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Noite de chuva

Iagho Dacier Lobato

Nestor apoia-se na bengala e senta-se na cadeira de balanço, sabe que o pôr-do-sol na


janela está batendo na testa, mas não se incomoda. O doutor disse que na cidade não teria
jeito, então o levaram ao campo. Já estivera ali, talvez num sonho, mas os rostos dos
empregados não eram os mesmos; quer dizer, um ou outro não lhe era estranho, talvez mais
jovem, talvez mais vivo. Nuvens escurecem o céu, vai chover. Ao longe, rebanhos de búfalos
estendem-se ao redor do lago seco, o vento é forte.
Olha o retrato sob o crucifixo na parede: um homem, chapéu de palha trançada, barba e
escapulário, carrega uma criança. Qual dos dois era ele? O rosto é familiar. Só poderia ser o
menino, o adulto não tem a perna torta. Quando alguém acende a lamparina sobre a foto, tudo
fica mais claro. Perguntaram-lhe o que foi, não respondia. Agora entende.
Os borrões do campo pedroso e seco na testa dava lugar, de pouco em pouco, ao pântano
que invadia a paisagem no inverno; o vento úmido trazia consigo as caturras que eram
aprisionadas em garrafas esvaziadas. Fora há muito tempo. Nestor dizia que eram suas
fazendas: as caturras claras eram as cabeças de gado, o ouro branco; as escuras eram os
búfalos, as pérolas negras, e complementava aos parentes e amigos de seu pai, Coronel
Antônio, que eles eram os únicos capazes de domar aquele bicho selvagem.
Uns diziam que os búfalos chegaram na Ilha Grande após um navio oriundo das Guianas
naufragar lá pelas bandas de Chaves, outros eram mais desconfiados, falavam que um homem
muito rico importou um pequeno rebanho e depois largou a mão, quando emigrou para o sul.
Havia quem dissesse, no entanto, que o próprio Bom Deus tirou o búfalo das Índias para dar
de comer aos marajoaras. Por muito tempo, no Círio ou na festa de São Sebastião, iam atrás
de búfalos soltos na várzea. Traziam a fêmea à fazenda, faziam-na de leiteira. O macho,
contudo, era indomável, tinha que ser morto ali mesmo. Os vaqueiros pediam a intercessão
dos santos e partiam para cima, o bicho disparava, levantava lama enquanto corria com os
chifres arqueados, se o laçassem, aleluia, se não conseguissem, Deus-nos-acuda. Foi o pai de
Nestor o primeiro, com a mera pisada no chão, que domou-o e fez dele seu transporte. Ao
longe, quem o via, pensava que homem e animal eram um só corpo, tamanha a sintonia.
Mas essa era outra história. Foi numa noite chuvosa igual àquela, os peões do Retiro-
Grande queixavam-se de um búfalo arribado à solta, tinha chifres ponteiros, pêlo rosilho,
olhos vermelhos de sangue, não havia quem segurasse, desviava até de bala de carabina. O
coronel quis ver pessoalmente, quem pegasse a quimera teria um banquete com tudo a que se
tem direito. Colocou o chapéu de palha trançada e mandou selar o baio, partiram na matinada.
Quando acharam o novilho na beira de um igarapé, ele olhou para o castanho e avançou no
cardo, os chifres rasgaram a sela de um e acertaram o lombo de outro, de raspão. Um dos
vaqueiros caiu do cavalo. Quem não se feriu foi atrás do bicho, até que o encurralaram na
mata fechada. Tiraram os chicotes do alforje, ia sofrer, coronel pediu para que esperassem,
ninguém nunca soube o motivo. Ele apeou do baio, olhou nos olhos do búfalo ofegante. Foi
se aproximando, o bicho amansou. Coronel não deixou que o matassem; dias depois mandou
providenciar uma sela larga, nunca mais montou em cavalos. Não demorou muito, depois
disso o rebanho cresceu.
Nestor ouvia aquelas histórias atentamente, perguntava se era verdade. Seu pai não dizia
nem que sim nem que não, mantinha o tom sério, as sobrancelhas cerradas e o olhos negros
indiferentes. Quando seria capaz de montar? “Chegará o tempo, você saberá. Montar
qualquer um consegue, basta pôr o pé no estribo e apoiar-se. Não se trata apenas disso”. À luz
das lamparinas, o escapulário no peito do coronel cintilava, em dia de chuva não havia o que
fazer senão ficar em casa e contar histórias.
Agora estava a refletir em seu coração aquelas novas memórias. Onde estás? — a voz não
era dele, o perseguia há muito tempo, mas era ignorada. Olha fixamente para o crucifixo, dá,
finalmente, ouvidos, responde-lhe que estava aqui. “É o crucifixo que velou seu bisavô, seu
avô e todos de nossa família, pelos séculos sem fim”. Então vê-se de novo como menino: foi
em uma noite chuvosa, fazendo chuva ou sol, Coronel sairia antes do galo cantar. Nestor não
entendia. “Há coisas que só podem ser entendidas depois de muito tempo; não deverias estar
aqui, mas já que estás, deverás aprender a lidar com esse fardo”.
Continua sem entender. O que fez o Coronel chegar a esse ponto? Lembra-se que em
Belém uma tosse o acometera uma semana antes de partir. Assim que desembarcaram no
porto, uma multidão veio até eles, pediam por dinheiro, favores, tudo. O pai de Nestor
costumava ouví-los com atenção, e sempre colocava o filho à serviço daquela gente. Mas
naquele dia, não queria conversa. Estava pálido, as mãos escondiam a barba manchada de
sangue. Às duras custas chegaram na fazenda, puseram-se cedo para dormir.
Via a sombra do crucifixo de marfim enquanto balançava a rede. Na janela, noite alta de
silêncio e lua, muita nuvem no céu, vaga-lumes confundiam-se com as poucas estrelas.
Nestor não queria dormir, não sabia do que se tratava aquilo tudo, mas tinha esperança de que
se reencontariam em breve, um último abraço, um último sonho não lhe faria mal. Quando se
deu conta, o pai partia montado no rosilho.
Nestor pegou sua sela e correu ao estábulo. Chovia. Tropeçou na lama, era muito pesada.
Se o baio o ajudasse, conseguiria alcançar o pai, mas o cavalo o olhava desconfiado, o
menino mal alcançava o estribo. Escorava-se no couro da sela e fazia força na perna. Nada.
Tentou uma vez, duas vezes, na terceira o cavalo relinchou, a sela pendeu para a esquerda —
foi assim que conseguiu. Torto, batia tanto no ventre que teve a impressão de tê-lo visto
inchado, prestes a sangrar. O campo estava muito alagado, as poças formavam ravinas
vermelhas de lama, o baio tinha medo, não conseguia disparar. Assim mais atrapalhava do
que ajudava, e Nestor continuava a batê-lo, até que foi do trote ao galope. Precisava alcançá-
los, mas como? A chuva engrossava, o céu negro já não era da madrugada, era das nuvens,
dos trovões que vez ou outra os espantavam. As gotas de suor escorriam junto a chuva sobre
o rosto. Apoiou-se na crineira para não soltar mais: saltaram a primeira ravina, os cascos
caíram firmes na grama, continuaram.
Estavam próximos, Nestor chamava pelo pai, não lhe respondia; era estranho: ele estava
altivo, corado, nem parecia que na noite anterior vomitara sangue; quando achou que
conseguiria o cavalo empinou, o relincho soou grave e abafado, Nestor viu apenas o clarão,
tudo parecia acontecer lentamente, desprendeu-se da crineira e escorregou na sela, mas um de
seus pés ficou preso ao estribo. Caiu sobre a terra enlamaçada e não teve forças nem tempo
para mover-se, o cavalo tombou sobre suas pernas. A última imagem antes do desmaio foi a
de seu pai entrando na mata fechada.
Por décadas negaram-lhe tudo aquilo — quem tinha visto desconversava, usava meias-
palavras, são histórias que o povo conta — até Nestor sucumbir: era tudo fruto da
imaginação, de um trauma, e logo depois passou a se perguntar quem sou eu? onde estou? Na
verdade, quem perguntava-lhe era a voz estranha que ressoava feito um sino na mente. A
perna deformada passou a ser uma lembrança remota de um episódio que volta e meia
retornava nos sonhos. Chama agora por sua gente, quem está aí? Ouve, ao longe, o trote de
um cavalo se aproximando, quem será a essa hora? Escora-se na janela e vê um baio
esperando-o no portão. Apoia-se na bengala, arrasta os pés, o assoalho estala. Depois de
montado, ao aproximar-se da mata fechada, vê a silhueta de um búfalo e um homem, uma só
coisa, lhe esperando.
A aurora serena clareia o céu. No quarto principal, cama vazia, não havia mais ninguém,
somente o retrato abaixo do crucifixo.

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