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O primeiro Natal do pardalito

Aqui há coisa de três semanas, um pardal do Rossio, daqueles que escolheram para poiso e morada os ramos
das árvores que circundam a dita praça, começou assim a história que vamos contar:

— Companheiros pardais, pardalitos e pardalões, escutem todos, a notícia é importante.

Juntou-se a pardalada. Quem ali passe todas as tardes, à hora da saída dos empregos, não deve estranhar o
arruído que vem das árvores despidas de folha, mas cheias, cheiinhas de passarinhos tagarelas. As pessoas
andam na sua vida muito apressadas, e nem sequer dão conta da chilreada doida dos pardais:

“Chega-te para lá! Aí sou eu”

“Olha o pardalão a querer tomar-me o lugar…”.

“Ai que ainda te dou uma bicada…”.

“Não me provoques!”.

“Toma que é para saberes”.

“Deixa-me em paz”.

Mas voltemos à nossa história.

Oiçamos o que o pardal tem para dizer:

— Peço silêncio, se não calo-me — piava ele, tentando impor a ordem à assembleia.

Demorou o seu tempo.

Os pardais são uns espalhafatosos e uns gralhadores incorrigíveis.

— A notícia que vos trago importa a todos. Há bocadinho, estava eu poisado num ramo baixo, e ouvi uma
conversa entre um cauteleiro e um engraxador. Sabem do que estavam a falar?

— De futebol — arriscou um.

— Nada disso. Estavam a falar da Lotaria do Natal, imaginem! Portanto, o Natal está à porta, meus amigos.
Espero que saibam o que isto significa…

Os pardais mais jovens não sabiam, mas calcularam que devia ser coisa grave, porque os pardais velhos,
mesmo os mais gaiteiros e risonhos, ficaram, subitamente, de bico caído. As expressões eram de alarme e
desalento:

— Temos de mudar de vida.

— Que desconforto!

— Deviam ter-nos avisado.

— O tempo não está para grandes voos.

E cada qual debandou para o seu ramo.

Neste ponto da história, parece-nos indispensável ouvir a fala de um avô pardal para o seu neto que, tal como
vocês,
amigos leitores, não percebera patavina do sucedido.
— Na quadra do Natal, que é uma grande festa dos homens — contava ele — multiplicam-se e crescem as
luminárias por toda a parte. Nesta praça, então nem queiras saber! Fica tudo cheio de luzes e luzinhas de
muitas cores, amarelas, azuis, vermelhas, verdes, que nos põem tontos. Onde os homens encontram um sítio
para pendurar uma daquelas pêras de vidro que deita luz, penduram.

— Deve ser bonito — observou o neto.

— Bonito talvez seja, mas não para nós. Aparecem fios por toda a parte e, nos ramos das nossas árvores,
estendem tantos, com as tais pêras penduradas, que ninguém se entende. Há dois anos, aproximei-me de
uma dessas pêras, que se tinha partido, e apanhei um arrepio pelo corpo todo que julguei que me ficava de
vez!

— Então para onde vão os pardais passar o Natal? — perguntou o pardalito, atarantado.

— Saltinho aqui, saltinho acolá, alguns escondem-se numas palmeiras, lá para cima, num sítio que os da
cidade chamam Avenida. Outros conseguem chegar a um jardim, que me dizem ser muito tranquilo e
saudável, um tal Jardim Botânico ou coisa parecida.

— E nós, avô?

— Nós ficamos. Podíamos ir para um telhado próximo, se não andassem por lá os gatos que têm olhos mais
perigosos do que todas as luminárias juntas. Olha, naturalmente, vamos para um sítio sossegado que eu
conheço, num buraco daquele edifício, ali, no cimo da praça. É um bocado desabrigado e pouco cómodo, mas
vais poder dizer, daqui em diante, que dormiste no Teatro Nacional…

Assim que chegaram os electricistas com as escadas, os cabos e os fios, a pardalada sumiu-se…

Numa destas noites, o pardalito deixou o avô a dormir com a cabeça debaixo da asa, e foi dar uma voltinha
pelos arredores do seu novo poiso. O Rossio silencioso e exuberantemente iluminado pareceu-lhe um jardim
de sonho.

— Tanta luz de tanta cor! — exclamou.

Nesse momento, um avião sobrevoava a cidade, em direcção ao aeroporto. No escuro do céu só se distinguia
as luzes vermelhas da cauda.

— Olha, lá vão duas luzes a fugir…

E dispunha-se a voar atrás delas, se o avô não tivesse acordado, entretanto.

— Para onde ias? — perguntou-lhe ele.

O pardalito explicou. Comentário do velho pardal:

— Que patetice! Ainda tens muito que aprender, pequeno, até te transformares num pardalão sabido!

É o que nós também achamos, ao cabo desta história.

António Torrado
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A estrela de prata
Numa árvore que eu cá sei – que nós sabemos – estão uma estrela de prata e uma bola de cristal.
— O que fazemos aqui? — perguntou a estrela.
— Estamos a enfeitar — respondeu a bola.
— O que é enfeitar? — perguntou a estrela.
— É fazer vista, ornamentar, alindar… — respondeu a bola de cristal.
Passou-se um tempo e a estrela perguntou de novo:
— Porque estamos a enfeitar?
— Porque esta árvore não é como as outras. Os frutos dela são raros. Aparecem um dia, luzem o seu quê,
conforme sabem ou podem, e depois são colhidos e guardados, até para o ano.
A bola de cristal tinha muita experiência de outros Natais, ao passo que a estrela era nova, de prata fresca, e
não sabia quase nada. Mas tinha ouvido falar que havia estrelas cadentes, estrelas que caem do céu e no céu
desaparecem, num sopro de luz.
— Não serei uma dessas? — perguntou à bola.
— Talvez sejas, talvez não sejas… Mas não experimentes.
Passou-se um tempo mais, e a estrela guardou para si aquela ideia, uma ideia pequenina. “Não
experimentes”, dissera-lhe a bola. E se experimentasse? Foi o que fez.
Caiu, num susto, mas como era leve, inocente e frágil, uma corrente de ar, vinda de uma porta aberta,
algures, levou-a consigo.
Levou-a consigo e fê-la poisar, sem estrago, no fofo musgo.
— Olha, é a estrela da gruta — disse alguém que estava a armar o presépio.
E estrela do presépio ficou.
Donde estava, onde a puseram, via o presépio, os pastores, os reis magos, as lavadeiras com a trouxa à
cabeça, as leiteiras com a bilha à cinta, os vagabundos, o moleiro, o azeiteiro e todo o povo do presépio e
mais as pessoas de carne e osso, que vinham admirar aquela lindeza, sorrir para o Menino Jesus e olhar para
a estrela, suspensa do alto da gruta.
Estrela de oito pontas que era, a apontar em todas as direcções, nem ela sabia para onde, brilhou imenso.
Brilhou o mais que pôde.
Para o ano, a estrela de prata já tem muito que contar à bola de cristal.

António Torrado

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Adaptação

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