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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

Valéria Gomes Ignácio da Silva

A HERMENÊUTICA DE SCHLEIERMACHER,
O SUJEITO E A LINGUAGEM

Trabalho final de “Introdução à Hermenêutica:


distância histórica e elaboração do sentido”,
como exigência parcial para a conclusão da
disciplina.
Profa. Dra. Jeanne Marie Gagnebin

São Paulo
Novembro 2018
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A hermenêutica de Schleiermacher,
o sujeito e a linguagem

Adotar a perspectiva do sujeito no processo de compreensão, premissa que orienta


os estudos de Friedrich Schleiermacher (1768-1834), é um importante marco na conquista
de autonomia pela disciplina da hermenêutica. O teólogo, filólogo e filósofo alemão
assinalava a provisoriedade do saber no percurso de compreensão e a relação direta desta
com a história e a linguagem.
Herdeiro de uma tradição que se limitava à interpretação e à tradução de textos
gregos clássicos e bíblicos, propõe o deslocamento da compreensão do texto para a
compreensão do sujeito, em diálogo com o idealismo alemão. A sistematização de regras
esparsas e práticas segmentadas de interpretação que Schleiermacher toma como
propósito nos começos do século XIX é determinante para o desenvolvimento das teorias
fundadoras da moderna hermenêutica.
Antes dele, Agostinho de Hipona (354-430), cuja formação era retórica, preconiza
a unidade entre signos e coisas e a coincidência entre verdade e sentido nas escrituras
sagradas. Primeiro pensador a perceber na narrativa o gesto de procura do sentido, afirma,
nas Confissões [397], a interlocução entre o divino e o indivíduo, propondo a passagem
do procedimento retórico para a linguagem da fé. Na tensão entre a verdade e a sofística,
o sentido é compreendido como conceito teológico e o método que Agostinho propõe
para dirimir as dificuldades de compreensão em relação à Bíblia, convencer e converter
os leitores fundamenta-se na diferenciação entre signo literal e alegórico (filológico,
moral e místico), sendo o sentido figurado indicado quando o sentido próprio escapa à
compreensão da verdade divina.
Com a crítica renascentista à arbitrariedade da interpretação alegórica e o
desenvolvimento dos estudos de filologia, Baruch de Espinosa (1632-1677) insurge-se
contra a autoridade da tradição e, em seus estudos, diferencia os textos a partir de seu
propósito: aqueles baseados estritamente na experiência e dirigidos ao convencimento e
os filosóficos e matemáticos, orientados pelo pensamento dedutivo e pelo método. Em
seu Tratado Teológico-Político [1675], diferencia o juízo precipitado, ou pré-conceito,
do conhecimento da verdade, estabelecendo três critérios principais para a interpretação
e a busca do sentido: gramaticais e linguísticos, estruturais e comparativos no uso das
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palavras, e históricos em relação ao autor e ao cânone. Para Espinosa, o método


filológico-histórico é fundamento essencial tanto na interpretação do texto bíblico como
de outras narrativas.
Schleiermacher compartilha do mesmo pressuposto, de que, além da
materialidade do texto, a historicidade dos sujeitos autor e leitor é condição indispensável.
Mas seu projeto de fundamentar uma teoria geral da hermenêutica é mais ambicioso. A
autoridade da tradição é mais uma vez abalada pelo novo deslocamento por ele proposto:
a substituição da explicação pela compreensão do discurso estranho, nativo ou
estrangeiro, pautada por uma atitude crítica empenhada em reconhecer, nos textos,
aspectos da construção na língua e, a partir dessa aproximação, reformular o ato criador,
dissipando mal-entendidos.
Ele afirma, em discurso acadêmico realizado em 1829, que, para além das
manifestações habituais da fala comum, muitas das dificuldades da interpretação
hermenêutica eram resolvidas de forma arbitrária e que a normatização disponível era
semelhante a “coleções de regras particulares”. Seu esforço para construir uma
metodologia propõe, ao contrário das práticas então em vigor, o sujeito e a linguagem
como eixos, a recusa à exclusividade dos procedimentos divinatórios e a observação de
discursos não limitados a produções escritas.
Schleiermacher traduziu, nas primeiras décadas do século XIX, os diálogos de
Platão, propondo uma ordenação diversa das anteriores a partir de um questionamento
sobre a sua autenticidade, do estudo das particularidades linguísticas do grego e de um
cotejo com textos de Aristóteles. Rigor e questionamento contínuos sobre a prática da
interpretação orientam seus estudos sobre a tradução de línguas estrangeiras, pautados
pelas regras da compreensão e da linguagem.
Tomamos, aqui, um fragmento do ensaio “Sobre os diferentes métodos de
tradução”, de 1913, como recorte para uma breve reflexão.

Sempre que o discurso que a tradução deve expressar não estiver ligado
a objetos ou situações exteriores que estão bem diante dos olhos, onde,
pois, aquele que fala pensa de maneira mais ou menos independente e
quer então expressar-se, o falante se encontra numa dupla relação com
a língua, e seu discurso só será bem entendido na medida em que essa
relação for bem compreendida. Por um lado, cada homem é dominado
pela língua que fala (in der Gewalt der Sprache), ele e todo o seu
pensamento são um produto dessa mesma. Ele não pode pensar com
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total precisão nada que estivesse fora dos limites dela; a configuração
dos seus conceitos, o modo e os limites de sua combinabilidade lhe são
traçados de antemão pela língua na qual nasceu e foi educado; nosso
entendimento e nossa imaginação são ligados a ela. Mas, por outro lado,
cada homem que pensa de maneira livre e intelectualmente
independente também contribui à formação da língua. (2001, p. 35-36).

A compreensão do discurso requer, segundo Schleiermacher, a combinação da


língua, em seus elementos formais e de espírito, e da ação particular do enunciador nas
circunstâncias em que se performa seu pensamento. Na arena de tradução de uma língua
estrangeira, o desafio do tradutor se amplia, pois confrontam-se dois indivíduos, o que
vive a própria língua e a transforma, e aquele que pretende penetrar a “expressão viva” e
a dimensão histórica da enunciação do outro. O desafio da transmissão é tanto maior na
medida em que a língua de origem é estrangeira e distante.
Nas traduções da arte e da ciência – ao contrário da interpretação de certa forma
mecânica que acontece nos contextos jurídico e informativo –, as particularidades do
autor e da língua em que se manifesta afastam-se dos objetos para ser enunciação. Não
há, necessariamente, correspondência entre palavras, mas a pretensão e o desejo de se
reconstituir o sentido original do discurso do outro.
Como compreender o estranho que habita a intenção e a dimensão da fabulação
do outro? Para Schleiermacher, isso somente se torna factível se o tradutor privilegiar o
objetivo de oferecer “uma imagem e um prazer tais como a leitura da obra no original
oferece ao homem admirador e conhecedor” (2001, p. 49). A partir dessa premissa, a
língua estrangeira deverá preservar sua característica estranha e é indispensável a
consciência das diferenças que lhe são peculiares, uma vez que a materialidade da palavra
raras vezes encontra uma versão na equivalência, especialmente em relação a conceitos
de conteúdo filosófico.
Dadas as dificuldades inerentes a essa construção, os procedimentos mais comuns
diante dos embaraços provocados pela língua estrangeira levam à paráfrase e à imitação.
A paráfrase “quer dominar a irracionalidade das línguas” (2001, p. 41), afirma
Schleiermacher, e, por meio de complementos e comentários, reproduz o conteúdo, mas
prescinde da impressão. Do discurso vivo, leva à perda do espírito das línguas, a original
e a traduzida. Já a imitação “se curva ante a irracionalidade das línguas” (2001, p. 41), ao
lançar mão de elementos diferentes do original, comprometendo não apenas o espírito da
língua original, mas a identidade da obra.
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Sem o domínio do objeto, para se tomar como perspectiva fundadora da tarefa de


tradução a ação e a verdade do sujeito que enuncia e, por consequência, a língua que o
determina, é imperioso transmitir o espírito da língua de origem na particularidade do
autor original. Na reflexão do filósofo, para favorecer a compreensão dos leitores a quem
se destina, o tradutor pode se guiar por dois caminhos, de levar o leitor ao autor
estrangeiro ou domesticar o autor para facilitar o entendimento do leitor na língua de
recepção. Apenas a primeira escolha será capaz de apresentar ao leitor a estranheza da
língua que lhe falta porque a força formadora da linguagem está intimamente relacionada
às particularidades do seu povo e cada sujeito irá produzir de forma original apenas na
língua materna, na qual formou-se e educou-se. “Pois se o verdadeiro espírito do autor é
a mãe das obras, que num sentido maior pertencem à ciência e à arte, então a língua de
sua pátria é o pai delas.” (2001, p. 75).
No percurso para identificar as dificuldades e a aplicabilidade de cada um dos
métodos, Schleiermacher aponta que a compreensão do autor não deve ser suficiente
como norma.

Como a língua é algo histórico, não há um verdadeiro sentido para ela,


sem um sentido para sua história. Línguas não são inventadas, e todo o
trabalho puramente arbitrário nelas é tolice; mas elas são descobertas
pouco a pouco, e ciência e arte são as energias através das quais essa
descoberta é incentivada e aperfeiçoada. (2001, p. 51)

Para além das diferenças estruturais dos sistemas de conceitos e signos das línguas
e das combinações daí resultantes, há que se considerar ainda aspectos rítmicos e
melódicos, aos quais se colocam em oposição a fidelidade dialética e gramatical. Nessa
difícil empreitada, em que muitas vezes os critérios de verificabilidade são subjetivos, há
que se considerar alguma flexibilização na língua de recepção para alcançar a
representação do estranho, sem, entretanto, comprometer a diferença expressa na língua
de origem, o não familiar da sua condição estrangeira.
Os resultados da pesquisa de Schleiermacher nos conduzem, para além do caráter
linguístico da tarefa de tradução, e diante da singularidade do espírito de cada língua, ao
sujeito que vive a língua, em sua dimensão histórica e identitária, implicando, por isso
mesmo, relações de alteridade. O homem “dominado pela língua que fala”, assim como
aquele que “pensa de maneira livre e intelectualmente independente” são sujeitos de
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criação e reformulação no processo de compreensão. E somente o entendimento dessa


dimensão plural pode permitir a transposição de obras no tempo e no espaço, assegurando
seu prolongamento no contato com novos leitores e a troca cultural.
Ao se pensar a língua e deslocar-se pelos territórios de pertencimento e
distanciamento que nela se alternam, a interrogação e a desconstrução serão
procedimentos essenciais para compreender o pensamento do outro tornado discurso.
Nessa transmissão, que tem sempre como horizonte o contexto histórico, infere-se a
presença tanto da individualidade e subjetividade que originam o ato criador do
pensamento do autor como da potencial disposição do tradutor para recriá-lo, valendo-se,
nesse processo, da subjetividade e também da objetividade. Nos dois sentidos, a língua
se renova e se transforma.

Referências

AGOSTINHO, Santo. Confissões. Tradução e prefácio de Lorenzo Mammi. São Paulo:


Penguin Classics Companhia das Letras, 2017.

BRAIDA, Celso Reni. “Apresentação”. In: SCHLEIERMARCHER, Friedrich D. E.


Hermenêutica – Arte e técnica da interpretação. Tradução Celso Reni Braida.
Petrópolis: Vozes, 1999. p. 7-22.

ESPINOSA, Baruch de. Tratado Teológico-Político. Tradução, introdução e notas de


Diogo Pires Aurélio. Lisboa: Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 2004. (Clássicos de
Filosofia).

SCHLEIERMARCHER, Friedrich D. E. “Discursos acadêmicos [1829] – Sobre o


conceito de hermenêutica, com referência às indicações de F. A. Wolf e ao Compêndio
de Ast”. In: SCHLEIERMARCHER, Friedrich D. E. Hermenêutica – Arte e técnica da
interpretação. Tradução e apresentação de Celso Reni Braida. Petrópolis: Vozes, 1999.
p. 23-47.

SCHLEIERMARCHER, Friedrich D. E. “Sobre os Diferentes Métodos de Tradução”.


In: HEIDERMANN, Werner (Org.). Clássicos da Teoria da Tradução. Florianópolis:
UFSC, Núcleo de Tradução, 2001. (Antologia bilíngue, alemão-português; v. 1). p. 26-
85.

Valéria Gomes Ignácio da Silva


Doutoranda em Literatura e Crítica Literária
Novembro/2018

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