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Habilidade 27
AUTORES:
Felipe Pereira Cunha | Gabriel Torres
IMAGENS:
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© Autores
CAPA:
Humberto Nunes
PROJETO GRÁFICO E
DIAGRAMAÇÃO:
Vânia Möller | Cristiano Marques
DIREITOS RESERVADOS:
© Felipe Pereira
HABILIDADE 27
Reconhecer os usos da norma padrão da língua portuguesa
nas diferentes situações de comunicação.
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“A língua paterna é a língua da Lei, sempre associada à figura do pai, inclusive nos postu-
lados de psicanálise freudiana. A língua materna – língua de mulher – sofre na maioria
das sociedades as mesmas depreciações dedicadas ao gênero feminino: é o lugar do
“erro”, do “desvio”, do “frágil’, do pouco confiável, do instável, do inconvenientemente
sensível e sensitivo. Ao pai cabe domar e domesticar esse idioma errático, conferindo-lhe
regras, regimentos, registros, regências, regulamentos – palavras todas derivadas de rex,
regis, ‘rei’, assim como recto, direcção, correcção, régua. É a língua do direito (<directu-,
“o que está reto’), erigida como lei linguística. A língua paterna é a língua da erecção, a
língua do rei, pai da nação, símbolo do Estado.”
A primeira grande tarefa a que precisamos nos nos incute) passava por quatro níveis de evolução
submeter é definir o que se entende por norma do saber: 1) logos, a linguagem portadora de
padrão da língua. Quais são os fundamentos razão, que daria acesso à organização da 2)
dessa normatização dos usos linguísticos? Desde psykhe – a mente, que, se elaborada, levaria
quando se determina o que é certo e o que é à compreensão da organização do 3) physys
errado no manuseio da língua? Para que(m) serve – o mundo natural e o comportamento dos
esse controle? corpos. Uma vez acessado o physis, estaríamos
aptos a conceber a organização do universo
Buscando traçar uma resposta a essas perguntas,
na sua totalidade, o 4)kosmos, palavra que
nos remetemos a Platão (428/427-348/347), um
significa ‘organização’, ‘harmonia’, ‘ordem’. A
dos nomes mais importantes da cultura ocidental.
própria palavra universo carrega uma ideia de
Evidentemente, não vamos nos ater a todos os per-
unidade. O universo é um todo organizado em
cursos filosóficos platônicos, lançando mão apenas
do seu dualismo característico. Para Platão, a opo-
si mesmo, perfeito, harmonioso, e só é possível
sição fundamental estava entre o mundo sensível alcançá-lo abandonando as experiências
(aquele que podemos sentir, tudo o que nos toca terrenas (ou partindo delas) em busca da
e que pode ser por nós tocado: os corpos, os sons, compreensão da magia organizadora da vida
os textos, etc.) e o mundo cognoscível (aquele que universal. É fácil perceber como o discurso
só pode ser apreendido de forma abstrata, sempre religioso se vale das concepções platônicas
desvinculado da realidade: o mundo das ideias, por para comprovar a existência de Deus: a força
isso ideal; um mundo metafísico, intocável, mental). criadora e mantenedora da ordem de todo o
universo, força essa que é única, completa,
O acesso ao conhecimento verdadeiro só se daria autônoma: onipresente, onisciente, onipotente
a partir do exercício da inteligência, do raciocínio – e exatamente por isso é e sempre será incom-
profundo, da meditação cognitiva, do esforço
preensível no nível da vida terrena.
mental; só assim seria possível acessar a essência
real das coisas e de si mesmo. O caminho rumo à O dualismo platônico dá origem a uma série de
verdadeira inteligência (a rota de saída da caverna: dualismos que foram decisivos nos fundamentos
da ilusão e da ignorância que o mundo sensível de toda a cultura ocidental:
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metafísico/físico
natureza/cultura
objetivo/subjetivo
social/individual
razão/emoção
sagrado/profano
universal/particular
virtual/real
etc.
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incertezas, das forças profanas, da pluralidade: da à criação de normas ideais, superiores, estáveis:
incapacidade de análise. Já a escrita apresentaria formas que corrigiriam a fala espontânea do povo,
uma estrutura muito mais apta ao estabelecimen- desregrada, instável, imperfeita, inferior.
to de normas legítimas e superiores. Na escrita,
Ao elaborar essa visão sobre sua própria língua,
reinava a estabilidade, a unicidade, a perfeição:
os alexandrinos incorrem em um erro técnico
o ideal, o analisável. Desse modo, para formular
aos olhos da Linguística atual: comparar mani-
sua grammatiké, os alexandrinos buscaram uma
festações linguísticas absolutamente diferentes
forma de língua ideal, adequada à elaboração de
entre si:
regrais gerais, inquestionáveis, universais. Para os
estudiosos, o grego falado em Alexandria (Egito, 1. a língua falada espontânea no cotidiano da
África) estava muito diferente do grego usado em Alexandria do século III a.C.
Atenas (Grécia, Europa), uma obviedade; eles es-
2. a língua escrita literária da Atenas do século
tavam tendo contato com o processo de variação
V a . C.
linguística: uma constante em toda e qualquer lín-
gua articulada. Foi a atribuição do valor negativo à E assim nasce o mito de que a língua da gramática
fala espontânea em Alexandria que causou a ne- é mais evoluída, elaborada, complexa, verdadeira
cessidade da criação de uma legislação linguística do que a língua falada, que é incerta, variável,
que determinasse a boa e única maneira legítima plural, inferior. Esse é o pensamento que vigorou
de utilizar a língua. Admiradores das obras gregas por mais de 2 mil anos em todo o Ocidente, e
clássicas, foi em Ilíada e Odisseia (século V a.C.) sabemos muito bem que a maioria das aulas
que os filólogos alexandrinos buscaram as formas de língua a que tivemos acesso na vida foram
linguísticas adequadas para servirem de modelo baseadas nesses preceitos.
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O PRECONCEITO LINGUÍSTICO
“O preconceito linguístico está ligado,
em boa medida, à confusão que foi Desde a primeira gramática da Língua Portuguesa (Grammatica
criada, no curso da história entre língua da Lingoagem Portuguesa, Fernão de Oliveira, 1536), fica
e gramática normativa. Nossa tarefa
claro o objetivo de enaltecer uma língua e um povo como
mais urgente é desfazer essa confusão:
superiores, sempre buscando um português ideal, elevado,
uma receita de bolo não é um bolo, o
perfeito, único. A grande maioria das gramáticas normativas
molde de um vestido não é um vestido,
um mapa-múndi não é o mundo... usadas nas escolas, hoje me dia, são baseadas em parâmetros
Também a gramática não é a língua. linguísticos literários para elaborar as “boas maneiras”
linguísticas. Os modelos de frases adequadas ao padrão que
A língua é um enorme iceberg lemos em gramáticas são Machado de Assis, José de Alencar,
flutuando no mar do tempo, e a Castro Alves, todas amostras de língua escrita de, no mínimo,
gramática normativa é a tentativa 100 anos atrás.
de descrever apenas a parcela mais
visível dele, a chamada norma culta. Em primeiro lugar, é preciso ficar claro que nenhum
Essa descrição, é claro, tem seu valor e falante nativo fala exatamente como a norma gramatical
seus méritos, mas é parcial e não pode determina. Nunca um ato de fala (por mais monitorado que
ser autoritariamente aplicada a todo seja) irá representar piamente todas as regras exigidas pela
o resto da língua. E é essa aplicação gramática tradicional.
autoritária, intolerante, repressiva
que impera na ideologia geradora do O preconceito linguístico entra em cena sempre que se julga
preconceito linguístico.” como inferior alguém que manifeste sua língua de forma
diferente da norma considerada padrão, que é aquela
Marcos Bagno. O preconceito
linguístico. mais próxima (nunca igual) das regras (sempre ideais) da
gramática normativa. Se as regras do português padrão são
desvinculadas da língua verdadeiramente usada, dominar
“Os delinquentes da língua portuguesa essas regras é um desafio para qualquer falante nativo. Isto
fazem do princípio “quem faz a língua é, é preciso estudo sistemático, educação de qualidade,
é o povo” verdadeiro mote para tempo disponível, e sabemos muito bem qual a parcela
justificar o desprezo de seu estudo,
da sociedade que tem condições materiais de alcançar
de sua gramática, de seu vocabulário
o domínio dessas leis linguísticas que não têm nenhum
esquecido de que a fala de escola
compromisso com a realidade linguística de quem as estuda.
é que ocasiona a transformação, a
deterioração, o apodrecimento de uma Sendo assim, a população pobre, de periferia, negra em
língua. Cozinheiras, babás, engraxates, sua maioria, fica desprovida dos instrumentos necessários
trombadinhas, vagabundos, criminosos
para o pleno domínio da norma padrão, e são julgadas
é que devem figurar, segundo esses
inferiores, subdesenvolvidas, incapazes cognitivamente por
derrotistas, como verdadeiros mestres
não dominarem uma variedade linguística completamente
de nossa sintaxe e legítimos defensores
de nosso vocabulário.”
desvinculada da realidade sociolinguística dessas pessoas.
Como não dominam a normal culta, são considerados
Napoleão Mendes de Almeida aculturados.
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ideologicamente, de repressão, de apagamento, comida pra nós?” são frases absolutamente
de dominação de determinados povos, que foram, comuns em toda as classes sociais. No entanto,
ao longo do tempo, atacados, escravizados, o uso da forma pronominal “menas” é
desterritorializados, estigmatizados. Dessa completamente julgada, perseguida, pelo fato de
forma, todas aquelas manifestações linguísticas que pertence ao vocabulário da classe mais pobre
que “nos doem os ouvidos” são as usadas por da sociedade brasileira. Mesmo quando alguém
brasileiros que vivem à margem da sociedade da classe média fala “menas” (por distração), é
branca, burguesa, cristã, monetarizada. Exemplos rapidamente corrigida por seus ouvintes, como
de usos linguísticos que fogem às regras da se tivessem dizendo a ela que esse era um mau
gramática normativa são vistos todos os dias em comportamento linguístico, algo que não deve
setores sociais os mais distintos. No entanto, os ser repetido, para que não se aproxime do que há
“desvios” que nos incomodam são os ditos por de pior na estrutura social: a pobreza e as pessoas
determinados tipos de cidadão. Por exemplo, o que dela não conseguem fugir.
uso do verbo “ter” no lugar do verbo “haver” é
Julgar alguém pela sua fala é um dos julgamentos
um erro normativo, mas é amplamente aceito;
mais covardes que se podem fazer, pois,
não nos causa estranheza: “tem gente aí?”, “tem
enquanto fala, todo sujeito entra em um grau de
funcionamento expressivo altamente intuitivo,
simbólico, cognitivo, intencional, potente. E julgar
essa manifestação a partir de regras imutáveis
(sempre temporariamente imutáveis) é um ato
de violência. Ninguém merece ter sua expressão
linguística vigiada, controlada, reprimida. E de
fato não são todos que passam por isso; os sujeitos
advindos das classes dominantes são instruídos
desde cedo pela família, passando pela escola até
a universidade, a utilizar a língua “corretamente”,
a se comportar da forma adequada, a manusear
os instrumentos de ascensão social. O problema
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é que esse discurso, que legitima um tipo de o racismo está impregnado em nossa estrutura
uso social e um tipo de gente que o alcança, cultural.
acaba tirando a dignidade das manifestações
Algumas crenças são chamadas de ‘religiões’,
linguísticas e culturais de certas camadas sociais
outras de ‘macumba’. Algumas práticas sociais são
que sempre foram estigmatizadas. Os casos de chamadas de ‘cultura’, outras de ‘baderna’. Alguns
índios sendo levados a Europa no séc. XVI para manifestantes são chamados de ‘manifestantes’,
ficarem à mostra em praça pública, assim como outros de ‘marginais’. Alguns ‘bandidos’ são
africanos que foram igualmente expostos como chamados de ‘mau-caráter’, outros de ‘vagabundo’.
animais no séc. XX. O modo como negros de Algumas músicas são chamadas de ‘cultura’, outras
periferia são tratados pela polícia brasileira. A de ‘contracultura’. Alguns usos linguísticos são
escassez de alunos negros nos pré-vestibulares chamados de ‘padrão’, outros de ‘gíria’, ‘dialeto’,
de Porto Alegre. Tudo isso são exemplos de como ‘má-expressão’, etc.
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“O plano linguístico admite metáfora hierárquica de primeira ordem: o contato
entre línguas geraria simplificação, enquanto a deriva românica apresenta forças.
Não precisa ir muito longe para perceber que essa metáfora da crioulização como
simplificação das línguas está associada à metáfora de infantilização do negro. O
crioulo como termo pejorativo para a população africana levada para as Américas
é aplicado sem crítica às práticas linguísticas influenciadas por falantes africanos,
para designar explicitamente práticas (tidas como) incompletas. (...)
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