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Nº 375 Novembro de 2020 Órgão Oficial do Corecon-RJ e Sindecon-RJ

Agronegócio e meio ambiente

João Pedro Stédile, Carlos M. Guedes de Guedes, Maria Lucia Falcón, Gustavo Souto de Noronha, Carlos
Walter Porto-Gonçalves, Luiza Dulci, Sérgio Sauer e Patrícia da Silva avaliam os impactos econômicos do
aprofundamento do modelo do agronegócio e da devastação do meio ambiente no Brasil.

Artigo do Fórum trata da assistência social da prefeitura durante a pandemia


2 Editorial Sumário

Agronegócio e meio ambiente Entrevista: João Stedile...................................................................... 3


“O agronegócio não produz alimentos para o povo,
Os séculos se passam e o Brasil não consegue converter seu imenso destrói o meio ambiente e 67% da sua renda é acu-
mulada pelas corporações internacionais”
potencial agrícola e mineral em riqueza para o conjunto da sociedade e
ainda assiste a uma escalada sem precedentes de destruição ambiental. Agronegócio e meio ambiente........................................................... 4
João Stédile, em entrevista, detalha os três modelos de negócios predomi- Uma outra economia para reverter a desigualdade
nantes no campo brasileiro e seus impactos econômicos, sociais e ambientais. no rural brasileiro
Carlos Guedes de Guedes, ex-presidente do Incra, constata que qual- Carlos M. Guedes de Guedes
quer palmo de terra no Brasil está à disposição para expansão. O cresci-
mento pelas inovações tecnológicas do agronegócio funciona a favor de Agronegócio e meio ambiente........................................................... 6
poucos e produz concentração, desigualdade, poluição, desmatamento e Agricultura em rede: transformação ecológica e
redução de cultivos alimentares. digital no campo
Maria Lucia Falcón, da Universidade de Santiago de Compostela, prevê Maria Lucia Falcón
que, se o país elevar a produtividade com uma agricultura em rede com novas
Agronegócio e meio ambiente........................................................... 8
tecnologias e práticas ecológicas, e se os hábitos de consumo se tornarem mais Retomando a reforma agrária
conscientes, não será necessário derrubar a floresta, nem queimar o Pantanal. Gustavo Souto de Noronha
Gustavo Noronha, da Universidade Estácio de Sá, afirma que o Brasil
é o país da reforma agrária perene, muito falada, mas nunca efetivada. Ele Agronegócio e meio ambiente......................................................... 10
sugere retomar essa agenda indispensável ao desenvolvimento começando A Amazônia não está à venda
pelas terras das 77 empresas com dívidas acima de R$100 milhões, de au- Carlos Walter Porto-Gonçalves
tores de crimes ambientais e de envolvidos com corrupção política.
Carlos Walter Porto-Gonçalves, da UFF, discorre sobre a cobiça inter- Agronegócio e meio ambiente......................................................... 11
nacional pela Amazônia, que abriga a maior bacia hidrográfica e a mais ex- A Questão da Terra – que não é plana, mas planeta
tensa, densa e biodiversa formação botânica do planeta. Do engenho de Luiza Dulci
açúcar ao trator-computador, modernidade tecnológica, injustiça social e
Agronegócio e meio ambiente......................................................... 12
devastação ambiental são uma boa síntese de nossa formação territorial. “O boi é bombeiro” do Pantanal: negacionismo e
Luiza Dulci, da UFRRJ, pergunta quais são as possibilidades do país militarização da crise ambiental no Brasil
que celebra o título de celeiro do mundo, mas tem a renda da sua pro- Sérgio Sauer e Patrícia da Silva
dução mineral e agropecuária capturada por multinacionais, que pouco
contribuem para sua economia. É preciso reorganizar o sistema agroali- Fórum Popular do Orçamento......................................................... 14
mentar e o lugar da terra em nossa sociedade. O desalinho da política assistencial carioca frente à
Sérgio Sauer e Patrícia da Silva, da UnB, apontam que o governo pandemia
Bolsonaro enfraquece os órgãos públicos, desmonta o aparato jurídico
de proteção, flexibiliza a legislação e militariza o patrimônio ambiental O Corecon-RJ apoia e divulga o programa Faixa Livre, veiculado de segunda
brasileiro, o que resulta no aumento de incêndios na Amazônia e Panta- a sexta de 9h às 10h na Rádio Bandeirantes, AM, do Rio, 1360 kHz. Você também
pode ouvir os programas pelos sites www.aepet.org.br/radioaovivo.html e
nal, desmatamento e conflitos fundiários. www.programafaixalivre.com.br, canal no Youtube, Facebook, Instagram, podcast
O Fórum dedica mais um artigo ao tema dos efeitos da pandemia no no Spotify, Deezer, Castbox e SoundCloud e aplicativo gratuito.
município, no qual analisa o sistema de assistência social da prefeitura.

Órgão Oficial do CORECON - RJ Presidente: Flávia Vinhaes Santos. Vice-presidente: Sidney Pascoutto da Rocha. Conse-
E SINDECON - RJ lheiros Efetivos: 1º TERÇO: (2020-2022) Arthur Camara Cardozo, Marcelo Pereira Fernandes,
Issn 1519-7387 Sidney Pascoutto da Rocha - 2º TERÇO: (2018-2020) Antônio dos Santos Magalhães, Flávia
Vinhaes Santos, Jorge de Oliveira Camargo - 3º TERÇO: (2019-2021) Carlos Henrique Tibiriçá Miranda,
Conselho Editorial: Sidney Pascoutto da Rocha, Carlos Henrique Tibiriçá Miranda, Gustavo Souto de Thiago Leone Mitidieri, José Antonio Lutterbach Soares. Conselheiros Suplentes: 1º TERÇO:
Noronha, João Hallak Neto, Marcelo Pereira Fernandes, Thiago Leone Mitidieri, José Antonio Lutterba- (2020-2022) Gustavo Souto de Noronha, João Hallack Neto, Regina Lúcia Gadiolli dos Santos - 2º
ch Soares, Wellington Leonardo da Silva, Paulo Sergio Souto, João Manoel Gonçalves Barbosa e José TERÇO: (2018-2020) André Luiz Rodrigues Osório, Gilberto Caputo Santos, Miguel Antônio Pinho
Ricardo de Moraes Lopes. Jornalista Responsável: Mar­celo Cajueiro. Edição: Diagrama Comunica- Bruno - 3º TERÇO: (2019-2021) José Ricardo de Moraes Lopes, Clician do Couto Oliveira.
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Santos.

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Entrevista: João Stedile 3

“O agronegócio não produz alimentos para o povo, destrói o meio ambiente


e 67% da sua renda é acumulada pelas corporações internacionais”
Graduado pela PUCRS e pós-gra- gócio está concentrada em soja, mi- dem o excedente. Cinco milhões de
duado pela Universidade Nacio- lho, algodão, cana e pecuária bovi- famílias ocupam apenas 20% das ter-
nal Autônoma do México, o eco- na. E representam 65% de todo o ras agrícolas. Sua lógica é de defesa da
nomista João Stédile é fundador PIB agrícola nacional. Pelos dados natureza, por que dependem do equi-
e membro da direção nacional do do IBGE, estima-se que há uns 40 líbrio para terem boa produtividade,
Movimento dos Trabalhadores mil fazendeiros com propriedades então respeitam a reserva florestal,
Rurais Sem Terra (MST) e autor e acima de mil hectares – entre eles, as águas. Praticam uma policultura,
coautor de diversos livros sobre a o maior é o ex-ministro Blairo Mag- que contribui para o equilíbrio com
questão agrária e política. gi, com 250 mil hectares – e outros o meio ambiente. Nos anos dourados
340 mil médios proprietários, que do Lula, a Conab chegou a comprar
P: O Brasil é o “celeiro do mun- possuem de 100 a 1000 hectares. 367 tipos diferentes de alimentos da
do”, mas parte dos brasileiros pas- Esse modelo não produz alimentos agricultura familiar, distribuídos pa-
sa fome. Vamos continuar assim para o povo. Mesmo a carne bovi- ra escolas, quartéis, presídios, associa-
para sempre? na não faz parte da dieta diária do ções de moradores etc. Esse é o único
R: Desde o advento do neoliberalis- brasileiro, que consome majorita- setor que produz alimentos saudáveis,
mo, como fase do capitalismo mun- riamente proteína animal de aves e sem agrotóxicos, adotando a matriz
dial dominada pelo capital financeiro suínos. O monocultivo e o uso in- tecnológica da agroecologia, e contri-
e grandes corporações globalizadas, tensivo de agrotóxicos destroem a bui para o equilíbrio climático, que
três projetos disputam os bens da na- biodiversidade e o meio ambiente, interessa a toda a sociedade. migrar para a agroecologia, como fez
tureza e a forma de produzir na agri- contaminam as águas e a produção e Paulo Diniz, filho do Abílio Diniz.
cultura brasileira. O primeiro mode- atingem outros produtores. Há dois P: Como você avalia as políticas Paulo foi morar na fazenda do pai de
lo é do latifúndio atrasado, que quer anos o sr. Galvao Bueno teve a sa- do governo Bolsonaro para o se- mais de 1.500 hectares, substituiu o
apenas acumular de forma primiti- fra dos seus 200 hectares de videiras tor agrícola? monocultivo de cana pela agroecolo-
va, se apropriando dos bens da na- no Sul perdida, porque foram con- R: A Secretaria Especial de Assuntos gia e hoje produz dezenas de produ-
tureza, terras, água, florestas, biodi- taminadas por agrotóxicos de fa- Fundiários representa o projeto do tos alimentícios saudáveis.
versidade, minérios e petróleo. É esse zendeiros de soja, seus vizinhos. Es- latifúndio atrasado. Ricardo Salles é
capitalista que está na fronteira agrí- se modelo é totalmente dependente desta turma. Já o projeto do agronegó- P: Houve algum avanço no pro-
cola, em conflito com as populações do exterior, seja na compra dos in- cio está representado pela ministra da cesso de reforma agrária nos go-
indígenas, quilombolas, ribeirinhos, sumos (fertilizantes, agrotóxicos, Agricultura. Nenhum deles resolve as vernos Temer e Bolsonaro?
que vivem por lá há séculos. Eles não máquinas) quanto do mercado ex- necessidades objetivas do povo, que é R: A reforma agrária nunca existiu
produzem nada, apenas se apropriam terno, que é controlado por poucas ter acesso a alimentos, emprego, água. no Brasil. O único projeto verdadei-
do lucro extraordinário de explorar a empresas transnacionais. O padrão Toda a riqueza é carreada para grandes ro foi o de Celso Furtado, que pode-
natureza e transformá-la em merca- de divisão da riqueza para os grãos centros e para fora do país. As cidades ria ter integrado milhões de sem-ter-
doria. Acredito, pelos dados do IB- produzidos pelo agronegócio bra- do interior estão empobrecidas. ra à cidadania e teria impulsionado o
GE, que estariam neste modelo não sileiro é o seguinte. Cerca de 67%   mercado interno para a indústria. A
mais do que 30 mil capitalistas, mas da renda agrícola é acumulada pe- P: É possível conciliar o modelo resposta foi o golpe militar. O que ti-
por trás deles tem o capital financei- las corporações internacionais, que do agronegócio com preservação vemos nesses anos todos foram polí-
ro, como Daniel Dantas, que com- fornecem os insumos e controlam ambiental? ticas de assentamentos rurais e proje-
prou 600 mil hectares no sul do Pará. a taxa de lucro na comercialização. R: Setores do agronegócio, por meio tos de colonização em terras públicas
O segundo modelo é o do agronegó- O fazendeiro fica com apenas 12% de seus intelectuais orgânicos, como na fronteira agrícola, em especial na
cio. Tido como moderno. Ele repe- da renda e os trabalhadores com só o ex-ministro Roberto Rodrigues, Amazônia Legal. Um dos períodos
te o modelo do plantation colonial. 8%. Os outros 13% se dividem en- defendem a adequação ao equilíbrio em que houve mais avanços foi no
Grandes extensões, monocultivo e tre impostos e juros para os bancos. ambiental para que possam continu- governo Sarney, devido à conjuntura
produzem commodities para o mer- ar disputando o mercado externo. A política da redemocratização; o outro
cado externo. Substituíram a mão P: E a agricultura familiar? lógica é a de preservar florestas, áre- foi no segundo mandato do FHC,
de obra por grandes máquinas e pe- R: É o terceiro modelo, baseado na as de preservação e até reflorestar. depois do massacre de Carajás. No
lo agrotóxico. Não produzem ali- mão de obra familiar, ainda que al- Acontece que todo o modelo está governo Lula, avançamos mais em
mentos, produzem commodities, ou guns se obriguem a se assalariar para contaminado, com o uso de semen- políticas de apoio à agricultura fami-
seja, uma mercadoria agrícola pa- o agronegócio em alguns períodos de tes transgênicas, agrotóxicos e con- liar. Com Temer e Bolsonaro, a re-
dronizada pelo capital. Cerca de safra. Produzem basicamente alimen- taminação das águas, e não tem co- forma agrária e a política de assenta-
80% de toda produção do agrone- tos, primeiro para sua família, e ven- mo ser equilibrado. Eles teriam que mentos estão paradas.

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4 Agronegócio e meio ambiente

Uma outra economia para reverter


a desigualdade no rural brasileiro
Carlos M. Guedes de Guedes* cados globais. O resto é secundá- tado como impulsionador dessas
rio, como externalidades ou ação novas ocupações. Agora, o capital

J á se anuncia que a safra de


grãos 2020/2021 poderá ser
considerada a “safra de ouro”, as-
de maçãs podres, que podem ser
resolvidas ao longo do processo.
Portanto, negar o que está dando
se viabiliza lutando por autorregu-
lamentação, sem controle ou con-
dução estatal. A combinação de
sociando as expectativas de am- “certo” não é simples. Os números terra e mão de obra barata supe-
pliação de produção e área plan- falam por si mesmos em favor da ra, e muito, os custos de implan-
tada no Brasil e garantia de expansão do modelo hegemônico. tação, mesmo sem a infraestrutura
manutenção da lucratividade para A complexidade da negação inicial existente. Nas novas áreas
as commodities exportadoras, em inicia em “o que negar?” Respon- de expansão, a produtividade to-
especial a soja. sabilizar a soja, a tecnologia, os tal dos fatores (PTF) demonstra
Ao se confirmarem tais expec- proprietários de terra? Por que ser- um crescimento significativo, pois
tativas, vamos observar analistas mos contra as commodities agríco- antes, onde havia mata ou cultivos
saudando os benefícios para a eco- las se estamos “comoditizando” de subsistência, agora tem agricul-
nomia nacional, assim como maior todas as nossas relações interpes- tura de precisão em escala crescen-
circulação de renda nas regiões pro- soais, usando carro próprio para te. Não estamos tratando do di-
dutivas, movimento no comércio e obter alguma renda, ou compran- lema de crescimento por área ou
trabalho local. Para uma economia do alimento e lazer por aplicati- ocorrendo nas áreas de expansão por produtividade; é a combina-
abalada mesmo antes da pandemia, vos? A negação está em compreen- do capital. As chamadas fronteiras ção dos dois movimentos. Ou se-
os resultados na agropecuária têm der o problema não como a soma agrícolas hoje devem ser encaradas ja, o tempo – no caso a velocidade
servido como um respiro, diferen- das partes, mas como o conjunto como espaços em transformação das mudanças – destrói e recons-
te das altas taxas de desemprego e funciona a favor de poucos, arras- numa dimensão maior. Há toda trói novos espaços de acumulação
estagnação econômica das regiões ta muitos por falta de opção, as- uma dinâmica de apropriação en- e desigualdade.
metropolitanas. sim como exclui milhares que não volvida, mudanças nas relações so- Tal estratégia até pode funcio-
O setor primário brasileiro atendem aos atributos do modelo ciais e de poder, como a criação de nar por algum tempo, enquanto
aparentemente saiu de um perío- dominante. E que, portanto, leva “cidades do agronegócio”. impactos e efeitos são devidamente
do em que predominava o “lati- a mais concentração e desigualda- Assim como são reais os ga- identificados e mitigados e a diver-
fúndio” e entrou na era do “agro- de. É o ponto a ser negado. nhos de produtividade, também sidade no rural brasileiro é respei-
negócio”. O segredo do sucesso é Para entender o que está acon- é verdade que a força da expansão tada. Freios e contrapesos se ma-
atribuído à capacidade imanen- tecendo, precisamos olhar o ru- do agronegócio está em conquis- nifestam com políticas agrícolas,
te dos proprietários de gerir suas ral brasileiro nas suas diferentes tar novos espaços que proporcio- agrárias e ambientais para delimitar
propriedades associada aos bene- dimensões. Temos que olhar as nem terra e trabalho abaixo da territórios em favor de populações
fícios da globalização, como a de- múltiplas formas de ocupação e média de mercado, e implantar indígenas e tradicionais, e man-
manda externa e novas tecnologias domínio das terras, sejam nas pro- rapidamente o pacote tecnológi- ter diferentes cultivos alimentares
de informação e comunicação. A priedades individuais, sejam em co disponível a fim de produzir mesmo em relativa e aparente des-
articulação com o capital finan- apropriações comunais como de o que o mercado externo está fa- vantagem comercial com as com-
ceiro, Lei Kandir e câmbio favorá- indígenas, quilombolas e ribeiri- minto em comprar. Essa dinâmi- modities exportadoras. Mas o que
vel permitiram a tração que faltava nhos. Temos que observar a resi- ca não é nova, pois vem aconte- se vê hoje é a destruição de todo o
para a expansão. liência da agricultura familiar, res- cendo desde o final dos anos 50 conjunto de iniciativas que manti-
Nós, economistas, somos os ponsável pela comida que chega do século passado com os pro- nham esse equilíbrio contraditório
primeiros a exaltar quando se per- na mesa dos trabalhadores brasi- cessos de colonização no Centro- e potencialmente conflituoso em
cebem os efeitos do salto oriundo leiros e por 67% da mão de obra -Oeste e Amazônia. relativa estabilidade. O “pragmatis-
de uma melhor gestão, aplicação ocupada. A novidade é a relativa autono- mo civilizatório” se esvaiu.
de tecnologias e inserção em mer- Devemos entender o que está mia do capital em relação ao Es- O modelo hegemônico se im-

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Agronegócio e meio ambiente 5

põe sem mediações. A nova estra- peculativos combinados que se re- ganhos adicionais e melhoria do Perderíamos muito com isso? Es-
tégia é negar a diversidade. É in- troalimentam em espiral. Quem bem-estar coletivo. No rural bra- tudo realizado sobre impacto no
visibilizar quem se opõe ou é um ganha com isso? Quem tem poder sileiro, devemos parar de ideali- PIB do “desmatamento zero” diz
obstáculo à expansão, e transfor- de monopólio para se apropriar zar essa “verdade escolhida”, pois que não.
má-lo ou em mão de obra barata, das melhores condições de adqui- os efeitos sobre pessoas reais, for- Destituir propriedades que
ou simplesmente eliminá-lo. O si- rir terra, mão de obra, vender a mas de organização de vida e sobre produzem muito, mas que ge-
nal é claro e dialoga com expecta- produção antes de plantar, ser fi- a natureza podem ser negativos e, ram efeitos ou externalidades ne-
tivas: qualquer palmo de terra no nanciado pelo mercado de capitais em alguns casos, sem retorno. As gativas como poluição, desmata-
Brasil está à disposição para ex- e melhorar seus assets com hectares inovações, quando alteram posi- mento, diminuição na produção
pansão. Ganhos produtivos e es- valorizados no portfólio. tivamente a vida das pessoas, são de cultivos alimentares é possível?
Nas Ciências Econômicas, so- sempre bem-vindas. Porém, quan- A Constituição Federal de 1988
mos induzidos a preferir o cresci- do são ferramentas para a con- diz que a propriedade produtiva
mento pelas inovações tecnológi- centração e centralização de po- não pode ser desapropriada. Po-
cas e seus saltos, que promovem der econômico e político, devem rém, a chamada função social da
propriedade deve abarcar a eficá-
cia econômica e socioambiental
das propriedades. É o que a União
Europeia está exigindo para selar o
acordo comercial com o Mercosul.
A excessiva concentração de
propriedade em poucos controla-
dores é um problema e o limite do
tamanho de propriedade deve dei-
xar de ser um tabu. Deve ter limi-
tes porque fere a democracia. Es-
tamos prontos para esse debate?
Estamos preparados a fazer esco-
lhas em favor de outras possibili-
dades de viver, produzir e preser-
var no Brasil? Estamos dispostos
a abrir mão de padrões atuais de
ser combatidas nas partes e no consumo e acumulação para in-
conjunto. fluenciar positivamente nos pro-
Torna-se fundamental recu- cessos econômicos e sociais no ru-
perar mecanismos criados pela ral brasileiro? Vamos usar nossos
democracia para reequilibrar as conhecimentos para exercer a ne-
relações de poder e evitar a con- gação ao modelo e ajudar o Brasil
centração. A reforma agrária é a fazer a melhor escolha possível,
uma delas, assim como a tribu- subordinando a economia à de-
tação sobre a riqueza e herança e mocracia; 99% da população sen-
a política de cotas. É necessária tirá as mudanças para melhor.
uma reforma agrária para viver
* É economista e mestre em Desenvol-
e produzir melhor. Produzir ali- vimento Rural pela Universidade Fede-
mentos saudáveis para uma po- ral do Rio Grande do Sul (UFRGS) e
pulação hoje faminta e obesa. analista em reforma e desenvolvimento
Garantir territórios indíge- agrário. Foi presidente do Instituto Na-
nas e tradicionais também é re- cional de Colonização e Reforma Agrá-
ria - Incra, de julho de 2012 a março de
forma agrária, como já defendeu 2015, e secretário de estado de Planeja-
Chico Mendes e hoje defendem mento, Orçamento e Finanças do Esta-
os movimentos sociais rurais. do do Pará, em 2007.

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6 Agronegócio e meio ambiente

Agricultura em rede: transformação


ecológica e digital no campo
Maria Lucia Falcón* de monitorar as lavouras para indi- rem duplamente beneficiados pela
car manejos necessários ao controle redução dos custos de energia e da

A s tecnologias de informação
e comunicação (TIC) atingi-
ram um nível de importância defi-
de doenças, pragas, irrigação, den-
tre outros procedimentos; podem
também selecionar alunos no ves-
emissão de gases efeito estufa, que
causam as mudanças climáticas. O
segundo passo é preparar a educa-
nidor na economia do século XXI, tibular e profissionais candidatos a ção para ser condutora crítica des-
fenômeno que vem recebendo o uma vaga de trabalho; apoiam a se- se processo de transformação, su-
nome de capitalismo informacio- gurança pública com vigilância re- perando os terríveis resultados do
nal ou de plataforma. Os seus efei- mota e a perícia de imóveis rurais Pisa 2020, que mostram um qua-
tos são mais percebidos pela po- para avaliar propriedades para a re- se completo despreparo das esco-
pulação no uso das redes sociais e forma agrária. las brasileiras para as novas tecno-
internet através dos telefones celu- Os exemplos são proposital- logias e o baixo investimento na
lares: videochamadas, mensagens mente amplos para garantir que o qualificação dos professores.
de texto e voz, notícias e fake news. leitor perceba que não há setor eco- A nova economia tem seu mode-
Pela internet compramos, vende- nômico nem profissão que escape lo em rede, distribuída e inteligen-
mos, e agora, com o Pix, pagamos da transformação digital da econo- te, mais eficiente do ponto de vista
e transferimos dinheiro. Mudou mia. A nova hierarquia social e ge- energético, em meio real e em meio
radicalmente a atividade da co- rencial irá pagar e promover os tra- virtual. Os velhos capitais a serem dade de pessoas mortas pela Co-
municação, do marketing, dos co- balhadores capazes de falar a língua queimados na transição reagem em vid-19 no mundo e terceiro lugar
mércios e dos bancos. Com as res- das máquinas, isto é, capazes de tom de guerra comercial, retrocessos em contágios; recordes de destrui-
trições de vida social trazidas pela programar os algoritmos da IA e in- à era vitoriana em forma de minas ção ambiental com as queimadas
pandemia da Covid-19, o traba- terpretar os resultados. Os demais de carvão e de costumes sociais, tu- na Amazônia, Pantanal, e outros lo-
lho remoto se tornou uma realida- trabalhadores devem saltar a barrei- do o que for possível para dar sobre- cais; pobreza crescente e desempre-
de para muita gente, assim como a ra do uso da internet e passar a ser vida às velhas minas, fábricas e lati- go, atenuados pelo auxílio emer-
telemedicina e a educação à distân- solucionadores de problemas: nível fúndios da monocultura, antes que gencial, que se encerrará ao final de
cia para as crianças e jovens. básico, mediante requisições corre- sejam sepultados pela história. Pro- 2020; por fim, surgem o desabaste-
Na indústria, nos serviços e na tas (uma reserva de hotel ou inscri- pagam o descrédito à ciência e a ma- cimento alimentar e inflação, cau-
agricultura também estão ocorren- ção num curso on-line), uso de for- nipulação da opinião pública. sadas pelo desprezo do governo à
do transformações radicais a par- mulários eletrônicos (IRPF ou tirar Muito investimento será neces- produção da agricultura familiar e
tir das TIC, congregadas num pa- passaporte); nível médio, capaz de sário para fazer essa transformação um sutil terremoto nas cadeias pro-
cote conhecido por Indústria 4.0: pesquisar as informações necessá- produtiva e social, porém o Brasil dutivas, que poderá se intensificar e
energia renovável gerada de forma rias na rede, imagens, metadados caminha no sentido contrário, uma desorganizar os mercados.
distribuída (smart grid), produção para orientar decisões. espécie de “desplanejamento” pa- Qual lucro será garantido no
controlada por Inteligência Artifi- A produtividade e a competiti- ra um trágico futuro: nem infovias médio prazo por uma política pú-
cial (IA), impressão em 3D, robôs, vidade da economia pós-pandemia nem geração distribuída de ener- blica que destrói não apenas a base
drones, enfim, máquinas ligadas irão depender dos investimentos, gia, nem pesquisa, nem inovação. material de produção – seja a flo-
em rede com processamentos de em pessoas e nas empresas, para O que é fato na economia brasilei- resta, as pessoas ou a indústria –,
grandes volumes de dados (big da- trabalhar com as novas tecnolo- ra em 2020? O real sofre a maior mas também a “marca” Brasil e sua
ta) que permitem o aprendizado e gias. O primeiro passo é garantir desvalorização de moeda no mun- rede de compradores no mundo?
melhoria contínua dos processos e as infovias (fibra ótica e 5G) e a ge- do; a queda do PIB e a queda dos Os ataques de baixo calão contra
decisões. Elas racionalizam o uso da ração ampla de energia renovável investimentos; a fuga de capitais es- os governantes dos mais importan-
energia ao longo do dia; elas podem (parques solares e eólicos no Nor- trangeiros; a desindustrialização se tes parceiros comerciais, seja a Ar-
ler tomografias e fazer diagnósticos; deste, por exemplo), pré-requisi- aprofunda; a predominância das ex- gentina, a China ou a União Eu-
podem analisar causas e emitir ju- tos para todos acessarem as redes portações de commodities agrícolas e ropeia, não sinalizam interesses de
ízos nos tribunais; elas são capazes e, com a conversão ecológica, se- minerais; a segunda maior quanti- mercado capitalista, mas sim um

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Agronegócio e meio ambiente 7

paradigma subordinado e cheio de uma maratona, não corrida de cem torno das redes urbanas, movidas ce, pactuando regras de comércio
ódio pelas regras do Estado mo- metros rasos. Não haverá agrone- por energia renovável autogerada. adequadas ao consumo consciente:
derno e da diplomacia inteligente. gócio ou mineração fordista que A proteína de origem animal de- de proximidade, saudável, não pre-
Os dados das exportações confir- sobreviva a num mercado global verá ser consumida em menor es- datório da natureza nem das pes-
mam a inépcia comercial do Ita- competitivo e exigente com as re- cala e produzida em outras con- soas (trabalho análogo ao escravo
maraty de 2020. gras de segurança alimentar, climá- dições tecnológicas. A produção subsiste no latifúndio brasileiro) e
Diante dessas tendências desa- tica e democrática (vidas indígenas das indústrias agroalimentares, ou com qualidades culturais dos terri-
nimadoras, alertas devem ser emi- e quilombolas importam). mesmo outros setores do comple- tórios. Há muito trabalho a ser fei-
tidos para os setores financeiro, de No século XXI, o sistema de xo agroindustrial, pode ser assumi- to pelos municípios e estados, com
mineração e de agronegócio, que latifúndio e plantation que queima da pela agricultura familiar ou de apoio federal. É preciso organizar
apoiaram o “desplanejamento” do a floresta não se sustenta. A pro- pequeno e médio porte, que gera e apoiar a rede de cidades e os ar-
Brasil: o PIX não resolve uma rup- dução local em pequenas e mé- sua própria energia, é agroecoló- ranjos produtivos locais, aliando a
tura nas cadeias produtivas, nem o dias propriedades familiares ou co- gica e altamente competitiva, pois reforma agrária com a tecnologia e
sistema financeiro aguentará uma operativas, alimentos saudáveis e os jovens agricultores qualificados inovação. Também a reforma ur-
derrocada de grandes proporções estoques de segurança alimentar e suas máquinas em rede estarão à bana é necessária para a inclusão
na economia real – tanto nos mer- estão sendo as estrelas no enfren- frente das empresas e cooperativas. produtiva das novas gerações.
cados quanto nas contas públicas. tamento da crise sanitária na Euro- A cidade precisa mudar sua re- Se o Brasil elevar a produtivida-
A recuperação pós-pandemia será pa e devem ser estimuladas no en- lação com o campo que lhe abaste- de com uma agricultura em rede,
suportada por novas tecnologias e
práticas ecológicas, e se os hábitos
de consumo se tornarem mais cons-
cientes, não será necessário derru-
bar a floresta, nem queimar o Pan-
tanal, desequilibrando o clima no
país e no mundo. Não será neces-
sária a grande propriedade. A natu-
reza poderá se recompor em alguns
anos. Nossas exportações terão
maior valor agregado. É um cenário
animador para uns e ameaçador pa-
ra outros. Ele exige um instrumen-
to que o atual sistema político não
está se mostrando capaz de utilizar:
negociação respeitosa entre visões
de negócios e de organização social,
para pactuar perdas e ganhos, deci-
dir investimentos e desinvestimen-
tos necessários à recuperação pós-
-pandemia e transformação digital
e ecológica da economia.

* É pesquisadora visitante na Universidade


de Santiago de Compostela / Faculdade de
Ciências Econômicas e Empresariais e pes-
quisadora da RedeSist/IE/UFRJ. Foi presi-
dente do Incra (2015-2016), assessora do
BNDES (2014), secretária de planejamen-
to do Ministério do Planejamento (2011),
secretária de Planejamento (2007-2010)
e do Desenvolvimento Urbano (2012-
2013) do Governo de Sergipe e secretária
de Planejamento da Prefeitura de Aracaju
(2001-2006).

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8 Agronegócio e meio ambiente

Retomando a reforma agrária


Gustavo Souto de Noronha* com as bancadas da bala e da Bí- nos preços deste mercado explica-
blia, tem promovido grandes re- -se, em parte, por um problema de

A reforma agrária se debate no


Brasil desde os tempos da
monarquia. O patriarca da inde-
trocessos no Brasil, da EC nº 95 à
antirreforma trabalhista.
José Eli da Veiga já argumenta-
oferta insuficiente para atender à
demanda, mas também pela vin-
culação de determinados produ-
pendência José Bonifácio denun- va a necessidade de se realizar uma tos aos mercados internacionais
ciava os latifúndios improdutivos ruptura sociopolítica para destra- de commodities. Logo, a melhor
e defendia a redistribuição de ter- var o desenvolvimento econômi- maneira de se evitar uma inflação
ras em favor de europeus pobres, co. Esta ideia de ruptura também de alimentos é ao mesmo tempo
índios, mulatos e pretos forros. A estava presente nas teses do eco- buscar desvincular os preços dos
proposta de Bonifácio era avança- nomista conservador norte-ameri- alimentos dos mercados externos
da a ponto de incorporar elemen- cano Walt Whitman Rostow, que e aumentar a oferta de alimentos
tos da defesa do meio ambiente defendia uma ruptura com as eli- para o mercado interno. A refor-
como a preservação das matas, o tes tradicionais como uma das ma agrária cumpre ambos os pa-
reflorestamento e o uso equitativo pré-condições para o desenvol- péis.
das fontes de água. vimento. Deste modo, a reforma Celso Furtado, Caio Prado Ju-
O Brasil trilhou um caminho agrária seria uma condição políti- nior, Ignácio Rangel, entre tantos
bastante distinto até o século 21, ca para o Brasil tornar-se uma na- outros pensadores sempre aponta- O tema só voltou a avançar
ignorando diversos pensadores ao ção desenvolvida. ram a necessidade da democratiza- um pouco no governo Fernando
longo de sua história. Joaquim Argumentos econômicos não ção da propriedade da terra como Henrique Cardoso, pressionado
Nabuco defendeu que a repara- faltam para defender a necessidade uma etapa necessária ao desenvol- pelo massacre de Eldorado de Ca-
ção aos negros libertos passava ne- de uma mudança radical na estru- vimento brasileiro. João Goulart rajás, ocorrido em 17 de abril de
cessariamente pela reforma agrária tura fundiária. Diversos estudos fez um discurso histórico na Cen- 1996. Todavia, apenas no primei-
e que enquanto isso não ocorres- mostram que as grandes proprie- tral do Brasil, no Rio de Janeiro, ro governo Lula se apresentou o
se, não estaria completa a aboli- dades possuem custos crescentes em que um dos eixos centrais era segundo plano nacional de refor-
ção. Victor Nunes Leal denunciou de escala. Custos de gerenciamen- a reforma agrária. A derrubada do ma agrária. O primeiro mandatá-
os efeitos deletérios do coronelis- to, logística e mão de obra, a im- presidente impediu que sua pro- rio petista chegaria ao fim de seu
mo como um dos fatores do atra- previsibilidade meteorológica, a posta fosse adiante. segundo governo tendo assentado
so brasileiro, coronelismo este di- volatilidade dos preços internacio- A ditadura editou o Estatu- cerca de 600 mil famílias de um
retamente associado ao latifúndio, nais, além do descolamento entre to da Terra, gestado no governo total de quase um milhão de be-
que foi dissecado no clássico de o tempo de trabalho e o tempo de Goulart, mas promoveu de fato neficiários da reforma agrária. To-
Alberto Passos Guimarães, Quatro produção são alguns fatores que uma modernização conservadora davia, a gestão de Lula fez muitos
Séculos de Latifúndio. nos permitem afirmar que o se- aliada à grande propriedade, que assentamentos em terras públicas
De fato, o coronelismo man- tor agrícola não possui caracterís- era uma das suas principais ba- na Amazônia Legal e ocupou lotes
tém suas raízes no Brasil de hoje: ticas de uma atividade capitalista ses de sustentação política. Com vagos em assentamentos existen-
a bancada ruralista conta com 39 no senso comum. Ademais, todas a redemocratização veio o pri- tes. São processos de regulariza-
senadores e 245 deputados, cer- as nações cujo padrão de desen- meiro plano nacional de reforma ção fundiária e limitada democra-
ca de 48% de cada casa, enquanto volvimento é idealizado pela gran- agrária, instituído pelo Decreto tização do acesso à terra que não
apenas pouco mais de 15% da po- de maioria da sociedade brasileira nº 97.766, de 10 de outubro de podem ser chamados de reforma
pulação brasileira é rural (ou cer- passaram por um processo, quase 1985, com a meta de destinar 43 agrária. Em realidade, o índice
ca de 24% sob os novos conceitos sempre radical, de democratização milhões de hectares para o assen- de Gini da concentração fundiá-
de ruralidade). O livro O partido do acesso à terra. tamento de 1,4 milhão de famí- ria no país esteve sempre acima de
da terra: como os políticos conquis- Outro aspecto econômico re- lias até 1989. Um acidente aéreo 0,8 desde 1940, 0,867 pelo Censo
tam o território brasileiro, de Alceu levante é o viés de combate à in- com a alta cúpula do Incra em Agropecuário de 20171.
Luís Castilho, reforça a necessida- flação de uma política de reforma 1987 interrompeu qualquer ex- O fato é que o Brasil é o pa-
de de se discutir uma ruptura com agrária. A demanda por alimen- pectativa de que se avançasse a re- ís da reforma agrária perene: sem-
este setor que, em aliança também tos é quase inelástica; a variação forma agrária. pre se fala em reforma agrária, mas

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Agronegócio e meio ambiente 9

ela nunca se efetiva. Os contrários


a esta pauta alegam que seria uma
agenda superada, que não haveria
demanda para tal política pública.
Para além das famílias acampadas
organizadas pelos movimentos so-
ciais, é preciso lembrar que o Esta-
tuto da Terra (lei 4.504 de 30 de
novembro de 1964) estabeleceu
como objetivo da reforma agrária
eliminar o latifúndio e o minifún-
dio. No Brasil, uma área inferior
a um módulo fiscal é considerada
um minifúndio; a legislação brasi-
leira também prevê a fração míni-
ma de parcelamento de área que
um imóvel pode ter. Tanto o mó-
dulo fiscal quanto a fração míni-
ma de parcelamento são definidos
por município; os menores valores
para estas medidas no país são res-
pectivamente cinco e dois hecta-
res. Neste sentido, os números do
Censo Agropecuário de 2017 são
reveladores ao mostrar que – con-
siderando as medidas mínimas (a
maioria dos municípios brasileiros
possui medidas maiores) – existem
pelo menos 1,15 milhão de pro- da reforma agrária e comunidades portante aumento do rendimento, Procuradoria-Geral da Fazenda
dutores que possuem área abaixo tradicionais e está fortemente vin- a quantidade produzida de feijão Nacional, em sua página na inter-
da fração mínima de parcelamen- culado à produção de alimentos caiu de pouco mais de 18 kg per net, mostram que 77 empresas li-
to e no mínimo outros 1,97 mi- para o mercado interno, além da capita para pouco menos de 14 kg gadas ao setor agropecuário com
lhão abaixo do módulo fiscal mí- subsistência familiar. por pessoa, enquanto no caso do dívidas acima de R$ 100 milhões
nimo. Os números desta disputa ter- arroz a queda foi de cerca de 69kg – excluindo da lista os débitos par-
Ocorre que, no Brasil do sécu- ritorial, a partir da série histórica para 49 kg por cabeça. Isso ajuda, celados, garantidos ou com exigi-
lo XXI, persiste uma disputa po- da Pesquisa Agrícola Municipal inclusive, a compreender as razões bilidade suspensa – somam uma
lítica e econômica entre dois mo- do IBGE, impressionam. A área de uma inflação de alimentos. O dívida de R$ 31,854 bilhões. Au-
delos, que se materializa também plantada de feijão em 2019 cor- cenário que mostra o Censo Agro- tores de crimes ambientais, terras
e primeiramente na disputa pe- responde a 51,62% da área plan- pecuário é ainda mais preocupan- de envolvidos com corrupção po-
la terra. O primeiro modelo, de- tada em 1995; no caso do ar- te se olharmos que a agricultu- lítica, entre outros, são alguns ca-
finido pelo agronegócio patronal, roz, a queda foi ainda maior, em ra familiar recuou de 2006 para minhos possíveis para reestabele-
que atende parte do mercado in- 2019 tínhamos 39,07% da área de 2017 em 9,5% no número de es- cer esta agenda indispensável para
terno por meio de cadeias agroin- 1995. Por outro lado, a cana-de- tabelecimentos e 17,5% em pesso- o desenvolvimento brasileiro.
dustriais, mas principalmente está -açúcar e a soja, produtos típicos al ocupado.
inserido no mercado internacio- do agronegócio patronal, expandi- É preciso, portanto, reto- * É economista do Instituto Nacional de
nal de commodities, sustentando ram e houve aumento de 117,96 e mar a agenda da reforma agrária. Colonização e Reforma Agrária (Incra) e
professor da Universidade Estácio de Sá
a acumulação de cadeias agroin- 207, 2% da área plantada, respec- Uma das principais estratégias se- (Unesa).
dustriais estrangeiras. O segundo tivamente. Ainda que os gêneros ria avançar sobre grandes devedo-
modelo tem por moldura a agri- alimentícios da dieta básica brasi- res da União. As informações pu- 1 Quanto mais próximo de 1, maior a
cultura familiar, assentamentos leira tenham presenciado um im- blicamente disponibilizadas pela concentração fundiária.

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10 Agronegócio e meio ambiente

A Amazônia não está à venda


Carlos Walter Porto-Gonçalves* O mundo tem a Amazônia, to propriamente dito, cometem o mundo se vê obrigado a deba-
hoje, como uma região funda- uma espécie de desmatamento ter como condição para seu fu-

M ais uma vez a Amazônia


se vê implicada no cená-
rio internacional, como se viu
mental para seu equilíbrio me-
tabólico. No entanto, uma per-
gunta básica fica fora do debate.
epistemológico. Não veem que
os solos amazônicos são compa-
tíveis com a floresta, o que che-
turo. Quando os europeus che-
garam na Amazônia brasileira,
ali habitavam mais de 8 milhões
em um debate das eleições pre- Por que, mesmo depois de 500 gou a ser compreendido por um de homens e mulheres. E nin-
sidenciais estadunidenses. Ne- anos de um sistema que, por on- cientista natural alemão, Harald guém vive em uma região, seja
nhuma novidade: afinal, a co- de se implantou, foi devastando Sioli, que disse que “a flores- ela qual for, se não sabe coletar,
biça internacional plasmou na as condições de reprodução me- ta vive de si mesma” pela quan- caçar, pescar, cultivar,  curar-se
região pelo menos cinco línguas tabólica, seja na Europa, Améri- tidade de matéria orgânica que (medicinas), proteger-se das in-
coloniais: português, espanhol, cas e África, a Amazônia ainda oferece aos solos e do que nu- tempéries (arquiteturas), en-
inglês, francês e holandês. Essa apresenta toda essa pujança de tre a si mesma. Há um comple- fim, se não  sabe. Há um enor-
colonialidade tende a produzir o vida que a humanidade parece xo sistema solo-água-fauna-flo- me acervo de saberes-fazeres de
encobrimento das mais de 180 querer preservar? O intelectual ra regido pelo Sol (fotossíntese) grupos sociais que souberam
línguas faladas ali. paraense de Óbidos, José Verís- que mantém a floresta em pé. evoluir com, e não contra, a flo-
Poucos procuram saber por- simo (1857-1916), alertou que Assim, desmatar implica expor resta e rios na Amazônia. Será
que, mesmo depois de mais de o capitalismo sempre encontra- o solo às intempéries, à lixivia- que a humanidade está em con-
500 anos em que o mundo se viu ra enormes dificuldades para se ção e à laterização. dições de preterir esse patrimô-
sob a égide de um sistema que implantar na Amazônia, pois Nada disso, entretanto, im- nio de conhecimentos dos povos
tem no capital seu principal mo- a riqueza de sua floresta e rios pediu que a Amazônia fosse ha- que ali habitam ancestralmente?
dus operandi, a Amazônia é colo- proporcionava condições para bitada – e há muito mais tempo É de descolonização epistêmica,
cada no debate por sua enorme que todos pudessem sobreviver do que dita o colonialismo. A re- além da descolonização política,
riqueza natural, agora vista por em liberdade pela enorme pro- gião da atual Amazônia é habita- de verdade, que carecemos. Afi-
seu papel no equilíbrio do meta- dutividade biológica primária. da pelo menos há 19 mil anos na nal, o fim do colonialismo não
bolismo planetário. Afinal, des- Assim, ninguém se assalariava a atual Amazônia colombiana ou significou o fim da colonialida-
de 1492, quando o atual sistema não ser temporariamente. É is- há pelo menos 11.200 anos no de. A miséria da colonialidade,
mundo começou a se desenhar, so mesmo: a natureza dispõe de Sítio da Pedra Pintada, em Mon- com sua geopolítica do conheci-
que sua estrutura de larga du- potências próprias que lhes per- te Alegre, no Pará. Nessa épo- mento, vem impedindo um ver-
ração metrópole-satélite impôs mite ser produtiva por meio so- ca, anterior à última glaciação dadeiro diálogo de saberes que
à sua periferia a tarefa de suprir bretudo da fotossíntese. E ne- (13.000 a 18.000 anos atrás), na os povos indígenas, de origem
de recursos naturais as demandas nhum lugar do mundo tem uma região que hoje conhecemos co- africana e campesinidades de-
de seus centros geopolíticos. No produtividade biológica primá- mo Amazônia predominavam as mandam e não vai ser com US$
caso do Brasil, isso nos custou ria por hectare tão alta como a savanas e as florestas estavam res- 20 bilhões prometidos pelo se-
uma Mata Atlântica, uma Mata Amazônia. tritas a alguns refúgios. nhor Joe Biden, ou pelo senhor
de Araucária, está nos levando os No entanto, uma ciência co- Foi somente após o fim da Macron, nem tampouco com o
Cerrados e ameaça a Amazônia. lonial continua dizendo que glaciação que a floresta come- negacionismo ambiental anti-
E o fez com base no latifúndio seus solos são pobres, sem con- çou a colonizar esse imenso es- -povos da floresta dos senhores
monocultor de exportação com a seguir explicar porque solos tão paço de mais de 800 milhões de Bolsonaro e Trump que havere-
tecnologia mais moderna dispo- pobres sustêm a maior produ- km², que abriga a maior bacia mos de honrar a dignidade dos
nível a cada época, do engenho tividade biológica primária por hidrográfica do mundo e a mais povos amazônidas. Como di-
de açúcar do século XVI ao tra- hectare do mundo. É que a cul- extensa, densa e biodiversa for- zia Chico Mendes (1944-1988):
tor-computador de hoje. Moder- tura colonial, onde vê floresta, já mação botânica do planeta! “Não à defesa da floresta sem os
nidade tecnológica, injustiça so- vê um obstáculo ao uso da terra Prestemos atenção ao fato povos da floresta”.
cial e devastação ambiental são nua para fazer suas monocultu- de que já havia gente na região
uma boa síntese de nossa forma- ras e seus pastos para criar gado. amazônica antes dessa formação * É professor titular do Programa de Pós-
ção territorial. Assim, antes do desmatamen- florestal tão extensa e que, hoje, -graduação em Geografia da UFF.

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Agronegócio e meio ambiente 11

A Questão da Terra –
que não é plana, mas planeta
Luiza Dulci* XXI, também no âmbito acadêmi- e imperativa. A defesa do direito
co, a terra e a questão agrária vol- humano à alimentação adequa-

N o Brasil e na América Latina,


os temas ligados às questões
agrária e agrícola, muito debatidos
taram às agendas de pesquisa, ar-
ticuladas ao debate ambiental, em
especial das mudanças climáticas. 
da requer um sistema de abaste-
cimento organizado a partir da
oferta de alimentos saudáveis em
até meados do século XX, arrefe- No Brasil, a emergência dessas quantidade, qualidade e preço jus-
ceram em razão da industrializa- novas questões pôs em xeque a difí- to para produtores e consumido-
ção, do crescimento populacional cil equação sobre a qual nos equili- res. Requer, portanto, o encurta-
e do êxodo rural. Os focos do de- bramos até meados dos anos 2010. mento das distâncias, a eliminação
senvolvimento passaram a ser a in- Enquanto nos tornamos exemplo dos desertos alimentares e a supe-
dustrialização urbana e a moder- de busca de sustentabilidade e am- ração das monoculturas agrícolas e
nização agrícola produtivista, mais pliamos as políticas de apoio à agri- de pensamento que causam a este-
conhecida como Revolução Verde. cultura familiar, integramo-nos rilidade das terras e a extinção da
Essas transformações levaram ao cada vez mais ao sistema agroali- sociobiodiversidade. 
aumento da concentração fundi- mentar por meio da exportação de Desmatamentos na Amazônia e
ária e da renda, à desnacionaliza- commodities com pouco ou nenhum no Cerrado, queimadas na Amazô-
ção da agroindústria e à emergên- valor agregado. Mais recentemente, nia e no Pantanal, crimes como os
cia de novas formas de controle da a situação se agravou sobremaneira, de Mariana/MG e Brumadinho/ para a China? Um país que ainda
produção e das terras, ligadas ao pois passamos à condição de vilão MG, privatização do saneamento hoje exporta bois vivos e café cru?
big data e à chamada agricultura ambiental e ameaça real ao planeta, básico, desnacionalização do Pré- E que, ainda mais grave, tem vis-
4.0. O sistema agroalimentar dis- e a terra e as populações que dela e -Sal e liberação de agrotóxicos alta- to a renda de toda essa produção
tanciou-se das atividades agríco- nela vivem tornaram-se alvo princi- mente poluentes e nocivos à saúde e exportação mineral e agropecu-
las e da terra, ao passo que se tor- pal de violações de direitos e da vio- compreendem alguns dos princi- ária ser capturada por multinacio-
nou cada vez mais dependente dos lência civil e de Estado. pais problemas dos caminhos da nais que muito pouco contribuem
processos de financeirização e in- A pandemia da Covid-19 acres- injustiça socioambiental no Bra- com nossa economia.
dustrialização dos alimentos e da centou novas nuances e desafios sil recente. Evidenciam a falência A riqueza das nossas terras, so-
capacidade logística das grandes a esse cenário. Estudos científicos de modelos hídricos, energéticos, ciobiodiversidade e cultura permite
transnacionais do setor. apontam que a própria origem da agropecuários e extrativos essen- uma mudança de rumos. É preci-
No entanto, desde a virada dos disseminação do vírus está ligada a cialmente predatórios, tão incom- so repensar e reorganizar o sistema
anos 1990 para 2000, vivemos práticas de desmatamento e a for- patíveis com a vida, quanto atrasa- agroalimentar e o lugar da terra em
uma confluência de crises – so- mas predatórias de ocupação e uso dos economicamente. nossa sociedade. Novos padrões de
cial, econômica, política, alimen- das terras. Outro aspecto diz respei- Quais as possibilidades de pre- produção, distribuição, consumo e
tar e ambiental – que recolocou as to à falta de resiliência do sistema sente e futuro do país que cele- descarte devem orientar a transição
atenções públicas sobre a temática agroalimentar diante da crise. Ele bra o título de celeiro do mundo, ecológica em direção a um novo
da terra em nível mundial. De um não apenas se mostrou frágil, como porém desmantela as políticas de modelo de desenvolvimento e bem
lado, vimos a retomada do inte- agravou ainda mais as desigualdades abastecimento e estoques públi- viver que combata as desigualdades
resse pela terra como ativo finan- no acesso à alimentação saudável. cos? Que passou a importar arroz, a partir da diversidade produtiva,
ceiro, presente nos portfólios dos De maneira geral, a pandemia ex- um dos alimentos base da nossa de pensamento e de formas de ha-
mais variados investidores nacio- pôs parte das externalidades sociais e alimentação? Que vivencia acele- bitar o planeta.
nais, internacionais e institucio- ambientais que sustentam e escamo- rado processo de empobrecimento
nais. De outro, a ampliação das teiam a viabilidade do sistema hege- da dieta – e da cultura – alimentar * É economista (UFMG), mestre em So-
preocupações com a produção e o mônico de produção e distribuição ciologia (UFRJ) e doutoranda em Ciên-
e concentra 90% de sua produção
cias Sociais, Desenvolvimento e Agricul-
consumo de alimentos saudáveis, de alimentos no Brasil e no mundo. agrícola em soja e milho, cuja ex- tura (UFRRJ). Participa da construção da
o abastecimento e a soberania ali- A necessidade de mudan- portação se restringe à poucos par- Economia de Francisco e Clara por meio
mentar. Assim, no início do século ças tornou-se ainda mais urgente ceiros comerciais, com destaque da Vila Agricultura & Justiça.

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12 Agronegócio e meio ambiente

“O boi é bombeiro” do Pantanal: negacionismo


e militarização da crise ambiental no Brasil
Sérgio Sauer* Além das mudanças adminis- “passando a boiada”. Editou a Por- as resoluções que estabeleciam li-
Patrícia da Silva** trativas de janeiro de 2019 – como taria 376 em setembro, que revo- cença ambiental para projetos de
a transferência do Serviço Florestal gou trinta portarias, cumprindo irrigação e parâmetros e definições

E m tempos de O dilema das re-


des – documentário imperdível
sobre influência das redes sociais na
Brasileiro para o Ministério da Agri-
cultura –, a intenção é desestruturar
órgãos ambientais e fundiários, par-
a promessa de “passar as reformas
infralegais de desregulamentação e
simplificação” de regras de contro-
de áreas de preservação permanen-
te, entre outros prejuízos nas regras
ambientais, especialmente relacio-
formação da opinião pública, pa- ticularmente Instituto Brasileiro do le ambiental. Mais graves foram as nadas aos manguezais.
ra além das fake news –, o impor- Meio Ambiente (Ibama), Instituto mudanças e revogações em três re- Frente às fortes críticas, inclusi-
tante não são fatos ou dados, mas Chico Mendes de Conservação da soluções do Conama, convocado ve internacionais, à política ambien-
como estes são relatados e, princi- Biodiversidade (ICMBio) e o Institu- às pressas por Ricardo Salles. En- tal, a solução veio pela mão militar.
palmente, disseminados. Somente to Nacional de Colonização e Refor- tre as medidas, o Conama revogou Bolsonaro editou o Decreto 9.985,
a completa dissociação da realidade ma Agrária (Incra). Ainda em 2019,
ou esses mecanismos de dissemina- o Conselho Nacional do Meio Am-
ção de inverdades são capazes de ex- biente (Conama) foi reduzido de 96
plicar declarações recentes como “o para apenas 23 integrantes, retirando
Brasil cuida de seu meio ambiente”; representações importantes como a
“não há nenhum foco de incêndio, do ICMBio (órgão responsável pela
nem um quarto de hectare desma- gestão das unidades de conservação)
tado”; “é uma mentira essa história e do Ministério Público Federal.
de que a Amazônia arde em fogo” Apesar de todas as reações e crí-
ou “o boi é bombeiro” do Pantanal. ticas à reunião de maio de 2020,
O negacionismo ou dissocia- o Ministro do Meio Ambiente está
ção da realidade do governo fede-
ral contrasta com as tragédias socio-
ambientais experimentadas no país.
O aumento do desmatamento e das
queimadas que incendeiam a Ama-
zônia e o Pantanal contrasta com es-
se negacionismo, explicitando uma
gestão ambiental desastrosa e sem
precedentes. Cumprindo promessas
de campanha, Bolsonaro vem pro-
movendo severos cortes orçamentá-
rios e administrativos, que resultam
em ameaças a servidores; militariza-
ção da questão ambiental e fundiá-
ria; e redução das operações de fis-
calização. São acompanhadas de
outras promessas, como a revisão
das unidades de conservação e a li-
beração da mineração em terras in-
dígenas, desmantelando ferramentas
de conservação ambiental e proteção
a populações vulnerabilizadas, como
povos indígenas e quilombolas.

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Agronegócio e meio ambiente 13

em agosto de 2019, autorizando o ra a Amazônia, e não bancar gastos forme as últimas ações de Salles. clarecer” noções de regularidade
uso das Forças Armadas para Garan- pontuais”. Além de ações de com- Além dos problemas ambientais, e infração ambientais, definia que
tia da Lei e da Ordem (GLO), pa- bate ao desmatamento, em julho, o as queimadas causam problemas infrações seriam consideradas ape-
ra combater incêndios e crimes am- Ministério da Defesa criou a “Ope- à saúde pública, particularmente nas quando esgotadas todas as ins-
bientais na Amazônia. Em fevereiro ração Pantanal”, enviando pessoas e o aumento de doenças respirató- tâncias administrativas. Por ou-
de 2020, o Decreto 10.239 transfe- equipamentos para auxiliar no com- rias. Também, o desmatamento e as tro lado, a criação dos núcleos de
riu o Conselho Nacional da Amazô- bate aos incêndios no Mato Grosso queimadas vulnerabilizam, particu- conciliação, destinados ao julga-
nia para a vice-presidência, passando do Sul. Essa militarização da ques- larmente, povos indígenas e outras mento administrativo de infrações
a ser presidido por Hamilton Mou- tão ambiental resulta, de um lado, comunidades do campo e da flores- ambientais, criaram mais uma ins-
rão. Alterou a composição do Con- no desmonte dos órgãos ambien- ta. Afetam territórios e, consequen- tância para aplicação das sanções.
selho, que passou a ter dezenove mi- tais, que detêm competência legal e temente, a subsistência de povos e Todas as autuações efetuadas pelos
litares e quatro delegados da Polícia capacidade técnica, e de outro, des- comunidades tradicionais, destruin- órgãos ambientais federais estão
Federal. O ICMBio (responsável pe- virtua o papel constitucional das do áreas de cultivo, caça e a extração com efeito suspensivo, pois não há
la gestão de 64 milhões de hectares Forças Armadas, fragilizando a pro- de ervas medicinais. audiências de conciliação. Portan-
de unidades de conservação), o Iba- teção do meio ambiente no país. Negando impactos socioam- to, se fosse aprovada, a MP 910 es-
ma (tem atribuição legal de fiscalizar Infelizmente, os dados de des- bientais, Hamilton Mourão e Ri- tabeleceria um vácuo, permitindo
e aplicar sanções) e a Fundação Na- matamento apontam para a inefi- cardo Salles postam vídeo, estre- a regularização de posses de terras
cional do Índio – Funai (que deve ciência da estratégia de militariza- lado por um mico-leão-dourado, com crimes ambientais.
proteger 117 milhões de hectares de ção da crise ambiental. Conforme espécie endêmica da Mata Atlân- A MP 910 perdeu eficácia, mas
terras indígenas) não têm represen- dados do Instituto Nacional de Pes- tica, que nega a existência de quei- foi substituída pelo Projeto de Lei
tação no Conselho. quisas Espaciais (Inpe), no ano de madas na Amazônia. Com uma 2633/2020, em tramitação na Câ-
A fiscalização da Amazônia está 2019, o desmatamento por corte ra- narrativa negacionista, o vídeo fal- mara. Este PL reproduz as facilida-
a cargo dos militares, que passaram so atingiu 10.129 km² no territó- so reduz o problema dos incêndios des da MP, flexibilizando critérios
a coordenar os órgãos públicos fe- rio nacional (35% superior ao pe- florestais a uma prática cultural de para a regularização da grilagem de
derais de proteção ambiental. Além ríodo anterior) e o desmatamento povos indígenas, comunidades lo- terras. Para piorar, a Funai editou a
desse protagonismo, os recursos na Amazônia atingiu 2.254,9 km², cais e pequenos produtores. Nega Instrução Normativa 09, de 2020,
públicos que deveriam ser destina- registrando um aumento de 278% as reais causas das queimadas, que permitindo o cadastro de ocupa-
dos ao combate ao desmatamento em relação ao mesmo período de estão diretamente vinculadas aos ções particulares em terras reivin-
e às queimadas estão sendo usado 2018. Os incêndios no Pantanal, em desmatamentos (muitos ilegais), dicadas por povos indígenas, mas
para equipar o Exército. O princi- 2020, triplicaram em relação a 2019 estimulados por redes criminosas ainda não demarcadas.
pal exemplo é a destinação dos R$ e queimaram 3,4 milhões de hecta- (especialmente grileiros de terras e Os efeitos da flexibilização am-
630 milhões da Operação Lava Ja- res. Outras fontes afirmam que esse madeireiros ilegais). Os objetivos biental e fundiária e das narrati-
to, que o Supremo Tribunal Federal desastre sem precedentes na história são a exploração ilegal dos recur- vas negacionistas do governo fede-
determinou, em 2019, para a pro- afetou 40% da área total do bioma sos naturais (madeira, minérios), ral vêm incentivando a ocupação
teção ambiental na Amazônia. R$ pantaneiro. O auxílio emergencial inclusive com o emprego de vio- ilegal de terras públicas e de povos
494 milhões foram carimbados pa- do governo federal, mobilizando a lência, e a abertura de novas áre- do campo, provocando o aumento
ra a “proteção, fiscalização e com- Marinha, só aconteceu em agosto, as para pastagem, monocultivos e do desmatamento, das queimadas e
bate a ilícitos na Amazônia Legal” demonstrando o descaso com a ur- especulação fundiária (grilagem e dos conflitos fundiários. O trágico
e R$ 36 milhões para a Operação gência na proteção ambiental. apropriação ilegal de terras). incêndio da Amazônia desde 2019,
Verde Brasil II, lançada em maio Além da militarização, o ce- Embora um dos principais fa- e mais recentemente, do Pantanal é
de 2020, sob coordenação das For- nário de destruição é resultado da tores do desmatamento seja a espe- parte fundante do negacionismo do
ças Armadas. O Ibama recebeu ape- impunidade. Conforme dados da culação fundiária, o governo federal governo Bolsonaro, que enfraque-
nas R$ 50 milhões, o Incra R$ 35 Human Rights Watch (HRW), o publicou, em dezembro de 2019, a ce os órgãos públicos, desmonta o
milhões, sendo que o ICMBio e a número de multas por crimes am- Medida Provisória 910. Alterando a aparato jurídico de proteção, flexi-
Funai não tiveram nenhum repas- bientais caiu drasticamente no go- Lei 11.952, de 2009, a MP flexibi- biliza a legislação e militariza o pa-
se oriundo dos recursos do acordo verno Bolsonaro, pois 2019 regis- lizava condições de regularização de trimônio ambiental brasileiro.
com a Petrobrás. trou o menor número em 24 anos. posses irregulares de terras públicas
A nota pública do Ministério da Esta queda é resultado da combi- até 2.500 hectares em todo o terri- * É doutor em Sociologia e professor da
Universidade de Brasília (UnB).
Defesa confirmou a utilização des- nação de enfraquecimento e des- tório nacional, ou seja, ampliava as ** É advogada e mestra em Meio Ambien-
ses recursos para “financiar proje- monte dos órgãos ambientais, com possibilidades de grilagem. te e Desenvolvimento Rural pelo PPG-
tos de longo prazo dos militares pa- o afrouxamento da legislação, con- A MP 910, a pretexto de “es- -Mader (UnB)

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14 Fórum Popular do Orçamento

O desalinho da política assistencial


carioca frente à pandemia
E m continuidade à nossa série
de estudos acerca dos efeitos
da pandemia causada pela Co-
maior dificuldade em adotar as
medidas de prevenção necessá-
rias atualmente.
tras políticas públicas, como saú-
de e educação. Na cidade do Rio,
a responsável pela gestão e coor-
centual médio de 2,8% em rela-
ção ao orçamento total. A queda
da despesa observada no gráfico
vid-19, neste artigo trataremos Os dados utilizados foram denação da Política Nacional de a partir de 2015 foi acompanha-
da assistência social no Municí- coletados no Relatório Resumi- Assistência Social, Direitos Hu- da por uma redução no número
pio do Rio de Janeiro. Iniciamos do de Execução Orçamentária manos, Envelhecimento Ativo de pessoas beneficiadas pelo Pro-
com uma breve contextualização (RREO) e no Portal Contas Rio. e Direitos das Mulheres é a Se- grama Cartão Família Carioca,
sobre o sistema de assistência so- Eles encontram-se deflacionados cretaria Municipal de Assistên- que foi de 314 mil em 2014 pa-
cial, seguida pelo seu cenário no de acordo com o Índice de Pre- cia Social e Direitos Humanos ra 307,5 mil, 255 mil e 212 mil
Município, com a investigação ços para o Consumidor Amplo (SMASDH). em 2015, 2016 e 2017, respec-
da função orçamentária corres- de agosto de 2020. São os profissionais de assis- tivamente. O Programa foi cria-
pondente entre 2010 e o primei- tência social que realizam o ca- do para complementar a renda
ro semestre de 2020. Assistência Social: dastro das famílias de baixa ren- de famílias residentes no Municí-
Posteriormente, adentramos panorama da pelo Cadastro Único, através pio já cadastradas e beneficiadas
nas consequências do contexto e contextualização de unidades públicas como o pelo Bolsa Família e atualmente
de pandemia para a assistência Centro de Referência de Assis- não está aberto para novas inclu-
social e nas medidas tomadas até A assistência social possibili- tência Social (Cras)1. No mu- sões de beneficiários.
então pela Prefeitura para miti- ta a todos que vivem no Brasil a nicípio, o número médio de fa- No que diz respeito às fontes
gar os impactos na população. garantia de seus direitos mais bá- mílias atendidas no Cadastro de recurso, a predominância foi
Nessa seção foi destacada tam- sicos. Através dela, pessoas vul- Único realizado por Cras em fe- de recursos ordinários não vin-
bém a questão habitacional, de- neráveis têm apoio, orientação, vereiro de 2020 era 11.453, con- culados, que compuseram mais
vido às implicações diretas das acolhimento e proteção, além forme divulgado em dados do da metade do gasto em todos os
vivências em situações de sub- de encaminhamento aos servi- mapa da desigualdade de 2020 anos. Em seguida, o fundo de
moradia ou de rua sobre uma ços da assistência social ou a ou- da Casa Fluminense. Ademais, assistência à saúde dos servido-
13,8% de sua população é bene- res foi responsável por, em mé-
ficiária do Bolsa Família, o que dia, 30% da despesa total do
Gráfico 1: Desempenho da função Assistência demonstra a importância da po- período. Como essa fonte desti-
Social de 2010 ao 1º semestre de 2020 lítica de assistência social na ci- na-se exclusivamente ao custeio
dade. Tendo isso em vista e a fim do Plano de Saúde do Servidor
de compreendermos como a ad- Municipal, devemos questionar
ministração pública carioca vem sua dimensão e até mesmo in-
priorizando a área, analisaremos clusão no orçamento de assis-
o desempenho da função corres- tência social, visto que beneficia
pondente, que abrange os gastos apenas um segmento específico
da SMASDH, além de outras da população, dando a impres-
despesas correlatas e administra- são de ser uma tentativa de in-
tivas (Gráfico 1). flar o gasto social. Outra fonte
Encontramos uma média li- vinculada foi a Transferência do
quidada de R$ 739 milhões entre Fundo Nacional e Estadual de
Fonte: RREO e Contas Rio.
2010 e 2019, bem como um per- Assistência Social, que teve par-

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Fórum Popular do Orçamento 15

ticipação menor e não ultrapas- cindível para que isso seja feito ação de rua3, ambientes que difi- de referência quando necessário.
sou 10% do total liquidado por da maneira correta. Vejamos en- cultam a tomada das precauções Entretanto, as ações planeja-
fontes de recurso em nenhum tão quais ações têm sido tomadas necessárias para impedir o con- das pela administração munici-
ano da série. Observamos ainda nesse sentido na cidade do Rio. tágio pelo novo coronavírus, co- pal não parecem se refletir no or-
que a discrepância entre os re- mo distanciamento e higieniza- çamento do primeiro semestre de
cursos arrecadados e o valor em- Orçamento de ção frequente. 2020. Em um momento em que
penhado através dessa fonte che- assistência social no Por outro lado, com pessoas houve aumento da demanda por
gou a R$10,5 milhões. combate à Covid-19 impedidas de trabalhar por causa assistência social, a despesa com
Conforme o exposto, pode- da pandemia e sem conseguir au- a mesma se manteve constante,
mos constatar a redução na des- Primeiramente, devemos re- xílio do governo, o número de tra- com um valor liquidado igual ao
pesa com a função Assistência conhecer que as dificuldades tra- balhadores informais só aumenta. de 2019. Já o gasto com habita-
Social nos últimos anos. A seguir, zidas pela nova crise econômi- Isso é especialmente preocupan- ção foi reduzido pela metade.
analisaremos de maneira mais es- ca escancararam as janelas para te considerando que, segundo a No tocante ao orçamento
pecífica os impactos da pande- as desigualdades sociais em mui- FGV Social, o Rio já é a capital classificado como para enfrenta-
mia no âmbito social e como a tos sentidos. Além de o aumento com maior índice de informalida- mento à pandemia, o chamado
administração carioca tem reagi- do desemprego e redução dos sa- de do Brasil4. Sendo assim, é es- Programa de Apoio Habitacional
do para aliviar seus efeitos. lários afetarem com mais força a sencial que todos os âmbitos do teve despesa proeminente e foi
classe mais baixa da população2 – poder público, inclusive o muni- responsável por mais da metade
A assistência social que tem maior restrição em ado- cipal, concentrem esforços para do valor empenhado através da
e a pandemia tar um regime de home office – os amparar a parcela da população função de Assistência Social (R$
pedidos de “fique em casa” tam- que se encontra em condições de 12,8 milhões de R$ 24 milhões)
No contexto da pandemia da bém são mais custosos para esses moradia precária, desabrigada, em até o início de outubro. Entre as
Covid-19, é desejável e necessá- indivíduos. Isso porque, junto situação de trabalho informal e/ medidas inclusas nesse escopo,
rio que haja certa interrupção do com a necessidade de adoção das ou com renda reduzida nesse mo- podemos citar a oferta de vagas
consumo, com fechamento de medidas preventivas de quaren- mento de dificuldade. em hotéis para idosos autônomos
estabelecimentos que propiciem tena vem o questionamento de A resposta da Prefeitura foi de comunidades carentes e o aco-
aglomerações e interação social que muitos não têm onde morar um plano de ação para o enfren- lhimento da população em situa-
para impedir a propagação do ví- e outros não moram em residên- tamento à pandemia no âmbito ção de rua em pontos no Sambó-
rus. Contudo, essa contração pri- cias com a mínima estrutura, o do Suas5, que tem a finalidade de dromo e no Santo Cristo. Houve
mária da demanda leva a uma di- que levanta um debate a respei- apresentar a sistematização das também gasto de R$ 7,4 milhões
minuição da renda de pessoas to do déficit habitacional e da in- ações da SMASDH voltadas para com fornecimento de gêneros
que tiveram seu local de traba- dispensabilidade de políticas pa- o atendimento à população mais alimentícios, o que inclui a pro-
lho fechado, função que exercem ra revertê-lo. vulnerável enquanto perdurar o visão de cestas básicas pela Pre-
interrompidas ou até mesmo fo- Nessa perspectiva, podemos estágio de pandemia e o estado feitura para a população atingida
ram demitidas durante o perío- afirmar que a questão habitacio- de calamidade pública. O plano economicamente pela pandemia
do. Sendo assim, há um segun- nal também é importante de ser teve como duas de suas princi- e para as famílias que tenham fi-
do componente de queda da discutida no escopo da assistên- pais medidas a criação de espaços lhos matriculados no sistema de
demanda e uma parcela da po- cia social, já que constitui um fixos provisórios (tendas) pa- ensino municipal, como já foi
pulação passa a ter dificuldade problema gritante no Município ra atendimento à população em ressaltado na edição anterior do
até mesmo de adquirir produtos e uma boa parcela da população situação de rua, com orientação Jornal dos Economistas.
de necessidade básica, como ali- vive em moradias precárias, sub- sobre as medidas de prevenção e
mentos e medicações. moradias ou em situação de rua. distribuição de máscaras, kits de Auxílio emergencial e a
Faz-se necessário, então, que De acordo com dados do IBGE e higiene e lanche e a observação Renda Básica Carioca
os governos trabalhem para am- da Defensoria Pública do Estado de sintomas de síndrome respi-
parar a população de forma mais do Rio de Janeiro, cerca de 22% ratória aguda grave nesses indi- Uma medida fundamental
ampla nesse momento e o gasto dos cariocas vivem em favelas e víduos, realizando o encaminha- para amparar a população du-
com assistência social é impres- pelo menos 15 mil estão em situ- mento para a unidade de saúde rante a recessão trazida pela ma-

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16 Fórum Popular do Orçamento

croeconomia da pandemia é a riam vir de créditos extraordiná- dado a partir de 2015. Embora veto feito pelo prefeito ao proje-
realização de uma política de re- rios7, como mencionado no pró- a despesa tenha voltado a subir to Renda Básica Carioca. Caso
distribuição de renda, como a re- prio projeto de lei. No início de nos últimos dois anos, ainda es- Crivella não tivesse se oposto ao
alizada em nível nacional através junho, o veto foi derrubado por tá longe de atingir os patamares programa, o auxílio proposto já
do auxílio emergencial. Conside- votação na Câmara, o que ga- observados anteriormente. Em poderia ter sido regulamentado,
rando o efeito devastador e pro- rantiu a aprovação final da Ren- contrapartida, os problemas so- distribuído e estar gerando retor-
longado do novo coronavírus na da Básica Carioca. O valor final ciais da cidade não estão melho- nos positivos para a população.
esfera social, é interessante pen- do benefício e outros pormeno- rando e indicadores de diversas Em suma, podemos concluir
sar em outras formas de auxílio res da sua distribuição ainda te- instituições demonstram essa re- que os instrumentos utilizados
para complementar o federal, co- rão que ser definidos pela Pre- alidade. Um obstáculo que con- pela administração carioca têm
mo feito no Rio com o projeto feitura, que até o momento de tribui para essa insuficiência de se demonstrado insuficientes pa-
Renda Básica Carioca6. escrita deste artigo não tinha re- financiamento é a vinculação li- ra atenuar o quadro de calami-
O projeto de lei de coautoria gulamentado a lei. mitada na área. Considerando dade social que o Rio de Janeiro
de diversos vereadores tinha co- A importância da implemen- que os recursos não vinculados já vinha enfrentando e que ago-
mo objetivo ampliar o Programa tação de programas de auxílio representam em média quase ra se intensificou com a chegada
Cartão Família Carioca duran- emergencial pode ser constatada 60% do gasto total, o âmbito da da pandemia. É necessário que as
te o estado de calamidade pú- a partir de um artigo publicado assistência social fica muito vul- medidas de amparo à população
blica ocasionado pela pandemia, no blog do Instituto Brasileiro nerável a cortes extensivos em sejam mais amplas e que se efeti-
incluindo no escopo de benefi- de Economia da FGV8, que de- momentos de recessão. vem de maneira mais ágil, uma
ciados os trabalhadores autôno- monstrou que o benefício fede- Com a chegada da Covid-19, vez que atualmente muitos de-
mos, ambulantes ou informais, ral chegou a ser responsável por questões sociais ganharam no- pendem dos auxílios e políticas
bem como os microempreende- mais de 55% da renda do terço va importância e a administração assistenciais para sobreviver a es-
dores individuais, que tiveram mais pobre do país. Ademais, o pública carioca construiu um pla- ses tempos de recessão profunda.
sua subsistência comprometida, artigo revela que o auxílio emer- no de ação para o enfrentamen-
com prioridade para as famílias gencial conseguiu reduzir mais a to da pandemia no âmbito da as- 1 Veja mais sobre o Sistema Único de As-
de menor renda. Estipulou-se pobreza ao longo do mês de maio sistência social. Todavia, os dados sistência Social (Suas) no artigo do Jornal
também que o valor mínimo do do que o país tinha conseguido coletados não transparecem uma dos Economistas de Agosto de 2020.
2 https://apublica.org/2020/03/coronavi-
benefício deveria ser correspon- nos últimos três anos. Isso evi- concentração de esforços orça- rus-renda-de-mais-pobres-tera-impacto-
dente a um salário mínimo (R$ dencia como os benefícios dessa mentários para tal, já que a execu- -negativo-20-superior-a-media/
1.045 ou R$ 445 para quem já natureza são cruciais para o de- ção nas áreas correspondentes não 3 https://diariodorio.com/rio-sem-casa-o-
-grave-problema-habitacional-na-cidade-
recebia o benefício de R$ 600 senvolvimento social, especial- aumentou em relação ao ano pas- -do-rio-de-janeiro/
do governo federal, a título de mente no momento atual. sado. Apesar de ser pertinente, o 4 https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/
complementação). mero planejamento das medidas noticia/2020/06/05/rio-e-a-capital-com-
O projeto foi aprovado pe- Considerações a serem tomadas não é suficiente -maior-indice-de-informalidade-do-brasil-
-aponta-pesquisa-da-fgv-social.ghtml
la Câmara Municipal no dia 14 Finais e devemos ressaltar a importância 5 Disponível no link: https://doweb.rio.
de abril, porém, foi vetado pe- da rapidez na execução orçamen- rj.gov.br/apifront/portal/edicoes/impri-
lo prefeito em exercício Marcelo O panorama histórico do or- tária no momento atual, que exige mir_materia/664229/4618
6 Projeto de lei 1728/2020.
Crivella no mês seguinte. A Pre- çamento da função Assistência urgência no atendimento das ne- 7 Denominação que abrange os créditos
feitura afirmou que a aprovação Social no Município revela um cessidades da população. orçamentários abertos para atender a des-
implicaria aumento dos gastos percentual liquidado relativa- Outro aspecto preocupante pesas imprevisíveis e urgentes, como as de-
correntes de guerra ou calamidade pública.
públicos e violaria a Lei Orgâni- mente baixo em relação ao gas- em relação à prontidão necessá- 8 https://blogdoibre.fgv.br/posts/auxilio-
ca do Município, mas ignorou o to total, bem como uma grande ria para as medidas de mitigação -emergencial-faz-pobreza-cair-em-plena-
fato de que esses recursos pode- redução do valor absoluto liqui- do efeito social da pandemia é o -pandemia

FÓRUM POPULAR DO ORÇAMENTO – RJ (21 2103-0121). Para mais informações acesse www.corecon-rj.org.br/fpo-rj e www.facebook.com/FPO.Corecon.Rj.
Coordenação: Bernardo Isidio, Bruno Lins, Camila Bockhorny, Luiz Mario Behnken e Thiago Marques. Assistentes: Juliana Medeiros, Laura Muniz e Marília Santana

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