derrubar as casas, sem ter
lugar para por as famílias. Iam pegar as coisas das famílias, levar para
um depósito que eles falam que tem e derruba (...). Uma empresa
chamada Diagonal chegava aqui e colava um papel na sua porta, na
sua casa que a gente chamava de ‘carimbo da besta’, que era para
desapropriar e tirar as famílias, ai colocava aquele papel e te dava
um prazo pra você sair. Nós tivemos causos aqui, no Jd. Romano, não
aqui [Chácara Três Meninas], no Jd. Romano que quando a mãe saiu
para levar o filho para a escola quando ela voltou a casa tava no chão.
(Eduardo, novembro, 2013).

Na fala do Eduardo, o espaço para o diálogo ou contestação é nitida-


mente ausente, e a nefasta violência com a qual a ação é realizada é nitida-
mente presente. “As pessoas estavam dormindo quando foram surpreendidas
pela polícia”, descreve Maria Zélia Andrade, do Movimento Terra Livre.13 A
violência policial é constatada frente aos protestos, às remoções e à resis-
tência das famílias que não querem sair, pois não têm para onde ir.
O legado das demolições para a comunidade não é positivo. Os locais
das casas que já foram demolidas tornam-se um problema para os morado-
res que permanecem, uma vez que tornam-se focos de ratos, escorpiões,
cobras dentre outraspragasque colocam os moradores que permanecem na
região expostos a mais tipos de perigo.
A maioria das famílias sabe a respeito da construção do parque e a
possibilidade das remoções, mas não sabem ao certo quais famílias serão
removidas, nem quando e nem para onde. Levando-se em conta que o Par-
que Várzeas do Tietê já teve suas obras iniciadas, torna-se inadmissível não
terem as moradias para assentar as famílias a serem removidas, assim como
é inadmissível não informar a população local sobre a situação para que elas
possam se preparar de alguma forma para as novas condições, mesmo que
minimamente. A realidade vivenciada é a falta de informação e incertezas.
A Secretaria de Habitação diz que não foi informado pelo DAEE qual será
a área exata da construção do Parque para avisar quais famílias serão remo-
vidas e quais não o serão. “DAEE não passa para a própria prefeitura aon-
de vai ser a limitação do parque, quando vai iniciar, para onde vai levar as
famílias, como vai indenizar essas famílias, eles não falam.” (Eduardo, no-
vembro, 2013).
Com base nas entrevistas e conversas pelas ruas da região, mostrou-se
evidente que o investimento dos moradores, com recursos obtidos em toda

13. VIER, S. (2010).

– 203 –
uma trajetória de vida,está todo nas casas e nos seus bens móveis. Um se-
nhor que tinha o “carimbo da besta” na porta de sua moradia, sem nem saber
sobre o quê se tratava, falou, cabisbaixo, que ali [a casa] é tudo que ele e a
família (incluindo filho com problemas de saúde mental) têm. “Se me tira-
rem daqui não tenho para onde ir”. As casas destruídas de fato significam,
muitas vezes, todo o investimento dessas famílias.
Eduardo, triste pela situação desses moradores, enfatiza, como um
apelo, que quem vive ali também são seres humanos e o Poder Público pa-
rece esquecer ou desconsiderar tal fato:
Minha senhora, nóis não quer conforto(...)a gente vai sair daqui do
lugar que a gente mora e ir para um outro lugar já que vão usar isso
aqui, então resolve logo porque a gente está sofrendo assim. (mora-
dor da região, novembro, 2013).

Além da violência moral proporcionada pelo descaso, condições de-


sumanas, enchente induzida, enchentes frequentes sem providências pú-
blicas para que isso seja evitado; da violência física e simbólica ao remover
com força física as famílias de seu espaço desterritorializando-as, tirando-
as de seu espaço identitário e de significações particulares, as famílias são
violentadas pelas incertezas decorrentes da falta de informação proporcio-
nada pela Prefeitura e pelo governo estadual, que atormentam o cotidia-
no dessa população.

FORMAS DE RESISTÊNCIA

A necessidade de lutar fez com que os moradores se organizassem para


exigir do poder público soluções para os problemas existentes no Jardim
Pantanal. A comunidade mostra-se bem mobilizada. Existem diversas as-
sociações de moradores que atuam no Jardim Pantanal. Entre eles se desta-
cam o Instituto Alana e Movimento de Urbanização e Legalização do
Pantanal (MULP). O Instituto Alana desenvolve trabalho com a 3ª idade,
com crianças e adolescentes. Possui núcleo educacional (que atende crian-
ça de 7 a 14 anos com aulas de capoeira, canto, música, futebol, dança,
informática), e núcleo de atendimento ao idoso (com atividade física, pas-
seio, alfabetização e atendimento odontológico) (LEMOS et al., 2005).
De acordo com Lemos et al. (2005), que cita Ronaldo Delfino, líder
comunitário, o MULP surgiu a partir da discordância dentro do MUP (Mo-
vimento de Unificação do Pantanal), o qual era um movimento que abri-
gava associações e organizações de todo o Pantanal e negociava com os
governos as intervenções. A ruptura do movimento se deu em função da
interferência político-partidária em seu interior, com lideranças apoiando

– 204 –
candidatos de partidos de ideologias opostas e com interesses conflitantes.
Além disso, uma parte do MUP aceitava a simples remoção das famílias do
Pantanal, conforme proposto pelo governo do estado, e a outra discordava
e exigia a uma intervenção mais completa (com recuperação ambiental, le-
galização e programas na área social). Esta última formou, em 2000, o
Movimento de Urbanização e Legalização do Pantanal.
A estratégia do MULP (apoiado pela Terra Livre) é expandir a resis-
tência nos bairros contra as atividades da prefeitura, tanto de cadastramento
quanto da remoção. Conscientizar sobre a legitimidade de negar a institucio-
nalidade e autoridade do Estado e mobilizar em torno da manutenção das
construções, mesmo aquelas cadastradas em troca do bolsa-aluguel (TER-
RA LIVRE, 2010)
Uma parte organizada da comunidade integra e constitui o MULP. A
grande maioria são mulheres, donas de casa. Já a participação jovem é mais
masculina. Juntos, atuam e dirigem o movimento por meio de reuniões de
representantes de ruas, comissões, conselhos e assembleias MULP se defi-
ne como um movimento reivindicatório local. Entretanto, estabelece par-
cerias com outros movimentos sociais possibilitando sua atuação de forma
mais geral. Em conjunto com o MTL (movimento terra, trabalho e liber-
dade) montou uma biblioteca com mais de 2.000 livros (todos doados) e a
sede onde faz reuniões com a comunidade. O MULP, ainda, exibe filmes e
documentários na sede e na rua, possibilitando o debate após o término.
Em conjunto com Coletivo Guevara Home abriu uma rádio que transmite
uma programação diferenciada da grande mídia (LEMOS et al., 2005).
Dentre as principais conquistas do MULP e de outras lideranças lo-
cais estão: convênio com Cursinho da Poli, com bolsa 100% subsidiadas para
o estudante morador do Pantanal;14 regularização da energia elétrica em par-
te do Pantanal; cursinho pré-vestibular na própria comunidade;15 canaliza-
ção da água feita pelos moradores em mutirão.
Contudo, as conquistas obtidas até o momento ainda não foram sufi-
cientes para sanar os problemas de infraestrutura da região. Portanto, con-
tinuam lutando para obter do poder público coleta de lixo, postos de saúde,
programas de geração de renda, iluminação pública, pavimentação perme-
ável nas áreas inundáveis, rede coletora de esgoto e rede de água potável,
reflorestamento urbano com árvores frutíferas, limpeza do rio Tietê, cria-

14. Esse convênio possibilitou o acesso de quatro estudantes da região à USP. Além do in-
gresso de demais estudantes em outras universidades.
15. Mais de 20 estudantes ingressaram nas universidades. Em 2008 quatro jovens entra-
ram na USP; três no Cefet; um na Fatec e cinco obtiveram bolsas de 100% do Prouni
para estudar em universidade privadas.

– 205 –
ção de áreas de transbordo e triagem de resíduos de construção, criação de
centro de coletas e triagem de lixo reciclável (NAVAES, 2009).
Os moradores que estão engajados em movimentos de resistência têm dois
propósitos, a saber: o primeiro, é que haja melhores condições de infraestrutura
enquanto permanecem no lugar; o segundo, é que existam habitações de qua-
lidade nas quais possam se instalar alternativamente ao serem obrigados a dei-
xarem seu próprio espaço, onde estão atualmente instalados. De fato, os
moradores não lutam para ficarem naquela região com condições desumanas
e falta de infraestrutura básica, alvo de inúmeras condições de violências (físi-
ca, material e simbólica), medo a cada ameaça de chuva e incertezas com rela-
ção a sua própria casa (lugar do ser e do pertencer) e destino.
A defesa do lugar, do enraizamento e da memoria destaca a procura
por autodeterminação, a fuga da sujeição aos movimentos hege-
mônicos do capital e a reapropriação da capacidade de definir seu
próprio destino (...) Não é uma luta pela fixidez dos lugares, mas sim
pelo poder de definir a direção da sua mudança. (ZHOURI; OLIVEI-
RA, 2010, p. 445).

De acordo com Eduardo, ninguém é contra a construção do Parque e


o objetivo não é travar sua construção – conforme entendido em discursos
hegemônicos, como se os moradores estivessem impedindo “o bem maior”.
Eduardo conta que, no ano de 2009, quando as autoridades foram com
máquinas e uso de força e violência física fazer a remoção das famílias, “nóis
fizemo reboliço, queimamos pneu lá na rua, fizemos um ato, fomos na porta
da Prefeitura, chamamos imprensa. Queriam fazer aqui o que eles fizeram
no Pinheirinho. Só que aqui eles encontraram força, porque aqui tivemos
as pastorais, a igreja, os padres...”.
A vida religiosa se mostra bem presente, também como uma das for-
mas de resistência. Pastorais, igrejas e padres fazem parte daqueles que se
mobilizam em prol dos moradores da comunidade e cedem lugares para os
encontros para troca de informações sobre a situação. A religião mostrou-
se presente também, não em forma de mobilização, mas em forma de uma
resistência mais silenciada e passiva – que também tem o seu valor. Silenci-
ada no sentido de não ter sido exposta através de atos físicos, mas como uma
proteção simbólica para os próprios fiéis. Ao se perguntar para uma das
entrevistadas se ela tinha medo, tanto da chuva, tanto da situação do bair-
ro, foi respondido que não o sente, pois a família dela é toda evangélica e,
portanto está segura, não precisa sentir medo.
Eduardo, líder comunitário ligado a pastoral, seu filho e outras lide-
ranças convocam a comunidade para reuniões a fim de informar o que sa-

– 206 –
bem e aconselhar os moradores a não deixarem suas casas. Eduardo conta
que passam com carro de som convocando reuniões e mobilizando a comu-
nidade. Há uma mobilização para que as pessoas não saiam de suas casas
para não perderem o direito deles de moradia16 e para que não aceitem as
precárias condições do auxílio aluguel e, consequentemente, não deixarem
suas casas enquanto não tiverem outra moradia.
Além das reuniões com a própria comunidade, lideranças tentam se
reunir com autoridades do ente público.
Pedimos uma reunião para eles [DAEE] falarem para o povo certi-
nho o que vai ser feito etc. Ela falou que viria sim, mas que era para
gente prometer que ia falar pro povo não falar em moradia (...) A
superintendente do DAEE teve a audácia de falar assim: ‘olha, nós
vamos sentar e vamos falar sobre o dique17 [que seria construído no
Jardim Pantanal, mas não exatamente em Chácara Três Meninas],
só que vocês não me falem em moradia’. Mas que absurdo, eu vou
tirar esse homem da casa dele e não vou falar da moradia, por quê?
Tenho que falar primeiro da moradia. (Eduardo, novembro, 2013).

Líderes comunitários tentaram e continuam tentando marcar reuniões


com a Prefeitura e o governo Estadual para informações mais consistentes,
porém, apesar da insistência dos mesmos, o Poder Público evita falar sobre
o assunto moradia. Assunto que é fundamental para os moradores da região.
De acordo com uma reportagem de International Alliance of Inhabitants
(2010), outra organização, denominada “Movimentos em Defesa dos Mo-
radores Represados na Várzea do Rio Tietê”, organizou um protesto no dia
08 de fevereiro de 2010 às 14 horas, que ocorreu em frente a Prefeitura
Municipal de São Paulo, para buscar soluções ao problema das enchentes na
capital paulista. O protesto chamou atenção para cinco pontos principais:
1. Desassoreamento (limpeza) imediato do Rio Tietê, entre a barragem
da Penha até Itaquaquecetuba.
2. Abertura total e ininterrupta da Barragem da Penha até o fim do
represamento,
3. Indenização dos móveis e utensílios domésticos,

16. De acordo com lideranças locais, só se tem direito a entrar na fila de moradia cedida
pela Prefeitura quem tiver casa.
17. DIQUE S.M ( DO HOL. Dyk. ) 1. Obra continua em um dado comprimento, que se
destina a conter as águas ou a proteger contra seus efeitos, ou ainda orientar seu escoa-
mento. (GRANDE ENCICLOPÉDIA LAROUSSE CULTURAL, 1988)

– 207 –
4. Abertura imediata de uma mesa de diálogo entre Estado/Prefeitura/
Câmara Municipal/ Defensoria Pública e Movimentos Populares;
5. Política Habitacional (uma casa por outra casa) nos lugares de despejo.

Contudo, de acordo com a reportagem, os moradores foram mais uma


vez recebidos com violência. Foram recebidos pela guarda municipal e pela
tropa de choque com spray de pimenta no rosto e cassetete, como se, frente a
todas essas problemáticas, eles não tivessem direito a reivindicar. Em 03 de-
zembro de 201018 foi publicado um abaixo assinado demonstrando as reivin-
dicações dos moradores do Distrito do Jd. Helena, mais especificamente do
Jd. Romano, Jd. Margarida, do Jd. Marta, da Vila Itaim, da Vila Aimoré, do
Jd.Seabra, do Jd.Pantanal, da Vila da Paz, da Vila das Flores, do Novo Hori-
zonte e da Chácara Três Meninas, em relação ao Parque Linear:

São Paulo/Biênio 2010-2011.


À Prefeitura da Cidade de São Paulo e ao Governo do Estado de São Paulo
e todas as Secretarias envolvidas na consecução do “Projeto Parque Linear
Várzea do Tietê”.
Nós, MORADORES, ORGANIZADOS NO MOVIMENTO DE MORA-
DORES DA VÁRZEA POR JUSTIÇA NO PROCESSO DE REMOÇÃO/
DESAPROPRIAÇÃO, viemos através deste abaixo assinado manifestar
nosso desconforto em relação às propostas de habitação para a implanta-
ção do projeto Parque Linear. Seguem nossas reivindicações:
A) Desenvolver estudos para diminuir o limite de desapropriação com a
possibilidade de construção de obras de contenção e drenagem que possam
reduzir a extensão das enchentes e garantir a redução de remoção de vári-
as famílias.
B) Apresentação de uma política de indenização em espécie com um valor
significativo de forma a garantir a compra de outra casa em estado melhor
do que a atual para as famílias que realmente terão que ser removidas.
C) Adequar às famílias que não forem removidas com uma política de
reurbanização, legalização e infraestrutura urbana acoplada ao conceito do
meio ambiente.
D) Que o Governo Estadual dê a importância de fato para o desasso-
reamento do rio, principalmente no perímetro entre a barragem da Penha
até o município de Itaquaquecetuba, cumprindo com a meta de retirar por

18. Disponível em: https://uniaocampocidadeefloresta.wordpress.com/2010/12/03/reivindi-


cacoes-dos-moradores-do-distrito-do-jd-helena-especificamente-do-jd-romano-jd-
margaridajd-marta-vila-itaim-vila-aimore-jd-seabra-jd-pantanalvila-da-pazvila-das-
floresnovo-horizonte-e/.

– 208 –
ano um milhão de metros cúbicos de resíduos aumentando a capacidade
de vazão em mil e trezentos metros cúbicos por segundo.
E) Indenização dos bens materiais perdidos e das casas demolidas sem pré-
via avaliação e que pertenciam às famílias que receberam o vale-aluguel;
F) Não implementar o Parque Linear antes de dialogar e assegurar a par-
ticipação dos moradores envolvidos diretamente no projeto através do Mo-
vimento e de lideranças legitimas da várzea, ou seja, pessoas que de fato
estão permanentemente debatendo a construção do projeto e os direitos
da população.

Eduardo conta também que foi feito um abaixo assinado com três mil
assinaturas a fim de denunciar ao BID (Banco Internacional do Desenvol-
vimento, responsável por grande parte do investimento do Parque Várzeas
do Tietê) as remoções compulsórias, sem aviso prévio, à base de violência
física e sem um projeto de moradia para as famílias removidas, além de le-
varem as famílias para lugares sem condições de ser habitado.
Não adianta eu pegar esse homem que mora aqui e mandar... Como
ele fez... Ele tirou algumas pessoas daqui e mandou lá para Itaquá, pra
outro município (...). Chegou lá não tinha escola, não tinha transporte,
não tinha trabalho e não tinha saúde e o apartamento que tava lá, o
que aconteceu, no apartamento, se você desse descarga no de cima,
caía na pia [do apartamento] debaixo. Vazando para todo lado e não
tinha luz também. Aí eu fui lá e relatei tudo aquilo ali, fui em Brasília
e denunciei isso (...) aí foi na hora que ele veio aqui. (Eduardo).

Frente à denúncia, o BID suspendeu (temporariamente) o dinheiro e


o prefeito municipal de São Paulo na época do ocorrido, Gilberto Kassab,
foi até a casa do Eduardo, dizer que ele estava travando a obra. Eduardo não
tinha o objetivo de travar a obra e deixou mais uma vez claro em seu depo-
imento que ninguém era contra o parque, mas exigia ser informado sobre
as soluções habitacionais que seriam dadas. Em meio a esses episódios, al-
gumas lideranças comunitárias tiveram que se mudar da região do Jardim
Pantanal, pois estavam sendo ameaçadas de morte. No entanto, os que fi-
caram continuam tentando, como podem, juntar suas forças e lutar por seus
direitos e melhores condições de vida.

CONCLUSÃO
O descaso sócio-histórico do Estado frente a populações de baixa ren-
da é perceptível dentro da lógica de desigualdade inerente ao atual proces-
so de urbanização no Brasil. Isso também vem ocorrendo em Chácara Três
Meninas, Jardim Helena, Zona Leste de São Paulo.

– 209 –
Parte do bairro Chácara Três Meninas é uma área de ocupação, a qual
foi, recentemente, cartografada como área de risco e Área de Proteção
Ambiental. Os moradores do lugar vivem sob poucas condições de acesso à
infraestrutura, não possuem saneamento básico e as enchentes em épocas
de chuvas são recorrentes, o que traz medo, doenças infectocontagiosas e
piora ainda mais a condição de vida dos moradores. Desde o ano de 2009,
ano da enchente que durou 72 dias e deixou centenas de desabrigados, as
autoridades já removeram milhares de famílias, violentando suas vidas fí-
sica, moral e simbolicamente, desconsiderando seus laços afetivos com o
lugar, isto é, desconsiderando parte do ser dessas pessoas.
Esse trabalho alerta para que, antes que um projeto de um Parque com
tamanha dimensão seja aprovado, tenha-se moradias de qualidade para
reassentar os moradores e que tal procedimento não seja à base da remo-
ção, isto é, da violência. Enquanto a política habitacional for insuficiente e
a visão institucional for pautada na ideia de remoção, o ciclo permanecerá.
As famílias, sem ter para onde ir, ou voltam para onde foram forçadas a sair
ou se fixam em algum outro lugar periférico, provavelmente, também con-
siderado de risco, pois é o que podem pagar e onde conseguem se manter.
Tal cenário dá força à assertiva de Foucault: “fazer viver e deixar morrer”.
A falta de perspectivas e de alternativas dignas oferecidas pelo Estado aca-
ba por incrementar a morte social dos sujeitos.
Uma participação ativa da parcela empobrecida no processo de produ-
ção de políticas públicas de habitação poderia ampliar os esforços para eli-
minar o preconceito dos próprios agentes públicos, civis e militares, em relação
a moradores de assentamentos urbanos sub-normais. Deve-se dar atenção e
credibilidade ao conhecimento de quem vivencia, de fato, um desastre.

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– 212 –
CAPÍTULO VIII

MEMÓRIAS DE UM DESASTRE
VIVENCIADO
Juliana Sartori

INTRODUÇÃO
O aumento do número de desastres no Brasil se caracteriza como um
fenômeno socioambiental preocupante. Os desastres no país são, predomi-
nantemente, relacionados à água, seja por stress hídrico ou pelas chuvas in-
tensas, representando 90% dos desastres reconhecidos pela autoridade
competente (VALENCIO; VALENCIO, 2010). No Brasil, os desastres re-
lacionados às chuvas são recorrentes visto que estes compõem, aproxima-
damente, um quarto dos eventos oficialmente registrados (idem).
No período de janeiro de 2003 a dezembro de 2013, foram publicadas
20.766 portarias de reconhecimento de Situação de Emergência e Estado
de Calamidade Pública. Em relação aos grupos severamente afetados nos
desastres no país, do primeiro semestre de 2007 ao primeiro semestre de
2010, foram 22.089.804 pessoas afetadas. Do ano de 2006 ao de 2009, o
crescimento do contingente de afetados foi de 220,81% (VALENCIO;
VALENCIO, 2010).
A região Sudeste agrega 1.668 municípios, com 53.078.137 habitan-
tes e consiste na região mais populosa do país (IBGE, 2011). Especificamen-
te, no Estado de São Paulo, de acordo com os dados do Atlas Brasileiro de
Desastres Naturais (2012, p. 34), entre 1991 e 2010, os danos humanos
por inundação brusca foram de 17 pessoas gravemente feridas, 48 desapa-
recidas, 485 levemente feridas, 1.034 enfermas 153 mortas, 63.653 desa-
brigadas, 63.133 deslocadas, 92.284 desalojadas, e 3.743.793 afetadas.
Dessa forma, podemos dizer que a Defesa Civil não está cumprindo
de maneira efetiva a missão institucional da qual foi incumbida, que con-
siste na redução dos desastres no país. A ineficácia em torno das atuações
de mitigação dos desastres se dá pelo fato de que as atuações da Defesa Civil
concentram-se, principalmente, em nível de resposta e reconstrução aos de-
sastres.

– 213 –
De acordo com a visão institucional da Defesa Civil, o desastre é con-
ceituado como “resultado de eventos adversos, naturais ou provocados pelo
homem sobre um ecossistema vulnerável, causando danos humanos, ma-
teriais ou ambientais e consequentes prejuízos econômicos e sociais” (BRA-
SIL, 2000, p. 8).
No entanto, o desastre consiste em um evento multidimensional, que
possui caráter social, ambiental, cultural, político, econômico, físico ou
tecnológico (OLIVER-SMITH, 1998). Nesse sentido, o desastre não pode
ser compreendido, portanto, como evento pontual, pois deflagra uma cri-
se no corpo social, que antecede a ocorrência do desastre (VALENCIO,
2012a).
Para compreender a complexidade das crises simultâneas que ocorrem
na esfera social não podemos considerar o desastre somente como manifes-
tação de um fenômeno natural, como as chuvas intensas, pois é essencial
“capturar as particularidades do momento mais crítico sem desconsiderá-
lo como parte de uma tessitura social mais abrangente” (VALENCIO,
2012b, p. 15).
O município de São Luiz do Paraitinga, situado na região do Vale do
Paraíba, possui 10.137 habitantes. Sua história é marcada pela recorrência
de desastres relacionados à água, especificamente, enxurradas ou inunda-
ções bruscas. No ano de 2010, o referido município sofreu as consequências
de uma inundação do rio Paraitinga, considerado o maior desastre da
história do município, que deixou milhares de pessoas desabrigadas.
A proposta deste trabalho consistiu em compreender a memória soci-
al de idosos em torno do desastre vivenciado no município de São Luiz do
Paraitinga/SP – a partir da compreensão do mundo do homem cotidiano,
ao penetrar em dimensões que seguem à margem das concepções interpre-
tativas hegemônicas sobre o referido fenômeno social. Tal abordagem per-
mitirá compreender as ligações entre as dimensões materiais e as dimensões
simbólicas do desastre que ofertam ao debate, uma interpretação alterna-
tiva à institucional.
Por meio da pesquisa de campo de base qualitativa, pretendeu-se com-
preender como os idosos constroem as narrativas e práticas concernentes à
sua experiência diante desse tipo de crise aguda que, eventualmente, se ar-
rasta tornando-se uma crise crônica, a qual debilita, em certos aspectos, o
entendimento de si no mundo.
Pela memória de idosos, além de aspectos singulares relativos aos seus
papéis sociais desempenhados ao longo da vida e às relações intersubjetivas
que porventura tenham sido afetados no contexto de um desastre, identi-

– 214 –
ficamos as transformações ocorridas no seu espaço vivido, na história local,
nas instituições com as quais o grupo interage e no imaginário social ao longo
das gerações. A lembrança constitui a função social do velho (BOSI, 1979).
Assim, a memória
se inscreve e se constrói no cotidiano. Ao mesmo tempo em que apre-
endemos a memória através do imaginário, do senso comum, construí-
mos memórias através de nossas relações cotidianas que se perpetuam
nos gestos, sentimentos e atitudes (MARTINS, 2008, p. 129).

O indivíduo realiza através da memória um intenso trabalho psicoló-


gico, que consiste, a todo o momento, no “controle de feridas, tensões e con-
tradições entre a imagem oficial do passado e as suas lembranças pessoais”
(POLLAK, 1989, p. 12).
Por meio da conciliação entre as memórias oficiais e as individuais,
existe uma intensa contradição na qual a memória social se configura. Em
outras palavras, é pelos desencontros, pelas constantes rupturas, constru-
ções e reelaborações do passado, forjados pelos diferentes sujeitos, que a me-
mória social acontece. Tal memória não permanece intacta nem coesa, pois
é uma constante representação de algo já vivido e reacomodado.
A proposta de mergulhar no mundo do idoso em contexto de desastre
dá-nos uma nova perspectiva sociológica relevante, a qual, contudo, tem se-
guido à margem da história e das visões oficiais sobre o desastre. Busca-se
compreender a memória social de idosos, em torno do desastre vivenciado,
a partir da proposta metodológica de José de Souza Martins (1992, 2008)
acerca da dimensão da história vivenciada.
Visto que os idosos são um dos grupos sociais mais vulneráveis – no
aspecto físico - em contextos de desastre, eles são sujeitos fundamentais para
compreender tanto as maiores dificuldades quanto as peculiaridades das es-
tratégias de enfrentamento em torno desse acontecimento trágico. E, des-
sa forma, as contribuições que porventura advenham da memória social do
grupo são fundamentais na indicação das políticas públicas mais adequa-
das para a proteção social especial desse grupo social e nessas circunstâncias.

IDOSOS EM CONTEXTO DE DESASTRES

Os estudos sistemáticos sobre o conceito de desastre iniciaram-se a


partir da década de 1950, influenciados pelo contexto da Segunda Guerra
Mundial (QUARANTELLI, 1998). Os desastres e os demais tipos de cri-
ses, de modo geral, são eventos que sempre constituíram a experiência hu-
mana, porém, atualmente, os desastres têm se intensificado e se apresentado
com maior complexidade (QUARANTELLI; LAGADEC; BOIN, 2007).

– 215 –
Na abordagem da sociologia dos desastres, os desastres são inerente-
mente fenômenos sociais e que se configuram enquanto uma crise instau-
rada no corpo social.1 Os desastres são compreendidos, para Quarantelli,
como perturbações na vida social e se originam no interior do sistema soci-
al. E, desse modo,
disasters stem from the very nature of social systems themselves.
Disasters in this framework are overt manifestations of latent societal
vulnerabilities. [...] disaster is rooted in the weaknesses of a social
system that manifest themselves depending on the dynamics of that
system (QUARANTELLI, 2005, p. 345).2

O desastre, para Quarantelli (2005), não pode ser considerado como


algo “natural”, porque está inserido num contexto sócio-histórico, que não
se desvincula das ações e decisões dos indivíduos, considerado às dimen-
sões de gênero, etário, de classe e outras. Assim, Quarantelli propõe que se
considerem os conceitos de tempo e espaço social no processo, pois desse
modo, “a resposta à situação de emergência e medidas de proteção seriam
consideravelmente aprimoradas” (QUARANTELLI, 2005, p. 339). Ao in-
corporar a noção de tempo e espaço social, as medidas protetivas seriam
aprimoradas, visto que o desastre seria incorporado nas políticas e atuações
institucionais enquanto um fenômeno social.
Perry (2007) debruça-se sobre questões sociais e de políticas governa-
mentais. Para Quarantelli, os desastres possuem diversas facetas e se carac-
terizam como : (1) ocasiões súbitas; (2) graves perturbações na rotina; (3)
ações não planejadas para adaptação às perturbações no meio social; (4)
produção de histórias de vida inesperadas no tempo e espaço social; (5)
representação de perigo a objetos valorizados socialmente; (6) fraqueza nas
estruturas e nos sistemas sociais. (QUARANTELLI, 2000, p. 682;
QUARANTELLI, 2005, p. 345 apud PERRY, 2007, p. 10).3 Pelo fato do
desastre se caracterizar enquanto uma ocasião súbita perturba gravemente
a rotina de quem o vivencia e produz histórias de vida inesperadas. A fra-

1. O desastre compreendido enquanto crise vale ressaltar que essa crise se difere de outras
crises, como o terrorismo, a guerra, entre outros.
2. Tradução: “os desastres decorrem da natureza dos próprios sistemas sociais. Nesse qua-
dro, desastres são manifestações evidentes de vulnerabilidades sociais latentes. [...] o de-
sastre está enraizado nas fraquezas de um sistema social que se manifestam de acordo
com a dinâmica daquele sistema (QUARANTELLI, 2005, p. 345. Tradução livre).
3. Perry tem a preocupação de estabelecer alguns consensos no campo teórico. Para tanto,
ele se ampara na sistematização elaborada por Quarantelli, que evidencia a complexida-
de em torno deste fenômeno.

– 216 –
queza nos sistemas sociais é deflagrada nos desastres, e ainda mostra a fal-
ta de planejamento para adaptações para esse tipo de crise na sociedade.
A proposta teórico metodológica dos estudos de Kroll-Smith e Gunter
(1998) se ampara nas dimensões locais e as experiências subjetivas nos
desastres. Os autores destacam que essas dimensões subjetivas se perdem
na análise quando o desastre é retratado, por meio da voz oficial. A voz
oficial, que é considerada como a compreensão “real” do desastre, não agrega
dimensões a partir do olhar de quem o vivencia. Desse modo, há um abis-
mo entre as definições oficiais e as especificidades da vivência do desastre,
em nível local. A valorização da abordagem subjetiva é essencial para
adentrar em dimensões que permaneciam silenciadas, esquecidas, e não
valorizadas, que estão vinculadas à noção de experiência.
Kroll-Smith and Gunter consideram fundamental que a construção do
termo desastre parta de uma dimensão interpretativa, forma esta já fundamen-
tada nas ciências sociais, por meio dos estudos do interacionismo simbóli-
co, de etnometodologia, e de etnografia, entre outros, que se afastam dos
estudos sociológicos tradicionais. Nessa perspectiva, o conceito de desas-
tre é ressignificado constantemente, se valorizando a forma como o grupo
vivencia o desastre e nomeia esse problema (idem).
Nesse trabalho, temos o intuito de adentrar nas dimensões interpretativas
do desastre, a partir da memória dos idosos acerca do desastre ocorrido em
São Luiz do Paraitinga, por acreditarmos que a compreensão do desastre, a
partir de quem o vivenciou, pode complementar visões da ‘voz oficial’ e
implementar políticas públicas nessa área.
Oliver-Smith (1998) destaca que há uma complexidade no tema dos
desastres, pois os desastres consistem na relação de diversos processos e
eventos – sociais, ambientais, culturais, políticos, econômicos, físicos,
tecnológicos –, comportando-se, dessa forma, como evento totalizante
(OLIVER-SMITH, 1998). Para o autor, uma definição e uma abordagem
adequada nos estudos sobre os desastres devem abranger a multidimen-
sionalidade que o caracteriza. Essa multidimensionalidade se configura
como expressão de sistemas físicos, biológicos, e sociais que se expressam
na interação entre populações, grupos, instituições e práticas (idem). A
ocorrência de um desastre traz à tona uma conjunção de problemas sócio-
estruturais, que já estavam instaurados no corpo social, como: 1) a intensi-
ficação da produção, 2) o aumento populacional, 3) a degradação ambiental,
4) a diminuição da adaptabilidade (OLIVER-SMITH, 1998, p.178).
Oliver-Smith se debruça sobre os estudos de Tim Ingold (1992), que
trabalha a noção de cultura e percepção do meio ambiente. Ingold, por sua
vez, parte da compreensão da interação entre sociedade e meio ambiente,

– 217 –
pois estes se constituem mutuamente (INGOLD4 apud OLIVER-SMITH,
1998). O ambiente tem influência direta na formação cultural e organiza-
ção social de uma determinada comunidade e vice versa. “Environmental
features and processes become socially defined and structured just as soci-
al elements acquire environmental identities and expressions” (OLIVER-
SMITH, 1998, p. 186).5
A proposta desse trabalho consistiu em colher memória de velhos (BOSI,
1979), mergulhando nos aspectos submersos nos quais se encontra o ho-
mem simples e cotidiano (MARTINS, 2008). Desse modo, por meio da
interseção entre os termos velhice, memória e desastre, pretendemos adentrar
nas entrelinhas da vida do homem simples e cotidiano.
Porém, para refletirmos sobre produção e reprodução da vida social, é
importante compreender a periodização da vida, as categorias de idade que
constituem a sociedade e as características dos grupos que as constituem
(DEBERT, 1994).
De acordo com o Estatuto do Idoso, é considerado idoso o indivíduo
com idade igual ou maior que sessenta anos (BRASIL, 2003). Nos estudos
sobre a velhice, a tríplice visão do envelhecimento, que segue baseada a partir
de influências biológicas, sociais e psicológicas, consiste: 1) na senescência:
relativa ao aumento de probabilidade da morte, com o avanço da idade; 2)
na maturidade social: corresponde à aquisição e papéis sociais e de compor-
tamentos apropriados aos diversos e progressivos grupos de idade; 3) e no
envelhecimento: corresponde ao processo de auto-regulação da personalida-
de que precede a ambos os processos (BIRREN e SCHROOTS6 apud NERI,
1995, p. 28).
No debate atual, ser idoso está ancorado em critérios cronológicos,
biológicos, sociais, intelectuais, econômicos e funcionais. Porém, o critério
mais utilizado é o cronológico, mesmo não sendo o mais preciso (PASCHOAL7
apud PAVARINI, 2000). É oportuno ressaltar que “A manipulação das cate-
gorias de idade envolve uma verdadeira luta política, na qual está em jogo

4. INGOLD, T. CULTURE AND THE PERCEPTION OF THE ENVIRONMENT. IN:


CROLL, E.; PARKIN, D. (ORGS.). Culture, Environment and Development. London:
Routledge, 1992. p. 39-56.
5. Tradução: “características e processos ambientais tornam-se socialmente definidos e
estruturados, assim como elementos sociais adquirem identidades e expressões am-
bientais” (OLIVER-SMITH, 1998, p. 186. Tradução livre).
6. BIRREN, J. E.; SCHROOTS, J. J. F. Steeps to an ontogenetic psychogoly. Academic
Psychology Bulletim, v. 6, p. 177-190, 1984.
7. PASCHOAL, S. M. P. Autonomia e Independência. In: PAPALÉO NETTO, M.
(Org.).Gerontologia. São Paulo: Atheneu, 1996. p. 313-323.

– 218 –
a redefinição dos poderes ligados a grupos sociais distintos em diferentes
momentos do ciclo de vida” (BOURDIEU8 apud DEBERT, 1994, p.11).
Nas últimas décadas, no mundo, a proporção de pessoas idosas no país
aumentou, assim como a ocorrência de desastres. A literatura internacio-
nal retrata que, apesar do extenso debate sobre desastre, poucos desses es-
tudos se referem ao tema da velhice, tanto com relação aos níveis de
preparação, resposta ou reconstrução (GIBSON, 2006).
Para relacionar desastre e velhice é necessário estabelecer o diálogo com
diversas disciplinas, em que a sabedoria da coletividade é considerada como
a chave fundamental para fazer a interface entre essas instâncias (NGO,
2001). O trabalho de Ngo (idem) teve o intuito de analisar como os idosos
percebem e respondem aos desastres, sob uma perspectiva da medicina, da
sociologia e da psicologia. Para tanto, foram selecionadas as relações entre
perdas (impactos materiais e financeiros) e danos (físicos, psicológicos e,
ainda, a morte).
No Brasil, a literatura referente aos idosos no contexto de desastres,
principalmente, em assuntos que tratem das dimensões sociais e culturais,
é escassa. A importância de estudar esse grupo social no contexto de desas-
tre não está somente relacionada com o processo de vulnerabilização que o
idoso vivencia em suas relações cotidianas, mas também com o repertório
de experiências e de memória do grupo social que esse grupo transmite ao
longo das gerações.
Dessa forma, é fundamental que os idosos que sofrem os danos mate-
riais e imateriais nos desastres sejam escutados e que suas experiências se-
jam incluídas em projetos de preparação e resposta aos desastres (DUGGAN
et al., 2010).
Assim, pretendemos compreender as dimensões culturais e sociais em
torno da vivência do idoso nos desastres para que, dessa forma, possamos
entender como o sujeito vivencia essa crise, se reinventa perante essa expe-
riência social desaglutinadora.
Para compreender aspectos essenciais a respeito do desastre vivenciado
em São Luiz do Paraitinga, a relação entre memória e vida cotidiana é es-
sencial nesse processo. A proposta de Martins (1992; 2000; 2008) segue no
rumo oposto dos estudos sociológicos tradicionais, em que os aspectos es-
senciais da vida cotidiana servem para compreensão da História, e não o
contrário. E assim propõe “tornar o que liminar, marginal e anômalo como
referência da compreensão sociológica. É nos limites, nos extremos, na pe-

8. BOURDIEU, P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983.

– 219 –
riferia da realidade social que a indagação sociológica se torna fecunda”
(MARTINS, 2000, p. 12/13).
A história vivenciada serve de referência para compreensão de gran-
des processos históricos, pois nascemos imersos na cotidianidade. A vida
cotidiana acontece por meio de gestos repetitivos, que são fontes que ga-
rantem a existência de um mundo prático sensível (LEFEBVRE, 1991), e
que se encontra na imitação (HELLER, 2008).
Assim, construir um caminho que parta do plano do homem simples
é desafiador por esse homem ser fragmentado e alienado de seu papel no
mundo. A alienação, ao mesmo tempo em que funciona como um abismo
entre o homem e a História, “a História é vivida e, em primeira instância,
decifrada no cotidiano” (MARTINS, 2000, p. 142). Então, decifrar esses
aspectos essenciais que a história vivenciada se configura nos dá elemen-
tos para pensar a Historia. Numa relação dialética, a História só faz senti-
do no mundo vivido, e a partir de elementos do mundo vivido podemos
visualizar a História.
Essa pesquisa parte do plano do sujeito em que “para o homem co-
mum, os acontecimentos do cotidiano são os que ficam na memória, são
os que têm ‘importância’” (idem, p. 151).
O intuito de mergulhar nas “tensões do vivido que tem lugar o encon-
tro e desencontro da vida cotidiana com a vida privada, e da vida cotidiana
com a História” (idem, p. 109).
Assim, a construção do que seria o desastre vivenciado parte do homem
simples. A vida do homem simples, que se pretendemos apresentar, é a vida
do idoso, sujeito que é portador da memória social do grupo que faz parte.
O idoso é o sujeito fundamental na transmissão das práticas, das crenças e
valores que compõem a cultura de determinado grupo.
Além de ser portador do capital histórico-cultural da coletividade, o
idoso sofre severamente diante das adversidades postas na modernidade –
que se intensificam no contexto de desastres.
Compreender a complexidade do mundo social, a partir do sujeito, é
o desafio da Sociologia da Vida Cotidiana, em que
de um lado, o herói deste enredo é o homem comum, fragmentado,
divorciado de si mesmo e de sua obra, mas obstinado no seu propó-
sito de mudar a vida, de fazer História, ainda que pelos tortuosos
caminhos de sua alienação e de seus desencontros, os difíceis cami-
nhos cotidianos da vida. De outro lado, a complexidade do proble-
ma está no modo anômalo e inacabado como a modernidade se

– 220 –
propõe num país como o Brasil e na realidade descompassada desta
nossa América Latina” (MARTINS, 2000, p. 12).
Nos estudos referentes à memória, Pollak (1989) estabelece três cri-
térios que, direta ou indiretamente, influenciam e que a constitui. São eles:
os acontecimentos (que caracterizam a memória que herdamos do grupo
ao qual pertencemos, ou mesmo a memória dos acontecimentos que vive-
mos pessoalmente); os personagens; e os lugares.
Ao longo de uma história, que é essencialmente dinâmica, “a memó-
ria (...) não é um patrimônio definitivamente constituído; ela é viva preci-
samente porque nunca está acabada” (GODÓI, 1999, p. 147).
Assim, a partir dos estudos de Pollak (1989) referente à memória re-
laciona-se com as especificidades do desastre vivenciado, em que à atribuição
de sentido que perpassa a identidade individual e do grupo, que, de certa
forma, se interrompe e se desfaz.
Para compreender essas particularidades do mundo simbólico, aden-
traremos no que Pollak (1989) nomeia como memórias subterrâneas, que
consistem nas memórias que estão à margem da memória dita oficial. A
história oral surge, então, como uma alternativa importante de valorização
das memórias subterrâneas. Assim, a importância de trabalhar com memó-
rias do homem simples é que “o relato oral transforma objetos de estudo
em sujeitos” (ALMEIDA, 2001, p. 62).
são os simples que nos libertam dos simplismos, que nos pedem a ex-
plicação científica mais consistente, a melhor e mais profunda com-
preensão da totalidade concreta que reveste de sentido o visível e o
invisível. O relevante está também no ínfimo. É na vida cotidiana que
a História se desvenda ou se oculta (MARTINS, 2008, p.12).

E, em face de uma eventual experiência intensa pela qual passou um


sujeito, o silêncio parece se impor, como se o silêncio levasse, de alguma
forma, ao esquecimento (POLLAK, 1989).
O norte conceitual acima nos auxilia a colocar as seguintes questões:
o que significa sobreviver diante um desastre e quais são as dimensões sim-
bólicas em torno dessa sobrevivência? Sobreviver em face de rotinas do
cotidiano que não existem mais, das relações que se interromperam, da
impossibilidade de reconhecer-se no território, por que e para que? O que
significa, portanto, viver quando a vida em si mesma não faz mais sentido?
Diante das indagações supracitadas, o objetivo deste trabalho é pene-
trar nas dimensões do sofrimento, nas dimensões material e simbólica que

– 221 –
se manifestam através da memória de idosos e de suas narrativas de verda-
de, para que, assim, possamos compreender o que é um desastre vivenciado.

MEMÓRIAS EM TORNO DO DESASTRE VIVENCIADO EM


SÃO LUIZ DO PARAITINGA/SP
São Luiz do Paraitinga é um município localizado na região do Vale
do Paraíba, na parte leste do Estado de São Paulo. A região está situada entre
a Serra da Quebra-Cangalha e o topo da Serra do Mar, encontra-se a sub-
região do Alto Paraíba, caracterizada geograficamente como mar de mor-
ros (CAMPOS, 2011).
O município possui 10.397 habitantes, numa área de 617,15 km²,
resultando em 16,84 hab/km² (IBGE, 2011).9 A porcentagem de idosos é
de 15,37% (IBGE, 2011). De acordo com o Atlas de Desenvolvimento Hu-
mano (PNUD, 2013), a estrutura etária da população residente em São Luiz
do Paraitinga é predominante adulta, com faixa etária de 15 a 59 anos, re-
presentando 64,13%, seguida pela faixa etária de 0 a 14 anos, com 20,5%,
e de pessoas acima de 60 anos 15,37%. Junto a isso, os idosos se caracteri-
zam como grupo significativo no contexto luizense devido sua represen-
tatividade na manutenção da memória social e da tradição do grupo.
Em São Luiz do Paraitinga, no período de 2006 a 2010, 19.760 pes-
soas foram afetadas por desastres relacionados às chuvas. O desastre no ano
de 2010 foi decretado pelo município e reconhecido pelo ente federal, como
Estado de Calamidade Pública (ECP), devido a enxurradas ou inundações brus-
cas. Por meio da análise do documento de Avaliação de Danos (AVADAN), o
desastre foi ocasionado pelo elevado nível de chuvas, cerca de 600 mm no
mês de dezembro de 2009. No dia 1º. de janeiro de 2010, choveu aproxi-
madamente 69,9 mm, o que suscitou a inundação do Rio Paraitinga – 11
metros acima de seu nível regular – e a do rio Chapéu – 6 metros acima do
nível normal – e houve diversos deslizamentos de terra no referido municí-
pio (SÃO LUIZ DO PARAITINGA, 2010).
De acordo com o AVADAN, o número total de afetados na inundação
de 2010 foi de 11.000 pessoas, das quais 4.030 pessoas ficaram desaloja-
das, 93 desabrigadas e 16 foram deslocadas. Em relação ao número total
de afetados, os idosos representaram 10,65% em relação ao total. Dentre
os idosos, 508 ficaram desalojados; 8, desabrigados; 16, deslocados e foram
1.172, afetados pela inundação (SÃO LUIZ DO PARAITINGA, 2010).

9. A porcentagem de idosos no município de São Luiz do Paraitinga/SP (15,37%) é maior


se for comparada à porcentagem de idosos no Brasil, que representa 10,79% em relação
ao total.

– 222 –
A vivência do desastre em São Luiz do Paraitinga é marcada pela re-
sistência dos idosos, que ocorre de duas formas: 1) por meio das manifes-
tações culturais; 2) pela incorporação das injustiças e do sofrimento social.
A resistência dos luizenses por meio das manifestações culturais apa-
rece, nesse contexto, enquanto força que pulsa no sentido de não perder a
identidade cultural. Essa força aparece na manutenção da cultura popular
e das tradições locais, desde a manutenção dos valores e crenças – seja pela
reprodução dos rituais religiosos, ou mesmo da divulgação os mitos, lendas
e causos – ou ainda a manutenção do estilo arquitetônico, representado pelos
grandes casarões, a Igreja Matriz, a capela do Rosário e a Capela das Mer-
cês, que configura o que Zhouri e Oliveira (2010) denominam como lugar
no qual os luizenses se reconhecem e reproduzem suas relações cotidianas.
Os valores e as crenças locais foram elementos cruciais para reconstru-
ção do município, em nível simbólico. A união dos munícipes para reerguer
o município foi por meio das festas religiosas e pagãs. Bosi procura a apro-
ximação entre narrativa e resistência a partir da história da realização dos
valores. A mistura do tradicional com o moderno, sagrado com o profano
está em constante embate na cultura luizense. Para superar as adversida-
des vivenciadas no desastre em 2010, a manutenção da tradição local con-
sistiu numa forma de resistência, em que “a história do município continua
a ser feita no dia a dia” (CAMPOS, 2011, p. 50).
Já a resistência, como incorporação das injustiças sociais, acontece de
modo sutil e só foi percebido nos detalhes, nos gestos e na forma que os
munícipes se colocavam frente às dificuldades enfrentadas no desastre. Nes-
se sentido, significa dizer que o desastre se configura como uma perda, como
qualquer outra perda cotidiana, em que os idosos desprovidos de sua cida-
dania, resistem incorporando a desigualdade, como reflexo de sua culpa e
incapacidade. Dejours (2006) destaca que as pessoas criam mecanismos co-
letivos de defesa para gerenciar os sofrimentos, porém, contraditoriamente,
torna tolerável o intolerável.
O desastre desorganizou abruptamente o habitus, em que os idosos
perderam suas referências, o que impossibilita seu reconhecimento no lu-
gar. Para compreender as dimensões do desastre vivenciado, a partir do plano
do sujeito, a vida cotidiana deve ser compreendida enquanto processo.
As narrativas a respeito da inundação de 2010 mostra que esta supe-
rou todos os desastres que fazem parte da história do município. Os efeitos
dessa enchente foram tão devastadores, que uma afetada declarou: “se eu
não visse e o povo contasse pra mim, eu não acreditava” (Entrevistada M,
Várzea dos Passarinhos, julho de 2012).

– 223 –
Além da perda de grande parte dos pertences pessoais dos luizenses – que
se caracterizaram pela perda da casa, móveis, roupas, utensílios domésticos,
entre outros – o entrevistado A destaca a perda dos bens culturais, com a per-
da da Igreja Matriz, da Capela das Mercês, os antigos casarões e a escola. A perda
do patrimônio cultural da cidade afetou muito o modo de vida local, que se
organizava a partir das relações que eram estabelecidas no território.
As Igrejas, além de representarem e caracterizarem a arquitetura da
cidade, elas são elementos constitutivos da cultura local. Nesse sentido, o
modo de vida do luizense era marcado pelas atividades religiosas, o que
ocasionou na perturbação dessas atividades.
No momento da inundação, as pessoas sentiram muito a queda da
Igreja, Matriz e, de acordo com Campos (2011),
muitas pessoas que ficaram desalojadas, saindo apenas com a rou-
pa que estavam usando, lamentavam mais a queda do templo do que
a perda de suas casas e de seus bens. Sua reconstrução ficou, no
imaginário dos moradores, como um sinal da reconstrução da
cidade e de suas vidas” (CAMPOS, 2011, p. 50, grifo nosso).
A destruição do patrimônio histórico, principalmente, os estabeleci-
mentos religiosos, que eram símbolo de fortaleza, contribuiu para que os
munícipes perdessem a referência pública no lugar. A igreja simbolizava essa
referência e coesão social (Figura 1).

Figura 1 Igreja Matriz após a construção da segunda torre.


Fonte: Arquivo Benito Campos, cedida por Benito Campos.

– 224 –
Os antigos casarões, que se localizam na praça central da cidade, fo-
ram severamente danificados com a enchente, e tinham papel central no
reconhecimento do Luizense no lugar. A reprodução da vida social – atra-
vés das atividades corriqueiras, como a ida ao trabalho, ao mercado, à far-
mácia, à igreja, entre outras atividades – sempre transitou pela praça da
cidade. E a Igreja Matriz e os casarões coloridos marcam o estilo arquite-
tônico e a cultura local (Figura 2).

Figura 2 Casarões, em 1932, em São Luís do Paraitinga/SP.


Fonte: arquivo Benito Campos, cedida por Benito Campos.

Ao longo da pesquisa de campo, os discursos dos idosos sobre o desastre


ocorrido em São Luiz do Paraitinga no ano de 2010 sofreram modificações.
Em julho de 2012, quando os idosos relatavam suas vivências relacionadas ao
desastre, os mesmos forneciam mais detalhes e se emocionavam bastante
durante as entrevistas. E esse comportamento não era recorrente somente
com os idosos, mas com qualquer outro morador da cidade, como os funci-
onários da prefeitura, os comerciantes, entre outros.
Porém, na segunda inserção em campo, que ocorreu ao longo do mês
de março de 2013, os relatos dos idosos contidos nas entrevistas que solici-
távamos eram mais sucintos, no sentido de ser um discurso pronto, e que
nele não envolvesse tanta emoção do sujeito que relatava.
Esse afastamento social em relação ao discurso proferido ocorreu de-
vido à saturação da população em compartilhar esse sofrimento coletivo com
os forasteiros que os abordavam, para fins de pesquisa científica ou inte-

– 225 –
resse jornalístico, já que ao relatar as experiências do passado, sobretudo as
de grande intensidade emocional e desagradáveis, estas são vivenciadas
novamente. Os idosos conseguiam falar mais das vivências que tiveram no
desastre quando já se estabelecia uma relação de confiança entre o pesqui-
sador e o afetado.
A memória dos idosos acerca da vivência do desastre possuem aspec-
tos coletivos e que, ao mesmo tempo, trazem elementos peculiares na
vivência dessa crise, de acordo com os detalhes de suas experiências.
O que podemos destacar, que corrobora com a memória coletiva dos
idosos que viviam nos bairros mais pobres do município, foi a negação do
sofrimento em relação a essa experiência desaglutinadora. A negação do
sofrimento consiste na incorporação das injustiças sociais que se expressa
nos detalhes, na forma da fala, no olhar e na postura dessa idosa que
vivenciou a enchente em 2010.
Dentre as estratégias que os indivíduos criam na incorporação do medo
e da injustiça social, Dejours (2006) considera como uma estratégia fun-
damental a “proibição de verbalizar o medo, a obrigação de exibir seus
antônimos: coragem, resistência à dor, força física, invulnerabilidade,
irredutivelmente articulado a um sistema de valores centrado na virilida-
de” (DEJOURS, 2006, p. 104). Essas estratégias podem ser vistas no rela-
to da senhora D:
eu não esquentei muito com isso, mas a turma ai sentiu bastante...
O pessoal que tem mais, sentiu mais, Sabe como é que é? Quem ti-
nha mais valor na casa, perdeu mais, daí sentiu mais. A vizinha com
as coisarada que ela tinha, sentiu mais. A enchente levou tudo, o que
a enchente não levo, fico lá pra cima. Agora eu já não senti muito
porque eu não tenho muita coisa para perder, sabe como é que é?
Eu já não tinha muita coisa pra senti falta (Entrevistada D, Várzea
dos Passarinhos, grifo nosso).

Quando a idosa D destacou que não tinha muita coisa pra perder, ela
fez uma pausa e foram segundos perturbadores que deflagraram a incorpo-
ração das injustiças sociais. A idosa se referiu às perdas materiais, já que sua
casa era muito humilde e não tinha muitos pertences de valor, mas os sig-
nificados em torno dessas perdas ultrapassam a questão material.
Do mesmo modo que a idosa D, o senhor H, que reside no bairro
Benfica, que foi severamente afetado pela enchente naquela ocasião. Quan-
do foi mencionada uma pergunta referente ao que ele tinha perdido com a
enchente, disse:

– 226 –
perdemos tudo (...) Tive que ir comprando de pouco. E os móveis,
perdeu quase tudo, tem porta aqui que tá... A porta do quarto, que
tá inchada, estufou a água (Entrevistado H, Benfica, março de 2013).

Apesar do fato que diversos idosos relataram em relação à perda de


grande parte de seus bens, ou todos eles, a forma de enunciação durante o
relato sobre suas perdas e danos, o idoso H mencionou esse acontecimento
com muita naturalidade, sem parecer estar envolvido com o sofrimento que
foi vivenciado naquele momento.
O desastre social se reflete no que Santos (1997) chama de cidadani-
as mutiladas. Para Santos, ser cidadão “é ser um indivíduo dotado de direi-
tos que lhe permitem não só defrontar o Estado, mas afrontar o Estado”
(SANTOS, 1997, p. 133). Numa sociedade em que alguns possuem privi-
légios, Santos pontua que para tanto, outros não podem ter direitos. A nossa
cidadania segue mutilada nas condições de trabalho, de moradia, de saú-
de, educação, entre outros. E cabe ao indivíduo, gerenciar o sofrimento no
qual se encontra.
Após quatro anos da ocorrência da enchente, os idosos negam o sofri-
mento em torno dessa vivência e tratam as consequências sociais do desas-
tre como mais uma perda na vida cotidiana. Nesse sentido, o desastre se
torna mais um aspecto da injustiça social - como a pobreza, as desigualda-
des sociais, entre outros. Assim, o desastre nada mais é do mais uma perda
na vida desses idosos, que vivenciam diariamente as agruras de um desas-
tre social (SIENA, 2009).
O sentimento coletivo de tristeza foi um elemento que apareceu cons-
tantemente nos relatos, que se manifestaram por meio da mudança das
interações estabelecidas no território. Nesse sentido, o que o grupo identi-
fica como essencial para classificar as agruras vivenciadas no cotidiano nos
é fonte de conhecimento e é essencial para pensar o contexto de crise, no
qual os desastres se configuram.
Porém, o que podemos afirmar, por meio da análise de cunho socioló-
gico, é que os sentimentos de tristeza e angústia permanecem na vivência
dos idosos nos desastres e como destaca um dos entrevistados “a pessoa fica
com aquilo, né?” (Entrevistado B, Várzea dos Passarinhos).
O medo da vida rotineira, que segue ameaçada, com a possibilidade
da ocorrência de um novo desastre:
enchente é só pra quem passa e sente, eu sinto. Eu vejo agora
na televisão, e a gente já sentiu na pele, e volta aquela realidade,
você ta dentro da casa, e a agua vindo, como que vai volta, vem tudo
de novo, rapidinho (Entrevistado B, Várzea dos Passarinhos).

– 227 –
foi muito feio, terrível, só pra quem passou. [...] Tem dia que eu cho-
ro aqui, de medo de acontecer comigo aqui o que tá acontecen-
do lá. Nosso fim vai ser acaba daquele jeito, quando rio enche, eu
já fico com medo, mas acho que não da mais, né? [...] todo ano que
passa, vai chegando novembro, dezembro, a gente já vai ficando
perturbada. Eu fico mesmo, perco o sono, a água já chegou no
bequinho esse ano [...] Quando enche o rio, já fica aquele zumbido
na minha cabeça, a turma já fica gritando na rua, porque ninguém
dorme de medo e a gente também não dorme, fica todo mundo pra
rua olhando o rio, não tem perigo, mas faz isso (Entrevistada J, Vár-
zea dos Passarinhos, março de 2013).
muito sentimento, muita perda, sabe? Não sei explica o vazio.
Também já perdi um casal de filho, eu não tenho sonho, um vazio, não
sei o que te falar um negocio de cabeça que vira a gente, sozinha, sem
os filho que são casados, tem que fica sozinha, a faz 3 anos que ele
namora uma menina só, a primeira que surgiu, ele puxo o resto da
família, foi criado desde novinho (Entrevistada O, Ver de Perto).

A idosa J ao relatar sobre o desastre da Região Serrana do Rio de Ja-


neiro se emociona, pois ao ver as notícias na televisão, de certo modo, ela
revive a experiência vivenciada por ela em São Luiz do Paraitinga.
As dimensões do mundo vivenciado, da vida cotidiana são decifradas
quando esta se desorganiza. O cotidiano que passa despercebido com a re-
produção do habitus se declara como fonte norteadora de múltiplas reali-
dades sociais.
eu não queria nem olhar no espelho pra ver o que ia acontece comi-
go, de tanto sofrimento... (Entrevistada P, Centro, Março de 2013).

Olhar no espelho fez com que a idosa P, de certo modo, entrasse em


contato consigo mesma, e com a vida cotidiana que se perturbou.
As lembranças do desastre vivenciado em São Luiz do Paraitinga se
refletem também nos sonhos dos idosos:
sonhei muitas vezes, agora já não tenho sonhado mais. Eu sonho,
uma vez por semana, às vezes seguida, que a enchente vem vindo, e
eu tô dentro dela, as vezes é água suja, as vezes é água preta... [...]
Sonho, sonho, e eu tive um sonho antes da igreja, que eu sai daqui
da capela encontrei com água nesse pedaço de rua, depois aconte-
ceu. [...] Eu sonho sempre, às vezes 2 ou 3 vezes por semana, a água
vem vindo e eu tô nela, eu não posso entrá na cidade que a ponte
da cheia de água. (Entrevistada P, Centro, Março de 2013).

– 228 –
Em relação à descrição dos sonhos dos afetados pela enchente em São
Luiz do Paraitinga em 2010, os idosos tiveram certo receio em descrevê-los.
O acesso a algo tão íntimo gerou um inicial desconforto quando indagado.
Porém, percebemos que os idosos descreviam sonhos semelhantes com en-
chentes, sempre seguiam descritos com o sentimento de desespero com a
água entrando na casa. Como se de algum modo revivessem a enchente de
2010 e isso expressasse o medo de perder tudo novamente.
Desse modo, o sonho consiste na expressão íntima do ser, porém “a
gestação do conceito de sonho se determina pela mediação das experiênci-
as sociais concretas do vivido” (MARTINS, 2000, p. 69).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nesse trabalho pretendeu-se analisar a memória social de idosos acer-


ca do desastre vivenciado no município de São Luiz do Paraitinga/SP, em ja-
neiro de 2010. O termo de análise desastre vivenciado se amparou na categoria
história vivenciada (MARTINS, 1992; 2000) que se reproduz e se insere no
cotidiano.
O desastre é um evento que deve ser compreendido a partir de seu
caráter multidimensional. O desastre vivenciado pelos idosos se caracteri-
zou por meio da resistência, quais sejam a partir das manifestações cultu-
rais, por meio das festas religiosas e pagãs e ainda a partir da incorporação
das injustiças sociais, através que se reflete nas perdas diárias, nos direitos
não garantidos.
De modo geral, os luizenses encontraram como fonte de resistência a
manutenção da cultura local, que transita tanto na reconstrução do patri-
mônio histórico, quanto na reprodução do modo de vida caipira – que per-
correm as lendas antigas, os rituais religiosos e os rituais pagãos. Nesse
sentido, a memória social dos munícipes constituiu como uma forma de
resistência para manter e perpetuar a tradição do grupo social, pois ao ten-
tar perpetuar os valores e as tradições era como se minimizasse as con-
sequências do desastre na vida cotidiana.
A reconstrução da vida dos idosos luizenses, que vivenciaram o desas-
tre no ano de 2010, se constitui como um processo social. Suas lembran-
ças seguem marcadas pela perturbação brusca que o desastre causou em suas
vidas. Sendo assim, o desastre não termina para esse grupo, pois as repre-
sentações em torno desse acontecimento trágico são, constantemente,
reelaboradas.
A forma com que os idosos vivenciaram o desastre é construída indi-
vidual e coletivamente. E é nessa constante representação do passado que

– 229 –
a memória se configura (BOSI, 1979; 2003). Desse modo, as lembranças
em torno do desastre vivenciado em São Luiz do Paraitinga em 2010 são
constantemente ressignificados.
Como esquecer o desastre vivenciado no dia 01 de janeiro de 2010 no
município de São Luiz do Paraitinga? Será que, um dia, essas experiências se
esgotem no pensamento desses idosos, que se nutrem de suas lembranças?
O esquecimento pode vir do ente público, ou de alguém que se como-
veu com a notícia na televisão, mas quem vivenciou essa perturbação e essa
crise no seu mundo social não conseguem esquecer. As lembranças do de-
sastre estão no cheiro da lama que impregnou nas casas, na sujeira que ain-
da persiste no canto da parede; ou ainda pelos pertences que desapareceram;
ou pelas fotografias que eram fonte da memória familiar.
Os medos e anseios ressurgem ao relembrar aspectos essenciais de um
modo de vida que não pode mais ser reproduzido. O que os idosos parti-
lharam foi um pouco de suas vidas, suas experiências e suas estórias. A
memória se torna mais viva enquanto o corpo se desagrega (BOSI, 1979).
Desse modo, o fato do idoso vivenciar um desastre faz com que ele vivencie,
constantemente, as experiências do passado.

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– 232 –
CAPÍTULO IX

O DESASTRE DE SÃO LUIZ DO


PARAITINGA/SP: LÓGICAS DE PODER,
DISCURSOS E PRÁTICAS

Victor Marchezini

INTRODUÇÃO
Investigando os registros históricos sobre o tema das calamidades, Tuan
(2005, p. 91) demonstra a preocupação dos governantes com o rompimento
“da ordem cósmica e o desencadeamento de forças naturais violentas que pos-
sam destruir regiões inteiras”. Para estabelecer uma relação de governo frente à
fome – em virtude de plantações ressecadas pelo sol, submersas pelas águas da
inundação ou destruídas por pragas – faraós, imperadores e demais governantes
passam a estabelecer reservas de alimentos em celeiros, distribuem alimentos
e roupas para toda a população, perdoam impostos nas áreas atingidas etc.
Esses contextos de calamidades continuam a ocorrer ao longo dos sé-
culos, tornando-se de grande preocupação social e de governo à medida que
as cidades crescem e as revoltas sociais aumentam. Diante desse cenário,
inovam-se os mecanismos para estabelecer uma relação de governo frente ao
acontecimento de crise. Foucault (2008) destaca o aparecimento de um dispo-
sitivo de segurança para lidar com o problema da escassez alimentar. Esse
sistema antiescassez alimentar, ao mesmo tempo jurídico e disciplinar, era
um sistema de legalidade e de regulamentos, voltado não somente para deter
a escassez quando ela se produz, mas para prevenir a sua ocorrência. Isto
é, um sistema de limitações, de pressões, de vigilância permanente, que é
organizado para que os preços dos cereais não disparem nas cidades, evi-
tando que as pessoas se revoltem. Assim, vão emergindo saberes de todos
os processos para lidar com a população como problema político, científi-
co, biológico e de poder, isto é, uma biopolítica (FOUCAULT, 1999).
Esses saberes de governo permitem conduzir sem necessariamente repri-
mir, utilizando-se de um conjunto de técnicas, mecanismos de poder, de dis-
Apoio: FAPESP. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste
material são de responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.

– 233 –
positivos de segurança sobre um conjunto de fenômenos, inclusive os aciden-
tais e aleatórios. No mundo contemporâneo, fenômenos tidos como aciden-
tais e aleatórios, como desastres relacionados a inundações e deslizamentos,
também têm demandado uma biopolítica: são inseridos numa série de acon-
tecimentos prováveis, passam por cálculos de custo, elaboram-se métodos de
observação, técnicas de registros de informações e dados, ou seja, entram numa
estatística1 e, consequentemente, elaboram-se técnicas de poder, mecanismos
e dispositivos para conduzi-los. Ainda, desenvolvem-se um conjunto de técni-
cas, mecanismos de poder e dispositivos de segurança para gerenciar os que estão
no cenário de desastre e os problemas que se apresentam: produzem-se classi-
ficações para criar discursos de verdade, tornando a realidade produzida como
administrável e quantificável, objetivando, assim, enquadrar a complexidade
dos problemas sociais revelados na cena em algo propício à gestão técnica, dando
ênfase a aspectos dessa realidade que possam ser “solucionáveis”.
Ademais, adotam-se técnicas de governo para gerenciar desastres, conhe-
cidas como Situação de Emergência (S.E.) e Estado de Calamidade Pública
(E.C.P.), as quais permitem declarar estado de exceção e, por conseguinte, criar
fissuras no ordenamento jurídico para fazer crescer as forças do Estado. Tal
técnica de exceção se tornou a regra quando se analisa o caso brasileiro: no
período 2003-2010, os desastres oficializados pelas autoridades locais soma-
ram 13.098 decretos municipais de S.E. ou E.C.P. reconhecidos por portari-
as da Secretaria Nacional de Defesa Civil do Ministério da Integração
Nacional (SEDEC/MI), uma média de 1.637,25 decretos reconhecidos ao
ano. “Isso representa que, aproximadamente, 29,42% dos municípios passam
anualmente por esse percalço” (VALENCIO, 2012, p. 98).
Do ponto de vista legal, Situação de Emergência é o “reconhecimento
(legal) pelo poder público de situação anormal, provocada por desastres,
causando danos superáveis (suportáveis) pela comunidade afetada”. Já o
Estado de Calamidade Pública é o “reconhecimento (legal) pelo poder pú-
blico de situação anormal, provocada por desastres, causando sérios danos
à comunidade afetada, inclusive à incolumidade ou à vida de seus integran-
tes” (BRASIL, 2007, p. 8). No ordenamento legal, o prazo de vigência do
decreto de S.E. ou E.C.P. “varia entre 30, 60 e 90 dias, o qual poderá ser
prorrogado até completar 180 dias” (idem, p. 24).
Nesse capítulo, discuto alguns aspectos desse processo que foi anali-
sado em minha tese de doutorado (MARCHEZINI, 2014). O argumento
que defendo é que essas declarações de S.E. e E.C.P. fazem parte de uma
biopolítica do desastre, como técnicas para fazer crescer as forças do Esta-

1. Foucault (2008) afirma que, etimologicamente, a estatística é o conhecimento do Esta-


do, o conhecimento das forças e dos recursos que o caracterizam num momento dado.

– 234 –
do que, no período de crise, fazem viver, mas que, no pós-impacto, deixam
morrer, porque são desconexas às demandas sociais de reconstrução e recu-
peração. Assim, exponho algumas lógicas de poder, os discursos e práticas
em relação aos processos de recuperação de São Luiz do Paraitinga/SP.
O referido município vivenciou, entre os dias 1 e 4 de janeiro de 2010,
uma grande inundação do rio Paraitinga, que recebeu um grande volume
de chuva nas áreas de cabeceira da bacia hidrográfica, sobretudo do setor
do município de Cunha/SP. A grande inundação atingiu cerca de oitenta por
cento da área urbana luizense, com elevação das águas do rio Paraitinga a
cerca de doze metros acima de seu nível normal, submergindo todo o seu
Centro Histórico, detentor do maior conjunto arquitetônico de casarões do
século XIX do Estado de São Paulo. Naquele início de janeiro de 2010, co-
mecei a acompanhar a tragédia a distância, iniciando um levantamento
documental das matérias jornalísticas veiculadas pela Folha Online e demais
meios de comunicação a respeito do acontecimento naquele município.
E eu me lancei a acompanhar o desastre de São Luiz do Paraitinga não
como um fenômeno pontual, mas sim a partir da perspectiva da continuida-
de do desastre, isto é, do conceito de desastre como articulado à vivência de
um estado de crise que transcorre em um tempo social (QUARANTELLI,
1998; PERRY, 2005) e que assume interpretações variadas dependendo do
ponto de vista dos sujeitos com diferentes lugares de enunciação (HEWITT,
1998). Desse modo, adotei como recorte temporal de análise o período
compreendido entre janeiro de 2010 a junho de 2013, entendendo que o
processo de reconstrução e recuperação social frente ao desastre é de longo
prazo e ultrapassa o período dessa pesquisa.
Junto ao levantamento documental e à pesquisa bibliográfica, também
realizei pesquisas de campo de base qualitativa a fim de procurar maiores
informações sobre as lógicas de poder, os discursos e as práticas dos dife-
rentes sujeitos envolvidos nas relações que compõem essa trama no decor-
rer do tempo, uma vez que no enredo oficial do desastre há agentes que
detêm a fala e produzem seus entendimentos imediatos sobre o mundo do
outro, falando pelos atingidos e definindo o que precisam, o que é melhor
para eles. Desse modo, neste capítulo analiso o desastre como expressão de
relações de poder para entender o campo de forças que conformam os dis-
cursos e as práticas. Para tanto, destaco duas lógicas de poder que se
entrecruzam: a do fazer viver e a do deixar morrer.2 Nas próximas seções dis-
cuto esses aspectos à luz do desastre de São Luiz do Paraitinga/SP.

2. Destaco que Siena (2010), em um capítulo do volume 2 do “Sociologia dos Desastres:


construção, interfaces e perspectivas no Brasil”, discute alguns dos aspectos do fazer vi-
ver e do deixar morrer para analisar a lógica das políticas de “remoção” adotadas pelo Es-
tado. É desse conjunto de reflexões no âmbito do NEPED/UFSCar que encontrei grande
parte dos referencias para análise do meu estudo.

– 235 –
A LÓGICA DO FAZER VIVER

Na biopolítica do desastre, uma série de dispositivos de segurança, do


domínio da gestão da população, da economia e da segurança, será intro-
duzida com a função de fazer crescer as forças do Estado, pautando-se, ini-
cialmente, numa lógica do fazer viver. Os dispositivos de segurança procuram
enquadrar o cenário de crise dentro de uma determinada perspectiva para
gerenciá-lo, e permitirão, conjuntamente, criar instrumentos para impedir
ou reprimir delinquências e eventuais ações tidas como ameaçantes à segu-
rança pública.
Entre esses dispositivos de segurança se incluem: a produção de dis-
cursos de saber para fundamentar as ações; a criação de categorias e de
populações-alvo para gerir o cenário de crise; a produção de interpretações
antecipadas sobre o problema, criando um enredo para o desastre e assim ge-
rir a opinião pública, enfatizando discursos visuais e numéricos que buscam
fabricar uma amplitude do problema e a contabilidade do desastre; a ges-
tão da exceção por meio da decretação de situação de emergência e calami-
dade pública, combinando ações policiais e assistenciais etc.
A produção de discursos de saber é um desses dispositivos que funda-
mentam a necessidade de se decretar o estado de exceção e, consequentemente,
poder utilizar as forças policiais e Forças Armadas para desempenhar ações
de “defesa civil” quando, o que está subsumida é uma verdadeira operação de
guerra para a manutenção da segurança pública. Em São Luiz do Paraitinga/
SP, no tipo de enredo criado para o desastre, a presença das Forças Arma-
das e Militares na cena do desastre foi produzida pela imprensa que, dia após
dia, conferiu visibilidade às distintas corporações ali presentes, a missão
desempenhada por cada uma, evidenciando-se a quantidade dos recursos
materiais e humanos deslocados. Nessa lógica de poder, criam-se categori-
as e populações-alvo que passam a fazer parte do tipo de enredo e da rela-
ção Estado-sociedade que ai se estabelece.
Dessa forma, os moradores locais – incluindo os agentes do poder pú-
blico municipal – passam a ser nominados pelo Outro, pelo agente exter-
no, como “desabrigados/desalojados/afetados”, classificados e tratados como
população alvo carente de casa – “desabrigados” –, como vítimas indefesas,
incapazes, ou seja, vulneráveis que precisavam dos heróis para serem res-
gatados. Junto a esses dispositivos de segurança que expressam discursos da
vitimização, esquadrinha-se, também, o discurso dramático da necessidade mai-
or de salvar vidas frente ao risco latente da morte, fundamentando-se que
qualquer ato adquira força-de-lei sobre a prerrogativa da vida biológica que
há de se salvar.

– 236 –
Dessa forma, junto aos discursos da vitimização e aos discursos da necessi-
dade, emergem discursos da salvação, trazendo para o contexto de crise uma
grande encenação que ganha suas feições numa estratosférica mobilização
de recursos humanos e materiais – bombeiros, botes, Exército, helicópteros
etc. – em prol do restabelecimento do controle e das ações de fazer viver,
de socorrer as “vítimas”, os “desabrigados” etc. Conforme reportou a Fo-
lha de São Paulo no dia 02 de janeiro de 2010: “equipes dos bombeiros
usam botes para resgatar as vítimas. Os desabrigados são levados para
as áreas altas da cidade. O Exército também auxilia nos trabalhos, com um
helicóptero” (FOLHA ONLINE, 2010a; grifo nosso).
No decorrer dos dias se reiteram esses discursos da salvação frente aos
discursos da necessidade que não param de surgir. Os meios de comunica-
ção continuam reforçando a presença e a mobilização das diferentes forças
do Estado, mostrando que ações estavam sendo realizadas, caracterizando-
as pela menção às instituições envolvidas, ao quantitativo de recursos hu-
manos e materiais mobilizados para resgate das “vítimas”. Esse enredo sobre
o desastre visa controlar a opinião pública em relação às ações do Estado.
No dia 03 de janeiro, a Folha de São Paulo noticiou: “A Polícia Militar
também auxilia nas buscas dos desabrigados com dois helicópteros e
12 embarcações para localizar e resgatar as vítimas. Cerca de 80 homens
do Corpo de Bombeiros foram destacados para trabalhar na cidade”
(FOLHA ONLINE, 2010b; grifo nosso).
A partir do dia 04 de janeiro, a primeira segunda-feira do ano, os dis-
cursos da salvação se aprimoram, passam a produzir e agregar mais informa-
ções qualitativas e quantitativas das novas instituições estaduais envolvidas,
das ações desencadeadas, da quantidade de novos profissionais deslocados,
do número de resgates realizados. Produz-se a interpretação para a opinião
pública de que tudo está sob controle e que as forças do Estado estão se
mobilizando para gerir o cenário de crise nas dimensões do resgate – pre-
sença do Corpo de Bombeiros; da segurança – deslocamento da Polícia
Militar; da saúde – envio de agentes de saúde; da avaliação de risco – con-
vocação de geólogos. Conforme noticiou a Folha Online no dia 04 de ja-
neiro de 2010, com base em informações da Agência Brasil (2010):
Segundo o governo, cerca de 300 profissionais da Defesa Civil,
do Corpo de Bombeiros, da Polícia Militar, agentes de saúde e
geólogos estão no Vale do Paraíba, auxiliando os moradores da re-
gião atingidos pelas chuvas. Até ontem, o governo afirma que
3.520 pessoas haviam sido socorridas pelo Corpo de Bombei-
ros. Dois helicópteros da Polícia Militar chegaram a resgatar,
entre os dias 2 e 3 de janeiro, 54 pessoas em São Luiz do Parai-
tinga e 13 na cidade de Cunha (AGÊNCIA BRASIL, 2010).

– 237 –
Nessa biopolítica do desastre, os discursos da vitimização, da necessidade e
da salvação vão compondo os discursos de saber do enredo do desastre: os
testemunhos dos sujeitos em cena são selecionados e as informações quanti-
tativas e qualitativas são ordenadas num timing, adquirindo visibilidade e
realidade, produzindo uma narrativa que pauta o conteúdo do que se diz sobre
o desastre, quem entra em cena e como atua etc. Todavia, existem outros
contradiscursos e contracondutas que podem ser tirados da invisibilidade quan-
do se entrevistam outros agentes da cena, fornecendo outras interpretações
sobre o desastre. Do ponto de vista dos moradores locais que estavam dias
ininterruptos realizando resgates de seus comparsas, provendo acolhidas co-
munitárias em casas de conhecidos, arrecadando doações e preparando re-
feições em garagens de famílias etc., a vinda do Exército e demais corporações
militares foi tardia, aconteceu quando os próprios luizenses já tinham se or-
ganizado e realizavam suas ações de salvamento, proteção, abrigo etc.
Mesmo diante da resistência dos moradores locais, muitos dos agen-
tes externos que chegaram ao município – incluindo membros das Forças
Armadas, Corpo de Bombeiros e demais militares – ignoraram o apoio dos
civis e, zelosos da sua competência, aventuraram-se nas operações de sal-
vamento nas águas revoltas do rio Paraitinga. Diante do desconhecimento
da dinâmica do rio, muitas das embarcações desses oficiais de resgate aca-
baram tombando nas primeiras tentativas de ações de salvamento, fazen-
do com que os próprios instrutores de rafting os resgatassem. Isso fez com
que um dos comandantes da operação ordenasse que seus oficiais seguis-
sem a recomendação de cada um dos instrutores de rafting, os quais passa-
ram a acompanhar as embarcações dando orientações sobre a dinâmica do
rio e as melhores rotas a seguir. As próprias embarcações trazidas pelo Cor-
po de Bombeiros não eram completamente adequadas às diferentes dinâ-
micas do rio Paraitinga, mas foram úteis em outros salvamentos, sobretudo
em trechos à jusante. Segundo relata um dos instrutores de rafting:
Não desfazendo o trabalho do Corpo de Bombeiros, mas as em-
barcações que eles tinham não eram próprias para o rio, na for-
ma que tava o rio... porque era muita correnteza. E a gente já
tinha uma noção também onde tinha pedra, onde tinha fio,
onde tinha casa, onde tinha árvore. Em alguns lugares, o rafting
não ia por causa da forte correnteza, daí a gente vinha com o barco
do Corpo de Bombeiros, que era um barco a motor [pra resgatar
pessoas de bairros da área rural] (Entrevista concedida em novem-
bro de 2011;grifo nosso).

Os saberes das pessoas, isto é, dos luizenses, identificados no conhe-


cimento dos lugares da cidade e dos moradores que ali vivem, também au-

– 238 –
xiliaram nos trabalhos de priorização dos resgates, sobretudo na informa-
ção das localizações das moradias do grupo de pessoas com capacidade de
locomoção mais limitada em função das circunstâncias do desastre como,
por exemplo, idosos e pessoas enfermas:
Eles [Corpo de Bombeiros] pediam ajuda pra gente [instrutores de
rafting], porque a cidade é pequena e a gente sabia em que casa
tinha um senhor de idade. Aqui na casa ao lado, por exemplo,
tinha um senhor que fazia tratamento em casa, tratamento de
hemodiálise. Eles pediam ajuda, informações para gente, relata um
dos instrutores de rafting (Entrevista concedida em novembro de
2011; grifo nosso).

Mas o auxílio dos instrutores de rafting e dos demais munícipes não se


restringiu à disponibilização de informações a respeito da localização de ido-
sos e enfermos ou de orientações sobre as melhores rotas a se seguir no rio
Paraitinga. Eles também apoiaram no transporte de alimentos, água, medica-
mentos etc. que chegavam de outros municípios. Como grande parte da cida-
de estava ilhada, itens de primeira necessidade precisavam ser transportados
de um lado para o outro do rio e, chegando à outra margem, serem retirados e
passados de mão em mão até serem armazenados num local tempo-rariamente
utilizado como centro de arrecadação. Nessa divisão do trabalho, organizou-
se uma fila, uma corrente de pessoas. Dentro e fora da água, luizenses reali-
zaram práticas de autoproteção que não adquiriram visibilidade nos discursos
oficiais que compuseram o enredo oficial do desastre:
Do dia 2 ao dia 4, era [trabalhar] direto, nem come direito a gente
comeu, era direto...24 horas mesmo. Era transportando mantimen-
tos, água, medicamentos, transportando pessoas. Foi quando o
rio começou a baixar que nós pudemos descansar um pouco. Todo
mundo ajudou, a cidade inteira ajudou. Quando a gente transpor-
tava os mantimentos de um lado pro outro ali no bairro do
Benfica, tinha uma fila, uma corrente de pessoas ajudando a
tirar as coisas, a cidade inteira ajudou. Todo mundo ajudou, nin-
guém ficou parado. Não foi só o pessoal do rafting, a gente fez nossa
parte dentro da água, mas fora da água todo mundo ajudou. É
até bonito este trabalho da equipe, da cidade toda junta. Tira-
va um pacote aqui e ia passando até chegar lá, corrente humana
né?, relata um outro instrutor de rafting (Entrevista concedida em
novembro de 2011; grifo nosso).

Essas histórias de salvamento, de auxílio mútuo, de uma corrente humana


em contextos de tragédia e de desarranjo das rotinas praticadas na cidade

– 239 –
fazem parte da recuperação psicossocial, e muitas vezes são representadas
de forma positiva nos relatos dos moradores locais, ou seja, também exis-
tem marcadores “positivos” no imaginário sobre o desastre. A fala comum
é de que não houve nenhuma vítima na enchente, e localmente difundiram-
se histórias de que todos foram salvos graças ao trabalho dos “anjos do
rafting”. Anjos do rafting é a expressão do contradiscurso dos luizenses frente
aos discursos do Outro que buscaram lhe impor a figura de “vítimas”, nos
muitos discursos de vitimização, de necessidade e de salvação que tomaram
concretude nos meios de comunicação oficiais, nas falas dos agentes de
emergência, dos oficiais do Corpo de Bombeiros, Policiais Militares, Forças
Armadas etc. O periódico criado em São Luiz do Paraitinga depois da inun-
dação, denominado Jornal da Reconstrução, fez circular ainda mais esse
contradiscurso dos luizenses, na segunda quinzena de março, ao publicar a re-
portagem “Anjos e heróis do rafting”:
Nos dias seguintes, a coisa desandou: a enchente que já era grande
tornou-se violenta, Dona Maria teve a casa inteira atingida. E logo
conheceu a rapaziada do rafting. “Eles foram verdadeiros anjos e
tiveram todo o cuidado do mundo para nos ajudar. Eles nos diziam
palavras de confiança, pedindo que acreditássemos no que estavam
fazendo” (PREFEITURA MUNICIPAL DE SÃO LUIS DO PARAI-
TINGA, 2010, p. 4; grifo nosso).

Localmente, a classificação anjos do rafting é um contradiscurso frente ao


discurso do Outro, mas também um indicativo de uma das transformações
culturais constitutivas dos processos de mudança social ocorridos em de-
sastres e que expressa como estes são fenômenos sociais ocorridos em tem-
pos sociais, disruptivos em seu intercurso e que devem ser entendidos em
um contexto de mudança. No cotidiano luizense, antes da inundação, os
discursos sobre instrutores do rafting não lhes atribuíam a qualificação de
anjos, mas sim – nas palavras de alguns instrutores de rafting – de vagabun-
dos, uma vez que o exercício de seu trabalho estava condicionado à visita
de turistas nos finais de semana e durante a semana tais instrutores treina-
vam no rio ou não trabalhavam. Durante a inundação e na vida cotidiana
que ali se estabeleceu nos primeiros meses do processo de refazer a cidade,
passam a emergir outros discursos nas rodas de conversa e nos olhares que
lhe são dirigidos ao circularem pelas ruas da cidade:
Antes o rafting em São Luís...você pode perguntar para qualquer ins-
trutor de rafting da cidade....o pessoal falava que a gente era va-
gabundo porque durante a semana a gente não trabalhava, né?
A gente vinha pro rio para treinar, mas pros outros a gente era vaga-
bundo, né? Depois das enchentes nós ficamos conhecidos como

– 240 –
anjos do rafting, relata um dos instrutores do rafting (Entrevista
concedida em novembro de 2011; grifo nosso).

Os contradiscursos dos sobreviventes nunca aparecem no enredo ofici-


al do desastre quando os mesmos vêm a expressar as falhas de governo em
relação aos acontecimentos trágicos, às falhas institucionais diante do ocor-
rido. Produzir verdades e encobrir outras são sempre formas de manter e exer-
cer o poder. Para tanto, torna-se imprescindível fazer circular discursos de
saber, pôr em funcionamento uma máquina social de fabricação e de inter-
pretação dos problemas sociais da cidade, produzindo entendimentos ime-
diatos dos acontecimentos e das soluções técnicas mais viáveis para enfrentar
as tensões que transbordam, ajudando a fazer crescer as forças do Estado a
fim de operar a gestão da opinião pública nesses contextos de crise. Os dis-
cursos da vitimização, da necessidade e da salvação são discursos de saber que se
põem em circulação e ajudam a fazer crescer as forças do Estado. Entretan-
to, nessa biopolítica do desastre, também emergem os dispositivos de segu-
rança que reprimem condutas consideradas como ilegais nesse cenário de
exceção, em que se tornam indeterminadas as noções de direitos e deveres.
Benedito, morador local, recorda-se que quando as águas do Paraitinga
abaixaram, ele decidiu sair da outra margem do rio e vir em direção ao Centro
Histórico a fim de ir para casa e encontrar a família. Havia um ponto de
bloqueio, com policiais e militares armados, que impedia a passagem de
pessoas e veículos pela ponte que leva ao Centro Histórico. Benedito foi
ostensivamente interrogado a fim de saberem se ele era mesmo morador
local, sendo questionado, inclusive, aonde iria. Ao chegar à sua casa, no alto
do Morro do Cruzeiro, viu a praça da Matriz coberta por escombros, as
ruínas da Igreja e de demais sobrados históricos, bem como várias pessoas
em torno da praça. Decidiu, então, realizar um ofício que sempre fez parte
de sua relação com a cidade e de seu modo de ser luizense: tomou sua câmera
fotográfica para registrar mais um episódio daquele município sempre mar-
cado por festas carnavalescas, procissões religiosas e inundações periódicas
que, muitas vezes, constituíam-se como acontecimentos não trágicos, mas
constituintes da relação histórica entre a cidade, o luizense e seu rio. Bene-
dito, ao chegar à praça da Matriz, deparou-se com rostos desconhecidos, que
não eram moradores locais, tampouco atores externos fardados ou outros
funcionários de outros órgãos estaduais. Eram, simplesmente, turistas do
desastre que circulavam próximos às ruínas da Igreja totalmente destruída
e, segundo o luizense, pegavam e levavam tijolos e partes dela. Embora
assumidamente ateu, Benedito se sentiu violentado como luizense por ver
sua cidade sendo tomada por sujeitos de fora do lugar: seja no ato de rou-
bar pedaços da Igreja, seja no ato de ser interrogado pelos militares, seja no

– 241 –
ato de ser repreendido por um oficial armado quando resolveu tirar uma foto
dos casarões históricos danificados na inundação. Não somente os escom-
bros e o cenário de destruição, mas também as ações do Outro contribuí-
ram para que os luizenses veiculassem um reiterado discurso durante as
entrevistas realizadas: “São Luiz do Paraitinga parecia um cenário de guer-
ra. Aqueles montes de militares armados até os dentes, entrando na cida-
de”, relembra Benedito (entrevista realizada em abril de 2013).
Maria Cristina, funcionária da Prefeitura municipal, também relembra
como essa lógica de poder vigente no cenário de guerra se fez sentir nas ações
do poder público municipal. Nesse tipo de estado de exceção que tomou o
município, a própria esfera municipal perde a autonomia e passa a ser sub-
metida às ordens do Outro.3 Esse Outro não é somente o poder público es-
tadual, mas também se representa na figura do comando da ordem militar,
a qual fará circular formas de poder expressas no tipo de relação de força
acima anunciada, exemplificada no modo como o militar se interpôs às ações
do luizense. No tipo de exceção e de crescimento das forças do Estado que
tomaram lugar em São Luiz do Paraitinga/SP, a lógica de poder nos primei-
ros dias após a inundação se expressa como uma espécie de polícia dos desas-
tres, em um processo similar aos outros acontecimentos que demandaram uma
forma de governo e que viram se criar, por exemplo, a polícia dos cereais nos
tempos de escassez alimentar. Em São Luiz do Paraitinga, essa lógica de po-
der se expressou no modo como, inicialmente, o poder público municipal foi
simplesmente absorvido pela polícia dos desastres, tendo seu território e sua
jurisdição tomados pelo comando militar, o qual passou a definir o que de-
veria ser feito. Nos relatos da funcionária pública municipal:
Muita gente querendo mandar…chega até ser engraçado: nos pri-
meiros dias eu me senti assim...a gente conversa né...nós do muni-
cípio... “a gente agora é servente dos órgãos”...porque assim...tudo
o que eles falam você faz, não discuta. Era tanto coronel, era
tanta patente na cidade, parecia um QG [Quartel General] de
guerra, que vinha forças de todo lado: uma hora era o bombeiro,
outra era (...) eu não sabia quem que mandava mais (...) era uma

3. Alguns luizenses relatam que o Coordenador Estadual de Defesa Civil do Estado de São
Paulo pediu que a Prefeita municipal atravessasse as águas do rio Paraitinga para encontrá-
lo, em vez de ir ao encontro dela na outra margem do rio. Esse exemplo ilustra a lógica
de comando no interior das esferas municipais, estaduais e federais que compõe o esta-
do de exceção, e das várias hierarquias que perfazem o desastre como laboratório de ex-
periências de poder: a sujeição da esfera municipal à esfera estadual; o gestor civil
submetendo-se ao comando militar da CEDEC/SP; a dominação masculina do coorde-
nador estadual de defesa civil sobre a prefeita municipal.

– 242 –
convivência assim...a gente obedecia ordens (Entrevista realizada
em novembro de 2011; grifo nosso).

Nessas práticas e discursos dessa forma de governo, busca-se reportar


como mensagem central “agora tudo ficará em ordem”: há homens e barcos
para resgatar; há efetivo para fixar faixas de interdição; há botas bem lustra-
das e fuzis resplandecentes que trazem a mensagem que a ordem será garan-
tida mesmo na desordem; que o toque de recolher será respeitado: ninguém
entra e ninguém sai; a rua agora é controlada sob a força; a faixa de interdi-
ção sinaliza que sua casa e tampouco sua cidade não são mais “suas”; qual-
quer um pode ser interrogado caso uma ação seja identificada como suspeita
ou inadequada, não importando a necessidade do cidadão que até aquele
momento tinha uma concepção do que era seu direito e seu dever; ao seu ir e
vir se interpõem uma mão e/ou uma arma em seu caminho.
Embora os discursos do enredo oficial do desastre elaborem uma nar-
rativa harmônica de superação paulatina do drama e do flagelo dos desabri-
gados e desalojados, houve conflitos entre a racionalidade militar vinda de
fora e os atores civis locais que estavam organizando suas ações de autopro-
teção. As Forças Armadas e demais militares chegaram querendo assumir a
condução das ações que já estavam sendo realizadas pelos próprios luizenses,
impondo o que e como deveria ser feito de agora em diante. Os luizenses,
por sua vez, resistiram às ordens do comando vindo de fora e reivindicaram
opinar nas ações que já estavam conduzindo muito antes da intervenção
externa. Os contradiscursos e as contracondutas expressam que no jogo que
se estabelece, a vida social vai muito além das narrativas da história oficial
dos discursos da vitimização, do drama da necessidade, da solidariedade. As revol-
tas, as manifestações, os conflitos, as tensões revelam que a sociedade civil
vai muito além das verdades simplificadoras e produzidas a respeito dela.
Conforme relembra um dos moradores sobre a resistência dos luizenses:
a vinda do Exército que é chique tá ordem e progresso e tudo mais
que foi, foi muito depois, foi quase um dia inteiro depois foi…
meio dia depois e nesse meio dia depois a gente já tava no emba-
lo de … de ida e volta de bote, de manda alimento. Foi ótima a
vinda deles claro, né? Não desprezando mas eu digo assim… vieram
mas a gente já tava embalado. Então mesma coisa que você já ta em-
balado, já tava tudo virando e eles chega e fala “pára tudo que ago-
ra quem vai mandar somos nós”. Não! A gente vai dá palpite
sim. Nós fizemos isso. Ahh mas nos estávamos aqui desde a
noite tava acontecendo isso, isso e isso então pra dá sequência
no nosso trabalho, né?, relata uma moradora (entrevista realiza-
da em dezembro de 2011; grifo nosso).

– 243 –
Mesmo em meio ao estado de exceção declarado oficialmente como
Estado de Calamidade Pública, nem tudo assume um significado negativo
na circunstância de crise, ou seja, também podem emergir papéis constru-
tivos e positivos para as sociedades humanas, pois os efeitos das calamida-
des não são idênticos para os diferentes indivíduos e grupos de uma dada
sociedade, mas se polarizam e se diversificam (SOROKIN, 1942). Tais pa-
péis construtivos e positivos podem ser identificados nas contracondutas
adotados pelos moradores locais em relação à polícia dos desastres, que expres-
sam uma comunidade disposta e capaz de garantir seus direitos mesmo no
“cenário de guerra”, em que a maioria perdeu bens materiais e imateriais,
mas não a resistência do modo de ser luizense frente à imposição de uma
ordem externa e militarizada, munida de armas etc. Antes de perder a rele-
vância da fala, tornando-se um ser humano em geral – um desabrigado,
desalojado etc. – o que se fortaleceu foi o significado comum de ser luizense
frente às ações impostas pelo Outro.
Num primeiro momento do Estado de Calamidade Pública declarado,
a lógica de biopoder foi a do fazer viver, expressa num conjunto de discursos
e práticas que fizeram crescer as forças do Estado, no domínio da econo-
mia e da utilização de forças repressivas, ganhando concretude nos dispo-
sitivos de segurança empregados pela polícia dos desastres: realizaram
salvamentos das “vítimas”; os fuzis controlaram a ordem pública e repre-
enderam os “delinquentes”; os técnicos avaliaram, mapearam, interditaram
as “áreas de risco”; fabricaram-se as populações-alvo como “desabrigados,
desalojados” e retiraram-nas das casas situadas nesses territórios de exce-
ção; mobilizaram a rede de solidariedade para gestão da exceção por meio
das práticas de doações atinentes ao reino das necessidades e oferta de tra-
balho voluntário; procederam-se à tipificação, quantificação, avaliação, es-
timação e valoração monetária dos danos; veicularam-se discursos de
promessas de reconstrução etc.
No transcorrer do tempo cronológico, o Estado de Calamidade Públi-
ca se finaliza com a vigência dos 180 dias do reconhecimento. Todavia, o
desastre continua a ser vivenciado no tempo social. As lógicas do fazer viver
vão se diluindo sutilmente e paulatinamente entra em cena uma lógica
naturalizável, que é a do deixar morrer.

DO FAZER VIVER AO DEIXAR MORRER

À primeira vista, o município de São Luiz do Paraitinga parece estar


reconstruído e recuperado, a julgar pelas várias obras realizadas em suas
estradas, pelas obras de contenção de morros, pela sinalização turística, pela
modernidade do novo conjunto habitacional da reconstrução, pelos casa-

– 244 –
rões históricos restaurados, pela Capela das Mercês reconstruída e muitas
outras infraestruturas. Também retornaram o número enorme de turistas
nos carnavais,4 na Festa do Divino e nas muitas outras festividades que acon-
tecem. Ao sorriso de se ver tais obras e fluxos de turistas, escondem-se a
lágrima e o coração apertado como introjeções do deixar morrer que não se
revelam nos discursos harmônicos que os órgãos oficiais e os meios de co-
municação fazem circular sobre a reconstrução.
Ao se sair do Centro Histórico em direção ao Bairro da Várzea dos
Passarinhos, pode-se notar as marcas das “pinturas” com cor de barro feita
pelo subir e descer das águas do rio Paraitinga em janeiro de 2010. A essas
marcas deixadas, somam-se outras que tomam forma de ruínas: são mora-
dias que permanecem com uma parede ou restos de tijolos, enquanto ou-
tras só possuem os esqueletos dos alicerces. Tais restos materiais da memória
do desastre suscitam o reviver do tempo subjetivo da tragédia, embora a
vegetação que cresce entre escombros revele que o tempo cronológico ali
passou. E ali não restam muitas testemunhas para contar seus dramas: os
moradores das ruínas se dispersaram. As áreas abandonadas temporariamen-
te à força dos dispositivos de segurança de determiná-las como áreas de ris-
co foram, mais tarde, decretadas como áreas congeladas. Segundo a Prefeita
local: “Todos os lugares que eram áreas de risco estão congelados. A
gente não deixa mais construir” (entrevista realizada em 01 de dezembro
de 2011; grifo nosso).
Assim, as técnicas de poder, os mecanismos e os dispositivos de segu-
rança da biopolítica do desastre vão se aperfeiçoando e atualizando. Áreas
congeladas é o dispositivo criado em tal biopolítica para deixar morrer. Engen-
drado por instâncias federais, estaduais, Ministério Público etc, é apropri-
ado pelo município, não como uma sugestão que este deve ou não acatar,
mas sim como uma determinação superior que lhe é cobrada e investigada
a aplicação, uma vez que é identificada como mecanismo de redução de risco.
O dispositivo de segurança das áreas congeladas proíbe que se executem as
ações de reconstrução das moradias destruídas e danificadas no bairro da
Várzea dos Passarinhos. Dessa forma, o (a) proprietário (a) não pode recons-
truir a moradia, não pode vender o terreno, não pode alugá-lo, nem ser
objeto de desapropriação para que o detentor receba uma indenização por
parte do órgão municipal. As áreas congeladas deixam vidas em suspenso e
expressam a lágrima e o coração apertado aludidos pelo poeta caipira. O
passado lhe é presente e a promessa de reconstrução ele não antevê em seu

4. Segundo estimativas do Departamento de Turismo da Prefeitura Municipal de São Luiz


do Paraitinga, o Carnaval de 2011 contou com 70 mil pessoas. Em 2012, esse número au-
mentou para 120 mil pessoas. No ano de 2013, foram 150 mil pessoas. Como ressaltado
anteriormente, a população total do municipal é de aproximadamente 10 mil pessoas.

– 245 –
futuro: a irresolução do problema três anos depois da decretação em áreas
congeladas também o deixa morrer.
Essa lógica do deixar morrer deixando a vida em suspenso, assemelha-
se às barreiras burocráticas para o caso dos imóveis do Centro Histórico que
precisam ser reconstruídos e restaurados segundo os padrões determinados
pelos órgãos estaduais e federais do Patrimônio Histórico. Tais áreas do
Centro Histórico, embora também estejam em ruínas e muitas delas situa-
das às margens do rio Paraitinga, não estão na lógica do congelamento, mas
sim na lógica da reconstrução regulamentada, ou seja, segundo as determi-
nações dos referidos órgãos. Importa menos a função social da moradia como
base para o exercício privado das rotinas do cidadão e mais o estilo do ca-
sarões/casas reconstruídas que vão compor o conjunto arquitetônico para
a contemplação dos turistas que visitam a cidade.5
As ruínas das áreas congeladas não importam aos órgãos do Patrimônio
Histórico porque não são objeto de seu tombamento, não se enquadram nas
delimitações do Centro Histórico. Como no transcorrer do tempo cronoló-
gico tais áreas circunscritas ao Centro Histórico permaneciam com as ruínas
das moradias atingidas no desastre, foram efetuadas medidas excepcionais,
mesmo após o fim do Estado de Calamidade Pública, para que se pudesse
reconstruir e restaurar algumas moradias de proprietários que possuíssem
renda de até dez salários mínimos. As medidas excepcionais visavam “me-
lhorar” a paisagem do Centro Histórico, a fim de que o turismo não fosse
prejudicado por essa rememoração ao desastre, mas que se associasse o
município à reconstrução: o desastre era um passado superado. Com o tem-
po, outras medidas de melhoramento do entorno paisagístico foram cria-
das para reformar/restaurar algumas fachadas de moradias que não foram
atingidas na inundação, mas que estão situadas no Centro Histórico, tal
como as que se localizam na Rua do Rosário.
Desse modo, nas delimitações do Centro Histórico, permanecem os
casarões e moradias reconstruídos e restaurados e outros em ruínas. Na
Várzea dos Passarinhos, as moradias destruídas estão em áreas congeladas
pelos órgãos municipais. Enquanto isso, na outra margem do rio Paraitinga,
fora do Centro Histórico e da jurisdição de seus órgãos, as práticas de re-
construção da mais “alta tecnologia” expressam o estilo moderno adotado
pelos projetos de conjuntos habitacionais da Companhia de Desenvolvimen-
to Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo (CDHU), na produção
do conjunto habitacional “Casinha Branca”. Nas diversas áreas do municí-
pio, identificam-se expressões socioespaciais da reconstrução desigual: há a cida-

5. Vale salientar que os luizenses valorizam todo o conjunto arquitetônico do Centro His-
tórico, mas criticam a burocracia dos referidos órgãos do Patrimônio Histórico.

– 246 –
de-patrimônio, circunscrita ao Centro Histórico, regulamentada pelos ór-
gãos do Patrimônio Histórico, com casarões e casas que estão em processo
de reconstrução e restauração, mesmo que ainda existam algumas ruínas de
moradias; há, fora dessa circunscrição, áreas que não são objeto da regula-
mentação desses órgãos, não possuindo, portanto, valor paisagístico do con-
junto arquitetônico e pertencendo à cidade-congelada, à cidade que não
pode ser reconstruída, determinada pelas medidas judiciais; e, há a cidade-
futuro, construída depois da inundação de janeiro de 2010, que se expres-
sa na implantação do “padrão moderno” de conjunto habitacional, com
casas e sobrados feitos de PVC, todas padronizadas.
A produção do conjunto habitacional da “cidade-futuro” foi veicula-
da como sendo de tempo recorde, por ter perdurado oito meses. Foram
construídas no alto de um morro, 151 moradias em concreto PVC, entre
sobrados e casas. A inauguração do novo conjunto habitacional para pro-
ver moradia à “população moradora de área de risco” contou com a parti-
cipação do governador do Estado de São Paulo, do Secretário de Habitação
e de muitos outros políticos. Os novos moradores do “Casinha Branca” fo-
ram escolhidos por meio de sorteios, enquanto os demais “não-agraciados”
entraram na fila da solução habitacional. A construção do referido conjun-
to habitacional ficou a cargo da CDHU, e não se atrelou a qualquer um dos
Programas de Reconstrução de moradias destinadas a famílias de baixa ren-
da, contidos no Sistema Nacional de Defesa Civil (SINDEC). O SINDEC,
em seu Programa de Reconstrução, possui um subprograma de recuperação
socioeconômica que inclui um projeto de realocação populacional e de cons-
trução de moradias para populações de baixa renda. Este prevê que o gover-
no municipal seja responsável pela provisão de terrenos, a prévia urbanização
da área com construção de infraestrutura básica, o encaminhamento do
projeto da construção das unidades habitacionais e a relação das famílias
que serão contempladas. Ao SINDEC caberá, como contrapartida, o forne-
cimento de cestas básicas de materiais de construção para que a própria
comunidade possa participar do mutirão de obras (BRASIL, 2000).
Em outras palavras, pelo programa de reconstrução de moradias atra-
vés do SINDEC, ao cidadão caberá fornecer seu trabalho, sua mão-de-obra
para construir as casas sob a forma de mutirão, sendo que ele não paga pela
moradia. Já em São Luiz do Paraitinga, uma nova biopolítica se desenhou:
o conjunto habitacional foi construído por uma empresa contratada pela
CDHU, sendo que para alguns luizenses cabe pagar o financiamento da casa
construída. Isto é, as famílias e grupos domésticos que moravam em áreas
consideradas de risco e/ou áreas congeladas e foram realocadas para os no-
vos conjuntos habitacionais, têm que pagar pelo financiamento das casas e
não recebem qualquer indenização pelas casas demolidas, pelos terrenos

– 247 –
interditados que não podem ser objeto de qualquer transação comercial. Já
as famílias e grupos domésticos que tiveram os imóveis destruídos ou da-
nificados no Centro Histórico e possuem renda de até dez salários mínimos,
tiveram as casas reconstruídas/restauradas/reformadas por uma empresa
contratada pelo CONDEPHAAT e não tiveram custos com esse processo,
ou seja, a reconstrução/restauração não foi financiada. O que o discurso da
reconstrução também não revelou foram essas práticas socioespaciais da
reconstrução desigual, que também entram numa estrategia de cálculo na
gestão econômica do desastre: a recuperação e reconstrução de imóveis pri-
vados do Centro Histórico têm utilidade, valendo-se de medidas excepcio-
nais para fazer viver as atividades econômicas do turismo. Aos outros espaços
da cidade, que têm menos prioridade e utilidade, a biopolítica acaba por
operar em sua lógica do deixar morrer, como se identifica na lógica do con-
gelamento de áreas.
O luizense deslocado de sua moradia em área considerada de risco ou
congelada, quando contemplado na nova solução habitacional, assina um
termo autorizando que sua antiga moradia seja demolida pelo órgão muni-
cipal, sem receber qualquer indenização, uma vez que a área não foi desapro-
priada. A biopolítica do desastre também tem se atualizado e aperfeiçoado
no domínio da economia, da gestão econômica: os custos da reconstrução
precisam ser diluídos e não são todos que lhe têm que pagar. Como tam-
bém não são todos os que auferem os ganhos econômicos com as políticas
de reconstrução.
Sabrina morava com seu pai e sua filha na Várzea dos Passarinhos e
tiveram a casa destruída. Conta que geólogos e a defesa civil foram ao local
e determinaram que a casa não poderia ser reconstruída naquela área, que
ninguém poderia reconstruir no terreno, que somente se poderia fazer plan-
tio, horta. Que não se poderia locá-lo ou vendê-lo. Sr. Noel, pai de dona
Sabrina, mostra-se inconformado com o dispositivo de segurança de decretar
o congelamento de áreas que, a seu ver, expressa o confisco da propriedade
privada pelo “governo”, ou seja, pelo Estado. A revolta é quanto à legalida-
de deste procedimento que vai comprometer o futuro da neta, que possui
cinquenta por cento dos direitos do imóvel registrado, com escritura defi-
nitiva:
o problema mais delicado que eu falo é que nesse terreno dela [fi-
lha], cinqüenta por cento é dessa criança aqui [neta]. Este é o pro-
blema delicado. E não é coisa do governo. Tá tudo registrado. O
governo não pode ser dono. Nem que você more numa área de
risco ou nem que você perdeu [a casa, o terreno]. Mas se você tem
uma escritura definitiva daquilo, uma coisa registrada, o gover-
no não é dono. Como é que vão desapropriar a propriedade de uma

– 248 –
criança ‘órfã’ [pai faleceu, mãe ainda viva] de sete anos de idade?
Onde é que existe esta lei? Isto que eu quero saber (entrevista
realizada em 5 de dezembro de 2011; grifo nosso).

Ao ser contemplada no sorteio para uma nova moradia no residencial


“Casinha Branca”, Sabrina teve que assinar um documento autorizando a
demolição desse imóvel situado em área congelada na Várzea dos Passarinhos.
Vizinha à antiga moradia de Sabrina estava a propriedade de oito cômo-
dos de sua tia, que também ficou destruída e cuja área também foi conge-
lada. A tia de Sabrina entrou no cadastro do CDHU e teve a casa demolida,
mas não pôde participar do sorteio das unidades habitacionais porque já
possuía outro imóvel residencial no município de São Bernardo do Cam-
po/SP, atualmente a residência dos filhos. Ao fazer o cadastro na CDHU,
não lhe foi perguntado se possuía outro imóvel em seu nome. Ficou à espe-
ra da nova casa no conjunto habitacional e nesse meio tempo morou du-
rante um ano com Sabrina em uma casa alugada. Passado esse tempo,
quando chegou a hora do sorteio, a tia de Sabrina ficou sabendo que não
tinha direito a ser sorteada porque já tinha uma outra propriedade em seu
nome. O seu destino foi mudar de São Luiz do Paraitinga/SP para São
Bernardo do Campo/SP, onde mora num cômodo cedido pelos filhos. O estar
arrasada é pela sucessão de perdas, não só dos danos havidos no desastre,
mas de todos os outros subsequentes, que vão desde o suportar morar du-
rante um ano num espaço exíguo até o ter a notícia de que sua espera pela
reconstrução foi em vão, porque ela simplesmente não atende os critérios téc-
nicos das políticas habitacionais focalizadas para os mais pobres dentre os
mais pobres. Sabrina conta o deixar morrer da tia:
Ela [tia de Sabrina] foi inscrita. Na hora de fazer a inscrição [no
CDHU] eles não perguntaram [se tinha outro imóvel em seu
nome]. Foi inscrita, levou documento, igual eu. Ficou contando
com a casa e ficou com nós lá na casinha [alugada com auxílio-
moradia]. A casa onde a gente tava era pequenininha, ficamos em
onze pessoas, ela ficou um ano com nós. E ela contando com a casa
e eu contando com a minha. Chegou na hora [do sorteio] ó...[bate
uma mão na outra sinalizando que não deu nada]...teve que ir em-
bora. O que que ela carregou? Um monte de saco de roupa que
foi ganhado na enchente” [Pergunto: a única coisa que sobrou pra
ela?]. Sandra responde: “não sobrou, ganhou. Porque o que sobrou
a enchente carregou tudo. O que sobrou ainda não funcionou (...)
Ela tá arrasada” (entrevista realizada em 5 de dezembro de 2011;
grifo nosso).

– 249 –
O deixar morrer da tia de Sabrina se produz num invólucro de mecanis-
mos e dispositivos de segurança que ora respeitam a ordem legal vigente –
critérios técnicos para entrar na fila da solução habitacional respeitados –
e ora suspendem a ordem legal e criam atos com força-de-lei – decretação
de áreas congeladas para reconstrução, ocupação, comercialização; investi-
mento do Estado na reconstrução de imóveis privados no Centro Históri-
co etc. Nesse processo, a vida da tia de Sabrina fica em suspenso: não tem
direito à casa financiada, pois não atende aos critérios técnicos da CDHU;
não tem direito de reconstruir a antiga casa na Várzea dos Passarinhos; não
pode vender ou alugar a área e utilizar o recurso financeiro advindo do ne-
gócio efetuado; não há horizonte de que a referida área congelada possa ser
desapropriada pela prefeitura e a proprietária seja indenizada; diante da
trama que a envolve, não há a quem recorrer; o que lhe resta é sair dali e se
mudar de cidade. Essa é uma das expressões da lógica do deixar morrer que
permanecem invisibilizadas e silenciadas. Em certas ocasiões, “não há como
esconder a tristeza e o coração apertado”.
Para aqueles grupos domésticos que são contemplados no sorteio das
casas financiadas do conjunto habitacional “casinha branca”, outras expres-
sões dessa lógica também passam a ter vigência, de forma a regulamentar
cada vez mais a vida social. Na nova habitação, deve-se assinar um contra-
to entre cujas cláusulas se inserem algumas que lhe determinam: a não pos-
sibilidade de locar esses imóveis para terceiros; a responsabilidade por
cumprir com os pagamentos; a proibição de executar qualquer intervenção
na moradia sem o prévio consentimento da CDHU. Sorteado(a) para ser
contemplado(a) numa casa ou sobrado, ele(a) deve se adaptar a esta nova
lógica, aceitando as determinações impostas, além de ter de estabelecer
novas relações de vizinhança com moradores de outros bairros que para lá
convergiram através de sorteio.
Com o transcorrer do tempo, sem ter de se submeter a uma fiscaliza-
ção constante, tal qual os proprietários dos imóveis do Centro Histórico,
os novos moradores contradizem a prescrição de condutas estabelecidas pela
CDHU e começam a se apropriar de seus novos lugares: fazem modificações
na fachada das moradias, introduzindo portões, erguendo muros, colocando
cercas elétricas, pintando seus lares de outras cores para se diferenciar das
casinhas brancas padronizadas que lhe fazem vizinhança.
Com o tempo também aparecem os problemas de diversas ordens:
moradias e sobrados passam a apresentar defeitos na infraestrutura das
construções como, por exemplo, infiltrações etc. Dificuldades de ordem
socioeconômica também emergem: muitos não conseguem emprego com-
patível aos novos custos de vida como pagar o financiamento da casa, energia
elétrica, gás etc.; outros não conseguem empregos no município, tendo que

– 250 –
“morar” durante a semana em outras cidades e voltar para São Luiz aos fi-
nais de semana. Dificuldades de ordem sociocultural também vêm à tona: a
maioria não se acostumou ao modo fabricado de viver em condomínio nos
sobrados, algo inédito à realidade desse último reduto da cultura caipira do
Estado de São Paulo: a realidade cultural do município é muito distinta da
lógica de engenharia de sobrados de PVC com 54,86m2. Falta-lhe, por exem-
plo, o espaço do quintal, para plantar na horta, ter um animal de criação etc.
Essas dinâmicas ocorridas nos diversos espaços da cidade de São Luiz
em seu processo de reconstrução e recuperação revelam a lógica de poder
de que pouco se fala: os moradores locais atingidos não adquirem o status
de sujeitos no processo de reconstrução, mas sim de objeto das políticas
públicas. Os luizenses permaneceram na condição de sujeitos em dimen-
sões recuperativas que diziam respeito à sua cultura, como as festividades
e manifestações coletivas da Festa do Divino, das Procissões Religiosas, dos
Carnavais etc. No plano da discussão e implementação de políticas públi-
cas atinentes ao processo de reconstrução, veiculou-se o discurso de um
processo participativo durante as audiências públicas. Entretanto, essas
arenas que, em tese, deveriam ser participativas para promover a discussão
pública com o afã de encontrar soluções concertadas à realidade local, fo-
ram meramente informativas. Os sujeitos que detiveram os microfones, que
se sentaram à frente da mesa de discussões, foram, em sua maioria, agen-
tes externos à realidade local, muitos deles munidos de discursos de saber
técnicos e científicos que desconsideravam qualquer valor do luizense em
relação à sua cidade, ao seu rio, à sua cultura.
Por vezes, tais agentes externos eram sensíveis ao valor deposto pelo
luizense à sua cidade, sendo representados pelos moradores locais como
defensores de sua causa. Vez ou outra, algum agente local, sobretudo da
prefeitura municipal, detinha o microfone para apresentar os muitos repre-
sentantes dos órgãos estaduais e federais que ali estiveram para proferirem
seus discursos de verdade sobre os melhores rumos a seguir no tocante à
reconstrução. “Erguer um muro em toda a margem do rio Paraitinga para prote-
ger os moradores da inundação” foi uma das propostas técnicas de um enge-
nheiro civil, a qual foi rapidamente rebatida por um professor universitário
da área de ciências humanas, ao qual o luizense passou a se ver representa-
do durante a audiência pública que versou sobre como enfrentar o proble-
ma das inundações do rio Paraitinga. Suzana retrata que foi a esta audiência
pública no dia 12 de abril de 2010, e salienta que sequer ouviram os mora-
dores para saber das suas opiniões. Para a moradora, o rio Paraitinga faz
parte da cultura de São Luiz, conviveu-se com ele a vida toda, ele faz parte
da vida de cada um, assim como suas inundações. Suzana critica esses pro-
jetos de reconstrução de gente de fora – órgãos do governo do Estado, técni-

– 251 –
cos, cientistas etc. – que não tem nenhuma ligação com o lugar, mas que o
veem unicamente como uma forma de colocar suas ideias em prática. Além
da intervenção externa, a luizense critica a falta de explicitação dos proce-
dimentos e do tipo de audiência pública – se era deliberativa ou informati-
va e o que significa cada um desses tipos. Para ela, a audiência pública deveria
ter um caráter de consulta pública para, a partir daí, colocar os parâmetros
de ação a respeito de que tipos de políticas públicas de reconstrução os
luizenses almejam em sua cidade.
Nesse tipo de discurso participativo que envolve as audiências públicas,
o que menos se presenciou foi a oportunidade de praticar a participação.
E, quando um cidadão luizense se dispunha a falar sobre algum assunto
polêmico ou a questionar a fala de alguns doutores da defensoria ou do
Ministério Público, vez por outra era repreendido com a ameaça de se tra-
tar de desacato. Quando o interlocutor questionado não detinha a resposta
para a pergunta a ele dirigida, a estratégia era conduzir o assunto para ou-
tra temática e negar o direito de réplica ao luizense, impedindo que este
executasse um contradiscurso.
E assim, nesse conjunto de práticas que sutilmente deixam morrer, o
luizense político é silenciado e se desmobiliza, encontrando na cultura o seu
ancoradouro para seu fazer resistir. Se o sorriso esconde a lágrima, o cora-
ção apertado, parte disso se deve ao tipo de lógica de poder que se estabe-
leceu em São Luiz do Paraitinga no transcurso vigente de seu processo de
reconstrução e recuperação.
Roberto, morador local, ficou indignado com as formas de sujeição que
incidem sobre o morador local que, apático, submete-se aos mandos e
desmandos do Outro, silenciando-se ante os discursos de saber que falam
pelos luizenses, identificando o que é melhor para eles, o como deve ser do pro-
cesso de reconstrução: “o povo encosta assim e fica olhando, nunca ninguém
fala um ‘a’, ninguém levanta a mão nem nada, fica escutando e torcendo
pra ver se tem algum caboclo sentado na mesa que compra a briga”, desa-
bafa. Para o luizense, a audiência pública não teve valor nenhum porque
não foi democrática. Para ele, o povo foi usado para dar a aparência de uma
audiência pública participativa que, na verdade, foi predominada pela fala
dos doutores e técnicos, com seus jargões inacessíveis à compreensão dos
leigos, decidindo em nome dos luizenses, sem identificar suas reais neces-
sidades de reconstrução.
Nas lógicas de poder, nos discursos e nas práticas sobre o processo de
reconstrução e recuperação de São Luiz do Paraitinga, a lógica do deixar mor-
rer nem sempre é visível: ela se revela espacialmente nas ruínas das moradias
e na paisagem da Igreja em processo de reconstrução, mas se esconde por trás

– 252 –
do “sorriso” que protege a lágrima e o coração apertado, na definição pelo
Outro da superação do desastre dos luizenses. No tipo de jogo de poder que
teve e ainda tem lugar é, na maioria das vezes, o Outro que lhe institui for-
mas de sujeição que lhe dizem e lhe definem como ele deve viver, ou melhor,
como ele deve deixar-se morrer. Essa lógica ganha materialidade na aceitação das
expressões socioespaciais da reconstrução desigual; nos dispositivos de segu-
rança de decretar áreas de risco e áreas congeladas; nas formas de se conduzir o
como se deve viver no novo conjunto habitacional; na teatralidade,
silenciamento e objetificação dos luizenses nas audiências públicas, falando-
se por eles, dizendo o que lhes é melhor, definindo o seu futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em um primeiro momento, durante e logo após as inundações de ja-


neiro de 2010, as declarações de situação de emergência e estado de cala-
midade pública, como parte da biopolítica do desastre, fizeram crescer as
forças do Estado e permitiram uma série de mecanismos de poder e dispo-
sitivos de segurança que cuidaram da vida biológica, do seu fazer viver, o que
se revela, por exemplo, pela criação das populações-alvo e todas as ações
voltadas para a satisfação das necessidades biológicas. Entretanto, com o
transcorrer do tempo cronológico, uma série de outros mecanismos, discur-
sos, práticas e dispositivos deixam morrer, à medida que desmobilizam a con-
dição do luizense como sujeito de seu próprio processo de reconstrução e
recuperação, falando por ele, decidindo e definindo seu futuro, impedindo-
o de recuperar o seu lugar e o seu modo de ser luizense.
Os desastres têm uma continuidade no espaço e no tempo social, que
varia de acordo com as características da organização social e cultural que
diretamente vivencia seus efeitos no curto, médio e longo prazo. Nem sem-
pre essa continuidade do desastre é evidente. É na perda desse protagonismo
do luizense em relação à sua cidade e à sua condição de sujeito que se iden-
tifica a trama que o envolve numa situação de esconder a sua lágrima e seu
coração apertado por detrás de um sorriso, introjetando o discurso de um
“dia do desastre”, atrelado à ocorrência da inundação e não à organização
social que lida com o pós-impacto.

REFERÊNCIAS
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VALENCIO, N. Para além do ‘dia do desastre’: o caso brasileiro. Curitiba: Editora Appris,
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– 254 –
CAPÍTULO X

DESASTRE – AUTORIDADES E AFETADOS:


DESIGUAIS CONDIÇÕES DE PODER OU
ESFORÇO DE NEGAÇÃO DO DISSENSO

Dora Vargas

INTRODUÇÃO
Desastre é um tema atual e complexo. A forma predominante como
vem sendo interpretado e publicizado o projeta envolto por uma aparente
objetividade e unicidade no imaginário social e se encontra respaldada fun-
damentalmente nas estratégias discursivas e práticas geradas por uma
racionalidade específica que está nas instituições (e seus representantes) a
quem é delegado o poder de denominar e intervir sobre o fenômeno - aqueles
que trataremos como autoridades em desastres. Porém, há indícios de que
o desastre não é feito de uma única representação, mas constitui um cam-
po de forças formado por múltiplos agentes e interpretações, originados de
posições e racionalidades diversas, expressando tensões, disputas e a luta
pela sua classificação.
O objetivo deste capítulo é, ainda que brevemente, identificar e
problematizar esse campo, à luz da análise sociológica, observando aque-
les agentes institucionalmente situados e os que constituem os grupos so-
ciais diretamente afetados - trazendo o desastre em desenvolvimento no
município de Teresópolis/RJ como um exemplo relevante da luta pela sua
classificação e nos aproximando de processos de vulnerabilização e aban-
dono envolvendo grupos sociais específicos. Tal processo revelará “jogos de
poder”, onde há a tentativa de imposição monofônica do conhecimento ci-
entífico e técnico em detrimento dos saberes populares, advindos das tra-
jetórias de vida, experiências no lugar e da relação pretérita com fatores de
ameaça – num esforço de ver a diversidade sucumbir. No entanto, as múl-
tiplas expressões de resistência dos afetados nos desastres denunciam a exis-
tência de uma luta para que sejam centralmente ouvidos e se tornem
partícipes nesse jogo político, sendo resguardados na sua condição de su-
jeitos de direitos.

– 255 –
As reflexões apresentadas nascem primordialmente de uma vivência
profissional. Ao problematizar o desastre como um campo, inserido numa
luta pela classificação do mundo, à luz de Bourdieu (2005) e da Sociolo-
gia, reavivo o meu lugar de agente integrante dessa luta, ou seja, a experi-
ência de 10 (dez) anos de trabalho como assistente social na Defesa Civil
de Juiz de Fora/MG e atualmente, meu lugar como pesquisadora inserida
na investigação acadêmica. Inicia-se, pois, com as inquietações e desafios
profissionais, perpassa uma primeira aproximação com o debate da “cons-
trução social do risco” vivenciada através do mestrado no IPPUR/UFRJ,
culminando na referida pesquisa de tese.1

DESASTRE É QUANDO...: ALGUNS APONTAMENTOS

À luz da Sociologia - uma das muitas formas de interpretação do tema –


tendo como mote a interpretação do campo que se configura ao derredor
do desastre, se tecerá o principal objetivo deste capítulo, que é a identifica-
ção de agentes e estruturas integrantes desse campo, e seus discursos e prá-
ticas em prol da definição e legitimação do conceito. O que é um desastre?
Percebe-se uma forma predominante de tal resposta se constituir e propa-
gar, ou um lugar de verdade que permite que seja tratado como “algo dado”,
envolto por uma aparente objetividade.
Considerando a abordagem sociológica, há um esforço em torno de
congregar convergências sobre o tema. Quarantelli (1998, 2005), em dois
de seus mais relevantes trabalhos, afirmará que embora haja diferenças te-
óricas, prevalece a discussão e o entendimento em tratar ‘desastre’ como um
tipo de crise social, envolvendo tanto uma construção social quanto um
acontecimento físico. Na síntese complementar de Valencio (2012), três
aspectos são tratados como essenciais: o cerne do desastre é o meio social,
o conjunto complexo de sujeitos e forças atuantes; um desastre pode ser
descrito como um acontecimento social trágico e pontual sem que, com isso,
seja preciso sonegar sua definição como um tipo de crise crônica na esfera
social, possibilitando a convergência analítica de situação e processo; os de-
sastres podem mesclar situações rotineiras e não rotineiras – levando em
conta as características transescalares dos sujeitos e relações envolvidas.
Desastres designam, pois, um acontecimento trágico e podem ser des-
critos como fenômenos adversos que geram processos de ruptura da rotina,
de lugares, fazeres e práticas envolvendo uma configuração espaço-temporal
e sócio-histórica para manifestar-se, permitindo, as seguintes indagações:
1. Tese intitulada “Da ‘chuva atípica’ à ‘falta de todo mundo’: a luta pela classi-
ficação de um desastre no município de Teresópolis/RJ”. Defendida em 22 de
abril de 2013 pelo PPG Sociologia da UFSCar e disponível em http://
www.ufscar.br/neped/pdfs/estudos/tese_dora_vargas.pdf”

– 256 –
‘ocorreu o quê?’, aonde?’, ‘quando?’ e ‘com quem?’. Estas questões se re-
velam indissociáveis e permitem várias outras ponderações secundárias
(VALENCIO, 2010a, 2012).
No caminho dessa compreensão, contamos com o conceito de campo
em Bourdieu (2005) que pode ser traduzido e absorvido como o espaço no
interior do qual há uma luta pela imposição da definição do jogo e dos trun-
fos necessários para dominar nesse jogo, contribuindo para que sejam en-
tendidas as tensões em torno da definição de desastre, ou seja, a batalha
de forças visando o exercício de poder ou a imposição de uma verdade. É
possível afirmar que um campo se refere sempre a um locus de disputas es-
truturalmente engendradas pela distribuição desigual de uma forma espe-
cífica de capital simbólico - dado por tudo aquilo que funciona como signo
distintivo valorizado pelos agentes no interior desse espaço, de maneira a
conferir poder aos seus possuidores -, distribuição que opõe aqueles em busca
de ascensão a uma posição superior no campo, ou mesmo buscando forçar
o seu direito de entrada, e aqueles que pretendem conservar a sua posição
de dominante, garantida pelo maior volume do capital simbólico específi-
co ao campo, que lhes confere o monopólio da autoridade simbólica reconhe-
cida como legítima naquela esfera de atuação. Dito de forma semelhante,
“as lutas cujo espaço é o campo têm por objeto o monopólio da violência
simbólica legítima (autoridade específica)” (BOURDIEU, 1983, p. 90).
Dois esclarecimentos se tornam fundamentais. Primeiramente, os agen-
tes presentes no universo dessa pesquisa serão tratados como autoridades em
desastres e afetados em desastres. Tais termos, no entanto, não objetivam
revelar consensos ou fechar possibilidades; na verdade, se mostram concor-
rentes entre as definições provisórias que patinam pela diversidade das retó-
ricas e entendimentos, nos desafiando à sua compreensão. Destacamos
também que as representações em torno dos desastres não devem se limitar
à noção da polarização de tais grupos, de seus construtos e práticas, uma vez
que se evidencia não só o discurso técnico em disputa e tensionamento com
os saberes populares (a principal hipótese com a qual sempre trabalhei), mas
também a observação desse mesmo campo técnico e dos saberes populares
como campos em disputa no seu próprio interior. Ou seja, os diferentes
construtos e agentes se revelam em disputa, mas não somente: há encontros
e desencontros e um conjunto de relações internas a esse campo.

O “JOGO” COMO RELAÇÃO RECÍPROCA ENTRE OS AGENTES:


REGULARIDADES DISPARADORAS DO EMBATE DE FORÇAS

O esforço das reflexões apresentadas será o de identificar as regulari-


dades nas vocalizações e nas práticas de autoridades e afetados, com a fi-

– 257 –
nalidade de observar contradições e intencionalidades que se mostram pre-
sentes nesse campo de disputas e embates - as diferentes vocalizações que,
em um primeiro instante, entendemos estarem tendencialmente no âmbi-
to “objetivista” para as autoridades em desastres e “subjetivista” para os afe-
tados.
Como afirmam Zhouri e Oliveira (2010), esse exercício nos permite
observar o caráter conflituoso das situações vivenciadas, considerando, pois,
o reconhecimento das fronteiras opositivas entre grupos e projetos antagô-
nicos. A luta social se dá a partir da intersecção de dois domínios distintos,
quais sejam, o que se refere ao espaço social propriamente dito, e à esfera
simbólica, ou seja, ao campo onde se confrontam discursos, sentidos e pro-
jetos distintos que disputam legitimidade e reconhecimento, sendo proces-
sos intimamente conectados (ACSELRAD, 2004).
A vocalização de autoridades e afetados apresenta regularidades que
serão aqui sintetizadas na tentativa de pensarmos o desastre, o território e
o “outro” (autoridade pelos afetados e afetados pelas autoridades), na for-
ma didática de categorias que integram uma disputa pela nomeação e pelo
poder de intervenção - revelando a associação que as propriedades do dis-
curso mantêm com o tecido sócio-histórico e com as relações de poder nele
vigentes. Segundo Zhouri e Oliveira (2010, p. 448),
Considerando que o discurso é sempre realizado a partir de condições
de produção específicas associadas aos efeitos das relações de lugar,
as estratégias discursivas acionadas pelos agentes ultrapassam o tex-
to e nos remetem tanto ao contexto mais imediato da enunciação,
quanto ao espaço social que estrutura as relações interdiscursivas
(Pêcheux, 1997; Orlandi, 1989). É nesse sentido que o conceito
bourdiano de campo se mostra pertinente, pois permite destacar que
as posições no espaço social configuram lugares enunciativos a partir
dos quais as determinações ideológicas se inscrevem nos discursos que
são produzidos e que produzem o próprio campo (...).

Extraídas em pesquisa de campo realizada em Teresópolis/RJ, entre os


meses de julho de 2011 e janeiro de 2012, essas categorias são tratadas, pois,
como nomeações simétricas ou vocalizações inicialmente semelhantes que,
no entanto, disparam as diferenças e embates entre noções e práticas de
autoridades em desastres e afetados. Apesar de se observar a tentativa de
projeção de uma ideia totalizante ou “única” acerca desse fenômeno –
hegemonicamente respaldada pelos preceitos científicos e técnicos -, a rea-
lidade dos desastres revela a diversidade de vocalizações que denunciam a
“persistência da polifonia e a disseminação dessas vozes presentes na diver-

– 258 –
sidade das lutas que emergem nos Lugares” (ZHOURI e OLIVEIRA, 2010,
p. 441).
Assim, recuperamos aqui as indagações de Martinez-Alier (2011): quais
discursos de valoração são utilizados pelos diferentes atores e quem possui
o poder de impor um discurso particular de valoração? O que resulta da
assimétrica relação mantida entre os diferentes atores nesse contexto? Ter-
mos, nomeações e conceitos em grande parte utilizados pelos próprios en-
volvidos, nos ajudam a elucidar tais questões, a saber: (1) O desastre como
fenômeno inevitável e (2) como ameaça; (3) inserido num espaço que tem
sentido de território (ordenamento formal e controle) e de Lugar (perten-
cimento, identidade); (4) que promove cálculos de risco, mas também de vida
e morte e, estratégias (a partir de opções) e táticas (a partir de condições da-
das historicamente); (5) o desastre que enseja a proteção (originada do co-
nhecimento ou de forças supramundanas); (6) o fenômeno que enseja a
construção e é alimentado por uma noção do “outro”, (7) as formas de
enfrentamento , como Estratégia (alternativa) e Tática (ausência de um
próprio)2 e (8) a participação dos agentes no referido ”jogo”. Que posições
e visões tais categorias colhidas das narrativas revelam na constituição da
concepção de desastre? E que relações alimentam?
Vamos a cada uma delas.

NOMEAÇÕES SIMÉTRICAS DISPARADORAS DAS DIFERENÇAS E EMBATES

1) Desastre como o INEVITÁVEL


Reafirmamos que o aspecto inevitabilidade dos desastres ou, o sen-
tido de entendê-lo como fenômeno inevitável, tem integrado a sua concep-
ção predominante, a associação à dimensão de fatalidade e de fenômeno
incontrolável. Essa percepção tem correspondência com o grau de sua mag-
nitude, estando no caso desse estudo, respaldado pelo forte impacto sofri-
do pelos moradores da Região Serrana do Rio de Janeiro, e a evidente
alteração da paisagem.
Nessa ótica, algumas indagações originadas do corpo técnico revelam
que mesmo as referências científicas não vêm respondendo a contento por
aquilo que é esperado como controle dos “processos da natureza” ou a
minimização dos impactos gerados. Porém, o discurso oficial ou a retórica
fundada nas diferentes formas de descrição científica da chuva, das ava-
lanches, deslizamentos de talude, rolamento de pedras, das correntezas,
descargas elétricas e todo o conjunto de manifestações analisadas exerce um

2. Certeau (2009).

– 259 –
forte poder na construção do imaginário social acerca do que se firma como
um processo inusitado, incontrolável, absurdo, no entanto, nominado pela
ciência. A ciência nos seus diversos esforços para esmiuçar e traduzir aqui-
lo que segue prevalecendo como “desastre natural”, permanece no lugar de
uma fração - a dominante, mas não exclusiva - da retórica que se revela em
disputa. E, em meio ao emaranhado de discursos e fazeres, não consegue
se revelar tão propositiva e eficiente, como o esperado, na composição do
rol de soluções demandadas.
Então, admite-se que o domínio desse entendimento está referenciado
nas denominadas ciências da natureza, mas que certos processos de maior
magnitude são incontroláveis e devem gerar, inevitavelmente, práticas de
remoção e desterritorialização de grupos sociais específicos como aquelas
desenvolvidas na experiência em estudo. A geração de “mapeamentos ou car-
tografias de risco” e “zoneamentos de exclusão” são iniciativas que se pa-
dronizam no imediato pós-impacto, como nos revela a experiência de
Teresópolis/RJ. Para a autoridade em desastre, inevitável é remover os
moradores das áreas em questão com base na geração de análises de risco e
também por conta das próprias insuficiências originadas do sistema em todo
o processo - ainda que isso não seja explicitado de forma a questioná-lo. Ou
seja, trata-se do “impacto sofrido severamente” por grupos socialmente mais
vulneráveis, mas também das relações e ações que não foram anteriormen-
te geradas em prol de tais grupos, apontando para a constituição de “cená-
rios de risco” incrementados pelo próprio Estado, nas suas diferentes formas
de omissão e negligência, aquelas historicamente firmadas. Trata-se do que
Acselrad (2006) definirá como processo de vulnerabilização, ou dos proces-
sos que concorrem para vulnerabilizar certos grupos sociais, agentes que se
revelam vítimas da proteção desigual.
Porém, se ambos os agentes, aqui denominados autoridades e afeta-
dos, enxergam o desastre como inevitável, essas interpretações são marcadas
por sentidos bastante diferentes. A inevitabilidade para o afetado está di-
retamente associada ao que entende que vai acontecer com ele e com os seus
independentemente do espaço onde esteja. Então, sua luta será a luta pela
permanência, pela manutenção do sentido de pertencimento e de identi-
dade. É inevitável permanecer também “porque não se pode contar com
ninguém, porque ninguém vai dar esse lugar seguro e não adianta deixar o
lugar onde se está.” A promessa de proteção por parte das políticas estatais
não se valida, e esta é uma referência originada de experiências pretéritas,
de outros desastres – próprias ou de outros moradores presentes no âmbito
de sua convivência.
Se por um lado, o inevitável no contexto de desastres, é o controle de
certos grupos sociais na forma da remoção, por outro, é a luta pela per-

– 260 –
manência, por conta daquilo a que tais grupos estão expostos, independen-
temente do lugar onde estejam (posições/espaço que sua condição de clas-
se assegura). A postura de assegurar a permanência se revela “tática”, na
medida em que não está tratando de “opções”, mas de comportamentos ge-
rados dentro de condições determinadas, impostas a tais grupos sociais. A
mobilidade social dos mais vulneráveis socialmente, neste caso, está referen-
ciada na sua forma descendente e representa “ameaça”.

2) A AMEAÇA: é o elemento biofísico; é “a falta de todo mundo”


O fenômeno desastre se faz representar, entre outros, pelo componente
da ameaça que é interpretada de duas diferentes formas, a partir dos gru-
pos aqui em questão. A ameaça para peritos, técnicos e gestores se apre-
senta através de um fenômeno biofísico, no conjunto das manifestações
originadas no denominado meio natural (mencionamos as grandes chuvas,
enxurradas, enchentes, avalanches, deslizamentos de talude, rolamento de
pedras), numa perspectiva exógena – ou seja, a partir de eventos que
emergem das suas vivências profissionais, gerando uma forma específica de
interpretação. Tais práticas se assentam na noção dominante de risco e na
busca por sua mensuração, uma logos ancorada na perspectiva objetivista.
Recuperamos Acselrad (2006) quando afirma que o salto da noção
de risco para a de vulnerabilidade melhor articula a explicação sobre as con-
dições que favorecem a suscetibilidade de sujeitos a agravos. Esse dimen-
sionamento, ou seja, a possibilidade de considerar elementos originados das
relações e processos integra, ainda que apenas sutilmente, a narrativa de
alguns técnicos sem se revelar, no entanto, uma interferência alterativa de
suas práticas na produção de diagnósticos ou na gestão dos desastres. O de-
sastre não é, pois, entendido como expressão da vulnerabilidade social, ou
não a tem como paradigma orientador; o contexto estrutural, por sua vez,
não é visto como produto sócio-histórico sobre o qual incidem os fatores
de ameaça; a questão social, quando considerada, é secundarizada ou utili-
zada como facilitadora da culpabilização dos grupos afetados pelo seu so-
frimento – a condição de pobreza, o baixo investimento em seu capital
humano, a relação “incestuosa” com o Estado, representada pelas condu-
tas tidas como irregulares (ocupação informal dos territórios e uso de equi-
pamentos e bens públicos sem as devidas vinculações formais como o
pagamento de impostos, etc).
Nesse mote se encontra a experiência dos sujeitos afetados que tradu-
zem a ameaça a partir da ótica do estranhamento decorrente da expul-
são (ou ameaça de) do Lugar, do ter que “ir para fora”, do sentimento de
“não pertencimento” quando da desterritorialização vivenciada. Tal como
esboçaram as narrativas, o “lá fora” – traduzindo o espaço que não lhe per-

– 261 –
tence, do qual não se sente parte - é ameaçador e real fator de insegurança.
Num sentido inverso daquele originado pelas autoridades em desastres, a
ameaça, e o desastre, “é com ele”, “é ele”, o morador. O que o ameaça é a
falta dos seus, dos que se foram (ou “a falta de todo mundo”, como dito),
numa perspectiva endógena, ou de uma visão que se projeta a partir do
pertencimento e, portanto, que fala da experiência.

3) ESPAÇO: Território e Lugar


O desastre nos remete, dentro do aparato conceitual adotado nessa re-
flexão, a uma luta pela hegemonia, uma disputa que tem a ver com o poder
simbólico (BOURDIEU, 2005), e que se desdobra na questão identitária e
territorial e nas várias nomeações do espaço. A referência sócio-espacial é, pois,
chave na discussão em pauta. A Sociologia designará o fenômeno desastre,
entendendo-o como processos de disruptura da rotina, lugares, fazeres e prá-
ticas envolvendo uma configuração espaço-temporal e sócio-histórica para
manifestar-se (VALENCIO, 2010a). Em detrimento dos conceitos de tempo
cronológico e espaço geográfico, são trabalhados sociologicamente os concei-
tos de tempo e espaço sociais.
Na referida pesquisa, ao buscarmos traçar as diferenças entre autori-
dades e afetados em desastres, acerca da concepção de espaço, adotamos o
“território” como categoria favorecedora do entendimento do movimento
promovido pelo Estado na busca pelo ordenamento e controle do espaço
geográfico – ou, de forma mais abrangente, os propósitos ordenadores e
homogeneizadores dos Estados-nação e dos seus projetos de desenvolvimen-
to (ZHOURI, e OLIVEIRA, 2010, p. 449). A expressão tratada, pois, como
termo definidor da ação oficial sobre o espaço geográfico objetivou explicitar
e conter as expressões geradas pela gestão dos desastres no sentido da ação,
da intervenção sobre os espaços, tanto para fins da produção de diagnósti-
cos, como para a condenação, reutilização, aplicação de normativas, enfim,
de seu controle oficial – revelando-se um contraponto ao que será explicitado
como “Lugar” pelo afetado.
Portanto, a categoria território se encontra aqui referenciada em duas
contribuições que se complementam, quais sejam: aquela trazida por
Haesbaert (2004), que afirma tanto sua conotação material, como simbó-
lica e o sentido de dominação política e simbólica, e aquela enfatizada por
Zhouri e Oliveira (2010) que falará da visão dominante do território como
recurso, no seu sentido utilitarista – utilitarismo que reduz a complexidade
e diversidade das formas locais de imaginação do território a um conjunto
homogêneo de “propriedades” ou “imóveis” a serem removidos. A segun-
da contribuição, em Zhouri e Oliveira (2010), enfatiza a propriedade e a

– 262 –
imagem do indivíduo atomizado como pressupostos dessa visão utilitarista,
sendo que qualquer visão de uma coletividade organizada e resistente, em
defesa do seu Lugar, se torna obscurecida, resultando na tentativa de
desqualificação e esvaziamento das mobilizações sociais.
Os cenários contemporâneos de desastres, destacando o caso brasilei-
ro, têm revelado o território – principalmente a partir da ótica dos autori-
zados oficialmente para tratá-lo, considerando suas competências técnicas
e administrativas -, como próspero “ambiente de negócios” (VALENCIO,
2012), referência que se encontra no mote da gestão.
Ao envolver altas cifras voltadas à recuperação do cenário impactado, o
território se torna o alvo e a justificativa de intervenções que geram fortes
embates entre os agentes, competição e divergências, inclusive entre contra-
tados para a prestação de serviços, a exemplo das grandes empreiteiras. A pers-
pectiva de proliferação dos negócios, no caso de Teresópolis/RJ, foi fomentada
para além das intervenções mais concretas sobre o território e perpassou, como
vem sendo recorrente em outras realidades, o momento da emergência, envol-
vendo o processo de sepultamento das vítimas, entre outros fazeres gerado-
res de suspeição por parte da população com relação ao papel do agente
público – tais como a suspeição de desvio de recursos e de doações e uma má
administração geral. Esses aspectos são limitadores das reais perspectivas da
ação protecionista delegada historicamente ao Estado.
Se o território representou o esforço de traduzir a visão da autorida-
de acerca do espaço – que entendemos ganhar ênfase no aspecto geográ-
fico, no seu sentido material, utilitário e para fins de controle -, o Lugar
se revela, no seu contraponto, como a representação do enraizamento e
pertencimento, da identidade, ainda que condenado ou pejorativamen-
te traduzido pelas suas possíveis limitações e características de precariedade.
É relevante dizer que antes de um território ser a “área de risco”, tec-
nicamente classificada, ele representa o Lugar de viver e morar de certos su-
jeitos sociais, ou seja, representa a relação desse sujeito coletivo com o
espaço. Isso nos remete a trajetórias de vida e a processos de vulnerabilização
(ACSELRAD, 2006). Não se trata de dizer que esse suposto “risco” é ne-
gado, mas sim, ressignificado (VARGAS, 2006) - isto é, são atribuídos no-
vos sentidos ao ambiente periférico deteriorado a partir de muitos fatores.
Territórios estrutural e ambientalmente degradados passam a ter a cono-
tação de “espaços desejáveis” a partir da ausência de alternativas e decorre
daí, a valorização de um patrimônio construído que se confronta e tende a
superar a noção técnica de risco, se revelando como uma opção legítima (ou
uma “oportunidade”) frente à total falta de opção. Os vínculos de sociabi-
lidade se sobrepõem a partir de relações primárias, familiares ou comuni-

– 263 –
tárias, que são traços culturais relevantes em tais grupos e também a possi-
bilidade de se contar com recursos adicionais para sua reprodução social,
em contextos de ausência de políticas sociais efetivas.
O Lugar representa, também, a expressão de uma luta pela perma-
nência frente à ameaça de desterritorialização pelo Estado. Entre outros
fatores, isso se associa à necessidade da segurança da posse, da propriedade,
ainda que ela se origine da “invasão dos locais disponíveis para os pobres”,
na expressão dos afetados (idem). A isso também se associam a insistência
pelo retorno e reconstrução em locais tecnicamente condenados e a busca
por alternativas individualizadas de minimização dos danos através de pe-
quenas obras de reparo e recuperação da edificação, dos equipamentos,
viabilizando, ainda que precariamente, a permanência. Na verdade, a au-
sência sistemática de uma rede de proteção social gera formas próprias de
entendimento do mundo e práticas próprias de convivência com as ameaças.
Quando do desencadeamento do desastre, esses Lugares se projetam
como objeto de contestação perita o que só reforça a já condição de segre-
gação e estigmatização dos moradores locais: aquilo que Valencio (2009)
trata como transposição interpretativa dos técnicos da ‘área carente’ para
a ‘área de risco’. É acionado o reconhecimento das fronteiras opositivas em
relação a grupos sociais específicos e seus projetos de inserção no Lugar, na
cidade, que são projetos antagônicos à noção da ordem social vigente.
A enunciação originada no discurso oficial enseja a tentativa de anu-
lação do Lugar calcada no discurso do risco. Porém, as estratégias discursivas,
e não só elas, são mobilizadas também pelos grupos localizados e organi-
zados em função da resistência – que se revela nessa pesquisa também como
resistência cotidiana (SCOTT, 2002). Em Teresópolis/RJ, a experiência da
AVIT,3 em associação com outros movimentos regionais e nacionais, se tra-
duz como um esforço pela afirmação de direitos, num contraponto sensí-
vel às formas de gestão do desastre naquela região. Como afirmam Zhouri
e Oliveira (2010), a formação de mobilizações locais e a reconstrução do
território (ou “a luta por”, num esforço de revisão da agenda pública) colo-
cam em pauta o esforço dessas populações em articular seu embate especí-
fico como um fato coletivo de onde emergem novas identidades políticas.
Em oposição ao que se constata na atuação do Estado frente ao de-
sastre, a força desses significados traduz uma densidade por parte dos afe-
tados (como bem explicitado nas narrativas registradas), que se contrapõe
à ambivalência originada do comportamento da autoridade, porque é
sedimentada pelo testemunho do morador e pela vivência do mesmo no Lu-

3. Associação das Vítimas das Chuvas de 12 de Janeiro em Teresópolis.

– 264 –
gar. Tal autoridade é incisiva sobre a realidade, se afirma frente aos recur-
sos e sobre o meio com a finalidade de ordená-lo, enquadrá-lo e se impor
sem, no entanto, necessariamente entendê-lo. É ambivalente, pois, porque
age sem a densidade que é correspondente aos Lugares que sofrem a inter-
venção, caindo no esvaziamento, na violência, na inadequação – se desau-
torizando e deslegitimando frente ao contexto e ao seu próprio papel.
O Lugar na discussão do desastre - em analogia a Zhouri e Oliveira
(2010) quando de suas argumentações no debate ambiental -, deixa de ser
categoria residual, ganhando novos contornos, tonalidades, potencialidades,
representando a inserção da diversidade e heterogeneidade dos sujeitos, de
suas formas de viver e morar frente à imposição de verdades que querem se
fazer únicas.
Território e Lugar encontram, pois, correspondência na interven-
ção ambivalente da autoridade e na densidade dos afetados, respec-
tivamente.

4) CÁLCULO de risco e cálculo de vida e de morte


A luta pela preservação e permanência do/no Lugar se encontra em
vinculação direta com o que denominaremos “cálculo de risco” e “cálculo
de vida e morte”.
O cálculo de risco integra a visão predominante no campo dos desas-
tres que tem cada vez mais negligenciado as etapas de prevenção e recupe-
ração, previstas normativamente para as ações do sistema de proteção e
defesa civil. A ênfase nos riscos esvazia os fundamentos estruturais e
classistas dos desastres, colocando-os como epifenômenos. Inúmeros des-
dobramentos danosos são registrados como consequência de tais limitações,
gerando a naturalização do processo, a ênfase nos procedimentos de
emergência e o posterior abandono dos afetados e a consolidação de
uma cultura de gestão pública fragmentada, feita de critérios provisórios e
convenientes à manutenção da ordem vigente e, ainda, promotora da
distorção da própria noção de direitos.
Portanto, diz respeito ao tratamento do desastre como manifestação
exógena, autônoma e independente das forças sociais, políticas e econômi-
cas que operam no interior das instituições do Estado (VALENCIO, 2010a,
p. 32) e, portanto, manifestação passível de ser gerenciada como “exceção”
ou excepcionalidade quando, na verdade, já é “regra”, se faz constante, posto
que a vulnerabilidade social se apresenta como parte que integra a realida-
de em discussão. Essa forma limitada de interpretação do fenômeno se re-
percute na forma de planejamento mais geral, como da gestão dos desastres
de maneira mais específica.

– 265 –
O entendimento da problemática a partir do enfoque do risco, com
ênfase na sua mensuração, se contrapõe aos cálculos que os sujeitos afeta-
dos fazem quando do enfrentamento do desastre. “Cálculo de vida e cál-
culo de morte” se associam respectivamente à segurança gerada pela
possibilidade de permanência no seu Lugar, das garantias da casa pró-
pria (ou a fuga das incertezas geradas pelo aluguel frente à inexistência ou
incerteza da renda) - ainda que seus padrões construtivos possam ser ques-
tionados, assim como a sua condição jurídico-formal -, da manutenção dos
vínculos de convivência e ativos sociais; já o “cálculo de morte” traduz o
inverso, ou seja, as ameaças e incertezas advindas da falta de garantia
de direitos, da ameaça de expulsão (do “ter que deixar a sua casa”, seu
Lugar, a inserção em abrigos e a perda das referências), numa mobilidade
social descendente - experiência constituinte de suas trajetórias na relação
com a moradia e a inserção no espaço social.
Refletindo, pois, sobre o contexto da submissão às ameaças e riscos
tecnicamente classificados, se pode indagar: que morte seria pior? Aquela
originada do barranco que ameaça atingir a moradia, da saída radical para
o abrigamento ou do abandono definitivo do Lugar? Qual delas é a mais
“dolorosa”? Tais processos de vulnerabilização apresentam sujeitos que, a
partir de suas vivências, estão “calculando”. Seus cálculos, no entanto, não
contam com estratégias como alternativas - de permanência ou de saída -,
mas se dão a partir de condições determinadas. O cálculo de morte integra
o processo de “morte social” dos sujeitos.

5) PROTEÇÃO: originada na ciência e no discurso político;


originada na solidariedade e na fé
A noção de proteção em contextos de desastres se expressa a partir de
referências bastante antagônicas quando tratamos de autoridades e afeta-
dos, ainda que haja elementos convergentes entre elas. Pode-se indagar tanto
acerca de “quem a promove”, como sobre “quem pode dela usufruir” ou
“com ela contar”. Hegemonicamente, o fenômeno desastre e sua gestão são
compreendidos a partir das referências científicas e técnicas, como já abor-
dado. As “ciências da natureza” têm predominado na resposta a tal tarefa.
No mote da gestão, e monofonicamente, o Estado e suas políticas têm re-
gistrado a predominância da concepção e ação sobre os territórios e sujei-
tos afetados, ainda que a qualidade e eficácia de seu papel possam ser
questionadas.
A pesquisa nos permite a observação de um esforço, tanto através das
normativas que constituem o Sistema de Proteção e Defesa Civil, como dos
recursos metafóricos utilizados pelos representantes do Estado, em tradu-
zir as suas práticas ou intenções a partir de uma concepção própria de or-

– 266 –
ganização e eficiência, o que, no entanto, não se converte em políticas pú-
blicas protetivas direcionadas aos grupos sociais mais severamente afetados.
Tais referências de proteção, dentre elas, o acesso a benefícios sociais,
a assistência, a efetivação de obras, reconstrução de fixos, retomada de flu-
xos, atenção à saúde (inclusive emocional) e o acesso à moradia, passam a
integrar o emaranhado de cifras, cálculos e burocracia que se distanciam do
domínio cotidiano dos afetados, de seu entendimento e poder de interfe-
rência, fugindo brutalmente ao controle social. O discurso hermético da
ciência e da técnica cumpre o papel de obscurecer o campo dos desastres
impedindo, portanto, a diversidade que o constitui e a participação dos di-
ferentes agentes na sua classificação.
Nesse sentido, mas voltado para outro aspecto da chamada ‘questão
ambiental’, Zhouri e Oliveira (2010) afirmam que esse tipo de embate porta
a tentativa de redução da diversidade local ou o esforço de negação
do dissenso, onde a própria noção de participação dos afetados receberá
conotação específica – tal como nos foi evidenciado quando observamos di-
retamente as audiências públicas realizadas em Teresópolis/RJ, em 2011. É
possível identificar a tentativa de escamotear confrontos ou camuflar o
dissenso, pela busca da adesão dos sujeitos do ‘Lugar’ aos projetos hegemo-
nizados pela técnica aliada ao capital. A perspectiva de dissolução do
dissenso mostra-se como tentativa de apagamento das resistências às for-
mas hegemônicas ou como um exercício de silenciamento, onde os sujei-
tos e sua oposição são apresentados como susceptíveis a parcerias, numa
disposição à negociação e ao entendimento para a eliminação do conflito.
As audiências públicas podem exemplificar vários processos: embates, de-
núncias, enfrentamentos, omissões e busca por alianças entre os agentes na
sua diversidade. A AVIT, associação criada, em abril de 2011, naquele mu-
nicípio a partir do desencadeamento do referido desastre, revelou-se como
o principal agente a denunciar, de maneira sistemática, as formas de aban-
dono experimentadas pela população afetada, colocando em xeque as ações
ou omissões do Estado nesse contexto. Por consequência, se encontra asse-
diada pelo discurso das forças oficiais na tentativa de: traduzi-la como “par-
ceira” na condução dos encaminhamentos, a fim de diluir as tensões
explicitadas na cena; cerceá-la, assim como aos demais presentes, pelas exi-
gências de “objetividade no discurso” através do controle do tempo de fala
e “exigência de foco” nos temas estabelecidos para as duas audiências.
Parte da luta de afetados, através de suas formas de organização, se dá
pela tentativa de elucidar e denunciar as intencionalidades reveladas nos
posicionamentos das autoridades municipais e estaduais, traduzidas nas suas
ausências, nas especificidades de suas presenças e vocalizações. A busca pelo
consenso é a tentativa de “silenciamento das dissidências existentes”, com

– 267 –
agentes que são apresentados como dispostos à negociação e ao entendimen-
to. As diferentes falas registradas nas plenárias de outubro e novembro de
2011 evidenciam esse processo.
Zhouri e Oliveira (2010) dizem que, na ‘questão ambiental’, o que se
tem é a deslegitimação (ou tentativa de) da resistência, traduzida pelo pro-
cedimento de interdição do discurso efetivado. Para tal, se utilizam da exis-
tência da dicotomia entre participantes legítimos/agentes desautorizados (p.
452) – o que, em se tratando do discurso do “risco” e, portanto, de uma
condição limítrofe, se faz legitimar mais facilmente no âmbito da gestão dos
desastres. O direito de integrar a decisão se faz à base da persistente con-
testação por parte dos afetados.4
Então, as políticas sociais de proteção não têm se traduzido em espa-
ços de participação efetiva dos afetados, no sentido de sua inclusão nas to-
madas de decisão e possibilidade de alteração da agenda pública. Tais atores,
em verdade, se veem submetidos à lógica predominante no campo dos de-
sastres, qual seja, a de não interferência nas decisões hermeticamente to-
madas pelo conhecimento predominantemente tido como válido.
A visão de proteção alimentada pelos afetados será diretamente influ-
enciada pela perspectiva supramundana, nas palavras de Tuan (2005),
o que, no entanto, não suprime a luta organizada pela efetivação de direi-
tos e as contestações travadas. As frágeis relações historicamente mantidas
com o Estado fortalecem nesses grupos sociais o sentimento de desproteção
que se origina no mundo dos homens, de suas incapacidades e limitações
e mesmo de sua suposta “má fé”, em contraponto ao que o mundo da fé,
das crenças, religioso promove e assegura. “Eu soube que o prefeito sabia
que isso ia acontecer aqui, mas ele não alertou porque quanto mais pesso-
as morressem, mais ele ia lucrar com isso (...). Ele não alertou porque não
quis” (Entrevistado 20 – Bairro Campo Grande).
Revela-se certa conflitividade entre os elementos originados da reli-
giosidade, da proteção divina, expressa também via mundo onírico e a
perspectiva científica, informações/recomendações geradas por parâmetros
racionais. O cenário é, pois, mesclado por dois elementos importantes: a ex-
pectativa acerca da proteção social originada do ente público e a forte pre-
sença da proteção oriunda do “divino”, inclusive na dissolução ou alívio do
sofrimento. Tal situação nos sugere que o acúmulo científico, ao não se con-
verter em proteção social, além de gerar dúvidas acerca de seu potencial for-

4. Elemento marcante da Audiência Pública 2 foram as frequentes contestações coletivas


da plenária em razão da limitação de tempo imposta pelos organizadores à fala de cada
participante (30 segundos).

– 268 –
talece a expectativa de uma proteção “superior” e abre concessões para a
insegurança e desconfiança na relação com a autoridade. A confiança no
conforto gerado pelo supramundano gera iniciativas que reinventam as for-
mas dos agentes se relacionarem com o “divino” e com as regras institu-
cionais que o representam.

6) O OUTRO no desastre
A visão esboçada por autoridades sobre os afetados e vive-versa, ou seja,
aquilo que estamos denominando “o outro no desastre” se revelou signifi-
cativa. Utilizando-nos do pressuposto de que tal fenômeno configura um
campo e que os agentes que o protagonizam ocupam posições distintas no
espaço social, se torna possível esperar que tal relação se revele na forma
principal de tensões e confrontos.
É recorrente o posicionamento de autoridades em desastres na tenta-
tiva de promover a desqualificação dos grupos afetados acusando-os, entre
outros, de falta de conhecimento e investimento no seu capital humano, o
que caracterizaria certa ignorância e irresponsabilidade dos afetados (ou
mesmo abuso) frente aos elementos que envolvem suas formas de interagir
com o meio e, portanto, culpabilizando-os pelo seu sofrimento. Tal estraté-
gia retórica condena os sujeitos pela sua suposta inaptidão em “se arran-
jar” dentro das disputas que o modelo mercadológico impõe e desvia o centro
da questão para o aspecto meritocrático.
No âmbito de uma multiplicidade de agentes em concorrência e da
disputa desigual ou assimétrica entre os mesmos, se confirma a des-
qualificação de determinados argumentos e práticas leigas – ou a de-
preciação de suas formas de interpretação do processo. Como afirma
Acselrad (2006, p. 56), a desqualificação dos testemunhos leigos pela re-
missão a linguagens técnicas faz parte de um conjunto de artifícios retóricos
integrantes da luta simbólica através da qual se pretende retirar a legitimi-
dade das reivindicações de tais grupos sociais. Esse embate é, pois, caracte-
rizado pelo acionamento e reafirmação do conhecimento científico como
hegemônico na determinação dos diagnósticos de risco, numa tentativa de
reduzir o fenômeno desastre à adoção de meras soluções técnicas, possibi-
litando, pois, a observação do lócus de poder que condiciona as escolhas e
os processos técnicos.
Ainda que outras percepções possam ser consideradas acerca do afeta-
do, garantindo certo grau de sensibilização frente ao sofrimento experimen-
tado, estas, em grande parte, encontram força na compaixão (SENNETT,
2004) que é sentimento que não se coaduna com a experiência do reconhe-
cimento do direito.

– 269 –
Somando-se aos muitos elementos já esboçados, os afetados dirigem
às autoridades e cobrando delas a não efetividade de suas ações e, por con-
seguinte, manifestam as suas mais severas críticas e descontentamentos. O
“outro/autoridade” é fundamentalmente pensado a partir dessas referênci-
as. O conhecimento acumulado e expresso pela ciência e pelos técnicos,
institucionalmente representados na grande diversidade de agentes presen-
tes, simboliza um estranhamento relacional traduzido, ora pelo autori-
tarismo, ora pelo abandono, manifestado pela ausência e negligência no trato
de suas demandas, entre outras formas de tratamento pautadas no excesso
de formalidade, de burocracia ou pela inacessibilidade aos produtos gera-
dos de suas competências.
Considerando um olhar mais geral sobre os eventos registrados nos
últimos anos, é possível identificar que aquilo que poderia ser interpretado
no âmbito da gestão dos desastres como certo descompasso com a realida-
de que a desafia, ou como um grau elevado de desconhecimento sobre seus
papeis e poder interventivo, ou ainda, como rejeição às demandas específi-
cas originadas de certos grupos sociais – comprometendo a proximidade e
dialogicidade -, se revelam como características que se encontram, na ver-
dade, no bojo de uma intencionalidade que produz a inclusão ratificando
a desigualdade e a desqualificação. Qual seja, trata-se de condições inter-
nas ao Estado, não se tratando, pois, de desconhecimento, ineficácia, mas
das lógicas e contradições próprias a esse Estado - a exemplo da desconexão
estrutural entre a política habitacional que está na base das causas e o tra-
tamento que vem sendo dado, principalmente no âmbito de sua gestão, aos
desastres e seus efeitos.
Pensando as particularidades da defesa civil, sua forma institucional
se projeta atrelada a uma noção de ordem social específica que a aparta dos
temas transversais com os quais deveria dialogar e interagir. Trata-se, pois,
da forma como tal realidade e os processos de vulnerabilidade dela consti-
tuintes são interpretados, gerando, sobretudo, a imposição de uma racio-
nalidade. A sinergia com afetados e a proteção que integra suas
competências se veem comprometidas.
7) ENFRENTAMENTO: Estratégia (alternativa) e Tática (ausência de
um próprio)5
O campo dos desastres não só pressupõe um embate entre diferentes
forças, entre saberes em disputa (e estes os qualifica, os produz e reproduz),
como também revela a desigual condição dos agentes presentes nessa luta.
Os recursos com os quais tais agentes contam são aqui definidos pelos ter-

5. Certeau (2009).

– 270 –
mos estratégia, na representação das alternativas ou escolhas que corres-
pondem à ação e possibilidades colocadas pelas autoridades e tática
(CERTEAU, 2009), a ação calculada determinada pela ausência de um pró-
prio, ou seja, ausência do lugar do poder ou do querer próprios – condição
correspondente à realidade dos grupos comumente afetados por desastres.
Tais referências objetivam colaborar para a elucidação dos impasses e
tensões existentes entre, de um lado, as demandas imediatas da população
e suas lutas, na urgência por restabelecer as condições básicas de moradia e
do cotidiano e, de outro, o posicionamento das forças institucionais do Es-
tado engessadas nos argumentos técnicos e burocráticos que, como afirmam
Valencio et al.(2011), redefinem os direitos constitucionais dos grupos afe-
tados como ‘carências negociáveis’, dissolvendo o drama humano em ne-
gócios em torno de obras civis (idem, p.22) e engessando a sua possibilidade
de interferência e participação na agenda estatal.
A gestão alavancada pelo Estado é considerada nessa análise como
forma de inclusão que ratifica a desigualdade e a desqualificação e pro-
duz estigma. Trata-se, pois, da existência de uma funcionalidade e racio-
nalidade que se formalizam nas estruturas de poder representadas pelos
governos, aparatos jurídicos, órgãos de ação, para garantir a imposição de
sua força, a força de uns sobre os outros. A pesquisa nos aponta para a exis-
tência de uma diversidade de políticas e órgãos de proteção, sendo que es-
tes não são feitos para funcionarem da forma como é preconizado normativa
e retoricamente. Tudo é forjado para a manutenção de uma ordem. Mas de
que ordem se trata? De uma ordem que assimila desigualdade e vulnera-
bilidade e que produz o refugo humano (BAUMAN, 2004), a banalização
da morte e da vida.
Nesse sentido, não se trata da ausência ou inconsistência do Estado,
mas da adoção de estratégias que projetam seu esforço e empenho de ma-
neira exitosa e comprometida, sem que, no entanto, suas ações correspondam
a essa projeção ou resultem no bem estar social sinalizado. “Desde o ocorri-
do, a gente está semanalmente, diariamente fazendo um mapeamento das
áreas de risco remanescentes de Petrópolis, Friburgo e Teresópolis e auxili-
ando as prefeituras de outros municípios a construir a cartografia de risco
remanescente, visando às chuvas do próximo verão”. (Entrevistado 25 –
Geologia/DRM-RJ). Os afetados por desastres no Brasil não correspondem
a “pobres sem Estado”, mas a grupos que integram a parcela denominada
por Rizek (2002) “matáveis”, ou aquela que está em oposição ao que o Es-
tado deve tratar com civilidade. E para Valencio (2009, p. 14), "(...) tais agen-
tes são corriqueiramente indiferentes ao sofrimento do cidadão ou impelem
terceiros ao ódio àqueles que, no seio da nação, já se encontram socialmen-
te enfraquecidos".

– 271 –
Nessa relação, os sujeitos do Lugar, os afetados, registram o esforço de
se fazerem reconhecer como agentes políticos. Suas formas de resistência
se alternam entre as expressões de organização coletiva e aquelas que são
de natureza mais pontual e isolada, como veremos. Travadas por movimen-
tos locais, regionais e nacionais, a exemplo das manifestações registradas na
Região Serrana em diferentes momentos do desastre em andamento, as ini-
ciativas de reivindicação e contestação coletivas estiveram associadas à As-
sociação das Vítimas das Chuvas de 12 de Janeiro em Teresópolis - AVIT,
Centro de Defesa dos Direitos Humanos - CDDH/Petrópolis, Movimento Na-
cional de Luta pela Moradia - MNLM, Movimento Nacional de Afetados por
Desastres Socioambientais - MONADES, Centro de Ecologia Aplicada de
Teresópolis - CEAT e diversas associações locais, revelando um contraponto
à noção de indivíduos atomizados que obscurece a existência de coletivida-
des organizadas em torno da resistência e da defesa de seu território (ZHOURI
e OLIVEIRA, 2010). Então, vê-se discursos e ações que se voltam contra uma
ordem hegemônica estabelecida e que se origina da perda de legitimidade da
autoridade, cujas ações não são mais vistas como justificáveis. Há questio-
namentos acerca dos arranjos de poder vigentes e o apelo por mudanças.
As formas de resistência cotidiana (SCOTT, 2002), por sua vez, mar-
cam aquelas manifestações expressas de forma pontual, mas com algum grau
de recorrência, regularidade a despeito de uma articulação ou acordo entre os
agentes envolvidos. Estão fortemente presentes no contexto do sofrimento
vivenciado pelos afetados em desastres, traduzindo seu descontentamento fren-
te às inúmeras regras impostas autoritariamente pela racionalidade técnica (que
acredita melhor saber como organizar as coisas e pessoas) e também frente
ao abandono recorrente por eles sofrido. Apesar da tentativa de des-
qualificação de tais manifestações, tidas como “desordeiras” e feitas por
pessoas “ignorantes”, estas dizem muito da natureza das relações estabe-
lecidas entre afetados e autoridades e dos afetados com o Lugar.
Nesse sentido e pela posição ocupada no jogo, tais grupos sociais - em
princípio destituídos das estratégias que representam a alternativa, opção
e possibilidade de escolha -, lutam contra a conformação esboçada pela téc-
nica através da “tática” (CERTEAU, 2009), numa reinvenção do cotidia-
no e na reapropriação do espaço e do uso a seu jeito. A tática pressupõe,
assim, a existência da resistência associada a um conjunto de determinações
que desenham a desigualdade para além da possibilidade de escolha cons-
ciente desses sujeitos.

8) Participação no “JOGO”: condições diversas de poder


Supomos que as regularidades presentes nas vocalizações e nas práti-
cas de autoridades e afetados em desastres, aqui brevemente sintetizadas,

– 272 –
se revelam convergentes, se completam e podem ser amarradas e assimila-
das como partes integrantes de um “jogo”. Falar de desastre pressupõe in-
tegrar um jogo e participar da luta pelo poder de nomeá-lo, classificá-lo, dizer
o que ele é. Tratamos, referenciados em Valencio (2010b), de jogos com
linguagem que estão subjacentes aos jogos de poder. O desastre entendi-
do como campo (BOURDIEU, 2005), se faz de lutas entre os diversos agen-
tes da produção simbólica com o objetivo da imposição, ou redefinição, de
seus princípios legítimos de visão, e de divisão do mundo natural e social.
Sendo assim, revelará embates, disputas, mas não só.
Tais embates e disputas são desencadeados a partir de desiguais con-
dições de poder. Não se trata de um jogo de “afetados contra autoridades”,
mas, sim, da presença de uma racionalidade determinista, fragmen-
tadora que evidencia posições de poder, impondo sobre os afetados o au-
mento do sofrimento. Este, não resulta apenas do impacto dos elementos
biofísicos sobre o território e a população, como está convencionado pela
visão hegemônica de desastre, mas também das tensões e imposições
institucionalizadas e respaldadas pelo objetivismo associado à noção de ris-
co. O cálculo de risco é, pois, determinante na manutenção da ordem idea-
lizada e na reconfiguração da paisagem.
A diversidade constituinte do “jogo” sucumbe na medida em que
avançam as tecnicalidades (VALENCIO, 2010b) envolvendo o discurso e
práticas em torno do que é denominado gerenciamento de risco e desastre:
as pessoas e seu sofrimento desaparecem. Isto está diretamente associado
à tentativa de anulação da vocalização dos afetados, ou seja, de seu silen-
ciamento.
É importante constatar que, tendencialmente, o discurso perito e as
práticas nele respaldadas têm se revelado inibidores dos processos de parti-
cipação da diversidade dos integrantes dessa disputa. Quando os afetados
por desastres ou aqueles mais vulneráveis a tais processos são considerados
nos diagnósticos e nos processos decisórios (diretamente vinculados a sua
reprodução social e à da coletividade a qual pertence), o são numa condi-
ção de submissão a uma linguagem hermética, numa simbologia de poder,
e frente a posturas técnicas que reforçam a sua desfiliação.
Os debates públicos registrados na pesquisa de campo, principalmen-
te aqueles registrados nas audiências públicas, apresentaram agentes numa
atitude de contestação à lógica burocrática ininteligível – os afetados. Tal
lógica revela-se avessa ao atendimento adequado de suas demandas mais
urgentes, havendo uma expectativa de alteração da agenda estatal em vi-
gor. As manifestações sociais elucidam esse lugar de sofrimento que se am-
plia frente às atitudes decorrentes de uma racionalidade instituída na figura

– 273 –
do Estado. A problemática não residiria na falta de recursos financeiros para
os empreendimentos e ações propostos, mas no emaranhado de regras que
se convertem na banalização de práticas de violência, nas palavras de Arendt
(2010). Keinert (2005) afirma – ao tratar dos argumentos da autora sobre
a banalização do mal – , que nada no social garante a universalização de
acesso a um lugar de reconhecimento no mundo assegurado por direitos. A
violência pode, então, se dirigir a estes indivíduos que são indesejáveis e,
portanto, passíveis de eliminação (idem, p.1). Apesar de sentirem o efeito
brutal de tais mecanismos burocráticos, os afetados não conseguem entendê-
los, desvelá-los, uma vez que são mentiras organizadas que se apresentam
como armas contra a verdade e a vida dos que a expressam, afirma Valencio
(2010a e 2010b). Paoli (2007, p. 234) tece a crítica à gestão pública como
cerceamento do real sentido da política:
métodos de coação simbólica e material, revelados pelos totalitaris-
mos dos anos 1930-1940 (...) estão presentes desde então nos go-
vernos democráticos, métodos que impedem o agir espontâneo e a
constituição livre de comunidades políticas no espaço público. De
um lado, esses métodos geram formas de violência e subjetividades
isoladas e medíocres: jogam os cidadãos no refúgio do mundo pri-
vado, no eximir-se da responsabilidade pública, no repúdio da polí-
tica, na adaptação por conveniência, na ignorância de qualquer
forma de alteridade que não traga vantagens (...).

Há um forte argumento no âmbito perito de que suas decisões têm por base
um fundamento técnico – sem paixões ou ideologias. Registra-se, no entanto, a
queixa de que “o meio político” negligencia os seus pareceres, forjando uma
separação entre a dimensão da técnica, da gestão e da política. Porém, tal
denúncia cumpre apenas o papel de evidenciar o desastre como fenômeno
integrante do rol da negligência e abandono social, características que já in-
tegram a prática do ente público, potencializando os processos de vulnera-
bilização já desencadeados na realidade concreta da vida dos referidos grupos
sociais. O fenômeno se revela como apenas mais uma entre as várias mani-
festações de descomprometimento dos representantes do Estado com o teci-
do social, registradas historicamente, ou seja, é também produzido pelas
intencionalidades específicas da institucionalidade estatal nas suas formas de
regulação social - e pela completa liberdade dada ao capital.
A capacidade crítica dos indivíduos se enfraquece diante dos exces-
sos da ordem vigente, uma vez que a racionalidade técnica, que se superpõe
ao sentido participativo da política, visa tornar inoperantes as ações de
contestação até o ponto onde o indivíduo abdique de sua crítica, sem de-
mandar repressões externas abertas por parte dos representantes da referi-

– 274 –
da ordem vigente. O “jogo” conta com seus componentes simbólicos,
ou, nas palavras de Bourdieu (2005), com a eficiência do poder simbólico.
Trata-se de uma construção que não só torna hegemônico um conceito de
desastre a partir de sua racionalidade técnica, mas que o impõe com base
no poder que advém da ciência.
Segundo Acselrad (2009), a controvérsia científica, explicitada pelo
próprio conhecimento técnico, tem temporalidade distinta da controvérsia
política, aquela própria da ação administrativa. “O saber especializado não
é mais capaz, por si só, de fechar o debate no interior da própria ciência”,
se expondo, pois, à discussão e decisões públicas. Pode-se observar em nar-
rativas originadas do meio perito, a defesa da supremacia das decisões pe-
ritas e da produção cartográfica como centrais na condução da gestão de
desastres e do reordenamento da cidade. No entanto, as intencionalidades
presentes nesses cenários se mesclam entre fazeres técnicos, não neutros ou
apolíticos – e, portanto, direcionadores da realocação dos afetados no ter-
ritório –, e fazeres reconhecidos como políticos, não estando, pois, separa-
dos. Não se pode, pois, pensar uma dada qualificação tecnológica advinda
de uma especialidade científica desassociada da decisão política, vinculada
a um processo maior de organização espacial fundada numa ordem social
específica geradora de desigualdade.
No “jogo” em torno dos desastres, os atores hegemônicos constroem
regras que objetivam fazer sucumbir a diversidade de vozes. E tal diversida-
de sucumbe na medida em que, na disputa pela agenda pública e por validar
uma verdade, os agentes envolvidos engendram embates originados de con-
dições desiguais de poder. A imposição da interpretação do desastre através
de uma noção “única” torna-se, de maneira geral, convincente no que diz
respeito à formação de um imaginário social sobre o fenômeno, limitando-o
aos elementos biofísicos que se firmam como determinantes. Os afetados nos
desastres são invisibilizados no seu potencial político e projetados, nessa pers-
pectiva do embate de forças, como vítimas frente à opinião pública que res-
ponde com a compaixão própria dos momentos de colapsamento social.
Porém, como bem explicita a reflexão de Valencio (2010b): é muito
importante que os outros sujeitos, que também têm as suas demandas e seus
pontos de vista, possam estar inseridos ativamente nesse jogo de verdade, que
possam participar da interpretação do mundo construída coletivamente. Os
grupos sociais comumente afetados pelos desastres não são ouvidos central-
mente, apesar de se falar muito sobre eles, sobre suas vidas, sobre ações, es-
tratégias, obras e programas para eles voltados. Disso, dentre outros, resulta
o anseio pela fala, a fome de expressão, necessidade de expressão própria,
originada daquele que sofre, porque o desastre é com ele, é ele. O “jogo” é
elucidativo no entendimento das forças que constituem uma prática política.

– 275 –
CONSIDERAÇÕES CONCLUSIVAS: O DESASTRE E A LUTA
PELA CLASSIFICAÇÃO DO MUNDO

As reflexões aqui desencadeadas permitem pensar o desastre como


construto do qual fazem parte diversos agentes a partir de diferentes e de-
siguais posições. É importante destacar que, quando discuto a luta classi-
ficatória, como perita ou pesquisadora, me aproximo da condição de agente
nessa luta inserida e, a despeito de buscar a objetivação, integro a sua defi-
nição -, o que trouxe para esse exercício de investigação um caráter bastan-
te desafiador.
Ao identificar as diversas nomeações produzidas pelas narrativas dos
agentes frente ao desastre desencadeado em Teresópolis/RJ, em janeiro de
2011 – apenas uma entre as muitas experiências significativas de desastres
do caso brasileiro -, identifico a presença de regularidades discursivas que
apontam para os diferentes sentidos que um mesmo termo e/ou prática po-
dem expressar. Trato de nomeações que não são inocentes, e que têm a ver
com a luta pela hegemonia, pela “forma dominante de dominação”. Nesse
sentido, não são inocentes as formas como certos grupos sociais são desig-
nados, como não o é a nomeação de seus territórios, as formas de interpre-
tação de suas relações e dos usos que fazem do espaço. Identifico conflitos
e também convergências, encontros e desencontros entre os agentes envol-
vidos na disputa, ou seja, entre aqueles que optamos por denominar auto-
ridades em desastres e os grupos sociais afetados pelos desastres, assim como
um conjunto de relações e tensões que são internas a esses mesmos grupos.
Diante dessa afirmação, essa pesquisa representa um esforço de iden-
tificação e interpretação de categorias, estratégias discursivas, que podem
colaborar para o entendimento dessa disputa e das diferentes formas de
apropriação do chamado desastre e dos elementos a ele associados, e tal
como outros subtemas da questão ambiental, sublinhando dissensos e a
diversidade de projetos em curso na sociedade (ZHOURI e OLIVEIRA,
2010). Ou seja, para os diversos agentes, o inevitável do desastre, a amea-
ça (o elemento biofísico ou a falta de todo mundo), o espaço (território e/
ou Lugar), o cálculo de risco, de vida e de morte, a proteção (originada na
ciência, no discurso político, na solidariedade e na fé), a presença de um
“outro em relação” (a autoridade e o afetado), estratégias e táticas no con-
texto de um “jogo” (expressando as diferentes condições de poder), são
denominações possíveis na caracterização de certa reciprocidade, mas pre-
dominantemente, de embates e conflitos disparados pelos agentes quando
de sua interpretação e vivência, decorrentes de posições distintas e desiguais.
Noções como perigo, risco ou ameaça não são designados apenas pelo
discurso técnico e aparentam consenso ou verdade no imaginário social em

– 276 –
razão da força que assumem a partir de expressões específicas de poder: neste
caso, a racionalidade técnica. Desastre designa um conjunto de aspectos,
variáveis e dimensões: se destaca, num primeiro momento, o valor da dife-
rença ou diversidade que esse termo assume. No entanto, verifica-se uma
tentativa de silenciamento dessa multiplicidade de interpretações. Por ou-
tro lado, o território perde a exclusiva perspectiva de objeto de controle e
planejamento, tal como vislumbramos na perspectiva técnica, para ser
ressignificado e defendido como Lugar identitário, referência de perten-
cimento e das lutas dos moradores contra remoções compulsórias e de ou-
tras ações arbitrárias, quando de sua classificação técnica como áreas de risco
pelo Estado.
Conforme avançam as tecnicalidades envolvendo o gerenciamento de
riscos e desastres, tal diversidade de vozes, de pontos de vista, desaparece,
sucumbe. Na condução da política pública, os afetados em desastres não
são centralmente ouvidos, uma vez que se configura uma arrogância das ins-
tituições e de seu corpo perito/técnico sobre o outro. As ações e estratégias,
obras, programas “dizem respeito ao outro”, a seu sofrimento e sua vulnera-
bilização, mas não os escuta. Vigora a tentativa de seu silenciamento, por
um lado, e a sua sede de expressão própria, por outro, porque “o desastre é
com ele”. O que acontece na paisagem acontece como expressão do huma-
no; o sistema de objetos da paisagem é uma construção social. O desastre é
problemática originada do meio social e a reorganização do sistema de ob-
jetos demanda a compreensão da dinâmica societária da qual faz parte.
Tratamos de forças movidas pelo embate político. Nesse sentido, se
reafirma um exercício de poder e nele, a subsunção da diversidade quando
da imposição de verdades unilaterais que se fazem representar predominan-
temente pelas tecnicalidades. A tentativa de influência do discurso técnico
sobre os afetados pode ser interpretada como a eficiência do poder simbó-
lico (BOURDIEU, 2005) que é tão mais dominador quanto mais suave se
faz, sendo que esse não é o único recurso do qual se busca fazer uso na cor-
relação de forças em discussão. Podemos problematizar a ação do Estado
como aquela que inclui ratificando a desigualdade: a realidade dessa inves-
tigação nos sugere essa interpretação. Então, o poder se dá também pelas
intervenções desse Estado, ainda que se configurem como técnicas de con-
trole e violência (PAOLI, 2007) ou gestão da precariedade (RIZEK, 2002).
A busca pelo desvelamento do campo denominado desastre, e sua
multiplicidade interpretativa, afirma a necessária evidenciação da diversi-
dade e complexidade que não é só de agentes e olhares, mas das diferentes
gradações de seus mergulhos dentro do tema e experiência. Supomos ha-
ver nesse âmbito a predominância de uma forma de interpretação e poder,
mas não se trata da existência do consenso -, inclusive na literatura que res-

– 277 –
palda esse debate. Tratamos, em verdade, mais daquilo que falta, da deman-
da pela elucidação de processos e relações: identificamos um campo, uma
luta pela classificação do desastre, a diversidade de posicionamentos que
tende a sucumbir a partir de um ambiente que se revela monofônico, e su-
pomos haver carências investigativas em torno de tais processos. Justifica-
se, pois, um esforço de calibrar aquilo que o debate sociológico e suas
possibilidades analíticas trazem como contribuição à elucidação do fenô-
meno desastre.

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– 279 –
CAPÍTULO XI

POR ENTRE OS ESCOMBROS:


SOBRE A FRAGILIZAÇÃO
MULTIDIMENSIONAL E O ABANDONO
SOCIOPOLÍTICO DE ANIMAIS EM
CONTEXTO DE DESASTRES

Layla Stassun Antonio

“Understanding the intricate relationship between


humans and animals is an important component
of a comprehensive public health approach to disaster response
and a critical element in promoting the resilience
of individuals and communities”
(HALL et al., 2004)

INTRODUÇÃO
No Brasil tem ocorrido um número significativo de desastres relacio-
nados às chuvas nos últimos anos, nos quais o montante de prejuízos e
mortes têm sido de grande proporção. Os direitos humanos são repetida-
mente deixados de lado quando em um desastre as obras de engenharia
tomam precedência às necessidades psicossociais. Em um país no qual,
muitas vezes, nem sequer os direitos humanos são respeitados, surge a ques-
tão: em uma situação de emergência ou desastre, quem age em favor dos
animais que estão circunscritos e fragilizados no cenário de devastação?
Quem garante o direito à vida e à incolumidade de um animal nessas cir-
cunstâncias? E tão importante quanto, são as implicações que a perda des-
ses animais tem na vida de seus donos, tutores, guardiões, criadores e
daqueles que tinham seu animal como meio de vida.
No Brasil não há um censo oficial que se proponha contabilizar o nú-
mero de animais domésticos. As estimativas atuais no Brasil são falhas e
imprecisas, apesar de o número de cães e gatos constituir a base de progra-
mas de vacinação e de outras políticas públicas. A falta de autoexpressão
dessa população a faz invisível para o poder público razão pela qual são de

– 281 –
suma importância os estudos que explicitam essa vulnerabilidade. Entre os
afetados em desastres, suspeita-se que os animais domésticos sejam uma
população constantemente vitimada em praticamente todas as tragédias
ocorridas, porém não se pode afirmar, pois não há controle, identificação
ou estatística elaborada pelas autoridades competentes que nos informe
quantos animais existem em nosso país. É imprescindível saber, dentre os
existentes no contexto do cenário de desastre, quantos foram feridos, res-
gatados, adoeceram ou faleceram, a fim de aprimorar as políticas públicas
diante dessas crises pontuais, evitando que se estendam como crises crôni-
cas num cenário nacional. Assim como é importante o conhecimento da
realidade local anterior ao desastre para fins de comparação ao que resul-
tou no desastre. Ao analisar a situação de animais em contexto de desastre,
a falta dessas informações realmente nos impossibilita de visualizar a dimen-
são do problema, porém, qualquer indivíduo que experiencie um desastre
ou busque se envolver no processo nota a falta de medidas governamentais
direcionadas para a população animal.
Há ainda outros aspectos como os relacionados a animais que são meios
de vida e que, também, podem ser afetados nesse contexto. Vacas, galinhas,
porcos, cabras, cavalos, quando afetados, impossibilitam a reconstrução do
modo de vida comunitário; por exemplo, quando adoecem em decorrência
de um desastre e não há um controle veterinário que impeça a dissemina-
ção de doenças. Nesse cenário, animais de criação podem, além de adoece-
rem, ser feridos ou ainda seus donos serem duramente prejudicados no
desastre e não poderem levar seus animais junto com eles para um abrigo
provisório. A perda de animais de estimação e de criação é mais um pilar
afetivo, identitário e socioeconômico que desaba em meio ao sofrimento
multifacetado que um desastre causa.
Nesse trabalho será abordado, primeiramente, o debate sociológico do
conceito de desastre e como esse termo foi utilizado no decorrer do estu-
do. Em seguida, abordar-se-á a questão dos vínculos sociais que se desen-
volvem entre humanos e não-humanos, suas dimensões afetivas, identitárias,
econômicas, entre outras. Em seguida, será apresentada uma síntese da re-
visão bibliográfica de outros estudos sobre animais em contexto de desas-
tres para, então, centrarmo-nos nas visões institucionais brasileiras acerca do
assunto, no discurso técnico e nas recomendações do poder público sobre
como agir em situações de emergência no que tange a população animal. Tais
vínculos entre humanos e não-humanos serão analisados contrapondo a vi-
são institucional prevalente dos órgãos de emergência no Brasil. O caso do
desastre catastrófico e emblemático ocorrido no munícipio de Teresópolis/
RJ, em janeiro de 2011, será a referência para um panorama da realidade
concreta do Brasil. Com o suporte de uma pesquisa documental de fontes

– 282 –
oficiais e de registros jornalísticos, além de entrevistas qualitativas e revi-
são bibliográfica interdisciplinar, analisaremos se as medidas do poder pú-
blico em relação à população animal, mais especificamente, animais de
companhia e animais de criação, estão sendo efetivas e suficientes para a
contenção de danos e sofrimento destes que são seres vivos dos mais vul-
neráveis perante a sociedade contemporânea. É oportuno destacar que:
Os que sofrem menos dispõem de narrativas incompletas sobre as
insuficiências operativas do Estado. Os que morrem, estes sim, são
os que melhor dispõem do testemunho da indiferença, incapacida-
de, equívocos e má vontade contidos nas providências de coordena-
ção do cenário arrasado. Como os mortos se vêem, por definição,
impossibilitados de autoexpressão no tema, salvam-se circunstanci-
almente as aparências de cumprimento do dever. Embora isso, o si-
lêncio providencial dos mortos também gera uma narrativa, acessível
aos que tem olhos de ver: se expressa na quantidade de vítimas fa-
tais havidas numa localidade esquecida, desde há muito, pelas pro-
vidências do ente público, expressa-se nos corpos que permanecem
por tempo prolongado insepultos, pelos que são facilmente dados
como desaparecidos, os que são localizados com significativas mu-
tilações e traumas, os que são ignorados sem que haja preocupação
em resgatá-los (VALENCIO, 2009a, p. 7).

DEFINIÇÃO DE DESASTRE

Segundo Oliver-Smith (1998), o termo desastre é um termo proble-


mático a ser definido, pois o desastre é um evento totalizante. Há uma
multidimensionalidade nesse fenômeno que nos força a confrontar as vári-
as faces, que estão em constante transformação, de realidades socialmente
construídas. Para se definir adequadamente o termo desastre, deve-se co-
brir toda essa multidimensionalidade.
No âmbito da Sociologia, há um profícuo debate em curso sobre os
fenômenos denominados desastres. Uma gama de interpretações
vem se desenvolvendo, sem que houvesse, até o momento, um con-
senso estabelecido (...) A compreensão dos desastres para a Socio-
logia focaliza centralmente a estrutura e dinâmica social que, num
âmbito multidimensional e multiescalar, dá ensejo a variadas inter-
pretações acerca das relações sociais territorial, institucional e his-
toricamente produzidas (VALENCIO, 2009a, p. 5).

Principalmente quando pensamos em animais, vemos que não são os


eventos naturais que produzem vulnerabilidade, esse é apenas um elemen-

– 283 –
to frente a uma dinâmica social apartadora. A vulnerabilidade dos animais
é um problema crônico da nossa sociedade que somente é agravado no ad-
vento de uma crise aguda, como um desastre.
A naturalização do abandono de animais na sociedade brasileira ser-
ve como legitimação para o desleixo no tratamento dos mesmos em casos
de emergência. A situação de abandono dos animais nas ruas brasileiras é
uma crise crônica. O testemunho assim como a prática de maus tratos a
animais, rotineiramente, cria um entorpecimento e resulta na indiferença
crônica da população a esse sofrimento; a população acaba entendendo
aquela situação como ‘natural’ ou ‘normal’.
Infelizmente, estima-se que cerca de 80% dos cerca de 600 milhões
de cães no mundo esteja nas ruas, porcentagem também estimada para
gatos. Os problemas resultantes dessa população na rua são signifi-
cativos, entre eles a disseminação da raiva e ferimentos resultantes de
mordidas. Há também sérios comprometimentos do bem-estar dos
animais envolvidos: fome, frio, doenças e medo gerado por interações
agressivas com seres humanos e outros animais (WSPA, 2009).

O processo social que enseja a vulnerabilização da população animal


não incita uma maior preocupação com suas necessidades, mas em vez dis-
so, a torna supostamente mais apta a tolerar o sofrimento, segundo os sig-
nificados que são culturalmente construídos diante tais circunstâncias.
Vemos no trecho a seguir a mesma lógica aplicada às populações humanas
que invariavelmente são os grupos afetados preferenciais nos desastres, as-
sim como os animais:
Muito correntemente, em conversas informais no meio de defesa ci-
vil, se ouve discursos no qual o estresse dos estabelecidos, cujos meios
materiais sofreram danificação ou destruição em desastre, deva ser
objeto de amparo psicossocial ao passo que o dos empobrecidos não
causa preocupação. A representação do mundo social que agentes da
defesa civil por vezes mantêm, com base em preconceito de classe,
é de que o sofrimento recorrente cria calos emocionais aos empobre-
cidos; já os afluentes têm sensibilidades que merecem cuidados
(VALENCIO, 2009a, p. 7).

A vulnerabilidade sócio histórica dos grupos sociais empobrecidos é


essencial para entendermos o porquê da negligência no resgate e tratamen-
to de um animal durante o contexto de um desastre. A falta de órgãos pú-
blicos e instituições específicas no assunto ou de verbas destinadas a prover
as mínimas condições de sobrevivência aos animais que são socorridos por
iniciativa voluntária é um problema crônico, pois animais em sofrimento

– 284 –
são, no geral, vistos pelo poder público como algo a ser abatido, devido aos
riscos de se tornar vetor de doenças e zoonoses, e não como um ser vivo que
faz parte das atribuições do Estado fornecer cuidado.

VÍNCULOS ENTRE HUMANOS E NÃO-HUMANOS E SUAS IMPLICAÇÕES

A relação interespécie é uma parceria antiga que acompanhou o pro-


cesso civilizatório humano, proporcionando inúmeros e variados benefíci-
os. Esta convivência sofreu modificações ao longo da história e os papéis
desempenhados pelos animais se modificaram. Atualmente existe uma pre-
ocupação e interesse cada vez maior pelos animais de estimação, e um dos
motivos para isso é devido às novas configurações familiares que muitas
vezes incluem animais.
Assim como as crianças conquistaram seu espaço junto à família no
decorrer da Idade Média; nos dias de hoje os animais de estimação
também vêm adquirindo seu espaço; espaço este que não é conquis-
tado, mas sim dado a eles pelos seres humanos. Então, estes novos
protótipos de formação familiar que mesclam a relação e o convívio
entre humanos e animais tem se tornado cada vez mais presente em
nossa sociedade (KNEBEL, 2012, p. 37).

Cada vez mais estamos ultrapassando a barreira do humano e não-


humano. Como Latour apontava, em 1994, na sociedade moderna há a
proliferação de híbridos, e como tal, temos que entender que os animais
representam partes intrínsecas de nosso modo de vida, que vivem simulta-
neamente conosco sofrendo constante interferência humana.
Dessa maneira, manifestações protagonizadas por humanos, que
também são animais, em favor de animais, que também se quer como
humanos, dão provas de que só há híbridos. O nós humanos e eles
animais sugere a purificação, mas ao mesmo tempo, enquanto asso-
ciação, há a produção de uma nova entidade - um animal que não é
tão apenas um animal e um humano que não é tão apenas um hu-
mano (SEGATA, 2012, p. 26).

Com essa crescente “ascendência social”, os animais integram não so-


mente um vínculo afetivo, mas essa relação ganha aspectos identitários que
como tal, não podem ser substituídos. A perda de um filho ou de uma mãe
representa uma parte da identidade do indivíduo que acaba ali. E cada vez
mais esse vínculo afetivo, social e identitário do humano com o animal é
não menos importante do que a perda de qualquer outro membro da famí-
lia. Inclusive, alguns estudos (HALL et al., 2004) afirmam que é um víncu-
lo único no sentido em que o animal é um apoio incondicional, que não julga

– 285 –
nem critica. Outros estudos (COSTA, 2006; HEIDEN; SANTOS, 2009;
MILLER; LAGO, 1990; VACCARI; ALMEIDA, 2007) revelam os benefí-
cios que os animais de companhia trazem para o mais variado leque de gru-
pos sociais, a saber: pessoas com necessidades especiais, hospitalizadas,
idosos, crianças, entre outros. Entretanto, esse tema ainda é pouco explo-
rado pelas Ciências Humanas, pois a relação humano e não-humano somen-
te começou a ser considerada como tema acadêmico a partir das décadas
de 1970-80 (FARACO, 2008).
Não podemos esquecer que estamos em uma relação multifacetada com
os animais, que também altera os hábitos e necessidades dos próprios ani-
mais. Um animal domesticado, historicamente, não mais possui um habitat
natural. O número exorbitante de animais domésticos negligenciados nas ruas
das cidades é um problema criado e que somente pode ser resolvido pelo ser
humano. O cuidado com essa população é indispensável, pois ela necessita
da parceria humana para sobreviver e garantir suas necessidades básicas.
Animais de criação trazem novas dimensões a essa interação entre hu-
manos e não humanos. Entre elas, a dimensão da sobrevivência de comuni-
dades rurais ou carentes muitas vezes depende do uso comercial e de
subsistência de produtos de origem animal, como leite de vaca ou cabra, ovos
de galinhas, carne de porcos, o uso de cavalos para tração, etc. Estes animais
são utilizados como meios de produção (como em relação ao leite ou ao trans-
porte) e objeto de produção (como pelo abate para extração da carne) e re-
presentam o sustento de famílias. Mas, em face da perda dos mesmos de forma
súbita e inesperada, como num desastre, somente podem reconstruir suas
vidas econômicas numa base mais precária do que a anterior. Além dessas
dimensões acerca do vínculo humano-animal, há outras possíveis como, por
exemplo, um cavalo que tem seu valor para o dono em relação ao seu capital
genético, ou em sua função de seu uso para fins de lazer e status.
Por esse breve apanhado podemos afirmar o grande valor que um ani-
mal, tanto de companhia como de criação, pode ter tanto para a vida co-
munitária quanto para a vida privada. Estudos sobre suas perdas afirmam
que o luto após a morte de um animal de estimação é semelhante ao senti-
do após a morte de um ser humano querido (PLANCHON; TEMPLER,
1996). Com tantos benefícios, a desvantagem é que a perda de um animal
pode significar um fator estressante significativo.

ANIMAIS EM CONTEXTO DE DESASTRE


Estudos abordando a questão animal em um desastre são poucos e, em
sua maioria, são norte-americanos. Em todo o mundo, são poucos os paí-
ses que os levam em consideração essa questão em planejamentos de emer-
gência. Nos Estados Unidos, as recomendações em relação a animais de

– 286 –
companhia mudaram após o advento do furacão Katrina, que assolou a ci-
dade de Nova Orleans, em 2005, ocasião na qual as autoridades ordena-
ram a evacuação e previram que os residentes retornariam a suas casas em
três dias, quando, na realidade, alguns deles somente retornaram depois de
três meses (outros faleceram e outros não retornaram em razão da destrui-
ção de suas moradias, da perda de seus postos de trabalho e da inviabilidade
ambiental e econômica de reconstrução). Inúmeros animais de estimação -
de cães e gatos até papagaios e peixes - foram deixados para trás nesse epi-
sódio, pois nenhuma providência havia sido feita pelas autoridades para
evacuar animais de estimação junto com suas famílias. As pessoas, esperando
voltar alguns dias mais tarde, deixaram comida e água, mas os dias se trans-
formaram em semanas, e os animais tiveram que lutar para sobreviver sem
provisões ou o amor e carinho de seus donos.
In 2005, Hurricane Katrina revealed that much work remains to be
done to prevent the loss of animal lives and the separation of animals
from their guardians. The Humane Society of the United States and
the Louisiana Society for the Protection of Cruelty to Animals
estimate that 727,500 companion animals were affected by Katrina
just in the city of New Orleans. Over 15,000 animals (including
horses and livestock) were rescued after the storm (see Bryant 2006;
Scott 2006). Only around 2,300 companion animals were reunited
with their guardians. Although the number of animals who died is
not known, reliable estimates place it well into the thousands
(IRVINE, 2007, p. 356).

Bullard (2006) afirma que o furacão Katrina expôs ao mundo a reali-


dade nua do racismo ambiental. Para o autor, “racismo ambiental refere-se a
qualquer política, prática ou diretriz que afete diferencialmente ou preju-
dique (intencional ou não intencionalmente) indivíduos, grupos ou comu-
nidades com base em sua raça ou cor” (p. 126). O autor não aborda a
questão animal em si, contudo, se consideramos animais seres vivos que
também necessitam de proteção tanto quanto um ser humano, senão mais,
entendemos essa população como mais um grupo que foi deixado para trás.
Dentro do mundo dos grupos organizados da sociedade civil que trabalham
voltados a proteção animal, existe um nome para esse preconceito, é o
especismo. O especismo está para a espécie assim como o racismo está para a
raça: uma discriminação baseada na espécie, quase sempre a favor dos in-
tegrantes da espécie humana.1 O especismo é uma discriminação baseada

1. Definição retirada dos Les Cahiers antispécistes, publicação francesa de revistas, dispo-
nível em: http://www.cahiers-antispecistes.org/spip.php?article295 Acessado em 09 de
maio de 2013.

– 287 –
em espécies, envolve atribuir a animais sencientes (sensíveis e conscientes)
diferentes valores e direitos baseados na sua espécie. De modo similar ao
sexismo (discriminação baseada no gênero), a discriminação especista pres-
supõe que os interesses de um indivíduo são menos importantes pelo mero
feito de se pertencer a uma determinada espécie (PADILHA, 2011).
No caso do furacão Katrina, os planejadores de transporte de emer-
gência fracassaram em relação aos “mais vulneráveis” da nossa so-
ciedade – os indivíduos sem carro, os que não sabiam dirigir, os
sem-teto, as pessoas doentes, inválidas, idosas e as crianças. Como
resultado, muitas pessoas vulneráveis foram deixadas para trás e
podem ter morrido em decorrência de não terem tido nenhum trans-
porte (BULLARD, 2006, p. 127).

Com tantos animais ainda em suas casas, muitas vezes presos à espe-
ra do retorno de seus tutores, o número de vítimas foi enorme. Como re-
sultado, em outubro de 2006, o presidente Bush assinou a lei federal
conhecida como Pets Evacuation and Transportation Standards (PETS). Esta
lei estipula que a FEMA (Federal Emergency Management Agency) deve incluir
os requisitos dos indivíduos, assim como as necessidades de seus animais
de serviço e de estimação. Este ato também determina que o financiamen-
to necessário para a evacuação e resgate durante a emergência ou desastre
deve ser incluído no orçamento do governo federal, bem como nos planos
de desastres locais. Também permite a FEMA ajudar no resgate de animais
de serviço e companhia antes, durante e após a ocorrência do desastre. Os
estados americanos também elaboraram as suas próprias novas leis de eva-
cuação de animais ou modificaram as existentes para incorporar tal ques-
tão, pois a lei exige que, para ser elegível a um financiamento federal, planos
de preparação para emergências estaduais e locais incluam animais de com-
panhia e de serviço em seus planos de evacuação (IRVINE, 2007).
Heath, Vocks e Glickman, em 2000, já mostravam que a razão mais co-
mum dada por aqueles que não evacuaram seus animais de estimação era a de
que os donos pensavam que não ficariam longe por muito tempo e que a área
evacuada era segura para o animal. Os autores afirmavam que, conscientizando
a população de que os animais devem ser evacuados sempre que possível, pro-
vavelmente, aumentaria o número de animais que estariam a salvo no episó-
dio de desastre. Salientaram ainda que “tutores de animais e gestores de
emergência devem entender que a maioria das condições que não são seguras
para as pessoas também não são seguras para seus animais” .2

2. Tradução nossa.

– 288 –
Appreciating the nature of humans’ attachment to their animals and
the meaning of this relationship in different sociocultural and
occupational groups has enormous practical implications for disaster
management. The importance of these and other issues related to
animals in disaster planning is only a very recent phenomenon.
In the past, animals, whether pets, livestock, or in the wild, have
often been considered only as an afterthought or have even been
overlooked by emergency planners and the general public (HALL et
al., 2004, p. 368, grifo nosso).

Em seu estudo sobre sequelas psicológicas em pessoas afetadas e so-


breviventes do desastre relacionado ao furacão Katrina, após a perda de um
pet, Hunt e seus colegas concluíram que a perda de um animal de estima-
ção para alguns teve um impacto maior em psicopatologias do que ser des-
locado de sua casa.
Comparing individuals who lost their pets (but kept their homes)
and those who lost their homes (but kept their pets) yielded effect
sizes of 0.8 for depression and 0.58 for peri-traumatic dissociation.
These are large enough to suggest that for some individuals, losing
a pet is a more important predictor of psychological outcome than
losing one’s home (HUNT et al., 2008, p. 115).

No caso do desastre relacionado ao furacão Katrina, como vários es-


tudos demonstram ocorrer em desastres em geral, muitas pessoas optam por
permanecer em suas casas com seus animais de estimação quando sabem
que seus animais não poderiam acompanhá-los, o que complica ainda mais
os esforços de resgate humanos.
Owning pets appeared to be the most significant reason why house-
holds without children failed to evacuate. For every additional dog or
cat owned, such households were nearly twice as likely to fail to
evacuate compared with petowning households with children. In these
childless households, pet owners were apparently willing to jeopardize
their lives to stay with their pet(s) (HEATH et al., 2001, p. 663).

Heath (2000) descobriu que mais de 80% das pessoas que retornam
prematuramente a uma área evacuada depois de a terem deixado o fazem
para resgatar seu animal de estimação. Em outro estudo (LINNABARY et
al., 1993 apud HUNT et al., 2008), as pessoas que viviam perto de uma base
do Exército, num local de armazenamento de gás asfixiante e de agentes
alucinantes, e que estava programado para ser destruído, foram solicitadas
a priorizar suas ações para uma evacuação hipotética. Nesse caso, proprie-

– 289 –
tários de cavalos citaram como a sua maior preocupação a segurança da
família, seguida pela preocupação com seus cavalos. Três quartos dos mo-
radores abordados participantes declararam que a sua decisão de evacuar
seria influenciada pela segurança de seus cavalos e quase metade deles deu
prioridade aos seus animais.
According to several studies, animal owners will risk danger to
themselves and may not evacuate disaster areas unless they are
assured of their animals’ well-being. Moreover, the most common
reason people return to an evacuation site is to rescue their pets
(HALL et al., 2004, p. 369).

Além desses, outro aspecto do caso do desastre em Nova Orleans foi o


trauma emocional de pessoas que foram forçadas a deixar seus animais de
estimação para trás. O sentimento de culpa, a ansiedade da separação e a
pressão da família, amigos e mídia, são as potenciais motivações para que
o dono do animal volte prematuramente para resgatá-lo.3 O sofrimento de
dezenas de milhares de animais também tem sido agravado pelos riscos de
saúde e segurança que resultam de tantos animais abandonados em uma
área que foi devastada num desastre.
Em seu estudo, Heath e seus colegas (2001) chegam à conclusão de que,
para superar o alto risco de fracasso na evacuação em famílias que possuem
animais, a facilitação da evacuação dos mesmos deve se tornar uma priori-
dade no planejamento, diferente do que era no passado recente. Ele conclui
que o maior problema para a evacuação de animais tem sido logístico, resul-
tante da inabilidade de transportar os pets, pois ele descobre que poucos se
preocupam em como acomodá-los provisoriamente em outro lugar. Desafios
logísticos específicos que os proprietários enfrentam variam com o tipo de
animal. Heath (2000) afirma, por exemplo, que os desafios de evacuação de
animais de fazenda dependem do número e do tamanho dos animais assim
como do grau de dificuldade de manipulação de forma fácil e segura. A
logística de evacuação de gatos pode ser mais difícil do que para os cães, por-
que gatos se assustam facilmente e podem se esconder ou se tornarem irascí-
veis. Evacuação de peixes, répteis e anfíbios podem apresentar problemas
logísticos únicos associados com o tamanho e o peso de aquários e terrários
e, ainda, devido a dependência que os mesmos têm de energia elétrica para
se esquentar. “Portanto, os programas destinados a melhorar a segurança
pública e animal em desastres devem incentivar e facilitar a evacuação de pets
no momento da evacuação das famílias e incentivar a posse responsável de
animais em outros momentos” (HEATH et al., 2001, tradução nossa).

3. HEATH et al., 2000.

– 290 –
Logistical challenges to moving animals in a disaster may either
discourage pet owners from evacuating themselves, delay their
evacuation, or cause them to leave their pets behind. Evidence of
human evacuation failure because of animals is supported by many
anecdotal reports (HEATH, 2000, p. 6).

Voltando ainda ao caso do desastre relacionado ao furacão Katrina,


temos o agravante de que quase dois terços das vítimas no estado da
Lousiana tinham mais de 60 anos.4 Como McCann (2011) aponta em seu
estudo: “The elderly will frequently refuse to evacuate if it entails leaving their pets
behind”, ou seja, esse pode ter sido um fator determinante para o aumento
das vítimas.
Assim como em tantos outros desastres, em Nova Orleans, a falta sen-
tida pela sociedade civil de medidas governamentais voltadas à população
animal é em parte sanada por entidades e grupos organizados a partir da
iniciativa particular voluntária.
Outra questão que aparece nos estudos (CHAFFEE, 2006; MCCANN,
2011) é a de que a equipe de atendimentos de emergência e de saúde é mais
propensa a aparecer para trabalhar quando abrigo e suporte familiar, como
creches e locais que cuidam de animais de estimação são fornecidos. En-
fermeiras, quando questionadas sobre a decisão de comparecer ao trabalho
durante um desastre, responderam que, caso seus animais não tivessem
cuidados adequados, não compareceriam. O implemento de serviços de
cuidados para animais de companhia passa a ser uma necessidade para au-
mentar o número de agentes da saúde que possam oferecer assistência com
as vítimas de um desastre.
An employer should develop a plan for employee pet care in advance
of a disaster. Pets require space, nutrition, waste management, and
monitoring. During the response to Hurricane Katrina, one nurse
executive I know turned an inpatient unit into a pet-care unit, using
volunteers to staff it. This significantly increased the number of
nurses who reported to duty. The executive believes the pet care plan
saved lives by making more nurses available to patients during the
disaster (CHAFFEE, 2006, p.56).

Irvine (2004) compara como o desastre relacionado à passagem de dois


furacões distintos afetou animais de estimação. O primeiro desastre se deu com
a passagem do furacão Andrew que afetou o sudeste da Flórida, em 1992, quan-

4. BULLARD, 2006.

– 291 –
do ainda não havia nenhum planejamento para os animais de companhia e o
segundo desastre se deu com a passagem do furacão Charley, que afetou o su-
doeste da Flórida em 2004. No primeiro, estima-se que 1.000 cães e gatos fo-
ram sacrificados apenas por falta de espaço para abrigá-los. No segundo, muitos
animais também ficaram desabrigados, porém, nos anos entre os dois furacões,
esforços para informar o público sobre o que fazer com os animais em um de-
sastre aumentaram e organizações nacionais de proteção aos animais desen-
volveram planos de emergência. O estudo identificou uma melhora significativa
desde a passagem dramática do primeiro furacão: Após a passagem do segun-
do furacão, apenas dois cães foram sacrificados e muitos foram reunificados com
seus guardiões ou encontraram novos lares. A rede interorganizacional que res-
pondeu às necessidades animais, no segundo caso, era socialmente forte e com-
plexa. Um dos problemas encontrados foi o de que, apesar de uma equipe de
voluntários ter sido treinada para responder às necessidades dos animais, muitos
dos cidadãos componentes da equipe estavam enfrentando suas próprias cri-
ses devido ao desastre e fizeram da reconstrução de sua casa e da proteção à
sua família suas prioridades. Ou seja, novamente surge a necessidade de se cri-
ar serviços oficiais de suporte às equipes voluntárias de apoio para não haver
déficit em um contingente de agentes qualificados durante o episódio de um
desastre. Irvine aponta que no desastre relacionado ao furacão Charley ainda
havia a necessidade de se reduzir o número de animais perdidos e, para a au-
tora, uma solução seria aumentar o número de abrigos para humanos com uma
área próxima designada para animais.
Heath (2000) chama atenção, ainda, para uma vantagem que pode-
ria ser explorada ao se levar em consideração o vínculo entre humanos e não-
humanos. Baseado na informação de que famílias sem crianças tem menos
propensão a evacuar do que famílias com crianças, devido a maior atenção
dada aos interesses de sua criança, é possível que famílias com animais pres-
tem mais atenção a avisos de evacuação. Ainda mais se esses avisos indica-
rem os perigos para os animais que não forem evacuados. Assim, dando
atenção às necessidades dos animais, se aumentaria os índices de evacua-
ção humana num contexto de emergência.
Brackenridge e colegas (2012) contam que o desastre relacionado ao
furacão Katrina, embora não fosse o primeiro desastre em que animais foram
deixados dentro de uma zona de impacto e fosse necessário resgate, marcou
o início de uma maior sensibilização do público para com a situação dos ani-
mais de companhia e seus proprietários inseridos em um cenário de devasta-
ção. Mídia, documentários e livros de não ficção voltaram sua atenção para
a perda de animais, seu resgate e os esforços de reunificação destes com seus
donos. Animais de estimação tirados à força de crianças e idosos tornaram-
se parte da memória coletiva do desastre relacionado ao furacão Katrina.

– 292 –
Entretanto, a autora também afirma que a lei federal PETS que surge após
este desastre ainda não têm como objetivo o bem-estar animal, mas sim foca
em evacuar e abrigar animais de estimação como forma de tornar a evacua-
ção humana mais eficaz. Amy Cattafi (2008) vai afirmar que, embora essas
novas leis federais, estaduais e locais tragam mudanças tão necessárias na área
dos direitos animais, a mudança é insuficiente. A autora explora as lacunas
ainda remanescentes da lei atual estadunidense que não endereça questões
como as legislações específicas para diferentes raças (breed-specific legislation)
de cada estado. Podemos ver que, mesmo em um país que já começou a se
preocupar com o planejamento para animais em situações emergenciais, ainda
há várias questões para serem debatidas e aprimoradas. A literatura sobre
animais em desastres ainda aponta um longo caminho a ser percorrido, tan-
to pelo ente público, como muito ainda há para ser estudado. Contudo, uma
coisa é certa: animais influenciam decisões políticas. Essas podem ser influ-
ências negativas em relação à operacionalidade das autoridades competen-
tes, atrapalhando esforços de resgate e colocando vidas humanas em risco.
Ou, pode ser utilizada como uma influência positiva quando o poder públi-
co inclui animais em seus planejamentos e esses se tornam mais um incenti-
vo a seguir as recomendações das autoridades.
As imagens mostradas na mídia corroboram com os resultados das pes-
quisas. O grande número de animais abandonados nas ruas e o fracasso da
população em identificar e vacinar seus animais, são agravantes. Condições
pré-existentes que vulnerabilizam a população animal determinam as con-
sequências ainda mais nefastas de um desastre sobre ela, muito mais do que
condições que surgem como resultado deste momento de crise aguda. O aban-
dono é uma das maiores consequências de desastres para os animais. Heath
(2000) identificou que proprietários de animais que eram clientes regulares
de serviços veterinários eram menos propensos a ter perdido seu animal em
um incêndio, e tutores que procuraram seus animais em várias páginas de
internet logo após o incêndio eram mais propensos a ser reunificados com seus
animais. Os fatores que influenciam donos a entregar seus animais a abrigos
humanitários são os mesmos em períodos de desastre ou não-desastre: pro-
blemas comportamentais, a idade e o status de esterilização, assim como
mudança de residência do dono. Gatos são mais propensos a serem abando-
nados, mantendo assim a proporção de gatos em relação a cães entregues a
abrigos humanitários cotidianamente. A prevenção em relação a animais em
contexto de desastre passa por políticas públicas que tenham como objetivo
o controle populacional através da esterilização, o cadastro dos animais e de
seus tutores, a identificação dos animais, campanhas de vacinação e de ado-
ção de animais abandonados, atendimento veterinário a baixo custo, entre
outros. Com o poder público oferecendo serviços básicos de qualidade, cria-
se uma rede de apoio ao tutor do animal, fator que provavelmente resultaria

– 293 –
em uma diminuição nos casos de abandono. Com menos abandono, a popu-
lação animal se tornaria menos vulnerável a fatores externos. Um segundo
passo seria a inclusão de animais nos planos emergenciais governamentais,
abrindo o debate sobre qual seria o melhor método de fazê-lo.
O vínculo entre humanos e não-humanos afeta respostas psicológicas
e comportamentais em desastres. A dor experimentada ao perder um ani-
mal de estimação ou rebanhos mantidos por gerações é frequentemente não
reconhecida ou minimizada em nossa sociedade. A preparação eficaz e pres-
tação de serviços de saúde mental após desastres é parte integrante da res-
posta da saúde pública (HALL et al., 2004). Esse é outro aspecto que deve
ser considerado. O Brasil ainda não está sequer remotamente preparado para
cumprir com essas demandas de prevenção, preparação, resgate, reabilita-
ção e recuperação de animais. Veremos, a seguir, o que a legislação brasilei-
ra determina a respeito do tratamento aos animais.

LEGISLAÇÃO
Com o objetivo de entender a que passo o Brasil está na questão ani-
mal, é necessária uma análise das leis brasileiras atuais. Com esse propósi-
to, foi realizada uma entrevista com a advogada Vânia Rall, que é membro
do Núcleo de Direito e Ética Animal do Diversitas - Núcleo de Estudos das
Diversidades, Intolerâncias e Conflitos, filiado à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.
Segundo Rall, os animais são protegidos pela Constituição da Repú-
blica Federativa do Brasil desde 1988. O artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII
impede que eles sejam submetidos à crueldade.
Art. 225 - Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente
equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia quali-
dade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever
de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.
§ 1 º - Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao Po-
der Público:
VII - proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práti-
cas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a
extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade.
(BRASIL, 1988).

Os animais também são tutelados do Estado (Decreto nº 24.645, de


1934). São citados na Lei de Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 1998),
que trata da aplicação da pena e, no Código Civil, são considerados bens
semoventes. A seguir, trechos selecionados do Decreto de 1934.

– 294 –
Decreto nº 24.645, de 10 de Julho de 1934, de Getúlio Vargas
Estabelece Medidas de Proteção aos Animais
Art. 1º
Todos os animais existentes no país são tutelados do Estado.
Art. 3º
Consideram-se maus tratos:
II. Manter animais em lugar anti-higiênicos ou que lhes impeçam a
respiração, o movimento ou o descanso, ou os privem de ar ou luz;
V. Abandonar animal doente, ferido, extenuado ou mutilado, bem
como deixar de ministrar-lhe tudo o que humanitariamente se lhe
possa prover, inclusive assistência veterinária;
Art. 17º
A palavra animal, da presente lei, compreende todo ser irracional,
quadrúpede ou bípede, doméstico ou selvagem, exceto aos daninhos.
(BRASIL, 1934).

Animais de companhia e de criação precisam da proteção do poder


público visto que não podem exigi-lo por si mesmos. Mas, não é isso que
vemos no cotidiano ou em uma situação de crise. A falta de autoexpressão
dessa população a faz invisível para o poder público que não a inclui em
planos de contingência e protocolos de atendimento. Rall afirma: “Em tese,
o Poder Público, deveria, sim, se responsabilizar pelos animais, mas, na prá-
tica, além de não estar bem definida essa responsabilidade, não há como
saber, em diversas situações, que órgão do Poder Público deveria ser respon-
sabilizado”. Ao analisar as leis brasileiras notamos essa lacuna: há uma fal-
ta de esclarecimento sobre quais seriam os deveres do Estado para com os
animais. A relação humano e não-humano ainda não está inteiramente
abarcada, deixando em aberto muitas das obrigações do ente público e fa-
lhando em considerar cenários prováveis. Algumas leis, em sua descrição,
simplesmente não enquadram categorias relevantes de animais na socieda-
de, como os de companhia ou os animais de consumo.
Os animais, assim como os seres humanos, deveriam, a meu ver, ter
assegurados estes direitos: 1) à vida; 2) à liberdade; 3) à integridade
física e 4) à integridade psíquica. Porém, na prática, isso não ocor-
re; basta, por exemplo, pensar no chamado animal de consumo, que
tem esses quatro direitos totalmente desconsiderados (Vânia Rall,
em entrevista realizada em maio de 2013).
O arcabouço legal aponta para uma relação de deveres do Estado para
com os animais, porém, ao mesmo tempo em que sinaliza essa relação, a

– 295 –
torna nebulosa, pois não leva em consideração os papéis historicamente
adquiridos por eles. A grande participação destes animais na realidade so-
cial concreta brasileira não é proporcionalmente, nem devidamente repre-
sentada pela legislação que, por não esclarecer totalmente quais são as suas
responsabilidades frente a esses, cria lacunas nos direitos e nos deveres da
relação entre humanos e não-humanos. Ao ser humano, caberia se respon-
sabilizar pelo bem-estar dos animais de companhia e de criação, que são
híbridos. Não fazem parte da natureza em oposição ao ser humano, mas
integram os dois mundos.
Essa obscuridade em torno do tema cria um jogo de enunciados que
impede que o Estado seja sujeito de responsabilidade. As funções dos agentes
públicos, por serem fragmentadas, possuem a autonomia institucional de
“decidir convenientemente quando considerar e quando olvidar os fatos”
(VALENCIO, 2010, p. 757). Com uma legislação incompleta, os órgãos
públicos não têm suas responsabilidades em relação aos animais claramen-
te delineadas. Essa falta de clareza permite que ela não seja aplicada igual-
mente a todas as espécies de animais ou casos, distinguindo através de
relações de poder que negligenciam o cumprimento da lei pelos interesses
de grupos com outras lógicas operativas.
A obscuridade da legislação leva a não existência de diretrizes defini-
das para lidar com animais em uma situação de crise. Estes são ignorados e
as perdas e danos que sofrem não são atribuídos a ninguém. Consequen-
temente, temos pouquíssimas menções ao trato de animais em cartilhas e
manuais da defesa civil brasileira. Assim, a realidade concreta dos animais
em um contexto de desastre é desoladora, havendo grandes perdas e pou-
cas mobilizações do Estado frente a elas.

VISÃO INSTITUCIONAL DOS ÓRGÃOS DE EMERGÊNCIA

Ao buscar cartilhas e manuais sobre como proceder em uma situação


de evacuação, resgate e também na gestão de abrigos temporários, foram
encontradas pouquíssimas menções aos animais, sejam eles domésticos ou
de criação. Essa busca se deu através da internet, nas páginas da defesa ci-
vil de cada estado do país, além de outros guidelines internacionais. O Rio
de Janeiro é um dos estados mais avançados em relação ao desenvolvimen-
to de manuais e cartilhas pela Defesa Civil,5 sendo essa uma das razões pela
qual foi o estado escolhido para o estudo de caso desse trabalho.

5. Foi realizada uma pesquisa documental das cartilhas e manuais emitidos também pelos
estados de São Paulo e de Santa Catarina, em ambos foi encontrada uma menor quanti-
dade de menções e/ ou recomendações em relação às ações voltadas a população animal
em caso de situações de emergências.

– 296 –
Foram verificados: o manual “The Sphere Project - Humanitarian Charter
and Minimum Standards in Humanitarian Response” (2011); o Programa Naci-
onal de Vigilância em Saúde Ambiental dos Riscos Decorrentes dos Desas-
tres Naturais – Vigidesastres (BRASIL, 2005); o Manual de Administração
para Abrigos Temporários (RIO DE JANEIRO, 2006); os Planos de Con-
tingência para o verão de 2011/ 2012 e para o verão de 2012/2013 e o Pla-
no de Contingência da Família (RIO DE JANEIRO, 2013). Entre essas
cartilhas e manuais, somente dois (RIO DE JANEIRO, 2006, 2013) fazi-
am menção à população animal, e destes, somente o manual de 2006 é
direcionado aos agentes que atuam em um desastre, pois o documento de
2013 tem como objetivo ser um guia prático para a sociedade civil em ge-
ral frente aos desastres.
No Manual de Administração para Abrigos Temporários encontramos
muitas informações que são somente sugestões, pois não foi elaborado um
procedimento básico para que de fato as providências possam ser realiza-
das. A responsabilidade pela área designada aos animais é referida como
sendo da vigilância sanitária apenas, sem indicar quem será responsável por
garantir o bem-estar desses animais. Além disso, somente os animais per-
tencentes às pessoas desabrigadas poderão ser alojados no mesmo abrigo
onde estão os seus tutores, confirmando o entendimento de que não há um
lugar designado especificamente a eles. Animais errantes, não importando
suas condições ou pelo o que possam ter passado, sem um tutor presente,
serão entregues a quem quer que os queira, pois órgãos de proteção aos ani-
mais ou similares são notadamente grupos organizados da sociedade civil, que
em geral não recebem apoio financeiro ou de qualquer tipo do Estado e não
seguem normas rígidas de funcionamento. Vemos aqui um exemplo literal
de como a falta de autoexpressão da população animal a torna invisível aos
olhos do ente público.
Na pesquisa documental, foi encontrado, também, o plano de contin-
gência desenvolvido pela prefeitura do Rio de Janeiro juntamente com a
Secretaria de Estado de Defesa Civil (SEDEC) para o verão de 2011/2012.
Este que prevê exercícios simulados com um sistema de alerta e alarme co-
munitário, para que a comunidade seja mobilizada e desocupe suas casas,
simplesmente não faz nenhuma menção de como proceder com animais que
também habitam a comunidade. É importante mencionar que foram encon-
tradas informações na internet sobre um folheto que haveria sido distribu-
ído durante o projeto piloto para a população de uma comunidade do Rio
de Janeiro, em que havia a seguinte recomendação: “Não leve animais do-
mésticos. Deixe-os em casa com água e comida”. Com esse folheto, vieram
protestos dos grupos de proteção animal que acusaram a prefeitura de cau-

– 297 –
sar “prejuízo incalculável para todos nós que educamos uma sociedade in-
teira sobre o respeito à vida”.6 Após a situação, a seguinte nota foi emitida:
Correção importante: A Prefeitura e a Defesa Civil pedem descul-
pas pelo mal-entendido gerado pela informação contida no folheto
de alerta distribuído nesta comunidade. A informação em questão
“Não leve animais domésticos” em um momento de alerta deve ser
desconsiderada e já foi retirada dos novos informativos. No entan-
to, sugerimos que todo animal doméstico tenha uma identificação,
de forma que possa ser encontrado facilmente. Mais uma vez, pedi-
mos desculpas pelo mal-entendido (Prefeitura do Rio de Janeiro;
Defesa Civil do Rio de Janeiro, 2011).

Entretanto, o que ocorreu, em seguida, foi a completa omissão de qual-


quer recomendação oficial em relação aos animais. O novo folheto trazia
somente, como alteração, a ausência da frase que endereçava o que fazer
com os animais. Ao desinformar e depois pedir desculpas, fornecendo ou-
tras sugestões que não oferecem uma solução real para a questão, as auto-
ridades estão confirmando o fracasso em garantir a segurança de todos.
Ressaltamos que o munícipio do Rio de Janeiro é um dos únicos que pos-
sui uma Secretaria Especial de Promoção e Defesa dos Animais (SEPDA),
porém essa não aparenta ter realizado nenhum tipo de integração com a
defesa civil nesse projeto.
A falta de integração das instituições permite que as autoridades uti-
lizem os discursos de fatalidade; assim, a culpa não recai sobre nenhum órgão
específico. “O sofrimento social não tem agentes para os quais se dirigir, a
vocalização da dor é tida como uma lamúria que, sem interlocutor, precisa,
logo, cessar.” (VALENCIO, 2010, p. 757).
A fragmentação dos poderes coloca animais domésticos em uma situa-
ção de descaso. Estes não se enquadram à categoria de animais silvestres,
em extinção e nem mesmo como parte do meio ambiente. Temos no Brasil
um Ministério que têm como objetivo a garantia do usufruto do meio am-
biente pelo ser humano, entretanto não há um órgão nacional voltado es-
pecificamente para estabelecer normas, programas e que destine verbas para
a garantia do direito animal, além de outros em que animais aparecem como
um elemento da atividade econômica ou como uma questão de saúde pú-
blica. Animais domésticos são somente referidos pelos Centros de Contro-
le de Zoonoses (CCZ) municipais que atuam, geralmente, em situações

6. Citação retirada de um blog de proteção animal, administrado pela Sociedade Educacio-


nal “Fala Bicho”, disponível em: http://www.ogritodobicho.com/2011/01/prefeito-do-rj-
lamentamos-mas-vamos.html Acessado em 21 de maio de 2013.

– 298 –
precárias, na remoção e eliminação de animais domesticados das ruas, não
fornecendo nenhuma qualidade de vida ou estrutura ideal. O mesmo pode
ser dito sobre animais de criação, que não possuem um órgão público desig-
nado somente para garantir um o tratamento condigno. No Brasil, o órgão
de regulamentação é o Ministério da Agricultura, que é também responsável
pela gestão das políticas públicas de estímulo à agropecuária e pelo fomen-
to do agronegócio. Há uma contradição conceitual quando o mesmo órgão
público considera animais de criação como matéria-prima de um produto
agropecuário, que vai competir em um mercado, enquanto é responsável por
regulamentar seu bem-estar como ser vivo senciente. Essa incoerência dei-
xa os animais a mercê de decisões baseadas em lógicas de mercado que so-
brepujam seu bem-estar.
Desde a origem da civilização ocidental, a separação do ser e do ente
que opera o pensamento metafísico preparou o caminho para a
objetivação do mundo. A economia afirma o significado do mundo
na produção; a natureza é coisificada, desnaturalizada de sua com-
plexidade ecológica e convertida em matéria-prima de um processo
econômico; e os recursos naturais tornam-se simples objetos para
exploração do capital (LEFF, 2003, p. 3).

ESTUDO DE CASO: TERESÓPOLIS – RJ (JANEIRO DE 2011)


Teresópolis é um município localizado na microrregião Serrana do Rio
de Janeiro e, em 2010, possuía uma população de 163.746 habitantes. Na
madrugada do dia 12 de janeiro de 2011, a tempestade aliada ao tipo de
ocupação do solo resultou com que rochas e lama rolassem, levando consi-
go tudo que havia pelo caminho. Os rios e córregos da região aumentaram
de volume e transbordaram, chegando até a se juntarem em alguns pontos.
Deslizamentos e inundações destruíram bairros quase inteiros. A contagem
de falecimentos nesse episódio parou em cerca de novecentas pessoas, po-
rém moradores da Região Serrana questionam esse número. Alguns dos
bairros mais afetados de Teresópolis foram: Campo Grande, Posse, Caleme,
Cascata do Imbuí, Poço dos Peixes e Santa Rita.
Maria Elisabete L. Filpi, que é conhecida localmente como Bebete, é
uma advogada, funcionária pública aposentada, responsável atualmente
pelo Grupo Estimação, um grupo de proteção animal e meio ambiente, e
pelo SOS Animal que é um santuário animal construído há mais de uma
década em Teresópolis. Bebete, com a ajuda de voluntários, resgatou e aco-
lheu cerca de dois mil animais diversos na tragédia de 2011. Um docu-
mentário sobre os esforços de resgate de animais foi realizado por Flávia
Trindade e se chama “O Abrigo” (2011). Este documentário foi utilizado

– 299 –
como fonte de informações para esse estudo de caso, além da entrevista com
Bebete, que realizamos em nossa visita a Teresópolis em janeiro de 2013,
dois anos após o início do desastre. A entrevista foi uma conversa descon-
traída que foi gravada e depois transcrita. Bebete, na época, possuía um sítio
que herdou do falecido marido no qual abrigava já, antes do desastre, ani-
mais recolhidos da rua. Com o advento das chuvas na madrugada de 12 de
janeiro, Bebete ficou apreensiva com o barulho e densidade da tempestade
e, no dia seguinte, resolveu ir atrás de informações, pois a cidade estava sem
luz e sem serviços telefônicos. Bebete conta que havia um silêncio sepul-
cral na cidade e só se ouviam sirenes. A única informação era a de que ha-
vido morrido muita gente, e Bebete, que sempre se sensibilizou com animais
vítimas de crueldade, pensou nos animais dessas regiões afetadas e suspei-
tou que esses não seriam socorridos pelas instituições públicas. Assim, de-
cidiu ir até os bairros afetados para ajudar os animais. “Eu crente que era
assim pegar um cachorrinho como a gente pega sempre na rua” (Bebete Filpi,
em entrevista realizada no dia 12 de janeiro de 2013).
Frente à devastação encontrada, Bebete buscou o poder público, fez
contato com a defesa civil, que respondeu que não era o momento de pen-
sar nos animais. Pediu alguma ajuda com transporte oficial, para que ela
mesma pudesse começar os esforços de resgate e cuidados; porém, o melhor
que pode receber na ocasião foi uma denegativa sem agressividades.
Teve um local que o cara bateu a porta na minha cara e mandou eu
ir pro hospício, tipo assim, ‘vai pro hospício, vai te catar, você é lou-
ca, como é que uma louca vem aqui, nós não sabemos a dimensão e
tá pensando em cachorro’ (Bebete Filpi em entrevista realizada no
dia 12 de janeiro de 2013).

A partir desse relato, vemos que não só o poder público não estava
realizando nenhuma medida voltada para o resgate e reabilitação dos ani-
mais, como também havia parcelas deste poder que se manifestavam com
violência simbólica, agredindo verbalmente quem estava se disponibilizando
para realizar essa tarefa também necessária. A legitimação da prática de
abandono é o que permite que a existência de animais em um contexto de
desastres seja ignorada totalmente, pelo menos nos primeiros momentos da
crise aguda, pelas autoridades competentes. Não há uma exigência para esses
órgãos públicos agirem diferentemente, pois faltam diretrizes de como pro-
ceder para lidar com a população animal afetada. Não é atribuição clara de
nenhuma autoridade, apesar de constar na Constituição que eles são tute-
lados do Estado. Essa incoerência e a legitimação do abandono abre espa-
ço para o poder público não se responsabilizar por eles e até mesmo para
agentes públicos destratarem atores sociais preocupados com a questão.

– 300 –
Como não há delimitação de quais são as ações obrigatórias de atendimen-
to à população animal e quem deveria realizá-las, nem mesmo a sociedade
civil tem ferramentas para cobrar do ente público ações em benefício dos
animais.
As pessoas esquecem, eu fui pegando os animais, levando pro galpão,
eu e as pessoas que sou eternamente grata que ajudaram a resgatar,
eu não pedi pra assumirem, eu fiz a loucura de... Até talvez por não
ter conhecimento da dimensão da tragédia que eu achei que era as-
sim uns trinta cachorros e foram mil e tanto cachorros. [...] O que
acontece é o despreparo das autoridades públicas, e eu fiquei recolhen-
do os animais eu não tinha a menor noção da dimensão [...] e eu não
tinha noção, eu não pedi pra que ficassem com os animais, eu pedi
pra que me ajudassem a resgatar, pensei que seria fácil assumir essa
quantidade de animais depois eu vi a dimensão. O que aconteceu, eu
peguei os animais, com o tempo as pessoas vão esquecendo, outras
coisas acontecem, eu fui ficando com os animais, em abril de 2012
teve outra chuva aqui, mais animais, morreu gente, ninguém lembrou
(Bebete Filpi em entrevista realizada no dia 12 de janeiro de 2013).

Há aqui outro aspecto importante desse caso, que são as dificuldades


que esses grupos organizados de proteção animal enfrentam. Vemos que
Bebete toma para si a responsabilidade que deveria ser do poder público.
Sua motivação é sua sensibilidade ao sofrimento dos animais e a princípio
ela teve ajuda de muitos que compartilham de sua sensibilidade. Bebete
improvisou um abrigo em um galpão para começar a colocar os animais
sobreviventes e pediu ajuda através da internet. Entretanto, o sofrimento
destes animais não acaba ali, no seu recolhimento. Suas histórias sofridas
os deixaram com traumas e muitos choravam o luto da perda de seus tuto-
res. A responsabilidade pelos animais, assim como o desastre, não acaba
quando não há mais holofotes da mídia na destruição havida.
Outra questão foi a de os voluntários e protetores que se deslocaram
para realizar resgates na Região Serrana não tinham a possibilidade de pa-
rar com as atividades em suas próprias cidades. Tanto Bebete quanto os
outros voluntários, que em geral eram também protetores, já possuíam,
anteriormente ao desastre, animais sob seus cuidados. A crise crônica de
abandono não cessa quando uma crise aguda ocorre. As dificuldades só
aumentam e se acumulam.
Bebete contou-nos sobre as dificuldades dos resgates de animais em
cada bairro de Teresópolis e dos obstáculos criados pelo próprio poder pú-
blico para quem estava tentando resgatar os animais nas áreas afetadas.

– 301 –
Aí eles criaram, tipo assim, numa parte próxima ao bairro, no con-
domínio, um estacionamento pra retirada de corpos, de sobreviventes
e de coisas pessoais das pessoas. Os animais, não tinham chance.
[...] Mas eles não deixavam a gente parar perto, então a gente para-
va assim dois, três quilômetros da área de risco, e andava dois, três
quilômetros na área de risco, que as autoridades davam preferên-
cia para os humanos. Então nós, pegávamos um cão, como foi o
caso do Caramelo, que ela me pediu pra pegar a caixa [...] [para
buscar uma caixa de transporte no carro, você ia] andando isso na
lama, com chuva torrencial, às vezes, você errava, o pé afundava,
vinha lama até a cintura, convivendo com corpos humanos que eram
milhares, então não foi uma coisa assim de você chegar [...] no
Caleme foram mais as pessoas aqui da cidade que começaram a aju-
dar porque a gente conseguiu o galpão. Foi uma coisa horrível, de-
pois em Santa Rita, Poço dos Peixes, aí já tinham tirado todo mundo,
não havia mais a preocupação dos humanos, do resgate dos huma-
nos, que também foi muito precário. Maca improvisada, próprios
moradores que ajudaram... (Bebete Filpi, em entrevista realizada no
dia 12 de janeiro de 2013, grifo nosso).

De acordo com o relato de Bebete, na escala de prioridades do poder


público, os animais estavam abaixo da recuperação de pertences pessoais
dos afetados, ou seja, foram considerados menos importantes do que obje-
tos. O espaço criado para facilitar o acesso ao bairro era negado a esses vo-
luntários que estavam realizando este serviço básico altamente necessário
em uma crise. O ente público não só negou ajuda a esses grupos organiza-
dos que se preocuparam e deram a devida assistência aos animais da tragé-
dia, como também não facilitou a ação dos mesmos nas áreas afetadas e os
sobrecarregou, pois sinalizou que estavam nestes grupos a responsabilida-
de sobre todos os animais vindos daquele desastre de grandes proporções.
Tudo isso, sem direcionar nenhuma ajuda financeira ou estrutura para es-
ses voluntários.
A destruição causada por este desastre foi enorme, alguns bairros, como
o caso de Poço dos Peixes e Santa Rita, que eram regiões rurais, praticamente
deixaram de existir. Não temos nenhuma estimativa do número de animais
que foram perdidos no meio da lama e das pedras. Bebete recolheu, na
medida em que conseguia transportar, todo o tipo de animal, desde cachor-
ros e gatos até tartarugas, coelhos, galinhas, patos e cabras. Animais de gran-
de porte, Bebete afirma que não sobreviveram. Bebete e os voluntários
tiveram que fazer escolhas logísticas, pois não tinham nenhuma ajuda das
autoridades competentes.

– 302 –
Depois dos primeiros dias de ações emergenciais, as autoridades come-
çaram a recolher os animais errantes e levá-los em grande quantidade para
Bebete abrigá-los em seu galpão e fornecer socorro veterinário. “No galpão,
não paravam assim, um carro com um cachorro, eram caminhonetes, pre-
feitura ‘pá’, cachorros vomitando lama, cachorros em estado terminal [...]
e eles continuam... Em relação à cidade é lotada de animais abandonados”
(Bebete Filpi, em entrevista realizada no dia 12 de janeiro de 2013).
Os animais da tragédia, se não fosse pela iniciativa particular de Bebete
e dos outros voluntários, agora se misturariam a milhares de outros animais
em situação de abandono que diariamente eram ignorados nas ruas teresopo-
litanas, assim como ocorre nas demais cidades brasileiras.

CONCLUSÃO
Partindo da literatura sobre o conceito de desastre, focalizamos a natu-
reza fundamentalmente social do mesmo. Buscou-se entender o que torna a
população animal vulnerável a crises agudas, primeiramente reconhecendo
o problema crônico de abandono, dos maus-tratos e da superpopulação de
animais nas ruas brasileiras. A inexistência de órgãos públicos, instituições
ou de verbas destinadas a prover as mínimas condições de sobrevivência aos
animais é um problema crônico. A legislação nebulosa e a naturalização do
abandono legitimam a falta de protocolos de atendimento a essa popula-
ção em crises agudas, como a dos desastres. Por causa da falta de voz polí-
tica, inerente a esta população animal, as autoridades competentes não se
sentem muito pressionadas e responsáveis por ela. Nem mesmo se têm da-
dos precisos sobre danos e perdas relacionados aos animais afetados nos
desastres ou sobre quais são os deveres para assisti-los. Por convivermos com
a prática de crueldade do abandono de animais, rotineiramente, a crise agu-
da não explicita o fracasso do poder público em protegê-los. A indiferença
prevalece e tardamos em nos mobilizar para exigir providências para eles
também. Os animais vivem em parceria com o ser humano e os influenci-
am em múltiplos aspectos nos fenômenos da vida. Os motivos para protegê-
los e estimá-los são inúmeros e de diversas naturezas, mas há uma constante
negligência de seus interesses, o que é desfavorável a todos. A história traz
responsabilidades ao relacionamento entre humanos e não-humanos. Im-
plicações essas sinalizadas pela legislação brasileira quando afirma que to-
dos os animais são tutelados do Estado. Em contrapartida às recomendações
da literatura, analisando a visão institucional do estado do Rio de Janeiro,
vemos uma clara falta de protocolos de atendimento efetivos ou suficien-
tes na contenção de danos e prejuízos aos animais e nessa, que é a unidade
federativa do país que, ao menos, tentou abordar a questão.

– 303 –
Concluímos que, na sociedade brasileira, os animais domesticados e
os de criação enfrentam uma fragilização multidimensional criada pelas
relações sociais institucional e historicamente produzidas. Enquanto essa
crise crônica de abandono se mantiver naturalizada e não for solucionada,
as crises pontuais também não serão ultrapassadas.
Precisamos acordar para o fato de que é chegada a hora de se esfa-
celar os velhos tabus. A vida é um bem genérico e, portanto o direi-
to à vida, constitui um direito de personalidade igualmente do
animal, assim como do homem. O animal, embora não tenha per-
sonalidade jurídica, possui sua personalidade própria, de acordo com
sua espécie, natureza biológica e sensibilidade. O direito à integri-
dade física é imanente a todo ser vivo, e está umbicado à sua pró-
pria natureza, indiferentemente de ser humana ou não humana,
silvestre ou doméstica (DIAS, 2007, p.167).

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– 306 –
CAPÍTULO XII

DIMENSÕES SOCIAIS E DE SAÚDE


ENVOLVIDAS NO CONTEXTO DA SECA:
A PESSOA IDOSA NO CERNE DA QUESTÃO

Aline Silveira Viana

CONSIDERAÇÕES INICIAIS

O Estado da Paraíba é um dos estados mais afetados pelos desastres


na região nordeste, estando em 2º lugar, segundo o levantamento realiza-
do por Valencio (2012a), referente ao período de 2003 a 2010. Mas afinal,
o que é o desastre?
O desastre se configura enquanto manifestação de três crises que ocor-
rem simultaneamente na sociedade. Essas crises se expressam tanto por meio
de acontecimentos na esfera pública, quanto no âmbito privado. Dentre
essas crises podemos destacar a crise civilizacional, a crise crônica e a crise
aguda. A crise civilizacional se manifesta no plano global, por meio de uma
racionalidade vinculada ao modo de produção capitalista, favorecendo os
detentores de meios de produção e de capital, criando as margens.1 A crise
crônica parte de um enfoque histórico-regional e é o processo nacional de
manutenção das injustiças e desigualdades sociais pelo qual a situação da
crise aguda é produzida. A crise aguda, por sua vez, ocorre no plano local,
com a presença do fator de perigo, como a seca e as enchentes, por exem-
plo, trazendo à mostra as injustiças sociais que permaneciam naturalizadas
no corpo social (VALENCIO, 2012b).
Para Oliver-Smith (1998, p. 186), o desastre seria um processo envol-
vendo a combinação de um agente “potencialmente destrutivo do ambien-
te natural, modificado e/ou construído e uma população em uma condição
de produção social e econômica de vulnerabilidade”.

1. Uma concepção importante sobre as margens, dentre outras, é que as margens não dizem
respeito apenas a espaços periféricos. Nas margens há a negação de direitos e ações políti-
cas e econômicas. Cf. DAS, V.; POOLE, D. El estado y sus márgenes: Etnografías compa-
radas. Traducido por María Daels, Julia Piñeiro. Cuad. antropol. soc., n.27, p.19-52, 2008.

– 307 –
Os desastres, dentre eles os relacionados às secas, podem afetar diver-
sas dimensões da vida humana, como a psicológica, social, emocional, bio-
lógica, econômica, político-institucional e ambiental, visto que a afetação
se dá de forma multidimensional (VALENCIO, 2012a). Vale ressaltar que
a seca, assim como outros fenômenos referentes ao ciclo hidrológico, podem
ou não desencadear um desastre. A situação desencadeada por esse fenô-
meno torna-se um desastre quando pessoas são afetadas, bens materiais e
imateriais destas são postos em risco, assim como vidas humanas e animais
pertencentes a sua rede de suporte social. E, soma-se a essa situação, quan-
do as estratégias do meio social para lidar com o fenômeno perigoso e com
as demandas emergentes do segmento afetado falham de forma sistemáti-
ca (VALENCIO, 2014).
Os afetados nos desastres, como descrevem Valencio, Siena e Mar-
chezini (2011, p.28), são os que “sofrem, direta ou indiretamente, qualquer
tipo de dano”, já os desalojados e desabrigados são aqueles cuja afetação se
configura “centralmente na dimensão da vida privada em decorrência da
danificação severa ou destruição da moradia”.
A multiafetação nos desastres ocorre de modo que as relações de tra-
balho, de saúde, segurança alimentar se modificam, abruptamente, para pior,
com o rompimento da rotina. O desastre é assim, similar a outros proces-
sos, como os que Martins (2003) enfatiza e onde há uma cruel nulificação
do outro, ancorada na injustiça estrutural, em que o indivíduo convive cons-
tantemente com o medo de ser descartado e banalizado (MARTINS, 2003).
Para Valencio (2012a), a banalização da ocorrência dos desastres vin-
cula-se a um processo intensivo de indiferença social frente ao sofrimento
alheio. E, que essa indiferença estrutural é baseada em práticas de contro-
le, em que se retorna à barbárie, que é, “uma forma perversa de univer-
salização: tudo o que não se identifica com a peculiaridade dada é resto
indiferenciado, irrelevante, indiferente” (COHN, 2004, p. 85).
Especificamente com os segmentos considerados vulneráveis, no caso
dos desastres, a condição humana e a aspiração a uma vida digna ficam ainda
mais fragilizadas quando associadas com o descaso público, embora haja leis
que visem à proteção desses segmentos, como, entre outros, o de idosos. Para
fins legais, segundo o Estatuto do Idoso (EI), em seu Art.1º, são considera-
dos idosos pessoas com idade igual ou superior a 60 anos, embora sejam
amplos os debates e questionamentos na área da gerontologia sobre o iní-
cio da velhice. Para este estudo, no entanto, será adotado o critério crono-
lógico definido legalmente.
Conforme aponta a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil
(PNPDEC) em seu Art. 12º, inciso IV, é finalidade do Conselho Nacional

– 308 –
de Proteção e Defesa Civil (CONPDEC) “propor procedimentos para aten-
dimento a crianças, adolescentes, gestantes, idosos e pessoas com defici-
ência em situação de desastre” (BRASIL, 2012. grifo da autora).
Na literatura internacional, os idosos constituem um grupo social vul-
nerável, tanto anteriormente ao evento de um desastre quanto durante este,
isto é, no momento da crise aguda – manifestada pela exposição a um fator
de ameaça – quanto nas consequências devastadoras – que produzirão uma
crise crônica. A vulnerabilidade desse grupo é maior devido a alterações
biopsicossociais, algumas próprias do processo de envelhecimento, outras
que são mais prováveis de ocorrer nessa fase da vida.
Os idosos vêm ganhando maior visibilidade no contexto de desastres,
primeiramente, devido ao processo contínuo e acelerado de envelhecimen-
to populacional que países em desenvolvimento, como o Brasil, vêm viven-
ciando e, em segundo lugar, pelo fato desse segmento estar entre as principais
vítimas fatais em caso de desastre (FERNANDEZ et al., 2002; OMS, 2008;
SAWAI, 2012).
Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas –
IBGE (2010), a proporção de idosos na população total do Brasil é de 12,1%
e no estado da Paraíba é de 12%, sendo que, destes idosos paraibanos, 12,9%
vivem na região semiárida paraibana. Em relação ao segmento de 0–24 anos,
entre 2000 e 2010, a população idosa paraibana apresentou crescimento
de 1,8% e a população com 0–24 anos declínio de 4,1%, indo ao encontro
da tendência brasileira de aumento da população com 60 anos ou mais, em
relação ao segmento jovem.
Perante esse contexto, cabe indagar: como idosos têm vivenciado de-
sastres recorrentes? Para trazer elementos para essa indagação, o presente
trabalho analisará, através da interface da Sociologia e da Gerontologia, as
dimensões de afetação, em desastres, de idosos residentes no município
paraibano com maior número de portarias federais de reconhecimentos de
decreto de Situação de Emergência (SE) e Estado de Calamidade Pública
(ECP),2 no período de janeiro de 2006 a dezembro de 2013.
No esforço de identificação deste município, realizou-se uma pesqui-
sa quantitativa e qualitativa, integrando a pesquisa documental (documen-
tos oficiais, leis e registros jornalísticos) e a revisão bibliográfica.

2. Vale destacar que SE consiste no “reconhecimento legal pelo poder público de situação
anormal, provocada por desastre, causando danos suportáveis à comunidade afetada”,
enquanto o ECP seria o “reconhecimento legal pelo poder público de situação anormal,
provocada por desastre, causando sérios danos à comunidade afetada, inclusive à
incolumidade ou à vida de seus integrantes” (BRASIL, 2007, p.9).

– 309 –
Na pesquisa documental foram selecionados os municípios paraibanos
que tiveram SE e ECP reconhecidos pelo ente federal, no referido período;
em seguida, fez-se um ranking desses municípios para identificar o que ti-
nha a primeira posição em portarias emitidas. Após isso, partiu-se para a
análise dos documentos de Avaliação de Danos (AVADAN) junto ao Siste-
ma Integrado de Informações sobre Desastres (S2ID) do município com
maior número de decretos de SE e ECP no estado da Paraíba e portarias
federais correspondentes, com o intuito de coletar informações sobre o tipo
de evento, o porte do evento, o tipo de afetação, a quantidade de idosos
afetados nos desastres e as perdas e danos relatados.
No que concerne à revisão bibliográfica, foram sistematizados alguns
elementos importantes no debate sobre os temas desastres, idosos, proces-
so de vulnerabilização e condição humana, os quais subsidiam as discussões
ao longo deste capítulo.
Ainda, tivemos como baliza a legislações em vigência, como a Política
Nacional de Proteção e Defesa Civil e o Estatuto do Idoso a fim de dar sub-
sídio às análises sobre a afetação da pessoa idosa nos desastres.

CONTEXTO PARAIBANO DE DESASTRES

O estado da Paraíba/PB está situado na macrorregião Nordeste do país.


A sua capital é João Pessoa. Possui 223 municípios, 3.766.258 habitantes,
numa área de 56.469,778, com densidade demográfica de 66,70 hab/km²
(IBGE, 2010). Dentre as 27 unidades da federação, a Paraíba está em 24º
no ranking IDH e, ainda, 18º no ranking de participação no PIB nacional.
Com relação à esperança de vida aos 60 anos da população, em consulta aos
dados do Datasus (2012), de 2000 a 2012, o estado esteve abaixo da mé-
dia nacional durante todo o período, o que pode ser reflexo da qualidade
dos equipamentos de saúde e da implantação das políticas públicas de acesso
à saúde, assistência social, entre outras, ao alcance da população.
Conforme noticiado pelo Portal R7, em 01/03/2014, em matéria de
Wendell Rodrigues, a seca prejudica cerca de 1 milhão de pessoas na Paraíba.
A reportagem apresenta as condições precárias a que a população é subme-
tida para obter água, mostrando, inclusive, as dificuldades que, especifica-
mente, pessoas idosas enfrentam com a seca, tais como: acesso à água apenas
por meio do carro pipa; dificuldade para se deslocar até o local onde está o
carro pipa, encher os baldes e carregá-los até a residência e dificuldade em
carregar os baldes sob sol forte.
Mais recentemente, noticiado pelo Portal G1, em 23/04/2014, o gover-
no da Paraíba prorrogou, por mais 180 dias, o estado de emergência em 170
cidades. Nessa reportagem, o governador Ricardo Coutinho afirma que, em

– 310 –
decreto que emitiu, observou que “a seca que vem atingindo a região é a maior
dos últimos 80 anos” e, ainda, que em 2013 os agricultores perderam mais
de 95% da produção, conforme dados do IBGE divulgados pela reportagem.
Em consulta às portarias federais (do Ministério da Integração Naci-
onal) de reconhecimento de decretos municipais de SE e ECP, identificou-
se que o estado da Paraíba tem recorrência de desastres relacionados à seca
e à estiagem prolongada, embora também haja ocorrência de desastres re-
lacionados às enchentes e enxurradas. Os reconhecimentos oficiais desses
cenários deram-se por meio de portarias federais de reconhecimento de
decretos de SE e ECP a partir do ano de 1979, embora haja relatos que a
seca afete a população da região nordeste como um todo desde o séc. XVI,
com a falta de água para consumo humano, animal e para a agricultura
(IPEA, 2009).
O Ministério do Meio Ambiente, conforme traz o estudo de Alves, Souza
e Nascimento (2009), reconhece que aproximadamente 80% dos municípi-
os paraibanos estão localizados em uma área com índices pluviométricos
anuais inferiores a 800 mm onde moram aproximadamente 1,5 milhão de
pessoas. Conforme continuam os autores, a Superintendência do Meio Am-
biente na Paraíba diagnosticou, em 2008, que 57,06 % do estado possuía
suscetibilidade a desertificação em grau classificado como “muito alto”.
Segundo a Lei nº 9.950, de 07 de janeiro de 2013, que institui a Polí-
tica Estadual de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos da Seca,
em seu capítulo I, art. 2º, § VIII, a convivência humana com o semiárido
paraibano é definida como a:
relação entre o homem que trabalha na perspectiva do manejo sus-
tentável dos recursos e o seu habitat, através da capacidade de apro-
veitamento dos potenciais naturais e culturais em atividades
produtivas apropriadas ao meio ambiente, inclusive do conhecimen-
to tradicional e práticas relacionadas à forma de conhecer e intervir
nessa realidade, visando a melhorar as condições de vida e a perma-
nência das famílias residentes no semiárido brasileiro (BRASIL, 2013).

Conforme traz a referida lei, em seu art.3º, são princípios dessa políti-
ca, dentre outras a: “democratização do acesso à terra, à água, à biodi-
versidade e à agrobiodiversidade” e a “superação da condição de pobreza e
da vulnerabilidade das populações situadas em áreas afetadas ou suscetíveis
à desertificação”.
Outra política trata do tema da vulnerabilidade: no Art. 5º, no inciso
VII, a Política Nacional de Proteção e Defesa Civil (PNPDEC) menciona
que é um de seus objetivos “promover a identificação e avaliação das ame-

– 311 –
aças, suscetibilidades e vulnerabilidades a desastres, de modo a evitar ou re-
duzir sua ocorrência” (BRASIL, 2012). No entanto, a realidade dista do pre-
conizado legalmente.
Conforme é apresentado no site do Ministério da Integração Nacio-
nal, as ações emergenciais de enfrentamento realizadas no Estado da Paraíba
durante as estiagens (noticiadas em 22/05/2012) pela a Secretaria Nacio-
nal de Defesa Civil (SEDEC, 2012, n.p) são “o bolsa estiagem e o garantia
de safra, que são liberados mediante notificação de perda da lavoura, e cré-
dito emergencial de R$ 2,5 mil com rebate (abatimento) de 40% na amor-
tização”. Mas como falar em ‘caráter emergencial’ se o problema no estado
da Paraíba tem sido crônico?
O trabalho de Fávero e Diesel (2008) trata dos problemas relaciona-
dos à seca na Paraíba e destaca que este fenômeno, por não se constituir
como um evento súbito, como as enchentes, se caracteriza como um even-
to crônico, porém silencioso – no qual os danos são de longa duração e afe-
tam longas áreas.
Para ter um panorama recente deste problema na Paraíba, apresenta-
mos abaixo o histórico de decretações municipais de SE e ECP, realizadas
entre janeiro de 2006 a dezembro de 2013. Neste período, foram publicadas
1534 portarias federais de reconhecimento de decretos de SE e ECP, com
uma média anual de 191,7 portarias. A distribuição anual das decretações
é apresentada no Gráfico 1.

Gráfico 1 Portarias federais de reconhecimento de decretos de SE e ECP no Estado da Paraíba.


Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações da SEDEC/MI (2006-2013).

Nesse período (2006-2013), 25 municípios paraibanos tiveram 10 ou


mais portarias federais de reconhecimento de decretos de SE, não tendo por-

– 312 –
tarias referente a ECPs no período. O Quadro 1 apresenta os municípios com
maior frequência de portarias federais de reconhecimento de decretos de SE
no período.
Selecionou-se, com base nas informações elencadas no Quadro 1, o
município de Manaíra, o qual apresenta 12 portarias federais de reconhe-
cimento de decretos de SE no período mencionado. Sobre este caso, então,
nos debruçaremos a seguir.

Quadro 1 Portarias federais de reconhecimento de decretos de SE nos municípios


paraibanos mais afetados por desastres (2006 - 2013).

Número de
Município Tipo prevalente de evento Portaria de
portarias
(Total) associado (>50%) reconhecimento
(2006 - 2013)
Alcantil Estiagem SE
Amparo Estiagem SE
Areia Estiagem SE
Barra de Santa Rosa Estiagem SE
Barra de São Miguel Estiagem SE
10
Cajazeirinhas Estiagem SE
Camalaú Estiagem SE
Igaracy Estiagem SE
Itabaiana Estiagem SE
Lastro Estiagem SE
Monte Horebe Estiagem SE
Poço Dantas Estiagem SE
Riacho dos Cavalos Estiagem SE
Santa Helena Estiagem SE
Santo André Estiagem SE
São Mamede Estiagem SE
Tavares Estiagem SE
Tenório Estiagem SE
N=18
Barra de Santana Estiagem SE
Campina Grande Estiagem SE
Pocinhos Estiagem SE
11 Queimadas Estiagem SE
São José do Sabugi Estiagem SE
Triunfo Estiagem SE
N=6
Manaíra Estiagem SE
12
N=1
Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações do MI (2006-2013).

– 313 –
REFLEXÕES SOBRE O CASO DE MANAÍRA/PB
O município de Manaíra/PB possui 10.759 habitantes, uma área da
unidade territorial 352,570 Km² e densidade demográfica 30,52 hab/Km².
Este município, de pequeno porte, foi fundado em 1961 e tem sua principal
atividade econômica ligada à agricultura (ATLAS DO DESENVOLVIMEN-
TO HUMANO NO BRASIL, 2013; IBGE, 2010). No entanto, conforme
pode ser visto no Gráfico 2, abaixo, o município tem permanecido longos
períodos em SE – destacando o ano de 2008, quando houve quatro porta-
rias federais de reconhecimento de decretos de SE, e no ano de 2013, quando
foram 3 decretos de SE. Ao longo desse período, somente nos anos de 2009
e 2011 não foram publicadas as referidas portarias mencionando desastres,
o que acabou sendo uma ‘exceção’. Viver em contexto institucional de
emergência em Manaíra tem sido a regra.

Gráfico 2 Distribução das portarias de decretações de SE entre 2006 e 2013 em Manaíra/


PB. Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações do MI (2006-2013).

Vale ressaltar que, ao ter reconhecido pelo ente federal o seu decreto
de SE ou ECP, o município fica dispensado de licitação para realizar con-
tratos de aquisição de bens, serviços e realização de obras para atender a
situação emergencial ou calamitosa desde que concluídas em, no máximo,
cento e oitenta dias consecutivos e ininterruptos e de acordo com o Inciso
IV do artigo 24 da Lei nº 8.666 de 21.06.1993.
No entanto, Valencio (2012a), ao problematizar a questão de decre-
tação sistemática de desastres, aponta que a expectativa da população em
agilização das providências públicas geralmente não se cumpre. Esse qua-
dro de decretação sistemática, além de naturalizar a situação de emergên-

– 314 –
cia vivenciada no município e de indicar falta de estrutura e de apoio aos
grupos afetados para possibilitar a sua resiliência socioespacial, também
pode levar ao questionamento o modus operandi da administração local para
acessar recursos extraordinários sem o controle social (idem).
Convém, assim, descrever alguns aspectos da vulnerabilidade do mo-
rador local e, especificamente dos idosos no contexto de emergências de-
cretadas e relacionadas às secas e estiagens. Vejamos, abaixo, uma dimensão
econômica, saúde pública e de segurança alimentar em Manaíra.
Para descrever sobre a situação econômica e social (pobreza e desen-
volvimento humano) de Manaíra, primeiramente, trazemos informações do
Atlas do Desenvolvimento Humano. Posteriormente, apresentamos infor-
mações sobre os danos levantados e avaliados pela defesa civil municipal,
contidas nos AVADANs e disponíveis no S2ID. E, em seguida, são discuti-
das a situação de saúde, com base nos dados disponíveis no DATASUS, e
de segurança alimentar, com base dos dados do SISVAN.
A preocupação sobre o estado de saúde e de nutrição de pessoas ido-
sas se deve ao fato deste grupo, quando em contexto de seca e ser morador
de área rurais, sofrer muito devido à sua principal atividade e meio de sub-
sistência ser a agricultura. Como as perdas agrícolas são recorrentes duran-
te as secas, suas implicações vão para além das econômicas, refletindo
também no estado de saúde e de nutrição das famílias agricultoras, da qual
os idosos fazem parte.
Iniciemos, apresentando a composição da população de Manaíra/PB
através do viés econômico. Como pode ser observada na Tabela 1, a maio-
ria dos munícipes (80,54%) é considerada pobre ou extremamente pobre.
Tabela 1 Renda, Pobreza e Desigualdade em Manaíra/PB, no ano de 2010.

Item Município

Renda per capita (em R$) 225,93

% de extremamente pobres 32,63


% de pobres 47,91

Índice de Gini 0,53


Fonte: Sistematizado pela autora a partir de Atlas do Desen-
volvimento Humano no Brasil, 2013.

Complementando as informações acima, a Tabela 2 traz o Índice de


Desenvolvimento Humano Municipal (IDHM), o índice de envelhecimento

– 315 –
e a esperança de vida ao nascer (em anos) do município em questão. Ob-
serva-se a existência de um baixo IDHM; a esperança de vida ao nascer
(66,85 anos) está abaixo da média nacional (73,48 anos) e apresenta uma
taxa de envelhecimento (8,33%) abaixo da média nacional que é de 12,1%
(IBGE, 2012).
Tabela 2 IDHM, Taxa de envelhecimento e de Esperança de vida ao
nascer de Manaíra/PB em 2010.

IDHM Faixa do Taxa de Esperança de vida


Município
(2010) IDHM envelhecimento ao nascer

Manaíra 0,543 Baixo 8,33% 66,85 anos


Fonte: Sistematizado pela autora a partir de Atlas do Desenvolvimento Humano no Brasil, 2013.

Manaíra não é um caso isolado, há municípios paraibanos em situa-


ção econômica ainda mais desfavorecida. Segundo o PAN BRASIL (Progra-
ma de Ação Nacional de Combate à Desertificação e Mitigação dos Efeitos
da Seca), em menção aos estudos do Instituto de Pesquisa Econômica e Apli-
cada para o Mapa do Fim da Fome no Brasil, em 2001, 50 milhões de bra-
sileiros encontravam-se abaixo da linha de pobreza. Destacam-se, nesse
documento, os estados nordestinos, dentre eles a Paraíba, a qual apresen-
tou 50,2% de sua população abaixo da linha da pobreza.
A pobreza não está vinculada somente à carência material, pois as
pobrezas “se multiplicaram em todos os planos e contaminaram até mes-
mo âmbitos da vida que nunca reconheceríamos como expressões de carên-
cias vitais” (MARTINS, 2003, p. 12). E ainda, como pontua Rizek (2012),
agregado a essa situação, atualmente, há concepção capitalista de combate
à pobreza como um negócio, no qual as possibilidades e potências nos ce-
nários urbanos consistem na ideia de otimismo cruel e/ou de exclusão
participativa. E a exclusão social nada mais é do que perda da possibilida-
de ativa do fazer História (MARTINS, 2003).
A pobreza e o baixo desenvolvimento humano do município não se
refletem apenas em índices econômicos, mas também no acesso a bens e
serviços públicos. Ao observarmos a situação socioambiental dos municí-
pios do estado da Paraíba, de forma geral, veremos que a proporção de do-
micílios que não possuía saneamento adequado era de 24,9% em 2000, na
zona urbana, diminuindo, no ano de 2010, para 16,8%, devido aos inves-
timentos em infraestrutura realizados em vários municípios. Contudo, ao
focar no tipo de saneamento oferecido à zona rural, do conjunto de 250.911
domicílios, 69,9% considerou este serviço inadequado. É importante des-

– 316 –
tacar que 24,6% da população na Paraíba vive na zona rural. Se comparar-
mos esse contexto estadual à situação municipal de Manaíra, veremos que,
atualmente, apenas metade dos domicílios tem acesso à água e menos de 1/
7
tem esgotamento sanitário adequado (Gráfico 3). Ou seja, o município
encontra-se abaixo do padrão mediano estadual paraibano apresentado
acima.
Com relação a acesso à água, embora ainda limitadas, há iniciativas
federais para melhoria do acesso a esse recurso. Conforme divulgado pela
Secretaria Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional – SESAN, está
sendo construído um açude no município, com verba concedida pela Secre-
taria de Infraestrutura Hídrica, do Ministério da Integração Nacional, no
valor de R$ 800.000,00 e está iniciativa está em vigência desde 2009 (30/
12/2009 - 05/08/2014) (SESAN, 2014), visando aumentar a disponibilidade
hídrica para a população.

Acesso à água Esgoto adequado

Gráfico 3 Percentual de moradores com acesso a água ligada à rede e esgoto sanitário
adequado - 1991-2010. Fonte: IBGE (1991; 2010). In: IDEME (2012)

Outra iniciativa governamental teria sido a construção de cisternas.


Conforme os dados extraídos do SIG Cisternas, no dia 01 de Fevereiro de
2014, divulgados pelo SESAN, haveria no município 347 cisternas AP1MC
(ASA) e outras 15 construídas por outros executores somando 362 cister-
nas (idem). Apenas em 2011, em Manaíra/PB, 120 cisternas teriam sido

– 317 –
construídas pelo programa ‘Água para Todos’ que integra o ‘Brasil Sem Mi-
séria’, um plano desenvolvido pelo governo federal.
Embora seja descrito que as cisternas destinadas ao armazenamento
de água para consumo humano e produção de alimentos, aumentaram o
acesso da população de Manaíra/PB à água potável, até o fechamento do
presente capítulo, não obteve-se confirmação do recebimento das cisternas
- por meio das mídias jornalísticas e televisivas disponíveis online e de ou-
tros veículos oficiais online - pela população rural do município e, especifi-
camente, pelos idosos que residem nessa localidade.
Dada a questão do baixo acesso dos moradores da área rural à água e
o histórico de desastre no município, foram buscadas nos AVADANs, refe-
rente aos anos de 2006-2013, informações referentes à classificação do even-
to, área afetada, tipo de perdas relatadas, total de afetados e proporção de
idosos afetados. Nesta etapa, foram selecionados cinco AVADANs, de um
total de 12 decretações de SE no período. O Quadro 2, abaixo, apresenta
um resumo das principais informações sobre o evento e o tipo de perdas,
dentre elas se destaca a informação de que a área recorrentemente afetada
é a rural, o semestre de maior suscetibilidade climática é o primeiro semes-
tre, com média de 629,46mm de chuva e haver uma predominância de per-
das agrícolas.

Quadro 2 Descrição do histórico de desastres no município de


Manaíra/PB no período de 2006-2013.

Área Período de Chuva no


Reconhecimento Perdas
afetada estiagem período (mm)
15/01/2007 Rural jan-dez 697,0mm Agrícolas
16/07/2007 Rural jan-jul 650,6mm Agrícolas
14/01/2008 Rural jan-dez 658,4mm Agrícolas
Danos materiais
21/03/2008 Rural mar 487,5mm
Agrícolas
Agrícolas
26/08/2010 Rural jan-jul 653,8mm Falta de abastecimento
humano e animal
Fr= Fr=
X= Fr=
Rural jan-jul
629,46 mm Agrícolas (71,4%)
(100%) (80%)

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações do MI (2006 – 2013).

A Tabela 3, por sua vez, complementa as informações acima, acrescen-


do dados sobre a classificação do evento, a população afetada e o segmen-
to idoso afetado no período estudado. Destaca-se, dentre as informações
contidas na tabela, os eventos serem todos de porte II, concentrados entre

– 318 –
os anos de 2007 e 2010, com o mesmo número de idosos e de população
em geral afetados em três reconhecimentos seguidos, embora, em março de
2008, tenha diminuído a população geral afetada e aumentado a de idosos.

Tabela 3 Descrição da afetação dos desastres em Manaíra/PB (2006-2013).

Classificação Idosos
Reconhecimento Afetados Fr (%)
do evento afetados
15/01/2007 II 7946 488 6,1
16/07/2007 II 7946 488 6,1
14/01/2008 II 7946 488 6,1
21/03/2008 II 3600 720 20,0
26/08/2010 II 5165 382 7,4
Tota l (100%) 32603 2566 7,9

Fonte: Sistematizado pela autora a partir das informações do MI (2006-2013).

A representatividade de idosos afetados na área rural do referido mu-


nicípio foi de 62%, no período de 2006-2013. Levando-se em considera-
ção o total de pessoas idosas que residem nessa área atualmente, de acordo
com os dados censitários do IBGE (2010), a percentagem de idosos afeta-
dos equivaleria a 202% ao tamanho da população idosa residente na área
rural do município. Ou seja, seria o equivalente a toda a população idosa
rural do município ter sido afetada duas vezes no referido período.
Conforme traz o Gráfico 4, referente à proporção do total de idosos
afetados por desastres na área rural e urbana no município entre 2006-2013,
a proporção de idosos afetados na área rural é superior a urbana. Esse ce-
nário é reflexo, dentre outros, do menor acesso a água, infraestrutura e ações
preventivas e recuperativas que a área rural apresenta.
Conforme dito anteriormente, para complementar a discussão sobre
a situação do idoso residente no município, serão trazidas informações so-
bre a saúde, por meio de informações sobre as causas de internações entre
idosos, e o estado nutricional desse segmento. Contudo, as informações
oficiais do setor da saúde são limitadas e poucas estão atualizadas, sendo
possível trazer apenas o recorte do ano de 2010. Na Tabela 4, por exem-
plo, são trazidos os dados mais recentes sobre internações hospitalares de
pessoas idosas do município, ressaltando que este dispõe de cinco equipa-
mentos públicos de saúde, de diferentes níveis de complexidade.
Em destaque na Tabela 4 estão as principais causas de internação en-
tre os idosos do município, condizente com a literatura e com a situação
atual brasileira. Esses dados coincidem inclusive com as estatísticas de causa
de óbitos no país, que são as doenças do aparelho respiratório e pulmonar,

– 319 –
embora no país também se desataquem as neoplasias (DATASUS, 2010;
CHAIMOWICZ, 2006).

Gráfico 4 População idosa afetada em desastres relacionados às secas, com portarias


federais de reconhecimentos de decreto de SE e ECP, residente em meio urbano e rural,
em Manaíra/PB (2006-2013). Fonte: a autora a partir das informações do MI (2006 –
2013) e dos dados censitários do IBGE (2010).

Com exceção dos capítulos I, II, XIX do CID-10 presentes na Tabela


4 e dos grupos de causas não contabilizados, a faixa etária idosa apresenta
maiores percentuais de internação se comparado a população em geral do
município na maioria dos casos. Dentre as causas mais prevalentes, há as
doenças nutricionais. Contudo, em investigação junto ao Sistema de Infor-
mação sobre Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN), acerca do perfil
do município com relação à desnutrição e obesidade, para o aprofundamento
das análises, este não dispõe de informações sobre situação nutricional de
idosos no período de 2009 a 2013. Na última atualização dos dados, para
este capítulo, durante do mês de maio/2014 o sistema encontrava-se indis-
ponível, devido à manutenção em curso neste.
Com a falta de informações detalhadas tanto as referentes às in-
ternações quanto ao perfil nutricional dos idosos do município, ao longo
do período de 2006-2013, ficam prejudicadas as análises referente às rela-
ções entre o perfil de saúde e nutricional e a ocorrência de SE no municí-
pio. Contudo, vamos assinalar a importância da segurança alimentar na
velhice, problematizando a questão das produções agrícolas perdidas cro-
nicamente e escassez de água potável, com os fatores de risco para a saúde
do idoso. Nesse sentido, foram reunidas na Tabela 5 as culturas perdidas
descritas nos AVADANs entre 2006-2013. E, na tabela, chama a atenção o
volume de produção de milho e feijão, em toneladas, perdidos nos anos
2007, 2008 e 2010, somando 7.820,40 toneladas para os produtores do
município.

– 320 –
Tabela 4 Distribuição Percentual das Internações por Grupo de
Causas e Faixa Etária em Manaíra/PB, em 2010

60 e mais População Geral


Capítulo CID10
(%) (%)
I Algumas doenças infecciosas e parasitárias 10,0 12,4
II Neoplasias (tumores) 1,3 3,1
Doenças do sangue e dos órgãos hematopoéticos e
III 2,5 0,7
alguns transtornos imunitários
IV Doenças endócrinas, nutricionais e metabólicas 6,3 1,9
V Transtornos mentais e comportamentais – 2,6
VI Doenças do sistema nervoso 1,3 1,0
VII Doenças do olho e anexos 1,3 0,7
VIII Doenças do ouvido e da apófise mastóide – –
IX Doenças do aparelho circulatório 27,5 9,8
X Doenças do aparelho respiratório 18,8 12,8
XI Doenças do aparelho digestivo 6,3 4,2
XII Doenças da pele e do tecido subcutâneo 5,0 1,4
XIII Doenças sistema osteomuscular e tecido conjuntivo 3,8 0,9
XIV Doenças do aparelho geniturinário 6,3 4,2
Sintomas, sinais e achados anormais, exames
XVIII 6,3 1,6
clínicos e laboratoriais
Lesões, envenenamento e alguma outra
XIX 3,8 5,4
consequência, causas externas
XX Causas externas de morbidade e mortalidade – –
Total = 100% 100%

Fonte: SIH/SUS (2010). Situação da base de dados nacional, atualização em 03/05/2010.


In: Datasus (2010).

Tabela 5 Perdas agrícolas em Manaíra/PB, entre 2006 e 2013.

Data Perda da Produção (t) Perda da Produção (R$)


Milho Feijão Milho Feijão
15/01/2007 144 108 86.400,00 140.400,00
16/07/2007 1012,5 637 371.250,00 1.061.875,00
14/01/2008 1012,5 637 371.250,00 1.061.875,00
21/03/2008 303,75 191,25 182.250,00 229.500,00
26/08/2010 2450 1324,4 1.298.500,00 2.474.089,00
Total 4.922,75 2.897,65 2.309.650 4.967.739,00
Fonte: Fonte: Sistematizado a partir das informações do MI (2006 – 2013).

Conforme traz Costa et al. (2008), em seu estudo sobre os sistemas


de produção de caprinos e ovinos na região semi-árida, por meio de 152 en-

– 321 –
trevistas em 10 municípios do Cariri paraibano, as práticas realizadas para
o enfrentamento da seca são, em sua maioria, venda de animas, compra de
alimento e utilização de mandacaru (Cereus jamacaru), mas nem sempre essas
alternativas são suficientes para pessoas que necessitam de maior atenção
e cuidado nutricional. Com declínio da produção de alimentos e falta de
informações sobre o real estado nutricional e de saúde dos idosos no muni-
cípio na atualidade, como fica a segurança alimentar deste segmento?
Conforme é definido pela Lei Orgânica de Segurança Alimentar e
Nutricional (LOSAN), promulgada em 2006, a Segurança Alimentar e
Nutricional é compreendida em seu Art. 3º como:
a realização do direito de todos ao acesso regular e permanente a ali-
mentos de qualidade, em quantidade suficiente, sem comprometer
o acesso a outras necessidades essenciais, tendo como base práticas
alimentares promotoras de saúde que respeitem a diversidade cul-
tural e que sejam ambiental, cultural, econômica e socialmente sus-
tentáveis (BRASIL, 2006).

Com as alterações fisiológicas e biológicas do envelhecimento, pode


haver naturalmente um possível declínio no processo de alimentação e de
nutrição do indivíduo. Algumas dessas alterações são devido a diminuições:
na função gastrintestinal; na quantia de água no organismo; nos órgãos do
sensório, afetando visão, audição e olfato; no peso do fígado e no número
de hepatócitos; na função pancreática; na sensibilidade à sede; na produ-
ção de ácido gástrico e pepsina. Ainda, alterações na capacidade masti-
gatória, na distribuição da massa corporal e do tecido adiposo e aumento
do tecido fibroso no fígado (NAJAS; PEREIRA, 2006; SANTOS; MACHA-
DO; LEITE, 2010; CAMPOS; MONTEIRO; ORNELAS, 2000).
Se com o processo normal de envelhecimento já podemos ter altera-
ções na alimentação e nutrição, como garantir a segurança alimentar e o
acesso à saúde de grupos idosos que vivenciam regularmente a falta de acesso
à água e perda da produção agrícola familiar?
Com a falta de alimentos variados que contemplem as necessidades
diárias de nutrientes do organismo, os idosos podem sofrer com a desnu-
trição e a baixa qualidade da dieta, assim como com a obesidade dependendo
da dieta disponível. Ambos os fatores são considerados de risco, na velhi-
ce, que prejudicam tanto na prevenção de algumas doenças quanto no de-
senvolvimento do tratamento adequado. No Quadro 3, são apresentados
algumas dessas doenças que tem prevenção e tratamento alterados devido
a fatores de risco associados à nutrição.

– 322 –
Quadro 3 Doenças e os fatores de risco associados à nutrição.

Doenças Fatores de risco


Câncer Excesso alcoólico e baixa qualidade da dieta
Doença pulmonar
Desnutrição
obstrutiva crônica
Insuficiência cardíaca Hipertensão, obesidade, diabetes mellitus e excesso
congestiva alcoólico
Doença coronariana Dislipidemia, obesidade, hipertensão, diabetes mellitus
Demências Desnutrição, diabetes mellitus tipo 2 e doenças vasculares
Diabetes mellitus Obesidade, hipertensão, dislipidemia, inatividade física
Excesso de calorias, sódio e álcool; inadequação de cálcio
Hipertensão arterial
e potássio; obesidade; diabetes; dislipidemias
Baixa ingestão de cálcio e vitamina D, inatividade física e
Osteoporose
consumo de álcool
Pneumonia Hipoalbuminemia e desnutrição

Fonte: Adaptado de Najas e Pereira (2006, p.1180).

Para garantir, em tese, o acesso a esses recursos criou-se a Secretaria


Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional (SESAN), que dentre suas
ações no município estão a construção do açude e de cisternas, descritas an-
teriormente. Outra medida foi a criação do “Garantia Safra”, um progra-
ma cujo propósito é atender os agricultores familiares afetados pela estiagem
ou pelo excesso de chuvas. Ao analisar os danos à agricultura de Manaíra/
PB, um dado chamou a atenção, pois dentre os prejuízos descritos o paga-
mento do “Garantia Safra” é elencado.
Conforme informado pelo Governo do Estado da Paraíba (2012), o
Programa Garantia Safra, conta com a adesão de 83.822 agricultores fami-
liares provenientes de 171 municípios, quantia superior ao período de 2010/
2011. Esse programa é de responsabilidade do Ministério do Desenvolvi-
mento Agrário, em parceria com as prefeituras municipais e governo esta-
dual. Conforme consta no site do Governo Estadual da Paraíba, o Garantia
Safra é um seguro no valor de um salário mínimo “pago em caso de perda
comprovada de pelo menos 50% da produção de algodão, arroz, feijão, man-
dioca e milho”.
Além desse programa, segundo informações divulgadas no site do Ban-
co Central do Brasil (2010), há o Programa Nacional de Fortalecimento da
Agricultura Familiar (Pronaf), que concede crédito ao agricultor familiar, aos
assentados, a indígenas e pescadores com o intuito dar apoio financeiro às
“atividades agropecuárias e não agropecuárias exploradas mediante emprego
direto da força de trabalho do produtor rural e de sua família”.

– 323 –
Em estudo realizado por Rocha et al. (2009) acerca da intenção de
pagamento do crédito, por meio de 53 beneficiários do programa na Paraíba,
observou-se que eles pagam os empréstimos por meio de sua produção e a
preocupação de pagá-los em dia se dá principalmente para obter o direito a
conseguir novos empréstimos. Nas conclusões do estudo, as estratégias e
objetivos do Pronaf são apoiados pelos aos beneficiários, dessa forma, con-
clui-se apontando a importância do acompanhamento desses indivíduos:
Uma vez que pagar o crédito não é um comportamento que depen-
de somente da vontade do beneficiário, mas um comportamento de
controle, o estabelecimento de estratégias técnicas, envolvendo prin-
cipalmente o serviço de extensão rural, desde a elaboração de pro-
jetos e propostas até o acompanhamento técnico, é indispensável
(ROCHA et al., 2009, p. 51).
Contudo, as medidas anunciadas acima ainda são de caráter paliativo
e focadas no âmbito das emergências, do momento da resposta. Enquanto
a cronicidade do desastre e o sofrimento humano forem visto como natu-
rais, essas pessoas continuarão distantes de seus direitos sociais preconiza-
dos pela Constituição Federal (CF/88). Segundo o Art. 6º CF/88, são direitos
sociais: “a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer,
a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a
assistência aos desamparados [...]” (BRASIL, 1988).
O desastre escancara os problemas estruturais inscritos no meio soci-
al, como a pobreza, as desigualdades sociais, o acesso não democrático ao
território seguro, entre outros. Para mitigar os danos relacionados aos de-
sastres, as ações do Estado não podem suprimir carências sem reverter o pro-
cesso de vulnerabilização no qual muitos se encontram no chamado projeto
de modernização (ACSELRAD, 2006).
Vale ressaltar que o processo de vulnerabilização é um fenômeno cons-
tituído socialmente e está associado a fatores individuais, político-institu-
cionais e sociais, sendo que a predominância da compreensão da vulnera-
bilidade pelo meio político-institucional focaliza aspectos individuais, em que
o indivíduo acaba por ser culpabilizado pela situação adversa na qual se
encontra (idem).
O presente estudo procurou trazer ao longo deste capítulo alguns as-
pectos do processo de vulnerabilização em curso em Manaíra/PB e apresen-
tar o cenário de cronicidade de desastres relacionados às secas que o
município enfrenta, em especial entre o segmento idoso afetado. Dessa for-
ma, são apresentadas a seguir reflexões sobre os direitos que esse segmento
têm garantidos legalmente e como fica a garantia desses direitos e de sua
condição humana frente aos desastres.

– 324 –
REFLEXÕES SOBRE O DIREITO DA PESSOA IDOSA E A SUA
CONDIÇÃO HUMANA EM MEIO AOS DESASTRES

No ano de 2003, foi promulgado o Estatuto do Idoso (EI), o qual visa


à proteção e a garantia dos direitos da pessoa idosa. Nesse cenário de po-
breza, de afetação nos desastres relacionados às secas e de baixo índice de
desenvolvimento municipal, observado no município analisado, é incerto
que os recursos previstos pelo EI estão sendo (ou serão) devidamente em-
pregados para a efetivação dos direitos dos idosos afetados.
Segundo o Art. 3º, inciso III do estatuto, os recursos públicos devem
ter destinação privilegiada nas áreas relacionadas com a proteção ao idoso.
Não seria também a segurança alimentar, habitacional e a garantia a con-
dições dignas de vida e trabalho uma forma de proteção à vida desse seg-
mento?
O envelhecimento é considerado, conforme o Art. 8º da referida lei,
um direito personalíssimo, sendo sua proteção um direito social. Como con-
tinua, no Art. 9º, o Estado tem a obrigação de garantir a proteção à vida e
à saúde, por meio da efetivação das políticas sociais públicas voltadas a um
envelhecimento saudável e em condições de dignidade.
A lei de fato discorre sobre várias formas de proteção e de garantia de
direitos. Mas, o que de fato se aproxima da prática e da realidade dos que
sofrem? Ainda, como fica a condição humana desses sujeitos recorrentemen-
te afetados pelos desastres relacionados à seca, pela pobreza e cada vez mais
longevos?
A condição humana pode ser analisada, segundo Hannah Arendt, por
meio de três atividades humanas fundamentais, expressa em seu livro ‘A con-
dição humana’, como a vita activa, que se constituem como as condições bási-
cas da vida. As atividades são: o Labor (atividade associada ao animal laborans),
o Trabalho (às práticas do Homo faber) e a Ação (às relações simbólicas, afetivas
e cognitivas de troca). As coisas e os homens constituiriam assim, para a auto-
ra, o ambiente de cada uma das três atividades, sendo que estas não conteri-
am significado sem esse situar (ARENDT, 2007; OLIVEIRA, 2009). Assim, a
condição humana, além de dada ao homem é criada pelo homem:
Além das condições nas quais a vida é dada ao homem na Terra e,
até certo ponto, a partir delas, os homens constantemente criam as
suas próprias condições que, a despeito de sua variabilidade e sua
origem humana, possuem a mesma força condicionante das coisas
naturais. [...] Tudo o que espontaneamente adentra o mundo huma-
no, ou para ele é trazido pelo esforço humano, torna-se parte da
condição humana (ARENDT, 2007, p. 17).

– 325 –
Lessa (2009) colabora para a discussão, ao trazer a concepção de que
a condição humana revela, de fato, o esforço no existir dos sujeitos, como pode
ser observado no trecho a seguir:
[...] qualquer desenho da condição humana revela um esforço no exis-
tir, uma insistência a manter-se na vida. O vento espinosiano indica que
não basta detectar definições estáticas da condição humana, mas
investigar o que, nessas definições, a faz perseverar na existência, o que
a põe em movimento, o que a mantém viva. Nesse sentido preciso,
a indagação o que mantém um homem vivo ganha precedência sobre o
que é a condição humana. (LESSA, 2009, p. 127)

No caso dos desastres relacionados à seca, o esforço em manter-se vivo


indica a existência na precariedade com que os afetados vivem recorrente-
mente. O desinteresse público prepondera fazendo com que a única garan-
tia que os indivíduos possuem é a garantia que estão por conta própria.
Como diria Bauman (1999):
sua sobrevivência não está garantida – nem por designo de Deus nem
por uma razão universal, nem pelas leis da história nem qualquer
outra força sobre-humana. A esse respeito, claro, a condição pós-
moderna não difere absolutamente de todas as outras condições;
difere apenas pelo fato de saber que vive sem garantia, de que de-
pende de si mesma. Isso torna-a excessivamente propensa à ansie-
dade (BAUMAN, 1999, p. 271).

Para Arendt (2007, p.256), “quando as promessas perdem seu cará-


ter de pequenas ilhas de certeza num oceano de incertezas, [...] as promes-
sas perdem seu caráter de obrigatoriedade e todo o empreendimento torna-se
contraproducente”.
Assim, a existência humana, conforme continua Bauman (1999), tor-
na-se uma existência contingente, a qual denota uma ausência de certezas.
Assim, a vida do afetado pode-se configurar como uma vida que paira en-
tre as incertezas e as indiferenças. Como traz ainda Valencio (2014),
quando as relações sociopolíticas produzem a morte social dos que per-
dem circunstancialmente suas possibilidades de autoprovimento e so-
lapam os meios através dos quais os mesmos possam definir os rumos
de sua vida, em sua própria concepção de plenitude, a insegurança
humana acena no presente e no horizonte (VALENCIO, 2014, p. 18)

Observa-se assim a indiferença nas relações. Segundo Cohn (2004, p.


88), esse processo de indiferença “não mais se dá em termos de natureza

– 326 –
inconveniente de tal ou qual grupo social bem definido, mas incide sobre
setores inteiros das sociedades [...] simplesmente porque são irrelevantes”.
Inclusive, a lógica econômica atual reforça esse quadro, pois está centrada
no que o autor denomina como indiferença estrutural, devido tanto às toma-
das de decisões de responsabilidade do setor privado como de Estados na-
cionais (idem).
Especificamente com os segmentos considerados vulneráveis, no caso
dos desastres, a condição humana e a vida digna ficam mais fragilizadas
quando associadas com o descaso público, embora haja leis que visem à
proteção desses segmentos. Esse cenário de precarização da condição hu-
mana entremeia a vida dos afetados nos desastres, dentre eles os idosos, visto
que historicamente estes são desvalorizados, estereotipados e alvo de pre-
conceitos no país.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo procurou analisar as dimensões de afetação, em desastres, de


idosos paraibanos residentes no município com maior número de portari-
as federais de reconhecimentos de decreto de SE e ECP, entre janeiro de 2006
a dezembro de 2013. Conclui-se que, no período estudado, 25 municípios
paraibanos tiveram 10 ou mais portarias federais de reconhecimento de de-
cretos de SE, sendo Manaíra/PB o município com maior número das refe-
ridas portarias.
Em Manaíra/PB, observou-se que a maioria da população é pobre ou
extremamente pobre e, na área rural, sofre-se mais com os desastres relaci-
onados às secas e às estiagens. Isso se associa há falta de saneamento pú-
blico adequado, dificuldades de acesso à água potável, perda de produção
agrícola recorrente. São escassas as informações sobre a saúde e o estado
nutricional dos idosos que residem nessa área no município. Como se pôde
observar neste trabalho, as dimensões de afetação foram multivariadas,
explicitando a precariedade da condição humana, o processo de vulne-
rabilização, as incertezas quanto ao futuro e uma indiferença social às pri-
vações a que essas pessoas estão estruturalmente submetidas.
A Constituição Federal, já em 1988, trazia em seu Art. 21º, inciso
XVIII, que a União deve “planejar e promover a defesa permanente contra
as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações” (BRASIL,
1988). Mas esse objetivo não tem sido cumprido a contexto.
O discurso hegemônico do Estado persiste considerando o desastre
como algo inesperado, súbito e excepcional, argumento que cai por terra,
visto a frequência na ocorrência de desastres relacionados à água no Brasil,

– 327 –
seja pelo excesso ou pela escassez desse recurso, e pela afetação crônica das
pessoas que residem nessas localidades.
Valencio destaca que os estudos referentes aos fatores ameaçantes,
como o excesso ou a escassez hídrica, são necessários; porém, estes por si
só não dão conta de explicitar a crise que ocorre no meio social, pois o que
está implícito sobre o conceito de desastres é que este “é um acontecimen-
to trágico e crítico que ultrapassa o cotidiano, invade-o, desarruma-o”
(VALENCIO, 2012a, p. 91).
Os cenários recorrentes de desastres somente apontam a ampliação
desse abismo que configuram as injustiças sociais, e os que tornam cidadãos
em vítimas e beneficiários residuais de suas possibilidades. O processo de
exclusão social, específico do sistema capitalista “produz seres humanos
descartáveis, reduzidos à condição de coisa, forma extrema de vivência da
alienação e coisificação da pessoa” (MARTINS, 2003, p. 20).
Enquanto as ações forem pautadas na resposta, na política de mínimos
vitais e não visarem ações mais efetivas para minorar o processo de vulne-
rabilização ou não focarem mais na prevenção e na recuperação, a afetação
continuará a crescer e o consequente esgarçamento da dignidade humana
e dos direitos humanos.

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– 331 –
CAPÍTULO XIII

DIMENSÕES SOCIOPOLÍTICAS DE
DESASTRES RELACIONADOS AO
ESTRESSE HÍDRICO E ÀS CHUVAS
INTENSAS NO BRASIL:
A AFETAÇÃO DA AGRICULTURA FAMILIAR

Norma Valencio

INTRODUÇÃO
Em termos sociológicos, desastres são considerados uma crise na esfe-
ra social a qual associa dimensões objetivas e subjetivas de danos e perdas.
Como Quarantelli (2005) observou, desastre é uma situação de estresse
coletivo e um fenômeno inerentemente social. Ou como Perry (2005, p.
313) enfatiza, “desastres são eventos sociais em um tempo social” (tradu-
ção livre) e “No nível mais básico, essa distinção [desastre como ‘tecnológico’
versus ‘natural’] foi útil em seu tempo como um meio de agrupar diferenças
de resposta humana” (idem, p. 318, tradução livre).
Quando um desastre ocorre muitas vezes, nas mesmas localidades,
relacionados aos mesmos fatores de ameaça (sejam eles descritos como ‘na-
turais’ ou ‘tecnológicos’), isso indica haver um tipo de anomalia crônica na
conjugação das forças sociais que atuam na produção do lugar, resultando
na suscetibilidade recorrente das rotinas das pessoas ali inseridas.
No Brasil, os lugares forjados pela produção agrícola familiar estão
muito expostos a ameaças ‘naturais’ recorrentes devido aos limitados esfor-
ços do poder público em adotar boas políticas para protegê-los; isso ocorre,

Apoio: FAPESP e CNPq. As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas


neste material são de nossa responsabilidade e não necessariamente refletem a visão da
FAPESP e do CNPq.
Uma versão original deste texto, em inglês, foi apresentada no XIII Congress of Rural
Sociology (Lisboa), no Working Group-22, em agosto de 2012.

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sobretudo, em contextos de estresse hídrico ou chuvas intensas. Essa inapti-
dão institucional impõe um custo muito elevado às famílias produtoras atra-
vés da intensificação dos danos sofridos a cada desastre, o que ocasiona um
risco de aceleração do empobrecimento do referido grupo a cada vez que
uma situação de emergência (SE) ou um estado de calamidade pública
(ECP) são decretados em seu município de inserção residencial e de traba-
lho, que costumam ser o mesmo.
Este estudo apresenta uma explicação sociológica preliminar acerca de
alguns elementos componentes das regularidades dessa crise, focalizando
o contexto rural das macrorregiões Nordeste e Sul do Brasil.

OS DESASTRES COMO PROCESSOS SOCIAIS: ASPECTOS


SOCIOPOLÍTICOS E INTERSUBJETIVOS

A Secretaria Nacional de Defesa Civil do Brasil define desastre como


“um evento danoso que supera a capacidade de resposta”. Tal definição deve
ser tomada com cautela, pois favorece um discurso e uma prática, do meio
político e do meio técnico, demasiado propensos a uma mera captação
imagética; isto é, compreender o desastre apenas como sendo uma paisagem,
formada por fragmentos de objetos desfeitos (naturais ou construídos), de um
lado, e pessoas prejudicadas, de outro. À paisagem, que é captada através
desses fragmentos que se dissociam de sentido um dos outros, corresponde
uma forma de avaliação técnica fragmentada: no Formulário de Informações
de Desastre (FIDE), ponte destruída é um item; moradias danificadas, outro;
pessoas falecidas, outro ainda. Cada item, tratado como uma informação
setorizada. As informações são destinadas a atores distintos que, em tempos
distintos, tomarão (ou não) alguma providência.
No entanto, se buscarmos delimitar geograficamente esses fragmentos,
podemos compor uma configuração territorial do desastre, separar o ‘cenário’
do mundo que permanece ‘em normalidade’. Mesmo assim, isso não é o
suficiente para acessar uma dimensão invisível (relacional, social, valorativa)
daquilo que, apenas no seu conjunto, preserva o sentido de desastre. ‘Cená-
rio’ é jargão que delimita para, em seguida, fazer diluir e desaparecer, por
assim dizer, o acontecimento trágico. O foco setorial, num fragmento do
problema, desconecta-o do todo do desastre, criando um tipo de interação
degradante entre os grupos sociais afetados e o Estado. O Estado faz pare-
cer que as coisas não são tão graves assim e que são gerenciáveis: “a recupe-
ração da ponte tem que esperar (passando pelos trâmites x, y e z)”, diz um
setor; “a construção de moradias será bem demorada (pois exige o cumpri-
mento dos requisitos a, b e c)”, alega outro setor; “os corpos foram sepulta-
dos assim que localizados”, justifica-se o outro setor...Enfim, algo foi ou está

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sendo feito, “do que estão reclamando?!”, se perguntam os técnicos, cuja
visão tem sido treinada para aceitar o tempo burocrático e, em oposição a
este, desconsiderar o tempo dos sujeitos demandantes bem como os seus
vínculos com as suas coisas e o seu respectivo lugar. Ocorre que, na perspec-
tiva de quem vivencia um desastre, o lugar não é paisagem, é substância, que
integra simultaneamente várias camadas de devastação (do ambiente, das
rotinas de vida, psicossocial etc) e que, portanto, exigiria o encadeamento
das ações públicas para se lograr a minimização de seu sofrimento e permi-
tir a recomposição do cotidiano. Quão amparada se sente uma família quan-
do falece, num desastre, o seu principal provedor, numa circunstância em
que sua moradia foi também destruída, perdeu-se objetos de valor, a lavoura,
os animais de criação, não há ponte para comunicar a sua localidade com
as demais das quais se depende para ir ao trabalho, à escola, ao posto de
saúde, ao comércio?
O que queremos dizer é que a sobrevalorização da abordagem excessi-
vamente objetivista e redutivista deixa escapar importantes aspectos do
problema do desastre. Salientaremos, nessa oportunidade, apenas dois, a
saber: aspectos de caráter sociopolítico e de caráter intersubjetivo.

DESASTRES COMO PROBLEMA DO ESPAÇO:


CONSIDERAÇÕES SOCIOPOLÍTICAS

Embora notório, o caráter sociopolítico dos desastres tem sido, mui-


tas vezes, mascarado pela demarcação estanque de um elemento físico es-
pecífico da paisagem, que precisa ser restaurado, consertado, introduzido,
através da adoção e implementação de um projeto de engenharia ou simi-
lar. O ‘cenário’ do desastre – como paisagem ou configuração territorial – tem
sido traçado pelo meio técnico de defesa civil como se os principais elemen-
tos necessários para sua análise estivessem ali. Porém, transcendem-no, pois
estão no espaço.
A ideia de ‘cenário’, como alusão a um desastre, remete, como conteú-
do, aos objetos danificados ou destruídos e às pessoas ali inseridas, as quais
se possam enxergar, alcançar ou ao menos dizer que, provavelmente, este-
jam por ali (quando são inacessíveis, no caso de pessoas desaparecidas e por
hipótese estejam soterradas, por exemplo). As fronteiras do cenário costu-
mam ser delimitadas pela distinção geográfica do conjunto de elementos que
se encontra danificado/destruído e o que se encontra íntegro, numa área
vizinha. Essa armadilha da paisagem é também aquela que captura a abor-
dagem do desastre como sendo uma conformação territorial que, de um lado,
quer se passar por uma totalidade bem demarcada em relação a uma vizi-
nhança a salvo e intacta, por outro, aparentar um conteúdo explicativo ple-

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no. Mas essa plenitude explicativa, só a abordagem em torno do espaço po-
deria, eventualmente, expressar.
Santos (1998) enfatiza que o espaço é uma realidade relacional, isto
é, trata-se de
um conjunto indissociável do qual participam, de um lado, certo ar-
ranjo de objetos geográficos, objetos naturais e sociais e, de outro, a
vida que os preenche e o anima, ou seja, a sociedade em movimento.
O conteúdo (da sociedade) não é independente da forma (os objetos
geográficos) e cada forma encerra uma fração do conteúdo. O espa-
ço, por conseguinte, é isto: um conjunto de forma contendo cada qual
frações da sociedade em movimento (SANTOS, 1998, p. 26-7).

Adiante, continua, clarificando as distinções entre paisagem, configu-


ração territorial e espaço:
A paisagem é o conjunto das coisas que se dá diretamente aos nos-
sos sentidos; a configuração territorial é o conjunto total, integral
de todas as coisas que formam a natureza em seu aspecto superfici-
al e visível (...) o espaço é o resultado de um encontro entre a confi-
guração territorial, a paisagem e a sociedade (SANTOS, 1998, p. 77).

Ao escamotear a interpretação dos desastres dentro do enfoque do es-


paço, as instituições governamentais desfavorecem a compreensão do processo
social subjacente tanto à configuração territorial quanto aos significados
socioculturais da paisagem. Através desse desfavorecimento, evita-se que as
relações (de coesão ou de conflito) entre os distintos setores da sociedade
sejam explicitadas. A importância de considerar o desastre como parte
constitutiva de um processo social, sobretudo em seu caráter sociopolítico,
fica ainda mais nítida quando um desastre, com as mesmas características
ocorre muitas vezes, afetando as mesmas comunidades. A questão que se
coloca, nesses casos, é saber o comportamento das forças decisórias que im-
pedem essas comunidades de lidarem melhor com essa situação conhecida.
A literatura dirá que um desastre é um evento concentrado no tempo
e no espaço, mas tal concepção é inapropriada na abordagem sociológica.
Isso porque o enfoque sociológico focaliza a ação coletiva, contempla a
descrição e análise das interações dos distintos grupos envolvidos no colapso
da cultura local de segurança ou, ainda, dedica-se à interpretação das falhas
nas práticas sociais usuais e nas omissões que transcendem esse tempo e
espaço concentrado (DOMBROWSKY, 1998). Ao ter-se como referência
o espaço, num sentido amplo e dinâmico a que se referiu Santos (1998)
acima (e não concentrado e estanque), os fragmentos passam a não ser ex-

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plicáveis por eles mesmos, tornando-se meros indícios materiais de relações
sociais que os produzem e que atentaram contra a inteireza das coisas. O
meio social também ultrapassa as coisas, lhes conferindo múltiplos signifi-
cados, nem sempre coincidentes ou convergentes conforme o sujeito que se
debruça sobre elas e o momento em que o faz. Daí autores como Douglas
(1992) e Das (1995) advertirem para a existência de controvérsias inter-
pretativas envolvendo os desastres, identificando esse jogo social, que não
é somente discursivo, mas político. Tal jogo envolve posições de poder, que
são mantidas, fortalecidas, renegociadas ou contestadas em face de uma
circunstância coletiva de devastação material e sofrimento social. Tierney
(2007) as endossa ao afirmar que tem havido grande aceitação das formu-
lações construtivistas, as quais identificam que os desastres têm sido acom-
panhados tanto de solidariedade quanto de conflito social. E complementa:
Particularly in light of Katrina, the good news perspective must now
be modified to explicitly acknowledge that disasters are occasions
that can intensify both social solidarity and social conflict and that
the assumption that disasters constitute consensus crises is itself a
social construction. After Katrina, it is clear that even as disasters
set in motion large-scale prosocial action on the part of community
residents and civil society institutions, they are also accompanied by
official efforts to discourage disorderly behavior on the part of the
public and by public and governmental efforts to maintain social
distinctions and power iniquities (Tierney, 2007, p. 512).

A PERSPECTIVA DE GRUPOS SEVERAMENTE AFETADOS


E A INTERSUBJETIVIDADE AMEAÇADA

Aquilo que o corpo identifica e alcança é a paisagem, sendo a configura-


ção territorial o sistema inerte compreendendo aquilo que é, então, alcançá-
vel, reitera Santos (1998). Isso significa que o desastre, como um movimento
brusco de desordenamento de lugares, não é explicável apenas através dos
elementos da paisagem ou adstrito à configuração territorial, mas por aqui-
lo que vai além de ambos. A interpretação de um desastre, sob uma pers-
pectiva sociológica, exige a imbricação daquilo que está visível e do que é
invisível, relacionando, ainda, os atores sociais que são externos e inter-
nos ao cenário. Exige que os técnicos que têm a incumbência de produzir
um discurso sobre os acontecimentos não colham os destroços esperando
que esses falem por si mesmos. A própria ideia de destroço remete ao de-
sencaixe involuntário de um fragmento do conjunto original do qual par-
ticipava e, sobretudo, remete ao sentido culturalmente atribuído a esse
conjunto pela coletividade e/ou pelo indivíduo que dele fazia uso ou com
ele interagia.

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Ao invés de trazerem o seu próprio repertório cultural-institucional
hermético, que atribui sentidos e critérios padronizados de hierarquização
entre as coisas inseridas no cenário, seria muito melhor se técnicos de defe-
sa civil agissem como intérpretes, dispostos a mediar a relação dos grupos
sociais afetados com um Estado setorizado conforme a natureza relacional
e cultural inerente do espaço perturbado. Ou seja, entender a integração
entre as coisas e o meio social, com seus nexos e vínculos (incluindo as ten-
sões e conflitos) que transcendem o cenário. Essa observação vem ao pro-
pósito de nossa constatação de que, ocorrência após ocorrência de desastre
no Brasil, tem havido uma sobrevalorização das autoridades governamen-
tais e do meio técnico aos destroços e a certos prejuízos físicos pontuais de
infraestrutura pública da configuração territorial e, em torno desses, toma-
se providências de prestação de serviços públicos ou obras, supondo conse-
guir encaixá-los novamente no conjunto dinâmico do qual, presumidamente,
faziam parte.
Contudo, a interpretação sobre o significado dos fragmentos e sobre a
importância de cada um deles tem emanado dos que comandam o proces-
so decisório de reparação. No processo de avaliação de danos, costuma ha-
ver uma dificuldade intrínseca de diálogo técnico com os diversos atores que
representam a sociedade no espaço que sofreu perturbação, ou mesmo, dos
técnicos julgarem relevante mapear as distinções e conflitos dos subgrupos
sociais locais quanto à importância daquilo que se perdeu bem como a hie-
rarquia plausível, para cada um, das providências públicas recuperativas. A
resistência da cultura institucional de defesa civil a práticas de alteridade
entre seus técnicos e os grupos afetados nos desastres é enorme, não sendo
difícil constatar que essa é uma das razões pelas quais, quando abordamos
grupos afetados em desastres ocorridos nas várias partes do país, ouçamos
reiteradamente que as providências governamentais e técnicas tomadas
foram parciais, insuficientes ou equivocadas. “Nós não somos ouvidos!”, é
o lamento geral.
Se a esfera decisória da referida instituição valorizasse o processo de
construção de suas políticas e de suas ações práticas a partir de uma ética
genuinamente dialógica, alguns significados que estão ocultos poderiam
eclodir de vozes ora silenciadas, abafadas. Sentidos de filiação social e da
vastidão de um mundo interior coletivo poderiam se exteriorizar, confirmando
ou descartando a visão institucional ou, ao menos, mostrando as contradi-
ções e ambivalências que são próprias da vida social e refutando a linearidade
mecânica que ora prepondera. “Colocar-se no lugar do outro” tem, no con-
texto de desastre, uma dupla conotação: por um lado, seria um esforço de
nutrição da intersubjetividade, que é base da construção da confiança e da
legitimidade das ações técnicas, especialmente as presenciais; por outro, po-

– 338 –
deria favorecer a busca conjunta de novos mecanismos de restituições e com-
pensações aos sistemas de objetos ou de relações a serem refeitos.
Assim, quando os técnicos produzem discursos e práticas que apontam
para a configuração territorial como algo completo para desvendar o acon-
tecimento do desastre, os mesmos têm deixado de fora elementos que, apa-
rentemente, não estão ali, porque transcendem a geografização do mundo
sensível. O descarte que o meio técnico faz daquilo que lhes parece não
apenas invisível, mas inexistente, converte-se numa forma de violência sim-
bólica (BOURDIEU, 2004), pois suprime a sociedade em movimento, o elemento
vívido e organizativo do espaço observado. Dessa violência decorrem ou-
tras, relacionadas a práticas de atendimento reforçadoras de assimetrias de
classe social, de gênero, étnicas, produtivas.
A repetição de ocorrências de desastre do mesmo tipo, no Brasil, indi-
ca haver uma baixa reflexividade (GIDDENS, 1997) das instituições de de-
fesa civil, em coordenação com as demais instituições públicas, letargia que
predispõe os espaços a naturalizarem certas anomalias em termos de dis-
tribuição de riqueza, de acesso e difusão equitativa de tecnologias de pre-
venção e preparação, entre outros.
Em particular, conforme veremos a seguir, espaços constituídos pela
produção rural de base familiar são mito frágeis economicamente e a
vivência de contínuos desastres rebaixa suas perspectivas de reprodução
social. Se mergulhados numa sucessão de desastres, os produtores veem
dissipar rapidamente os frutos de qualquer período anterior de bonança e
a ideia de um chão inabalável para morar e sustentar a família.

A PRODUÇÃO FAMILIAR E O CONTEXTO DE DESASTRES

A lei número 11.326, de 24 de julho de 2006, define como agricultor


familiar e empreendedor familiar rural aquele que (a) não detenha área
maior do que 4 (quatro) módulos fiscais (que é variável em cada localida-
de), (b) realize trabalho no seu estabelecimento ou empreendimento, inclu-
indo a atividade de direção, e (c) cuja renda familiar venha centralmente
disso. As atividades rurais compreendidas no âmbito dessa lei abrangem não
apenas a agricultura, mas também a silvicultura e a aquicultura e outras
atividades extravistas, como a pesca artesanal.
Embora a feição diversa que a produção familiar adquira nas várias
regiões do país, entremeando aspectos socioambientais e produtivos pecu-
liares, lhe é difícil superar seu processo de vulnerabilização e, conse-
quentemente, sair ileso num contexto de desastre. Os desastres que mais
ocorrem no país estão relacionados à água. Assim, qualquer que seja a ati-

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vidade econômica do produtor familiar, a água de mais ou se menos já cau-
sa preocupação.
No entanto, cabe indagar: “Chuvas intensas e secas são o mesmo que
desastres?”. A resposta é não; ou ao menos, a de que não deveria sê-lo.
Oficialmente, no Brasil, os desastres são tipificados pelas autoridades
locais (municipais), através de decretos municipais, como situação de emer-
gência (SE) e, em casos mais graves, tipificados como estado de calamida-
de pública (ECP). O reconhecimento da ocorrência contida no decreto
municipal se dá, no âmbito federal, através de portaria do Ministério da
Integração Nacional (no qual está vinculado a Secretaria Nacional de De-
fesa Civil).
A quantidade de desastres no país tem sido muito significativa, abran-
gendo, em média, 25% do total de municípios brasileiros ao ano. Como já
abordamos noutro capítulo deste livro, as macrorregiões Nordeste e Sul são
as recordistas de decretações municipais de desastres e alguns municípios nas
unidades federativas dessas macrorregiões vivem em contínua emergência.
Chama a atenção o fato de que, no período decenal 2003-2012, 290
municípios das referidas regiões decretaram 10 ou mais emergências, reco-
nhecidas pela autoridade federal. A quase totalidade dessas emergências
estava relacionada à água (estiagens prolongadas/secas ou chuvas intensas/
enchentes/inundações/escorregamentos). Há casos de mais de 15 emergên-
cias decretadas pelo ente público municipal, o que é mais do que uma de-
cretação por ano (Tabela 1). Esse conjunto de repetições denota que há uma
estrutural fragilidade do espaço desses municípios para enfrentar adequa-
damente certos fenômenos hidrometeorológicos sem que estes sejam vistos
como um constante perigo; na verdade, trata-se de perigos cuja ocorrência
é prevista, com considerável antecedência, pela informação meteorológica
disponível. Em muitas das localidades onde os desastres mais ocorrem, a
produção rural familiar tem uma importante contribuição econômica local,
conforme observa o último Censo Agropecuário (IBGE, 2006).
É de notar que a previsão meteorológica voltada para a agricultura e
demais atividades rurais está bastante desenvolvida no país, sendo produ-
zida e difundida através do Instituto Nacional de Meteorologia (INMET),
embora haja institutos que tenham missão similar na escala regional, como
a Fundação Cearense de Meteorologia (FUNCEME), por exemplo. A prá-
tica de divulgação de boletins e relatórios técnicos meteorológicos de lon-
go espectro temporal deveria servir para um planejamento de médio prazo
da produção rural, incluindo a produção familiar. Contudo, a produção fa-
miliar não tem se favorecido dessa informação e sofre sistematicamente
como os mesmos percalços relacionados ao estresse hídrico ou chuvas in-

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tensas. A comunicação parece não alcançar esse público final bem como não
avançar nos canais governamentais para subsidiar medidas preparativas. Há
desde o simples desconhecimento das previsões técnicas à baixa sintonia
cultural entre os códigos da verdade científica objetivada, em que o meio
técnico de meteorologia e climatologia se baseia, e os códigos das predições
nas quais a cultura popular respalda as suas práticas.

Tabela 1. Distribuição das portarias federais de reconhecimento de situação de


emergência (SE) e de estado de calamidade pública (ECP) nos 15 municípios das
macrorregiões Nordeste e Sul do Brasil com o maior número de ocorrências
no período de 1 de janeiro de 2003 a 26 de junho de 2012.

Total de Total de portarias Total de portarias


número de (SE e ECP) (SE e ECP)
Unidade
Município portarias de relacionados
relacionados ao relacionadas às
Federativa
reconhecimento estresse hídrico e chuvas intensas e
de (SE e ECP) seus efeitos seus efeitos
Irauçuba Ceará 19 15 03
Santa
Tangará 18 5 11
Catarina
Caridade Ceará 18 15 03
Tauá Ceará 17 15 02
Lagoa Grande Pernambuco 17 15 02
Santa Cruz Pernambuco 17 15 02
Pedra Branca Ceará 17 15 02
Santa
Camboriú 16 – 14
Catarina
Santa
Salete 16 4 11
Catarina
Pena Forte Ceará 16 15 01
Afrânio Pernambuco 15 15 –
Araripina Pernambuco 15 13 02
Petrolina Pernambuco 15 11 03
Parambu Ceará 15 12 02
Tabuleiro do
Ceará 15 12 03
Norte

Sistematizado pela autora, baseado em informações oriundas da Secretaria Nacional de


Defesa Civil (SEDEC/MI) consolidadas em 26 de junho de 2012.

Dificuldades relacionadas à compreensão do jargão técnico somam-se


à descrença na informação difundida e à corrente falta de apoio governa-
mental para se proteger antecipadamente. Esses são alguns do fatores que
mantém o estranhamento entre quem monitora os céus e quem labuta na

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terra. Em alguns casos, um diálogo de meteorologistas com os saberes po-
pulares, que têm os seus próprios métodos de previsão do clima e tempo,
está se estabelecendo. É o caso da FUNCEME, que promove encontros com
os chamados profetas da chuva para compartilhar diferentes visões sobre o
tempo e o clima (TADDEI, 2008). Ainda assim, esse esforço de aproxima-
ção não tem sido convincente e nem tem feito a produção familiar recuar,
mesmo quando sabedora de que haverá adversidades climáticas adiante. O
trabalho precisa prosseguir porque o sentido do trabalho é central na vida
social e há outros fatores, além dos climáticos, que pressionam para a ten-
tativa de continuidade: rumores que sinalizam para o aquecimento do
mercado e melhoria dos preços; o habitus do produtor, cuja rotina de orga-
nização do tempo diário é demarcada pela lida e outros.
Um dos fatores mais destacados na persistência do produtor familiar tem
sido a forma como o mesmo se percebe como parte de uma coletividade que
constrói uma trajetória socioambiental relativamente autônoma do core das
preocupações do poder público local; autoridades governamentais e produ-
tores familiares representam-se mutuamente e relacionam-se como universos
distantes e desconexos. Isso ocorre devido não somente ao distanciamento
territorial que as unidades produtivas costumam ter em relação à localização
dos órgãos produtores de informação técnica e de decisão política (“eles es-
tão tão distantes de nós!”, lamentam os produtores), mas, sobretudo, devido
ao estranhamento cultural. Para as autoridades, as unidades produtivas de
base familiar se convertem em mera paisagem e são igualmente abstraídas nos
números de sua realização econômica. Já na ótica do produtor familiar, o meio
técnico e governamental seria incapaz, para não dizer, francamente desinte-
ressado a enxergar os mesmos conteúdos e compreender as mesmas articula-
ções entre os elementos visíveis e invisíveis que forjam, simultaneamente, a
territorialidade e a identidade social deste grupo.
Na relativa incomunicabilidade desses universos, o produtor familiar
segue exposto fragilmente aos perigos de chuvas tórridas, ventanias, queda
de granizo, secas, estiagens prolongadas. Nessa exposição, não adapta o
suficiente as suas rotinas diante os riscos de perda de seu trabalho na terra,
com os animais e na água nem se sente devidamente amparado com auxílio
técnico e financeiro para adotar novas estratégias de proteção. Quando
mergulhado no desastre, o produtor familiar mergulha também no deses-
pero em torno de esforços e dos investimentos que foram por água abaixo,
num rastro de dívidas que impede fazer todas as coisas que precisam ser
feitas para propiciar-lhe plena recuperação. Na terra, poderia ter evitado o
esforço vão em certos tratos culturais, semeaduras, aspersão de defensivos,
custos de irrigação e afins. Na pecuária, poderia ter evitado investimentos
fracassados na aquisição de cabeças de gado leiteiro ou de corte como tam-

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bém de suínos, caprinos e aves, com custos adicionais de formação de pas-
to, ração, instalações de confinamento, vacinas e afins. No trabalho na água,
poderia ter adiado a compra de embarcações, de gaiolas para peixes, de pro-
dução de redes e tarrafas, o cultivo alevinos e de demais recursos hidróbios.
Em todos esses casos, poderia ter se precavido contra um endividamento
desnecessário, isto é, evitado a tomada de empréstimos bancários, cujo pa-
gamento estava condicionado ao êxito da safra, que não foi logrado.
Evidentemente, os perigos ambientais são muitos e podem mesclar-se:
em meio ao enfrentamento de uma estiagem prolongada, ocorre uma praga
na lavoura; em meio ao combate da praga, o preço da cultura despenca; pró-
ximo à época da colheita, uma queda de granizo destrói a lavoura etc. Sendo
muitos, as opções acabam sendo entre a paralisia do medo e o sentido exis-
tencial de prosseguir e, no geral, essa última vence. Na produção familiar,
prosseguir indica uma preocupação concreta com a sobrevivência e a repro-
dução social, isto é, com as busca das mais condições objetivas, por mais
limitantes que sejam, para manterem seus membros coesos. Ir para a labuta
é, também, uma construção subjetiva, de ampliação da substantividade do
ser. O exercício de certas habilidades e técnicas corporais prova ao próprio
sujeito quem ele é, a sua razão de ser, o que se reafirma por mais adversas que
sejam as condições ambientais. Ademais, as manifestações de enraizamento
da família no lugar dão-se na síntese interativa entre o espaço privado e a vida
comunitária e um sistema de crenças compartilhado, que anima as festivida-
des religiosas locais e outras práticas de integração de seus membros. O lugar
nunca alcançado por medidas protetivas técnicas e governamentais efetivas
– que viabilizassem o armazenamento hídrico preventivo nas secas, obras
públicas de contenção de vazões hídricas superficiais atípicas nas chuvas in-
tensas ou prolongadas, o reforçamento de pontes e contenção de encostas, o
erguimento de galpões comunitários mais resistentes para guardar máquinas
e equipamentos e armazenagem de insumos e grãos, dentre outros – não há
de crer que um mero ‘aviso sobre o tempo ruim’ ocasione, apenas de sua par-
te, uma mudança atitudinal radical.
Na melhor das hipóteses, o ‘aviso sobre o tempo ruim’, que uma parte
da máquina pública deflagra sem que a outra parte compareça simultanea-
mente coordenando as ações de proteção civil, gera uma dubiedade em tor-
no da veracidade da informação, como a dizer: ‘se é verdade que estamos expostos, em
uma situação crítica de risco, as autoridades precisam dar sinais de que farão algo por
nós. Se não emitem esses sinais, é porque esse nível de risco não está confirmado’. Na
pior delas, há uma franca desconsideração pela informação que chega sobre
os perigos, porque parece vaga, imprecisa, incompreensível e mesmo inútil
diante da situação de abandono social que se sentem os produtores familia-
res que foram ‘avisados’, mas nunca anteparados pelo Estado.

– 343 –
Esse abandono social, então, se confirma quando tudo aquilo que o
produtor familiar depositou na sua relação com o espaço, com as parcas
condições privadas e comunitárias existentes e fluxo de caixa sempre bai-
xo, se confrontam com os rigores inesperados do clima e tudo desmorona.
Num desastre, a safra que se frustra é acompanhada de outros danos
e prejuízos que se refletem num tempo social mais longo do que o tempo
cro-nológico daquela temporada de chuvas ou seca. Trata-se dos danos e
prejuízos relacionados aos demais meios de produção e objetos de trabalho,
o que impende ao produtor familiar se refazer economicamente até o
próximo ciclo e pagar as dívidas eventualmente contraídas junto aos
bancos. A perda de galpões, silos e outras instalações; a destruição de
culturas permanentes; o comprometimento da qualidade de estoques de
grãos e sementes; a danificação de tambores de defensivos e outros
agroquímicos, com vazamento do material e contaminação do solo; a
quebra de máquinas agrícolas, de veículos e de demais equipamentos,
com reparações custosas ou irreparáveis; a perda de ferramentas e outros
equipamentos; a morte de cabeças de animais de criação; a fuga de peixes
e alevinos (especialmente em enchentes); por fim, a perda da possibilidade
de exercício do trabalho por parte de membros do núcleo familiar dedicado
à produção ou empreendimento, devido ao falecimento, ferimento,
adoecimento e migração decorrente do desastre são parte de um amplo rol
de adversidades e constrangimentos impeditivos da retomada da produção
tal como se estabelecia outrora.
Apesar dos desafios recuperativos com várias facetas e de tempo lon-
go, a cultura institucional de defesa civil e recuperação de modo mais pon-
tual e com medidas fracionadas e implementadas muito vagarosamente. Por
exemplo, a falta de uma interlocução dos técnicos com os grupos sociais
afetados tem como consequência as inadequações das medidas recuperativas
econômicas, tais como a estratégia de prolongamento do prazo das dívidas
bancárias contraídas sem que seja ampliada a margem para que o produtor
tenha acesso a novos recursos para restabelecer as suas condições de traba-
lho; ou, ainda, a deflagração de obras de infraestrutura mal feitas ou que
serão iniciadas e interrompidas adiante, sem conclusão e sem efeito para o
melhoramento do retorno das rotinas daquela comunidade.
Em geral, as medidas preventivas e preparativas frente aos desastres,
que seriam vistas como oportunas pelo produtor familiar, são continua-
mente descartadas pelas autoridades governamentais e técnicos porque a
máquina pública é movida mais rapidamente apenas através da con-
cretização do cenário de tragédia. Uma vez que os desastres ocorram, as
medidas de reparação são disponibilizadas, mas se tornam pífias diante
os danos havidos.

– 344 –
No que se refere ao produtor familiar, a lei de número 10.696, de 02
de julho de 2003, que trata da repactuação e alongamento de dívidas oriun-
das de operações de crédito rural, autorizou, em seu oitavo artigo que, caso
houvesse frustração de safra por fenômenos climáticos, seriam preservadas
as condições financeiras do Programa Nacional de Fortalecimento da Agri-
cultura Familiar-PRONAF e poderia haver uma conversão das operações
financeiras no valor de até R$ 15.000,00 para fundos constitucionais. O
decreto de número 6.760, de 05 de fevereiro de 2009, que regulamenta a
lei número 10.420, de 10 de abril de 2012, retoma o tema do benefício
Garantia Safra para a macrorregião Nordeste e adjacências, salientando:
§ 1: O benefício Garantia-Safra destina-se a garantir renda mínima
para agricultores familiares de municípios sistematicamente sujeitos
a perda de safra devido ao fenômeno da estiagem ou excesso hídrico,
situados na área de atuação da Superintendência de Desenvolvimen-
to do Nordeste - Sudene (....)
§ 2: o benefício Garantia-Safra é restrito aos agricultores familiares
das regiões definidas no § 1, que, tendo feito a sua adesão, vierem a
perder, no mínimo, cinquenta por cento da produção de milho, fei-
jão, arroz, mandioca ou algodão em razão da estiagem ou excesso
hídrico (...)
§ 3: é vedado a concessão do Garantia-Safra aos agricultores famili-
ares que participem programas similares de transferência de renda
relacionada com a ocorrência de estiagem ou excesso hídrico, custe-
ado, ainda que parcialmente, com os recursos da União (...)
[Seção 11 - A]
§ 1 Para a avaliação das perdas, a Secretaria de Agricultura Familiar
usará informações e análises meteorológicas fornecidas pelo Insti-
tuto Nacional de Meteorologia, baseadas em dados próprios ou for-
necido por outras instituições do país ou do exterior (...)
§ 5 para os pagamentos dos benefícios relativos às safras anteriores
à 2008-2009, é necessário que os municípios tenham declarado
emergência ou calamidade pública reconhecida pelo Ministério da
Integração Nacional. (BRASIL, 2009)

O arcabouço legal acima mencionado deveria ser questionado quanto


aos seus efeitos no respaldo à atividade produtiva. Em primeiro lugar, pa-
rece apontar, a princípio, para o produtor familiar que vivencia um contex-
to (ou recorrentes) de emergência decretada pelo ente municipal: “siga em
frente, mesmo se as coisas piorem”. No entanto, os valores pagos para cada

– 345 –
produtor são irrisórios, além de retirar do perfil dos beneficiários aqueles
que se dedicam a culturas alternativas, os que têm renda familiar superior
a 1,5 salários mínimos por mês ou os que fazem uso de recursos tecnológicos
de prevenção, como sistemas de irrigação. Em segundo lugar, exige que a
autoridade local de defesa civil reconheça, por meio decreto municipal, a
sua incapacidade técnica e financeira local logo após os danos e prejuízos
terem sido constatados; ou seja, o estado de penúria e sofrimento social deve
materializar-se para que o produtor familiar possa receber apoio posterior
ao invés de anteparo prévio. Em terceiro lugar, mas não menos importan-
te, trata-se de uma política que impõe um custo muito alto para as famílias
de produtores, devido a sua sinalização de que o risco diminuiu (porque o
Estado irá compensá-los, se necessário), que alimenta a crença de que o tra-
balho não será perdido e, porém, como o ressarcimento é incompatível,
aumentam-se os danos e prejuízos a cada desastre (sementes compradas,
safras perdidas etc).
Para ilustrar o problema supramencionado, referente à fragilidade da
produção familiar, com foco nas macrorregiões Nordeste e Sul, remeteremos
sinteticamente abaixo a um registro jornalístico bem como a registros pro-
venientes de pesquisa de campo realizada pela autora e sua equi-
pe, coletados entre os anos de 2005 a 2011 nos municípios de Ilhota/SC,
Assu/RN e Orós/CE, e outros coletados apenas pela autora, nos anos de 2012
e 2013, nos municípios de Aracati/CE, Angicos/RN e São Jerônimo/RS.
No município de Ilhota, estado de Santa Catarina, na região sul do país,
numa época de fortes chuvas no final de 2008, houve enchentes e desliza-
mentos em áreas rurais, bem como a explosão de um oleoduto em um lu-
gar chamado Morro do Baú, composto por seis comunidades rurais. O
decreto de calamidade pública só foi reconhecido pelo governo federal 143
dias após o início do desastre. Entre outras atividades econômicas, os agri-
cultores locais de Ilhota se dedicavam à rizicultura, à bananicultura bem
como à atividade aquícola e às pequenas serrarias. Além de perdas humanas
sofridas, com dezenas de mortes, as casas dessas comunidades foram
danificadas ou desabaram. Muitos terrenos perderam a sua configuração ori-
ginal, devido à força das águas e aos deslizamentos de terra. Culturas foram
totalmente destruídas, bem como máquinas e equipamentos. Animais de
estimação e criação pereceram, como cavalos, porcos, galinhas. Instalações
públicas também foram afetadas nessas comunidades, de escolas rurais a es-
tradas e pontes. Sobre a renegociação de dívidas para a safra frustrada, os
agricultores familiares estavam no limite de sua capacidade de endividamento
e não podiam suportar qualquer desastre futuro. Conforme os mesmos
salientaram um mês após o início do desastre:

– 346 –
Eu tinha muita coisa lá em cima [na sua propriedade]. Eu tinha a
minha casa (...) O maquinário que eu precisava, eu tinha (...). Hoje
não dá mais para aproveitar para plantar um pé de nada, eu tinha
terra boa lá pra trabalhar (Entrevistado A).
(...) E nunca fui mal pagador. Qual o juiz vai me acusar [Se um de-
sastre me deixar devendo na praça?]. A defesa civil teve autoridade
pra me tirar de lá [devido aos deslizamentos de terra], então, devia
ter a autoridade para limpar o meu nome ou bancar financeiramente
os meus pagamentos, pois está vindo dinheiro para eles [refere-se às
doações de brasileiros para o seu socorro, recursos estes enviados para
uma conta gerida pelas autoridades de defesa civil] (Entrevistado E).
(VALENCIO, 2010, p. 16)
Os produtores enfatizaram, dois anos depois, numa memória viva, que
demonstra a continuidade do sofrimento social:
Começando pelo resgate, eu acho que a gente aprendeu ou devería-
mos ter aprendido, foi que o primeiro socorro é que vem do vizinho
do lado (...) Minha irmã esperou por horas 14 e meia o resgate do
Estado e o socorro que ela teve foi dos vizinhos (...) Porque a gente
só viu o socorro do Estado chegar quando a gente já tinha socorri-
do, foi uma decisão nossa sair das casas, foi uma decisão nossa bus-
car abrigo e cada um foi fazendo o que dava pra fazer, o socorro
realmente chegou muito depois (...) No que diz respeito da parte do
luto, eu acho que, naquele momento, não deu para viver essa parte,
porque a gente tinha que pensar em se salvar, então, eu não sei o que
é pior, porque a gente tava sem casa, sem trabalho e não sabia se ia
ter o que comer o dia seguinte, a gente tinha que tentar se restabe-
lecer e deixar essa parte de luto um pouco de lado. (...) O caso da
minha mãe foi o mais difícil, porque o corpo dela sumiu e depois foi
encontrado (...) quando se fala de verba federal, nós sempre ouvi-
mos falar sobre um milhão ou 10 milhões [de reais], a gente só ouve
falar que chegou...e depois que chegou, foi pra onde? (...) O grande
problema da tragédia foi a agricultura, porque nos outros setores
conseguimos nos reerguer, mas as pessoas dizem que o bananal tá
verdinho e produzindo, o arroz também e que tudo voltou ao nor-
mal. Mas, o problema é que os agricultores fizeram dívidas por 10
anos, são 7 anos de pagamento e 3 de carência. A grande maioria
dos agricultores chegou ao ponto máximo de endividamento, então,
tem que rezar pra nada acontecer nos próximos meses, porque se
ocorrer algo eles não vão conseguir pegar mais empréstimos com o
governo pra mais nada (Entrevistado Tatiana Reichert, presidente
da Associação dos Desabrigados e Atingidos do Baús - ADARB).

– 347 –
(...) Eu vou embora daqui, eu tou doente, não tenho mais coragem
de ficar aqui (...) quando chove, eu sumo, eu me mando (....) o Baú
ficou abandonado (Entrevistado D)
(...) Faltam essas pontes para [a região] crescer novamente e voltar
a ter serviço (...) as firmas foi tudo embora (...) Eu perdi uma casa,
terreno perdido e não ganhei nada até agora (...) as barreiras caíram,
o terreno rachou (...), o que não foi embora com a água, a defesa civil
passou retroescavadeira (...) a defesa civil e a assistência social ficam
jogando um para o outro [os problemas] e nada de pagar [os bene-
ficiamentos existentes no terreno interditado]. (VALENCIO et al.,
2011, p. 50-2).

No município de Assu, no Rio Grande do Norte, e no município de


Orós, no estado do Ceará, ambos na macrorregião Nordeste, as grandes
barragens e grande reservatório perto das pequenas propriedades não
são convertidos na possibilidade de acesso direto de água para produtores
ou para os moradores mais pobres da área urbana.
Em Assu/RN, a convivência com longos períodos sem chuva parecia
pouco ameaçador para os agricultores mais pobres que conseguiram ocupar
informalmente um terreno e levantar a sua modesta casa imediatamente à
jusante da barragem para ali praticarem a sua lavoura de subsistência es-
perando o acesso regular à água, o que não se cumpriu, pois os canais de
irrigação visaram os empreendimentos do perímetro irrigado. A visão da
água e o acesso á água tornaram-se coisas distintas. Ali, como em todo o
semiárido nordestino, o sertanejo que persiste na terra é visto como forte e
resoluto, capaz de lidar com as dificuldades impostas pela providência
divina (VALENCIO; GONÇALVES, 2006a). Em Orós/CE, a água potá-
vel é considerada muito cara para a renda familiar e o ‘castigo da seca’ às
lavouras de maior consumo de água declinava todo o ritmo da atividade
econômica comunitária. No entanto, as mulheres continuam fazendo as
mesmas práticas culturais seculares do campo, como lavar roupas em con-
junto, à beira do filamento de água que ainda estava disponível:
Mais de quarenta anos após a sua inauguração, a barragem de Orós,
no interior cearense, encontra, ao seu pé, um pequeno lago forma-
do na calha original do rio Jaguaribe, as lavadeiras da localidade. Em
grupos, trazem as suas trouxas, enxaguam e estendem suas roupas
nas pedras, à secagem pelo sol das manhãs, o menos escaldante do
semiárido, enquanto proseiam e observam, ali próximo, os filhos
próximo que lhe acompanham para a recreação na água. A simultâ-
nea possibilidade de exercício de um trabalho cotidiano de acompa-

– 348 –
nhamento de brincadeiras das crianças constitui um habitus no uni-
verso feminino local (VALENCIO; GONÇALVES, 2006b, p. 211).

Em ambos os casos, como em vários outros da região, observa-se a


existência de um controle tecnopolítico sobre os estoques de água doce que
impede que este recurso vital alcance imediatamente as comunidades ru-
rais formadas por produtores familiares autônomos. Registros jornalísticos
complementam a compreensão desse quadro.
Em maio de 2012, a produção de milho e o feijão, predominantemen-
te realizada pela agricultura familiar, na macrorregião Nordeste, tinha sido
inviabilizada pela falta d´água. Embora a terra tivesse sido arada, não ha-
via água para iniciar o novo ciclo de plantio, ocasionando falta de alimen-
tos para o consumo das famílias na zona rural as quais, buscando adquiri-los
no mercado, pressionaram involuntariamente os preços para cima:
Um dos que preparou a terra foi o agricultor Pedro Alexandre, 61,
que não esconde sua frustração com a falta de chuva. “Todos os
meses do abril e maio a gente planta. Ano passado plantei, mas como
não houve chuva, eu perdi tudo. Este ano nem plantar plantei. Está
todo mundo parado, e acho que isso ano está tudo perdido”. No as-
sentamento Caiçara, ligado ao MST (Movimento dos Trabalhado-
res Rurais Sem Terra), já próximo à divisa de Sergipe com Bahia, os
pequenos agricultores também relataram prejuízos com a produção,
mas ainda acreditam que a chuva virá. “Aqui plantamos para con-
sumo nosso. Mas este ano não teremos nenhum caroço de feijão ou
de milho. Para nós é ruim demais. Vivemos da ajuda do governo [pelo
Programa Bolsa Família], e o nosso complemento era essa plantação,
que não veio por conta dessa seca. Mas eu tenho fé que ainda vai
chover e que vamos plantar”, contou o agricultor Severino Ramos,
69. Em Glória (BA), a situação é a mesma. “Tudo está perdido este
ano, não tem mais jeito. Agora, é esperar o próximo ano. Para esse,
não acredito mais em chuvas”, diz Felix Araújo, 68. Para ajudar os
produtores que perderam suas produções, o governo federal anun-
ciou a antecipação da garantia-safra, no montante de R$ 680,00.
Além disso, as famílias das áreas afetadas irão receber o Bolsa-Esti-
agem, no valor de R$ 400,00 dividida em cinco parcelas de R$ 80,00
(MADEIRO, 2012).

No início do ano de 2012, foi a vez do sofrimento dos produtores fa-


miliares da macrorregião Sul. A estiagem prolongada foi a justificativa para
que centenas de municípios da região Sul decretassem situação de emer-

– 349 –
gência. Quase 300 deles estavam no estado do Rio Grande do Sul, enquanto
que 137 municípios estavam no Paraná e 80 em Santa Catarina. Como sem-
pre, foi feito com alarde o anúncio das medidas públicas que poderiam alivi-
ar a situação de sofrimento, mas que surgiram completamente fora de sintonia
com as necessidades vitais das comunidades rurais afetadas. Tais medidas,
de ‘caráter técnico’, vinham em ritmo lento, com a deflagração de obras de
infraestrutura que já deviam estar em pleno funcionamento durante o con-
texto ambiental crítico de estiagem, o que mostra que a concepção de pre-
venção dos atores competentes é sempre para o desastre seguinte, nunca para
aquele que já está sendo vivido:
(...) O governo federal e dos três estados anunciaram medidas para
auxiliar as localidades e agricultores afetados (...) O governador
do Rio Grande do Sul, Tarso Genro, anunciou a liberação de
R$ 54.420.000,00 para ações emergenciais e medidas preventi-
vas contra a estiagem [e] irá investir R$ 5 milhões na extensão de
redes de água, compra de bombas para poços artesianos e reserva-
tórios nos municípios atingidos pela estiagem. Em Santa Catarina,
somados os recursos federais e estaduais, o socorro chega a R$ 28,6
milhões. Entre as medidas anunciadas (...) estão a construção de 333
poços artesianos em municípios atingidos pela seca e a liberação de
recursos de seguro agrícola mediante laudos técnicos da Empresa de
Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina. O gover-
nador Beto Richa [Paraná] também prometeu investir R$ 21.5 mi-
lhões na instalação de 300 sistemas comunitários para abastecimento
de água em várias regiões do Paraná. Outros R$ 10 milhões serão
investidos juntamente com o Ministério da Integração Nacional na
implantação de cisternas em comunidades rurais historicamente
afetadas por falta de água, iniciativa que, de acordo com a assesso-
ria do governo, irá atender especialmente os produtores de frango,
suínos, leite e hortaliças. O governo do Paraná também vai destinar
R$ 6 milhões para ajudar quem precisa comprar insumos agrícolas
(fertilizantes, máquinas, defensivos agrícolas) e acelerar as vistori-
as em plantações a fim de que os produtores possam solicitar o res-
sarcimento das perdas pelo Programa de Garantia de Atividade
Agropecuária e o pagamento do Seguro da Agrícola Familiar (AGÊN-
CIA BRASIL, 2012).

Assim, vemos a retórica da preocupação pública e do compromisso do


governo, especialmente para com a produção familiar, mover-se na dire-
ção da mídia para anunciar uma grande soma de dinheiro que será trans-
ferido para o bem-estar comunitário. No entanto, nem todas as obras

– 350 –
anunciadas são, realmente, realizadas e muitas ficam no meio do caminho,
paralisadas entre uma gestão e outra. Enquanto isso, uma nova onda de
secas ou de chuvas intensas torna a ser a justificativa para a decretação de
novas emergências.
No final do ano de 2012, a falta de acesso à água, porque o caminhão
pipa não alcançava uma área de assentamento no município de Aracati/CE,
devido aos bancos de areia na estrada, inviabilizava o emprego de técnicas
agrícolas alternativas de produção de autoconsumo, como no sistema de
mandala (Foto 1).

Foto 1 Nesse sistema de mandala, em assentamento em Aracati/CE, o multiuso


da água viabilizava para o produtor familiar a criação de aves e a produção de
uma diversidade de verduras e legumes, mas a falta de suprimento de água
punha tudo a perder. Imagens: Norma Valencio, dezembro de 2013.

No início do ano de 2013, o município de Angicos/RN vivia sob a de-


cretação de emergência e os produtores rurais jugavam serem pífias as quan-
tidades de água que os carros-pipa lhes destinavam e seus animais quedavam
exaustos, famintos e sedentos, um após o outro (Foto 2).
Aqui tem plantação, quando chove tem (batata, feijão, milho,
jerimum), gosto muito do trabalho na roça (...) terminamo a seca
bem por causa da aposentaria e da ajuda dos filhos, senão não dava,
a carestia é demais (...) aqui abastece de 60 em 60 dias só uma
carradinha d´água do Exército, num dá! Aí, nós é que vamos nos
esforçar prá comprar outra (...) a gente toma um banho no dia, por-
que ninguém aguente o calor...se fosse pra dar pros bichos inda ser
ainda pior! Abriu uma cacimba pros bichos (...) A água é salgada...
A roupa eu vou lavar lá na cidade...(Entrevistado G., em depoimen-
to concedido à autora em janeiro de 2013)

No que complementa um representante do grupo:

– 351 –
(...) O sufoco que nós passamos aqui mão é pouco (...) Essa seca está
tão grande que está acabando com o nosso rebanho (...) você andan-
do aqui no nosso município vai ver vários cemitérios de animais,
aquilo é uma perda imensa para a agricultura porque o agricultor fica
na área rural sem ter mais nada para se alimentar, sem condições de
sobreviver, com certeza vai ter que sair pra a cidade e aí a nossa área
rural está ficando desabitada(...) eu acho que leva 10 anos nós não
vamos recuperar as perdas que houve nessa seca de 2012 entrando
pra 2013(...) pra ter uma vaca pra dar leite pra sua família, leva de
3 a 4 ano à frente, aí você convive com ela, já deu 8 crias, é uma
reprodutora...e aí nós vemos perdendo...e aí, [o produtor] terminou
empenhado no banco e com a perda dos seus animais... (Sr. Ivanildo,
presidente do Sindicato dos Trabalhadores e Trabalhadoras Rurais
de Angicos/RN, depoimento concedido à autora em janeiro de 2013).

Foto 2 A vegetação ressequida e o gado morto entremeiam-se no espaço desolado.


Vacas e bezerros estirados sem vida sobre a terra limitam as possibilidades do
presente e do futuro do produtor familiar em Angicos/RN.
Imagem: Norma Valencio, janeiro de 2013.

Na mesma época, no município de São Jerônimo/RS, os produtores


ainda contabilizavam perdas da safra e outros prejuízos em suas proprie-
dades devido a mais um episódio de vendaval e queda de granizo:
(...) Caiu a estufa, tivemo que arrumá, foi um prejuízo...o telhado
ficou todo quebrado, nóis mesmo tivemôoque compra, porque não
tinha jeito, a prefeitura disse que não podia ajuda porque tava com

– 352 –
dívida, tivemo que compra fiado, em crédito...(Entrevistado H., de-
poimento concedido à autora em janeiro de 2013)

Fotos 3 e 4 Desmoronamento de instalações e quedas de árvores em suas propriedades


são alguns dos prejuízos que os produtores familiares tem sofrido em localidades como
São Jerônimo/RS. Imagens: Norma Valencio, janeiro de 2013.

De perdas em perdas, esses e outros milhares de produtores rurais fa-


miliares tentam prosseguir, lidando com as suas descompensações.

CONCLUSÕES
Uma vez que se concorde com a definição de desastre como um tipo
de crise na esfera social, abre-se a possibilidade de uma melhor compreen-
são das dimensões culturais, políticas, econômicas e intersubjetivas im-
plicadas.
No caso da produção familiar, o foco na complexidade da produção
social do espaço é essencial, pois de sua animação surge o lugar, onde há
funções integradas de abrigo, de trabalho, de manutenção das relações so-
ciais mais significativas e duradouras, de organização do sistema de obje-
tos ligados ao seu próprio repertório simbólico e suas próprias regras
culturais, entre outros. O poder público, tal como hoje se debruça sobre o
problema dos desastres, não pode chegar a uma compreensão completa sobre
esta concepção de espaço. Além disso, nem sequer se esforça o suficiente.
Há um padrão de atendimento técnico e político que espera que os desas-
tres ocorram para somente após isso envolverem-se na questão e fazerem
algo a respeito. Isso impõe uma lógica sociopolítica na qual somente com a
concretização de algum nível de sofrimento social é que deflagra uma ação
pública compensatória, ainda que desproporcionalmente inferior.
Os desastres não são eventos incomuns no país. No oposto disso, são
banais, ao ponto de, em algumas regiões e cidades, a sua ocorrência ser tão
repetitiva que parece fazer parte da vida comum do povo local e, principal-

– 353 –
mente, dos pobres, dentre os quais se destaca o produtor rural familiar. Este
é mantido à distância do planejamento público em ações emergenciais.
Devido a esta distância, este produtor é empurrado para uma posição de
mobilização de seus recursos alternativos – pessoal, familiar e comunitário –
para sobreviver e se levantar de novo, quando tudo o mais falhar no con-
texto devastação. Mas essa coesão social, na afirmação dos laços de solida-
riedade comunitária nos momentos difíceis, tem um preço alto para essa
coletividade, que é sinalizar erroneamente ao Estado que pode seguir com
certo alheamento às tramas de sofrimento e empobrecimento coletivo.
O número considerável de ocorrências de desastres no Brasil a cada
ano – e estamos aqui nos referindo apenas aos desastres que geraram de-
cretos municipais que, por seu turno, foram reconhecidos pelo governo fe-
deral – indica uma desconexão entre o corpo político de tomada de decisão
nacional e a realidade social sobre a terra rural, onde o produtor familiar
não tem meios adequados para se defender contra os perigos de certos even-
tos severos ou extremos do clima.
Neste caso, torna-se clara a preocupação dos autores, como Oliver-
Smith (2006), de que, apesar dos avanços tecnológicos e científicos na pre-
visão e mitigação, tem havido um aumento nas perdas econômicas causadas
por desastres, resultado de respostas deficientes. Desastres são processos
multidimensionais e multifatoriais, como enfatiza Garcia Acosta (2005),
derivados de riscos produzidos ao longo de um processo histórico e dos
modelos de desenvolvimento consolidados que reforçam as desigualdades
sociais, perpetrando políticas de insegurança humana, mesmo as que se
autodenominam como políticas de proteção civil.
O produtor familiar persiste em animar o seu espaço, apesar das incer-
tezas que, muitas vezes, materializam prejuízos difíceis de contornar. Há
sentidos objetivos e subjetivos envolvidos no mundo do trabalho rural fa-
miliar, que seguem mesmo quando salta aos olhos que não há uma comu-
nicação eficiente do corpo de especialistas que interpretam os fenômenos
do tempo e clima e os que manejam as soluções governamentais para
viabilizar uma melhor preparação comunitária frente a perigos conhe-
cidos. Aquilo que leva o espaço a tornar-se vivo é a resistência das famílias
para tentar manter um domínio sobre a terra e sobre suas vidas, o que não
é apenas algo visível. A terra de lavrar, assim como os pastos e as águas dos
rios e mares oferecem-se como um espaço visível, invisível e também como
um espaço interior, simbólico, para as pessoas que nele vivem e convivem;
oferecem-se como uma fronteira entre o mundo significativo e o mundo da
indiferença.

– 354 –
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