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Luz no Caminho
Um Tratado Clássico
Sobre o Despertar da Sabedoria
Um Tratado Clássico
Sobre o Despertar da Sabedoria
ISBN:
978-989-20-4708-9
Depósito legal: 377437/14
1. Teosofia. 2. Discipulado.
3. Filosofia. 4. Ética. 5. Lei do Carma.
Imagem da capa: © iStockphoto LP 2014.
Impresso na Officina Digital - Impressão e Artes Gráficas.
7. O Carma
Não Há Nada
O Cuidado na Leitura
A Inteligência é Imparcial
“Luz no Caminho”
- I
“Antes que os olhos possam ver,
eles devem ser incapazes de lágrimas.”[26]
Os leitores devem lembrar que, para alguns, esta obra talvez
pareça possuir pouca coisa de filosofia. Para aqueles que a leem do
ponto de vista da linguagem comum, ela não faz sentido. Muitos
pensarão que ela não é um alimento espiritual. Estejam atentos e
não a leiam de modo rotineiro.
Há outro modo de ler, que é, na verdade, o único jeito útil no
caso de muitos autores. Trata-se de ler não só o que está nas entre-
linhas, mas o que está dentro das palavras. Na verdade, a tarefa é
decifrar um código profundo. Todas as obras alquímicas estão
escritas no código a que me refiro. Ele tem sido usado pelos
grandes filósofos e poetas de todos os tempos. Ele é usado
sistematicamente pelos que são Adeptos na percepção da vida e do
conhecimento. Ao mesmo tempo que estes seres parecem revelar a
mais profunda sabedoria, eles também escondem, nas próprias
palavras que expressam a sabedoria, o mistério real a que as
palavras se referem. Não podem fazer mais do que isso. Uma lei da
natureza estabelece que cada ser humano deve compreender estes
mistérios por si mesmo. Não é possível obtê-los por outro método. O
homem que deseja viver deve comer ele próprio seus alimentos;
este é o método simples usado pela natureza, e que se aplica
também à vida mais elevada. O homem que quiser viver e agir na
vida superior não pode ser alimentado com uma colher, como um
bebê. Deve alimentar-se por si mesmo.
Eu me proponho a colocar partes de “Luz no Caminho” em uma
linguagem nova e em alguns casos mais clara; mas não sei se este
esforço levará a uma compreensão. Para um homem surdo e mudo,
a verdade não se torna mais inteligível pelo fato de algum linguista
desorientado traduzir as palavras que transmitem a verdade e dizê-
las em todas as línguas vivas e mortas, gritando-as uma a uma em
seu ouvido. Mas para aqueles que não são surdos e mudos uma
linguagem pode ser mais fácil que as outras, e é a estes que eu me
dirijo.
Sei bem do fato de que já os primeiros aforismos de “Luz no
Caminho”, incluídos sob o Número I, permaneceram com o seu
signi-ficado interno selado para muitos que, em outros aspectos,
compreen-deram o propósito do livro.
Há quatro verdades seguras e comprovadas com relação ao
ingresso no ocultismo. Os Portões Dourados barram aquele limiar;
no entanto, alguns passam pelos portões e descobrem o que é
sublime, ilimitado e está mais além. Nos espaços mais distantes do
Tempo, todos passarão por aqueles portões. Mas eu gostaria que o
Tempo, o grande enganador, não fosse tão dominante. Para aqueles
que o conhecem e o amam, nada tenho a dizer. Aos outros - que
não são tão poucos quanto se poderia pensar, e para quem a
passagem do Tempo é como o golpe de um martelo e o sentido de
Espaço é como as barras de uma jaula de ferro -, eu irei explicar
uma e outra vez[27] até que possam compreender completamente.
As quatro verdades escritas na primeira página de “Luz no
Caminho”[28] se referem ao teste da iniciação do candidato a
ocultista. Enquanto não passar pelo teste, ele não pode chegar
sequer à fechadura do portão que dá acesso ao conhecimento. O
conhecimento é a maior herança do ser humano; por que, então, ele
não deveria tentar obtê-lo através de todos os caminhos?[29] O
laboratório não é o único local em que se pode fazer experimentos;
devemos lembrar que a palavra ciência deriva de sciens,
“consciente” ou “ciente”, e de scire, “conhecer”. A sua origem é
semelhante à origem da palavra “discernir”, “reconhecer”. A ciência,
portanto, não lida apenas com o que é matéria, nem sequer nas
suas formas mais sutis e obscuras. Uma ideia como essa nasce da
mentalidade superficial dos tempos atuais. “Ciência” é uma palavra
que abrange todas as formas de conhecimento. É extremamente
interessante saber das descobertas da Química e ver como elas
abrem caminho através do aspecto denso da matéria em direção às
suas formas mais finas; mas há outros tipos bem diferentes de
conhecimento, e nem todos os pesquisadores restringem o seu
desejo estritamente científico de obter conhecimento a experimentos
que podem ser testados diante dos sentidos físicos.
Todo aquele que possui um pouco de inteligência e não foi
reduzido à condição de idiota por algum vício dominante já tem a
impressão de que há sentidos mais sutis presentes nos sentidos
físicos, ou talvez tenha percebido isso com algum grau de certeza.
Não há nada de extraordinário nisso. Se nos déssemos ao trabalho
de ouvir o testemunho da Natureza, saberíamos que tudo o que é
perceptível para a vista comum tem algo ainda mais importante
escondido dentro de si. O microscópio abriu todo um mundo para
nós, mas dentro das estruturas que o microscópio revela, há um
mistério que máquina alguma pode sondar.
O mundo inteiro é animado e iluminado, até nas suas formas
mais materiais, por um mundo que há em seu interior. Este mundo
interno é chamado de “astral” por algumas pessoas, e esta é uma
palavra tão boa quanto qualquer outra, embora signifique
simplesmente “estelar”; mas as estrelas, como Locke assinalou, são
corpos que irradiam luz. Esta qualidade é característica da vida que
existe dentro da matéria; aqueles que a veem não necessitam de
lâmpadas para enxergar. A palavra inglesa “star” (estrela), além
disso, é derivada do verbo do inglês antigo “stir-an”, conduzir,
mover; e sem dúvida é esta vida interna que domina a vida externa,
assim como o cérebro de um ser humano guia os movimentos dos
seus lábios. De modo que embora a palavra “Astral” não seja em si
mesma excelente, posso usá-la sem problemas para alcançar meu
objetivo atual.
Toda a obra “Luz no Caminho” está escrita em uma linguagem
cifrada de símbolos astrais, e, portanto, só pode ser decifrada por
alguém que lê astralmente. E o seu ensinamento tem como meta
principal o desenvolvimento da vida astral.[30] Enquanto não for
dado o primeiro passo neste sentido, o conhecimento rápido que é
chamado de intuição segura continua sendo impossível para o ser
humano. E esta intuição segura e positiva é a única forma de
conhecimento que capacita o ser humano para trabalhar
rapidamente e alcançar o seu estado verdadeiro e elevado, dentro
dos limites do seu esforço consciente. Obter conhecimento através
de experimentos é um método muito tedioso para aqueles que
aspiram por realizar um real trabalho. Quem obtém conhecimento
através de uma intuição segura conquista o conhecimento em suas
várias formas com suprema rapidez, através de um intenso esforço
de vontade, assim como um operário pega suas ferramentas sem
pensar no peso delas ou em qualquer outra dificuldade. Ele não
perde tempo testando cada ferramenta, mas usa aquelas que lhe
parecem mais adequadas.
Cada uma das regras contidas em “Luz no Caminho” está
escrita para os discípulos todos, mas só para os discípulos, isto é,
“aqueles que obtêm conhecimento”. As leis desta escola não têm
qualquer utilidade ou interesse para ninguém, exceto os seus
alunos.
A aqueles que estão seriamente interessados em Ocultismo, eu
digo, em primeiro lugar: “obtenham conhecimento”. A aquele que
tem, lhe será dado. É inútil esperar pelo conhecimento. O círculo do
Tempo se fechará diante de ti e em tempos futuros tu ficarás sem
poder nascer e sem força. Portanto, eu digo o seguinte aos que têm
fome ou sede de conhecimento: “prestem atenção a estas regras”.
Nenhuma delas foi criada ou inventada por mim. Elas são
apenas a expressão de leis da natureza superior. Elas colocam em
palavras verdades que são tão absolutas em suas próprias esferas
quanto as leis que governam a conduta da Terra e da sua
atmosfera.
Os sentidos de que se fala nestas quatro afirmativas são os
sentidos astrais, ou internos.
O ser humano só deseja a luz que ilumina a alma não-espacial
quando a dor, o sofrimento e o desespero o arrancam da vida da
humanidade comum. Primeiro é o prazer que se esgota; depois, a
dor é vivida até que ela chega ao fim; finalmente os seus olhos se
tornam incapazes de lágrimas.
O que se segue é óbvio, embora eu saiba muito bem que será
desmentido enfaticamente por muitos que estão em simpatia com
ideias surgidas da vida interna. O ato de ver com o sentido da vista
astral é uma forma de atividade inicialmente de difícil compreensão
para nós. O cientista sabe que um milagre acontece cada vez que
uma criança nasce no mundo, desenvolve a visão dos olhos e
consegue comandá-la através do cérebro. Um milagre equivalente
acontece com cada um dos sentidos, sem dúvida; mas o controle da
visão talvez seja o esforço mais estupendo. A criança o faz quase
inconscientemente, pela força hereditária do hábito. Ninguém é
consciente, na vida adulta, de que alguma vez o tenha feito. Do
mesmo modo, não podemos lembrar os movimentos que nos
permitiram, por exemplo, subir uma montanha, um ano atrás. Isso
decorre do fato de que nós nos movimentamos, vivemos e temos o
nosso ser na matéria. Nosso conhecimento a respeito do mundo
material se tornou intuitivo.
O que acontece com a nossa vida astral é muito diferente.
Desde há longas eras o ser humano tem dado pouca atenção a ela;
tão pouca atenção que praticamente perdeu o uso dos sentidos
astrais. É verdade que em cada civilização a estrela brilha de novo e
o ser humano confessa, de modo mais ou menos tolo e confuso,
que tem consciência de existir. Mas com muita frequência ele nega
o fato. E, ao ser materialista, o ser humano se torna algo estranho,
um ser que não pode ver a sua própria luz. Ele passa a ser uma
coisa viva que não quer viver, um animal astral que tem olhos, e
ouvidos, e a fala, e energia, e no entanto não quer usar nenhum
destes dons. Este é um fato. O hábito da ignorância está tão
estabelecido que atualmente ninguém vê com a visão interna, se o
sofrimento ainda não fez com que os olhos físicos sejam incapazes
de ver, e ainda não fez com que o olhos estejam destituídos de
lágrimas - a umidade da vida.
Ser incapaz de derramar lágrimas é ter enfrentado e vencido a
simples natureza humana, e ter alcançado um equilíbrio que não
pode ser abalado por emoções pessoais.
Isso não implica dureza ou indiferença de coração. O fato não
significa que não haja dor, como acontece quando a alma que sofre
parece não ter mais forças para sofrer intensamente; não significa
que haja a insensibilidade típica da velhice, quando a emoção se
torna entorpecida porque as cordas que vibram com ela estão
gastas.[31] Nenhuma destas condições é adequada para um
discípulo, e se qualquer uma delas existir nele, terá que ser
superada antes que ele possa ingressar no caminho. A dureza de
coração é uma característica do homem egoísta, do egocêntrico,
para quem o portal está sempre fechado. A indiferença é patrimônio
do tolo e do falso filósofo. A indecisão os torna simples marionetes,
por que não têm a força necessária para encarar as realidades da
existência. Quando se desgasta a intensidade maior da dor e do
sofrimento, o resultado é uma letargia semelhante àquela que
acompanha a idade avançada, tal como na experiência usual de
homens e mulheres. Uma situação como esta torna impossível o
ingresso no caminho, porque nele o primeiro passo é difícil e só
pode ser dado por um indivíduo forte, cheio de vigor psíquico e
físico.
É verdade que, como disse Edgar Allan Poe, os olhos são as
janelas da alma; as janelas do palácio mal assombrado no qual ela
vive. Esta é a expressão mais próxima possível, em linguagem
comum, do significado do texto. Se a aflição, o desânimo, a
decepção ou o prazer podem abalar a alma fazendo-a perder o
contato com o calmo espírito que a inspira, e a umidade da vida se
derrama, mergulhando o conhecimento na sensação, então tudo fica
confuso, as janelas são escurecidas e a luz se torna inútil. Isso é tão
literalmente verdadeiro quanto o fato de que se um homem estiver
na beira de um precipício e perder sua calma devido a alguma forte
emoção, certamente cairá. O equilíbrio do corpo deve ser
preservado não só em lugares perigosos, mas também em solo
firme, e com a ajuda que a Natureza nos dá através da lei da
gravidade. O mesmo ocorre com a alma; ela é o elo entre o corpo
externo e o espírito, e brilha como uma estrela que está mais além.
A centelha divina existe no espaço estável em que nenhuma
convulsão da Natureza pode sacudir o ar; e isso ocorre sempre.
Mas a alma pode perder o seu contato com este espaço, e pode
perder o seu conhecimento disso, apesar de estes dois fatores
serem parte de um único todo; e é pela emoção, pela sensação, que
este contato é perdido.
Experimentar prazer ou dor causa uma vibração intensa que é,
para a consciência do ser humano, vida. Esta sensibilidade não
diminui quando o discípulo começa o autotreinamento; ela aumenta.
Este é o primeiro teste para a sua força. Ele deve sofrer, desfrutar
ou suportar dor mais agudamente que os outros seres humanos, ao
mesmo tempo que escolheu para si um dever que não existe para
os outros: o dever de não deixar que o sofrimento o afaste do seu
propósito firme. Na verdade, já no primeiro passo ele deve tomar as
rédeas de si mesmo e colocar-se um limite: e só ele pode fazer isso.
Os quatro primeiros aforismos de “Luz no Caminho” se referem
inteiramente ao desenvolvimento astral. Este desenvolvimento deve
ser realizado até certo ponto - isto é, deve ser completamente
iniciado - antes que o resto do livro seja realmente compreensível
além do plano intelectual, e, na verdade, antes que ele possa ser
lido como um tratado prático, e não metafísico.
Em uma das grandes Fraternidades místicas, há quatro
cerimônias, realizadas no início do ano, que ilustram e explicam de
modo prático estes aforismos. Só neófitos tomam parte destas
cerimônias, porque são funções relativas simplesmente ao limiar.
Mas elas servem para mostrar a seriedade do processo pelo qual
alguém se torna um discípulo, quando se compreende que estas
são todas cerimônias de sacrifício. A primeira cerimônia é esta que
estou comentando. A mais aguda satisfação, o sofrimento mais
amargo, a angústia da perda e o desespero são despertados na
alma trêmula, que ainda não encontrou a luz na escuridão e está tão
indefesa como um cego. E até que estes choques possam ser
suportados sem perda de equilíbrio, os sentidos astrais devem
permanecer fechados. Assim estabelece a lei da compaixão. O
“médium” ou o “espírita” que se apressa a ingressar no mundo do
psiquismo sem a devida preparação é alguém que vai contra a lei,
alguém que desobedece às leis da super-natureza. Quem contraria
as leis da Natureza perde a saúde física; quem contraria as leis da
vida interior, perde a saúde psíquica. Os “médiuns” se tornam
loucos, se suicidam, se transformam em criaturas miseráveis e
destituídas de sentido moral. Frequentemente terminam como
descrentes, duvidando até mesmo daquilo que os seus próprios
olhos viram. O discípulo é levado a se tornar o seu próprio mestre
antes de aventurar-se por este terreno perigoso, e antes de tentar
ficar frente a frente com os seres que vivem e trabalham no mundo
astral, aos quais nós chamamos de mestres. Nós os chamamos de
mestres por causa do seu grande conhecimento e da sua
capacidade de controlar não só a si mesmos, mas as forças ao seu
redor.
A condição da alma que vive para a vida de sensações e não
para a vida de conhecimento é uma condição vibratória ou oscilante,
e não fixa. Esta é a representação literal mais aproximada do fato;
mas só é literal para o intelecto, e não para a intuição. É necessário
um outro vocabulário para esta parte da consciência humana. A
ideia de “condição fixa” pode ser, talvez, substituída pela ideia de
“estar em casa”. No mundo das sensações, nenhuma “casa”
permanente pode ser encontrada, porque a mudança é a lei desta
existência vibratória. Este é o primeiro fato a ser aprendido pelo
discípulo. É inútil parar e chorar por causa de uma cena em um
caleidoscópio que já mudou.
Bulwer Lytton abordou com grande força o fato bem conhe-cido
de que a primeira experiência do neófito em Ocultismo é uma
tristeza insuportável. Uma sensação de vazio cai sobre aquele que
faz do mundo algo sem valor e da vida um esforço inútil. Isso ocorre
após a sua primeira contemplação séria do abstrato.[32] Ao ver, ou
mesmo ao tentar ver o mistério inefável da sua própria natureza
superior, ele faz com que a provação inicial caia sobre si. A
oscilação entre prazer e dor deixa de ocorrer, talvez durante um só
instante; mas isso é o suficiente para que ele se liberte das amarras
que o ligavam ao mundo da sensação. Ele experimentou, mesmo
que brevemente, a vida maior; e a partir de então a existência
convencional é acompanhada por uma sensação de irrealidade, de
vazio, de uma negação horrível. Este é o pesadelo que acompanha
o neófito no romance “Zanoni”, de Bulwer Lytton. E mesmo o próprio
Zanoni, que havia aprendido grandes verdades, e a quem grandes
poderes haviam sido confiados, ainda não havia passado de fato
pelo limiar no qual medo e esperança, desespero e contentamento,
parecem num momento realidades absolutas e no momento
seguinte meras fantasias.
Esta provação inicial é frequentemente trazida até nós pela
própria vida. Porque afinal de contas a vida é o grande instrutor.
Voltamos a estudar a vida depois que adquirimos poder sobre ela,
assim como o professor de Química aprende no laboratório mais do
que o seu aluno. Há pessoas tão próximas ao portal do
conhecimento que a própria vida as prepara para o conhecimento, e
ninguém precisa invocar o terrível guardião da entrada. Tais
indivíduos devem ser naturalmente perspicazes e fortes, capazes do
prazer mais intenso. Em seguida surge o sofrimento e define o seu
grande dever. As formas mais intensas de dor caem sobre tais
indivíduos, até que finalmente eles emergem do estupor em que
estavam as suas consciências, e, pela força da sua vitalidade
interna, avançam através do limiar até um lugar de paz. Então a
vibração da vida perde o seu poder de dominação. A natureza
sensível ainda deve sofrer, mas a alma se libertou e permanece
afastada, guiando a vida na direção da sua grandeza. Aqueles que
estão sujeitos ao Tempo e atravessam lentamente todos os seus
espaços vivem através de uma longa série de sensações, e sofrem
uma constante mistura de prazer e dor. Eles não se atrevem a
dominar e vencer a serpente do eu inferior, o que os tornaria divinos.
Preferem continuar afligindo-se ao longo das mais diversas
experiências, e sofrendo os golpes das forças contraditórias.
Quando um destes indivíduos sujeitos ao Tempo decide entrar
no caminho do Ocultismo, esta é sua primeira tarefa. Se a vida
ainda não a tiver ensinado a ele, se ele não for suficientemente forte
para ensinar esta tarefa a si mesmo, mas tiver força suficiente para
pedir e merecer a ajuda de um mestre, então esta temível provação,
descrita em “Zanoni”, será colocada diante dele. A oscilação em que
ele vive é por um instante eliminada e ele tem que sobreviver ao
choque de enfrentar o que lhe parece à primeira vista ser o abismo
do nada. Só quando ele tiver aprendido a viver neste abismo, e
quando tiver encontrado a paz deste abismo, será possível que seus
olhos se tornem incapazes de lágrimas.
A dificuldade de escrever de maneira compreensível sobre
estes assuntos é grande. Eu peço a quem tiver lido este artigo com
algum interesse e ainda permanecer com dúvidas e perplexidades
que me escreva através da seção dedicada aos leitores desta
revista.[33] Faço este pedido porque as perguntas bem formuladas
são tão úteis para o leitor quanto as respostas a elas.
4. Comentários a
“Luz no Caminho”
- II
“Antes que o ouvido possa ouvir,
ele deve ter perdido sua sensibilidade.”
Talvez esta afirmativa pareça curiosa, mas as quatro primeiras
regras de “Luz no Caminho” são indubitavelmente as mais
importantes de todo o livro, com uma única exceção. O motivo pelo
qual são tão importantes está no fato de que elas contêm a lei vital,
a própria essência criativa do homem astral. E é apenas na
consciência astral (ou autoiluminada) que as regras que se seguem
a estas quatro reco-mendações iniciais possuem um significado
dinâmico. Quando alguém obtém o uso dos sentidos astrais, é
natural que passe a usá-los, e as regras posteriores são apenas
orientações para o seu uso. Quando afirmo isso, quero dizer,
naturalmente, que as quatro primeiras regras são as que têm
importância e interesse para quem as lê em uma página. Quando
elas são gravadas no coração e na vida de um ser humano, as
regras posteriores se transformam inevitavelmente em afirmativas
metafísicas que não são apenas interessantes, ou extraordinárias,
mas fatos concretos da vida a serem captados e vivenciados.
As quatro regras estão escritas na grande câmara de toda
verdadeira loja de uma Fraternidade viva. Quer o homem venda sua
alma ao diabo, como Fausto[34], ou seja enganado na luta, como
Hamlet, ou consiga passar adiante e avançar no Caminho, em
qualquer caso estas palavras são para ele. O homem só pode
escolher entre a virtude e o vício quando já é homem. Um bebê e
um animal não podem fazer tal escolha. O mesmo ocorre com o
discípulo. Ele deve primeiro tornar-se um discípulo, antes mesmo de
ver os dois caminhos e escolher entre eles. O esforço de criar a si
mesmo como um discípulo é um renascimento que deve ser feito
por si e sem professor algum. Antes que as quatro regras sejam
aprendidas, nenhum instrutor pode ser útil para ele; e este é o
motivo pelo qual “os Mestres” são mencionados desta forma.
Nenhum mestre verdadeiro, seja ele um adepto que domina o poder,
o amor, ou o caminho da escuridão[35], pode afetar o ser humano
enquanto estas quatro regras não forem compreendidas e
vivenciadas.
As lágrimas, como já foi dito, podem ser definidas como a
umidade da vida. Antes que seus olhos se abram para o mundo
super-humano, a alma deve ter deixado de lado as emoções
humanas e alcançado um equilíbrio que os infortúnios não podem
abalar.
A voz dos Mestres está sempre no mundo, mas ela só pode ser
escutada por aqueles cujos ouvidos já não recebem os sons que
afetam a vida pessoal.[36] O riso já não torna o coração leve, a raiva
já não o domina mais, e palavras ternas já não funcionam como um
bálsamo.[37]
Porque aquele nível interno de consciência para o qual
os ouvidos funcionam como um portal externo constitui um lugar
estável de paz em si mesmo, e ninguém pode perturbá-lo.
Assim como os olhos são as janelas da alma, os ouvidos são o
seu portal, ou suas portas. Através dos ouvidos vem o
conhecimento da confusão do mundo. Os grandes seres que
conquistaram a vida e se tornaram mais do que discípulos
permanecem em paz e imperturbados em meio à vibração e ao
movimento agitado e caleidoscópico da humanidade. Eles têm
dentro de si um conhecimento seguro e uma perfeita paz. Graças a
isso, não ficam agitados devido aos fragmentos parciais e errados,
trazidos até os seus ouvidos pelas vozes mutáveis dos que estão ao
seu redor. Quando falo de conhecimento, me refiro a um
conhecimento intuitivo. Esta informação segura não pode ser obtida
através de um trabalho intenso, ou por experimentação, porque
estes métodos só podem ser aplicados ao mundo material, e porque
a matéria é em si mesma uma substância completamente incerta e
insegura, sendo continuamente atingida por mudanças. As leis mais
absolutas e universais da vida natural e física, tal como são vistas
pelo cientista, serão deixadas de lado quando este universo tiver ele
próprio passado[38], e só a sua alma existir no silêncio. Qual será
então o valor do conhecimento das leis descobertas por esforço e
por observação?[39] Espero que nenhum leitor ou crítico imagine
que com isso eu pretendo desprezar o conhecimento adquirido, ou o
trabalho dos cientistas. Ao contrário, eu penso que os cientistas são
os pioneiros do pensamento moderno. Os dias da literatura e da
arte, quando os poetas e os escultores viam a luz divina e a
colocavam em sua linguagem grandiosa, estes dias estão
enterrados no longo passado junto com os escultores anteriores a
Fídias e os poetas anteriores a Homero. Os mistérios já não
governam o mundo do pensamento e da beleza; a força que o
governa é a vida humana, e não algo que o transcenda. Mas os
trabalhadores cientistas estão progredindo, menos por sua vontade
própria do que pela força das circunstâncias, na direção daquela
linha distante que separa as coisas interpretáveis das coisas que
não podem ser interpretadas. Cada nova descoberta os leva a mais
um passo adiante. Portanto eu tenho grande estima pelo
conhecimento que é obtido por trabalho e experimentação.
Mas o conhecimento intuitivo é algo inteiramente diferente. Ele
não é adquirido de alguma forma, mas, poderíamos dizer, é uma
função da alma; não da alma animal, que se transforma em um
fantasma após a morte, quando a luxúria, o afeto ou a memória de
más ações a mantém na vizinhança dos seres humanos; mas da
alma divina que anima todas as formas externas do ser
individualizado.
Esta função, naturalmente, pertence à alma divina e lhe é
inerente. O candidato a discípulo deve erguer-se até a consciência
desta alma através de uma força de vontade intensa, decidida e
indômita. Uso a palavra “indômita” por um motivo específico. Só
aquele que é indomável, que não pode ser dominado, que sabe que
tem que exercer o papel de senhor em relação aos seres humanos,
aos fatos, em relação a todas as coisas exceto a sua própria
divindade[40], pode despertar esta função. “Através da fé todas as
coisas são possíveis”. Os céticos riem da fé e se orgulham da
ausência dela em suas mentes. A verdade é que a fé[41]
é uma
grande engrenagem, uma energia enorme, que, na verda-de, pode
realizar tudo. Porque ela é o compromisso ou aliança entre a parte
divina do homem e o seu eu inferior.
O uso desta engrenagem é indispensável para obter conhe-
cimento intuitivo, porque, se um homem não acreditar que tal
conhecimento existe dentro de si mesmo, como poderá resgatá-lo e
usá-lo?
Sem fé ou confiança ele fica mais indefeso que um pedaço de
madeira abandonado às marés do oceano. Assim como a madeira é
atirada para cá e para lá, um homem pode ser jogado pelos acasos
do destino. Mas tais aventuras são apenas externas e possuem
pouca importância. Um escravo pode ser arrastado pelas ruas,
acorrentado, e ao mesmo tempo manter a alma serena de um
filósofo, como ocorreu no caso de Epicteto. Um homem pode ter
todas as regalias do mundo, sendo aparentemente o senhor
absoluto do seu próprio destino, e no entanto não saber o que é
paz, e desconhecer o que é certeza ou segurança, porque é
abalado dentro de si mesmo pelas marés de pensamento que
chegam até ele. Estas marés mutáveis não só arrastam o homem
corporalmente para cá e para lá como um pedaço de madeira à
deriva. Isso não seria nada. Elas entram em sua alma e tiram dela
toda inteligência permanente; e a deixam vazia, em branco, de
modo que nela só ocorrem impressões passageiras.
Para deixar mais claro o que digo, devo usar uma imagem
simbólica. Quero que penses num autor com seus escritos, um
pintor com suas telas, um compositor escutando as melodias que
surgem em sua imaginação feliz. Supõe que qualquer um destes
trabalhadores passa seus dias junto a uma grande janela e olhando
uma rua movimentada. A força da animação da vida interromperia
tanto a visão como a audição, e para ele o grande tráfego da cidade
seria apenas uma cena passageira. Mas um homem cuja mente
está vazia e cujo dia não tem objetivo, sentado àquela mesma
janela, observa os que passam e percebe os rostos que o agradam
ou interessam. O mesmo ocorre na relação da mente com a
verdade eterna. Se a mente já não transmite à alma as suas
flutuações, o seu conhecimento parcial e sua informação pouco
confiável, então, no lugar interno de paz encontrado quando foi
aprendida a primeira regra[42] - naquele lugar interno a luz do real
conhe-cimento se torna uma chama. Neste momento, os ouvidos
começam a escutar. No início, muito vagamente e de modo quase
indefinido. E, de fato, estas primeiras indicações do começo da vida
real e verdadeira são tão fracas e tênues que, às vezes, são
colocadas de lado como meras fantasias e resultados da
imaginação.
Mas, antes que estas indicações possam tornar-se mais que
meras fantasias[43], o abismo do nada deve ser enfrentado de outra
forma. O completo silêncio, que só pode ocorrer quando se fecham
os ouvidos a todos os sons transitórios, vem como um horror mais
assustador do que até mesmo o vazio sem forma do espaço.[44]
Nossa única concepção mental do espaço vazio ocorre, penso eu,
quando ela é reduzida ao elemento mais simples do pensamento, a
total escuridão.[45]
Este é um grande terror físico para a maior parte
das pessoas, e quando visto como um fato eterno e imutável, pode
significar, para a mente, mais a ideia da aniquilação do que qualquer
outra coisa. Mas esta é a obliteração de apenas um sentido; e o
som de uma voz pode surgir e trazer conforto mesmo na mais
profunda escuridão. Tendo encontrado o caminho que o conduz até
esta escuridão que é o abismo temível, o discípulo deve então
fechar as portas da sua alma para que nenhum elemento
reconfortante, e tampouco nenhum inimigo, possa entrar nela. E é
ao fazer este segundo esforço que o fato de que a dor e o prazer
constituem uma mesma sensação se torna perceptível por aqueles
que antes eram incapazes de reconhecê-lo. Porque quando a
solidão do silêncio é alcançada, a alma tem uma grande fome, um
desejo muito intenso e apaixonado de alguma forma de sensação
sobre a qual possa descansar. Essa ânsia é suficientemente forte
para que uma sensação dolorosa passe a ser tão bem-vinda quanto
uma sensação agradável.[46] Quando a consciência disso é obtida,
ao captá-la e mantê-la firmemente consigo, o homem que possui
coragem pode destruir de imediato a “sensibilidade”. Quando o
ouvido já não discrimina entre o que é agradável e o que é doloroso,
ele já não é afetado pelas vozes dos outros.
Então é possível, e é
seguro, abrir as portas da alma.
A “visão” é o primeiro esforço, e o mais fácil, porque é obtida
em parte através de um esforço intelectual. Como se sabe, o
intelecto pode vencer o coração na vida comum. Portanto, este
passo preliminar ainda está no domínio da matéria. Mas o segundo
passo não permite que haja esta ajuda, nem qualquer outro auxílio
do mundo material. Naturalmente quando falo de ajuda material me
refiro à ação do cérebro, ou das emoções, ou da alma humana. Ao
fazer com que os ouvidos ouçam apenas o silêncio eterno, o ser que
nós chamamos de humano se torna algo que já não é humano.[47]
Até mesmo uma observação muito superficial das mil e uma
influências que os outros exercem sobre nós mostra que isso é
verdade. Um discípulo cumprirá todos os deveres inerentes à sua
condição humana; mas ele os cumprirá de acordo com o seu próprio
sentido do que é correto, e não segundo a opinião de qualquer
pessoa ou grupo de pessoas. Este é um resultado evidente do fato
de que ele acredita no conhecimento, ao invés de adotar alguma
forma de crença cega.
Para obter o puro silêncio necessário ao discípulo, é preciso
deixar de lado o coração, as emoções, o cérebro e as suas
racionalizações. Estes são meros mecanismos que perecem ao final
de cada vida humana. A essência que está mais além, que
determina a força motivadora e dá vida ao homem, deve erguer-se e
agir. Esta é a hora de maior perigo. No primeiro teste o homem pode
ficar enlouquecido pelo medo. Bulwer Lytton escreveu sobre esta
primeira provação. Nenhum romancista chegou até o segundo teste,
embora alguns dos poetas tenham chegado. A sua sutileza e o seu
grande perigo estão no fato de que a medida da força de um homem
determina a sua chance de passar adiante, ou de seguir pelo menos
caminhando de algum modo. Se ele tiver força suficiente para
acordar aquela parte de si mesmo com a qual está pouco
familiarizado, a suprema essência, então poderá erguer os portões
de ouro, e neste caso ele passa a ser um verdadeiro alquimista, que
possui o elixir da vida.
É neste ponto da experiência que o ocultista fica separado de
todos os outros homens e ingressa em uma vida que é sua própria.
Ele entra no caminho da realização individual[48], ao invés da mera
obediência aos espíritos que governam nosso planeta Terra. Este
erguer-se como uma força individual na verdade o identifica com as
forças mais nobres da vida, e faz com que ele esteja em unidade
com elas. Porque elas estão além dos poderes desta terra e das leis
do universo.[49]
Aqui está a única esperança de êxito no grande
esforço; saltar de imediato desde o seu atual ponto de vista para o
seu próximo ponto de vista, e tornar-se desde já uma parte
intrínseca do poder divino - assim como ele já vinha sendo uma
parte intrínseca do poder intelectual - na grande Natureza à qual ele
pertence. Ele permanece sempre à frente de si mesmo, se uma tal
contradição pode ser compreendida. Os irmãos mais velhos, os
pioneiros, são os homens que aderem a esta posição, que
acreditam no seu poder intrínseco de progredir e no poder de
progredir que pertence à raça humana inteira. Cada indivíduo deve
dar o grande salto por si mesmo e sem ajuda.[50] No entanto, já é
um ponto de apoio saber que outros percorreram antes este
caminho. É possível que eles tenham se perdido no abismo; isso
não importa[51], porque, pelo menos, tiveram a coragem de entrar no
caminho.
Eu digo que é possível que eles tenham se perdido no
abismo[52] porque ninguém que tenha passado adiante é
reconhecível, até que a situação nova e inteiramente diferente tenha
sido alcançada por ambos.[53] É desnecessário discutir neste
momento qual é a nova situação. Digo apenas que, no estado inicial
de silêncio em que entra o homem, ele perde o conhecimento dos
seus amigos, dos que o amam, e de todos os que são mais
próximos a ele; e também perde a visão dos seus professores, e
daqueles que trilharam o caminho antes dele.[54] Explico isso porque
dificilmente alguém passa adiante sem amargas reclamações. Se a
mente pudesse compreender antecipadamente que o silêncio deve
ser completo, esta reclamação não surgiria criando um obstáculo no
caminho.[55]
O teu professor ou antecessor pode apoiar-te, e pode
dar-te toda a simpatia de que o coração humano é capaz. Mas
quando vêm o silêncio e a escuridão, tu perdes toda percepção do
teu instrutor. Ficas então sozinho. Ele não pode ajudar-te, não
porque ele tenha perdido o poder que possui, mas porque tu
invocaste teu grande inimigo.
O teu grande inimigo és tu mesmo. Se fores capaz de enfrentar
a tua própria alma na escuridão e no silêncio, vencerás o eu físico
ou animal, o eu que vive apenas nas sensações.
Sinto que esta afirmação pode parecer complexa. Na realidade
ela é bastante simples. Quando o ser humano chega à maturidade e
a civilização está no auge, o homem fica entre dois fogos. Bastaria
que ele alcançasse a sua grande herança, para que o estorvo da
vida meramente animal fosse deixado de lado sem dificuldade. Mas
ele não faz isso, e assim as raças humanas florescem, envelhecem
e morrem, e são eliminadas da face da terra, por mais esplêndido
que tenha sido o seu florescimento. E cabe ao indivíduo fazer este
grande esforço; recusar-se a ter medo desta natureza maior, e dizer
não à possibilidade de ser levado de volta ao seu eu menor ou mais
material. Cada indivíduo que realiza isso é um redentor da raça
humana. Ele pode não proclamar as suas ações; pode atuar em
segredo e em silêncio. Mas ele estabelece uma ligação entre o ser
humano e a sua parte divina, entre o conhecido e o desconhecido,
entre a agitação dos mercados e o silêncio dos Himalaias cobertos
de neve. Para criar esta ligação, não é necessário que ele caminhe
entre os homens; no plano astral ele é esta ligação, e este fato faz
dele um ser diferente do resto da humanidade. Ainda neste ponto
inicial do caminho do conhecimento, quando não deu mais que o
segundo passo, ele vê que seus pés estão mais firmes e percebe
que é reconhecido como parte de um todo.
Esta é uma das contradições da vida. Elas são tão frequentes
que constituem matéria-prima para escritores. O ocultista descobre
que as contradições se tornam muito mais acentuadas à medida
que se esforça por viver a vida que escolheu. Quando se recolhe em
seu próprio interior e se torna independente, ele vê que passa a ser
mais nitidamente parte de uma grande maré de pensamentos e
sentimentos definidos. Quando aprende a primeira lição, vence a
fome do coração e recusa-se a viver com base no amor dos outros,
ele percebe que é mais capaz de inspirar amor. À medida que ele
afasta a vida, ela vem a ele sob uma nova forma e com um novo
significado. Para o homem, o mundo sempre tem sido um lugar com
muitas contradições; quando ele se torna discípulo, ele percebe que
a vida pode ser descrita como uma série de paradoxos. Este é um
fato na natureza, e a razão disso é bastante compreensível. A alma
do homem “permanece como uma estrela à parte”, e isso ocorre
mesmo com a alma do mais vil entre nós, enquanto que a sua
consciência está sob a lei da vida sensorial e vibratória.
Este fato em si mesmo é suficiente para causar as
complicações de caráter que fornecem a matéria-prima para o
romancista. Todo ser humano é um mistério, tanto para amigos
como para inimigos, e é um mistério também para si mesmo. É
frequentemente impossível descobrir as suas motivações, e ele
próprio não consegue compreendê-las ou saber por que ele faz isso
ou aquilo. O esforço do discípulo visa despertar a consciência na
parte celestial de si mesmo, ali onde seu poder e sua divindade
estão a dormir. À medida que sua consciência desperta, as
contradições do ser humano se tornam mais acentuadas que nunca,
e o mesmo ocorre com os paradoxos através dos quais ele vive.
Porque, naturalmente, o homem cria sua própria vida, e “as
aventuras são para os aventureiros”. Este é um provérbio cheio de
sabedoria, que tem como base a realidade e cobre toda a área da
experiência humana.
A pressão sobre a parte divina do homem reage sobre a parte
animal. Quando a alma silenciosa acorda, ela faz com que a vida
comum do ser humano fique mais cheia de propósito, mais vital,
mais real e mais responsável. Para manter o foco nos dois
exemplos já mencionados, o ocultista que se retirou para sua
própria cidadela encontrou sua força; ele imediatamente se torna
consciente das exigências que o dever faz em relação a si. Ele não
obtém sua força por direito próprio, mas porque é uma parte do
todo. Assim que ele permanece seguro em relação à vibração da
vida e pode ficar imperturbável, o mundo externo clama, pedindo a
ele que venha trabalhar nas circunstâncias externas. O mesmo
ocorre com o coração. Quando o coração não deseja mais coisa
alguma para si, é convidado a doar generosamente.
“Luz no Caminho” foi descrito como um livro de paradoxos, e
com razão; como poderia ser outra coisa, se ele lida com a
verdadeira experiência pessoal do discípulo?
Adquirir os sentidos astrais da visão e da audição, ou, em
outras palavras, obter a percepção e abrir as portas da alma, é uma
tarefa gigantesca que pode exigir o sacrifício de muitas encarnações
sucessivas. E, no entanto, quando a vontade desenvolveu sua força,
o milagre inteiro pode ser realizado em apenas um segundo de
tempo cronológico. Assim o discípulo deixa de ser escravo do
Tempo.
Estes dois passos iniciais são negativos[56]: isto é, eles
implicam um abandono da condição atual das coisas, mais do que
um avanço em direção a outra situação. Os dois passos a seguir
são ativos, e implicam um progresso na direção de outro estado de
ser.
5. Comentários a
“Luz no Caminho”
- III
O Pedido do Neófito
“Antes que a voz possa
falar na presença dos Mestres...”
A fala é o poder da comunicação; o momento do ingresso na
vida ativa é marcado pela sua conquista.
E agora, antes de dar mais um passo à frente, quero explicar
um pouco o modo como estão organizadas as regras escritas em
“Luz no Caminho”. As primeiras sete regras numeradas são
subdivisões das duas primeiras regras não-numeradas, que eu
comentei nos dois ensaios anteriores. As regras numeradas são
simplesmente um esforço meu para tornar as regras não-numeradas
mais inteligíveis. As regras “oito” a “quinze”, das numeradas, se
referem a esta regra que agora abordo.
Como já disse, estas regras foram escritas para todos os
discípulos, e para mais ninguém. Elas não têm interesse para outras
pessoas. Portanto, espero que só os discípulos se deem ao trabalho
de ler a continuação destas anotações. Expandirei - se isso for
solicitado - os comentários das duas primeiras regras, que incluem
toda a parte do esforço para a qual é necessário o bisturi do
cirurgião. Mas espera-se que o discípulo enfrente sem ajuda a
serpente, o seu eu inferior. Ele deve suprimir suas paixões e
emoções humanas pela força da sua própria vontade. O discípulo só
pode pedir a ajuda de um Mestre quando isso é realizado pelo
menos em parte. De outro modo as portas e janelas da sua alma
ficarão manchadas, cegas, e escurecidas, impedindo que qualquer
conhecimento chegue até ele.
Nestes comentários, não pretendo ensinar a ninguém como
lidar com sua própria alma: simplesmente dou conhecimento ao
discípulo. Não estou escrevendo para todos, agora. A realidade
superior impede isso através de suas próprias leis imutáveis.[57]
As quatro regras que escrevi para os ocidentais que quiserem
estudá-las estão, como eu disse, na antecâmara de toda
Fraternidade viva, e posso acrescentar: na antecâmara de toda
Fraternidade ou Ordem, viva, morta, ou ainda por ser formada.
Quando falo de uma Fraternidade ou Ordem, não me refiro a uma
entidade arbitrária criada por eruditos e intelectuais; me refiro a um
fato verdadeiro na realidade superior, um estágio de
desenvolvimento na direção do Absoluto Bem.[58] Durante este
desenvolvimento, o discípulo encontra vários graus de harmonia, de
conhecimento puro, de verdade pura, e, à medida que avança por
tais graus, ele vê a si mesmo tornando-se parte de algo que pode
ser de algum modo descrito como uma camada de consciência
humana. Ele descobre os seus colegas, os seres que possuem
como ele um caráter altruísta. A sua associação com eles se torna
permanente e indissolúvel porque tem como sua base uma
semelhança vital, de substância. Ele assume um compromisso
interno com eles cujo voto solene não requer que se digam palavras
e não necessita uma estrutura de linguagem convencional. Este é
um aspecto do que quero dizer quando me refiro a uma
Fraternidade.
Se as primeiras regras são corretamente postas em prática, o
discípulo percebe que está situado em um limiar. Se a sua vontade
for suficientemente firme, surge então o poder de falar: e este é um
poder duplo. Porque agora, à medida que avança, ele vê a si
mesmo entrando em um estado de florescimento no qual cada botão
lança, ao abrir-se, vários raios ou pétalas. Para exercitar o seu novo
dom, ele deve usá-lo em seu caráter duplo. Ele descobre em si
mesmo o poder de falar na presença dos mestres; em outras
palavras, ele tem o direito de pedir contato com o elemento mais
divino daquele estado de consciência no qual ingressou. Mas ele se
vê compelido, pela natureza da sua situação, a agir de duas
maneiras ao mesmo tempo. Ele não pode mandar a sua voz até as
alturas em que estão os deuses, antes de chegar aos lugares
profundos onde a luz não brilha de modo algum. O discípulo chegou
a uma situação que é regulada por uma lei de ferro. Se ele pedir
para tornar-se um neófito, ele se torna de imediato um servidor. No
entanto o serviço que prestará é sublime, e para ver isso basta
observar o caráter daqueles que o acompanharão. Porque os
mestres são também servidores; eles servem e só depois pedem a
sua recompensa. Uma parte do serviço deles é deixar que o
conhecimento chegue até o discípulo; o primeiro ato de serviço, da
parte do discípulo, é dar algo daquele conhecimento aos que ainda
não estão preparados para estar onde ele está. Esta não é uma
decisão arbitrária tomada por algum mestre, instrutor ou ser
semelhante, por mais divino que seja. É uma lei daquela vida na
qual o discípulo agora entrou.
Portanto, estava escrito no portal interno das lojas da antiga
Fraternidade Egípcia: “O trabalhador é digno de ser contratado”.
A expressão “Pede e terás” soa como demasiado fácil e
simples para ser verdadeira. Mas o discípulo só pode “pedir”, no
sentido místico em que a palavra é empregada nesta escritura,
depois de haver alcançado o poder de ajudar os outros.
Por que isso deve ser assim? Esta afirmação não soa como
excessivamente dogmática?
Será demasiado dogmático dizer que, antes de saltar, um
homem deve ter um chão firme? A situação é a mesma. Se for dada
ajuda, e for realizado um trabalho, então existe um real pedido. Não
se trata de uma reivindicação pessoal de pagamento, mas de um
pedido consubstancial. Os seres divinos doam, e eles exigem que tu
também does, antes de seres admitido como um deles.
Esta lei é descoberta assim que o discípulo tenta falar. Porque
a fala é um dom que nasce apenas para o discípulo que tem poder e
conhecimento. O espiritualista entra no mundo psíquico-astral, mas
não encontra lá qualquer fala determinada, a menos que peça por
ela e continue pedindo. Se ele estiver interessado em “fenômenos”,
ou nas meras circunstâncias e acasos da vida astral, ele não entrará
em qualquer raio direto de pensamento ou de propósito
determinado. Ele apenas existirá e se divertirá na vida astral assim
como existia e se divertia na vida física. Há certamente uma ou duas
lições simples que o mundo psíquico-astral pode ensinar a ele,
assim como há lições simples que a vida material e intelectual lhe
ensina. E estas lições têm que ser aprendidas; o homem que se
propõe a viver a vida do discípulo sem ter aprendido as lições
prévias e simples deve sempre sofrer devido à sua ignorância. Estas
lições são vivenciais, e precisam ser estudadas de uma maneira
vivencial. Devem ser experimentadas do início ao fim, uma e outra
vez, de modo que cada aspecto da natureza do aprendiz seja
permeado por elas.
Voltemos ao ponto inicial. Ao pedir pelo poder da fala, o neófito
clama por orientação ao Grande Ser que permanece na posição de
mais destaque no raio de conhecimento em que ingressou. Quando
ele faz isso, a sua voz é lançada de volta pelo poder de que ele se
aproximou, e ecoa até os níveis mais profundos da ignorância
humana. De algum modo vago e confuso, é levada uma notícia a
todos os seres humanos que a escutarem; a notícia de que existem
um conhecimento e um poder benéficos, e de que eles são
ensinados. Nenhum discípulo pode passar pelo limiar sem divulgar
esta notícia, e sem registrá-la de uma maneira ou de outra.
Ele é tomado de horror ao ver o modo imperfeito como o faz; e
então vem o desejo de fazer a transmissão de uma maneira mais
correta. Junto com o desejo de ajudar os outros, vem o poder de
fazê-lo. É puro o desejo que vem até ele. Ele não pode obter crédito,
nem glória, nem recompensa pessoal por realizar este desejo. É por
isso que ele obtém o poder de alcançá-lo.
A história de todo o passado, até onde podemos conhecê-lo,
mostra muito claramente que não há crédito, glória ou recompensa
a serem ganhos em troca desta primeira tarefa pedida ao Neófito.
Os místicos sempre a desprezaram, e os videntes não acreditaram
nela. Aqueles que tinham o poder adicional do intelecto deixaram os
seus registros escritos para a posteridade. Para a maior parte dos
homens, eles parecem escritos visionários e sem significado,
mesmo quando os autores têm a vantagem de falar desde um
passado distante. O discípulo que tenta realizar a tarefa aspirando
secretamente por fama ou sucesso, ou querendo parecer um
instrutor e apóstolo diante do mundo, fracassa antes mesmo de
começar a tarefa. A sua hipocrisia oculta envenena a sua própria
alma e as almas daqueles de quem ele se aproxima. Ele
secretamente adora a si mesmo, e essa idolatria produzirá
necessaria-mente seus resultados.
Quando a mensagem divina vier até seu espírito, o discípulo
que tem o poder de avançar e que é suficientemente forte para
vencer cada uma das barreiras irá esquecer completamente de si
mesmo, na nova consciência que desce sobre ele. Se este contato
elevado pode realmente despertá-lo, ele se torna semelhante aos
que são divinos, graças a seu desejo de doar, mais do que receber;
à sua vontade de ajudar, mais do que ser ajudado; e à sua decisão
de alimentar os famintos, mais do que receber ele próprio o maná
do céu. A sua natureza se transforma. Ele é abandonado
subitamente pelo egoísmo que leva os seres humanos à ação na
vida comum.
6. Comentários a
“Luz no Caminho”
- IV
O Isolamento do Adepto
“Antes que a voz possa falar na presença dos
Mestres, ela deve haver perdido o poder de ferir.”
Aqueles que dão uma atenção apenas passageira e superficial
ao assunto do Ocultismo - e eles são numerosos - perguntam a todo
momento por que, se os adeptos[59] vivem, eles não aparecem no
mundo, e não mostram o seu poder. A afirmativa de que o principal
grupo destes sábios vive além das montanhas dos Himalaias parece
ser uma prova de que eles são figuras apenas imaginárias. De outra
forma, por que situá-los tão longe?
Infelizmente, foi a Natureza que fez isso, sem que houvesse
escolha ou decisão pessoal. Há certos pontos no planeta em que o
avanço da “civilização” não é sentido, e onde a febre do século
dezenove[60]
é mantida à distância.
Nestes lugares privilegiados sempre há tempo e espaço para
as realidades de vida. Eles não estão dominados pelas ações de
uma sociedade desorganizada, amante do dinheiro e que busca
prazeres. Enquanto houver adeptos na Terra, a Terra deve preservar
locais de retiro para eles. Este é um fato da natureza, e constitui
apenas uma expressão externa de um aspecto profundo da
Natureza Superior.
O pedido do neófito permanece sem ser atendido, até que a
voz com que ele o pronuncia perca o poder de ferir. Isso se deve ao
fato de que a vida do astral divino[61] é um espaço em que reina a
ordem, assim como a ordem reina na vida natural. Sempre há, é
claro, o centro e a circunferência, tal como na natureza. Perto do
coração central da vida, em qualquer plano, há conhecimento, e a
ordem reina por completo. O caos torna obscura e confusa a
margem externa do círculo. Na realidade, qualquer forma de vida
tem uma semelhança maior ou menor com uma escola filosófica. Há
sempre os que se dedicam ao conhecimento e esquecem das suas
próprias vidas enquanto buscam por ele; e há sempre a multidão
frívola que vai e vem. Epicteto disse que era mais fácil comer sopa
com garfo do que ensinar filosofia a tais indivíduos. O mesmo
estado existe na vida astral superior; e lá o adepto dispõe de um
isolamento ainda maior, e pode permanecer nele. Este local de retiro
é tão seguro, tão protegido, que nenhum som que inclua discórdia
alcança os ouvidos dele. Por que razão há locais protegidos se o
adepto é um ser de poderes tão grandes, segundo dizem aqueles
que creem em sua existência? A resposta é muito clara. Ele serve a
humanidade e se identifica com o mundo inteiro. Ele está disposto a
sacrificar-se pela humanidade a qualquer momento, vivendo por ela,
e não morrendo por ela. Por que ele não deveria morrer? Porque ele
é parte do grande todo, e uma das partes mais valiosas desse todo.
Porque ele vive sob leis e sob uma ordem que ele não deseja
quebrar. Sua vida não pertence a ele, mas às forças que trabalham
através dele. Ele é um florescimento da humanidade. É a flor que
contém a semente divina. Ele é, em sua própria pessoa, um tesouro
da natureza universal, guardado e preservado para que os frutos
possam ser aperfeiçoados. É apenas durante certos períodos
definidos da história do mundo que ele tem permissão para aparecer
entre as multidões, como seu redentor. Mas para aqueles que têm a
força suficiente para separar-se da multidão ele está sempre
disponível. E para aqueles que são suficientemente fortes para
vencer os erros da natureza humana pessoal, tal como estabelecido
nestas quatro regras[62], ele está conscientemente dispo-nível,
facilmente reconhecível, pronto para responder.
Mas esta vitória sobre o eu inferior implica uma destruição de
qualidades que a maior parte das pessoas considera não só
indestrutíveis, mas desejáveis. O “poder de ferir” inclui muito daquilo
que os seres humanos valorizam, não só em si próprios, mas nos
outros. O instinto de autodefesa e de autopreservação é parte desse
poder de ferir, assim como a ideia de que se tem qualquer direito, ou
direitos, seja como cidadão, como ser humano, ou como indivíduo.
O mesmo vale para a consciência agradável de respeito por si
mesmo e de ser alguém virtuoso.[63] Para muitos, estas são
afirmações difíceis de aceitar; no entanto são verdadeiras. Estas
palavras que escrevo agora, e aquelas que já escrevi a respeito,
não são de modo algum minhas próprias. Elas são tiradas das
tradições da loja da Grande Fraternidade que foi um dia o esplendor
secreto do Egito. As regras escritas na sua antecâmara eram iguais
às que estão escritas nas antecâmaras das escolas de hoje.
Durante todo o tempo, os sábios viveram distantes da massa. E
mesmo quando algum propósito ou objetivo temporário induz um
deles a vir até o meio da vida humana, o seu isolamento e sua
segurança são preservados tão completamente como sempre. Essa
é parte da sua herança, é parte da sua posição, ele está
credenciado para isso e não pode deixá-lo de lado, assim como o
Duque de Westminster não pode dizer que deixará de ser o Duque
de Westminster.
De tempos em tempos, um adepto passa um período vivendo
nas várias grandes cidades do mundo, ou talvez apenas passe por
elas; mas todos são ocasionalmente ajudados pelo poder real e pela
presença de um destes homens. Aqui em Londres, assim como em
Paris e São Petersburgo, há seres humanos de grande
desenvolvimento. Mas eles só são reconhecidos como místicos por
aqueles que têm o poder de reconhecê-los; e esse poder é dado
pela vitória sobre o eu. De outro modo, como eles poderiam
permanecer, mesmo por uma hora, em uma atmosfera mental e
psíquica como a que é criada pela confusão e pela desordem de
uma cidade? Se eles não fossem protegidos e mantidos em
segurança, o próprio desenvolvimento deles sofreria interferência, e
o seu trabalho ficaria prejudicado. Além disso, o neófito pode
encontrar pessoalmente um adepto, pode viver na mesma casa que
ele, e ser mesmo assim incapaz de reconhecê-lo e de fazer com
que sua voz seja escutada por ele. Porque nenhuma proximidade
espacial, nenhuma proximidade em relacionamento, nenhuma
intimidade diária pode anular as leis inexoráveis que garantem ao
adepto a sua vida em retiro. Nenhuma voz chega ao seu ouvido
interno antes de tornar-se uma voz divina, uma voz que ignora as
aspirações do eu inferior. Qualquer apelo menor seria igualmente
inútil e uma perda de energia e de força, como se um professor de
filologia fosse ensinar as primeiras letras a crianças que ainda não
sabem ler. Enquanto um ser humano não se torna um discípulo em
seu coração e seu espírito, ele não pode existir para aqueles que
são professores de discípulos. E ele se torna discípulo por um único
método: a renúncia às aspirações humanas pessoais que haja em si
mesmo.
Para que a voz perca o poder de ferir, o homem deve ter
chegado àquele ponto em que vê a si mesmo apenas como mais
um em meio às vastas multidões que vivem; apenas mais um, entre
os grãos de areia levados para lá e para cá pelo mar da existência
vibratória.[64]
Afirma-se que cada grão de areia no leito do oceano é levado a
seu tempo até a praia e vive à luz do sol por um momento. O
mesmo ocorre com os seres humanos. Eles são levados para lá e
para cá por uma grande força; e cada um, no momento certo, sente
sobre si os raios solares.
Quando um ser humano é capaz de ver a sua própria vida
como uma parte do todo, ele deixa de lutar para obter qualquer
coisa para si mesmo. Esta é a renúncia aos direitos pessoais. O
homem comum não espera ter a mesma sorte que o resto do
mundo, mas em alguns pontos ele pretende obter uma posição
melhor do que os outros.
O discípulo não tem esta expectativa. Assim, mesmo que ele
seja, como Epicteto, um escravo acorrentado, não tem nada a dizer
sobre isso. Ele sabe que a roda da vida gira incessantemente.
Burne Jones mostrou isso em seu quadro maravilhoso. A roda gira,
e nela estão ligados o pobre e o rico, o grande e o pequeno. Cada
um tem o seu momento de boa sorte quando a roda o coloca no
nível mais elevado. O Rei sobe e cai, o poeta é festejado e
esquecido, o escravo é feliz e depois é descartado. Cada um, por
sua vez, é esmagado quando a roda prossegue seu giro. O
discípulo sabe que isso ocorre, e, embora seja seu dever fazer o
melhor que pode com a vida que lhe cabe viver, ele nem reclama
nem fica eufórico diante das suas oscilações, e tampouco inveja a
boa sorte de outros. Ele sabe bem que todos estão apenas
aprendendo lições. Ele sorri para o socialista e o reformador que se
esforçam por mudar circunstâncias cuja causa está nas forças da
própria natureza humana. Esse esforço é como debater-se contra os
espinhos. É um desperdício de vida e de energia.
Ao compreender isso, o ser humano renuncia aos seus
imaginados direitos individuais, sejam eles quais forem. Ele deixa de
lado o uso e a posse de um aguilhão venenoso que é compartilhado
por todos os indivíduos de visão limitada.
Quando o discípulo reconhece completamente que a própria
ideia de direitos individuais é apenas um resultado da presença do
veneno em si, e que constitui o som da serpente do seu eu inferior,
que envenena com sua mordida a sua própria vida e a vida dos que
o rodeiam, então ele está pronto para participar de uma cerimônia
anual que é aberta a todos os neófitos capacitados para ela. Todas
as armas defensivas e ofensivas são abandonadas; e todas as
armas da mente e do coração, do cérebro e do espírito. Nunca mais
um ser humano será visto por ele como alguém que pode ser
criticado ou condenado; nunca mais o neófito pode levantar sua voz
em autodefesa ou para desculpar a si mesmo.[65] Ele sai daquela
cerimônia e volta para o mundo na condição de um ser
desprotegido, como uma criança recém-nascida. E isso é,
exatamente, o que ele é. Ele começou a nascer de novo no plano
superior da vida, naquele planalto bem iluminado em que os ventos
correm livres, e de onde os olhos veem inteligentemente o mundo a
partir de uma nova percepção.
Eu disse acima que, depois de renunciar ao sentido de direitos
individuais, o discípulo deve abrir mão também do sentido de
autorrespeito e de virtude.[66] Isso pode soar como uma doutrina
terrível; mas todos os ocultistas sabem bem que não se trata de
uma doutrina, e sim de um fato. Aquele que se considera mais
sagrado que o outro, aquele que tem qualquer orgulho de estar livre
de um vício ou erro, aquele que se considera sábio ou de algum
modo superior aos seus semelhantes - é incapaz de ser discípulo. O
ser humano deve tornar-se como uma criança pequena, antes que
possa ingressar no reino dos céus.
A virtude e a sabedoria são coisas sublimes, mas se elas criam
na mente de alguém um orgulho e uma consciência de
separatividade em relação ao resto da humanidade, então elas são
apenas a serpente do eu inferior, reaparecendo sob uma forma mais
sutil. A qualquer momento esse eu pode adotar sua velha forma
grosseira e atacar tão ferozmente como aquele eu que inspira as
ações de um assassino, capaz de matar para obter riquezas ou por
raiva; ou de um político capaz de sacrificar a população pelos seus
próprios interesses ou pelos interesses do seu partido.
Na verdade, a ideia de perder o poder de ferir implica que a
serpente do eu inferior não é só paralisada, mas morta.
Quando ela é apenas desorientada ou induzida ao sono, ela
ressurge e o discípulo passa a usar o seu conhecimento e o seu
poder para os seus próprios fins pessoais, e então se torna um
discípulo dos muitos mestres das artes antievolutivas, porque o
caminho da destruição é muito largo e fácil, e pode ser encontrado
com os olhos fechados. Este é, evidentemente, o caminho da
destruição. Porque quando um indivíduo começa a viver para si
mesmo ele reduz o seu horizonte cada vez mais até que, no final, o
espaço de que dispõe é do tamanho de uma cabeça de alfinete.
Todos já vimos este fenômeno ocorrer na vida comum. Um homem
egoísta se isola; ele se torna menos interessante e menos agradável
para os outros. Trata-se de um espetáculo desagradável. As
pessoas se afastam de alguém que é muito egoísta como se o
indivíduo fosse um animal perigoso. O fato é ainda mais
desagradável quando ocorre em um plano superior da vida, e
quando o indivíduo tem os poderes de um conhecimento adquirido
ao longo de várias encarnações.
Por isso eu digo: faz uma pausa e pensa bem no limiar. Porque
se o pedido do neófito for feito sem uma completa purificação, ele
não chegará até o local de retiro do adepto divino, mas evocará as
forças terríveis que servem o lado obscuro da natureza humana.
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