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Jornal dos

Nº 415 Março de 2024


ECONOMISTAS Órgão Oficial do Corecon-RJ e Sindecon-RJ

O mundo em guerra

Henrique Pereira Braga,


Luiza Peruffo, André
Moreira Cunha, Júlio Miragaya,
Arquimedes Martins Celestino,
Roberto Alexandre Zanchetta Borghi,
Carlos Eduardo Martins, Rogério Naques
Faleiros, Ticiana de Oliveira Alvares e Luís
Antonio Paulino analisam os impactos econômicos
e geopolíticos das guerras no mundo.

Resumo do trabalho de Igor Fois Abramof, um dos vencedores do 31º Prêmio


de Monografia Economista Celso Furtado
2 | EDITORIAL

O mundo em guerra Sumário


n Quais são os impactos econômicos e geopolíticos das guerras no mundo? Guerra local, consequência global: breve leitura da guerra na Ucrânia.. 3
Henrique Braga, da Ufes, julga que a guerra na Ucrânia marca a re- Henrique Pereira Braga
configuração dos espaços de acumulação de capital, na qual a EU se
As guerras e a fragmentação da economia globalizada............................ 5
consolida como um enclave dos EUA e a Eurásia, cujo centro é a China,
Luiza Peruffo e André Moreira Cunha
o principal lócus do capitalismo.
Luiza Peruffo e André Cunha, da Ufrgs, ressaltam que o dólar perma- O mundo em guerra....................................................................................... 7
nece a moeda dominante no mundo. A intensificação dos conflitos geo- Júlio Miragaya
políticos pode acelerar a adesão às alternativas oferecidas pela China,
mas é improvável que os EUA assistam a esses avanços passivamente. A guerra e o comércio internacional..........................................................10
Júlio Miragaya, ex-presidente do Cofecon, traça um panorama histó- Arquimedes Martins Celestino
rico das guerras no mundo, que sempre têm como motivação central in-
Desafios da economia global diante da escalada
teresses econômicos. O atual ciclo de acumulação de capital, com hege- de conflitos armados no pós-pandemia....................................................12
monia dos EUA, é cada vez mais desafiado pela China. Roberto Alexandre Zanchetta Borghi
Arquimedes Celestino, da UFRJ, destaca que a guerra diminui o in-
tercâmbio comercial entre países. Ainda não sabemos se as guerras em O empate catastrófico no mundo contemporâneo e as guerras.............14
curso trarão benefícios econômicos aos países militarmente vitoriosos. Carlos Eduardo Martins
Roberto Borghi, da Unicamp, aponta que as repercussões das guerras, so-
O que não existe mais.................................................................................16
madas aos efeitos remanescentes da pandemia, são sentidas na cadeia de su-
Rogério Naques Faleiros
primentos, crescimento econômico, preços de commodities, inflação e finanças.
Carlos Eduardo Martins, da UFRJ, avalia que há uma polarização no mundo As guerras, o mundo em transição,
entre: o imperialismo ocidental, liderado pelos EUA e Otan, e o eixo anti-im- o dilema europeu e o lugar do Brasil........................................................18
perialista e multipolar, articulado por China, Rússia e Estados do Sul Global. Ticiana de Oliveira Alvares
Rogério Naques Faleiros, da Ufes, acredita que a situação no Oriente
Médio e Eurásia é um batismo de fogo ao soft power chinês. Seria a China Guerra na Ucrânia.........................................................................................21
Luís Antonio Paulino
capaz de mediar conflitos mundiais e dotar a economia de algum “norte”?
Ticiana Alvares, do Ineep, enfatiza que o Brasil tem vantagens com- Classe média comprimida durante o experimento redistributivo recente
parativas e poderia se beneficiar de oportunidades do “caos sistêmico”. O no Brasil?......................................................................................................23
desafio é vincular o potencial a um projeto de desenvolvimento. Igor Fois Abramof
Luís Paulino, da Unesp, argumenta que Europa e EUA avaliaram mal
a capacidade da Rússia na guerra na Ucrânia e a importância da integra- O Corecon-RJ apoia e divulga o programa Faixa Livre, veiculado de segunda
ção da economia russa com a chinesa e indiana. a sexta de 8h às 10h. Você também pode ouvir os programas pelos sites www.aepet.
org.br/radioaovivo.html e www.programafaixalivre.com.br, canal no Youtube, Facebook,
Leia também o resumo do trabalho de Igor Abramof, um dos vence- Instagram, podcast no Spotify, Deezer, Castbox e SoundCloud e aplicativo gratuito.
dores do 31º Prêmio de Monografia Economista Celso Furtado.

Órgão Oficial do CORECON - RJ Presidente: Antônio dos Santos Magalhães. Vice-presidente: José Antonio Lutterbach Soares. Con-
E SINDECON - RJ selheiros Efetivos: 1º TERÇO: (2023-2025): Arthur Camara Cardozo, Marcelo Pereira Fernandes, Sid-
Issn 1519-7387 ney Pascoutto da Rocha - 2º TERÇO: (2024-2026): Antônio dos Santos Magalhães, Fernando D´Angelo
Machado, Luis Gustavo Vieira Martins - 3º TERÇO: (2022-2024): Carlos Henrique Tibiriçá Miranda, Jo-
Conselho Editorial: Antônio dos Santos Magalhães, Sidney Pascoutto da Rocha, Carlos Henrique Ti- sé Antonio Lutterbach Soares. Conselheiros Suplentes: 1º TERÇO: (2023/2025): Gustavo Souto de
biriçá Miranda, Gustavo Souto de Noronha, João Hallak Neto, Marcelo Pereira Fernandes, José Antonio Noronha, João Hallak Neto, Regina Lúcia Gadioli dos Santos - 2º TERÇO: (2024-2026): Juliana Duffles
Lutterbach Soares, Wellington Leonardo da Silva, Paulo Sergio Souto, João Manoel Gonçalves Barbo- Donato Moreira, Gilberto Caputo Santos, Flávia Vinhaes Santos - 3º TERÇO: (2022-2024): José Ricardo
sa, José Ricardo de Moraes Lopes e Fernando D'Angelo Machado. Jornalista Responsável: Mar­celo de Moraes Lopes, Clician do Couto Oliveira.
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Gadioli dos Santos.

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MUNDO EM GUERRA | 3

Guerra local, consequência


global: breve leitura da
guerra na Ucrânia
Henrique Pereira Braga* viética (1991), incorporando as antigas repú-
blicas soviéticas como sua área de influência,
n Quando escrevemos essas notas, a guerra têm provocado reações da Rússia. Desde os
na Ucrânia encerra o seu segundo ano. Ao re- anos 2000, o governo Putin tem defendido,
pelir os sucessivos ataques do exército ucra- nos fóruns internacionais, o estabelecimento
niano em sua ofensiva de verão em 2023, o de estados militarmente neutros ao longo de
exército russo estabeleceu o domínio da re- sua fronteira europeia, enquanto procurava
gião do Donbass, produtora de aço, e acesso se integrar à economia da Europa ocidental
às planícies produtoras de trigo, assumindo como fornecedor de energia. Após se recupe-
o controle do sudeste da Ucrânia. Com essa rar do desastre econômico, político e social
derrota, o governo ucraniano está com recur- ocasionado tanto pelo colapso da economia
sos limitados para a continuidade da guerra, de comando soviética quanto pela imple-
dependendo da ajuda militar e financeira dos mentação de políticas liberais, a Federação
Estados Unidos, por meio da sua Organização Russa se reorganizou em torno da exporta-
do Tratado do Atlântico Norte (Otan). De mais ção de commodities energéticas, controla-
a mais, sem uma intervenção militar direta da das pelo Estado, de maneira a reestruturar
Otan, o conflito tende a se resolver a favor da sua força militar e controlar politicamente
Rússia, pois seu exército está preparado para sua oligarquia, integrada ao sistema financei-
um conflito de longa duração, haja vista a ca- ro internacional, pelas zonas off-shore, e con-
pacidade produtiva, militar e populacional da troladora da produção de mercadorias inter-
Rússia perante a da Ucrânia. nas à economia russa. Contribuiu para isso,
A justificativa russa para o conflito, que sobretudo, o acelerado crescimento chinês e
denomina de “Operação Especial”, seria de- sua demanda por commodities, que puxaram
fender os direitos humanos da população os preços do mercado internacional nos anos
russa na região do Donbass, liberando-a do 2000, animando projetos de integração eco-
domínio da extrema direita, com inclinações nômica, já nos anos 2010, diante da profunda
nazistas, que atacava os russos naquela re- crise das economias ocidentais ocorrida em
gião. Embora o argumento de defesa dos di- 2008. Ainda assim, a Rússia também busca-
reitos humanos seja idêntico ao utilizado pe- va se integrar, do ponto de vista econômico,
los Estados Unidos quando da invasão do à Europa ocidental, de modo a desfrutar de
Iraque, em 2003, o propósito da invasão nos dois mercados centrais ao capitalismo glo-
parece, como naquele caso, outro. Ao que tu- bal, satisfazendo tanto a apetite de seu Esta-
do indica, o objetivo russo seria, do ponto de do quanto das suas oligarquias.
vista imediato, criar um estado disfuncional e Nos anos 2010, contudo, a expansão da
tampão entre os países da Otan e o seu ter- Otan para leste, sob a liderança estaduni-
ritório, evitando uma invasão direta da Otan, dense, encontrou na Ucrânia – cuja parte
liderada pelos Estados Unidos; enquanto o ocidental deseja ingressar na União Euro-
seu objetivo de longo prazo parece ser o de peia, enquanto a parte oriental deseja estar
fortalecer a Eurásia como centro geopolítico integrada à Rússia – um ponto de mudança:
e geoeconômico do capitalismo global. as disputas diplomáticas passaram ao cam-
Os sucessivos avanços da Otan para o po militar. Iniciada em fevereiro de 2022, CLIQUE E OUÇA
leste da Europa, desde a queda da União So- a guerra na Ucrânia conduziu a Rússia, em

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meia do Norte, que irrigam as planícies do


Mar Negro, produtoras de trigo, e abastecem
a região da Crimeia, anexada pela Rússia em
2014. O que colocou pressão sobre os preços
mundiais do trigo, haja vista a importância
dessa região neste mercado mundial, afetan-
do a inflação de alimentos, que se acelerou
na Europa desde o início do conflito. Ao per-
der para os russos essa região produtora de
trigo para o mercado mundial, a Ucrânia se
torna cada vez mais um estado disfuncional,
uma vez que perde o controle sobre parte do
seu principal produto de exportação, ficando
sem condições de honrar seus crônicos défi-
cits em balanço de pagamentos, necessitan-
do de mais ajuda financeira externa.
A guerra na Ucrânia marca, sobretudo, a
reconfiguração dos espaços de acumulação
meio às sanções econômicas do Ocidente, a alemã tenha rapidamente construído portos de capital, na qual a União Europeia parece
estreitar seus projetos de integração econô- para importação de gás natural dos países se consolidar como um enclave estaduniden-
mica na Eurásia e, com isso, consolidar seus árabes e dos Estados Unidos, a preços simila- se. Marca também a reorganização das forças
laços com a China, a Índia e o Irã. Como re- res, a perda de um importante mercado para políticas entre as potências militares globais,
sultado, a expulsão russa do sistema de pa- seus produtos industriais, em meio às dispu- reforçando a Eurásia, cujo centro é a China,
gamentos internacional centrado no dólar tas de restrição comercial com a China, pa- como principal lócus de um novo capitalis-
(Swift) não implicou uma crise no seu ba- rece ter contribuído para sua desaceleração. mo global. Neste capitalismo, as caracterís-
lanço de pagamentos, nem mesmo uma for- Além da situação econômica alemã, a econo- ticas nacionais, que segundo seus governos
te retração da sua economia, como estima- mia da União Europeia vive uma forte infla- formam o caráter de seus povos, parecem ser
vam os analistas ocidentais – mesmo com a ção, agravada com o início do conflito, tanto preservadas. Não por acaso, em pronuncia-
acentuada desvalorização do rublo frente ao dos preços ao consumidor, quanto dos preços mento recente, o ministro das relações exte-
dólar, no início do conflito, saltando de 76,62 industriais, caracterizando sua perda de com- riores da Rússia, Serguei Lavrov, argumentou
rublos por dólar para 128 rublos por dólar. petitividade no mercado mundial. Além des- que a guerra na Ucrânia “purificou” a popula-
Após dois anos de conflito, a taxa de câm- sa consequência, a elevação dos custos de ção russa daqueles que não estavam alinha-
bio está em 89,74 rublos por dólar, enquanto vida tem afetado a população do continen- dos com os princípios daquela coletividade1
há previsão de taxas de crescimento do PIB te como um todo, provocando reações polí- – no país são proibidas as relações homoafe-
mais elevadas do que da União Europeia, se- ticas que têm capilarizado as forças da ex- tivas e sua forma de governo está longe de
gundo estimativas da Unctad. trema direita, que, diante de qualquer crise, se parecer com uma democracia.
Sobre esse desempenho econômico da possuem a receita da sua solução: combate Findado o segundo ano da guerra na
União Europeia, cabe chamar a atenção pa- à imigração, figurada como a fonte de todo Ucrânia, a única certeza é a de que os prin-
ra a recessão da sua principal economia, a o mal europeu contemporâneo. O problema cipais derrotados são as pessoas comuns na
Alemanha. A eclosão do conflito, as sanções da imigração, aliás, foi ampliado pela guerra Ucrânia e, em menor medida, na Rússia, que
econômicas à Rússia e a explosão dos dois na Ucrânia, que provocou a migração de mi- estão a suportar o fardo das perdas mate-
principais gasodutos, vindos da Rússia, que lhares de ucranianos para os países vizinhos, riais, afetivas e da própria vida numa guer-
abasteciam a Alemanha (Nord Stream 1 e 2) membros da União Europeia, agravando os ra em que seus interesses não estão em jo-
com gás natural, contribuíram para a reces- seus problemas com os refugiados. go. Ao contrário, disputa-se uma posição dos
são dessa economia. Isso porque a Alema- Desde o início da guerra, a Ucrânia te- Estados nacionais no interior da acumula-
nha perdeu tanto o seu principal fornece- ve sua infraestrutura dilacerada, sendo a ex- ção de capital global.
dor de energia desde os anos 2000, já que o plosão da barragem Kakhovka símbolo des-
gás russo chegou a perfazer mais da meta- sa destruição. Isso porque essa barragem era * É professor do Departamento de Economia da Ufes.
de do gás importado pela Alemanha, quan- peça importante para a operação da usina
to um dos principais mercados para produ- nuclear de Zaporizhzhia e, sobretudo, forne- 1 Disponível em: https://youtu.be/jcScDY5l8Cc?featur
tos industriais alemães. Embora a economia cia água para os canais de irrigação da Cri- e=shared&t=7261. Acesso em: jan. 2024.

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As guerras e a
fragmentação da
economia globalizada
Luiza Peruffo* fissuras na ordem liberal internacional lidera-
André Moreira Cunha** da pelos Estados Unidos e, simultaneamente,
reforçou o papel central dos Estados Unidos.
n Após décadas de crescente integração eco- Em outras palavras, o contexto da crise serviu
nômica global, o mundo avista a possibilida- para expor a obsolescência das instituições
de de “fragmentação geoeconômica”1 (GEF, multilaterais criadas no pós-Segunda Guer-
na sigla em inglês), segundo nota de discus- ra Mundial para fomentar o rules-based sys-
são recentemente publicada pelo corpo téc- tem das relações comerciais, financeiras e de
nico do Fundo Monetário Internacional. O segurança – a exemplo da Organização Mun- Luiza Peruffo
novo acrônimo vem no rastro de termos co- dial do Comércio (OMC), do Fundo Monetário
mo “desglobalização” e “recuo da globaliza- Internacional, do Banco Mundial, da Organi-
ção” (globalization backlash), que já há algum zação do Tratado do Atlântico Norte (Otan) e
tempo rondam análises especializadas e ten- do Conselho de Segurança das Nações Uni-
tam dar sentido às transformações em cur- das. Em maior ou menor medida, todas essas
so da ordem global. Seguindo pela trajetória instituições foram incapazes de transformar
atual, podemos estar à beira de uma divisão suas estruturas a fim de refletir as mudanças
da economia global em blocos econômicos da distribuição do peso econômico e políti-
separados, por vezes colidentes, em que as co das economias nas últimas oito décadas
alianças de segurança determinam as rela- – sendo o caso da China o mais emblemáti-
ções econômicas, à la Guerra Fria. co. Como resultado, a legitimidade das deci-
A escalada dos conflitos militares, nota- sões derivadas desse ordenamento passou a
damente desde a invasão russa ao território ser crescentemente questionada e a percep-
da Ucrânia em fevereiro de 2022, reacendeu ção sobre a capacidade de liderança dos Es-
o papel da geopolítica em temas econômicos tados Unidos ficou abalada.
e tem inflamado as feridas mal curadas des- No entanto, a mesma crise da ordem libe-
de a Crise Financeira Global de 2007-2009 ral internacional e do multilateralismo serviu
(CFG). A era pós-CFG foi marcada por uma re- para reforçar o poder unilateral dos Estados
cuperação econômica superficial e desigual. Unidos. Por exemplo, no contexto das neces-
Fluxos globais de bens, serviços e capitais ar- sidades de liquidez da CFG, o Federal Reserve
refeceram, revertendo uma expansão de vá- optou por fazer arranjos de swaps bilaterais
rias décadas que data de meados do século com determinados bancos centrais, ao invés André Moreira Cunha

XX. Medidas protecionistas proliferaram, nar- de utilizar os canais multilaterais do FMI. Ao


rativas isolacionistas e nacionalistas vence- fazer isso, os Estados Unidos deixaram de
ram. Os resultados vieram, entre outros, no exercer sua influência indiretamente através
Brexit, no acirramento das tensões comer- das instituições de Bretton Woods e passa-
ciais entre China e Estados Unidos e na elei- ram a diretamente decidir as economias que
ção de líderes como Donald Trump. No meio teriam acesso à liquidez em dólares. Clara-
do caminho, o desafio urgente da pandemia mente, este movimento só foi possível devi-
da Covid-19 testou ainda mais as relações in- do à persistente centralidade do dólar no sis-
ternacionais e aumentou o ceticismo sobre tema monetário e financeiro internacional.
os benefícios da globalização. Até o momento, hipóteses sobre a emer-
A CFG gerou efeitos contraditórios na or- são de um ordenamento alternativo ao co- CLIQUE E OUÇA
dem global, na medida em que aprofundou as mandado pelos Estados Unidos esbarram

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sobretudo na liderança inconteste da moe- estabilidade do sistema monetário e finan- linhamentos das preferências monetárias e
da estadunidense. Se o olhar para as ques- ceiro internacional (como demonstrado pe- criação de sistemas alternativos, por outro, o
tões de comércio e segurança permite su- los efeitos da CFG, originada no sistema fi- cenário de instabilidade geopolítica contri-
gerir um declínio relativo da influência nanceiro doméstico estadunidense). bui para fortalecer o papel do dólar, já que o
americana nos assuntos globais, a mesma Mas os Estados Unidos têm abusado de guarda-chuva de segurança dos Estados Uni-
conclusão não se aplica para as questões seu privilégio recentemente. A “bomba dólar”2 dos ainda é o mais cobiçado. A coalizão contra
monetárias e financeiras. Cerca de dois ter- – lançada na forma de interdição ao acesso a Rússia representa mais de 90% das reservas
ços dos ativos de reserva detidos pelos Ban- à sua moeda – tem se tornado uma arma ca- monetárias globais, aproximadamente 80%
cos Centrais estão denominados em dólares, da vez mais recorrente nos conflitos geopolí- do investimento global e 60% do comércio e
de maneira consistente, desde o final da Se- ticos. Em 2018, a bomba foi lançada contra o do produto global.3 Mesmo que todos os paí-
gunda Guerra Mundial. O dólar também é a Irã, apesar de o país não ter violado os termos ses que se recusaram a sancionar a Rússia (in-
moeda líder no uso privado, ainda que um do acordo nuclear, e em 2021 contra Cuba, no clusive o Brasil) se organizassem em um mo-
pouco menos dominante, para denominar que foi considerado uma penalidade exces- vimento antidólar, isso ainda seria insuficiente
contratos comerciais e financeiros. sivamente dura, em um dos últimos atos de para fazer frente ao poderio estadunidense.
Enquanto o dólar permanecer sem con- política externa do governo Trump. O uso das Assim, ainda que a ofensiva contra o dólar
correntes, o mais provável é que a ordem que sanções por parte dos Estados Unidos, consi- seja real, ela é insuficiente (pelo menos até o
está tomando forma – ainda que mais difu- derado como leviano nesses dois casos por momento) para precipitar o fim da hegemo-
sa e menos coerente – continue centrada, alguns analistas, vem assombrando a percep- nia monetária e financeira dos Estados Uni-
de alguma forma, no poder estadunidense. ção do dólar como um “bem público global” dos. O sistema de pagamentos interbancário
Como definiu o ministro das finanças fran- e levantando receios (legítimos) ao redor do internacional da China (Cips, na sigla em in-
cês Valéry Giscard d’Estaing nos anos 1960, mundo sobre quem vai ser o próximo alvo. glês), por exemplo, processa aproximadamen-
a dominância internacional do dólar confe- Estas tensões atingiram novos níveis com te 15.000 transações por dia, totalizando algo
re aos Estados Unidos um “privilégio exor- as sanções impostas à Rússia em 2022, ca- em torno de US$50 bilhões; enquanto o sis-
bitante”. Objetivamente, o privilégio reside talisando movimentos de desdolarização que tema equivalente dos Estados Unidos (Chips,
no fato de que, por emitir a moeda domi- vinham sendo gestados desde o imediato na sigla em inglês) processa 250.000 transa-
nante, os Estados Unidos têm a capacidade pós-CFG. O vácuo deixado pelo dólar na eco- ções, ultrapassando US$1,5 trilhão.3 A inten-
de emitir títulos que são altamente deman- nomia russa encontrou rapidamente os dese- sificação dos conflitos geopolíticos, contudo,
dados pelo resto do mundo. Isto tem impli- jos da China de internacionalizar o renminbi pode acelerar a adesão às alternativas ofe-
cações profundas para o processo de ajuste e de construir espaços monetários e financei- recidas pela China (e eventualmente outros
externo (já que os Estados Unidos não têm ros alternativos aos dominados pelos Estados países), especialmente se considerarmos que
necessidade de fazê-lo), para o ciclo finan- Unidos e seus aliados. Sob o discurso oficial os avanços tecnológicos também contribuem
ceiro global (determinado pela própria polí- de fortalecer a segurança financeira da Chi- para mudanças mais rápidas e podem facilitar
tica monetária dos Estados Unidos), e para a na e reduzir suas vulnerabilidades dentro do a interoperabilidade entre múltiplas moedas.
sistema dominado É improvável, contudo, que os Estados Unidos
pelo dólar, a China assistam a esses avanços passivamente.
vai avançando em
sua própria rede de 1. Aiyar, S, J Chen, C Ebeke, et al. (2023). Geoeconomic
swaps cambiais bila- Fragmentation and the Future of Multilateralism.
IMF Staff Discussion Note SDN/2023/01.
terais, na consolida- 2. Torres Filho, E T (2019), A bomba dólar: paz, moeda
ção do seu papel de e coerção. Texto para Discussão 026, Instituto de
credora internacio- Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
nal via Rota da Seda, 3. Norrlöf, C (2023), The Dollar Still Dominates:
e no lançamento de American Financial Power in the Age of Great-
Power Competition. Foreign Affairs, Fevereiro.
uma moeda digital,
o e-CNY, que poderá * É PhD pela Universidade de Cambridge e
balançar o poder es- professora no Departamento de Economia e Relações
trutural do dólar. Internacionais da Universidade Federal do Rio
Se, por um lado, Grande do Sul.
as sanções contra ** É pesquisador do CNPq e professor no
a Rússia estão con- Departamento de Economia e Relações Internacionais
tribuindo para rea- da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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O mundo em guerra
Júlio Miragaya* Também comuns são as Guerras de Se-
cessão ou pela emancipação política, poden-
n A guerras fazem parte da sociedade huma- do ser lembrados os conflitos na Irlanda, Su-
na desde tempos remotos. Tal qual algumas dão do Sul, Eritreia e Chechênia. Há ainda
espécies animais, tribos no período mesolíti- as guerras de conquista (EUA x México em
co lutavam por melhores locais de caça, pes- 1845-48), as guerras de ocupação (coloniza-
ca ou coleta. Com o advento da agricultura e ção da África), as guerras de libertação na-
do pastoreio, tribos que se viam privadas de cional (Vietnam, Argélia) e as guerras revo-
suas fontes de alimentos, por problemas cli- lucionárias. Por fim há a guerra de guerrilha
máticos (seca, inundação etc.) ou extinção da (Cuba). As guerras globais, de maior dimen-
caça, recorriam ao saque de tribos vizinhas e são, são as que envolvem os países mais po-
o conflito era iminente. Com a criação e con- derosos, são as guerras interimperialistas, ca-
solidação das primeiras cidades-Estados e a sos da 1ª e 2ª Guerras Mundiais. As guerras
formação dos primeiros reinos, as guerras se podem ser simétricas, confrontando países
tornaram mais complexas, envolvendo a con- com semelhante poder de fogo, e assimétri-
quista do território alheio, condição de garan- cas, como a que confrontou EUA e Vietnam.
tia de suprimento de alimentos e outros bens. As guerras, especialmente as de maior
A guerra vai além da simples mobiliza- porte, têm o poder de promover o redese-
ção de tropas e armamentos, com a estraté- nho do mapa geopolítico e econômico, e não
gia militar e a diplomacia assumindo papéis há análise econômica plausível sem consi-
centrais no seu decorrer. Como bem precisou derar a história e a geopolítica. Grandes der-
o general prussiano Karl Von Clausewitz: “A rotas nos campos de batalha implicaram, ao
guerra é a continuidade da política por ou- longo dos séculos, o declínio de algumas
tros meios”. Sempre tendo o interesse eco- potências, e, de outro lado, vitórias milita-
nômico como motivação central, as guerras res forjaram a emergência de potências do-
são de distintas dimensões (locais, regionais minantes. E tais ascensões estavam intima-
ou globais) e se dão por diversas motiva- mente associadas a ciclos de acumulação
ções ou razões. As mais comuns envolvem de capitais que se realizavam.
disputas territoriais entre dois Estados, co- Nos últimos cinco séculos as disputas
mo as que vemos atualmente na Ucrânia e geopolíticas, incluindo as guerras, se inseri-
na Palestina. Mas há também razões de or- ram no contexto guiado pelos ciclos do sis-
dem étnica (Guerra do Curdistão) e religio- tema capitalista. Giovanni Arrighi, em sua
sas (Índia versus Paquistão), onde o fator re- célebre obra O longo século XX, identificou
ligioso serve para mascarar conflitos entre quatro ciclos sistêmicos de acumulação de
interesses econômicos e funciona como ele- capital, cada um deles associados ao exer-
mento de mobilização. cício da hegemonia no chamado sistema-
Muito comuns são as guerras civis, en- -mundo, por sua vez decorrentes do resul-
volvendo grupos dentro de um mesmo Es- tado de guerras.
tado, que podem ter motivação ideológica No primeiro deles, o ibero-genovês, ini-
(Guerra Civil Russa de 1918-22, confron- ciado em 1453, a Espanha emergiu como
tando grupos sociais opostos, de um la- grande potência europeia na segunda me-
do a burguesia industrial/financeira e a no- tade do século XV ao obter um lugar privi-
breza latifundiária e, de outro, operários e legiado (junto com Portugal) nas rotas co-
camponeses), confrontando povos distintos merciais com o Oriente após a queda de
(Guerra de Biafra), ou simplesmente a dis- Constantinopla para os turcos (1453); con-
puta pelo poder político (Guerra Civil Norte- jugar as forças do Reino de Castela com as
-americana e a atual na Líbia). do Reino de Aragão (1469); conquistar o

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8 | MUNDO EM GUERRA

monopólio do suprimento de prata a partir marcando a ascensão da Inglaterra, que ad- são econômica (e militar) da China. O resul-
das minas do Novo Mundo; e se sair vitorio- quiriu territórios reivindicados pela França tado deste embate será conhecido nas pró-
sa na guerra movida contra as últimas for- na América do Norte. A prevalência britâni- ximas décadas. O fato é que a China já teve
ças muçulmanas que permaneciam na Pe- ca foi reafirmada no Tratado de Aquisgrão a maior economia do planeta por mais de 4
nínsula Ibérica (Reino de Granada) em 1492. (1748) e definitivamente confirmada no Tra- séculos, desde a Dinastia Ming (1368-1644)
E eram capitais genoveses que financia- tado de Paris (1763), que encerrou a Guerra até o início do século XIX, já na Dinastia Qing
vam a exploração das novas rotas comer- dos Sete Anos (1756-63) e que selou o des- (1644-1912), mas após as derrotas chinesas
ciais, a exploração das minas de prata e as tino da França como potência secundária, ao para os britânicos (e também franceses, rus-
guerras movidas pela monarquia espanho- conferir aos ingleses o monopólio da explo- sos e japoneses) nas chamadas Guerras do
la. Tal período iniciou o que Marx chamou ração comercial no rico território indiano, Ópio (1839-42 e 1856-60), teve início o cha-
de acumulação primitiva de capitais. E a Es- além de vasto território francês no Canadá. mado “Século da Humilhação”, que se esten-
panha permaneceu como principal potência Dessa forma, em 1740, segundo Arrighi, deu até a Revolução de 1949. Neste período
até ser desafiada na segunda metade do sé- inicia-se o terceiro ciclo, o britânico, que se a China perdeu para a Grã-Bretanha, Rússia e
culo XVI pela emergência de uma possessão estendeu até 1929. Este ciclo encerrou a fa- Japão nada menos que 3,78 milhões de km²,
sua, as Províncias Unidas dos Países Baixos, se de acumulação primitiva de capital e ini- ou 28% de seu território de 13,41 milhões de
que veio marcar o segundo ciclo, o holandês, ciou a fase madura do capitalismo, caracteri- km² existente no século XVIII.
iniciado em 1580. zado pelo forte desenvolvimento industrial. Os impactos econômicos das guerras são
Aliados aos ingleses, os holandeses co- Com a vitória militar sobre a França de Na- enormes, envolvendo não apenas vultosos or-
lheram sucessivos sucessos militares des- poleão (1801-15), a Inglaterra formulou, a çamentos militares, mas também formidáveis
de a primeira revolta contra o domínio es- seu juízo, o novo mapa geopolítico e comer- gastos na reconstrução de países e/ou cidades
panhol em 1568, realizando a Proclamação cial europeu, estruturando no Congresso de devastados pelos conflitos (infraestrutura de
da República das Sete Províncias Unidas dos Viena (1815) o sistema que nortearia a Eu- transportes, serviços públicos, habitações etc.).
Países Baixos em 1581. O que se seguiu fo- ropa até a eclosão da 1ª Guerra Mundial. Ademais, as guerras geralmente implicam al-
ram sucessivas derrotas militares da Espa- Mas três fatos no final do século XIX an- gum nível de retração da atividade econômica,
nha, inclusive a de sua “invencível armada” teciparam o fim do ciclo britânico: a Guerra o que resulta na queda da arrecadação de im-
para os ingleses em 1588. Civil Norte-americana (1860-65), a unifica- postos. De outro lado, há uma maior deman-
A vitória sobre os espanhóis permitiu que ção e formação do Império Alemão (1871) da por recursos para atender a sobrecarga no
as Províncias Unidas emergissem como o no contexto da vitória na Guerra Franco- sistema de saúde e previdenciário (decorren-
maior poder marítimo e comercial europeu, -Prussiana (1870-71) e a longa depressão tes dos mortos, incapacitados e feridos) e a já
mas tal hegemonia não se prolongou mui- capitalista de 1873-96. A vitória nos EUA mencionada reconstrução da infraestrutura
to. Em 1618 teve início a Guerra dos 30 Anos da burguesia do “Norte” sobre a oligarquia destruída ou danificada.
(1618-48), quando a Europa foi sacudida pe- agrária do “Sul” e a formação do Império Também devem ser elencadas como con-
lo que, provavelmente, foi a primeira guer- Alemão, não obstante a crise de 1873-96, re- sequências a desestruturação do mercado de
ra global, que envolveu praticamente todo o sultaram em uma excepcional expansão in- trabalho (ampliação da precarização do tra-
continente, e que viu a emergência da França dustrial nesses dois países. balho e do desemprego) e a elevação da in-
e da Inglaterra como potências centrais, con- A 1ª Guerra Mundial (1914-18) promo- flação. Deve ser mencionada igualmente a
sagrada pelo Tratado de Vestfália (1648). veu um forte redesenho do mapa econômi- desestruturação provocada nas cadeias de
Arrighi, contudo, considera que a hegemo- co e geopolítico mundial. Derrotada na guer- produção e suprimento (petróleo, metais, ce-
nia holandesa se prolongou por todo o sécu- ra e inviabilizada pelo Tratado de Versailles reais, produtos eletrônicos, chips etc.). Ainda
lo XVII, até o Tratado de Utrecht (1715), que (1919), a Alemanha sucumbiu à crise, o que no campo econômico, é fato que a guerra im-
encerrou a Guerra de Sucessão Espanhola levou à ascensão do nazismo em 1933. Já a pulsiona a pesquisa científica e tecnológica,
(1701-14). Admite, contudo, que o longo pe- Inglaterra, embora vitoriosa, se viu afunda- e tal desenvolvimento técnico se desdobra
ríodo entre o Tratado de Vestfália (1648) e o da em dívidas e sem condições de enfrentar para as atividades econômicas civis.
Tratado de Aquisgrão/Aachen (1748), que en- a forte competição da indústria dos EUA. O Hoje o mundo assiste a um grande nú-
cerrou a Guerra de Sucessão Austríaca (1740- ciclo norte-americano, iniciado em 1870, lo- mero de guerras, sendo a maioria guerras
48), foi marcado por uma prolongada dispu- go após a Guerra Civil, assumiu a hegemo- civis, localizadas sobretudo na África e na
ta pela hegemonia entre França e Inglaterra, nia no sistema-mundo, condição consolida- Ásia, resultantes do colonialismo e da cri-
saindo esta última vitoriosa. da após a 2ª Guerra (1939-45). minosa partilha efetuada pelas potências
A bem da verdade, já no Tratado de Utre- Nesta terceira década do século XXI é europeias nesses dois continentes ao longo
cht (1715), se havia desenhado a vitória po- o ciclo que ainda prevalece, mas cada vez dos séculos XIX e XX. A título de exemplo,
lítica da coligação Inglaterra-Países Baixos, mais é desafiado pela extraordinária expan- ao partilharem a chamada África Ocidental

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MUNDO EM GUERRA | 9

com os franceses no século XIX, os britâni- so desde sua conquista aos turcos no século Instrumentos como a coerção e a ameaça
cos juntaram distintas nações (haussas e ca- XVIII, até ser “entregue” aos ucranianos por são frequentemente usados, além da “sedu-
nuris, muçulmanos, yorubas e ibos, cristãos) Lenin (1919) e Kruchev (1954). ção” e do “convencimento”, papel desenvol-
na colônia Nigéria, ao tempo em que sepa- O outro é a guerra na Palestina, que tem vido pelo chamado soft power, que abrange
ravam esses povos, também situados nas real risco de se propagar para outros países do a disseminação da propaganda mediante o
colônias francesas vizinhas de Camarões, Oriente Próximo e Oriente Médio, região que cinema, TV, música, artes, esportes, internet,
Chade, Mali e Benin. constitui um verdadeiro barril de pólvora des- idioma, religião etc., que confira legitimida-
Há conflitos com enorme potencial des- de a dissolução do Império Otomano em 1919 de aos Estados hegemônicos.
trutivo, como os fronteiriços entre Paquistão e a criminosa intervenção dos imperialismos Do mesmo modo, a disputa pela hegemo-
e Índia e entre esta e a China; a disposição britânico e francês, seguida da ação do impe- nia (ou a resistência a ela) resultou na cria-
da China em reincorporar a seu território rialismo norte-americano no pós-guerra. ção de uma miríade de alianças econômicas
a província rebelde de Taiwan e o conflito O planeta teve em 2022 o mais volumo- (OCDE, UE, Asean, Nafta, Mercosul), geopolíti-
na Coreia. Entre as atuais guerras em cur- so gasto militar da história (US$ 2,24 tri- cas (G-7, Brics, Unasul, OCX – Organização pa-
so, destaques para as guerras civis na Síria, lhões), sendo que os países da Otan e seus ra Cooperação de Shanghai, Liga Árabe, OIC
Líbia e Iêmen, mas dois conflitos chamam parceiros responderam por 65% do total, ca- – Organização de Cooperação Islâmica etc.)
mais a atenção da grande mídia e da opi- pitaneado pelos EUA, com nada menos que e militares (Otan e o extinto Pacto de Varsó-
nião pública: um é a guerra entre Rússia e US$ 877 bilhões (quase 40%), três vezes via) ou a criação de organismos multilaterais
Ucrânia, que tem o risco de descambar para superior aos gastos da China (US$ 292 bi- (ONU, FMI, Bird, OMC, Tribunal de Haia etc.),
um conflito europeu de larga escala. lhões). Na dianteira, os países que integram na busca da supremacia geopolítica.
Dificilmente a Rússia aceitará ter fron- o exclusivo clube das potências nucleares,
teira com uma Ucrânia integrante da Otan, o inicialmente restrito à EUA e URSS, e que * É mestre em Planejamento e Gestão Territorial
que levará à formação de um novo país (No- ganhou a posterior associação da Grã-Bre- e doutor em Desenvolvimento Econômico
va Rússia) com os oblasts do leste e sul da tanha, França e China, e, mais recentemente, Sustentável, ambos pela Universidade de Brasília
Ucrânia (Luhansk, Donetsk, Zaporizhia, Kher- da Índia, Paquistão, Israel e Coreia do Norte, (UnB). Conselheiro e ex-presidente do Conselho
Federal de Economia (2016-17) e da Companhia de
son e Crimeia) ou sua incorporação à Rús- com o Irã buscando ser o décimo sócio.
Planejamento do Distrito Federal (Codeplan, 2011-
sia; a região, por sinal, fala majoritariamente Por fim, nunca é demais lembrar que nem 14), é atualmente assessor da Liderança do PT no
o idioma russo, tem uma grande parcela da sempre os países hegemônicos lançam mão Senado Federal e professor voluntário do Núcleo de
população de etnia russa e foi território rus- das guerras para fazer valer seus interesses. Estudos da Amazônia da UnB.

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10 | MUNDO EM GUERRA

A guerra e o comércio
internacional
Arquimedes Martins Celestino* davam. Já com sua frota de pequenos U-boats
(submarinos) a opção alemã era de afundar
n A guerra causa extremo sofrimento às po- os navios destinados à Inglaterra e França,
pulações, além da destruição direta de capi- sem aviso prévio.
tais físicos e de incontáveis vidas. Isso é um Para as potências centrais da Europa, o
axioma moral válido e consistente, que de- bloqueio levou à fome em larga escala e foi
ve ser lembrado sempre que a guerra dire- um fator chave para o seu colapso político
ta parecer ser a melhor opção para as diver- interno e capitulação em 1918. Mas o sis-
gências entre os países e os povos. Sempre temático ataque ao intercâmbio comercial
foi válido, mas a tecnologia militar moderna por ambos os lados durante a I Guerra Mun-
o tornou muito mais evidente. dial trouxe consequências econômicas extre-
A guerra diminui o intercâmbio comer- mamente diversas aos países envolvidos no
cial entre os países. Parece também um conflito, mesmo entre os vencedores. A Ingla-
axioma, algo inegável e ponto de partida terra perdeu a sua capacidade de ser o cen-
para qualquer análise, mas é apenas uma tro cíclico principal4 da economia mundial, o
possibilidade entre muitas de uma realida- que inutilmente tentou recuperar durante o
de bem mais complexa. período entre guerras. A França se viu extre-
Um país submetido a um bloqueio comer- mamente endividada com os Estados Unidos.
cial, implantado militarmente, pode ter as su- A Rússia foi revolucionada pelos bolchevi-
as fontes de suprimento externo completa- ques e continuou em guerra interna. Ao mes-
mente obliteradas. Um exemplo de grande mo tempo, a grande expansão do comércio
importância histórica é o da Alemanha e exterior americano, fornecendo diretamente
seus aliados na I Guerra Mundial. O efetivo para as potências europeias e substituindo-
bloqueio naval inglês fez com que os Esta- -as nas relações comerciais com outros paí-
dos Unidos, teoricamente neutros nos três ses, foi uma das alavancas que permitiram os
primeiros anos da guerra, tivessem seu vas- “loucos” anos 20, onde a economia americana
to comércio com a Alemanha e Áustria redu- cresceu a altas taxas, antes de colapsar em
zido a uma pequena fração do que era antes 1929. Já em países periféricos, como o Brasil
da guerra1. Mas ao mesmo tempo, as deman- e a Argentina, a súbita falta dos produtos in-
das criadas nas potências da Tríplice Entente dustriais europeus possibilitou o surgimento
(Inglaterra, França e Rússia) pelo esforço de de indústrias embrionárias.
guerra e pelos imensos déficits públicos, jus-
tificados pelo conflito, multiplicaram por 3,5 O sonho de um mundo
vezes as exportações americanas para esses de paz pela impossibilidade
países no mesmo período2, apesar da cam- da guerra lucrativa
panha submarina da Alemanha no Atlântico. Depois de Hiroshima e Nagasaki, a guer-
O principal conselheiro do presidente ame- ra em larga escala entre as potências foi
ricano Woodrow Wilson, Coronel Edward M. considerada proscrita. A guerra fria e sua
House, comentou que “os britânicos foram o doutrina de Destruição Mútua Assegura-
mais longe possível na violação dos direitos da, apropriadamente denominada MAD em
de neutralidade, embora tenham feito isso da inglês, se caracterizou pela criação de um
maneira mais cortês”3, ou seja, com sua frota mundo bipolar, em que a maioria das guer-
de grandes navios de superfície, os britânicos ras refletiam esses polos na periferia eco-
CLIQUE E OUÇA interceptavam os cargueiros americanos que nômica. Na década de 90, após a desarticu-
se destinavam a Alemanha, mas não os afun- lação do bloco soviético, o mundo unipolar

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americano não ficou isento de guerras, pelo dados, mas são acusados
contrário, o intervencionismo direto, abran- de massacrar uma imen-
dado na década anterior, retornou em larga sa quantidade de popu-
escala e a utopia de uma “Paz Americana” lação civil, com aproxi-
se viu rapidamente abalada. O Hegemon úni- madamente 25 mil civis
co esteve envolvido em constantes conflitos mortos. Para efeito de
locais de pequena ou grande escala. comparativo, em 2 anos
No século XXI começou-se a se criar de guerra na Ucrânia, a
uma percepção de que a guerra entre paí- imprensa informa cente-
ses com objetivo de domínio territorial era nas de milhares de bai-
uma coisa do passado, por ser, teoricamente, xas militares, de ambos
antieconômica nas novas conjunturas. Pa- os lados, e em torno de
rafraseando Yuval Harari, no seu best-seller 10 mil civis mortos, a
Sapiens, o que adiantaria a China conquis- grande maioria ucrania-
tar uma Califórnia semidestruída após uma nos. Essa disparidade,
campanha militar, em que conseguisse con- que evidencia um total
tornar a MAD, se o que poderia interessar desinteresse israelense em relação à sobre- alemã, do gás russo transformou esse blo-
aos chineses na costa oeste americana se- vivência da população palestina, este desca- queio econômico de total em parcial. Os rus-
riam as propriedades intelectuais e o know- labro humanitário, para os padrões das rela- sos contornaram os bloqueios ocidentais,
-how americano, que não conseguiriam con- ções internacionais do século XXI, gerou uma por meio de economias efetivamente neu-
trolar por uma anexação de território? Como grande tendência de internacionalização tras, como as da Índia e da China, que obvia-
as sociedades chinesa e americana conse- do conflito, sendo os ataques a navios mer- mente se beneficiam economicamente des-
guiriam resistir ao imenso baque que um cantes no Mar Vermelho pelos Houthis, gru- tas oportunidades.
bloqueio comercial mútuo iria causar em po dissidente iemenita, e a imediata reação O uso quase militar das instituições fi-
suas economias altamente interligadas? americana e inglesa os eventos de maior im- nanceiras e do dólar, pelos americanos, na
Mas se durante os dez anos anteriores, a pacto ao comércio internacional até agora. Guerra da Ucrânia trouxe renovado interes-
guerra territorial pareceu ineficaz, em 2014 se na viabilização de outras moedas nos in-
aconteceu a bem-sucedida invasão russa da Crise = risco + oportunidade tercâmbios entre os países em inciativas
Crimeia, militarmente não contestada pelo (leitura analítica do como a dos Brics. Assim como, ao tornar evi-
Ocidente. E então chegamos a 2022, ano em ideograma chinês) dente a fragilidade alemã, ao depender for-
que a Rússia, pensando em repetir o êxito Se essas guerras em curso trarão be- temente da Rússia na sua matriz energética,
de 2014, resolveu que a aceitação dos ve- nefícios econômicos aos seus promotores, a mesma guerra viabilizou politicamente os
tos do Ocidente não era mais viável e que a mesmo que militarmente vitoriosos, ain- custos da busca de alternativas energéticas.
guerra híbrida não era suficiente para resol- da não podemos saber, mas o que pode- Esses exemplos mostram como, ao serem
ver os impasses existentes e invadiu maci- mos verificar é que existem muitos tipos exercidos diretamente, de forma explicita,
çamente a Ucrânia. Porém, o conflito se tor- de guerras, de bloqueios e de correlações os sistemas econômicos de controle políti-
nou um grande impasse, com muitas baixas de força. Aparentemente a “bomba dólar”5, co internacionais tendem a se desgastar e se
militares para ambos os lados e exércitos tentativa americana de inviabilizar o co- tornar progressivamente menos eficientes.
quase paralisados. A guerra teve impactos mércio exterior russo, com a exclusão do
imediatos nas cotações internacionais de país dos sistemas de transações com dólar, * É editor na Arquimedes Edições e mestrando em
grãos e energia, que ainda estão repercutin- como o Swift, foi altamente ineficaz. Pois a Economia Política Internacional pelo Pepi/UFRJ.
do e transformando economias pelo mundo. economia russa se mantém relativamente
1 De 170 milhões em 1914 para cerca de um milhão
Logo no ano seguinte, Israel, em reação estável. Por outro lado, quando a Rússia re-
em 1916. Aloisio Teixeira em Estados Unidos: a ‘curta
ao maior atentado da história contra a sua solveu realmente bloquear as exportações marcha’ para a hegemonia, 1999.
população, resolve destruir toda a infraestru- marítimas da Ucrânia, fechando o corredor 2 De 824 milhões para mais de 3 bilhões, no mesmo
tura de Gaza, em busca de uma “solução fi- marítimo estabelecido anteriormente no período, idem.
nal” para o terrorismo do Hamas. Em 3 meses Mar Negro, os impactos foram imediatos, 3 HOUSE. Edward, The intimate papers of Colonel
House: Vol 2, 1928, p. 73.
de intensos bombardeios avanços de infan- evidenciando que um bloqueio respaldado
4 Conceito apresentado pelo argentino Raul Prebisch
taria, os israelenses afirmam ter eliminado por ações militares concretas pode ser ex- em 1949.
em torno de 5 mil combatentes do Hamas, tremamente mais efetivo. 5 TEIXEIRA. Hernani. Sanções contra a Rússia:
com baixas de algumas dezenas de seus sol- A dependência europeia, em particular bomba-dólar, desglobalização e geopolítica, 2022.

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12 | MUNDO EM GUERRA

Desafios da economia global


diante da escalada de conflitos
armados no pós-pandemia
Roberto Alexandre Zanchetta Borghi* Esses movimentos têm ganhado desta-
que na mídia nacional e internacional, rei-
n Os acontecimentos mundiais pós-pande- terando as preocupações com seus desdo-
mia revelam-se preocupantes. Mecanismos bramentos de diferentes perspectivas. Do
de cooperação internacional e reforço das ponto de vista humano, sublinha-se o po-
instituições multilaterais que poderiam ser tencial de catástrofe que tais conflitos pos-
esperados após a devastadora pandemia de sam gerar, para além das perdas de vidas
Covid-19, que somava mais de sete milhões humanas, afronta aos direitos humanos in-
de mortes até o início de janeiro deste ano, ternacionais e crises migratórias que já pro-
segundo dados da Organização Mundial da vocaram. Do ponto de vista militar e geopo-
Saúde (OMS), e que agravou as desigualda- lítico, reforça-se o poderio bélico das nações
des sociais em todo o planeta, cederam lu- em torno da reconfiguração da ordem inter-
gar para algo completamente distinto, que nacional, de caráter mais multipolar, indu-
coloca em dúvida uma recuperação econô- zindo a uma corrida armamentista que pode
mica e social rápida e sustentável. se mostrar desmedida, e reduz-se o espaço
Observa-se, em contrapartida, um recru- da capacidade de diálogo entre grandes po-
descimento dos conflitos armados mundo tências para assumir posição conjunta sobre
afora. Muitos desses conflitos se arrastam o encaminhamento de temas fundamentais
por anos e possuem raízes históricas, mesmo na agenda mundial para os próximos anos
antes da pandemia, embora tenham ganha- e décadas, como da paz mundial, da segu-
do mais força no contexto recente. Há pra- rança alimentar e das questões ambientais
ticamente dois anos, estende-se o conflito e do clima. Do ponto de vista social, acentu-
entre Rússia e Ucrânia, agravado pelas reper- am-se as desigualdades e a vulnerabilida-
cussões sobre a saída de Moscou do tratado de de povos e classes sociais historicamen-
sobre testes de armas nucleares e pela rea- te oprimidos. Do ponto de vista ambiental,
lização dos maiores exercícios militares por uma agenda crucial para o futuro das na-
parte da Organização do Tratado do Atlânti- ções e da humanidade pode ser relegada a
co Norte (Otan) em décadas. Eleva-se a ten- segundo plano nas negociações internacio-
são entre Israel e Palestina, explicitando uma nais, caso a escalada armamentista se inten-
enorme crise humanitária. No Oriente Médio, sifique ainda mais.
ainda, verificam-se tensões crescentes no Iê- Se isso não bastasse, do ponto de vista
men e no Mar Vermelho, assim como entre econômico, delineiam-se também grandes
Irã e Paquistão. Ao mesmo tempo, reforça-se desafios, inclusive no curto prazo. As reper-
a presença americana e de aliados ocidentais cussões dos conflitos armados, que se so-
na região. Na Ásia, a disputa entre China e mam aos efeitos remanescentes provoca-
Taiwan ganha novos capítulos e as ameaças dos pela pandemia, podem ser sentidas de
também se intensificam. Na África, a guer- diversas formas: na cadeia de suprimentos,
ra civil no Sudão exacerba tragédias huma- no crescimento econômico, nos preços das
nas com a morte de civis inocentes. E, mes- commodities, na inflação global e nas finan-
mo próximo, na América Latina, esboça-se ças mundiais. Ou seja, de várias perspectivas
um conflito entre Venezuela e Guiana sobre – comercial, produtiva, tecnológica, monetá-
CLIQUE E OUÇA a região de Essequibo e amplia-se a tensão ria e financeira –, inúmeros efeitos podem
gerada pelos narcotraficantes no Equador. ser desencadeados a partir da escalada des-

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MUNDO EM GUERRA | 13

ses conflitos e de outros que venham a sur-


gir na ausência da razão e do diálogo.
Vejamos alguns desses efeitos econômi-
cos potenciais. O comércio global mostra difi-
culdades em retomar a pujança pré-pandemia
diante de maiores incertezas e do resgate de
medidas protecionistas. É bem verdade que o
acirramento da disputa comercial e tecnoló-
gica entre Estados Unidos e China se reflete
na forma de estruturação das cadeias globais
de valor. Uma relação simbiótica de décadas
entre ambos os países cede cada vez mais es-
paço para questionamentos de um lado e de
outro sobre seus distintos interesses. Não à
toa, explicita-se em documentos oficiais ame-
ricanos e de aliados ocidentais a preocupa-
ção sobre o controle e direcionamento de
cadeias produtivas estratégicas, sob o argu-
mento de segurança nacional e ampliação da
resiliência das cadeias domésticas de supri- apontando para uma recuperação decorren- mento de custos de produção e pressão nos
mentos em determinados setores, como de te das medidas de expansão econômica glo- preços, por exemplo, de alimentos. Uma es-
energia, semicondutores e de saúde. bal adotadas adiante da pandemia. calada de conflitos no Oriente Médio pode
Do ponto de vista produtivo, isso pode Do ponto de vista monetário e financei- ser ainda mais desconcertante, pois poderia
reforçar um conjunto de investimentos na- ro, coloca-se uma outra corrida, pela diversi- pressionar os preços internacionais do pe-
cionais para liderar setores estratégicos, co- ficação das oportunidades de alocação da ri- tróleo e, consequentemente, a inflação dos
mo os mencionados, diante de uma corri- queza e por sua denominação para além de países, que por ora segue trajetória de arre-
da tecnológica e em meio a uma transição uma única moeda. É inegável o papel que o fecimento. Isso, por sua vez, poderia levar a
energética. Em contrapartida, pode prejudi- dólar cumpre no sistema monetário e finan- uma nova rodada de aperto monetário, isto
car investimentos transfronteiras, sobretudo ceiro internacional, sobretudo como reserva é, retomada de taxas de juros mais elevadas
para as economias periféricas geopolitica- de valor, fruto do poderio da moeda e das ar- e, portanto, um cenário de crescimento eco-
mente não alinhadas, o que exige caute- mas dos Estados Unidos. Contudo, o cenário nômico ainda mais debilitado.
la acerca da política externa de tais eco- descrito e as manifestações de sanções oci- Logo, é sobre um tabuleiro geopolítico
nomias. As eleições americanas deste ano dentais, por exemplo, sobre a Rússia, já im- bastante complexo e movediço que cami-
tendem a cumprir um papel decisivo nos ru- pulsionam alternativas para a manutenção nham as principais potências mundiais re-
mos dessas questões. da riqueza privada. Isso se confunde com centemente. Seus posicionamentos e ações
A isso se entrelaça a dimensão tecnoló- o próprio processo de internacionalização exigem muita cautela, uma vez que podem
gica, que também rebate na questão militar de outras moedas, como o renminbi chinês, exacerbar uma situação já delicada, agra-
e na ampliação de gastos bélicos, seja pa- que ganha espaço nesse contexto. Ao mes- vada pela sobreposição de problemas vi-
ra produção, seja para inovação. Apesar de mo tempo, isso se reflete também nos fluxos venciados na economia global nos últimos
algum impulso de demanda que isso pos- internacionais de capitais, que podem se tor- anos. Consequentemente, os impactos eco-
sa dar, o caráter armamentista destrutivo e nar mais seletivos e exigir prêmios de risco nômicos e sociais podem se mostrar ainda
o contexto incerto que se cria tendem a li- mais elevados, pressionando as taxas de ju- mais severos, com rápida transmissão para
mitar o crescimento econômico, como já se ros e as taxas de câmbio dos países, especial- o mundo como um todo, penalizando com
observa nos últimos anos, com previsões mente na periferia do sistema. maior intensidade países, povos e grupos so-
para um crescimento mundial em declínio. Somam-se a isso os riscos de nova ele- ciais em situação de maior vulnerabilidade.
De acordo com estimativas do Banco Mun- vação dos preços mundiais de commodities e
dial, as previsões de crescimento global pa- de energia, como observado em 2022 a par- * É professor associado do Instituto de Economia
ra 2024 são de 2,4%, marcando o terceiro tir do conflito entre Rússia e Ucrânia. Se, por da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp)
e atual coordenador do Centro de Estudos de
ano consecutivo de desaceleração econômi- um lado, isso favorece países exportadores Relações Econômicas Internacionais (Ceri) da mesma
ca, após registrar 2,6% em 2023, 3,0% em de commodities por meio da ampliação de instituição. Doutor pela Universidade de Cambridge,
2022 e 6,2% em 2021, naquele momento seus saldos comerciais, por outro, impõe au- no Reino Unido. E-mail: razb@unicamp.br.

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14 | MUNDO EM GUERRA

O empate catastrófico
no mundo contemporâneo
e as guerras
Carlos Eduardo Martins* armas e como corredor de transporte. O gol-
pe de Estado na Ucrânia e as sanções esta-
n O sistema-mundo contemporâneo prova- belecidas contra a Rússia não foram capazes
velmente entrou em um período de caos sis- de evitar a sua aproximação da Europa Oci-
têmico e o imperialismo dos Estados Unidos dental. Foi necessário estabelecer um am-
não tem mais condições de estabilizá-lo. Des- biente de exceção permanente por meio da
de os anos 1980, os Estados Unidos aposta- guerra para que os laços econômicos e polí-
ram na estratégia neoliberal de financeiriza- ticos fossem suspensos e destruídos. O gran-
ção e deslocalização produtiva para conter as de obstáculo para viabilizar uma solução ne-
pressões de sua classe trabalhadora sobre a gociada do conflito entre as partes é que a
taxa de lucro. Elevaram dramaticamente a de- paz poderia restabelecer o ambiente favorá-
sigualdade, a curva de produtividade se des- vel à construção geoeconômica da Eurásia, o
colou da curva de salários, destruíram grande que provoca resistências nos Estados Unidos,
parte da força sindical dos trabalhadores, mas que substituíram as políticas internacionais
o resultado do ponto de vista do Estado foi de desenvolvimento pelas de austeridade,
o declínio tecnológico, o endividamento cres- não tendo como contrabalançar o eixo gra-
cente e o parasitismo. Ancorar a geração de ri- vitacional asiático; e b) as vinculadas a práti-
queza na expansão do capital fictício e na es- cas monopolistas em benefício de frações do
peculação tem limites. Não se pode suprimir capital estadunidense, que se manifestam no
completamente a competição da economia objetivo de excluir a Rússia principalmente
mundial. Estamos assistindo à transição do da disputa pelos mercados mundiais de pe-
imperialismo informal neoliberal para um im- tróleo e gás e de armas.
perialismo político, que Giovanni Arrighi cha- O conflito entre Estados Unidos e Otan, de
ma de imperialismo tout-court, pelo qual os um lado, e Rússia, de outro, marca uma nova
Estados Unidos buscam controlar e destruir as etapa na era das guerras, muito distinta dos
pressões competitivas da economia mundial padrões estabelecidos durante a Guerra Fria
ao tentar submetê-las à força do seu Estado. ou na globalização neoliberal. Na Guerra Fria,
Tal iniciativa leva à multiplicação de conflitos a doutrina da contenção propunha-se a atuar
em regiões estratégicas, que se tornam crôni- em espaços estratégicos e cirúrgicos do siste-
cos e sem solução, podendo evoluir para guer- ma mundial para preservar a balança de po-
ras mundiais em razão do desenvolvimento der contra o risco de revisionismos. Como os
exponencial das forças centrífugas diante do Estados Unidos tinham clara vantagem na li-
vértice em declínio. derança produtiva, financeira e militar, isso lhes
A guerra na Ucrânia representa a tentati- permitia restringir a forma mais extrema da po-
va de os Estados Unidos frustrarem a criação lítica de contenção, isto é, o emprego de força
de um eixo geoeconômico e geopolítico eu- militar, a espaços limitados da periferia e semi-
rasiano centrado na articulação entre China, periferia. Durante a globalização neoliberal, os
Rússia e Alemanha. Ela obedece a duas gran- Estados Unidos se pretenderam uma potência
des motivações: a) as geopolíticas, voltadas unipolar e substituíram a teoria da balança do
para impedir que a Rússia se converta em es- poder pelo universalismo liberal e a política de
paço estratégico de articulação da Nova Ro- mudança de regime. A via militar da mudança
CLIQUE E OUÇA
ta da Seda entre China e Europa, atuando co- de regime foi aplicada tipicamente em regiões
mo fornecedora de petróleo, gás, alimentos e da periferia dotadas de recursos e/ou localiza-

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MUNDO EM GUERRA | 15

ção estratégicos como o Afeganistão, Iraque e Os custos da governabilidade global se ele- torna mais evidente quando assume a forma
Líbia, enquanto as formas políticas, econômicas vam acima da capacidade militar e o empre- de expropriação territorial e de opressão na-
e ideológicas de persuasão dominaram as es- go da força pode favorecer insurreições, rebe- cional e étnico-racial. Temeroso de uma es-
tratégias para potências médias ou emergen- liões e processos revolucionários e acelerar a calada do conflito que envolva amplamente
tes como a Rússia e a China. Todavia, a dinâmi- polarização do sistema mundial em dois eixos o Oriente Médio e se mundialize, provocan-
ca produtiva da economia mundial se projetou contrapostos: o do imperialismo ocidental, li- do explosões de massa em países com for-
em direção contrária às pretensões de unipola- derado pelos Estados Unidos e a Otan, e o anti- te presença de população de origem árabe,
ridade. O deslocamento do dinamismo tecno- -imperialista e multipolar, articulado por China, o imperialismo se vê relativamente parali-
lógico mundial para a China a permitiu romper Rússia e pelos Estados anfíbios do Sul Global, sado e incapaz de usar decisivamente a sua
com uma política internacional de especializa- com forte capacidade para vincular as gran- superioridade militar. A ofensiva subimperia-
ção complementar a das grandes corporações des massas terrestres e demográficas de seus lista de Netanyahu para impor o projeto da
transnacionais norte-americanas, lançar um espaços regionais a redes marítimas, aéreas e grande Israel através do genocídio, da lim-
projeto de disputa da fronteira tecnológica e informacionais intercontinentais. O bloco an- peza étnica e do extermínio da Palestina, a
reorientar sua política externa para promover ti-imperialista e multipolar pode se estender pretexto de garantir a segurança do Estado
processos de desenvolvimento orientados pa- aos países centrais, em razão da forte presença sionista e motivada por um mal disfarçado
ra a Eurásia e para o Sul Global. A balança do de descendentes ou imigrantes do Sul Global, plano de se apropriar e explorar as reservas
poder mundial passou a se inclinar em direção da elevação da desigualdade e imposição da de petróleo no Mar de Gaza, aumenta drama-
contrária ao poder ultramarino estadunidense, superexploração do trabalho sobre as popula- ticamente a escalada de conflitos na região
mostrando a inadequação das políticas de mu- ções caucasianas na Europa e Estados Unidos, e torna incerto o alcance de seus objetivos.
dança de regime da globalização neoliberal e principalmente jovens. O Hamas terminou por aumentar fortemente
de contenção da Guerra Fria, que partiam do A hesitação do imperialismo liberal em a sua popularidade e a capacidade de recru-
suposto de que aquela se inclinava no tempo acelerar a transição para o imperialismo tar militantes e aliados, o que torna impro-
em favor dos Estados Unidos e diminuiria os tout-court abre o espaço para a ofensiva fas- vável o objetivo de destruí-lo. Multiplicam-
gastos em coerção para promovê-la. cista, mas a sua grande debilidade é a difi- -se os ataques das milícias houthis às bases
A transição do imperialismo informal pa- culdade de produzir uma economia políti- norte-americanas no Oriente Médio e, no Mar
ra o imperialismo tout-court estadunidense ca que lhe sustente e apresente resultados Vermelho, a navios cargueiros estaduniden-
busca orientar as políticas de mudança de sólidos. Os movimentos insurrecionais ob- ses, britânicos e vinculados ao poder sionista.
regime para formas mais duras e estendê-las servam a redistribuição mundial de capaci- Vai se restabelecendo o fantasma do Vietnã,
para as potências e polos emergentes que dades e as limitações do poder imperialista quando a vantagem militar não foi suficiente
aceleram as mudanças na balança de poder para exercer o domínio, restringido por uma para dar a vitória na guerra, pois os custos po-
e se organizam para reestruturar a ordem in- situação de empate catastrófico, e tomam a líticos se tornaram os mais importantes.
ternacional. A elevação dos gastos militares iniciativa. A política externa norte-america- O mundo contemporâneo, espremido em
para restabelecer a ordem unipolar choca- na passa a ser disputada por três eixos: o sua capacidade de criação pelo imperialismo,
-se com a aceleração das forças centrífugas liberal, que realiza uma transição hesitan- ainda não esgotou o seu potencial para ge-
que a ultrapassam e que se manifestam em te para uma política de dominação; o ne- rar tragédias. Chama a atenção a convocação
rivalidades crescentes e na formação de no- oliberal ortodoxo, que coloca as preocupa- de reservistas pela Otan e os seus planos de
vos blocos históricos que multiplicam as ca- ções fiscais e financeiras acima da política uma guerra de 20 anos com a Rússia. A lu-
pacidades individuais e fortalecem as ten- de dominação global; e o fascista, que bus- ta pela paz torna-se a questão central da hu-
dências à multipolaridade. Choca-se também ca retomar o protagonismo que a economia manidade no século XXI, mas contraditoria-
com os limites que a financeirização impõe à política militar teve nos anos 1950-60. A di- mente só terá chances de alcançar resultados
economia norte-americana. Desde a crise de ficuldade de cada uma dessas vias para ge- substantivos quando a consciência da grande
2007-08, quando se ampliou drasticamente rar resultados que impeçam o declínio do maioria dos seres humanos, alimentada pelo
a dívida pública nos Estados Unidos, o país poder norte-americano produz indecisão risco que o imperialismo representa, encon-
vem perdendo dramaticamente a vantagem entre as lideranças políticas. Personagens trar as formas organizativas de paralisá-lo e
em gastos militares frente aos concorrentes. que valorizam o improviso e o oportunismo, superá-lo. Ou inventamos ou erramos: as vi-
Se em 2008, China e Rússia representavam como Trump, movem-se com vantagem pa- tórias do passado são um guia importante
apenas 18,5% dos gastos militares da potên- ra realizar combinações contingenciais em para o futuro, mas são também insuficientes.
cia anglo-saxã, em 2020 atingiam 45,4%. As contexto de crise de padrões.
restrições orçamentárias reduziram os gas- O ataque realizado pelo Hamas em Israel * É professor associado da UFRJ e pesquisador do
Clacso. Realizou doutorado em Sociologia na USP e
tos em defesa nos Estados Unidos de 4,7% evidencia a fragilidade política, militar e ide- pós-doutorado no Arrighi Center For Global Studies. É
do PIB em 2008 para 3,2% em 2022, em que ológica do imperialismo e acelera os proces- co-organizador e coautor de Hacia la Tercera Guerra
pese a elevação desde Donald Trump. sos de confrontação onde sua dominação se Mundial?, Viejo Topo, 2024.

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16 | MUNDO EM GUERRA

O que não existe mais


Rogério Naques Faleiros* to chave do poder estadunidense. Ele drenou
significativamente a liquidez mundial e oca-
n O título deste breve artigo, em alusão ao sionou a valorização do dólar, ao mesmo tem-
romance escrito pelo ótimo Krishna Mon- po em que promoveu a modernização seleti-
teiro, busca identificar os erros de percep- va de seu parque produtivo a baixo custo e
ção e diagnósticos quando somos tomados exportou crises econômicas mundo a fora. As
por um irremediável pecado, qual seja, o ana- crises contribuíram com o enquadramento do
cronismo, cuja definição corresponde ao ato Japão e da Alemanha, com o estilhaçamento
de atribuir a uma época ideias, juízos e sen- do bloco soviético e com um contexto dramá-
timentos que pertencem a uma outra quadra tico na China a partir dos eventos de Tianan-
histórica, processo que, como regra, é acom- men Square, em 1989. Fora a dura lição im-
panhado pela solidão, pela melancolia e pela posta à Eurásia, indicando a necessidade de
constante sensação de desajuste. Este parece buscar um caminho soberano e original, o que
ser o anátema de nosso tempo: caminhamos hodiernamente matura-se como o socialismo
para o futuro com a cabeça no passado. com características chinesas da Nova Era, na
Os Estados Unidos da América e seus asse- expressão cunhada por Xi Jinping, e na apro-
clas da Europa Ocidental (enfim, o “Otanistão”, ximação da potência oriental com a Rússia,
no genial neologismo de Pepe Escobar) pare- em eixo de poder que rivaliza com o Otanis-
cem mover-se a partir da premissa de uma in- tão em sua estratégia de guerra permanente,
contrastável hegemonia, cingida entre 1898 redundando nos recentes conflitos que se de-
(Guerra Hispano-Americana) e o Consenso de senrolam na Ucrânia e no território palestino.
Washington, marco ególatra do neoliberalis- Há várias camadas de problemas nestes
mo anti-humano, situados na centúria na qual eventos bélicos: i) a crise econômica mundial,
os EUA venceram duas guerras mundiais e co- acentuada pela pandemia, tem escancarado
mandaram o mundo em seus aspectos produ- as dificuldades do Ocidente e do Japão no
tivo, cultural, financeiro, monetário e militar, de atual contexto. Após décadas de crescimento
modo que o “poder de fogo” confundia-se com medíocre, os países ditos “desenvolvidos” se
o “poder do dólar”, impondo uma espécie de veem prostrados, e já sentem a concorrência
bainian guochi1 ao Sul Global: do Iraque à So- chinesa em setores da economia altamen-
mália, dos Balcãs às provocações a partir de te intensivos em P&D que tradicionalmente
Taiwan, dos golpes patrocinados na América dominaram, como o de microchips, microele-
Latina à Guerra da Coreia, do desmanche da trônica, big data e automotivo (notadamente
URSS e a capitulação da Rússia à Guerra ao no que se refere à eletrificação); ii) a crise é
Terror, das manipulações no mercado de pe- particularmente dramática na Alemanha, em
tróleo aos muros na fronteira mexicana, o ta- face da alta do custo de energia, deflagrada
buleiro de operações esteve sempre favorável pela guerra e pelas sanções impostas à Rús-
aos yankees por um aspecto decisivo: os dé- sia, que, como resposta, reduziu significante
ficits fiscal e comercial levavam (e ainda le- o fornecimento de gás natural à Europa Oci-
vam) o mundo a financiar as suas operações dental. A nova correlação dos preços de pro-
de guerra nos quatro cantos do planeta, sendo dução levou o outrora potente export drive
decisiva, para isso, a hegemonia do dólar. alemão à estagnação. Ademais, sem um cla-
O século da hegemonia americana ense- ro projeto de transição energética, os setores
jou crescentes rivalidades com o bloco so- de carros a combustão, a indústria química e
cialista eurasiano, com a China e o Oriente a siderurgia padecerão. A questão é particu-
Médio, e mesmo com o bloco de países não larmente problemática quando observamos
alinhados organizados a partir da Conferên- os seus efeitos de propagação em toda União
CLIQUE E OUÇA cia de Bandung. O choque dos juros promo- Europeia, arrastando consigo a França, a Itá-
vido por Paul Volcker em 1979 foi o momen- lia e quase todas as economias desta zona

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MUNDO EM GUERRA | 17

econômica; iii) a Rússia já venceu a guerra


contra a Ucrânia, e, por tabela, apresentou ao
mundo arsenal militar de última geração (ja-
tos e mísseis de longo alcance). Zelensky já
foi atirado à própria sorte e resta agora ob-
servar os termos de rendição. As sanções im-
postas pelo Ocidente não surtiram os efei-
tos desejados e a exclusão do sistema de
pagamentos internacionais via Swift apenas
acelerou o Financial Tech russo e chinês na
busca de alternativas à dolarização da eco-
nomia mundial. De quebra, Vladimir Putin go-
za de elevada aprovação popular e o ano de
2024 marcará a presidência russa nos Brics
ampliado, já incorporando Irã, Arábia Saudi-
ta, Etiópia, Emirados Árabes Unidos, Egito e
provavelmente, no futuro, a Venezuela. A li-
nha de comando certamente será partilhada
com Xi Jinping, que habilmente vem tentan-
do viabilizar as novas rotas da seda marítima transição energética errática e com questões social? Como reconstruir a economia mundial
e terrestre, bem como um poder financeiro sociais que parecem não ter fim. Ademais, é sobre outras bases sem uma guerra? Quem
alternativo a Nova Iorque, Londres e Bruxe- claro o esgotamento das instituições ditas será capaz de garantir sua própria sobera-
las, voltado ao Sul Global. Deve-se observar multilaterais por eles criadas para orques- nia energética e alimentar em face das mu-
que este movimento das “placas tectônicas” trar o mundo, e a ONU, o FMI e tutti quanti danças climáticas em curso? Seria o Império
que está ocorrendo nos marcos de uma tran- simplesmente não conseguem responder aos do Meio capaz de mediar conflitos em escala
sição hegemônica passa ao largo da grande desafios do presente e do futuro, visto que mundial e dotar a economia de algum “Nor-
imprensa econômica brasileira, cujas princi- olham para um passado que não existe mais. te”? Muito mais perguntas do que respostas,
pais mentes foram crucificadas na cantilena A situação do Oriente Médio, como de to- neste mundo que já não existe mais.
do equilíbrio fiscal e do liberalismo. Triste. da a Eurásia, constitui um verdadeiro batis-
Particularmente complexa é a situação mo de fogo ao soft power chinês. As questões Referências:
dos sanguinários conflitos na Faixa de Ga- fronteiriças envolvendo a Rússia e algumas CHAZAN, Guy. Transição verde e energia cara
za. Regionalmente, a histórica presença ame- das outrora repúblicas soviéticas, as rivali- desafiam economia da Alemanha. Folha de
ricana e britânica causou o caos, ao alinhar- dades entre xiitas e sunitas polarizadas en- São Paulo, 03 de janeiro de 2024.
-se à perene política de genocídio israelense tre Irã e Arábia Saudita, que se alastram por LUFT, Gael & KORIN, Anne. De-dollarization:
e ao indefensável massacre de civis depau- toda a região, e a pendenga histórica entre The revolt Against the dólar and the raise of a
perados. O conflito vai se alastrando aos pa- Índia e Paquistão, não resolvida desde Gan- new financial world order. 2019.
íses circunvizinhos, envolvendo o Líbano, o dhi e a descolonização, constituem alguns MONTEIRO, Krishna. O que não existe mais.
Irã e o Paquistão, trazendo contornos impre- dos desafios a serem enfrentados na região São Paulo: Tordesilhas, 2015.
visíveis à situação, dado que passou a envol- e que precisam ser superados caso Pequim NOVAIS, Fernando A. Aproximações: estudos
ver potências nucleares. Em termos econô- de fato objetive a construção de alternati- de história e historiografia. São Paulo: Edito-
micos, a União Europeia vê-se encalacrada vas para o Sul Global. Não é tarefa fácil. ra 34, 2022.
também por este flanco, dada a dependên- No umbral da transição hegemônica, o
cia de sua matriz energética de combustí- passado insiste em permanecer e as diretrizes * É professor associado IV do Departamento de
veis fósseis advindos da região. Pressionada para o futuro ainda não foram construídas. É Economia da Universidade Federal do Espírito
Santo (Ufes) e do Programa de Pós-graduação
pela inflação de custos, pela queda da ativi- neste momento que o anacronismo ganha em Política Social. Exerceu o cargo de diretor do
dade econômica e pela desindustrialização, força e constitui lente míope pela qual os do- Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas CCJE-Ufes
a Europa vive crise social crescente, revigo- nos do poder observam o mundo. Neste qua- (2013 e 2020) e de pró-reitor de Planejamento e
rando-se lá as sementes do fascismo. Os EUA dro, os dilemas vão se somando: como levar a Desenvolvimento Institucional da Ufes (2020 e 2023).
também acusaram o golpe e estão cada vez cabo a transição energética se estamos pre-
1 Expressão chinesa que significa “século de
mais desfalcados de seus aliados históricos sos ao dogma dos orçamentos equilibrados, humilhação”, utilizada para ser referir ao período
e parceiros comerciais relevantes, assim co- cuja ideia e prática levam água ao moinho da entre 1839 e 1949, em que a China sofreu com o
mo também enfrentam problemas com uma financeirização da riqueza e da desigualdade imperialismo japonês e ocidental.

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18 | MUNDO EM GUERRA

As guerras, o mundo em
transição, o dilema europeu
e o lugar do Brasil
Ticiana de Oliveira Alvares* Europa, entre Rússia e Ucrânia; e no Orien-
te Médio, que inclui Gaza e as tensões com
n O ano de 2024 marca uma década do iní- Irã e o Iêmen. Ambas as guerras geram for-
cio da guerra entre Rússia e Ucrânia, e o mês tes impactos sobre a Europa.
de fevereiro completa dois anos do início A primeira estratégia foi traçada por Ni-
da Operação Militar Especial russa contra cholas Spykman e George Kennan e diz res-
a Ucrânia. Considera-se o início dos confli- peito ao cerco estratégico à Rússia. A ideia
tos entre os dois países o ano de 2014, com vem do pensamento geopolítico clássico de
a onda de violência na Ucrânia que depôs evitar uma aliança entre o poder terrestre e
o presidente pró-Rússia Viktor Yanukovich e as bordas marítimas, da Rússia à Europa, par-
colocou no seu lugar um governo ultrana- ticularmente a Alemanha. A solução seria um
cionalista, episódio conhecido como “Euro- cordão de isolamento, estratégia traduzida
maidan”. O acontecimento foi considerado a na dissolução da União Soviética e na forma-
nova Revolução Laranja e teve como conse- ção de pequenos Estados que pudessem ser
quência a anexação da Crimeia pela Rússia atraídos para a influência ocidental. A segun-
e a primeira onda de sanções contra o pa- da é mais recente, se expressa na Guerra ao
ís. Trata-se de um marco importante para o Terror, a partir de 2001, que tem por objetivo
aprofundamento da chamada “virada a leste controlar o Oriente Médio e, sobretudo, seus
russa” e da parceria estratégica sino-russa, recursos estratégicos. Ambas as estratégias
que são o core do projeto de integração eu- geraram sucessivos conflitos, sejam guerras
rasiática e da transição multipolar, e se des- tradicionais, com uso do poder militar ameri-
dobram na expansão da Organização para cano ou de seus aliados, seja outros tipos de
Cooperação de Xangai, na Opep+, no Brics+ guerras, como as chamadas guerras híbridas
e nas Novas Rotas da Seda. e as guerras econômicas.
Esse breve artigo tem por objetivo rela- No atual estágio da transição de poder
cionar esse cenário de transição de poder mundial, pode-se perceber que a Europa vi-
mundial, suas principais consequências e di- ve fortemente os impactos desses conflitos,
lemas para a Europa e as oportunidades pa- de diferentes formas. Ficou espremida entre
ra o Brasil nesse novo contexto. a recuperação russa, a expansão chinesa e
A tentativa de entender a Guerra na Eu- a luta pela manutenção do poder america-
ropa e o mundo atual e seus impactos deve no, com um papel coadjuvante e subordina-
levar em consideração esse conflito prolon- do. Não é objetivo deste artigo ater-se à ex-
gado na Ucrânia. Ou ir mais longe, até o fim pansão chinesa, mas é importante observar
da Guerra Fria, a dissolução da União Sovié- que a parceria sino-russa é um dos elemen-
tica e do Pacto de Varsóvia, o compromisso tos centrais para entender a transição mul-
de não expansão da Otan a leste e o início tipolar (ALVARES, 2020).
do mundo unipolar. A projeção internacional russa é par-
A chamada pax americana e o mundo te constitutiva da sua estratégia nacional, e
unipolar colocaram as estratégias nacio- por isso, os recursos energéticos russos são
nais em função da geopolítica determina- um importante instrumento de barganha da
da por Washington. A fim de tentar entender sua política externa. De acordo com Fiori,
CLIQUE E OUÇA os dias atuais, destacamos duas estratégias “os governos de Vladimir Putin e de Dmitri
que nos levam às guerras do presente: na Medvedev lograram transformar o petróleo

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MUNDO EM GUERRA | 19

e o gás russos nos seus dois principais ins-


trumentos de projeção do poder da Rússia,
na Europa e na Ásia.” (FIORI, 2017).
Aproveitando-se do problema de segu-
rança energética na Europa e da crescente
necessidade de acesso aos recursos energé-
ticos pelas potências asiáticas, a Rússia se
posicionou na geopolítica dos dutos e bus-
cou colocar-se como uma “ponte energética”
(FIORI, 2017) na Eurásia. Atua para contra-
balançar as iniciativas ocidentais de con-
trole dos fluxos energéticos, em especial na
Ásia Central e no Oriente Médio. O Projeto
Nabucco1 e as disputas na região do Cáu-
caso exemplificam as investidas geopolíti-
cas pelos recursos energéticos na região. O
país chegou a garantir o controle do forne-
cimento do gás à Europa, materializado pe-
la construção do gasoduto Nord Stream 2, o
que representou uma vulnerabilidade para
o continente e para a Alemanha, em parti-
cular, e um forte instrumento da política ex-
terna russa. Não à toa, o projeto foi alvo de
boicote permanente pelos Estados Unidos e tégicos, de um lado, a ampliação das relações de 2024, segundo matéria do jornal Finan-
sofreu sabotagem em setembro de 2023. com o Sul Global de outro, incluindo a diver- cial Times.
As recentes resoluções envolvendo as sificação das transações comerciais em moe- Assim, a grande prejudicada pelos em-
metas para redução da emissão de gás car- da local, sobretudo no comércio dos seus re- bargos impostos com a Guerra na Ucrânia foi
bônico na Europa estabelecidas pelo Acor- cursos energéticos, a substituição de reservas a Europa Ocidental, particularmente a Ale-
do de Paris (2015) aumentaram ainda mais internacionais em dólar para outras moedas manha, que viu sua segurança energética
a demanda pelo gás natural, em detrimento e para reservas em ouro. O estrangulamento comprometida com o fechamento do recém
de outras fontes mais poluentes. imposto pelas sanções americanas que der- inaugurado Nord Stream II, que ligava direta-
Agora, com o conflito europeu, essa ques- rubaram a economia russa em 2014 e a ira- mente a Alemanha à Rússia pelo Mar Báltico.
tão se tornou ainda mais latente, uma vez niana em 2012 e 2018 não tiveram o mesmo Outro efeito da Guerra foi o abasteci-
que se por um lado, explicita a necessidade efeito em 2022 e 2023, quando as sanções mento de produtos alimentares, atingin-
de acelerar o desenvolvimento de novas ro- foram ainda mais intensas, incluindo a retira- do a Europa como compradora de trigo e
tas tecnológicas em direção à transição ener- da da Rússia do sistema de transações inter- de óleo de girassol da Ucrânia. Sendo Rús-
gética, por outro, fez a Europa retomar o uso nacionais (Swift). Pelo contrário, mostraram sia e Ucrânia grandes ofertantes mundiais
de fontes fósseis, como o carvão, para garan- uma capacidade de resiliência que o Ociden- de alimentos, em especial trigo, milho e fer-
tir o abastecimento interno. A dependência te não foi capaz de prever. tilizantes, a guerra impactou fortemente a
deixa a União Europeia em uma posição am- O PIB russo caiu apenas 2,1% em 2022 e oferta mundial, provocando uma alta recor-
bígua: por um lado apoiam as sanções contra teve uma das taxas de crescimento mais al- de dos preços em 2022, segundo o índice
a Rússia e por outro, dependem no curto pra- tas do mundo em 2023, de 3,5%, e um cres- de preços de alimentos2, medido pela FAO
zo do país para o abastecimento de gás e pa- cimento industrial de 9,4% entre março e (Food and Agriculture Organization). O índi-
ra a garantia da segurança energética. agosto de 2023. Além disso, o comporta- ce atingiu 147 pontos, um crescimento de
Desde pelo menos o marco decenal dos mento dos bancos surpreendeu ainda mais. quase 50% em relação ao ano de 2020, pu-
conflitos com a Ucrânia que derrubaram o Segundo o Banco Central do país, os ban- xados pelos preços dos cereais (incluindo
presidente Viktor Yanukovich, a Rússia vem cos russos geraram 3,3 trilhões de rublos, milho e trigo) e pelos óleos vegetais, em es-
se preparando para não ter mais sua econo- o equivalente a 37 bilhões de dólares em pecial o óleo de girassol, que a Ucrânia era
mia tão dependente do dólar americano e da 2023, um aumento de cerca de 16 vezes em a principal produtora. Em 2023, os preços ti-
Europa. Dentre as medidas, destacam-se o relação a 2022. O FMI estima um crescimen- veram uma queda importante em relação ao
desenvolvimento interno dos setores estra- to de 2,6% para a economia russa no ano ano anterior, atingindo 124 pontos (queda

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20 | MUNDO EM GUERRA

Tabela 1: volume de óleo e gás transportados pelo Mar Vermelho


2018 2019 2020 2021 2022 1 sem 2023

Total fluxos de óleo 6.4 6.2 5.3 5.1 7.2 9.2

Óleo cru e condensado 3.4 3.1 2.6 2.2 3.6 4.9

Derivados 3.0 3.1 2.6 2.9 3.6 4.3

Fluxos GNL 3.3 4.1 3.7 4.5 4.5 4.1

Fluxos óleo Estreito Babelmandebe 6.1 5.9 5.0 4.9 7.1 8.8

Óleo cru e condensado 3.0 2.7 2.2 1.9 3.3 4.5

Derivados 3.1 3.2 2.8 3.1 3.8 4.4

GNL BabelMandebe 3.1 3.9 3.7 4.5 4.5 4.5

Fonte: Agência Internacional de Energia, elaboração traduzida própria.

de 15,65%), patamar parecido com o ano de Para se ter uma ideia da importância Referências
2021, que contou com os impactos da pan- desta rota marítima, a tabela 1 mostra o vo- ARRIGHI, Giovanni & SILVER, Beverly J. 2001.
demia. O Brasil, como grande produtor de lume de petróleo e gás transportados anu- Caos e governabilidade no moderno sistema
alimentos, teve um papel importante para almente pelo Mar Vermelho até o primeiro mundial. Rio de Janeiro: UFRJ-Contraponto.
esse resultado, assumindo um aumento da semestre de 2023, de acordo com dados da FIORI, J. L. (2017) O papel do petróleo e do
produção de milho para exportação. US Energy Information Administration3. gás no passado e futuro estratégico da Rús-
Agora, com o prolongamento dos A guerra em Gaza também aumenta as sia. Disponível em https://www.cartamaior.
ataques israelenses a Gaza, que já vitima- tensões no Oriente Médio, podendo desen- com.br/?/Editoria/Economia/O-papel-dope-
ram mais de 24 mil palestinos desde outu- cadear novos conflitos envolvendo impor- troleo-e-do-gas-no-passado-e-futuro-estra-
bro de 2023, a Europa se vê diante de um tantes atores regionais, como o Irã, e levar a tegico-da-Russia/7/38899,
novo dilema humanitário e econômico. Tor- interrupção de novas áreas, como o Estreito ALVARES, T. O. (2020). Rússia e China: uma
nou-se uma questão humanitária porque a de Ormuz, pressionando os preços interna- parceria estratégica em busca da mul-
desproporção da reação israelense, que já cionais do petróleo. tipolaridade. Dissertação de Mestra-
foi denunciada como genocídio pelo Tri- O cenário de “caos sistêmico” descrito por do, UFRJ, Rio de Janeiro, 2020. Disponí-
bunal Internacional de Haia, coloca os eu- Arrighi (2001) referindo-se às transições de vel em https://www.ie.ufrj.br/images/IE/
ropeus na defensiva com relação à defesa poder, nesse caso da unipolaridade para a PEPI/disserta%C3%A7%C3%B5es/2020/
dos direitos humanos. E também se conver- multipolaridade, deve ser visto também co- Dsserta%C3%A7%C3%A3o%20Taciana%20
teu em um problema econômico, pois em mo uma oportunidade para que o Brasil en- de%20Oliveira.pdf
termos práticos, a reação do grupo Houthis contre um novo lugar na hierarquia de poder
em atacar embarcações mercantes e milita- global. O Brasil possui importantes vanta- * É economista, diretora técnica do Ineep (Instituto
de Estudos Estratégicos em Petróleo, Gás Natural
res de Israel, Estados Unidos e Reino Unido, gens comparativas, já que as seguranças
e Biocombustíveis) e mestre e doutoranda em
além de outras bandeiras, cria riscos para a energética e alimentar estão no meio desse Economia Política Internacional (Pepi-UFRJ).
navegação pelo Mar Vermelho. A instabilida- jogo. É nosso desafio vincular esse potencial
de nessa região faz com que muitas empre- a um projeto de desenvolvimento nacional. 1 O Projeto Nabucco visa transportar gás
sas optem por uma rota mais segura, con- Além disso, o país já faz parte de importantes natural da Ásia Central para a Europa sem
tornando a África em detrimento do Canal arranjos de integração regionais e multilate- precisar passar pela Rússia; seria uma extensão
de Suez. Essa escolha gera o encarecimen- rais, como o Brics, o Mercosul e a Unasul, e de redes já existentes, em parceria com a
Turquia. O projeto, contudo, não foi concluído e,
to do frete internacional, uma vez que pro- agora a Opep+, tendo um papel de liderança
ao contrário, a Turquia ampliou seu acesso ao
longa em cerca de 9 mil km a viagem. O Ca- regional e um expoente do Sul Global. Res-
gás através do gasoduto russo TurkStream.
nal de Suez é a principal ligação da Europa ta definir qual o interesse nacional brasileiro 2 Disponível em https://www.fao.org/
com o Oriente por mar e responde por 10 a diante dessas oportunidades, para que nosso worldfoodsituation/foodpricesindex/en/
15% do comércio mundial, incluindo as ex- projeto não esteja, como o europeu tem esta- 3 Os dados de petróleo estão em milhões de
portações de petróleo; e por 30% dos volu- do, a serviço e subordinado ao interesse na- barris por dia e de gás estão em bilhões de pés
mes globais de transporte de contêineres. cional de outras potências. cúbicos por dia.

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MUNDO EM GUERRA | 21

Guerra na Ucrânia
Luís Antonio Paulino* so, no lado russo, segundo ele, “quatorze mil
recrutas russos chegam todos os meses aos
n Prestes a completar dois anos, a guerra na centros de recrutamento e Putin agora não
Ucrânia segue sem perspectivas de um fim precisa convocá-los. Isto é completamente
próximo. Depois da fracassada iniciativa da diferente da situação ucraniana”.
Ucrânia de retomar os territórios no leste do Na medida em que a guerra se prolon-
país sob controle da Rússia, a guerra che- ga sem avanços significativos para nenhum
gou a um impasse e transformou-se em uma dos lados, os países-membros da Otan en-
guerra de atrito que pode prolongar-se por contram mais dificuldades políticas de con-
anos a fio, cujo desfecho dependerá, a médio tinuar a apoiar a Ucrânia com armas e di-
prazo, da capacidade de cada lado de manter nheiro. Nos Estados Unidos, um novo pacote
sua capacidade militar. Nesse quesito, a Rús- de ajuda de US$ 61 bilhões está parado no
sia está mais bem posicionada que a Ucrâ- Congresso, por conta das críticas dos repu-
nia. Os russos conseguiram estabelecer uma blicanos aos gastos com a guerra – para eles
economia de guerra capaz de manter um su- não faz sentido colocar dinheiro do contri- Ucrânia, o país utilizava cerca de 7.000 bom-
primento estável de equipamentos, armas e buinte norte-americano em uma guerra es- bas por dia, significativamente mais do que
munições, além de terem uma capacidade tagnada – e divergências internas entre os os russos. A situação inverteu-se: desde o
superior de mobilização de pessoas. Segun- dois partidos sobre a política de migração mês passado, enquanto as forças ucranianas
do a revista The Economist (14/1), “A Rússia na fronteira com o México. foram racionadas para 2.000 obuses por dia,
aumentou os gastos militares em 68% es- Conforme noticiou o jornal O Estado de os russos dispararam cinco vezes esse nú-
te ano, atingindo 6,5% do seu PIB. De acor- S. Paulo (28/12/2023), “Sem os ganhos espe- mero”. Falar de um impasse é complacente.
do com o Ministério da Defesa da Estônia, rados, Kiev enfrenta ainda o ceticismo entre O Ocidente enfrenta agora uma escolha, dis-
a produção russa de munições de artilharia aliados de primeira hora, como os Estados se Jack Watling, especialista do Rusi, um gru-
atingirá 4,5 milhões de unidades este ano”. Unidos. Em Washington, o Partido Repu- po de reflexão em Londres, no início deste
Enquanto isso, a Ucrânia depende exclusiva- blicano resiste em continuar financiando mês. Pode dar à Ucrânia o que necessita, “ou
mente do fornecimento externo de equipa- a guerra. O pacote adicional de US$ 60 bi- ceder uma vantagem irrecuperável à Rússia”.
mentos e encontra cada vez mais dificulda- lhões está travado pelo Congresso e, diante Perante as dificuldades, os Estados Uni-
de para mobilizar combatentes. do impasse, o presidente Joe Biden parece dos estão mudando sua estratégia em re-
Segundo Oleksiy Arestovych, ex-porta-voz ter mudado de tom. Ele, que sempre prome- lação à guerra, para desespero de Zelensky,
do presidente Zelensky e um dos rostos mais teu apoiar enquanto fosse preciso, disse es- que clama dia e noite por mais armas e di-
conhecidos da TV ucraniana, agora transfor- te mês, ao lado do ucraniano Volodymir Ze- nheiro a ponto de constranger os aliados.
mado em um de seus maiores críticos, que lensky, que ajudará enquanto puder”. A ideia dos norte-americanos agora é focar
planeja concorrer à presidência contra Ze- A União Europeia, por sua vez, não con- na defesa dos 80% do território que a Ucrâ-
lensky nas próximas eleições, disse em en- segue aprovar um outro pacote de ajuda nia ainda domina ao invés de tentar reto-
trevista ao UnHerd (15/01): “Quando estava de US$ 54 bilhões por causa do bloqueio mar os 20% sob controle dos russos e es-
no cargo, ouvi-os dizer que quatro milhões da Hungria, que apoia a Rússia. A disposi- perar o fortalecimento da capacidade da
e meio de homens, cerca de metade de toda ção em ajudar a Ucrânia entre os países da indústria bélica ucraniana para que deixe
a população masculina em idade de comba- Europa também não é a mesma. Enquanto de depender quase que exclusivamente do
te da Ucrânia, evitaram registar-se no centro a Alemanha já contribui com € 17 bilhões, fornecimento dos aliados.
de recrutamento, não para efeitos de recruta- a França colocou apenas € 0,5 bilhão nas A Rússia conseguiu uma vitória estra-
mento, mas para verificar os seus dados pes- mãos dos ucranianos. Sem novos pacotes de tégica importante ao longo desses dois
soais. Esta é a prova de que a forma como ajuda, a Ucrânia vê seus estoques de armas anos, para decepção dos Estados Unidos e
motivamos o nosso povo para a guerra não e bombas se esgotarem e tem dificuldade seus aliados na Otan. Como destacou Olek-
é bem-sucedida. Agora estamos a tentar re- para manter o esforço de guerra, enquanto a siy Arestovych, na entrevista ao UnHerd, os
crutar meio milhão de soldados recorren- Rússia intensifica seus ataques. russos conseguiram mudar o palco político
do sobretudo a uma campanha repressiva e Segunda a revista The Economist (14/01), da guerra, transformando-a de um confron-
não a uma motivação positiva”. Enquanto is- “No auge da contraofensiva de verão da to entre Rússia e Ucrânia em um confronto

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22 | MUNDO EM GUERRA

Além disso, no plano interno, os russos


conseguiram mobilizar politicamente o país
em torno do esforço de guerra e convencer
a maioria da população da justeza de seus
objetivos, apesar do enorme número de bai-
xas. Enquanto isso, a Ucrânia vê-se cada vez
mais dividida internamente, seja pelos es-
cândalos de corrupção envolvendo o desvio
de recursos de guerra, seja porque a ideia
de transformar a Ucrânia, um estado mul-
tinacional e multicultural, em um monolito
pró-Ocidente não encontra apoio sobretudo
entre a população de língua russa, que se
vê como um grupo de segunda classe den-
tro do país.
Conforme destacou Oleksiy Arestovych
na mencionada entrevista, “A questão princi-
pal é por que estamos vivendo e morrendo?
E a Ucrânia, como sociedade e cultura, tem
um grande número de respostas para esta
questão. Somos completamente diferentes. O
principal problema da Ucrânia é que alguns
políticos começaram em 1991 a transformar
a Ucrânia de um estado policultural e polina-
cional num país mais monoétnico e mono-
cultural, como a maioria dos países europeus,
como a Polônia. E muitos ucranianos, estes
entre o Norte e Sul Global, conseguindo com sicionar dentro da economia internacional, 4,5 milhões de ucranianos que não queriam
isso evitar o isolamento político e econômi- aumentando sua integração com a China, a ser recrutados pelo Estado, não queriam ser
co que os Estados Unidos imaginavam que Índia e com os inúmeros países que não ade- recrutados por esta ideia política. Este não
iriam lhe impor e, graças a isso, manter sua riram às sanções impostas aos russos pelos foi um problema de contrato social, de bo-
economia funcionado. Estados Unidos e pela União Europeia. E ho- as pensões para militares reformados ou al-
Como destacou José Luis Fiori em artigo je, dois anos depois do início da guerra na go assim, é uma questão do futuro da Ucrâ-
publicado no site A Terra é Redonda (16/1): Ucrânia, em termos “da paridade do poder nia. Acho que muitos ucranianos não querem
“No entanto, a Rússia resistiu ao impacto de compra”, a economia russa já é a primei- fazer parte de um projeto de mononação. (...)
imediato das sanções econômicas em 2022. ra economia da Europa e a quinta economia As pessoas não se recusam a alistar-se no
Em 2023, o PIB russo cresceu 3,5% (umas mundial. Neste sentido, já não cabe mais dú- exército por causa dos perigos de ferimen-
das taxas mais altas do mundo), sua taxa de vida de que os europeus e os norte-america- tos ou morte, mas porque não compreendem
desemprego caiu para 2,9%, sua massa sala- nos avaliaram equivocadamente a capacida- a resposta à pergunta: por que é que temos
rial aumentou 8%, sua renda per capita 5% de de resistência da Rússia como potência de ser um só país? Por que temos que ser um
e sua produção manufatureira aumentou militar, energética, mineral, agrícola e atômi- Estado? Por que razão precisamos de um Es-
9,4 %, entre março e agosto do mesmo ano. ca, nem conseguiram prever a importância tado ucraniano? Muitos dizem que o Estado
Além disso, a própria guerra na Ucrânia se de longo prazo da integração da economia ucraniano me dá a possibilidade de obter o
transformou num grande desafio externo e russa com as economias chinesa e indiana. passaporte ucraniano e entrar na Europa ou
provocou uma profunda redefinição da es- Um “erro de cálculo” das potências ociden- em outro país. Esta é a principal superiorida-
tratégia de desenvolvimento econômico e tais que já provocou um dano enorme, so- de de Putin. Os soldados russos sabem por
de inserção internacional da Rússia, com o bretudo dentro da União Europeia, que en- que lutam: lutam pela Grande Rússia”.
fortalecimento do papel do Estado, da in- trou num processo prolongado de recessão,
dústria nacional e do mercado interno. Em com aumento da inflação e da revolta social,
* É Professor Dr. Associado da Universidade Estadual
dois anos, o uso do dólar nas transações ex- junto com um verdadeiro tufão de ultradi- Paulista (Unesp), diretor do Instituto Confúcio na
ternas da Rússia caiu de 87%, em 2021, pa- reita que pode acabar enterrando os últimos Unesp e pesquisador do Instituto de Estudos de
ra 24% em 2023, e o país logrou se repo- vestígios do projeto de unificação europeu”. América Latina da Universidade de Hubei, China.

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MONOGRAFIA | 23

O JE continua a publicação de resumos dos textos vencedores


do 31º Prêmio de Monografia Economista Celso Furtado. O tra-
balho de conclusão de curso de Igor Fois Abramof, graduado
pelo IE-UFRJ, obteve a terceira colocação no certame.

Classe média comprimida


durante o experimento
redistributivo recente no Brasil?
Igor Fois Abramof* vida pelos 10% mais ricos e aumento para
os 50% mais pobres no período analisado.
n No período que vai aproximadamen- Logo, todo o avanço alcançado pelas ca-
te do começo do século XXI até a aprova- madas de baixo se deu às custas dos 40%
ção do teto de gastos em 2016, ocorreu no do meio, que o autor denominou de sque-
Brasil o chamado experimento redistribu- ezed middle 40%, já que esse foi o único
tivo. Através da implementação de políti- grupo que perdeu participação relativa na
cas públicas, em especial a valorização do renda total do país.
salário mínimo, houve redução de pobreza Apesar de Morgan afirmar que no Bra-
e queda da desigualdade de renda quan- sil, por conta da alta desigualdade de ren-
do medida exclusivamente através das da, não há uma classe média extensa co-
pesquisas domiciliares. Além disso, hou- mo entendida nos países ricos, ele ainda
ve avanços no acesso ao ensino básico e assim considera os 40% do meio como
superior, assim como uma maior formali- uma classe única em seu estudo e não
zação do emprego, que foi uma das cau- realiza nenhuma análise interna ao gru-
sas responsáveis pela diminuição da desi- po que considera como sendo o perde-
gualdade salarial. dor em termos distributivos entre 2001
Por outro lado, pesquisas que foram re- e 2015. Isso pode gerar problemas, pois,
alizadas usando dados do imposto de ren- ao estipular unidade a um coletivo que
da e das Contas Nacionais mostraram que, não necessariamente a tem, o autor dei-
ao contrário do que se imaginava, a desi- xa a possibilidade de que o público inter-
gualdade de renda no período permane- prete que esse grupo possui preferências
ceu alta, com a existência de uma persis- e demandas únicas, inclusive políticas. Is-
tente concentração no topo da distribuição. so pode servir de insumo para análises e
Dentre esses trabalhos chama a atenção o diagnósticos que talvez não estejam base-
working paper do pesquisador Marc Mor- ados na realidade. Por conta disso, a mo-
gan, Falling Inequality beneath Extreme and nografia investigou mais a fundo os 40%
Persistent Concentration (2017), que utili- do meio e, por consequência, a própria te-
zou essas bases para calcular uma estima- se do squeezed middle 40% através de três
tiva da evolução da distribuição de renda perguntas: Os 40% do meio são um gru-
no Brasil de 2001 a 2015. No estudo de po homogêneo em termos de renda, con-
Morgan, foi evidenciado que houve a ma- dição de emprego e acesso ao ensino su-
nutenção da parcela total de renda absor- perior? Todos os vigésimos dentro desse

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24 | MONOGRAFIA

grupo possuem características considera- se tratar de desemprego, os três vigési- empregadores; e na questão do desem-
das de classe média? Quais foram os vigé- mos mais ricos apresentem níveis bastan- prego, os grupos mais ricos foram, em ge-
simos que mais se aproveitaram da pros- te similares, porém abaixo dos demais. O ral, mais beneficiados. Logo, por essa ótica,
peridade que ocorreu entre 2001 e 2015? mesmo padrão se repete no acesso ao en- os vigésimos mais pobres também seriam
Para realizar essa tarefa, foi utilizada sino superior, só que de forma ainda mais os “vencedores”, com destaque especial
a análise estatística descritiva em que os severa, com o p86-p90 e, em menor me- para o p51-p55. Contudo, observar ape-
40% do meio foram divididos em 8 vigé- dida, o p81-p85 atingindo valores muito nas a taxa de crescimento pode ser en-
simos equivalentes a 5% da distribuição maiores do que o restante. O único item ganoso, já que esse elevado aumento se
de renda total. O primeiro vai do percentil analisado em que se observa uma maior deu porque os valores iniciais em 2001
51% até o percentil 55% e foi denomina- homogeneidade é a porcentagem da ren- eram muito baixos. Os vigésimos mais ri-
do p51-p55 e assim sucessivamente até o da que vem do não trabalho, não haven- cos também tiveram expansão na maio-
p86-p90. Para cada vigésimo, bem como do uma grande diferenciação com base no ria das variáveis analisadas e pode-se di-
para os 10% mais ricos, os 50% mais po- rendimento do vigésimo e com resultados zer que houve um processo de catch-up do
bres e os 40% do meio como um todo, se- bastante voláteis ano a ano. extremo inferior dos 40% do meio, porém,
rão analisadas oito variáveis derivadas a Para a pergunta se todos os vigésimos não foi substancial, o que seria um argu-
partir de dados da Pesquisa Nacional por têm características de classe média, a res- mento de que na verdade o p86-p90 seria
Amostra de Domicílios (Pnad) entre 2001 posta também é não. O objetivo do traba- o grande “vencedor” do período.
e 2015: renda média; parcela da renda to- lho não foi traçar uma linha definidora de Os resultados alcançados nessa mono-
tal absorvida por cada grupo; porcenta- classe média; portanto, é impossível dizer grafia permitem uma investigação maior
gem da renda oriunda do não trabalho; com precisão quais grupos pertencem ou sobre esse grupo do meio “espremido”. Em
nível de desocupação; porcentagem dos não a esse estrato. No entanto, conside- primeiro lugar, agora é possível afirmar
ocupados que são formais; anos de estu- rando que na maioria dos pontos observa- com mais tranquilidade que é errado cha-
do médio dos ocupados; porcentagem dos dos há uma maior diferença dos dois vigé- mar os 40% do meio de classe média, já
ocupados que são empregadores; e por- simos mais ricos em relação aos demais, é que, pela considerável heterogeneidade
centagem da população com acesso ao mais provável que o p86-p90 e, em me- do estrato, apenas os vigésimos mais ricos
ensino superior. A escolha das variáveis nor grau, o p81-p85 sejam considerados (em especial o p86-p90 e, em menor medi-
foi baseada no próprio trabalho de Mor- de classe média. da, o p81-p85) possuem com relativa alta
gan e, principalmente, no livro de 2010 A Sobre quais grupos mais se apropria- intensidade os critérios definidores dessa
Classe Média Brasileira: Ambições, valores e ram da prosperidade que ocorreu entre classe. Em segundo lugar, vigésimos inter-
projetos de sociedade, de Bolívar Lamou- 2001 e 2015, a resposta varia dependen- nos aos 40% do meio também apresenta-
nier e Amaury de Souza, que realizaram do da variável analisada. Se for analisada ram ganhos positivos na parcela da renda
uma pesquisa junto à população brasilei- apenas a parcela da renda total que cada total absorvida, assim como os 50% mais
ra para, dentre outros assuntos, identificar vigésimo apropriou, do p51 ao p80 houve pobres, enquanto que apenas o vigésimo
quais são os principais critérios definido- aumento da participação relativa, com os mais rico que mostrou queda em sua par-
res de classe média. grupos mais pobres tendo maior cresci- ticipação total. Nesse sentido, o ganho dos
A resposta para a questão se os 40% mento, enquanto que o p81-p85 ficou es- pobres seria em cima apenas da camada
do meio são um grupo homogêneo, se- tagnado e o p86-p90 diminuiu. A mono- mais rica dentro dos 40% do meio e não do
gundo as variáveis estudadas, é não. Em grafia aponta que apenas o vigésimo mais grupo como um todo. Curiosamente, essa
termos de renda, há uma diferenciação in- rico foi prejudicado no período, logo, do camada mais rica é a que pode ser definida
terna na renda média e, quanto maior o p51 ao p85 seriam os “vitoriosos” entre como sendo de classe média, logo, apesar
rendimento médio do grupo, maior é es- 2001 e 2015. Se forem vistas as outras ca- de Morgan não ter falado especificamente
sa diferenciação. Quando se olha para as racterísticas analisadas, os estratos mais que a classe média foi a principal prejudi-
condições de emprego, também há hete- pobres também tiveram maior aumento cada em termos distributivos entre 2001 e
rogeneidade no desemprego, na forma- relativo na renda média, no acesso ao en- 2015, parece ter sido isso que aconteceu.
lidade e no empreendedorismo, com as sino superior e na formalização do traba-
camadas mais ricas tendo menor deso- lho; não há uma clara relação entre posi- Orientadora: Celia Lessa Kerstenetzky.
cupação, maior formalização e maior por- ção do vigésimo e resultado relativo na
centagem de empregadores, ainda que, ao renda do não trabalho e na proporção de * É bacharel em Ciências Econômicas pela UFRJ.

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