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PERIGOSAS NACIONAIS

Mila Wander
2018

PERIGOSAS ACHERON
PERIGOSAS NACIONAIS

Copyright @ 2018 Mila Wander


A cópia total ou parcial desta obra é proibida

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Ao surpreendente Universo.

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Índice
1
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5
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7
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Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora

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Era tudo tão brilhoso que os meus olhos mal


conseguiam se acostumar; as luzes fluorescentes
encandeavam e me deixavam constantemente tonta.
Eu me sentia perdida porque, há apenas um
segundo, corria com liberdade pelo vasto milharal
da fazenda, trajando as botas favoritas que o meu
pai tinha me dado no meu aniversário de seis anos.
Desde que aprendi a andar, circulava dentro dos
limites da cerca, encontrando bichos, plantas e
trabalhadores. Conhecia aquelas terras como a
palma da minha mão, e com certeza não havia nada
que justificasse aquelas luzes.
Papai me dizia para nunca explorar a fazenda à

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noite, pois a escuridão trazia alguns perigos como,


por exemplo, cobras peçonhentas. Eu não tinha
medo delas. Nunca temi nenhum animal que
cruzasse as fronteiras das terras do meu pai. Os
bois, as vacas, as ovelhas, as galinhas e até mesmo
os insetos; eu me considerava a melhor amiga de
todos eles. Portanto, não havia o que temer.
Mas aquelas luzes... Jamais tinha visto nada
igual.
Caminhei até elas, alimentando a curiosidade
que sempre me foi nata. Dona Margarida, a
cozinheira da família, dizia que a minha
curiosidade podia ser perigosa, mas Seu Frederico,
o melhor domador de cavalos da região, retrucava,
falando que era ótimo que eu fosse uma menina
com sede de saber mais. Eu não escutava nenhum
dos dois, já que eles só viviam discutindo mesmo e,
um dia, tinha os flagrado aos beijos por detrás de
um pé de goiaba. Aquela foi a cena mais bizarra
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que eu tinha presenciado em seis anos, tirando,


claro, aquelas luzes.
— Alô? Tem alguém aí? — Cruzei alguns
arbustos que ficavam entre o milharal e a cerca
mais próxima. Eu sabia que ali perto tinha um pé de
urtiga, logo, permaneci atenta a cada passo que eu
dava na direção da sinistra luminosidade.
Eu já tinha chamado o nome de todos os
funcionários da fazenda, mas nenhum deles havia
respondido. Aproximei-me da luz o máximo que
pude, como se fosse possível tocar o sol com as
pontas dos dedos. Uma superfície gelada foi sentida
de imediato, fazendo-me arrepiar. Como o sol
poderia ser tão frio? Não era possível que tamanha
luz viesse do astro-rei. Tia Carolaine, minha
professora da segunda série, explicava e repetia que
o sol era muito quente, tanto que nenhum humano
seria capaz de chegar tão perto.
De repente, mesmo sem saber do que se
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tratava, fui tragada pela luz. O chão foi retirado dos


pés e me senti flutuando como um dos tantos
vagalumes que enfeitavam as noites da fazenda.
Em poucos segundos, simplesmente adormeci no
ar, como um passarinho preguiçoso que não
esperou a hora de chegar ao seu ninho.
Borrões indefinidos passaram pela minha
visão, mas era como se eu não tivesse qualquer
capacidade de discernir o que estava sendo visto.
Haviam botões como no pequeno avião do Seu
Otacílio, o dono muito rico da fazenda vizinha, que
tinha me deixado entrar na cabine só para tirar uma
foto. No entanto, aquele lugar não parecia ser tão
pequeno. Alguém remexia o meu tronco como o
Seu Nicolau, médico da cidade, fazia toda vez que
eu pegava uma gripe. Eu não estava doente, logo,
não entendia porque estava sendo analisada.
Depois da inusitada consulta, senti meu
corpo sendo carregado, até que fui colocada em
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uma espécie de gaiola. Pelo menos era como


pareciam aquelas grades prateadas ao meu redor.
Chamei pelo meu pai, porém não obtive resposta.
Alguém me mandou ficar em silêncio. A voz era
esquisita, como se a pessoa tivesse muita
dificuldade de pronunciar um simples: “calada!”.
Eu não era capaz de obedecê-la. Às vezes meu pai
também me pedia silêncio, principalmente quando
eu tinha descoberto alguma coisa nova, e eu nunca
o levava a sério. Insistia até que escutasse de uma
vez. Sempre dava certo, se quer saber.
Por este motivo, continuei chamando,
perguntando onde eu estava e por que tinham me
colocado numa gaiola, já que eu não era um
pássaro e nunca seria capaz de dormir em pé, ainda
que Dona Margarida conseguisse esse feito nos dias
em que estava muito cansada de cozinhar. Eu quase
nunca ficava cansada. Meu pai dizia que eu era
ligada no duzentos e vinte. Jamais entendi o que
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isso queria dizer, mas não parecia com algo que


ficava quieto por muito tempo.
— Oi — ouvi uma voz infantil bem ao meu
lado, e virei o rosto por achar que se tratava de
algum amigo da escola. Meus olhos finalmente
conseguiram focar em alguma coisa, mas o que vi
me deixou assustada: era um par de olhos
vermelhos.
— O que foi isso no seu olho? — perguntei,
apontando para o que achei ser uma criança, por ser
do meu tamanho. Entretanto, era uma criança bem
esquisitona. Seus cabelos curtos eram azuis. Não
um azul como a água do açude ficava no inverno,
era um azul tipo cor de céu em dia ensolarado. A
pele dela era tão branca quanto o leite que Madame
Olívia tirava das vacas, e que eu adorava tomar
com Nescau.
— Não há nada no meu olho — ela fez uma
careta. Não sei como, mas percebi que a criança, na
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verdade, era um menino que devia ter a minha


idade. — Eles são assim, diferentes do seu, em sua
própria natureza.
— Você não está usando lentes de contato?
Meu pai usa, mas ela é transparente. — O menino
fez uma careta de descrença, e eu continuei: — Ele
me disse que tem gente que usa colorida e deixa o
olho de outra cor.
— Desculpe-me por não saber do que a
senhorita está falando.
Foi a minha vez de fazer uma careta.
Simplesmente porque ninguém nunca tinha me
chamado de senhorita, nem mesmo falado comigo
de um jeito tão... esquisito. Era quase como se o
moleque fosse um adulto em miniatura.
Guiei meus olhos por todo seu corpo. Ele
vestia uma espécie de roupa que eu só tinha visto
na televisão, durante as Olimpíadas. Os nadadores
costumavam usar algo como aquele macacão, mas
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não eram prateados como o do menino.


— Qual é o seu nome? — perguntei, toda
curiosa. Se estava presa em uma gaiola, queria ao
menos fazer uma amizade. Papai dizia que eu era a
pessoa mais fácil de fazer amigos no mundo todo.
Ele não gostava muito que eu falasse com as
pessoas desconhecidas quando estávamos na fila do
banco. — O meu é Estrela — informei logo, sem
esperar qualquer resposta. — Sabe por que tenho
esse nome? Porque meu pai adora olhar para o céu
e diz que eu brilho como as estrelas. Meu sonho,
um dia, é poder chegar bem perto de uma estrela e
tocá-la com as mãos.
— É impossível — o menino falou,
simplesmente.
Cruzei os braços em frente ao meu corpo
miúdo.
— Quem disse? Claro que não é! Tia
Carolaine falou que nada é impossível.
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— Poucas coisas são impossíveis, uma


delas é tocar em uma estrela. Devido à composição
química, sua mão derreteria em menos de um
milésimo de segundo. Sem contar que a senhorita
jamais conseguiria chegar tão perto. A estrela mais
próxima do seu planeta é o Sol, e o seu corpo
limitado não resistiria e explodiria antes mesmo
de...
— Cala a boca, seu menino feio! — gritei
em pleno ataque de nervos. Coloquei minhas mãos
nos ouvidos. — É mentira! Um dia você vai ver,
vou tocar uma estrela e não vou explodir, nem
derreter.
— Como pretende fazer isso se seu planeta
tem uma tecnologia tão limitada? — Foi a vez de
ele cruzar os braços. Sua expressão também não
estava nada satisfeita, mas eu não ligava. — Serão
necessários pelo menos mais dois milênios para que
os terráqueos desenvolvam a capacidade de
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explorar o próprio sistema onde habitam.


Eu não estava entendendo absolutamente
nada daquela conversa. Imediatamente, tive
vontade de ir pra casa só pra contar ao meu pai que
alguém o chamara de mentiroso. Ele tinha me dito,
com todas as letras, que, sim, eu alcançaria as
estrelas um dia, se quisesse. Sempre acreditei no
meu pai. Ele era o homem mais inteligente do
mundo inteiro, jamais mentiria para mim.
— Eu quero ir pra casa — choraminguei.
— A senhorita vai assim que eles
encontrarem uma resposta — o menino colocou as
mãos para trás, como a professora mandava a gente
fazer quando estávamos em fila.
— Eles? Eles quem?
— Não posso dizer. Se bem que eu
poderia... A senhorita não vai se lembrar de nada
do que foi dito mesmo — o menino ergueu os
ombros e os soltou junto com um longo suspiro.
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— Eu não tenho “amnanese”. Vou me


lembrar de tudinho!
— Creio que a senhorita quis dizer amnésia.
Não entendo como alguém pode não ter
propriedade sobre a língua que usa para se
comunicar diariamente. Eu a aprendi em poucos
dias de estudo. — Ele coçou a cabeça enquanto o
meu cérebro dava um nó maior ainda. Que moleque
mais esquisito! Tudo bem que os garotos
costumavam ser bem estranhos, mas aquele
merecia uma medalha. — Sua raça é mesmo muito
atrasada.
— Não sou cachorro pra ter raça! Você que
parece um... um... — Eu não conhecia tantas raças
de cães assim. — Um “pudou” tingido de azul e
com olhos de coelhinho da Páscoa!
O menino passou algum tempo apenas me
encarando, todo confuso, até que um resquício de
sorriso cruzou seus lábios pequenos e rosados.
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Aquilo não era uma piada, por isso me irritei ainda


mais. Prometi a mim mesma que nunca deixaria um
garoto me beijar. Rosana, uma de minhas melhores
amigas, falou que um dia nós meninas
namoraríamos os meninos e beijaríamos a boca
deles. Eu achei tudo aquilo um nojo completo. A
boca humana tem muitas bactérias, segundo
explicou tia Carolaine na aula de Ciências.
— Oh... — o esquisito desviou o rosto
como se alguém o tivesse chamado. Depois, voltou
a me observar atentamente. — Tenho boas notícias.
A senhorita vai voltar para casa agora.
— Eu? Quando? Como?
— Sim, a senhorita. Hoje, agora. E não
posso dizer como, sinto muito. Você não entenderia
a explicação minuciosa sobre as possibilidades de
te devolver para a Terra.
Fiquei confusa porque nunca, nunquinha
mesmo, alguém havia respondido a todas as
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perguntas que eu costumar soltar atrás das outras.


Por um segundo, quase criei simpatia pelo moleque
de cabelos azuis.
A forte luz retornou com força total,
tomando parte do meu corpo. Fiquei assustada
porque é natural temer o desconhecido. Olhei no
fundo dos olhos vermelhos do garoto, que devia ter
percebido o meu pavor.
— Não tenha medo, Estrela. Logo, logo
estará de volta. Se preferir, feche os olhos.
Eu o obedeci prontamente. Senti uma dor
aguda em meu braço direito, como se tivesse
levado uma segunda injeção contra a paralisia
infantil.
— Aiii! O que foi isso? — gritei, porém não
ousei abrir os olhos de novo. Tinha medo do que
encontraria pela frente.
— É algo extremamente necessário, que vai
te fazer esquecer tudo depressa — ouvi a voz do
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menino, ainda bem perto de mim. Uma longa pausa


se fez antes que ele murmurasse, tão baixo que tive
dificuldade de ouvir: — Eu prometo, Estrela, que
tentarei achar uma forma de te mostrar uma estrela
bem de perto.
— Verdade? — voltei a abrir os olhos. A
luz que me envolvia tinha tomado todo o meu
corpo, de forma que, por trás dela, só consegui
visualizar um par de olhos vermelhos fixos em
mim.
— Um dia... Quem sabe? Terei muito
orgulho de ser o responsável por um avanço a nível
universal. A senhorita disse que nada é impossível
e, por um instante, fui capaz de acreditar.
Sentia meu corpo cada vez mais leve,
flutuando no espaço. Uma parte dentro de mim
sabia que eu voltaria para casa em breve, era só ter
paciência. No entanto, outra parte desejou ficar um
pouco mais na presença do garoto esquisitão. Havia
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muitas perguntas a serem feitas e ele parecia ter as


respostas, por mais que não aparentasse ser mais
velho do que eu, logo, não podia ser tão mais
inteligente ou esperto.
— Você não me disse o seu nome! — gritei,
pois a cortina luminosa me preencheu de vez e,
naquele instante, não consegui mais vê-lo.

— Meu nome é impronunciável em sua


língua, senhorita Estrela.
Foi a última coisa que ouvi partindo daquele
menino. Fui tragada por uma energia intensa, que
me fez gritar de pavor e porque meu estômago
ardia como se eu estivesse caindo da árvore mais
alta da fazenda — coisa que já tinha acontecido e
que, graças a Deus, não me gerou nada além de um
braço quebrado.

Abri os olhos de supetão, com o corpo todo suado e


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a respiração falhando. Demorei mais tempo que o


normal para me localizar dentro da maior suíte da
casa, a que pertencera ao meu pai antes de ele
morrer por causa de um infarto fulminante.
Levantei do colchão macio, sentindo-me meio
trôpega, alcancei o banheiro e lavei meu rosto com
uma grande quantidade de água.
Aquela porcaria de sonho tinha acontecido
outra vez. Desde os seis anos que aquela luz e o
estranho garoto de cabelos azuis tomavam conta do
meu sono, de forma que me deixava intrigada. Meu
pai e Dona Margarida tinham se esforçado para me
fazer acreditar que nada daquilo foi real. Eu tinha
ido a várias sessões com a psicóloga da cidade só
para que ela colocasse na minha cabeça que sonhos
loucos aconteciam e que nem sempre significavam
alguma coisa.
Obviamente, eu nunca fui abduzida, como
sugeria o sonho. Não tinha mais idade para
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acreditar naquilo, embora fosse da turma que se


encantava por histórias sobre extraterrestres. Meu
gosto pelo céu ainda era enorme e, por mais que
tenha enterrado o sonho infantil de me tornar uma
astronauta, ainda existia, dentro do meu peito, uma
vontade louca de atravessar o espaço.
Olhei-me no espelho por um segundo antes de
vestir um casaco e deixar o casarão para a minha
caminhada matinal. Aquela seria realizada ainda
mais cedo, antes mesmo de eu ter coragem de
escovar os dentes. Nunca precisei de relógios. Pela
posição do Sol, quase despontando no horizonte à
minha frente, devia ser umas quatro e meia da
manhã. A fazenda inteira estava gelada, devido ao
rigoroso inverno, e silenciosa. Os primeiros
trabalhadores só dariam as caras perto das seis da
manhã.
Eu tinha muito tempo para pensar antes de
começar a realizar as tarefas do dia, que eram
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inerentes a todos os fazendeiros. Tentei listar as


coisas que eu tinha para fazer, mas a mente ainda
estava longe. Propriamente, no espaço. Atravessei a
horta a passos curtos, distraídos, escutando os
primeiros galos cantarem e observando os
espantalhos horrorosos no meio da plantação.
Estava tão frio que saía vapor da minha boca toda
vez que eu respirava com mais veemência.
Alcancei o velho celeiro depois de alguns
minutos de caminhada. Não costumava ir ali sem
ser à noite, mas o sonho havia despertado a
curiosidade de saber o que acontecia no céu do
interior do estado. Subi as escadas de madeira até o
patamar mais alto, ignorando os cavalos e a grande
quantidade de feno jogado em um canto.
Caminhei devagar até o velho telescópio de
papai, apontado para a única janela do ambiente. O
coitado havia gastado uma fortuna por causa da
minha obsessão pelo espaço. Era a coisa mais
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valiosa, na minha opinião, que existia dentro


daquela fazenda. Eu tinha tantos ciúmes dele que
não deixava ninguém chegar perto.
Posicionei-me atrás do telescópio, sentando-
me em um banco estrategicamente colocado, e
apoiei meu rosto perto da lente. Na noite passada
tinha perdido horas observando a lua cheia, mas ela
já havia ido embora e eu precisava de uma nova
distração.
— Vem cá, belezinha... Cadê você? —
sussurrei para mim mesma, ajustando a lente para
um ponto que era bastante visitado pelos meus
olhos. Eu sabia que ainda dava para vê-lo, era só ter
paciência e um pouco mais de precisão. — Aqui!
Achei.
Sorri ao observar a pequena bola quase sem
luz, com algumas faixas acinzentadas enfeitando.
Era ele, todo imponente, nosso querido vizinho
Vênus. Eu era especialmente apaixonada por aquele
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planeta.
Passei longos minutos observando
fixamente, como se pudesse encontrar algo novo
naquela bola que parecia desinteressante aos olhos
de qualquer pessoa. Às vezes nem eu mesma
entendia tanta obsessão. Os segundos se agruparam
mais e mais, transformando-se em longos minutos,
que fecharam a primeira hora sem que eu me desse
conta.
Foi de repente que uma bola de luz enorme
atravessou a lente do telescópio, fazendo-me gritar
alto. Os cavalos relincharam, inquietos, e eu me
levantei de supetão, derrubando o banquinho atrás
de mim. Corri na direção da janela para tentar
enxergar a olho nu o que havia sido aquilo. A luz
foi tão intensa que não era possível que não desse
para vê-la longe do telescópio.
E lá estava ela. Era similar a um avião, mas
tinha um formato esquisito, além de que parecia
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estacionada no ar, como um gavião mirando uma


presa antes do ataque. Meu coração se espremeu
dentro do peito. Foi impossível não comparar
aquela luz com a que permeava os meus sonhos
infantis. A emoção foi tanta que meus olhos
marejaram sem qualquer explicação lógica. Acho
que, no fundo, sempre quis mostrar ao mundo
inteiro que eu estava certa o tempo todo.
— Que merda é essa? — perguntei a mim
mesma. Doida como eu era, fiz o favor de
responder: — Parece uma nave espacial.
A luz começou a se movimentar para a
esquerda. Foi crescendo... crescendo... Era como se
tivesse se aproximando da fazenda. Meu desespero
cresceu na mesma medida, porque, por um instante,
imaginei que poderia ser abduzida a qualquer
momento. A realidade e a fantasia constantemente
se chocavam dentro do meu cérebro, que ainda
carregava os sonhos de criança junto com os
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problemas da mulher que me tornei.


Fiquei parada feito uma estátua, apenas
observando, com os olhos bem abertos, a
luminosidade esquisita. Alguns segundos se
passaram e ela simplesmente desapareceu. A
frustração que me invadiu foi tanta que soltei um
grunhido alto, assustando, de novo, os coitados dos
cavalos.
Não me restou nada além de procurar me
contentar. Eu tinha uma fazenda para levar adiante
e os afazeres não seriam ignorados só por causa de
minha loucura. A realidade berrava por mim. Foi
por este motivo que deixei o celeiro e voltei para o
casarão. Precisava tomar um banho quente e fazer o
desjejum antes de iniciar a labuta.
Os planetas, as naves, as estrelas e as luzes
ficariam apenas dentro da minha imaginação, bem
como o estranho par de olhos vermelhos.

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Depois de um banho demorado e aquecido a


gás, ganhei novo ânimo para começar o dia.
Apertei o interruptor para ligar as lâmpadas da
enorme sala de jantar, onde o desjejum já estava
sobre a mesa. O meu pai tinha construído um
verdadeiro casarão para morar comigo, com a
minha mãe e com os filhos que eles teriam se ela
não tivesse morrido de câncer antes da hora. Cada
cômodo daquela casa era desnecessariamente
grande e difícil de remover poeira. Dona Margarida
reclamava constantemente daquilo.
Apertei o interruptor outra vez, estranhando
o fato de nada ter acontecido. Foi com muita

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surpresa que constatei que a energia tinha faltado,


coisa que raramente acontecia.
Ouvi burburinhos vindos da cozinha e me
aproximei devagar. As vozes de Dona Margarida e
de Seu Frederico estavam calmas, baixinhas, por
isso logo estranhei. Em condições normais, eles
estariam aos berros. O apelido de Dona Margarida
era “boca de alto-falante”, e não era nem um pouco
em vão.
— Eu vi, mulher. Vi com esses olhos que a
terra há de comer — Seu Frederico balbuciava,
parecia angustiado e se tremia todo. Parei rente à
porta da cozinha e fiquei escorada no batente,
observando os dois conversando sem me dar o
trabalho de anunciar a minha presença. — Era uma
luz muito forte.
De desinteressante, a conversa tragou a
minha atenção total. Deixei a coluna ereta e me
escondi atrás da geladeira. Os motivos de aqueles
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dois estarem falando baixo foram compreendidos


por mim imediatamente. Eles jamais falariam sobre
o assunto comigo por perto, e certamente o
trocariam se soubessem que eu estava ouvindo.
Mal sabia eles que eu também tinha visto a
luz. Não havia sido coisa da minha cabeça. Aquela
comprovação me deixou extasiada e, ao mesmo
tempo, espantada.
— Deixa disso, homem! E nem invente de
contar à menina Estrela, ou vou te dar um sopapo
de colher de pau. — Consegui ver o momento em
que Dona Margarida ergueu a colher para o marido.
Ela apenas ameaçava, nunca tinha, de fato,
colocado em prática as coisas absurdas que dizia.
Os dois haviam casado há apenas quatro
anos, logo quando meu pai morreu e eu pedi, por
tudo no mundo, para que morassem comigo no
casarão. Seu Frederico, com a mente presa às
tradições de antigamente, disse que seria muito feio
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morar com a Margarida sem desposá-la. Sim, ele


usara o verbo “desposar” em dois mil e dezessete.
— Não vou dizer nada, sei que o assunto
deixa a menina impressionada. — Seu Frederico
tirou o chapéu de palha e fez uma expressão de
quem sofria. — Só estou dizendo que eu vi. Era
uma luz medonha de grande no céu. Depois a
energia se foi e agora estamos no breu. Já tentei ver
as fiações, mas não tem nada de errado. Tem
caroço nesse angu, mulher...
— Ora... Mas que conversa esquisita. —
Margarida ainda se mantinha descrente. Pudera, ela
foi a pessoa que mais sofreu com as minhas
paranoias. Eram madrugadas e mais madrugadas
insones em que eu saía do casarão e perturbava seu
sono na antiga palhoça, dentro da fazendo mesmo,
onde ela morava. — O que essa doidice tem a ver
com a energia? Melhor ligar pra companhia de luz
de uma vez.
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— Vou fazer isso agora mesmo. Mas que


foi esquisito, foi. E aquilo não era um avião nem
aqui e nem na China! — Seu Frederico se afastou e
veio na minha direção. Resolvi me fazer presente
antes que ele descobrisse que eu estava à espreita.
— Bom dia! — entrei na cozinha feito um
foguete.
— Ai, Senhor! — Dona Margarida levou
uma mão ao peito, assustada com minha entrada
barulhenta. Ela teria um troço se fosse obrigada a
conversar comigo sobre luzes vindas do céu de
novo. — Bom dia, menina. Saiu da cama cedo.
— Bom dia, Estrelinha — Seu Frederico
deixou um beijo no topo da minha cabeça. Em
seguida, deixei outro na bochecha rechonchuda de
Dona Margarida. Eu a amava como se fosse a
minha mãe. — Faltou luz.
— É, percebi. O senhor sabe o que pode ter
acontecido? — questionei para Seu Frederico,
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querendo jogar verde pra colher maduro. Ele era


um senhor de sessenta e um anos que não fazia
ideia de como mentir, sobretudo para mim. Foi por
isso que soltou um monte de gaguejos, até que
Margarida se adiantou:
— Ele vai ligar pra companhia elétrica, não
é, homem?
— Ah, é... Sim, vou ligar. Não se preocupe,
Estrelinha, a energia vai voltar logo.
Ele deixou a cozinha antes que eu pudesse
fazer mais perguntas. Seu Frederico estava
mancando um pouco, devido a um problema
crônico na coluna. Mas ele era teimoso e não
largava os cavalos por nada. Eu só ficava quieta a
respeito daquilo porque tinha certeza de que, caso o
impedisse de cuidar dos bichos, ele adoeceria de
vez.
— Seu café está na mesa, Estrela. — Pelo
cheiro delicioso, Dona Margarida já estava fazendo
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feijão para o almoço.


Ela era outra pessoa que eu queria que
nunca mais precisasse trabalhar. A fazenda ia muito
bem e eu podia contratar alguém mais nova para o
serviço, mas a mulher era um poço de teimosia,
além do que, por mais que reclamasse, amava
cozinhar. O máximo que ela me deixou fazer foi
contratar uma pessoa para os serviços de limpeza
do casarão; Odete vinha duas vezes por semana e
deixava tudo nos trinques.
— A senhora já comeu? — Alisei a longa
trança de Dona Margarida. Seus cabelos eram
escuros e bem lisos, herança de sua descendência
indígena. Eu os amava porque sempre estavam
arrumados, diferentes dos meus, que viviam cheios
de frizz.
— Já, sim, meu bem. — Ela começou a
mexer a panela porque se desconcertava toda vez
que eu a pegava. Margarida nunca foi de carícias.
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Era uma guerreira criada na roça com pouco


carinho familiar. — Vá se alimentar direito antes de
sair, viu? Vou ficar de olho na senhorita.
Ela amava ser a minha fiscal de prato. Eu
comia pouco naturalmente, e isso sempre a deixava
nervosa. Não tinha culpa se meu organismo era
acostumado com menos comida do que o aceitável
para o povo interiorano.
— Pode deixar, vou comer direito. — Bati
continência, sorrindo, e voltei para a sala de jantar.
Assim que me sentei, os pensamentos
bizarros voltaram. Olhando para o lugar à mesa que
pertencia ao meu pai — e que jamais fora ocupado
por mais ninguém desde sua partida —, refleti
sobre os meus sonhos e sobre a luz que finalmente
alguém, além de mim, tinha visto.
A fazenda era cheia de histórias, mas,
estranhamente, todas as que se relacionavam às
aparições estranhas e objetos voadores não
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identificados morriam antes de chegarem ao meu


conhecimento. Eu sabia daquilo porque Valentim, o
sobrinho de Margarida e meu braço direito na
fazenda, me contava às escondidas. Nós tínhamos
crescido juntos e éramos muito amigos. Ele sempre
acreditou nos meus sonhos, dizia que era possível,
sim, que eu tivesse sido abduzida, sobretudo porque
eu tinha uma prova carnal.
Ergui a manga do meu casaco e verifiquei,
pela milionésima vez, o sinal que fazia parte do
meu corpo desde os seis anos. A pequena marca no
braço direito tinha um formato esquisito que
lembrava a letra H. Ela queimava de vez em
quando, mas Dona Margarida dizia que era uma
reação alérgica. O meu pai fez pouco caso; ele
achava que eu mesma tinha provocado a cicatriz só
para inventar aquela história de extraterrestre e
nave espacial. Às vezes ele dizia que eu tinha
aprontado alguma e me machucado, depois criado a
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história para não ser punida pela minha


desobediência em andar pela fazenda à noite.
Comi uma banana e tomei um gole de café
enquanto a saudade do meu pai me preenchia. Ele
era um fazendeiro meio bruto, mas tinha um
coração de ouro. Herdar aquela fazenda era uma
responsabilidade que, na maioria das vezes, eu não
sabia se poderia arcar. Ainda bem que contava com
a ajuda de todos os funcionários, pessoas humildes
que amavam aquelas terras e lutavam por elas com
unhas e dentes.
— Estrela! Estrela! — Valentim invadiu o
casarão às pressas. Suas botas se chocavam com
força no piso de madeira. — Estrela!
— Aqui na sala! — gritei, já me levantando.
Dona Margarida certamente perceberia que eu não
tinha comido tanta coisa, mas já me sentia
satisfeita.
— Estrela! — O homem parou assim que
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me viu e se curvou diante de si mesmo, tentando


recuperar o fôlego.
Valentim era um homem alto e bonito, sabia
domar cavalos, cuidar da horta e me ajudava com
as finanças. O sonho de Margarida era me ver
casada com ele, mas não ia rolar. Não que a gente
não tivesse se pegado várias vezes. É só que
Valentim era também o tipo de cara que podia ser
um ótimo amigo, mas um companheiro terrível.
— O que foi, Valentim? Que bicho te
mordeu? Já sei que faltou energia.
— O... milharal... — ele ainda tentava
recuperar o fôlego. — O milharal. Você precisa ver
isso. É urgente!
— O que houve? Pegou fogo de novo? —
Levei as duas mãos ao peito. No ano em que meu
pai morreu, demos vacilo e a plantação de milho
sofreu uma queimada horrível. Perdemos todo o
trabalho do ano inteiro.
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— Não. Você precisa ver. Rápido! Já selei a


Açucena.
Ele mal me deixou falar alguma coisa e foi
logo deixando a sala. Corri atrás dele porque
Valentim não era alguém que se espantava com
facilidade. Desci as escadas na entrada do casarão
na maior velocidade, até alcançar Açucena, a minha
égua puro-sangue toda preta. Aquela menina era o
meu xodó.
Valentim logo montou no Tufão, o seu
cavalo marrom, e me esperou. Ele sabia do ritual.
Puxei o focinho de Açucena e a acariciei por alguns
segundos, mantendo contato visual. Eu não
precisava falar nada, ela sabia que eu tinha pressa e
que depois ganharia uma escovação bem demorada
por tê-la feito correr tão cedo. Açucena era arisca e
tinha um rei na barriga.
O meu ritual demorou a metade do tempo
comum. Montei em Açucena com destreza,
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mantendo as rédeas curtas e as pernas bem


fechadas ao seu redor. Nós estávamos prontas para
acelerar.
Segui Valentim pelo amplo pasto.
Cruzamos o açude, a horta, a pequena plantação de
uvas — que o meu pai mantinha porque amava
vinhos artesanais, e que eu resolvi transformar em
mais uma fonte de renda — e alguns casebres, que
pertenciam aos funcionários mais íntimos do papai.
Adentramos a longa trilha da plantação de milho.
Respirei aliviada ao perceber que, aparentemente,
estava tudo bem e nós teríamos uma colheita
abençoada.
— Aqui! — Valentim berrou e fez o seu
cavalo brecar.
Parei ao seu lado, olhando para os dois
lados do milharal e sem entender o que estava
acontecendo. O homem desceu de Tufão
habilmente. Deixei Açucena ao lado dele. Os dois
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animais eram treinados a não saírem do lugar


enquanto não retornássemos para levá-los ao
celeiro, por isso não havia necessidade de prendê-
los.
— Vem comigo, Estrela — Valentim fez
um sinal com a cabeça e adentrou a plantação a
passos largos. Eu o segui, ainda bastante encucada
com a situação toda.
Comecei a ouvir algumas vozes. Umas
berravam e outras pareciam cochichar. Valentim
continuou o percurso, sempre conferindo se eu
ainda o seguia. Localizei, à frente, alguns
funcionários da fazenda, até que um descampado
imenso surgiu do nada, contradizendo toda a lógica.
— Que merda é essa? — gritei, atônita,
sentindo os meus nervos se espatifarem.
— Não sabemos o que aconteceu ainda,
senhorita Estrela — um funcionário, chamado
Jailton, murmurou, segurando seu chapéu de palha
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sobre o peito.
Olhei bem para o estrago feito, acocorando-
me para ter uma ideia melhor do que poderia ter
acontecido. Analisei a terra, até que encontrei um
milho que parecia ter sido pisoteado, como todos os
outros. Os pés de milho daquela área foram todos
achatados, formando uma circunferência perfeita e
enorme no meio da plantação.
Minha mente fantasiosa logo fez com que
eu me lembrasse de um filme chamado “Sinais”. A
plantação do protagonista também havia sido
marcado de um jeito bem similar. Eu me arrepiei
dos pés à cabeça, porque, no filme, aqueles sinais
haviam sido feitos por seres extraterrenos e suas
naves espaciais luminosas.
— Isso só pode ser coisa do demônio! —
uma funcionária deu sua opinião. A mulher estava
tão apavorada quanto todos os outros.
— Deve ter uma explicação lógica para
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tudo isso — Filomeno, o homem que cuidava da


plantação de uvas, falou em um timbre firme. —
Deve ser alguma praga.
— Não tem nenhuma praga aqui — Seu
Luís, o cara responsável pelo controle de pragas,
pareceu chateado com a suposição de Filomeno. —
É uma coisa sobrenatural. Vocês viram as luzes
mais cedo? Eu vi.
Metade dos funcionários olhou para mim de
imediato. Seu Luís deu de ombros, arrependido por
ter suposto aquilo na minha frente. Obviamente,
todos sabiam dos meus probleminhas com o
assunto.
— O que acha que é? — Valentim se
acocorou ao meu lado. Segurou um pedaço de
milho achatado entre os dedos. — Ninguém nunca
viu coisa igual.
— Eu não sei. Não há o que ser feito —
ergui-me depressa, uma parte porque queria ir
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embora e outra porque não estava a fim de ficar tão


perto do Valentim. — Voltem aos seus trabalhos!
— bradei para todos ouvirem. Eu não gostava de
usar aquele tom, mas reger uma fazenda daquele
porte requeria certa brutalidade. — Seu Luís,
verifique o terreno antes de limpar. Vamos
replantar tudo e ver o que acontece, sim?
— Certo, senhorita!
Eu me afastei da circunferência tão depressa
quanto me aproximei dela. Uma coisa horrível
revirava o meu estômago, e eu sentia gosto de bile
na boca.
Valentim correu atrás de mim.
— Estrela! Estrela, espere!
Parei entre um pé de milho e outro. Eles já
estavam enormes, bem maiores do que eu. A
colheita seria proveitosa se nada mais saísse dos
conformes.
— O quê?
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— Não vai querer saber o que houve? —


Valentim parou na minha frente, resfolegante. —
Aquilo... Você viu o filme. A gente assistiu juntos,
lembra?
Claro que eu me lembrava. Valentim e eu
costumávamos namorar na sala de TV, de mãos
dadas, único jeito que meu pai careta permitia. Mal
sabia ele o que a gente fazia quando estávamos
soltos pela fazenda...
Dei de ombros.
— O que posso fazer, Valentim? Já achei a
solução. Vamos replantar e pronto.
— Seu Frederico viu uma luz forte hoje
cedo. E uma nave espacial. Bom, ele não disse essa
palavra, só falou que não era um avião. Você acha
que...
— Valentim — coloquei uma mão para
frente, obrigando-o a parar. — Chega. Eu não
posso alimentar isso, certo? A vida real é essa
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aqui... Temos que plantar o milho, colher e vender.


Esse é o nosso sustento.
— Você não está falando sério — ele se
aproximou mais alguns passos. — Qual é? Depois
de vinte anos querendo entender o que houve, vai
simplesmente deixar pra lá? Você deve estar
explodindo por dentro, querendo saber se essa coisa
esquisita é o que parece ser.
— Vinte e dois. Foram vinte e dois anos —
corrigi no impulso.
Ele tinha toda razão. Eu estava prestes a
partir o meu corpo em milhões de pedacinhos
angustiados. Havia uma certeza enorme dentro de
mim, mas havia também o medo do desconhecido e
de ficar louca, cheia de paranoias, a ponto de
incomodar Dona Margarida outra vez. Era mais
seguro que eu focasse na realidade. Pelo menos
naquele momento, na frente de todos. Intimamente,
eu já estava decidida a tirar a limpo.
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Mas Valentim não precisava saber daquilo.


— Seja o que for, estragou parte da
plantação. — Dei alguns passos para trás,
distanciando-me. Ergui a cabeça para parecer mais
alta que ele, porém era impossível. — Agora, volte
ao trabalho. Vou ver como estão as vacas e o
carregamento de leite.
Valentim não falou mais nada, e eu nem
permiti que retrucasse. Virei as costas e continuei o
percurso até encontrar Açucena. Na minha mente,
planos mirabolantes começaram a se formar. Se
uma nave espacial aterrissou na minha plantação,
ela com certeza retornaria, cedo ou tarde. Afinal, no
filme não havia apenas um sinal, mas vários, e em
todos os dias aparecia mais um.
Se um extraterrestre metido a merda queria
entrar em contato com a Terra, eu conferiria bem
de perto. Mesmo que morresse de medo e que não
soubesse como — ainda —, faria questão de tirar a
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limpo. Eu queria reencontrar aquele menino


estranho de olhos vermelhos só para ter o gostinho
de poder gritar bem alto: VOCÊ EXISTE! NÃO
SOU LOUCA!

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A sombra de um homem surgiu no meio de


uma luz tão forte, uma mistura de azul e lilás, que
mal dava para enxergar os contornos do
desconhecido. Eu estava parada no meio da
vegetação extensa que existia depois da cerca, lugar
que não frequentava desde o incidente aos seis
anos. Por mais que estivesse com medo, não ousei
recuar. A sombra continuou se aproximando, e me
obriguei a esperar porque ele poderia ter as
respostas que eu tanto queria.
— Estrela? — uma voz firme, muito séria,
ecoou pela mata. Cada pelo do meu corpo se eriçou
diante daquele timbre. Continuei respirando rápido,

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segurando a vontade de dar meia volta e


permanecer bem longe de tanta esquisitice. —
Estrela... Está perfeita a sua capacidade de me
ouvir?
— S-Sim — consegui gaguejar enquanto
nova onda de arrepios me acometia. O homem
usava um sobretudo preto e encapuzado, de forma
que não consegui ver seu rosto nem quando ele
ficou a um metro de distância.
— Isso é uma ótima notícia. Preciso que se
mantenha atenta ao que direi agora.
Engoli o choro que ameaçava tornar a cena
ainda mais patética. Respirei fundo, expulsando o
medo, e então a coragem me fez perguntar:
— Quem é você? O que quer aqui?
— Eu... — ele hesitou. Passaram-se alguns
segundos de silêncio, até que o desconhecido
emitiu um riso meio sem graça. Mais arrepios
tomaram o meu corpo. — Todo esse tempo e não
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pensei a respeito.
— A respeito do quê? — Enrolei os braços
ao redor do meu corpo para conter o frio
proveniente da brisa que corria entre as árvores. —
Por favor, me diga quem você é e o que quer
comigo.
— Não pensei em uma tradução para o meu
nome. Estrela, preste atenção. Eu vim te buscar.
Finalmente meus pés resolveram se mexer.
Dei alguns passos para trás, assustada com a
afirmação daquele cara. Sequestro não estava em
meus planos, de jeito nenhum. Só que, ao recuar
com mais velocidade, tropecei em uma raiz. O
homem conseguiu me alcançar antes que eu me
estatelasse; segurou os meus braços com força.
Suas mãos queimaram a minha pele como se
estivessem em brasa. Soltei um grito abafado pelo
pavor e ele finalmente me largou, dando-me certo
espaço.
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— Não é necessário ter medo, pois não te


machucarei — sua voz se tornou quase gentil. —
Só preciso cumprir a minha promessa.
— P-Promessa? Que promessa? —
choraminguei, olhando para todos os lados. A luz
atrás do homem ainda era forte, por isso consegui
encontrar o caminho de volta para a fazenda. Meu
objetivo era sair correndo assim que a situação
piorasse.
— Eu tenho conhecimento de que você se
lembra de tudo. De alguma forma, a injeção não
funcionou em seu organismo. Foi um grande erro.
— Ele deu um passo na minha direção, porém
recuei mais um, daquela vez atenta para não
tropeçar de novo.
Toquei em meu braço direito, bem em cima
da estranha marca.
— É você? Você é o menino dos olhos
vermelhos?
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A sombra balançou a cabeça para cima e


para baixo. Por um instante, desejei que retirasse
aquele capuz para que eu pudesse vê-lo por inteiro.
Queria conferir os olhos vermelhos e os cabelos
azuis outra vez, só para constatar que eu não tinha
enlouquecido, que aquele garoto era real.
— Por favor, encaminhe-se para o centro do
milharal. Não tenho mais tempo, nossa conexão se
romperá assim que eu cruzar a atmosfera de seu
planeta.
— O quê?
— Se quer realizar o seu maior sonho,
Estrela, faça exatamente o que falei. Agora!
A imagem do homem encapuzado se partiu
em milhões de pedaços, como se ele fosse um
espelho diante de mim.
Abri os olhos no susto, e me deparei com o
teto do celeiro. Sentei-me no chão de madeira,
tentando fazer a minha respiração voltar ao normal.
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Eu tinha acabado de acordar de um sonho ainda


mais louco que aquele que sempre surgia.
Meio desnorteada, percebi que tinha
adormecido no celeiro depois de ter passado horas
observando o céu no telescópio, à espera de alguma
luz ou qualquer coisa que indicasse a presença de
um corpo estranho. Apenas a luz de um velho
candeeiro bruxuleava as paredes de madeira, tudo
porque nem a companhia elétrica havia conseguido
devolver energia para a fazenda, alegando um
problema mais sério nas fiações. O reparo completo
seria feito na manhã do dia seguinte, que, pelo
visto, não demoraria a chegar.
O céu ainda estava escuro, mas eu já podia
sentir o sol se aproximando devagar. Devia ser
quase quatro horas da manhã. A frustração que me
invadiu por ter sonhado com aquele desconhecido
fez com que eu soltasse um grunhido irritado.
Levantei-me do chão frio, colocando as mãos
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geladas dentro do bolso do casaco. Naquela época


do ano, as temperaturas eram sempre extremas;
fazia um calor horroroso nas horas de sol e um frio
insuportável nas de lua.
Peguei o candeeiro pela alça lateral,
disposta a retornar ao casarão para tentar dormir
um pouco, em um lugar confortável e quentinho.
Não adiantaria ficar e alimentar ainda mais as
minhas fantasias galácticas. Não havia nada de
diferente no céu, e o problema com o milharal
devia ter alguma explicação que não fosse a
presença de extraterrestres. No fim das contas, eu
devia aprender a lidar, de uma vez por todas, com
minhas maluquices.
Desci as escadas devagar, para não acordar
os cavalos, e deixei o celeiro em silêncio. Senti um
incômodo em meus braços, como se mãos fortes os
segurassem. Ignorei a sensação até me dar conta de
que era uma dor real, o que aconteceu depois que
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cruzei a horta. Com a mão livre, afastei a manga do


casaco para dar uma olhada. Havia uma marca
avermelhada sobressalente em minha pele morena,
um perfeito desenho de dedos humanos, como se
alguém tivesse me puxado com bastante força.
Meu coração passou a bater acelerado. Eu
me acocorei, deixei o candeeiro no chão e conferi o
outro braço. As mesmas marcas também estavam
presentes.
Tudo bem eu ter sonhado com aquilo. Mas
nenhum sonho deixava marcas tão evidentes, que
latejavam de verdade. Minha doidice tinha limite,
não era possível que estivesse vendo coisas que não
existiam e sentindo dores infundadas. Tornei a me
levantar e olhei para o céu, com o corpo inteiro
tremendo de pavor.
Para olhos desacostumados, não havia nada
de errado com o céu daquela madrugada. Mas, para
os meus, que conhecia cada estrela como a palma
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da minha mão, foi impossível não notar que havia


um novo ponto de luz. Ele cresceu gradativamente,
enquanto eu me decidia sobre o que fazer. Poderia
voltar ao celeiro e observar atrás do telescópio ou
simplesmente dar ouvidos ao sonho maluco.
O meu cérebro se decidiu antes do meu
corpo. Por este motivo, passei algum tempo parada,
olhando para o horizonte da fazenda. Depois, soprei
o fogo do candeeiro e o deixei no chão, correndo
em disparada na direção da minha caminhonete.
Não havia tempo a perder. Mesmo que parecesse
louco demais, nada me faria desistir de estar no
meio do milharal, tal como o homem tinha dito.
Ainda que ele fosse cumprir a promessa de me
buscar, e que isso fosse o suficiente para me deixar
apavorada, obedeci-o como se aquela fosse a minha
única opção.
A caminhonete estava estacionada em frente
ao casarão, como sempre ficava. Ninguém mexia
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nela além de mim. A fazenda era o lugar mais


seguro do mundo, não existia essa coisa de ter
medo de assalto ou de algo da espécie.
Entrei no veículo às pressas, peguei as
chaves debaixo do tapete, no banco do carona, e a
girei na ignição. Fiz uma pausa para olhar a luz que
crescia no céu. Ela já estava do tamanho de um
avião, porém, dentro de mim havia a certeza de que
se tratava de outra coisa.
— Você só pode ter endoidado de vez,
Estrela... — murmurei para mim mesma antes de
passar a marcha e arrancar com a caminhonete,
rumo à pequena estrada que dava para o milharal.
Segui a toda velocidade, trocando a minha
atenção ora para a estrada, ora para o céu. Freei
bruscamente no ponto exato em que estive mais
cedo com a Açucena; a circunferência
estranhamente marcada estava bem próxima. Meus
braços ainda ardiam, bem como a cicatriz passou a
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latejar. Peguei uma lanterna, que sempre ficava no


porta-luvas, e desci da caminhonete me sentindo
pronta para o que desse e viesse. Pensei em pegar
alguma coisa para me defender, mas não havia nada
por perto além do canivete que vivia no bolso da
minha calça. Ele precisava servir.
Corri entre os pés de milho como se minha
vida dependesse daquilo. Tentei não pensar muito
em estar sozinha no escuro e no meio de uma vasta
plantação. O cenário era ideal para um filme de
terror com muito sangue jorrando.
Cheguei até o local devastado por alguma
força desconhecida. Eu me coloquei no que achei
ser o centro da enorme circunferência, só depois
voltei a olhar para o céu. No fundo, eu estava
morrendo de medo do que encontraria.
E não era para menos.
— CACETE! — gritei muito alto, pois a luz
já estava tão perto que dava para ver os contornos
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de uma imensa, e redonda, nave espacial. — MEU


DEUS DO CÉU!
Meus olhos se encheram de lágrimas. Foi
impossível não me emocionar com a cena, por mais
que estivesse quase urinando nas calças de tanto
medo. Aquela só podia ser a prova de que estive
certa todo aquele tempo. Vinte e dois anos sendo
julgada à toa. Nada importava mais. Eu não era
louca.
A nave foi ficando cada vez mais próxima,
até que todas as suas luzes se apagaram, talvez para
não chamar tanta atenção. Um único filete de luz
desceu de seu centro e me atingiu como um
holofote em pleno espetáculo. Pelo visto, eu era a
protagonista.
E agora? O que aconteceria?
Esperei ansiosamente, de repente sentindo
uma coragem profunda de ser sugada pela luz de
novo. Sentia, lá no fundo da minha alma, que não
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havia o que temer. Comecei a gargalhar


desesperadamente, entrando em uma crise de riso
fora de hora. Abri os meus braços para tentar sentir
a luminosidade que me atingia, e jurei ter sido
tocada por uma onda de energia forte, emocionante.
Algumas lágrimas escaparam enquanto girava meu
corpo e gargalhava alto. Quem visse a cena de fora,
teria a certeza de que eu nunca tive juízo.
Ouvi um ruído estranho e voltei a olhar para
o céu. Tive certa dificuldade de enxergar o que
estava acontecendo, mas foi como se uma nave
menor tivesse saído de dentro da maior. A luz se
apagou totalmente. Passei longos segundos feito
uma estátua, com medo de me mexer e até de
respirar.
A pequena nave se aproximava do chão
devagar, fazendo um barulho similar a um drone
em pleno funcionamento. Parei de rir porque o
medo retornou, mas continuei chorando e
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segurando as coxas uma na outra para não fazer


xixi. Seria vergonhoso demais.
Quando já estava perto do chão, a pequena
nave, que era branca e em formato de ovo, como se
uma galinha gigante a tivesse botado, foi atingida
por uma luz vermelha vinda da maior. Pulei de
susto, soltando um grito alto.
O que aconteceu depois foi tão depressa que
demorei a assimilar, tanto que nem deu tempo de
me mexer. A pequena nave passou a despencar do
céu ao mesmo tempo em que a maior se distanciou.
O movimento que fez foi tão rápido que, em alguns
segundos, já havia se tornado uma pequena estrela
de novo.
Então, veio o choque. A nave em forma de
ovo gigante caiu a alguns metros de mim,
arrastando-se por alguns pés de milho. Ela levantou
terra e fumaça, até finalmente parar, deixando-me
desnorteada ainda no centro da circunferência. Eu
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não fazia ideia do que tinha acabado de acontecer,


mas era certo que aquela nave não deveria ter
caído.
Eu corri na direção dela de forma bastante
inconsequente. Não sabia o que encontraria, nem se
era prudente me aproximar tanto, mas, no fundo,
tive o reflexo de ajudar quem quer que estivesse em
apuros.
A pequena nave era do meu tamanho. Por
um breve momento, imaginei que se parecia com
um ovo de tiranossauro. E se um dinossauro filhote
saísse dela?
— Ai, meu Deus... Ai, meu Deus... —
repeti enquanto tocava, de leve, na superfície fria e
lisinha da nave. Eu sabia que não deveria pegar
naquilo, vai que era uma bomba? No entanto,
realmente parecia um ovo. — Que merda é essa?
Uma fumaça azul começou a sair dela.
Fiquei desesperada e me afastei rápido,
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cambaleando para trás desajeitadamente. A fumaça


se tornou cada segundo mais azul, até que o ovo se
abriu em camadas, como aquelas cebolas
maravilhosas do Outback.
Soltei um grito sonoro quando enxerguei
um homem saindo de dentro do ovo aberto. Dei
vários passos para trás e, obviamente, caí de bunda
no chão. O cara andou, tão cambaleante quanto eu,
até que se ajoelhou no chão, curvando-se para
frente.
— Alô? — falei com a voz falhando.
Segurei meu pescoço porque a sensação era a de
que a minha cabeça se deslocaria a qualquer
momento. — Oi? Ei, você está bem?
O homem tentava respirar, mas parecia não
conseguir. Fazia um barulho horroroso similar a
alguém que estava com o pulmão carregado de
catarro. Não sei o que me fez sentir pena da
criatura. Era loucura demais prestar socorro a um
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ser vindo sei lá de onde, em uma nave em formato


de ovo de dinossauro.
Ainda assim, fiz força para me levantar e
andei até o homem como se nada de anormal
estivesse acontecendo. Eu me ajoelhei ao seu lado e
apontei a lanterna para ele. Claro que eu soltei um
grito.
— Ai, Senhor! — Escorreguei para trás,
deixando a lanterna cair ao meu lado. O homem
que tentava respirar tinha cabelos azuis escorridos
até os ombros, e seu olho vermelho brilhou ao
encontro da luz da lanterna.
— Estrela... — balbuciou com dificuldade.
Ele se contorceu todo e jogou o corpo para trás,
deitando-se no chão. A respiração ainda estava
ofegante, mas parecia ter melhorado.
— Puta merda, você... — tornei a me
ajoelhar ao seu lado. O cara usava um macacão de
mergulhador todo preto, incluindo sapatos e luvas
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da mesma cor. No escuro, só conseguia ver direito


o rosto, composto de uma pele tão branca que
acendia. — Meu Deus. O que eu faço?
— Ajude-me — o cara murmurou
sofregamente. — Está... Está muito... frio.
Foi no impulso que retirei o meu grosso
casaco e o depositei sobre o homem. Ele começou a
se enroscar como uma minhoca, encontrando a
melhor forma de se empacotar no casaco que eu o
oferecera.
— Ei... Você está bem? — Peguei a
lanterna com as mãos trêmulas, voltando a apontá-
la para a criatura. Foi impossível não ficar
embasbacada com aquele ser. Seu rosto pertencia a
de um homem comum, tirando os traços perfeitos
que o faziam estranhamente belo. As únicas coisas
diferentes, que deixavam claro de onde ele tinha
vindo, eram os olhos e os cabelos.
O ser de outro mundo me encarou por
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alguns instantes. Os olhos vermelhos pareciam


querer penetrar a minha carne. Experimentei uma
sensação louca que corroeu o meu estômago,
trazendo-me uma emoção jamais sentida. Nem
dava para explicar o que tinha sido aquilo. Não
pareceu uma coisa boa, mas também não foi de
todo ruim.
Devolvi aquele olhar fixo com a mesma
intensidade, até que o desconhecido simplesmente
desmaiou. Chacoalhei o casaco — porque tocá-lo
não me pareceu uma boa ideia —, tentando
reanimá-lo, porém nada aconteceu. Eu estava no
meio de um milharal deserto e escuro com um ser
que tinha acabado de vir do espaço em um ovo.
Passei alguns minutos sentada na areia,
observando o corpo inerte e esperando aquele
sonho ter fim. Não tinha mais o que fazer, eu já
estava no limite da incompreensão.
Não podia ter outra explicação para o que
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acontecera; ou eu estava sonhando ou pronta para


ser internada num hospício.

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Passei um tempo incalculável em estado de


choque, apenas sentada na terra batida — pois Seu
Luís certamente providenciara o preparo do terreno
para o replantio —, esperando algum milagre cair
do céu. Um que não tivesse a ver com aquele ser
desacordado e de cabelos azuis, nem com naves em
formato de ovo. Só percebi que estava apavorada
ao notar que meu corpo inteiro tremia muito, e o
frio da madrugada não era o culpado, por mais que
eu tivesse me livrado do casaco.
Mantive o olhar entre a nave e a criatura,
tomando o cuidado de permanecer longe, sem dar
ouvidos à minha curiosidade. Ela berrava para que

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eu fosse explorar melhor o ovo de dinossauro, ou


ainda que tentasse fazer respiração boca a boca no
sujeito. Simplesmente não ia rolar. Não que eu
quisesse que ele morresse, mas me aproximar
demais podia ser perigoso em muitos sentidos.
Sem que eu tomasse qualquer decisão, o ser
começou a se remexer sob o meu casaco. Fiquei
atenta, observando em silêncio enquanto ele se
movia cada segundo com mais precisão. Foi de
repente que se sentou, e o fato de eu conseguir vê-
lo com mais nitidez me deixou assustada por já
estar amanhecendo. Por incrível que pareça, eu não
havia percebido o sol despontando no horizonte do
milharal.
Abri a boca para tecer qualquer comentário
idiota, porém me calei ao perceber a seriedade nos
olhos vermelhos dele. Sua pele parecia ainda mais
branca, naquele instante em que tudo estava mais
claro. Ele passou as mãos enluvadas pelos cabelos
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lisos e cheios, depois inspirou profundamente.


Repetiu o processo como se tivesse dificuldade de
assimilar o que tinha acabado de lhe acontecer. Por
fim, a criatura virou o rosto na minha direção e
deixou o vermelho de seus olhos ainda mais nítido,
como se fosse uma grande surpresa me ver outra
vez.
— Estrela — o meu nome foi a única coisa
que falou por longos segundos. Passei todos eles
me sentindo tonta com seu timbre de voz marcante;
continha doçura e seriedade na mesma medida, de
forma que foi impossível não sofrer arrepios.
Continuamos nos encarando fixamente. Ele
parecia raciocinar bastante enquanto me olhava, já
eu, mal conseguia formular uma simples frase
dentro da minha cabeça. Desisti de pensar em
algum momento e passei a assimilar suas
características: as sobrancelhas em um tom de azul
mais escuro que o cabelo, o formato másculo do
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rosto, o nariz que parecia esculpido, os lábios finos,


discretos e meio arroxeados, as orelhas um pouco
pontudas, feito um duende. O mais incrível de tudo
era considerá-lo um ser bonito, ainda que também
fosse bem estranho.
— Suas funções vitais estão em pleno
funcionamento? — ele perguntou, ainda me
observando como se eu fosse atração turística. Se
aos olhos dele eu era tão esquisita quando ele era
aos meus, então seu comportamento estava mais do
que justificado.
Aquiesci devagar, maravilhada e meio
confusa com a forma com que ele usava as
palavras, e como parecia cantar ao pronunciá-las.
— Permita-me dizer que a senhorita me
parece assustada. Peço para que não se sinta assim,
pois não é minha intenção machucá-la.
Aquiesci de novo porque me via incapaz de
dar alguma resposta sem gaguejar.
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O desconhecido se levantou do chão em um


salto, sem se apoiar em absolutamente nada, e deu
alguns passos para me alcançar.
— Consegue se levantar sozinha ou permite
a minha ajuda? — ele colocou a mão para frente
como se não houvesse uma escolha. Sem pensar em
nada, entrei em contato com a superfície
encrespada de sua luva. Ele me puxou sem
qualquer dificuldade e me coloquei de pé. Fiz o
possível para não bambear, pois não o queria me
tocando.
Limpei o meu traseiro sujo de areia com as
duas mãos, sem ousar perdê-lo de vista. Ele me
devolveu o casaco em um movimento suave,
ajudando-me a vesti-lo. Eu nem estava com tanto
frio assim, mas não me encontrava com forças de
rebater sua atitude gentil.
— O... frio p-passou? — Odiei a mim
mesma por ter soado tão patética. Mal deu para
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entender a pergunta que fiz, prova daquilo foi ele


ter demorado a responder.
— Não, para ser sincero. O meu corpo
possui uma ampla capacidade de adequação às mais
diversas temperaturas, porém, leva um tempo.
Precisei de alguns minutos para me adaptar à
presença constante do oxigênio, por isso sofri um
desmaio. — Ele tirou os olhos de mim pela
primeira vez. Andou na direção da nave, que ainda
estava aberta. — O seu planeta é extremamente
frio, suponho que eu vá me sentir mais confortável
daqui a uns dias. No entanto, obviamente, não
ficarei por tanto tempo.
Ele apenas encostou os dedos na nave e ela
voltou a se fechar, provocando um ruído discreto de
um veículo em marcha ré.
— 14038, ativar — falou seriamente, em
tom de ordem. Nada aconteceu. — 14038, ativar.
— Por uns instantes, a coisa mais palpável foi o
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silêncio do milharal. — 14038, modo de


emergência, ativar. — Ainda que a voz dele
continuasse séria e indiferente, eu sabia que algo
havia dado errado com a nave do sujeito.
Aproximei-me lentamente, creio que dando
ouvido à curiosidade. Se não fosse ela, o pavor já
teria me levado para bem longe dali.
— 14038, modo de emergência, ativar! —
O ser de outro mundo repetiu algumas vezes antes
de, enfim, se dar por convencido. A nave dele tinha
quebrado e eu não fazia ideia do que isso
implicaria. — Não responde. Todo o sistema parece
ter sido desintegrado.
Ele ergueu um braço e afastou a manga do
macacão preto. Encostou a boca em seu pulso
branco, como se ali houvesse algum tipo de
comunicador. Começou a falar uma língua
estranha, tão esquisita que meu cérebro deu um nó.
Não consegui identificar vogais ou consoantes.
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Eram apenas alguns sons aleatórios que se


chocavam, se misturavam e deviam fazer sentido
em um lugar bem distante do planeta Terra.
Dei alguns passos para trás por puro medo
do desconhecido.
— Você quer me dizer o que está
acontecendo? — perguntei de uma vez, tomando
coragem. O sujeito parou de pronunciar aquelas
bizarrices e me olhou. — Quem é você e por que
está aqui?
— Eu vim te buscar, Estrela — deu de
ombros.
— M-Me... b-buscar?
Ele se aproximou até ficar bem na minha
frente. Tive medo de me mexer.
— Sua mente humana limitada não me
permite explicar exatamente o que está
acontecendo.
— Está me chamando de burra? — cruzei
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os braços para frente. Nenhum extraterrestre metido


se acharia o dono do mundo enquanto eu estivesse
por perto.
— De forma alguma, não vejo nenhuma
similaridade entre a senhorita e o animal. — Fiz
uma careta para ele. — Só preciso que entenda que
estou com um grande problema agora. 14038 não
funciona e perdi todas as conexões físicas e
psíquicas.
— Significa que... — pausei, atordoada com
a conclusão tirada pelo meu cérebro.
— Significa que estou preso em seu planeta.
— Ele não pareceu exatamente chateado com
aquilo. — Não há nenhuma tecnologia aqui que
torne possível o contato necessário para um pedido
formal de ajuda interplanetária.
— Ai, meu Deus... — depositei as mãos na
cabeça, sentindo-me cada segundo mais
desesperada.
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— Peço desculpas por frustrar os planos,


Estrela. Fiz o possível para pensar em cada detalhe
de nossa viagem, só não contava com uma traição.
Fechei os olhos com força. Quando os
reabri, notei que a criatura não estava mais tão
indiferente. Parecia surpreso. Ou não. Suas
expressões eram difíceis demais de interpretar. A
seriedade e indiferença predominavam, como se
fosse de sua natureza não expressar qualquer
sentimento.
— Espera... Viagem? Traição?
— Exatamente — ele aquiesceu, reflexivo.
Olhou para a nave em formato de ovo. — 14038 foi
atingida porque escolhi não compartilhar meu
experimento com outras galáxias. Eles me
enganaram, ajudando-me a entrar em sua
atmosfera, e me exilaram.
— Que experimento?
Ele suspirou e virou o rosto na minha
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direção. Olhos vermelhos cintilaram diante da


presença disfarçada dos primeiros raios solares.
— Estrela X-189.
— Hã?
— É o nome do experimento.
Continuei o observando enquanto ele não
tirava os olhos de mim.
— Percebo sinais de exaustão em sua
aparência, Estrela — falou baixo, quase como se
tentasse me seduzir, não me ofender. Ainda assim,
me senti mal por ele ter notado que eu devia estar
igual a um zumbi. — Acredito que minha presença
tenha contribuído para sua instabilidade física e
emocional. Sugiro que descanse. Tentarei consertar
14038 e, então, partiremos.
A irritação por causa da maneira como falou
que me atingia — e que por acaso era a mais pura
verdade — me fez explodir de uma forma
malcriada:
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— Partiremos? Eu não vou a lugar algum


com você, mano. Que ideia é essa? Acha que pode
vir até aqui e me levar para o raio que o parta? Não,
meu amigo, sinto muito!
— Não a levarei a nenhum raio. Acredito
que a senhorita não esteja me entendendo
perfeitamente. Há algum problema com a minha
pronúncia?
— Você por inteiro é um problema, não
percebeu? Tem um ovo gigante no meio do
milharal — apontei para a nave. — Meus
funcionários vão acordar em breve e não sei como
explicar isso.
— Não, a senhorita não pode dizer nada a
ninguém. Há uma regra de sigilo muito importante
entre o seu planeta e o resto do Universo, que deve
ser mantida a todo custo. — Ele balançou a cabeça
em negativa, daquela vez mudando a expressão
para uma meio assustada. — Entenda que quebrei
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muitas regras ao entrar em contato com a senhorita


e a planejar removê-la de seu planeta, mesmo que o
motivo seja de profunda importância.
Não fazia ideia de qual era a importância, só
queria que ele sumisse da minha frente. Assim, eu
não me sentiria tão “instabilizada física e
emocionalmente”, usando suas palavras. A situação
era tão inusitada que eu ainda esperava acordar de
um sonho.
— Sugiro que tire essa nave do meu
milharal — resmunguei. — E que não deixe que
ninguém te veja. Você não imagina o inferno que
será se alguém desconfiar de... — parei de falar
porque o sujeito se afastou e levantou o ovo como
se ele não pesasse nada. A nave tinha a minha
altura e a largura de um carro, voava e devia ser
pesada pra dedéu. Não era possível que fosse leve.
— Quanto que essa coisa pesa?
— Hum... Passando para o seu sistema de
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medidas... Em torno de 2,1 toneladas.


— Minha Nossa Senhora! — levei uma mão
ao peito, absolutamente surpresa. O cara era forte
pra burro. — Como... consegue?
— A gravidade ajuda. — Fiz uma careta
porque uma coisa que não ajudava ninguém a pegar
peso na Terra era a tal da gravidade. — Onde posso
escondê-la até encontrar uma forma de fazê-la
funcionar?
— V-Venha... c-comigo.
Andei rápido pelo milharal, de volta à
caminhonete estacionada. Ignorei a presença do
desconhecido logo atrás, que não parecia cansado
em carregar aquele ovo, e que pedia desculpas toda
vez que um pé de milho caía no chão por causa do
pouco espaço para caber a nave. Apontei para a
caçamba da caminhonete e ele depositou o ovo
sobre ela. A carroçaria soltou um ruído feio e
abaixou na parte de trás. Eu não sabia se daria
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certo. A caminhonete podia levar até uma tonelada


e meia, não mais que isso.
Ainda assim, tentei disfarçar o desespero e
entrei no veículo. A criatura demorou demais a dar
a volta e entrar pela porta do carona.
— Não entendo por que seus veículos não
voam.
Deixei seu comentário sem resposta.
Precisei acelerar bastante para a caminhonete não
morrer, e a senti meio estranha durante todo o
percurso pela fazenda. Devia ser quase cinco da
manhã e eu estava rezando para que ninguém
tivesse acordado, ou se tivesse, que não cruzasse o
nosso caminho. Seria impossível disfarçar aquele
ovo.
Estacionei de ré na velha garagem ao lado
do casarão. Ninguém a frequentava desde que o
papai morrera, deixando uma grande quantidade de
entulhos por ali.
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— Tire o ovo daí de cima e cubra com


aquela lona — apontei, dando ordens como se o
desconhecido fosse um funcionário.
— Ovo? — ele fez uma careta e coçou o
cabelo azul.
— Sim, essa coisa aí.
— Você quis dizer a 14038?
— Não, eu quis dizer ovo mesmo.
Ele resolveu não discutir, talvez porque não
tivesse entendido a minha ironia. Fez o que pedi
sem nenhuma dificuldade. No fim das contas, a
nave se tornou apenas mais um entulho no meio de
tantos outros.
Voltamos para a caminhonete, daquela vez
bem mais leve, coitada, e parei em frente ao
casarão. Queria que a presença dele passasse
despercebida, então teria que ser jogo rápido. Ainda
pensei em deixá-lo na velha garagem, mas queria
ficar de olho em seus movimentos para que não
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fizesse nenhuma besteira que pudesse chamar a


atenção. Eu que não o deixaria sozinho por um
único instante. Se era estranho estar em sua
presença, pior ainda seria não saber seus planos.
Eu o puxei pela mão enluvada enquanto
subia as escadas. Atravessamos o terraço, a sala de
estar e um largo corredor. Fiquei em dúvida se o
deixaria em um quarto de hóspede, mas Dona
Margarida desconfiaria depressa se eu não fosse
mais esperta. O único lugar da casa que ela não
entrava era na minha suíte, pois respeitava a minha
privacidade. Portanto, foi para lá que levei o dono
de olhos vermelhos brilhantes.
Fechei a porta atrás de nós e a tranquei.
Soltei um suspiro ruidoso. Ele estava me olhando
com atenção e a seriedade que lhe era inerente.
— Está com sono? — questionei em um
tom ameno. Ele abaixou um pouco a cabeça. — Ou
melhor, você dorme?
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— Claro que durmo, Estrela. Todo ser vivo


merece descanso para restabelecer a ordem de seu
organismo. Contudo, não tenho certeza de que
conseguirei dormir. Estou preocupado e sentindo
um frio absurdo.
Olhei-o com mais atenção. Nada em seu
corpo sugeria preocupação ou frio.
— Não vai me dizer o seu nome? Não me
sinto à vontade te chamando de extraterrestre.
— Compreendo. Não me sentiria
confortável chamando-a de terráquea. — Ele
caminhou até uma cômoda onde repousavam
alguns porta-retratos. — A tradução de meu nome,
em sua língua primária, é G12L07N98P.
— Isso é um nome ou a senha do Wi-Fi? —
Fiz uma careta enorme. Como alguém poderia se
chamar assim?
— Não usamos a internet há cerca de quatro
milênios. É uma tecnologia absurdamente
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ultrapassada.
Revirei os olhos.
A criatura de nome esquisito segurou um
retrato meu de quando era criança. Sua expressão
modificou um pouco. Os olhos se tornaram menos
agressivos e mais gentis. Senti o princípio de um
sorriso em seus lábios.
— Pode dizer seu nome em sua língua? —
pedi.
Ele emitiu alguns sons fantasmagóricos, tão
ou mais incompreensíveis que seu nome traduzido.
— Tudo bem, desisto. Já que é a primeira
letra, eu vou te chamar de Gê.
— Como quiser, Estrela — depositou meu
retrato no local de origem. — Não se preocupe com
a minha presença. Vá descansar. Eu... — ele olhou
bem para o meu quarto, como se procurasse por
alguma coisa. Andou até o guarda-roupa e abriu as
portas. Enfiou-se dentro dele sob meu olhar
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confuso. — Aqui está ótimo.


— Gê... Nós não dormimos dentro de
guarda-roupas. Venha, deite-se aqui. — Removi o
edredom e o grosso lençol para noites frias. Gê se
aproximou sem entender nada, mas me obedeceu
prontamente. Coloquei o travesseiro embaixo de
sua cabeleira azul e o cobri com o edredom. —
Ainda sente frio?
Ele aquiesceu.
— Não creio que qualquer tecido fiado com
materiais terrestres vá ajudar, Estrela. O meu
planeta é muito mais quente que o seu. Para ser
específico, o mais quente do Sistema Solar, com
precisamente quatrocentos e sessenta e um graus
Celsius.
Continuei o olhando como se ele fosse
ainda mais estranho do que já era. Eu conhecia
aquelas informações. Só estava tentando assimilar
sem enlouquecer.
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— Você... veio de... Vênus? — Engoli em


seco.
Gê fez um gesto com a boca que lembrava
um sorriso.
— Exatamente.
— Como é possível? — Eu me sentei sobre
o colchão, ao lado dele. — Como pode ter vida em
Vênus? E como vocês podem ser tão... parecidos
conosco?
— Posso tentar te explicar depois que
descansarmos. Estou verdadeiramente preocupado
com a senhorita.
Grunhi de frustração, dando-me por
vencida. Ele tinha toda razão, eu estava morta. Meu
corpo se encontrava exausto e a cabeça parecia
prestes a explodir.
Antes que eu pudesse me levantar, Gê
murmurou:
— Obrigado por me receber em seu planeta,
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Estrela. — Seus olhos se aprofundaram de forma


que me arrancou o ar. Como ele podia fazer aquilo?
Havia uma sensação esquisita pairando o meu ser
toda vez que me encarava.
— Não tive muita escolha.
— Claro que teve. Passei os últimos anos
planejando a nossa viagem. Se estou aqui, foi
porque você plantou em mim a vontade de fazer o
impossível.
— O que está dizendo, Gê? Não sou
culpada por nada disso.
— Ser culpada por fazer grandiosidades é
uma honra. Devia se sentir honrada porque eu
jamais encontrei alguém tão inacreditável em todo
o Universo.
Meu rosto deve ter ficado igual a um
pimentão, pois senti minhas bochechas arderem de
desconcerto. Receber um elogio de uma criatura
vinda de Vênus era tão legal quanto pavoroso. Foi
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por este motivo que disfarcei minha incapacidade


de levar o assunto adiante e me levantei da cama.
Fui ao banheiro para tomar um banho e
colocar uma roupa mais confortável. Quando
voltei, Gê já estava com os olhos fechados, deitado
na mesma posição; com a barriga para cima e as
mãos estendidas nas laterais de seu corpo.
Respirava devagar, silenciosamente, e mantinha
uma expressão séria que, nele, ficava muito
próxima à perfeição que um rosto dormindo
poderia atingir.
Levei alguns edredons para a poltrona
antiga de papai, que era larga e bastante
confortável, aninhando-me enquanto o observava.
Bem que tentei parar de encará-lo, mas era
impraticável. A energia não tinha voltado, por isso
não podia ligar o aquecedor e fazer sua estada em
minha suíte ser mais confortável.
Fiz o possível para não pensar que tudo
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aquilo era uma loucura gigantesca. Era


inconcebível que um extraterrestre vindo de Vênus,
o planeta que eu tanto amava observar pelo
telescópio, estivesse dormindo na minha cama. Mas
estava. Bem como havia uma nave espacial
quebrada na garagem de papai, e que, quando
consertada, prometia me levar para bem longe junto
com o Gê.
A ideia me parecia tão absurda quanto
tentadora.

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Acordei com batidas desesperadas na porta


do meu quarto. Dona Margarida me chamava como
se uma tragédia estivesse em pleno acontecimento
dentro da fazenda. Eu me sentei no colchão em um
pulo, confusa porque não me lembrava de ter
adormecido na cama. Meu pensamento encontrou
morada nos olhos vermelhos me encarando
seriamente, e analisei tudo ao redor, procurando por
algum indício de que o Gê esteve comigo na noite
passada.
Levantei depressa demais, atropelando
alguns móveis e batendo com o joelho na velha
poltrona de papai. Corri até o banheiro na

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esperança de encontrá-lo fazendo a higiene matinal,


se é que extraterrestres precisavam disso. A porta
continuou batendo insistentemente. Eu estava tão
fora de controle que demorei uma eternidade para
abri-la. Dei de cara com dona Margarida, que
estava com o semblante apavorado.
— Oh, Senhor, graças a Deus! Eu estava
preocupada, quase procurando o Frederico para ele
arrombar a porta. — Ela soltou um suspiro,
colocando uma mão sobre o peito. — Menina, você
me assustou.
— O que foi? Aconteceu alguma coisa? —
Olhei para os dois lados do corredor, um tanto
apreensiva. Onde Gê havia se metido?
— Você não apareceu para o café da manhã
e a porta estava trancada... Já são quase dez da
manhã. Eu que pergunto o que aconteceu, Estrela.
Está doente? — Dona Margarida tacou a mão no
meu pescoço, depois na minha testa, conferindo a
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temperatura. — Não parece febril.


— Estou bem, acho que só estava muito
cansada.
— Mas você nunca acorda tarde.
— Eu sei... — Revirei os olhos, um pouco
irritada com sua preocupação extremosa, embora
também fosse o motivo para eu me sentir tão
amada, mesmo sem meus pais por perto. — Não
precisa se preocupar. Vou tomar um banho.
Eu estava prestes a fechar a porta, mas parei
no meio do caminho. Ainda me sentia um pouco
fora de órbita, sem acreditar que a noite anterior
realmente havia existido. Mas se sim, onde estava
Gê? Ele não podia andar pela fazenda chamando a
atenção dos funcionários. Eu não tinha como
explicar a sua presença para ninguém.
— Dona Margarida... A senhora, por acaso,
viu alguma coisa?
Ela arregalou os olhos.
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— Que coisa, menina? Não, não vi nada,


não. — Seu desespero se tornou evidente porque
toda vez que eu fazia aquela pergunta, começava a
narrar sonhos estranhos que sempre aconteciam
comigo. — Vá logo, você tem um carregamento de
verdura atrasado pra levar à feira.
Soltei um grunhido diante daquela
responsabilidade inevitável e fechei a porta. Ainda
bastante nervosa, tomei um banho rápido, coloquei
jeans velhos, camisa regata — já que o frio tinha
ido embora junto com a noite — e calcei minhas
botas de galocha, ideal para o trabalho que me
aguardava naquele dia. Porém, antes de verificar o
carregamento de verduras saídas da horta, foi
impossível não procurar pelo Gê.
Eu sabia onde ele poderia estar, por isso que
caminhei apressadamente até a velha garagem. Foi
com muita surpresa que olhei para o vazio onde
devia estar a nave. Não havia nada ali. A lona
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empoeirada que devia estar sobre o ovo jazia no


chão, embolada como um pedaço grande de trapo
velho, como costumava ficar. Num rompante
desesperado, percorri cada centímetro da garagem à
procura de algum sinal que me fizesse crer que eu
não tinha pirado na batatinha.
Não havia nada. Não existia nave, luzes
estranhas ou um venusiano com cabelos azuis e
rosto perfeito. Definitivamente, a minha carência
tinha atingido um nível elevado, bem como a minha
capacidade de imaginar as coisas mais inusitadas da
face da Terra. Vencida pela própria razão, me
arrastei para longe da garagem.
Não deu para mensurar o sentimento
horrível que invadiu o meu coração, deixando-me
aérea durante todo o dia. Fiz minhas obrigações no
automático, respondendo questões importantes sem
refletir e sendo chamada atenção pelo Valentim o
tempo todo.
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— O que você tem, Estrela? — ele


perguntou enquanto dávamos uma olhada no
celeiro. Precisávamos de mais feno e tínhamos uma
égua adoentada.
Peguei a escova que eu costumava usar para
massagear a Açucena.
— Nada.
Ele soltou um risinho de deboche. Arrumou
o chapéu sobre a cabeça e continuou abastecendo a
comida dos animais. Seus braços fortes eram muito
úteis para carregar os inúmeros sacos de ração
usados diariamente.
Eu me aproximei da Açucena
delicadamente e passei a escová-la.
— Você está no mundo da lua, muito mais
que o habitual — Valentim soltou outra risada. —
Vamos, me fala, aconteceu alguma coisa e não
estou sabendo?
— Só estou cansada — falei enquanto
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relembrava cada detalhe criado pela minha mente


perturbada. Só uma maluca como eu para cair numa
ilusão tão fora de sentido. Por alguns segundos,
pensei que devia ouvir os conselhos de Margarida e
voltar para a psicóloga. — Acho que preciso de
umas férias.
— Férias? Mas a colheita das uvas é no mês
que vem.
— Eu sei, Valentim. Como se eu já tivesse
tirado férias antes, hein? — Suspirei, passando a
escova pela crina lustrosa da égua puro-sangue, que
se deliciava com a carícia. — Sair daqui está fora
de cogitação desde que nasci.
Ele depositou o saco enorme de ração no
chão. Colocou as mãos na cintura e me olhou com
seriedade e certo ar confuso.
— Você pensa em sair daqui? Achei que
amasse a fazenda.
— Eu amo a fazenda! — expliquei antes
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que me torturasse com o assunto. Valentim era do


tipo que não costumava pensar fora da casinha. Sua
vida seria sempre aquela, tudo igual, dia após dia.
Ele não desejava nada além da vida no campo. Um
dos motivos por não termos dado certo. — Só
acredito que há um mundo enorme lá fora, um
mundo que talvez eu pudesse conhecer.
— Estrela... — Sem que eu percebesse,
Valentim já estava perto demais. Ele colocou sua
mão calejada sobre a minha. — A fazenda depende
de você. Sabe disso, não é?
— Claro que sei. — Eu já estava irritada
com a conversa. Toda vez que eu mencionava
viajar, seja para qualquer lugar e por qualquer
motivo, sempre tinha alguém para me dizer que era
loucura.
— Precisamos de você aqui. — Valentim
piscou os olhos de um jeito diferente, fazendo-me
franzir o cenho e me questionar se ele estava
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falando dos funcionários ou de si próprio. Pela


maneira como passou a alisar minha mão, a
segunda opção estava mais próxima da realidade.
— Seu lar é aqui com a gente.
Abaixei minha mão, desvencilhando-me de
seu toque. Eu me afastei dele, seguindo para o
outro lado de Açucena. Passei a escovar sua
barriga. A égua se remexeu um pouco, sentindo
cócegas, mas ela adorava aquilo tanto quanto eu.
— Estrela, eu...
— Já chega, Valentim — minha voz soou
firme. Era o mesmo tom que eu usava para lidar
com os problemas cotidianos. — Não sei no que
está pensando, mas não vai acontecer de novo.
Ele contornou Açucena, aproximando-se
novamente. Revirei os olhos.
— Sei que você não quer nada comigo, sou
apenas um funcionário. — Seu olhar estava sobre
mim, e por um momento eu lhe concedi a chance
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de uma explicação para aquele comportamento


ridículo. — Mas, sabe, somos jovens e
desimpedidos. Só tem gente velha nessa fazenda e
tenho saudades de sua companhia.
— Você tem saudade de quê exatamente?
Ele colocou as mãos no bolso da calça jeans
sujas de lama.
— Sexo — desabafou junto com um
arquejo. — Desculpa ser tão direto, mas sei que
com você só funciona assim.
— Pois é. — Ergui a cabeça para manter
minha pose diante de sua proposta. Eu estava
carente, com certeza precisando de sexo tanto
quanto ele, mas recomeçar uma relação
descompromissada com Valentim era como um tiro
no pé.
— O que me diz? — Ele estava
visivelmente ansioso por uma resposta.
— Olha... — Larguei a escova de lado e me
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afastei definitivamente da área dos cavalos.


Valentim me seguiu como um cão atrás do osso. —
Eu vou pensar, beleza? — Enxuguei o suor que
escorria da minha testa com as costas das mãos.
— Pensar em quê, Estrela? Não tem no que
pensar, fizemos isso tantas vezes...
— E em todas eu me dei mal. — Virei-me
em sua direção. Valentim odiava ser contrariado,
mas sua personalidade birrenta não me dizia
respeito e eu a ignorava com cem por cento de
aproveitamento. — Você devia estar feliz porque
não neguei de cara. — Ele bufou em
descontentamento e eu tratei de deixar o celeiro de
uma vez. Havia ainda muito serviço para ser feito
naquele fim de tarde.
Ajudei a guardar as galinhas, conferi a horta
e resolvi algumas questões financeiras. Era tanta
coisa para pensar que eu não sabia como dava conta
de tudo. Talvez todos estivessem com a razão e a
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fazenda realmente fosse o meu lugar no mundo. Eu


não me via fazendo outra coisa. Em contrapartida,
não me imaginava vivendo daquela forma pelo
resto da vida. Não conseguir criar expectativas de
um futuro diferente me frustrava.
Já era noite quando parei em frente à
escadaria do casarão, cansada demais até para subi-
las. A exaustão me fez sentar em um dos primeiros
degraus, como sempre, observando o céu estrelado
que já cobria a fazenda, deixando-a imersa em uma
meia-luz suave, quase romântica. Não dava para
evitar sentir decepção.
Certa tristeza invadiu o meu peito e deixei
algumas lágrimas caírem, tomadas pela raiva de ser
uma idiota que vivia ansiando coisas que estavam
fora do alcance. Eu nunca me tornaria uma
astronauta, não conheceria o espaço e muito menos
tocaria uma maldita estrela. Não existiam
extraterrestes ou naves espaciais, nem luzes
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fantasmagóricas ou qualquer outra coisa vinda de


outro planeta.
Minha cabeça precisava entender aquilo de
uma vez por todas.
Sempre que a realidade colocava seu peso
em minhas costas, eu me sentia perdida. Havia uma
solidão incurável dentro de mim, que não era
aplacada por nada que pertencesse àquela fazenda.
As terras do meu pai me davam um orgulho
medonho, e eu as amava demais, porém elas eram
também os grilhões que prendiam meus pés,
impedindo-me de correr atrás dos meus sonhos.
Mas... Que sonhos? Extraterrestres, luzes,
olhos vermelhos e um nome impronunciável? Eles
eram medíocres. No fundo, eu ainda era uma
menina que teimava em permanecer na infância.
Enxuguei mais algumas lágrimas e voltei a
observar o horizonte da fazenda. Algumas luzes
divagaram pela mata adiante, coloridas e esquisitas.
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Eu me levantei sobre o degrau de imediato. As


luzes se mantiveram insistentes, até que
simplesmente se apagaram. Ainda fiquei algum
tempo parada, piscando os olhos para tentar
compreender se havia imaginado coisas mais uma
vez. Contudo, as luzes voltaram a surgir, e eram tão
parecidas com as que eu tinha visto na noite
anterior que desci os poucos degraus que me
separavam do chão em um pulo.
Peguei a caminhonete, porque ir a pé até a
mata não me pareceu uma boa ideia, e, como na
noite passada, engatei a primeira cantando pneus.
Atravessei a trilha de barro que dava para o
princípio do matagal em uma velocidade amena,
tudo para não chamar a atenção dos funcionários
que habitavam dentro da fazenda e deviam estar em
suas casas, jantando e se preparando para
dormirem.
Estacionei em frente à cerca de arame
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farpado que limitava as terras do meu pai.


Desliguei a caminhonete, guardei as chaves no
bolso e parei diante da cerca, procurando pelas
luzes coloridas. Não as encontrei. Ainda assim,
minha curiosidade só não era maior que a
insistência, por isso me esgueirei por entre os
arames até conseguir atravessá-la sem me
machucar feio. Quando eu era garota, fazia aquilo
inúmeras vezes sem que o papai soubesse.
Dei graças a Deus por estar usando botas
grossas e me embrenhei no meio do mato. Por
alguns minutos, ouvi apenas o barulho de cigarras,
corujas e dos galhos sobre os quais eu pisava vez
ou outra. As árvores grandes da mata guardavam
seus mistérios, e um sentimento de inquietação
passou a me acompanhar enquanto eu não me
cansava de desvendar cada arbusto, cada raiz
grossa, cada farfalhar de pássaros em seus ninhos.
Atravessei um pequeno bosque, e então
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mãos grandes surgiram por trás de mim, agarrando-


me e tapando a minha boca. Tentei gritar, mas a
pessoa era forte. Comecei a me debater
alucinadamente, pois não entrava na minha cabeça
a ideia de morrer na escuridão da mata. De jeito
nenhum. Eu não tinha vivido para terminar daquela
forma.
— Eu gostaria muito de que a senhorita
parasse de assustar os animais — um sussurro sério
cortou o silêncio esmagador da mata. — Mantenha-
se tranquila, não vou lhe fazer nenhum mal.
Eu conhecia aquela voz. Claro que
conhecia.
Parei de me debater com o coração batendo
aos pulos dentro do peito. Ele me soltou devagar, e
então pude me virar para vê-lo. Gê estava diante de
mim, do mesmo jeito como eu o havia encontrado
na noite anterior. Das duas uma: ou eu estava
sonhando de novo ou aquele extraterrestre de uma
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figa realmente existia.


— Gê?! — quase gritei seu apelido. — Meu
Deus... — Ele continuou me olhando como se não
entendesse por que eu estava tão desesperada. —
Você... Você existe?
Ele ergueu uma sobrancelha azulada.
— Apesar de ser apenas uma poeira
cósmica em transição pelo vasto Universo, sim, eu
existo.
Não contive a emoção absoluta que
significou revê-lo. Pulei no pescoço dele como uma
donzela em perigo, abraçando-o com força. Ele não
me abraçou de volta, mas minha alegria foi tanta
que nem me importei. A consistência de seu cabelo
entrou em contato com minha pele e me arrepiei da
cabeça aos pés. Havia um calor enorme emanando
dele, provando a mim mesma que, sim, Gê existia.
Eu me afastei devagar, sorrindo para ele.
— Não consigo entender o objetivo de sua
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atitude, senhorita — Gê falou, ainda sério, de um


jeito meio robótico. Sua voz estava um pouco
alterada, mas era quase imperceptível. — A
maneira como os humanos se relacionam é um
grande mistério comportamental. Adianto que a
senhorita não precisa entrar em contato comigo da
mesma forma como faz com os seus.
— Ah, Gê, cala a boca! Foi só um abraço.
Estou feliz demais em te ver! — Não consegui
parar de sorrir. Até que me lembrei de seu sumiço
durante o dia inteiro e tive vontade de matá-lo. —
Aliás, por onde andou? — Cruzei os braços. — E
onde está a sua nave? Não acredito que tenha
removido aquele ovo gigante da garagem sem
chamar a atenção de ninguém.
Ele não falou nada. Ficou apenas me
olhando.
— Gê? Fala alguma coisa, vamos!
— Não entendi. A senhorita pediu para que
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eu me calasse. Achei que quisesse aproveitar o meu


silêncio para falar sem ser interrompida.
— Não seja tão literal, Gê. — Revirei os
olhos, descruzando os braços. — Vamos, me diz
logo por onde você andou e por que sumiu o dia
todo.
Ele começou a andar pela mata. Eu o
acompanhei, sem saber para onde me levava, mas
com a certeza de que era um lugar importante.
— Não consegui dormir por mais de uma
hora — ele começou a se explicar. — A senhorita
estava descansando e não quis acordá-la, portanto
resolvi consertar 14038 de uma vez. — Gê se
desvencilhou de alguns galhos, até que alcançamos
uma área mais aberta. Era ali que estava a sua nave
espacial. Passei algum tempo admirando o enorme
ovo diante de nós. — Jamais conseguiria consertá-
la sob o olhar próximo dos terráqueos. 14038 não é
silenciosa e tem algumas luzes. Eu a trouxe aqui
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para consertá-la sem ser percebido.


— Hum... E você passou o dia inteiro
tentando?
— Exatamente.
— E funcionou?
— 14038 mostrou sinais de estabilidade.
Acredito que podemos seguir os planos agora,
Estrela. — Ele olhou para mim por um breve
instante, depois se aproximou da nave. Tocou-a
com uma mão e ela se abriu em camadas.
— Como assim, Gê? Eu não posso ir para
sei lá onde contigo. — Meus olhos se mantiveram
arregalados de pavor. Algumas luzes cintilaram
dentro do ovo e pude ver seu interior por completo.
Parecia uma cabine de avião, com precisamente
duas poltronas e um monte de botões aleatórios. —
É loucura.
Gê pisou dentro da nave e se virou para
mim. Ainda vestia o mesmo macacão preto, e seu
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rosto bonito não dava indícios de cansaço, mesmo


que o coitado tivesse trabalhado durante horas sem
qualquer descanso.
— Estrela, a viagem não fará sentido sem
você. — Olhos vermelhos cintilaram ao me encarar
a certa distância. Ele ergueu uma mão enluvada em
minha direção. — Tudo o que fiz foi para atender
ao seu desejo, não quer realizá-lo por qual motivo?
Eu dei um passo para trás, assustada com
aquela conversa toda. Gê queria me abduzir assim,
na maior cara dura?
— Do que está falando? Para onde vamos?
Ele continuou com o braço erguido.
— Tocar uma estrela — murmurou de uma
forma suave, tão doce que fez um calor absurdo
tomar conta do meu corpo. — Por favor, Estrela,
conceda-me a oportunidade de realizar o
impossível. Desta vez, nada mais frustrará os
planos. A nave foi minuciosamente estudada para
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comportar um ser de sua raça durante o tempo


necessário para alcançarmos a estrela mais perto de
seu planeta.
Meu queixo devia ter caído, pois não
consegui fechar a boca.
— O-O... s-sol? — Gê apenas aquiesceu. —
C-Como? É... improvável.
— Eu também pensei que era, Estrela. —
Olhei para sua mão estendida. Não sabia como ele
ainda não tinha se cansado. — Como tocar uma
superfície com aproximadamente cinco mil e
quinhentos graus Celsius, sem mensurar as
profundas variações, com uma mão tão delicada
quanto a sua?
— Gê... — Eu estava embasbacada. O nome
dele escapuliu pelos meus lábios como se fosse
uma pequena oração.
— Então, desenvolvi 14038, que suporta até
um milhão de graus Celsius. — Olhei para o
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enorme ovo por breves instantes. Não dava para


acreditar no quão resistente era aquela coisa. — Na
parte dianteira abre-se uma cavidade apropriada em
que você poderá introduzir sua mão quando
estivermos perto o suficiente, feita de um material
encontrado especificamente em Mercúrio, tão fino
que parece a mais suave das luvas. Eu a chamo de
Estrela X-189. Ela suporta até dois milhões de
graus Celsius.
— Merda, Gê...
— É assim que a senhorita terá todas as
possibilidades de ser a primeira criatura de todo o
Universo a tocar uma estrela. — Os olhos dele
cintilaram mais uma vez, e tive certeza absoluta de
que havia uma enorme realização por trás deles. Gê
estava feliz. Mais do que isso, estava em êxtase
com o que acabara de me dizer.
Eu não conseguiria calcular quanto trabalho
aquele ser teve para construir a nave. Nem mesmo
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para desenvolver um experimento com o único


intuito de realizar um sonho meu. Parecia tão
inacreditável que só podia ser mais um sonho. No
entanto, se era um mero sonho, significava que eu
poderia realizá-lo sem nenhum problema. Não
precisava pensar em deixar a fazenda, nem em mais
nada. Só teria que segurar a mão que me era
oferecida.
Foi com o corpo inteiro tremendo que o
toquei sem alarde. Gê fechou a mão sobre a minha
e me puxou para dentro da nave esquisita. O ovo se
fechou ao nosso redor, provocando um ruído
característico. Minha mão continuou enroscada na
dele, e eu o olhava com tanta admiração que mal
conseguia respirar. Seus olhos vermelhos
permaneceram me encarando. A expressão de Gê
finalmente saiu da seriedade, naquele momento se
tornou nítida a alegria que sentia com minha
presença dentro da nave.
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Não pude conter a emoção que me deixava


à beira do descontrole, por isso me deixei levar de
uma vez e voltei a me atirar sobre ele. Afinal,
aquele extraterreste havia feito mais por mim do
que muita gente. Eu tinha um objetivo preciso ao
agarrá-lo, que ia além de um simples abraço.
Aplaquei a vontade louca que tinha de provar seus
lábios finos — por mais bizarro que o desejo
parecesse —, fazendo minha boca se chocar contra
a dele.
Circulei meus braços em seu pescoço,
tornando a entrar em contato com seus cabelos
lisos. Os lábios de Gê eram quentes em demasia,
mas não desisti, ainda que parecesse que eu estava
beijando a superfície de uma pedra áspera, que
tinha passado o dia inteiro sob o sol escaldante de
uma manhã de verão. Ele não se mexeu diante do
meu ataque, permaneceu estático enquanto a
curiosidade me fez tocar as laterais de seu rosto.
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A pele era aveludada, uma consistência


diferente de qualquer pele humana, e quente como
a água que saía do chuveiro a gás. Eu sofri mais um
arrepio ao entreabrir um pouco os meus lábios e
tocar, com a ponta da língua, nos dele. Foi então
que Gê segurou meus cotovelos e me fez afastar.
Eu o encarei com certa vergonha, e ele estava com
os olhos vermelhos assustados.
— Compreendo que a senhorita possua
necessidades fisiológicas de manter uma relação
física acentuada com os de sua espécie, mas espero
que também compreenda que eu... — ele fez uma
pausa longa. Mantive-me em silêncio, com medo
até de me mexer. Tentei não me sentir
claustrofóbica dentro daquele ovo. — Eu não faço a
menor ideia de como agir.
— Tudo bem, Gê. — Soltei um suspiro
ruidoso.
Comecei a me sentir uma verdadeira idiota
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por tê-lo atacado. O coitado era inocente em todos


os sentidos. Afinal, de que forma os venusianos
procriavam? Olhei para o local no macacão dele
onde deveria existir um pênis e me animei ao
encontrar certo volume por ali. Balancei a cabeça,
dispersando as ideias malucas.
— Só me leve para tocar uma estrela —
falei, por fim.
— Mas é claro, senhorita.
Ele segurou a minha mão e me levou até
uma das poltronas. Ajudou-me a fechar alguns
cintos de segurança esquisitos, diferentes dos
terrestres. Sua proximidade me deixou chocada,
envergonhada pela minha atitude e curiosa em vê-
lo de tão perto.
Eu não sabia o que me esperava, mas tinha
certeza absoluta de que valeria a pena.

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Comecei a considerar a minha imaginação


realmente criativa, pois aquele sonho com o Gê se
tornava ainda mais complexo a cada segundo que
passava. Enquanto ele se sentava ao meu lado, em
uma poltrona igual a que eu estava, e falava uma
língua esquisita em tom de comando, a nave emitia
sons estranhos como se respondesse ao seu dono.
Luzes de diferentes cores escapuliam dos trocentos
botões que compunham o ovo, no entanto, Gê não
chegou a apertar nenhum deles.
— Você não vai apertar algum desses
botões? — apontei com curiosidade, pois até em
sonhos eu podia ser capaz de ser uma pessoa

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extremamente curiosa.
Gê interrompeu sua fala robótica, da qual eu
não entendia porcaria nenhuma, e me olhou como
se tivesse esquecido que eu estava em sua
companhia.
— Por que eu apertaria, Estrela?
— Os botões são feitos para isso, não? Para
serem apertados — ergui uma sobrancelha. Gê
continuou me encarando.
— Não há tecnologia mais atrasada do que
aquela que exige que botões sejam apertados — ele
voltou a olhar para frente, bem para o painel
colorido. — 14038 é capaz de atender aos meus
comandos e detectar o que deve ser feito.
— A própria nave que aperta o botão? —
Minha mente era mesmo muito fantasiosa. Eu devia
escrever livros de ficção em vez de cuidar de uma
fazenda. Aquele era um talento que eu estava
desperdiçando.
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— Ninguém aperta botões, Estrela.


— E por que sua nave tem botões se
ninguém aperta?
Achei que Gê fosse perder a paciência
comigo, mas voltou a me olhar e percebi o
resquício de um sorriso em seu semblante. Falou
mais algumas coisas naquela língua extraterrena
misteriosa e, em seguida, respondeu à minha
pergunta:
— Cada compartimento que a senhorita está
erroneamente chamando de botão faz parte do
sistema da 14038. Meus comandos são captados
separadamente e o sistema une as informações até
ser possível atendê-los. — Como eu ainda fazia
uma careta, Gê prosseguiu: — Não sei se é possível
me compreender, senhorita, mas estou fazendo o
que posso para realizar uma boa tradução.
A nave fez um barulho ensurdecedor, e
finalmente se locomoveu. Soltei um grito por causa
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do susto, então Gê falou alguma coisa que fez a


nave parar de uma vez.
— A senhorita está com suas funções
psicológicas em estável funcionamento? — Eu não
sabia se aquela pergunta tinha resposta. Afinal, eu
logicamente era meio pirada, logo, minhas funções
psicológicas não deviam estar em funcionamento
estável há um bom tempo.
— Estou... — respondi para acalmá-lo. Gê
não precisava saber que eu não batia bem das bolas.
— Estou sim, só... levei um baita susto!
— A senhorita está devidamente segura
aqui. É desnecessário sentir qualquer medo.
Podemos prosseguir?
— S-Sim. Manda ver, Gê.
Ele passou algum tempo me observando,
como se tentasse adivinhar meus pensamentos.
— O que exatamente a senhorita quer que
eu mande?
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Soltei uma risada escandalosa. Aquela


criatura era muito literal, eu deveria tomar mais
cuidado com o que dizia para ele.
— Nada não, Gê. Prossiga com os seus...
hum... comandos.
Ele pareceu ter se dado por satisfeito.
Aprumou-se na poltrona e ditou novas palavras
malucas para a nave. Tratei de esperar, daquela vez
mais preparada para a movimentação do ovo. Ele
não me pegaria de surpresa novamente.
Não demorou muito e o objeto tornou a se
locomover. A sensação era de que eu estava
subindo alguns andares de um prédio alto em um
elevador um pouco mais rápido que o normal. O
barulho era estranho e me deixava meio assustada,
porém segurei o receio e tentei curtir aquele sonho
de ser levada para o espaço ao lado de um
extraterrestre bonitão.
Gê ficou em silêncio por alguns segundos,
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enquanto a nave subia e subia. Eu desejava ver o


chão sob nossos pés, mas não havia nenhuma janela
dentro do ovo. Era uma pena alcançar o espaço e
não poder ver nada. Será que Gê me surpreenderia
e abriria algum compartimento envidraçado? Eu
torcia para que sim, no entanto, não fiz nenhuma
pergunta. Tive medo de interromper seus comandos
e de repente a máquina entrar em pane no ar. Eu
não queria morrer naquele sonho e acordar toda
assustada. Preferia que ele tivesse um fim feliz.

O elevador parou por alguns instantes. Por


um momento, achei que aquela fosse uma pausa
igual as que montanhas-russas faziam antes de
descerem de vez. Aguardei com certa apreensão,
até que não consegui mais esperar e olhei para o
Gê. Ele estava concentrando, observando os
pseudo-botões coloridos na nossa frente.
Levei outro susto quando ele abriu a boca
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para formar frases bizarras, longes do meu


entendimento. Será que aquela língua era
venusiana? Ou era tipo um inglês do Universo, uma
língua falada por todos os povos dos planetas? Se
bem que eu nem sabia se existiam povos distintos
vivendo em outros mundos, apenas fazia milhões
de suposições, como sempre.
Senti que o ovo começou a descer. A
sensação de frio na barriga me acompanhou por
todo percurso, tanto que não consegui fazer
nenhum questionamento ao Gê, por mais que não
entendesse por que estávamos descendo. A nave
voltou a provocar ruídos e, aos poucos, foi
desligando suas luzes. Por alguns instantes, ficamos
no mais completo silêncio. Gê encarava o painel
apagado enquanto eu tentava entender o que tinha
acontecido.
— Estrela, eu queria encontrar uma forma
mais agradável de lhe dar uma notícia de extrema
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importância, porém acredito que a verdade seja o


suficiente. — Ele virou o rosto para me olhar. —
14038 não tem força para atravessar a atmosfera de
seu planeta sozinha, muito menos para seguir pelo
espaço até o nosso objetivo.
Pisquei os olhos algumas vezes,
observando-o atentamente. Gê continuou
indiferente, como se tivesse me dito que o céu era
azul. Aquela informação causou um rebuliço no
meu coração, tanto que desejei acordar. Estava
antecipando o pesadelo que certamente se
desenrolaria após uma trágica notícia. Sendo assim,
passei a me movimentar feito uma lunática e até me
belisquei algumas vezes para ver se funcionava.
Nada acontecia. Continuei observando um
Gê sério, que ainda me olhava de volta.
— O quê? O ovo não funciona? — ofeguei,
nervosa. Comecei a desconfiar de que aquilo não
era um sonho coisa nenhuma. Eu tinha quase
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largado a fazenda para fugir com um ET. De


verdade!
Não podia ser possível.
— Não sei de que ovo a senhorita está
falando. Eu lhe informei que 14038 não está em seu
pleno funcionamento. A queda deve ter lhe custado
toda a energia necessária.
Gê retirou seu cinto de segurança e se
levantou devagar. Em seguida, me ajudou a
levantar também. Apenas uma palavra sem vogal
bastou ser dita para que o ovo se abrisse mais uma
vez. Ainda estávamos no meio da mata escura.
Uma lufada de vento soprou em meus cabelos,
arrepiando-me da cabeça aos pés. Aquilo não era
um sonho. Como eu podia ter a real sensação de
frio?
— E agora, Gê? — perguntei em um
sussurro. — Vai consertar a nave de novo?
Ele desceu do ovo como se nada o abalasse.
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Ofereceu-me a mão para que eu também descesse,


e a aceitei de bom grado. O ovo voltou a se fechar
inteiro assim que coloquei os meus pés na terra.
— Lamento muito, Estrela. — Olhei no
fundo avermelhado dos olhos do Gê. Eu não sabia
direito o que pensar. Se Gê não podia me levar para
o espaço, significava que ele também não tinha
como voltar para lá. — Sem energia, 14038 é
obsoleta.
— Mas tem que haver um modo de
conseguir energia! De que tipo ela usa? Gasolina?
Óleo diesel?
Gê balançou a cabeça em negativa.
— Estrela, 14038 não foi construída na
Terra, logo, não utiliza nenhuma energia terrestre
disponível. Ela é alimentada por um composto
intraduzível em sua língua. A palavra mais próxima
da tradução talvez seja CRWTRGBS.
— Puta merda... — Coloquei as mãos nos
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cabelos. — Gê... Você está preso aqui? É isso que


está me dizendo?
A criatura na minha frente olhou para o céu
estrelado. Fiquei um tempo indeterminado
analisando seus cabelos azuis escorridos para trás,
bem como o desenho másculo de seu queixo firme.
Gê fechou os olhos e assim permaneceu por alguns
instantes. Até que, enfim, os reabriu e voltou a me
encarar.
— Não consigo fazer contato psíquico
partindo da superfície de seu planeta — falou
apenas isso. Ainda esperei que ele concluísse o
pensamento, porém Gê continuou em silêncio.
— E então? — quase berrei. — Você não
respondeu à minha pergunta.
Andei de um lado para o outro porque ficar
parada diante daquela situação parecia loucura.
— Sim, Estrela, no momento, estou preso
em seu planeta. Sem energia e sem contato psíquico
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para um pedido de ajuda interplanetário, não tenho


possibilidades de sair daqui.
Gê continuava exalando indiferença. Não
era possível que ele estivesse tão tranquilo. Resolvi
usar a tática da minha antiga psicóloga. Ela sempre
me fazia aquela pergunta. Por menos que eu
gostasse dela, porque simplesmente odiava
respondê-la, precisava ser feita diante de medonha
situação:
— E como você se sente, Gê?
O ser extraterreno demorou alguns
segundos para responder.
— Absolutamente frustrado por ser incapaz
de realizar o seu sonho, senhorita.
Balancei a cabeça e sorri. Não dava para
acreditar. Gê estava preso em um planeta
totalmente estranho, além de frio pra dedéu, e ainda
assim pensava no meu sonho? Ele, talvez, jamais
poderia voltar para casa. Será que tinha noção do
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que aquilo significava de verdade?


O que raios eu faria com um ET na minha
fazenda? Porque era óbvio que eu não poderia
abandoná-lo na Terra. Seria insanidade e muita
sacanagem de minha parte.
Soltei um longo suspiro de consternação.
— Gê, eu não me importo. — Aquela frase
chamou sua atenção, deixando-o em alerta. —
Entendo que você passou anos desenvolvendo essa
nave e queria muito fazê-la funcionar, mas o seu
bem-estar vem primeiro. — Ergui a cabeça,
olhando para o céu como ele havia feito antes. — O
seu lar não é aqui.
Senti sua movimentação e abaixei a cabeça
novamente. Gê deu alguns passos para trás,
distanciando-se um pouco.
— O meu último desejo é te causar
problemas, Estrela. — Seu semblante era de quem
estava sendo sincero, mas também de quem sofria
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diante de tal sinceridade. Por um momento,


consegui perceber o medo em seu olhar. — Partirei
agora mesmo para longe de suas terras. Levarei
14038 comigo e a senhorita não precisará ter
qualquer preocupação ao meu respeito.
Andei rápido para alcançá-lo e segurei seu
braço por cima de suas vestes. De jeito nenhum que
aquela criatura cairia no meu milharal, mexeria
com minha cabeça e todas as emoções do meu
corpo para, no fim, sair por aí sem direcionamento.
Gê era a minha responsabilidade desde que surgira
diante de mim, por mais que ele achasse que não.
Afinal, ele tinha pisado naquele planeta por minha
causa, para realizar um sonho bobo e infantil que
era somente meu.
— Aqui não é o seu lar, Gê, mas farei o
possível pra te deixar confortável. — Ele espiou o
ponto onde minha mão o tocava. — Você deve
estar cansado, faminto e com frio. Nunca que eu te
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deixaria partir desse jeito!


— O erro foi meu, Estrela...
— Mas a culpa de você estar aqui é minha
— desabafei de uma vez. — Não há o que fazer,
Gê. Amanhã discutimos esse assunto. Por hora,
vamos te aquecer direito, está bem?
Ele aquiesceu devagar.
— Tudo bem, senhorita, mas preciso deixar
claro que jamais a culpabilizei. Não concordo com
o que falou, mas confesso que o frio está me
deixando um pouco mais apreensivo do que deveria
estar.
Gê era uma figura de outro mundo. Aquilo
era óbvio, né? Mas eu não fazia ideia de como ele
podia agir com tanto altruísmo misturado com
indiferença. Suas expressões eram indecifráveis,
bem como seu comportamento.
— Vamos... — escorri minha mão até
alcançar a dele. Entrelacei nossos dedos. — Vamos
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para casa. Em algum momento descobriremos


como te fazer voltar para Vênus. Enquanto não,
você é meu convidado.
Por mais que parecesse segura daquela
decisão, eu não fazia ideia de como instalaria um
extraterrestre na fazenda. Eu não poderia escondê-
lo para sempre, nem se quisesse. Muita gente
circulava por toda parte e Gê não parecia do tipo
que se trancava em um quartinho pelo resto de sua
existência.
— A senhorita sabe que eu posso seguir até
a sua casa sem precisar que me segure? — ele
visualizava as nossas mãos unidas. Revirei os olhos
e o soltei imediatamente.
— Claro que sei. Só estava tentando te
confortar.
— Confortar?
— É o que fazemos quando um amigo está
passando por uma situação difícil.
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Gê coçou a cabeça, meio confuso. Por fim,


tomou a iniciativa de segurar a minha mão. Sorri
enquanto entrelaçávamos, novamente, os nossos
dedos.
— Não tenho certeza se estou me sentindo
mais confortável, senhorita — ele continuava com
uma expressão confusa. Soltei uma risada, era
inevitável achá-lo engraçado.
— Você pode não sentir nada agora, mas
sabe que eu estou te apoiando, não sabe? O
conforto vem do apoio mútuo.
— Então, qual é o objetivo de unirmos
nossas mãos? Eu já sabia que a senhorita me
apoiava desde que falou que me receberia em sua
casa.
— Às vezes os humanos precisam mais do
que palavras, Gê. — Comecei a puxá-lo enquanto
andava pela mata.
Cruzamos a cerca que demarcava as terras
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da fazenda e continuamos seguindo vagarosamente,


até que encontrei minha caminhonete estacionada.
Gê parou por um momento e observou o
céu. Notei, pela primeira vez, a frustração
emanando dele.
— Vai ficar tudo bem, Gê. Prometo.
— Como pode prometer que uma situação
pertencente ao futuro acontecerá? A senhorita
possui o poder da adivinhação?
Ri suavemente.
— Não. Na verdade, não posso prometer
nada.
— Por que falou que prometia?
Circulei a minha caminhonete e abri a porta
do motorista. Algo me dizia que estar com o Gê
seria o mesmo que viver na companhia de uma
criança na fase do “por quê?”.
— Pelo mesmo motivo que eu te falei que
humanos precisam de mais do que palavras. A
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gente confunde o tempo todo o que dizemos, não


nos leve tão a sério.
Gê deu de ombros e pareceu satisfeito com
a minha explicação.
Dirigi pela fazenda com um extraterrestre
silencioso ao meu lado. Não sabia em que ele
estava pensando, mas eu só conseguia me
perguntar: onde diachos estava me metendo?

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Não trocamos uma única palavra enquanto


cruzávamos parte da fazenda em direção ao
casarão. Gê olhava pela janela, que deixei fechada
para poupá-lo do frio, com a sua já conhecida
expressão de indiferença. Eu me achava esquisita
por me sentir confortável ao seu lado. Qualquer
pessoa estaria fazendo milhões de perguntas — não
que eu não as tivesse, só que pretendia dar um
tempo para ele assimilar que estava preso em outro
planeta — ou tão assustada que teria saído correndo
desde o primeiro encontro. Realmente, não era o
meu caso.
A ideia de que eu estava em um sonho

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louco finalmente tinha me abandonado, e só me


restava a certeza de que existia vida inteligente em
outros mundos. Olhei para Gê de soslaio, ele
mantinha o mesmo semblante. Tentei detectar quais
cheiros emanavam dele, porém não consegui. Era
como se seu corpo não tivesse qualquer odor.
Ele virou o rosto ao perceber que eu o
observava. Voltei a olhar para a velha estrada de
terra batida à minha frente. O casarão estava bem
próximo e eu ainda não sabia o que fazer. Pensei
em inúmeras possibilidades: deixar Gê escondido
no celeiro, na velha garagem ou em uma das casas
desocupadas, porém a ideia melhor ainda era deixá-
lo ao meu alcance, sempre em minhas vistas.
Chamar a atenção para ele seria a pior coisa que
poderia acontecer. O povo do interior era
extremamente curioso, gostava de criar causos e ter
sobre o que conversar quando a noite caía. A
presença de um extraterrestre criaria um rebuliço
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imenso.
Parei o carro em frente à escadaria, sabendo
que àquela hora não haveria ninguém por perto. Os
trabalhadores encerraram seus expedientes há
algumas horas. Ainda assim, precisava conferir se
dona Margarida e seu Frederico já tinham se
recolhido. Eles não estavam na varanda, e aquilo
era um bom sinal, porém ainda existia a chance de
estarem na sala de televisão.
— Fique aqui, Gê — finalmente quebrei o
silêncio entre nós. — Preciso conferir se a barra
está limpa. — Ele não falou nada. Eu já tinha
sacado que Gê nunca respondia rapidamente as
coisas que não compreendia, por isso emendei: —
Vou conferir se tem alguém por perto. Não
podemos chamar a atenção das pessoas.
Ele apenas aquiesceu, sem nada falar. Ainda
o olhei por um tempo, a fim de identificar se ele
estava triste a ponto de desejar permanecer calado.
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Gê me olhou como se a noite fosse só mais uma de


tantas, deixando-me confusa. Suspirei e desci
ligeiro da caminhonete.
Olhei ao redor para conferir se realmente
não havia alguém por perto. Apenas o canto dos
grilos me fez companhia enquanto eu subia a
escadaria do casarão. Atravessei a varanda e
observei algumas lâmpadas acesas: a energia havia
retornado, graças a Deus. No dia seguinte o serviço
voltaria ao normal. Tínhamos parado o
funcionamento de muitas máquinas devido à
ausência de eletricidade.
Como sempre, a porta de entrada estava
aberta, pois não havia necessidade de trancá-la.
Ninguém nunca havia mexido em nada naquela
fazenda desde que o pai do meu pai a comprou,
muitos anos atrás. Ouvi o barulho da televisão
ligada e fiz um muxoxo. Eu não sabia o que fazer
para passar com o Gê sem sermos percebidos por
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dona Margarida e seu Frederico.


— Oi, Estrelinha! — o velho foi o primeiro
a perceber minha presença no meio da sala. —
Onde estava? Já é bem tarde.
— Fui... — olhei para o lado de fora através
de uma ampla janela. Coloquei a mão nos bolsos
dos meus jeans. — Fui verificar uma coisa. A
energia voltou a que horas?
Dona Margarida me olhou, para ver se eu
estava intacta, e depois voltou a prestar atenção em
sua minissérie favorita. Ela se distraía de um jeito
surreal quando estava em frente à TV.
— Faz pouco tempo — seu Frederico
retirou o chapéu de palha e coçou a cabeleira
branca. — Acho que a companhia elétrica deve ter
percebido que o problema não era na fiação da
fazenda, e sim na central.
— Isso é ótimo — dei uns passos para trás.
— Bom, vou me recolher.
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— Boa noite, menina.


— Boa noite, meu bem — dona Margarida
saudou sem tirar os olhos da tela. — Durma com os
anjinhos.
Tive vontade de responder a ela que, na
verdade, eu dormiria com um extraterrestre — isso
se eu conseguisse levá-lo até o meu quarto, claro
—, e o pensamento me fez sorrir alucinadamente.
Tranquei a porta do meu aposento tão logo
entrei. Corri até a janela mais próxima e a
escancarei, pulando para fora como se ainda fosse
uma pivete. Quantas vezes já tinha pulado a janela
e “fugido” durante a madrugada? Inúmeras. Na
maioria das vezes, fugia para ficar com o Valentim
no celeiro. Meu pai nem desconfiava.
Eu me sentia velha demais para fazer
aquilo, mas não tinha outra opção. Teria que trazer
o Gê por aquele caminho, às escondidas. Dei a
volta na enorme casa sorrateiramente, pois não
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queria chamar atenção caso algum funcionário


ainda estivesse circulando. Alcancei a caminhonete
e estava prestes a abrir a porta do carona para o Gê,
mas alguém chamou o meu nome e me sobressaltei.
Virei o corpo e dei de cara com o Valentim.
— O que está fazendo? — ele logo
perguntou. — Achei que já tivesse se recolhido.
— Ah, eu... Vim pegar uma coisa no carro.
Dei graças aos céus porque o vidro era fumê
e mal dava para ver o que tinha dentro da cabine,
do contrário Valentim veria o Gê e, com toda
certeza do mundo, faria milhões de
questionamentos. Meu coração batia forte enquanto
ele me encarava. Teria que despistá-lo depressa, de
algum modo.
— A energia voltou, não foi? — Valentim
prosseguiu. Aquiesci, sem querer estender o
assunto. Estava esperando o momento em que ele
me desejaria boa noite e partiria sem olhar para
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trás. — Quer ir comigo até o celeiro? — sorriu com


certa malícia.
Revirei os olhos, sabendo exatamente o que
aquele homem queria.
— Estou cansada, vou dormir. Amanhã o
dia será cheio.
Valentim balançou a cabeça positivamente.
Achei que fosse ir embora, mas ele deu alguns
passos na minha direção.
— Vai ficar fugindo de mim? Qual é,
Estrela, eu sei que você não tem ninguém. Não se
sente sozinha? Carente? — ele tomou a liberdade
de tocar a minha cintura. Comecei a respirar mais
rápido, imaginando o que Gê estaria pensando
daquela cena toda.
Pensei em escapar, mas não queria sair da
frente do vidro. Não dava para arriscar a
integridade do Gê.
— Não... — empurrei-o com força
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comedida. — Já chega, Valentim. Depois


conversamos sobre o assunto. Eu ainda não me
decidi a respeito.
Não quis dar um fora de uma vez por
motivos de: sim, eu estava carente pra burro,
precisando de uma companhia masculina que me
pegasse de jeito, da maneira que eu sabia que
Valentim era capaz de fazer. Apenas por este
motivo que fechei a porta, mas deixei uma janela
aberta.
— Tudo bem, Estrela... — ele curvou seu
corpo grande sobre o meu e me ofereceu um
selinho demorado. Afastou-se antes que eu pudesse
empurrá-lo novamente. — Tenho saudades de
você. Boa noite... Durma bem.
Valentim piscou um olho e seguiu na
direção do celeiro. Ele certamente faria alguma
coisa com os cavalos antes de ir para a sua casa.
Suspirei ruidosamente, aliviada e meio
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desconcertada também.
Quando Valentim já estava longe, eu me
virei e abri a porta do carona.
Não havia ninguém na cabine.
— Gê? — Ainda o procurei por cada
compartimento, como se ele coubesse em algum,
apenas para ter certeza de que não havia ninguém
ali dentro. Fechei a porta sem bater muito, pois não
queria chamar a atenção do casal que estava na
sala. — Gê? — soltei um sussurro mais intenso.
Olhei em volta, perguntando-me onde
aquele extraterrestre de uma figa tinha se metido.
Será possível que eu o tinha imaginado mais uma
vez? Não podia ser!
Quando estava prestes a me dar por
vencida, Gê apareceu vindo da lateral do casarão,
na parte oposta a que eu tinha usado para voltar à
caminhonete. Parecia bem tranquilo. Corri até ele,
meio irritada.
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— Eu te falei pra esperar, caramba! O que


está fazendo?
— Aquele terráqueo estava se aproximando
e considerei mais apropriado deixar o seu veículo
para trás — explicou calmamente. — Ser
descoberto significaria quebrar algumas regras
universais, Estrela. Desculpe-me se não acatei ao
seu pedido de permanecer quieto.
— Tudo bem, tudo bem, Gê... — ofeguei,
sentindo-me nervosa em todos os sentidos. —
Vamos, venha comigo.
Fizemos o caminho pela lateral do casarão
até o meu quarto. Andamos devagar, como dois
assaltantes prestes a invadir uma residência. Fiz o
Gê pular a janela primeiro, e ele fez sem hesitar ou
fazer perguntas. Em seguida, pulei e fechei a janela,
trancando-a. Fechei também as cortinas. Por fim,
liguei o aquecedor na máxima potência.
Provavelmente eu morreria de calor, mas desejava
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que o Gê se sentisse melhor.


— Aquele humano é o seu companheiro? —
a criatura de outro mundo falou bem atrás de mim.
Eu não sabia que ele estava tão perto, por isso me
sobressaltei.
— Hã? O quê? — Demorei séculos a
entender a sua pergunta. Gê aguardava uma
resposta pacientemente. — Não, claro que não.
Nós... Só... Sei lá, tivemos um lance.
Coloquei as mãos nos bolsos, sem saber o
que propor. Gê precisava de um banho — se é que
ele se lavava —, comida — eu também não sabia o
que ele comia —, roupas limpas e descanso.
— Ele é o seu procriador? — perguntou,
curioso.
— Meu o quê? — fiz uma careta. Ele ainda
estava falando do Valentim? Eu estava tão
constrangida que sentia meu rosto pegar fogo.
— Seu procriador. A fêmea de uma espécie
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se reúne com o macho da mesma espécie para...


— Não, Gê! — eu o interrompi
bruscamente, antes que ele continuasse com aquela
aula de reprodução das espécies. — Ele não é meu
procriador, apenas um grande amigo e também meu
funcionário.
Ele assentiu. Fiz o maior esforço possível
para não perguntar como os venusianos
procriavam. Minha curiosidade sobre o mundo do
Gê só crescia, mas eu ainda estava disposta a lhe
dar um tempo antes de enchê-lo de indagações.
— Você precisa de um banho — murmurei,
observando-o atentamente. — Ou melhor, você
toma banho?
— Todo ser vivo precisa do mínimo de
asseio, Estrela. No meu planeta a água é um
elemento muito escasso, o que tornou necessário a
realização de um acordo com o seu planeta. Nós
exportamos a sua água há milênios.
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Arregalei os olhos, surpresa até o último fio.


— Sério?
Um filme inteiro passou pela minha cabeça.
Como as pessoas diziam que a água faltaria em
breve se estávamos até exportando para outro
planeta? Será que era por este motivo que éramos
obrigados a fazer um racionamento? Havia água
suficiente na terra para banhar outro planeta
inteiro? Aquela informação me parecia absurda.
— Sim. Apesar de bastante atrasado, seu
planeta é o mais rico do sistema solar. Os humanos
perdem muito tempo se preocupando com
banalidades.
— Você tem toda razão, Gê... — sussurrei,
ainda bastante pensativa. A conversa sobre a água
foi para a infindável lista de assuntos que eu
abordaria assim que tivesse outra chance. —
Então... Ali fica o banheiro. Sinta-se à vontade.
Gê ficou me olhando, sem nada dizer.
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— Você não sabe o que é, certo?


— Não faço a menor ideia, senhorita —
confessou de imediato.
Levei o Gê para dentro do enorme banheiro
da suíte. O ambiente era espaçoso além da conta,
com direito a lavabo duplo, uma banheira enorme e
um espaço absurdo entre a bacia sanitária e o boxe.
— Aqui é onde a gente faz as nossas
necessidades — apontei para a bacia, abrindo a
tampa. Gê fez uma careta. — Urina e fezes —
completei, mas ele continuou confuso. —
Excrementos. Seu corpo não libera nenhum
excremento?
Gê fez silêncio por alguns instantes.
— Acredito que eu tenha alcançado o
entendimento agora.
Suspirei aliviada. Não estava muito a fim de
explicar sobre aquele assunto.
— Depois que liberar o que precisa aqui
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dentro, aperte aqui... — afundei o dedo na


descarga. Gê acompanhou curiosamente o
movimento giratório da água. — Aí o excremento
vai embora.
— Para onde?
— Para o esgoto.
Gê assentiu mais uma vez, porém algo me
dizia que ele não sabia o que significava a palavra
esgoto. Resolvi mudar de assunto depressa.
— E aqui é onde fica o chuveiro — abri o
boxe e girei a torneira. Certifiquei-me de que a
água sairia quente para ele. — Você pode retirar
suas roupas e se banhar. Quando terminar, é só
girar essa peça novamente — apontei. — Assim,
olha. A água vai sair bem quentinha, então não
precisa se preocu...
Quando me virei para o Gê de novo, levei o
maior susto. Ele já estava sem a parte de cima de
suas vestes venusianas, e retirava a de baixo como
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se eu não estivesse presente. Passei um bom tempo


observando o tamanho daqueles braços. E o
abdômen esculpido. E a pele branca, de aspecto
leitoso, se expondo cada vez mais. Não havia um
pelo sequer para contar a história.
Onde Gê tinha escondido aquele corpo
espetacular durante tanto tempo?
— Espera, espera, Gê! — agitei minhas
mãos, fazendo-o parar. Tudo bem, eu estava muito
curiosa para vê-lo nu em pelo, mas não podia me
aproveitar tanto de uma criatura inocente, certo?
Ele aprumou a coluna e me olhou,
assustado.
— Por acaso cometi algum erro, Estrela? —
questionou com a inocência em seus olhos
vermelhos. Fiz o que pude para não descer meu
olhar, mas era pedir demais. Dei uma bela
conferida nele, até prendi a respiração durante o
processo. — Estrela?
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Pisquei os olhos. Em meus devaneios,


minha língua já percorria boa parte daquele peitoral
estranhamente definido.
— Hã... Não. Você precisa esperar que eu
saia do banheiro antes de se despir.
— A senhorita não vai se banhar comigo?
Meus olhos se abriram tanto que quase
pularam fora das órbitas.
— N-Não, Gê. Nós... Nós tomamos banhos
sozinhos ou... — soltei um arquejo. Ainda estava
admirada e, naquele instante, pegando fogo com a
possibilidade de um banho com o Gê. Seria loucura
demais! — Ou com nossos companheiros. —
Passei a língua pelos meus lábios. — Nossos...
procriadores.
Pela primeira vez, ele pareceu bastante
constrangido.
— Desculpe-me pela indelicadeza, Estrela.
Eu não tinha conhecimento dessa importante
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informação. Creio que devo tê-la constrangido,


porém jamais foi minha intenção sugerir tamanho
absurdo.
Ele abaixou a cabeça, evitando me olhar.
— Tudo bem, não se preocupe... — passei
por ele feito um foguete, louca para dar o assunto
por encerrado. Ver seu constrangimento ajudou a
aumentar o meu. — Quando terminar o banho, se
enrole com aquela toalha — apontei depressa. —
Vou arranjar comida pra você. Tchau!
Fechei a porta do banheiro e soltei todo o ar
que tinha segurado em meus pulmões. Apoiei a
cabeça em minhas mãos, sentindo-me perdida e
bastante acesa. Talvez eu realmente precisasse de
uma noite no celeiro com o Valentim.
Quem sabe assim eu parasse de fantasiar
cenas sem sentido com um extraterrestre?

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Eu não fazia ideia do que o Gê comia.


Talvez ele não precisasse dos mesmos nutrientes
que os humanos. Não tinha como saber e não tive
tempo de perguntar. O meu maior receio foi lhe
oferecer algum alimento que por acaso fizesse mal
ao seu corpo extraterreno, por isso peguei uma
bandeja na cozinha, enchi-a com frutas variadas e
fiz dois sanduíches naturais — um pra mim porque
também estava faminta. Peguei uma garrafa de
suco na geladeira e levei tudo para o quarto,
tentando chamar o mínimo de atenção possível.
Ainda podia ouvir o ruído da televisão na
sala de estar, portanto supus que seu Frederico e

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dona Margarida estavam distraídos, totalmente


alheios ao que acontecia no meu quarto. Mais
especificamente, no meu banheiro.
No entanto, ao retornar para o corredor,
quase trombei em dona Margarida e derrubei tudo o
que estava na bandeja.
— Menina, cuidado! — ela esbravejou,
ajudando-me a não deixar a garrafa de suco virar.
— O que está fazendo?
— Eu... — Olhei para a bandeja repleta de
comida. Ela nunca acreditaria que tudo aquilo era
pra mim, mas eu precisava tentar. — Estou com
muita fome, quase não comi o dia todo.
Ela olhou para mim como se não
acreditasse, depois sorriu.
— Menina, eu não vou contar pro Frederico
que você está trazendo o Valentim pro quarto —
sua voz saiu baixinha, em cumplicidade. — Não se
preocupe. — Pensei em rebater aquele absurdo,
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mas além de eu estar, de fato, com um “homem”


em meus aposentos, não queria que ela fizesse mais
suposições e tornasse a situação ainda mais
constrangedora. — Apenas se previnam direitinho,
viu?
Chacoalhei a cabeça positivamente, mas por
dentro sentia vontade de morrer. Eu nunca havia
conversado com ninguém a respeito daquilo em
meus vinte e oito anos de vida, nem mesmo com
ela. Sempre morri de vergonha. O meu pai era um
cabeça dura que me tratou feito criancinha a vida
toda, e dona Margarida às vezes me dava medo por
sua brutalidade. Mas ela tinha um coração de ouro.
Entrei no quarto tão logo Margarida
desapareceu pelo corredor, rumo à sala. Um calor
horrível invadiu todo o meu corpo sem aviso, sinal
de que o aquecedor trabalhava arduamente. Devia
estar mais de trinta graus ali dentro. Eu ia derreter
naquela noite, mas tudo bem, pelo menos o Gê teria
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algum conforto.
Depositei a bandeja em uma mesa pequena
apoiada no canto do quarto, percebendo que o
chuveiro ainda estava ligado. Retirei o casaco e a
blusa de manga comprida, trocando-a por uma
regata leve, que me ajudasse a suportar o calor
infernal. Retirei as botas de galocha e fiquei
descalça. Assim que me vi livre delas, não mais
escutei o barulho da água do chuveiro caindo na
cerâmica.
Com o coração na mão, esperei o Gê
aparecer. Não demorou muito e ele abriu a porta
sorrateiramente, como se quisesse ter certeza de
que não havia mais ninguém no quarto, depois saiu
com a toalha grande enrolada em seu corpo pelos
ombros. Os cabelos azuis molhados estavam bem
mais escuros, e a cara que fez quando me viu
parada, observando-o, foi de quem estava aliviado.
— Você precisa de roupas limpas —
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apontei, meio desnorteada. — Espere aqui, vou


arranjar algumas...
Confesso que fugi de sua figura imponente,
molhada e sem roupas no meio do meu quarto. Eu
tinha guardado todas as roupas que eram de papai
em um baú grande localizado em meu antigo
quarto. Meu pai era magrinho, mas costumava usar
roupas bem largas, que tinham que servir em Gê.
Separei algumas peças o mais rápido que pude,
antes que Margarida — ou pior, seu Frederico —
me vissem.
Retornei à suíte e o Gê ainda estava do
mesmo jeito, mas com uma poça de água sob seus
pés brancos como a neve. Tranquei a porta atrás de
mim mais uma vez.
— Você precisa se enxugar mais, tirar o
máximo de água do seu corpo usando a toalha —
expliquei, jogando as peças separadas sobre a
cama. Peguei uma cueca, uma calça e uma camisa e
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o entreguei. Gê as segurou sem pestanejar. — Essa


é a peça íntima, você veste por baixo, primeiro do
que todas. Essa aqui você coloca por baixo e essa,
por cima — apontei didaticamente. Era mais fácil
explicá-lo do que cogitar vesti-lo eu mesma. —
Agora entre no banheiro de novo e se vista, está
bem?
Sem nada dizer, ele fez exatamente o que
pedi. Embora não tenha fechado a porta, pude me
afastar e organizar a nossa refeição. Arrastei uma
cadeira e a poltrona para perto da mesa onde estava
a bandeja, assim podíamos comer juntos e com
conforto.
Gê ressurgiu com a camisa do meu pai bem
justa em seu peitoral e braços largos. A calça ficou
melhor, mas curta nos tornozelos. Suspirei e fiz um
sinal de positivo.
— Ainda está sentindo frio? — perguntei
com certa ânsia de ouvir sua voz de novo. Ele
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estava muito caladinho, não fazia ideia do que


pensava a respeito de tudo.
— Está muito mais suportável agora —
respondeu com seriedade, de forma que eu soube
que ele não estava bem.
— Sente-se aqui, vamos comer — apontei
para uma das cadeiras.
Gê se sentou com aquele porte ereto e
inexpressivo. Era como se seu corpo nunca
descansasse, nem mesmo ao se sentar. Já eu, me
curvei toda e relaxei. Ele ficou olhando para a
comida diante de nós.
— Deve ser bem diferente do que você
come.
— Estrela, eu não posso permanecer aqui
— falou de uma vez, levantando o rosto para me
encarar.
— Eu sei, Gê. Vamos pensar numa forma
de...
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— Preciso que compreenda a gravidade do


problema — ele me interrompeu abruptamente. —
14038 se mantém sem energia, de forma que não
tenho possibilidade de retornar ao espaço, portanto
me tornei vulnerável àqueles que desejam obter o
meu experimento.
— Como assim, Gê?
— Infelizmente, eu não creio que o ataque
contra mim tenha sido apenas para me manter
exilado na Terra — prosseguiu com a mesma
seriedade. — Eles desejam o meu experimento há
muitos anos, e farão o possível para resgatá-lo.
— Você está falando do pessoal que estava
naquela nave maior? A que te atacou com uma luz
vermelha?
— Exatamente.
— Acha que eles retornarão?
— Eu tenho absoluta certeza de que
tentarão até o fim, Estrela. — Arregalei os olhos,
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começando a me assustar de verdade. — Isso pode


significar chamar a atenção de seu povo, ou mesmo
certa destruição em suas terras, depende do quanto
eles desejam obter o experimento.
— D-Destruição? — arquejei, apavorada. Eu
não queria que uma guerra alienígena fosse travada
na fazenda de meu pai.
Gê aquiesceu.
— Eles marcaram as suas terras — falou de um
jeito sinistro, que me causou arrepios ao lembrar a
circunferência enorme no meio do meu milharal. —
Receio que a culpa tenha sido minha. Lamento
profundamente, Estrela. Eu precisava de ajuda para
ingressar em sua atmosfera, e não encontrei outra
forma mais segura.
— Quem são eles, Gê?
— Eles são os que chamamos de Recolhedores
— explicou sem hesitar, o que me deu certo alívio.
— Possuem autorização para entrarem e saírem da
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Terra em busca de recursos e materiais de pesquisa.


— Eles abduzem pessoas?
Gê deu de ombros. Não precisou falar nada, eu
já sabia que sim.
— Por que eles querem tanto o seu
experimento? — perguntei, com as mãos tremendo
de pavor.
A criatura diante de mim continuou me
encarando como se eu fosse louca por ter feito uma
pergunta tão idiota.
— Os anos no meu planeta se passam muito
mais rapidamente do que aqui na Terra, Estrela...
— Ele finalmente apoiou o corpo no encosto da
cadeira. Continuou me oferecendo seus olhos
vermelhos hipnotizantes. — Enquanto aqui se
passaram vinte e dois anos desde a nossa última
conversa, em meu planeta se passaram quase
trezentos.
— Uau! — arquejei, surpresa de verdade.
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— Nesses trezentos anos, arquitetei e construí,


sozinho, um experimento capaz de viajar no
espaço-tempo, suportar altas temperaturas e
permitir a estadia de qualquer ser durante longos
anos sem que falte qualquer recurso. Montei um
sistema ainda mais inteligente do que qualquer um
existente em todo Universo.
— Caramba... — levei uma mão à boca,
espantada. Gê havia passado trezentos anos
construindo aquilo só pra me fazer tocar uma
estrela? — Você... Como fez isso tudo sozinho?
Por quê?
Ele me encarou com mais profundidade.
— Trabalhando arduamente em cada segundo
de minha existência — falou baixo, de uma forma
grave que me fez ter a sensação de que estava
flutuando. — Porque se eu conseguisse atender ao
seu pedido, provaria que, de fato, nada é
impossível. Consequentemente, mostraria ao
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Universo que somos capazes de evoluir até o


infinito.
— E você fez tudo isso... só pra... — ofeguei.
— Pra me atender?
— Creio que a senhorita não tenha
compreendido a forte relevância que significa
provar a todos os seres, de todas as galáxias, que
nada é impossível.
— Eu imagino que seja importante, Gê. Só não
compreendo por que passou os últimos trezentos
anos empenhado nisso. É muito tempo!
— Existe forma mais útil de viver sem que seja
fazendo alguma coisa importante para todos?
Nosso valor é medido pela relevância do que
fazemos.
Fiquei calada. Balancei a cabeça positivamente
porque, no fundo, Gê tinha razão. Sua existência
havia ganhado um enorme significado, e sua alma
era repleta de um valor incomensurável. Seu
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pensamento era tão altruísta com relação ao


experimento que fiquei ainda mais encantada pela
sua figura.
— Esses caras... Esses seres que querem roubar
seu experimento... Você sabe qual é o objetivo
deles?
Gê desviou o olhar pela primeira vez. Ainda
bem, pois eu estava quase surtando por ter que
suportá-lo sobre mim durante tanto tempo.
— Não. Porém, se necessitam roubar para obtê-
lo, certamente não é um bom objetivo. Se fosse, eu
seria o primeiro a concordar em compartilhá-lo.
Aquiesci. Gê voltou a me olhar e sorri para ele.
Não recebi nada de volta além de um olhar sério,
mas nada me fez parar de sorrir. Era agradável
demais descobrir que o menino de cabelo azul que
conheci na infância se manteve bom e íntegro
durante todo aquele tempo.
De repente, uma dúvida gigantesca me
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acometeu.
— Foram eles que me abduziram quando era
criança? — Coloquei uma mão no peito para conter
as batidas frenéticas do meu coração, mas de nada
adiantou.
— Sim, Estrela — Gê respondeu com a voz
séria, mas percebi um pouco de ressentimento em
seu timbre.
— E o que você estava fazendo com eles? São
venusianos como você?
— A equipe de Recolhedores geralmente é
composta por seres de diferentes origens. Eu estava
em treinamento na época, aprendendo a língua
terráquea e conhecendo os procedimentos.
— Mas você era tão novo...
— Eu tinha cento e trinta anos, Estrela.
— Meu Deus do céu! Quantos anos você tem,
afinal?
Gê ficou um tanto alarmado com o meu
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rompante. Lembrei a mim mesma para não agir


como uma maluca na frente dele.
— Precisamente, quatrocentos e vinte e nove.
— Uau! — Não dava para acreditar que o ser
na minha frente era um ancião intergalático. —
Mas então por que você não é um deles? Digo, um
Recolhedor.
— Porque abandonei essa ocupação desde o
nosso encontro. Eu me tornei um Pesquisador.
Segurei a mão extremamente quente, que jazia
sobre a braçadeira da cadeira. Meu corpo se
arrepiou inteiro por causa do calor absurdo que
emanava dele. A pele branca, que era tão parecida
com a de qualquer humano, tinha uma consistência
totalmente diferente. Eu me senti estranha tocando-
o, mas também me senti bem.
— A senhorita está me apoiando neste
momento? — ele perguntou com ar curioso, e não
evitei soltar uma risada.
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— Sim, Gê, estou te apoiando. E impressionada


com sua bondade. — Ele ficou apenas me olhando.
Não agradeceu ou negou, como qualquer humano
faria. Talvez, para o Gê, aquela bondade não fosse
motivo de orgulho ou de congratulações. Como ele
não teve qualquer reação, resolvi me afastar e
apontar para a mesa: — Acho melhor a gente
comer de uma vez. Depois podemos resgatar o seu
experimento. Ele ficou no meio da mata, vulnerável
demais.
— Ele está em um local favorável, senhorita.
Ninguém conseguirá roubá-lo, pois seu sistema de
segurança é intransponível.
— Sério?
— O meu receio não é ter 14038 roubada. Meu
maior receio é que eles ameacem a sua integridade,
e a de suas terras, justamente por não conseguirem
o que querem. Portanto, senhorita Estrela, é de
fundamental importância que eu me distancie o
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mais depressa possível.


Uma onda de coragem me fez falar sem um
pingo de racionalidade:
— Você não vai a lugar nenhum, Gê. Não vai
adiantar fugir. Vamos ficar e arranjar um jeito de
despistar esses caras. E também de consertar a sua
nave.
Não tive certeza se o Gê realmente concordava
comigo, mas ele assentiu e pegou uma maçã na
bandeja. Deu uma mordida grande, que fez um
barulho característico. Começou a mastigar
avidamente.
— Este curioso alimento terráqueo tem um
sabor peculiar.
Soltei uma risada meio nervosa. Ainda estava
louca da vida pelas informações que ele tinha me
dado sobre estarmos prestes a ser atacados por um
bando de alienígena. Mas eu não ia conviver com o
medo. Aquela havia sido a coisa mais fantástica
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que já aconteceu na minha vida, precisava encará-la


como uma grande aventura.
— E isso é bom ou ruim? — perguntei, ainda
rindo.
Gê engoliu e deu outra mordida.
— É estranhamente fantástico.
Claro que tudo poderia dar errado. Mas o
Gê tinha me oferecido um grande ensinamento, e
nem precisamos tocar estrela alguma para isso:
nada é impossível quando trabalhamos naquilo que
desejamos ardentemente.

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Eu estava suando como se estivesse no meio


de um deserto escaldante. O velho baby-doll
grudava na minha pele de um jeito que me dava
angústia. Gê dormia tranquilamente na cama
enquanto eu não encontrava nenhum conforto na
poltrona, por mais que já tivesse me revirado. O
calor estava prestes a me enlouquecer, pois o
aquecedor estava funcionando na máxima potência.
A boa notícia era que havia acabado de amanhecer
e o meu sono teria que ficar para depois. O cantar
dos galos anunciava a hora de começar a labuta.
Tomei um banho frio e, mesmo ainda com
calor, vesti as roupas apropriadas para o serviço

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árduo na fazenda. Eu não sabia direito o que fazer


com o Gê, mas dormia de uma forma tão tranquila
que não quis incomodar seu sono. Até porque ele
não poderia perambular pela fazenda durante o dia,
seria muito arriscado e alguém certamente o veria.
A melhor opção seria deixá-lo trancado na suíte;
era mais seguro e mais confortável, já que lá fora
provavelmente faria frio até umas nove da manhã.
Peguei mais comida na bandeja,
agradecendo aos céus por não ter nenhum sinal
nem de dona Margarida e nem de seu Frederico.
Terminava de vestir minhas botas quando o Gê se
remexeu dentro dos tantos edredons que separei
para mantê-lo aquecido. Eu não sabia como seu
corpo suportava tanta quentura, mas, a tirar pela
temperatura natural de sua pele, não devia ser
nenhum sacrifício.
Ele abriu os olhos e se sentou de imediato,
um pouco assustado. Seu olhar avermelhado me
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encontrou logo em seguida, e então sua expressão


se anuviou automaticamente.
— Bom dia, Gê — murmurei, ainda em
dúvida sobre o que achar daquela situação toda.
Nunca deixaria de ser estranho ter um extraterrestre
tão próximo, e mais estranho ainda era a forma
como eu me sentia diante de sua presença. Havia
uma curiosidade, uma sede de saber mais, uma
vontade absurda de viver outra vida, uma que não
era a minha.
Ele chacoalhou os olhos usando as duas mãos.
— Nunca entendi essa saudação terráquea.
Como é possível saber se o dia será realmente
bom?
Não evitei soltar uma risada.
— É uma forma de desejarmos que ele seja. —
Eu me aproximei e sentei na cama ao seu lado.
Estava suando em bicas, precisando deixar aquele
quarto infernal o mais depressa possível, mas
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precisava deixar as coordenadas para o Gê. —


Preciso trabalhar na fazenda. Vou ficar o dia todo
fora, mas prometo passar aqui pra te deixar comida
e verificar se está bem.
— Não é necessário se preocupar comigo,
Estrela. — Ele ergueu os braços fortes e colocou os
cabelos azuis para trás. Fiquei um tanto hipnotizada
pelo movimento. — Mas confesso que me sinto
inútil por não ter a chance de ajudá-la. Era o
mínimo que eu deveria fazer como seu convidado.
— Não se sinta assim. A sua situação é bem
delicada, você precisa se concentrar em não ser
visto até que a gente descubra como te devolver
para o espaço. — Ele não me respondeu, apenas
ficou me olhando de forma que tive dúvida se ele
havia entendido o que falei.
— E se eu jamais encontrar uma maneira de
voltar, Estrela? — questionou depois de um tempo
refletindo. — E se ficar preso aqui na Terra... para
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sempre?
Eu ainda não tinha pensado a respeito, e
acreditava que, se pensasse, enlouqueceria. Mas,
olhando em seus olhos inexpressivos, percebi que
era uma preocupação que não havia passado
despercebida pelo Gê.
— Vamos pensar em uma coisa de cada vez. —
Eu me levantei da cama sob seu olhar ainda atento.
— Agora, preciso trabalhar e você... Pode usar a
internet do meu celular. — Retirei o aparelho de
bolso e o entreguei. Gê pegou e o observou com
curiosidade. — Sei que a tecnologia é muito
antiquada pra você, mas deve ter alguma resposta
no Google. Pelo menos eu encontro tudo o que
quero lá.
Eu ia começar a explicar como o celular
funcionava, mas o Gê começou a mexer na maior
velocidade, praticamente se esquecendo de minha
existência. Dei de ombros e caminhei até a porta,
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até que o extraterrestre murmurou:


— Desejo que a senhorita também tenha um
ótimo dia.
Virei-me na direção dele e sorri. Gê havia
erguido a cabeça, mantendo as duas mãos no
celular. Gesticulei um “tchau” e abri a porta, não
antes de pegar a chave. Aproveitei e juntei suas
roupas venusianas com as minhas que estavam
sujas. Eu as colocaria pessoalmente na máquina e
rezaria para que dona Margarida não fizesse
perguntas. No entanto, era fato para mim que, em
algum momento, eles descobririam sobre o Gê. E,
quando acontecesse, era melhor estarmos
preparados.
Tranquei a porta pelo lado de fora, pois não
arriscaria que ela fosse aberta em qualquer
momento ao longo do dia. Eu me senti péssima por
deixar Gê trancado, enclausurado dentro da suíte,
mas era aquilo ou correr riscos. Precisava pensar
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um pouco mais sobre como fazer para que ninguém


desconfiasse de nada, porém de uma maneira que
aquela criatura continuasse protegida.
O trabalho na fazenda, apesar de produtivo,
foi bastante monótono. Minha mente estava,
literalmente, no espaço, e fiz quase tudo no modo
automático. Não conseguia parar de pensar no Gê,
em sua nave, seu experimento, nos Recolhedores e
nos perigos que a fazenda corria. Parecia loucura
não querer que o Gê fosse embora e levasse todos
os problemas consigo. Entretanto, considerava
aquela a minha responsabilidade também. Afinal,
fui eu que coloquei aquela ideia de jerico na cabeça
dele, fui eu que o fiz se tornar obcecado com o
experimento e era uma promessa feita a mim que
ele queria cumprir.
Eu me peguei olhando para o céu mais
vezes do que pude calcular. Demorei quase o dia
todo para perceber que eu queria, profundamente,
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que aquela nave fosse consertada. Não para que o


Gê fosse embora, não para que me livrasse daquela
situação, mas porque ainda desejava que ele
cumprisse sua promessa. Eu queria esbravejar o
universo, ficar perto dos planetas, conhecer mais
sobre o meu mundo e os outros. Era aquela
curiosidade natural que sempre me pertenceu desde
o meu nascimento. E eu não poderia me sentir mais
egoísta por desejar aquilo.
Minha primeira visita ao Gê se deu perto
das duas da tarde. Aproveitei que dona Margarida
estava na horta, toda distraída colhendo verduras, e
seu Frederico cuidando dos cavalos no celeiro, e
entrei no casarão direto para a cozinha. Fiz um
prato farto de almoço e abri a porta da suíte
devagar, para não assustá-lo.
Gê estava de pé, usando apenas a calça
jeans velha do meu pai e folheando um livro de
romance que eu mantinha em minha prateleira. Ele
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ergueu o rosto e pareceu um tanto quanto confuso.


— Trouxe o seu almoço... — Depositei o
prato na mesa, perto da bandeja, que já estava
vazia. Gê comia bem pra caramba, e de repente me
questionei se realmente estava saciado. — Eu me
esqueci de perguntar se essa quantidade de comida
está bem para você.
— Estou me sentindo ótimo, muito
obrigado, Estrela. Esses alimentos são estranhos,
mas deliciosos. — Ele fechou o livro e o depositou
de volta na estante. — Gostei, especificamente,
daquele comprido com a cor amarelada.
Fiz uma careta, tentando me lembrar do que
ele estava falando.
— Ah, se chama banana.
— Banana — assentiu. — Creio que agora
compreendo um pouco mais do comportamento
humano, depois da leitura desses quatro livros —
ele apontou para a primeira prateleira da estante.
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— Você leu quatro livros nesse meio


tempo? Como pode? — Arregalei os olhos,
surpresa de verdade. Gê possuía uma inteligência
tão avançada que, por um instante, senti-me
patética perto dele.
— Só estou um pouco confuso porque,
aparentemente, os humanos utilizam os sentimentos
para realizar qualquer uma de suas atividades
diárias. — Gê coçou a cabeleira azul e fez uma
careta que me deu vontade de rir. — E as mulheres
me pareceram muito mais incompreensíveis.
— Eu acho que você precisa ler outro
gênero — comentei, sentando-me na poltrona.
Minha coluna estalou com o movimento. Eu já
estava morta de cansada e ainda tinha muito que ser
feito. — Romances são complexos para quem não
está acostumado.
— Confesso que gostei do gênero — Gê se
sentou na cadeira, posta perto da mesa, e observou
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a comida. — É interessante a forma como os


humanos procriam. Não é tão diferente da nossa,
mas há um... Não sei definir. Uma experiência
profunda baseada em instintos irracionais.
Meu rosto deve ter ficado mais vermelho
que um tomate maduro.
— O que você andou lendo? — Eu me
levantei para observar melhor os livros da primeira
prateleira. Três deles eram de literatura erótica.
Tive vontade de pegar uma arma e dar um tiro na
minha testa. Resolvi mudar de assunto porque
conversar sobre aquilo logo com o Gê não me
parecia uma boa ideia: — Encontrou alguma coisa
na internet?
— Os humanos nos consideram seres
monstruosos e com um aspecto repugnante — ele
falou como se aquilo não lhe dissesse respeito. —
As histórias sobre nós são feitas mais para assustá-
los do que para informá-los. Há muitas notícias que
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não passam de lendas e especulações extremamente


equivocadas. O conhecimento que os terráqueos
possuem sobre o Universo é ultrapassado a ponto
de se tornar inútil.
— Sinto muito, Gê. Achei que a internet
pudesse ajudar.
— Ajudou a me distrair durante horas.
Obtive muito conhecimento sobre a vida humana.
— Gê segurou um talher e o apontou na minha
direção. — Por exemplo, há alguns minutos eu não
sabia que isto era um garfo, usado pelos humanos
durante as refeições com o objetivo de não
precisarem colocar as mãos na comida. A Terra tem
muitas bactérias nocivas.
Eu ri porque ele parecia um pouco mais
animado do que pela manhã. Até sua forma de
comunicação havia mudado um bocadinho, prova
de que realmente tinha aprendido naquele curto
espaço de tempo. Percebi no Gê a mesma ansiedade
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pelo conhecimento que eu possuía, por isso, quando


terminou de almoçar, não poupando elogios ao
sabor dos alimentos, resolvi deixá-lo em paz com
suas descobertas.
Voltei ao trabalho me sentindo ainda mais
distraída do que antes. Naquela noite, estava
disposta a fazer todas as perguntas para as quais eu
necessitava de respostas. Até planejei levar o Gê ao
celeiro, quando todos já tivessem se recolhido,
assim nós olharíamos o céu enquanto ele me
contaria todos os segredos do Universo, o que me
deixou ansiosa pela chegada da noite. Passei a
trabalhar com mais ligeireza diante da excitação
que me acometeu.
Era sexta-feira e eu sabia que teria roda de
viola varando a madrugada, de forma que todos os
funcionários estariam distraídos, bem como dona
Margarida, seu Frederico e, graças aos céus, o
Valentim. Eu já estava com uma desculpa na ponta
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da língua para não participar do encontro ao qual eu


raramente faltava.
Assim que a noite caiu, coloquei todos os
meus planos em ação. Falei para Margarida e
Frederico que estava cansada, que tinha dormido
pouco — o que não era uma mentira — e precisava
descansar cedo para estar de pé na manhã de
sábado, a fim de conferir o carregamento dos
vinhos que seriam levados para a feira, na cidade.
Eles caíram na minha conversa sem
questionamentos.
Esperei que os pombinhos deixassem o
casarão para me reorganizar. Estendi as roupas do
Gê junto com as minhas no varal, pensando em
tirá-las de lá antes que amanhecesse e dona
Margarida percebesse a presença delas. Enchi uma
cesta de piquenique com mais frutas, biscoitos,
pães e demais guloseimas que Margarida sempre
preparava e deixava disponível.
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Atravessei o corredor, rumo à suíte, toda


animada, esperando encontrar o Gê distraído com
outro livro — de preferência um que não fosse
erótico, embora uma parte de mim torcesse para
que ele entrasse no assunto de novo, assim eu teria
nova chance de conhecer mais sobre a reprodução
dos venusianos. Contudo, não vê-lo em parte
alguma depois que abri a porta me deixou
desesperada. Revirei a cama, abri o guarda-roupa,
verifiquei o banheiro e cada reentrância do quarto,
porém não havia sinal dele.
— Puta merda, Gê... — arquejei,
preocupada e cansada só com a ideia de procurá-lo
pela fazenda. — Não faz isso comigo.
E se tivesse ido embora de vez? Eu sabia.
Sabia que, no fundo, ele me abandonaria, cedo ou
tarde. Gê não queria me trazer problemas e, com
sua presença constante, seria impraticável. Mas eu
não desistiria dele tão facilmente. Protegê-lo era o
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mínimo que eu deveria fazer em respeito aos anos


que ele perdera se preocupando com meus sonhos.
Corri para fora do casarão, mesmo me
sentindo morta de cansada. Entrei na caminhonete e
dirigi depressa até o lugar onde eu sabia que o ovo
tinha ficado. Gê jamais deixaria sua nave para trás,
por isso era o meu primeiro palpite. Precisava
encontrá-lo antes que fosse tarde demais.
Com o coração batendo em disparada,
estacionei de qualquer jeito e me embrenhei no
meio da mata logo após a cerca que delimitava a
fazenda. Estava escuro, frio e um tanto sombrio, de
forma que só percebi que havia sido loucura da
minha parte quando tudo o que eu conseguia ouvir
era o cantar das cigarras e o farfalhar de animais
entre os arbustos.
— Gê? — Continuei caminhando, mas
desacelerei o passo. Estava meio perdida, sem saber
exatamente onde a nave fora deixada, só
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compreendia que não deveria estar longe. — Gê,


você está aí?
Ouvi mais plantas se movendo. Abracei o
meu próprio corpo, sentindo a coragem me
abandonando para dar lugar ao medo. Mais alguns
passos e tive a impressão de ver uma luz adiante.
— Gê? — gritei mais alto, voltando a
correr. A luz foi ficando cada vez mais próxima, até
que me vi em uma clareira.
E era ali onde estava a nave. Não a do Gê,
pequena e discreta, mas uma enorme e brilhante.
Pensei em sair correndo gritando, mas a
curiosidade me deixou feito estátua, analisando
cada luz emitida pela enorme nave espacial. Ouvi
mais arbustos se remexendo e tive certeza de que, o
que quer que estivesse ali, não era o alienígena que
eu procurava.
Estava prestes a voltar quando mãos fortes e
muito quentes seguraram minha boca e o meu
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corpo, simultaneamente. Gritei o máximo que pude,


mas a mão abafou meu grito e me percebi sendo
levada até o caule grosso de uma árvore. Continuei
me debatendo, apavorada, até que uma voz fraca
sussurrou em meu ouvido:
— Não se mova, Estrela... Por favor.
Reconheci aquele timbre de imediato.
Deixei meu corpo ser levado por ele e parei de
gritar no mesmo instante. Gê me equilibrou no
caule e usou seu corpo enorme para me manter
protegida. Estava tão perto, e emitia um calor tão
bem-vindo — já que o frio tinha retornado —, que
circulei meus braços em sua cintura e me deixei
ficar.
Ouvimos ruídos esquisitíssimos. Demorei a
compreender que parecia a mesma língua que o Gê
falava quando comandava sua nave, porém aquela
me soou ainda mais sinistra. A mata estava rodeada
de alienígenas! Abracei-o com ainda mais força,
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morrendo de medo do que poderia acontecer. Eu


não estava a fim de ser abduzida, pelo menos não
por aqueles extraterrestres. Também não queria que
o Gê fosse levado como prisioneiro.
Ele se manteve parado como se fizesse parte
da floresta, nunca deixando de me proteger, e tratei
de controlar meus tremores para não chamar a
atenção. O tempo que ficamos ali, quietos, pareceu
uma eternidade, mas no fundo não deveria ter sido
mais do que cinco minutos.
Ouvimos mais ruídos esquisitos, cada vez
mais próximos de nós, e, em seguida, a nave
gigante alçou voo. Ganhou o espaço tão depressa
que meus olhos humanos mal conseguiram
acompanhar. A velocidade que aquela nave atingia
ia além de uma explicação terráquea lógica.
— Eles... Eles já foram? — murmurei, tão
baixo que não sei como Gê ouviu.
A criatura se afastou de mim devagar,
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analisando-me como se precisasse constatar que eu


estava bem. O frio que invadiu meu corpo foi
insuportável. Por mais louco que fosse, a verdade
era que eu queria passar mais tempo nos braços do
Gê. Era quente e aconchegante, além de oferecer
uma segurança fora de cogitação.
— Permaneça aqui, Estrela — falou com
seriedade, sem desviar o rosto.
— Não, Gê... Por favor!
— Preciso conferir se 14038 manteve o
sistema de segurança em funcionamento durante
esta clara tentativa de furto — respondeu de forma
didática. — Não quero expô-la a mais perigos,
senhorita.
Gê se afastou, mas eu segurei seus braços.
— Não me deixe aqui sozinha. Eu... Estou com
medo. Por favor, Gê.
Ele nada respondeu. Pensou por alguns
instantes e me puxou pelo braço, mantendo-me
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sempre perto. Andamos por alguns metros entre as


longas árvores, e então encontramos a nave em
forma de ovo. Aparentemente, estava do meu jeito
como a tinha visto da última vez. Para a minha
infelicidade, Gê me largou e se aproximou dela.
Falou algumas palavras estranhas e um pequeno
compartimento se abriu.
— Está tudo bem? — questionei, voltando a
abraçar o meu corpo. Ainda estava com medo de
sermos descobertos por aqueles alienígenas do mal.
Gê continuou falando aquela língua
estrambólica. De repente, uma luminosidade foi
emitida pelo ovo, feito um projetor. Vários
desenhos esquisitos se formaram ao nosso redor,
como uma tela de cinema no meio da mata, mas
que, em vez de filme, exibia contornos similares a
engrenagens e placas de aparelhos eletrônicos.
— 14038, ativar — Gê ordenou com seriedade
em seu tom de voz.
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O ovo se abriu, provocando-me um pequeno


susto. Eu não estava esperando por aquilo. Gê
continuou movendo as projeções como se elas
fossem vivas, usando uma velocidade
impressionante. Só tinha visto algo parecido em
filmes de ficção científica.
— Não compreendo... — ele murmurou em
algum momento.
— O quê? O que houve?
— Eles conseguiram recarregar 14038.
A informação me deixou estática. Em
seguida, sorri de forma vitoriosa.
— Significa que você pode voltar para o
espaço?
Gê se virou para me olhar. Algumas
projeções brilhavam em seu rosto, tornando-o um
ser ainda mais interessante de ser visto.
— Infelizmente, a carga não é suficiente
para partirmos, Estrela. — Gê tornou a observar as
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luzes. Moveu-as mais uma vez. — Os


Recolhedores estão planejando algum ataque que
desconheço.
— Gê... Por que eles simplesmente não
levaram a nave inteira? Você a ergueu sozinho sem
nem suar, e eles eram muitos. Poderiam ter levado
sem qualquer problema.
Ele deu de ombros.
— Um dos sistemas de segurança da 14038
é modificar a força atuante da gravidade em
qualquer ambiente em que estiver. Sem o meu
consentimento, nenhuma força aplicada, seja ela
terrestre ou não, é capaz de movimentá-la. — Gê se
virou para mim novamente. — A senhorita
compreendeu?
Eu estava absolutamente admirada.
— A-Acho que sim.
Gê fez um movimento com as mãos e todas
as projeções foram sugadas para dentro do ovo, que
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começou a se fechar devagar.


— O que acha que eles pretendem fazer ao
recarregar a nave? — perguntei em um murmúrio,
fazendo bastante força para pensar em alguma
alternativa.
— Eu não sei, Estrela. Temo que o objetivo
deles seja recarregá-la para que possam interceptá-
la em pleno funcionamento.
Arregalei os olhos.
— Com você dentro dela?
— Com nós dois dentro dela, senhorita. — O
ovo se fechou totalmente. Gê abaixou a cabeça,
olhando para o chão como se lamentasse
profundamente. — Não sou capaz de deixar a
atmosfera terrestre sem a sua companhia. Não
depois de tudo o que fiz, e depois de todos os
transtornos que lhe causei. No entanto, também sou
incapaz de colocá-la em perigo.
— Está tudo bem, Gê. — Segurei a sua mão.
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Ele tomou a iniciativa de cruzar os nossos dedos, o


que achei o máximo. Fiquei em contato direito com
sua pele quente, reconfortante. — Vou contigo para
onde quiser me levar.
— A senhorita tinha razão. Estou me sentindo
confortável agora. — Ele olhava para as nossas
mãos unidas com bastante curiosidade.
Senti uma gota de chuva bem na minha cabeça.
Olhei para o céu, percebendo que o tempo havia
mudado muito rápido. Mais gotas se uniram a
primeira e uma chuva forte se iniciou. Pensei em
fugir para não nos ensoparmos, mas Gê não se
moveu ou largou a minha mão; ficou olhando para
o céu de um jeito maravilhado.
As gotas molhavam seu rosto erguido e
passavam para os cabelos azuis. Jurei nunca ter
visto cena mais encantadora.
— Não tem chuva em Vênus — comentou. Em
seguida, virou o olhar para mim. — A Terra é
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mesmo fantástica.
— Achei que tudo aqui fosse antiquado e
atrasado — ri ironicamente.
Gê balançou a cabeça em negativa. Voltou a
olhar o céu, mas, ainda assim, não largou minha
mão.
— Agora compreendo por que os terráqueos
não sentiram a necessidade de desbravar as
profundezas do Universo — ele falou em um tom
animado que, para ele, soava impressionante.
Deixei as preocupações e incertezas de lado e
tentei aproveitar aquele instante incomum. Segurei
sua mão com mais força, procurando sentir as gotas
geladas entrando em contato com a minha pele.
Fazia um frio horrível, e para ele devia ser ainda
pior, mas cada desconforto se esvaía conforme a
chuva caía.
Gê não falou mais nada, mas eu, no meu
íntimo, já havia compreendido o seu pensamento.
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10

Em algum momento, enquanto a chuva


prometia cair durante toda a noite, a brisa
congelante que cortava a mata se tornou demais
para que o Gê suportasse. Se eu estava morta de
frio, imagina o coitado que era acostumado com
altas temperaturas? Percebi seu corpo tremendo,
principalmente os lábios, então o guiei para a
caminhonete estacionada perto da cerca. Fechamos
as portas do veículo às pressas, que por sinal eu
havia deixado abertas, esquecendo-me de ativar as
travas, e tateei a calça jeans para encontrar a chave.
Não a senti nos meus bolsos.
Coloquei a mão na ignição, achando que

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talvez eu a tivesse deixado lá mesmo, porém não


havia nada. Olhei para o Gê, um tanto assustada,
mas ele não percebeu meu espanto porque se
mantinha distraído fazendo riscos no vidro
embaçado. Ele ainda estava admirado com a chuva,
de uma forma quase infantil.
Voltei a tatear o meu corpo apressadamente,
começando a ficar angustiada com a ausência da
chave. Como sairíamos dali? O casarão estava
distante demais para seguirmos a pé debaixo de um
temporal. Eu não queria acreditar que tinha perdido
a maldita chave no meio da mata. Seria impossível
encontrá-la, principalmente porque estava tudo
escuro e a chuva ainda atrapalhava.
Depois de alguns minutos, Gê deve ter
estranhado o meu silêncio, pois se virou na minha
direção. Achei que fosse questionar o que estava
acontecendo, mas, pelo visto, seu pensamento
voava para bem longe, alheio ao fato de estarmos
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presos.
— Há uma informação que não compreendi
após a realização de minhas leituras — continuou
me encarando, e eu pouco conseguia enxergar de
seu rosto incomum. Não havia qualquer foco de luz
por perto. — O ato de beijar, ou seja, juntar os
lábios um no outro, faz parte do comportamento
humano, porém este, pelo que entendi, significa um
nível de afeição mais aprimorado, geralmente
realizado por um casal, macho e fêmea, que
pretende procriar.
Desviei o rosto, absolutamente
constrangida, agradecendo por estar tudo escuro e
não precisar disfarçar a quentura que passei a sentir
em minhas bochechas. Eu já imaginava o que o Gê
questionaria, por isso apenas esperei, quieta, que
concluísse seu raciocínio.
— Compreendi que um beijo não é trocado
entre amigos, conhecidos ou parentes, como uma
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espécie de saudação, mas é...


— Eu te beijei porque quis, Gê — falei de
uma vez, interrompendo-o. Diferentemente de
mim, ele não se mostrou constrangido e nem
mesmo parou de me observar. — Porque me deu
vontade e curiosidade.
Aqueles segundos de puro silêncio me
deixaram ainda mais envergonhada.
— Imagino que seja natural a senhorita
possuir certa curiosidade ao meu respeito, pois eu
confesso que possuo essa mesma curiosidade com
relação à senhorita e aos humanos, de uma forma
geral.
Aquiesci, desconcertada. Mas eu não
perderia outra oportunidade de fazer perguntas.
Precisava vencer a vergonha de uma vez.
— Que tipo de curiosidade você tem ao
meu respeito, Gê?
— Considero curiosa a forma como a
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senhorita fala e como se move. Sua face muda de


aspecto muitas vezes, de modo que quase nunca
compreendo o que está pensando ou que fará em
seguida.
— Então, somos dois, meu caro — ri
sozinha. Apoiei a coluna no encosto do banco e me
deixei relaxar. O jeito era esperar a chuva ir embora
mesmo. — Fico confusa justamente pelo contrário:
seu rosto é inexpressivo a maior parte do tempo,
quase como se fosse indiferente a tudo.
Gê balançou a cabeça.
— Eu não sou indiferente a nada, Estrela.
— Eu sei. Só fico um pouco confusa.
O silêncio retornou e eu não soube como
rompê-lo. Eram tantas perguntas que nenhuma
vinha à minha mente na hora certa.
— Espero que a senhorita tenha
conhecimento de que possuímos DNAs diferentes.
Embora sejamos parecidos, nossos sistemas
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funcionam de forma particular. — Aquiesci, mas


continuei muda, o que fez Gê prosseguir: — Não
sou um humano, portanto a senhorita não pode me
considerar como um ser de sua espécie.
Estranhei o seu timbre ficando mais sério
conforme falava. Franzi o cenho e decidi perguntar:
— O que quer dizer com isso, Gê?
— Quero dizer que, apesar da curiosidade
ser perfeitamente natural, um envolvimento mais
específico entre mim e a senhorita não seria tão
diferente, por exemplo, do envolvimento entre um
cavalo e uma galinha.
Arregalei os olhos. Fiquei tão embasbacada
com suas palavras que passei algum tempo sem
saber o que responder. Até que, enfim, uma coisa
ruim atravessou o meu peito e permaneceu,
impedindo-me de dar uma resposta madura.
— Você me comparou a uma galinha? —
cruzei os braços, irritada.
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— De modo algum, Estrela. — Pela


primeira vez, percebi que Gê tinha ficado hesitante.
— Só usei um exemplo primário para que a
senhorita entenda que não deve me ver como um
macho de sua espécie, pois certamente não posso
atender a nenhuma de suas expectativas.
Bufei, constrangida e ainda tentando
respirar direito. O meu coração batia sem ritmo,
tirando-me o fôlego. Tudo bem que o fato de estar
presa ali dentro não ajudava em nada.
— O que você sabe sobre minhas
expectativas? — resmunguei, impaciente.
— Talvez a senhorita deva se ater ao fato de
que, como ser vivo, também possuo as minhas.
— E que eu, como humana, não posso
atender — completei. Não sabia por que estávamos
discutindo a respeito. Era loucura. Gê não tinha que
se explicar e eu não devia agir como se fizesse
questão de suas explicações. Nós dois não
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devíamos nada um ao outro, não naquele sentido.

— Não foi o que eu falei, Estrela. Seria


deselegante de minha parte sugerir que a senhorita
é incapaz de alguma coisa.
— Então eu posso atender às suas
expectativas?
Ele finalmente parou de me encarar.
Observou o vidro dianteiro sendo inundado por
milhares de gotas fartas de chuva.
— A senhorita me deixa imerso em um
estado de extrema confusão — voltou a me
oferecer os olhos vermelhos que, diante da
escuridão, se mantinham apagados. — Espero que
não haja qualquer problema em minha pronúncia.
Dei de ombros e olhei para frente. Aquele
papo, além de esquisito, não nos levaria a lugar
algum. Resolvi mudar de assunto antes que ficasse
ainda mais irritada, embora eu não soubesse
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exatamente o motivo daquele mau humor


repentino.
— Como é em Vênus, Gê? Como vocês
sobrevivem com pouca água... sem chuvas?
— Por ser um planeta extremamente quente,
nossa população é bastante reduzida. Somos apenas
dois mil venusianos, não conseguiríamos atender às
necessidades de todos caso fôssemos numerosos.
— Gê também passou a observar o céu também.
Não dava para ver nada além da escuridão e dos
pingos de chuva, ainda assim, continuamos
olhando. — A grande maioria da população prefere
viver no espaço, sempre em órbita, e só retornamos
de vez em quando. Possuímos um pequeno
povoado em seu satélite, a lua.
— Na lua? Tem venusiano na lua? —
indaguei como uma criança assustada. — Por quê?
— Porque é um ambiente menos hostil, e
também porque possui uma grande quantidade do
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elemento silício, usado na confecção de algumas de


nossas naves.
— Ah... — suspirei, encantada com aquela
informação aparentemente maluca. Era tudo
inacreditável! — Eu olho para você e não consigo
compreender como consegue respirar em Vênus,
que tem uma atmosfera densa e é... tão, tão quente!
Gê pareceu relaxar no encosto do banco
tanto quanto eu.
— Nossos corpos são muito adaptáveis.
Todos os sistemas de nosso organismo são
mutáveis; eles se transformam conforme o
ambiente, por este motivo consigo respirar aqui, em
Vênus ou em qualquer outro planeta, seja qual for a
dimensão.
— Todos os... — fiz uma pausa
significativa. — Extraterrestres são assim?
— Não. Cada espécie tem suas
particularidades.
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Soltei mais um suspiro empolgado.


— Eu queria conhecer tudo de pertinho —
deixei escapar, mas me arrependi porque não queria
pressioná-lo. Gê não tinha qualquer obrigação para
comigo.
— Você vai, Estrela. Eu prometo.
Virei o rosto para encará-lo.
— Não creio que eu vá suportar tantas
viagens longas. Você deve saber que os humanos
não vivem tanto. Quero dizer, a distância daqui
para o sol é de quase cento e cinquenta milhões de
quilômetros... Nós demoraríamos quanto tempo
para chegar lá?
— Alguns minutos.
— O quê? — berrei, surpresa com aquela
resposta. — Como?
— Tenho certeza de que já informei à
senhorita de que 14038 é capaz de viajar no espaço-
tempo.
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Continuei fazendo uma careta, entendendo


bulhufas e respirando tão rápido por causa da
empolgação que dava para ouvir meus ofegos. Gê
percebeu que eu não conseguia entender aquela
informação.
— Para que a senhorita compreenda, posso
resumir e adiantar que viajaremos a uma velocidade
próxima à da luz. O espaço tende a se contrair e o
tempo, se dilata. Atingiremos uma dimensão
paralela e, nela, o tempo correrá completamente
diferente ao tempo que corre na Terra. Para você,
se passarão cerca de oito minutos até alcançarmos o
sol.
— Que loucura, Gê! — balancei a cabeça
freneticamente. — Que... genial!
Ele abriu o resquício de um sorriso. Já tinha
percebido que o Gê se orgulhava muito de seu
experimento, e não era para menos. Eu estava louca
com aquela história de velocidade da luz, outras
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dimensões e espaço-tempo. Nunca entendi muita


coisa a respeito, mas me parecia sensacional poder
chegar até o sol mais rápido do que o tempo que eu
levava dirigindo até a cidade.
— Se a senhorita não se importar, desejo
que nos encaminhemos até o seu quarto. Estou com
tanto frio que acho que não sinto mais as minhas
mãos.
— Oh, Gê... — Puxei seus punhos para
mim e comecei a esquentá-los como podia. — Me
desculpa. Perdi a chave do carro na mata, por isso
que ainda não saímos daqui.
— A senhorita está falando disto? — Gê
apontou para um ponto acima do volante. E lá
estava a chave, jogada como se fosse qualquer um
dos cacarecos que eu espalhava pelo veículo sem o
menor cuidado.
— Meu Deus! — peguei-a imediatamente,
rindo de mim mesma. — Por que não me disse logo
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que ela estava aí o tempo todo?


— Porque eu não sabia que a senhorita
procurava por ela.
Continuei rindo enquanto ligava a
caminhonete. Acionei logo o aquecedor para deixar
o Gê menos desconfortável. Vibrei internamente ao
dar partida e seguir pela estrada rumo ao casarão.
Aquela noite tinha sido muito louca, meio bizarra e
completamente empolgante.
Eu me sentia contente por saber mais sobre
o Universo.
— Gê... Eu estava aqui pensando... — falei
enquanto o para-brisa lutava contra as gotas de
chuva. — Se vamos seguir por outra dimensão,
significa que aqueles aliens não poderão nos seguir.
Certo?
— Só podemos mudar de dimensão quando
alcançarmos o espaço. 14038 não é muito veloz em
sua atmosfera. Os Recolhedores podem nos
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interceptar antes.
— Não se formos discretos.
— Não se formos discretos... — Gê repetiu
em um murmúrio, como se refletisse sobre a nova
possibilidade que nos era apresentada.
— Temos que partir no momento certo,
depois que o ovo estiver carregado.
— Pode ser perigoso, Estrela.
— Estou pronta para correr todos os riscos.
Realizar sonhos exige sacrifícios, não acha?
Gê apenas aquiesceu, não fez nenhum
comentário.
Eu já sonhava acordada com a minha visita
ao sol. Não via a hora de vivenciar aquela aventura
ao lado do Gê. Em dezesseis minutos eu poderia
tocar uma estrela e voltar para a Terra me sentindo
a mulher mais realizada de todas as galáxias.
Nenhum extraterrestre ladrão frustraria aqueles
planos mirabolantes, se dependesse de minha força
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de vontade.
Estacionei a caminhonete em frente ao
casarão. O pessoal da roda de viola provavelmente
tinha se protegido da tempestade na palhoça, como
sempre faziam quando chovia, e continuado a festa,
portanto eu não teria problemas de dar de cara com
dona Margarida ou seu Frederico. Sendo assim,
gesticulei para que o Gê me seguisse e andamos até
a suíte sem maiores problemas.
Peguei toalhas limpas e ofereci uma a ele.
Ainda estávamos ensopados. Eu nem queria ver
como o estofado da caminhonete havia ficado
depois que nos sentamos com aquelas roupas
encharcadas. Novamente, liguei o aquecedor no
máximo.
— Vou pegar roupas secas para você —
falei, já pensando em confiscar mais peças no
antigo baú do papai, mas prometendo a mim
mesma que tiraria umas horas no dia seguinte para
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fazer compras. Andei até a porta, no entanto, parei


ao me dar conta de que um pequeno detalhe tinha
passado despercebido. — O que foi fazer lá fora,
Gê? Você viu ou ouviu os Recolhedores chegando?
Ele tentava se enxugar por cima da roupa
molhada, provavelmente porque compreendia que
não devia se despir perto de mim, o que era um
alívio e, ao mesmo tempo, uma pena. Pisquei
algumas vezes para obrigar os meus pensamentos a
seguir por outro caminho. Gê tinha deixado claro
que eu não deveria lhe enxergar daquela forma,
pois éramos diferentes e seria estranho. Eu que não
insistiria nisso, afinal, não era nenhuma
desesperada.
— Creio que devo usar toda a sinceridade
para lhe informar que eu estava prestes a partir,
Estrela — ele disse em um tom baixo, ameno,
como se sentisse culpa. — Eu os encontrei
realizando inúmeras tentativas de roubar 14038.
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Foram silenciosos, discretos. Não desejam chamar


a atenção dos humanos, apesar de tudo.
Meu coração se espremeu um bocado, tanto
que soltei um arquejo para tentar me recompor.
Então, Gê pretendia mesmo ir embora. Pior, sem
sequer se despedir.
Ele parou de falar e eu continuei o olhando
fixamente. Não consegui expor aquela coisa ruim
em meu peito que tinha me deixado aérea e infeliz.
Eu não queria que ele partisse, não sem mim. Sabia
que, assim que tivesse condições, Gê voltaria, que
não desistiria fácil de realizar aquele sonho, mas eu
queria a chance de fazer parte dos momentos bons e
ruins.
Aquela luta também me pertencia.
— Ainda pretende partir? — sussurrei a
pergunta.
— Não.
Abri um leve sorriso porque sua resposta foi
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rápida e séria, portanto só significava que era a


mais pura verdade. Gê não mentiria para mim,
muito menos para me agradar. Eu poderia contar
com sua sinceridade de olhos fechados.
— O que te fez mudar de ideia?
Naquele instante, sim, ele hesitou. Passou as
mãos pelos cabelos azuis molhados como se
refletisse bem antes de soltar uma resposta
satisfatória. Achei que fosse mencionar os perigos
de me deixar sozinha, o fato de termos uma ideia
boa prestes a ser colocada em ação, ou, sei lá,
qualquer outra coisa, menos o que falou usando o
mesmo tom de seriedade que lhe era inerente:
— Sinto um especial prazer em estar em sua
companhia, Estrela. — Meu corpo inteiro deve ter
sofrido um baque catastrófico, porque passei um
longo tempo o observando com a respiração presa e
os nervos travados. — Não pretendo partir porque
tomei conhecimento tardio de que, em meu íntimo,
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e embora devesse, não é o meu desejo.


Deixei a toalha sobre uma cadeira antes de
andar até ele devagar, como se cada passo
precisasse ser realizado vagarosamente para que
nada desse errado. Cheguei perto o suficiente
enquanto o Gê me assistia com certo ar confuso.
Passei meus braços pelo seu pescoço em um abraço
aconchegante, juntando nossas peles úmidas e as
roupas frias. Ele não se moveu, mas também não se
afastou.
— É um abraço — expliquei baixinho. —
Pode ser trocado por amigos, parentes e pessoas
que gostam da companhia um do outro.
— E qual é o objetivo? — ele questionou
em um sussurro. O timbre doce me fez arrepiar e
me deixou ainda mais confortável diante daquele
gesto.
— Confortar, apoiar e demonstrar que a
pessoa não está sozinha. Os abraços afastam a
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solidão.
— A senhorita se sente sozinha? — Gê,
primeiro, contornou um braço ao meu redor.
Pareceu não saber direito onde repousar a mão, e
acabou segurando um ponto acima de minha
cintura.
— Às vezes. E você?
Ele demorou a responder.
— Não me lembro de não ter me sentido
sozinho até este momento.
Soltei uma risadinha um tanto triste,
emocionada com suas palavras sinceras. Era ótimo
que o Gê estivesse falando sobre sentimentos
porque, se não falasse, eu jamais seria capaz de
adivinhar. Foi então que percebi que ele realmente
não era indiferente às coisas. Aquela criatura
possuía sentimentos, sim, embora eles se
mantivessem escondidos dentro de uma carcaça
inteligente e racional.
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Seu outro braço agiu e então me vi ainda


mais aconchegada, perto o suficiente a ponto de
encostar minhas bochechas em seu peito largo.
Apertei o abraço, fazendo-o demorar de propósito
para que o Gê soubesse de primeira o que era um
abraço de verdade, não aqueles que os humanos
davam normalmente, meio sem querer se
comprometer.
Eu me afastei devagar, e Gê logo voltou à
sua posição ereta, quase robótica.
Não falei nada porque não fui capaz. Deixei
o quarto vagarosamente para buscar suas roupas, e,
quando fechei a porta atrás de mim, permiti que o
meu corpo relaxasse apoiado em uma das paredes.
Respirei fundo, percebendo que tinha ficado acesa
e muito vulnerável diante dele.
As reações de meu corpo estavam ficando
cada segundo mais perigosas. Eu sabia que era
loucura alimentar aquilo, mas estar com o Gê era
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tão peculiar, tão perturbador e agradável. A


sensação era nova de uma maneira que eu não
conseguia definir se era boa ou ruim. Naquele
instante, no entanto, percebi que gostava mais
daquilo do que poderia imaginar.

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11

A mata estava tomada pela mais completa


escuridão, tanto que eu só conseguia perceber que
estava lá por causa dos odores das plantas, do
cantar dos grilos e porque havia o caule grosso de
uma árvore logo atrás de mim. Olhei ao redor,
bastante apreensiva e sem saber o que estava
acontecendo. Não parecia um bom sinal estar
perdida no meio do nada, o que deixou meu
estômago em frangalhos.
Dei um passo à frente na esperança de
reconhecer o local, porém de nada adiantou. Eu não
sabia em que direção ficava a cerca, por isso
considerei loucura sair correndo sem rumo. O ar

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começava a faltar em meus pulmões devido ao


medo de estar sozinha, aparentemente perdida, e
sem conseguir enxergar um palmo diante de meu
nariz.
— Gê? — chamei um tanto temerosa, sem ter
certeza de que fazia a coisa certa.
Poderia ficar ali até amanhecer e eu conseguir
voltar para a fazenda, mas aquela espera acabaria
com os meus nervos. Por que eu tinha parado no
meio da mata, assim, do nada? Não fazia o menor
sentido.
— Gê? — continuei, e a cada segundo o meu
coração batia mais depressa.
Um pequeno feixe de luz se fez presente por
detrás das árvores. Não pensei duas vezes e corri o
mais depressa que pude na direção dela. Tinha
certeza de que encontraria o Gê e a nave em
formato de ovo, no entanto, o que achei foi apenas
a figura de um homem encapuzado, que não se
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moveu nem quando me aproximei. Parei a corrida


de imediato, desconfiada. O cara estava contra a
luz, que naquele momento se tornava mais intensa,
de forma que não pude ver seu rosto.
— Gê? — murmurei com a voz trêmula. O
medo já se fazia presente e deixava meu corpo
meio paralisado, sem reação.
— Estrela... — ouvi um sussurro esquisito, e
aquele timbre ecoou pela mata como se fosse um
mantra. — Estrela... — Cada pelinho do meu corpo
se eriçou. O homem encapuzado continuava parado
a alguns metros de mim. Definitivamente, ele não
era o Gê.
— Quem é você? — perguntei em um átimo de
coragem. Dei alguns passos para trás, preparando-
me para correr assim que tivesse uma oportunidade.
Estava tudo tão esquisito que o meu lado curioso
me fazia ficar mesmo quando o mais prudente era
me afastar sem olhar para trás. — O que quer
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comigo?
— Faça-o se entregar... — a voz ecoou
novamente, causando-me nova onda de arrepios. —
É em vão lutar contra nós. É em vão se esconder.
Faça-o se entregar...
Eu não sabia do que aquele homem estava
falando. Tentava enxergar o seu rosto, mas a luz
forte atrás dele tornasse isso uma tarefa impossível.
A frustração só fazia aumentar conforme os
segundos passavam.
— Quem é você? — voltei a perguntar,
atordoada. — O que quer? Vamos, fale!
— Precisamos do experimento agora — ele
falou com sua voz hipnótica, um murmúrio
metálico de fazer qualquer um tremer nas bases. —
Faça-o se render a nós, Estrela.
— Você e-está f-falando do Gê? — gaguejei
vergonhosamente. Eu começava a ter um pouco
mais de lucidez a respeito daquela figura. Já havia
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encontrado um homem encapuzado no meio da


mata antes. Só significava uma coisa: a criatura era
de outro mundo e estava fazendo uma espécie de
contato psíquico comigo, assim como o Gê havia
feito uma vez.
— Não deixaremos suas terras até levarmos o
experimento conosco — o homem não me
respondeu, mas foi bem taxativo. — Não é o que
você quer, Estrela. O seu povo sofrerá as
consequências. Você sofrerá consequências
inimagináveis.
Fiquei tão embasbacada com aquela ameaça
que me mantive calada, sem encontrar palavras
para retrucar. O desconhecido não esperou qualquer
resposta, começou a desaparecer como se seu corpo
sofresse uma desintegração. Sua imagem robótica
se partiu em milhões de pedaços e, assustada, abri
os olhos. Sentei-me depressa, ainda meio tonta e
com um calor dos infernos.
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Eu estava na suíte do casarão, mas não ocupava


a poltrona desconfortável, como de costume. Eu
lembrava perfeitamente de ter tentado encontrar
uma posição legal para adormecer, sem sucesso. No
entanto, acordei ocupando a cama de casal e,
adiante, o Gê dormia na poltrona com um monte de
edredons o cobrindo. Ele certamente tinha feito
aquela troca durante a madrugada. Será que
percebeu que a poltrona me deixava absolutamente
desconfortável? Coitado. Também devia ser para
ele, já que era bem maior do que eu e mal cabia
direito no móvel.
O relógio sobre o velho criado-mudo marcava
quatro horas da manhã. Ainda era cedo para
acordar, principalmente em uma manhã de sábado,
mas eu tinha um carregamento para conferir e,
quanto mais cedo resolvesse tudo, mais cedo
voltaria. Gostaria de passar mais tempo com o Gê,
quem sabe tirá-lo do quarto por alguns instantes e
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lhe mostrar as partes da fazenda que estivessem


seguras. Todos os funcionários ganhavam folga aos
fins de semana, exceto em tempos de colheita, de
forma que geralmente tudo ficava bem deserto.
Parei um pouco para pensar no pesadelo
horrível que tive. Ainda estava assustada, mas não
sabia direito se havia sido real ou fruto da minha
imaginação. Estava muito preocupada com aquele
lance de experimento e Recolhedores invadindo a
minha fazenda, logo, não me parecia muito
estranho eu ter sonhado com aquilo. Mas, e se não
tivesse sido apenas um sonho? E se aquilo foi um
contato psíquico de verdade? Eu não tinha como
saber, mas o Gê com certeza saberia.
Aquela ameaça velada circulou a minha mente
enquanto eu tomava um banho e me trocava. Pensei
em acordar o Gê, mas ainda estava muito cedo e eu
não sabia direito como contaria sobre o pesadelo.
Não queria assustá-lo e, além disso, não queria, de
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jeito nenhum, que ele se entregasse. Seria terrível


se seu experimento, uma coisa importante em que
ele trabalhou durante centenas de anos, parasse nas
mãos daqueles Recolhedores de uma figa. Não...
Não poderia ser tão simples assim para eles.
Porém, o Gê provavelmente não teria a mesma
opinião, sobretudo quando tomasse conhecimento
de que o meu povo e eu havíamos sido ameaçados.
Deixei o desjejum para ele antes de trancar a
porta da suíte e dirigir a caminhonete rumo ao
depósito de vinhos que havia dentro da fazenda. O
caminhão já estava carregado desde o dia anterior,
e só esperei o motorista e mais dois funcionários
chegarem para liberar a carga com seus respectivos
documentos. Resolvi acompanhá-los até o centro da
cidade para ter pessoalmente com os contratados,
além de que também queria fazer algumas compras
antes de voltar.
Aproveitei o ensejo e, depois da distribuição
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minuciosa dos vinhos, solicitei que os funcionários


retornassem para fazenda e continuei o passeio em
minha caminhonete. Parei em diferentes lojas atrás
de roupas novas para o Gê, além de itens de higiene
e cosméticos masculinos. Foi no meio de uma
farmácia, quando estava comprando a tinta que eu
sempre colocava no meu cabelo, um tom de loiro
médio bem específico, que uma ideia louca me
acometeu.
Seria impossível esconder o Gê por muito
tempo. Sinceramente, eu mal sabia como dona
Margarida ainda não tinha descoberto tudo; do jeito
que ela era esperta, não demoraria muito mais. No
entanto, e se parássemos de escondê-lo de uma
vez? Poderíamos disfarçá-lo, transformá-lo em um
“humano” e assim ele circularia pela fazenda sem
maiores problemas. Se déssemos um jeito naquele
cabelo azul e nos olhos vermelhos, o Gê se passaria
por um homem normal tranquilamente.
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Considerei a ideia tão fantástica que comprei o


arsenal inteiro: pó descolorante, água oxigenada e
tinta. Seria mais fácil deixar o Gê com os cabelos
loiros do que qualquer outra cor, e até que
combinava com seu tom de pele branquíssimo.
Animada, parei em uma ótica bacana e comprei um
par de lentes de contato coloridas, sem nenhum
grau. Era só convencê-lo a acatar a minha ideia e
pronto, teríamos um problema a menos para lidar.
Esperava que ele não fizesse nenhuma objeção, até
porque eu não desejava que fosse embora tão cedo.

O pesadelo voltou à minha mente e tremi da


cabeça aos pés. Talvez fosse loucura demais fingir
que estava tudo bem, deixar o Gê se adaptando
entre os humanos como se estivesse de férias e
ignorar aquela ameaça. Voltando para a fazenda,
descobri que ainda não sabia o que fazer a respeito.
Precisava abrir o jogo, ter uma conversa séria com
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ele e fazê-lo compreender o meu ponto de vista.


Era a coisa mais certa a ser feita, sem sombra de
dúvidas. Só que aquele medo de vê-lo partir, e pior,
perdendo toda a esperança com relação ao
experimento, me matava por dentro.
Voltei ao casarão com mais perguntas do que
respostas. Estava a fim de mostrar as compras para
o Gê, mas me deparei com seu Frederico, dona
Margarida e Valentim ao redor da mesa,
conversando animadamente. Todos me saudaram,
felizes que cheguei a tempo para o almoço. Eu
tinha me esquecido totalmente que as tardes de
sábado eram na companhia deles.
— Senta aqui, menina, vem comer logo —
dona Margarida apontou para uma cadeira. —
Deixa essas sacolas aí.
— Como foi a entrega dos vinhos? — Valentim
quis saber. Estava especialmente bonito naquele
dia, como se tivesse passado mais tempo pensando
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no que vestiria e de que forma arrumaria os


cabelos.
— Foi boa — respondi, meio seca. Deixei as
sacolas sobre um sofá individual e ocupei um lugar
à mesa um pouco distante dele. — Sem nenhum
imprevisto.
— Que ótimo — ele piscou um olho.
Dona Margarida não tinha jeito, sempre fazia
questão de nos servir aos sábados, por mais que já
tivéssemos reclamado. Pegou o prato de cada um e
distribuiu a comida do jeito que ela queria, claro,
colocando para mim mais do que conseguiria
engolir. Felizmente eu estava com fome e amava,
de paixão, o seu famoso cozido. Minha barriga
ardeu de alegria ao sentir o cheirinho delicioso de
lar que a comida dela emanava desde sempre.
— Como foi a roda de viola? — perguntei por
perguntar, querendo engrenar algum assunto. Mas
minha cabeça estava voltada para o ser trancado
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dentro da suíte, e em como eu faria para pegar um


pouco de cozido para ele. — Choveu quase a noite
toda.
— Foi uma maravilha! — seu Frederico era, de
longe, a pessoa que mais curtia as rodas. Ele até
arranhava na viola e sua voz era bacana para cantar.
O pessoal adorava quando ele dava uma palhinha.
— A chuva não atrapalhou nada, ficamos na
palhoça até amanhecer.
Sorri ao perceber sua empolgação, mas depois
fiquei triste porque perdi uma noite legal ao lado de
pessoas humildes, simples, mas cheias de carinho e
amor para dar. O que será que o Gê acharia das
rodas?
Seu Frederico começou a dar detalhes
minuciosos sobre a noite passada. Recontou a
maioria dos causos e as piadas que eram sempre
compartilhadas. Pelo visto, ninguém tinha
percebido a presença de nenhum OVNI na fazenda,
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o que era uma boa notícia. O almoço não poderia


ser mais divertido e agradável, tanto que cheguei a
me esquecer de todos os meus problemas enquanto
passava um tempo com a família que tinha me
restado.
Quando seu Frederico retirou os pratos da
mesa, avisando que era a sua vez de lavá-los e se
perdeu na cozinha, dona Margarida ficou meio
esquisita. Olhava de mim para Valentim e vice-
versa, deixando-me desconcertada. Eu não sabia o
que se passava naquela mente, mas era certo que
ela faria algum comentário que não deveria. Por
isso, tentei deixar a mesa antes que o assunto fosse
levantado. Não adiantou.
Assim que me pus de pé, ela soltou:
— Vocês dois não podem viver assim, sabe?
Escondendo o jogo desse jeito!
Soltei todo o ar dos meus pulmões em resposta.
— Escondendo o quê, tia? — Valentim
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perguntou, já sorridente.
— Esse romance. Não sei não... Está na hora de
assumir, os dois são bem grandinhos, passaram da
hora de casar e ter filhos.
Revirei os olhos. Eu tinha vinte e oito anos e
me achava nova para casar, mas Margarida não
compactuava com o mesmo pensamento. Meu rosto
estava em brasa de tanta vergonha. Eu não sabia se
rebatia aquele absurdo ou se saía correndo o mais
rápido possível. Valentim, por outro lado, parecia
se divertir com as suposições loucas de Margarida.
— Bem que eu queria, tia, mas Estrela não me
dá bola — ele me olhou como se eu fosse a sua
segunda sobremesa.
— Como não, menino? Vocês têm passado
quase todas as noites juntos, não venham com essa.
— Ela se levantou, arrastando a cadeira para trás e
segurando a jarra vazia de suco que seu Frederico
não levou. — Tenho certeza que Frederico vai ficar
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feliz e dar as bênçãos a vocês.


Ela virou as costas e se perdeu na cozinha.
Continuei mortificada, sem saber onde enfiar a
minha cara e sabendo que, naquele momento,
Valentim me olhava com dúvidas e mais dúvidas
em seu semblante. Demorei o tempo que pude para
virar o rosto na sua direção, mas precisei fazê-lo.
Era aquilo ou sair correndo, o que não ajudaria em
nada, de toda forma.
— O que ela disse? — ele fazia a careta
exatamente como eu imaginava.
— Eu não sei, Margarida está fantasiando
coisas... — falei baixo, de maneira que não
convenceu ninguém.
— Por que ela falou que a gente passava as
noites juntos?
Valentim estava longe de ser idiota. Ele era
esperto demais para ser enrolado, principalmente
por mim. O cara me conhecia há anos e sabia
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exatamente quando eu estava mentindo. Mas nada


me faria contar a verdade para ele.
— E eu sei lá, Valentim — dei de ombros. —
Vou descansar um pouquinho, acordei muito cedo
hoje.
O tempo que usei para andar até o sofá, a fim
de pegar as minhas compras, foi o mesmo que
Valentim usou para interceptar o meu caminho e
me impedir de seguir adiante. Segurou o meu
cotovelo com certa posse e me encarou de um jeito
esquisito.
— Você tem levado outro alguém para a sua
cama? — Consegui visualizar verdadeira mágoa
em seu olhar enviesado. Porém, ele não tinha
nenhum direito de me questionar daquela forma.
Desvencilhei o braço e peguei as sacolas sem
nada responder.
— Quem é ele? — o homem enciumado
insistiu. — Eu conheço?
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— Não te devo qualquer satisfação, Valentim


— respondi, seca.
Ele soltou um arquejo esquisito, que pareceu
uma risada sem graça.
— Só preciso saber se devo ter esperanças ou
não — falou seriamente, com a expressão mais
firme que de costume. Era óbvio que não tinha
gostado nada da minha resposta sincera. — Porque
esse tempo todo espero a sua raiva passar para que
eu possa...
— A minha raiva não passou — resmunguei.
Não sabia direito se aquilo era mentira ou verdade.
No fundo, realmente não me importava a ponto de
ainda estar chateada por tudo que fez comigo. Creio
que aprendi a me manter indiferente. — Nem sei se
vai passar um dia. Sabe, Valentim, acho melhor
desistir de tentar me reconquistar. Você sempre
enfiou na minha cara que eu não tenho outra opção,
mas sabe de uma coisa? Você está errado.
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Eu sequer sabia se realmente havia outra opção


na minha vida — o trabalho me tirava o tempo, a
disposição e a vontade de conhecer pessoas fora da
fazenda —, mas falar aquelas palavras me fez um
bem danado, como se tivesse com elas entalada na
garganta há um bom tempo. Com a cabeça erguida,
levei as sacolas e o meu ego inflado de volta para a
suíte.
Assim que abri a porta e vi o Gê em pé,
escorado na janela fechada e empunhando um livro
de romance, meu corpo inteiro pareceu ter sofrido
um grande baque. Fechei e tranquei a porta
rapidamente, tentando fazer meu coração voltar a
bater em um ritmo ameno, mas de nada adiantou.
— Comprei roupas novas pra você... — ergui
as sacolas cheias na direção dele. — E... Tive uma
ideia nova.
Gê fechou o livro e o depositou sobre a cama
sem marcar nenhuma página.
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— Espero que a senhorita tenha passado um


bom dia e uma boa tarde — ele se aproximou um
pouco, mas se manteve afastado.
Abri um sorriso meio bobo.
— Boa tarde, Gê.
— A saudação é a primeira atitude que
devemos tomar para um educado e cortês contato
com os humanos — ele falou como se repetisse
uma lição dada na escola. — Agora, sim, creio que
a senhorita possa me informar sobre a sua ideia.
Retirei os produtos específicos da sacola e
entreguei para ele. Eu não sabia por onde começar
a explicar, mas acreditei que o Gê pudesse dar uma
olhada naquilo para compreender melhor o meu
ponto.
— Esses frascos aqui servem para pintar o
cabelo... — apontei, e ele olhava curiosamente para
as embalagens. — E isso aqui são lentes de contato.
Gê me olhou um tanto assustado.
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— Eu me lembro de que a senhorita mencionou


essas lentes em nossa conversa, anos atrás. Na
época, não sabia do que se tratava, mas fiz umas
pesquisas. — Ele abriu a embalagem como se fosse
uma criança desembrulhando um presente. As
lentes estavam dentro de potinhos com tampa
rosqueada. Gê abriu os dois compartimentos e
olhou as pecinhas bem de perto. — São azuis?
— São. Achei que talvez fossem combinar
mais.
— Combinar com o quê, Estrela?
Levei bastante ar para os meus pulmões.
— Com você, Gê. — Ele ergueu os olhos
brilhantes para me encarar. — Não pode ficar aqui
trancado para sempre. Achei que a gente pudesse
pintar seu cabelo e esconder seus olhos vermelhos.
Assim você vai poder andar entre as pessoas...
Conhecer a fazenda... Sem chamar atenção.
Gê assentiu devagar, ainda refletindo sobre as
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minhas palavras. Aprumou o corpo e voltou a


fechar as tampinhas uma por uma, cuidadosamente.
— Em breve, 14038 estará completamente
recarregada — murmurou.
— Talvez leve alguns dias... Não sabemos ao
certo. Pode levar semanas, ou meses. Os
Recolhedores podem nunca terminar de carregar
sua nave, Gê.
— Não consigo definir se a sua ideia é
aceitável, ou mesmo prudente, Estrela. Possuo
curiosidade e desejo suficientes para conhecer suas
terras e o seu povo, porém temos que aceitar o fato
de que não pertenço à Terra.
Dei de ombros diante de sua hesitação.
— Você é bem-vindo aqui — falei
simplesmente. Gê continuou me observando. —
Tudo bem, não precisa decidir agora. — Recolhi os
produtos, devolvendo-os para as sacolas. —
Quando você achar que deve, faremos a mudança.
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— Preciso que entenda que é importante que eu


permaneça neste planeta o mínimo possível,
Estrela. Não tive qualquer autorização para fazer o
que fiz.
— Tudo bem, Gê, não se preocupe.
— Percebo sinais de tristeza em seu aspecto —
disse seriamente, mas sua expressão se modificou a
ponto de eu saber que se preocupava comigo. —
Jamais será a minha intenção deixá-la infeliz ou
chateada.
Balancei a cabeça positivamente, sem nada
responder. Eu deveria, sim, tomar vergonha na cara
e parar de criar expectativas com relação ao Gê.
Por mais que não soubesse o que exatamente eu
queria, sabia que, dentro de mim, fantasiava nunca
precisar dar adeus àquela criatura. Mas tudo não
passava de uma grande ilusão. Nossa amizade tinha
prazo de validade e talvez nem fosse tão longo
assim.
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Eu nem deveria querer tanto sua presença


constante. Mas queria.
E, no fim das contas, conversar sobre o meu
pesadelo ficou fora de cogitação.

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12

O leite foi retirado e vendido, o milho


crescia saudável, as uvas estavam ficando maduras
de novo, as galinhas colocaram seus ovos e a horta
ia muito bem, obrigada. Uma semana inteira passou
sem que nada fora do normal acontecesse dentro da
fazenda. Quero dizer, nada além do fato de que
havia um extraterrestre morando no meu quarto,
mas eu já estava acostumada. Incrível como
qualquer espécie de bizarrice poderia ser
considerada normal depois de um tempo. O que
explicava a mania que os humanos tinham de se
acomodarem diante de situações ruins.
Sim, eu já estava me referindo às pessoas

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como “humanos”, fruto da convivência diária com


o Gê. Como a minha labuta na fazenda começava
muito cedo, eu saía todas as manhãs e pegava o
desjejum dele na bandeja. Fazia uma pausa durante
a tarde para entregá-lo o almoço. Depois, só nos
víamos quando a noite já tinha caído e eu estava
cansada demais até para conversar. Trocávamos
algumas palavras durante a ceia, quando ele me
contava um pouco do que tinha aprendido ao longo
do dia, usando a internet e lendo meus livros.
Confesso que fiz o possível para me
envolver menos, para saber o mínimo de seu
mundo, para engolir todas as perguntas a seco.
Decidi que não adiantava manter uma amizade
mais aprofundada com aquela criatura, caso
contrário sofreria horrores depois que nos
separássemos. Apesar de não parecer, eu era uma
mulher sensível e realmente não estava a fim de
perder outro alguém importante. Já tinha dado
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trabalho demais para superar a morte do meu pai.


Sendo assim, parei de agir como uma boba e tratei
de ser mais focada com relação ao Gê.
Obviamente, ele percebeu a mudança em
meu jeito de lidar com tudo. Gê era extremamente
inteligente e estava ficando bom nas questões
comportamentais. Bastaram alguns romances e
pesquisas para que até suas expressões se
modificassem. Ele estava mais transparente, mais
divertido e menos robótico, embora tivesse mantido
suas muitas perguntas e uma inocência que sempre
me encantaria, por mais que eu precisasse fingir
que não. Já eu, parecia ter vindo de Vênus, ou de
qualquer outro planeta longínquo, não fazia
algumas horas. Sentia-me desconfortável dentro de
meu próprio corpo, como se estivesse no lugar
errado, ou talvez cometendo algum erro irreparável.
A boa notícia era que os sonhos esquisitos
tinham cessado. Não houve qualquer sinal de aliens
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na fazenda, nem mesmo para recarregar o ovo.


Toda madrugada eu levava o Gê às escondidas para
conferir sua nave, porém tudo permanecia no
mesmo lugar. Suas esperanças diminuíam e eu me
frustrava ao perceber a decepção em seus olhos
vermelhos toda vez que voltávamos ao casarão sem
nenhuma novidade. Eu não sabia mais para o que
torcer. Uma parte minha queria que tudo fosse
resolvido logo, que o Gê fosse embora de uma vez.
Mas a outra, e esta era totalmente irracional,
desejava que ele ficasse um pouco mais.
Era fim de tarde de um domingo e eu não
tinha absolutamente nada para fazer, no entanto,
fugi do Gê alegando estar muito atarefada dentro da
fazenda. Não queria passar o dia inteirinho trancada
com ele na suíte, respondendo às suas muitas
perguntas e fingindo que nada em sua presença me
interessava. Portanto, resolvi passar algumas horas
no meu lugar favorito no mundo: o celeiro. Escovei
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Açucena com calma, dei comida aos cavalos, enchi


a latrina de água e, só depois, sentei-me diante do
telescópio.
Desde que o Gê apareceu que eu não tinha
observado o céu como antes. Embora o meu olhar
sobre o espaço tivesse se modificado um pouco,
pois sabia da existência de vida em outros planetas,
a paixão ainda vibrava em meu peito, bem como a
vontade de explorar o Universo e tudo o que havia
nele. Observei atentamente e suspirei a cada meio
minuto, sentindo o meu coração diminuindo,
forçando a batida contra a caixa torácica. Passei
tanto tempo no celeiro, com o pensamento longe,
que só depois me lembrei de que devia levar
comida para o Gê.
Tão logo me distanciei do telescópio, pronta
para descer as escadas de madeira, percebi que os
cavalos estavam em polvorosa. Uns começaram a
relinchar e a se movimentar perigosamente.
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Eles só ficavam daquela forma quando


alguém desconhecido invadia o recinto.
— Tem alguém aí? — perguntei com a voz
alta, ainda no topo da escada. Ninguém respondeu.
A lembrança da ameaça daquele alienígena em meu
sonho me fez permanecer atenta e acuada. — Quem
está aí embaixo?
Nenhum funcionário que não estivesse
acostumado com o serviço entraria no celeiro
durante a noite, logo, meu pavor não era em vão.
Os cavalos ainda se remexiam de forma
inquietante, e os relinchos soavam como o prelúdio
de um acontecimento terrível. Meus pelos se
eriçaram de pavor e fiquei algum tempo sem saber
o que fazer. Pensei em descer as escadas depressa e
sair correndo, mas tive medo de ser interceptada
por um alienígena.
Desci, lentamente, alguns degraus. O medo
deixava minhas pernas molengas, mas lutei contra
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ele como pude para manter a firmeza em meus


passos. O ranger da madeira conforme eu descia me
deixava louca, fazia o cenário todo ainda mais
bizarro. Eu não queria ser assassinada no meio do
celeiro, parecia-me um péssimo lugar para morrer.
Ouvi alguém sussurrando uma língua
estranha e todos os meus pesadelos se tornaram
reais. Parei de desder as escadas imediatamente.
Com certeza tinha um extraterrestre por perto,
prestes a me capturar. O linguajar esquisito
continuou, soando firme, porém muito baixo. Aos
poucos, os cavalos foram se acalmando como se
estivessem hipnotizados por aquela voz
murmurante. Em menos de um minuto tudo ficou
tão calmo que nem parecia que algo terrível estava
para acontecer.
Quando, enfim, decidi sair correndo sem
nem olhar para trás, terminei de descer as escadas e
um corpo grande surgiu na minha frente.
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Trombamos sem o menor cuidado, e soltei um grito


de pavor capaz de agitar os cavalos de novo.
— Estrela?
A voz do Gê me fez soltar um suspiro forte
repleto de alívio.
— Caramba, Gê... — coloquei a mão na
cabeça, tentando me recuperar do susto. — Não
faça uma coisa dessas. Fiquei desesperada, achando
que seria atacada por um Recolhedor.
— Perdoe-me, não queria assustá-la. Mas
eu realmente cheguei a imaginar que a senhorita
tinha sido atacada por um Recolhedor, já que
muitas horas se passaram sem o seu retorno. — Ele
parecia bastante agitado, até falava depressa
demais, o que não era sua forma natural de se
comunicar. — Fico feliz por encontrar a senhorita
em perfeito estado.
Soltei uma risadinha meio nervosa e fora de
contexto. Os cavalos voltaram a relaxar e a
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calmaria retornou, mas meu coração ainda batia


acelerado. Talvez, naquele momento, não pelo
medo, mas porque ficar perto do Gê era sempre
uma emoção diferenciada. Eu não deveria reparar
em como estava bonito usando calça jeans, tênis e o
casaco preto recentemente comprados. Não havia
nada por baixo do casaco um pouco aberto,
provavelmente porque ele deve ter imaginado que
não precisava usar uma camisa se já estava com
uma peça por cima. Fiz o possível e o impossível
para permanecer imune à faixa branca que
demarcava seu tórax exposto.
— Tudo bem, Gê — suspirei novamente,
percebendo que naquela noite eu tinha colecionado
incontáveis suspiros. — Vamos voltar para a suíte.
Você deve estar com frio e com fome.
Passei por ele despreocupadamente, no
entanto, Gê segurou a minha mão, obrigando-me a
ficar. Depois de uma semana inteira sem nos
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encostarmos, senti toda a sua quentura mais uma


vez. Eu o olhei fixamente, sem nada dizer, e ele
demorou tempo demais refletindo sobre o que diria.
Um tempo em que passamos apenas nos encarando,
olhos castanhos nos olhos vermelhos e vice-versa.
— O meu corpo finalmente se adaptou às
baixas temperaturas da Terra, de forma que a
senhorita pode desligar, caso deseje, aquela
máquina que exala calor — falou rápido e de forma
sussurrante, ainda sem me soltar e mantendo os
olhos em mim. Gê parecia ansioso por algum
motivo que eu desconhecia. — Desculpe-me se
soar indelicado de minha parte, Estrela, mas desejo
passar algum tempo aqui fora. A senhorita tinha
razão, para quem é acostumado a desbravar o
Universo, ficar preso em uma caixa se torna
apavorante. Porém, ainda é mais seguro que eu
permaneça longe dos olhares humanos. — Gê
finalmente me soltou e retirou alguma coisa do
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bolso. Eram duas bananas, sua fruta preferida. — E


eu trouxe comida.
Não evitei soltar outra risada nervosa. Ele
era tão fofo com aquele jeito inocente que a minha
vontade era de guardá-lo num potinho. Usando a
mesma mão em que ele me segurava, puxei-o de
volta para a escada. Se existia um lugar na fazenda
que eu queria mostrar ao Gê, com certeza era
aquele.
Não havia nada de mais no ambiente além
de um telescópio, um lampião aceso, o telescópio,
três banquinhos de madeira e um edredom
pendurado, que eu mantinha limpo para noites
muito frias. Gê olhou ao redor com nítida
curiosidade, até que seus olhos encontraram o
telescópio ao centro.
— Para que serve esta curiosa ferramenta?
Peguei um segundo banquinho e o coloquei
ao lado do que eu costumava usar, sentando-me
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nele e indicando para que o Gê se sentasse no que


estava a postos. Ele fez o que pedi sem hesitar.
— Coloque seu olho aqui, mas não toque no
telescópio para não sair de posição.
Gê assentiu. Assim que abriu um olho e
fechou o outro, para observar com exatidão, percebi
o resquício de um sorriso surgir em seus lábios. Ele
desviou o rosto para longe da lente e me olhou.
— Vênus — murmurou, e senti um pouco
de saudade em seu timbre.
— Vênus — repeti, suspirando. — Eu
costumava passar horas observando o seu planeta,
imaginando como seria lá. Quando você disse que
era venusiano, fiquei espantada com a coincidência.
É meu planeta favorito.
Gê ficou bastante sério, de repente.
Continuou me olhando fixamente, e fiquei sem
entender.
— O que houve? — fiz uma careta.
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— A senhorita precisa compreender que a


Terra deveria ser seu planeta favorito. Aqui existem
todos os recursos em abundância para a sua
sobrevivência. A maioria dos venusianos não vive
em Vênus, e nossa espécie está praticamente
extinta. — Fiquei calada diante daquela informação
nova. Eu deveria ter notado que dois mil habitantes
para uma raça inteira não significava nada. Apenas
naquela região pouco habitada do interior do estado
havia muito mais que aquilo. — Apesar de meus
pais serem venusianos, eu nasci em uma nave, no
espaço. Não devo ter passado mais que alguns
meses em Vênus ao longo de minha existência.
— Onde eles estão? — perguntei,
interessada. — Seus pais.
— Nossa relação parental é completamente
diferente da que acontece aqui na Terra. Não há
ligações emocionais. — Minha careta se
intensificou. Como assim ele não tem qualquer
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ligação emocional com seus pais? — Assim que


nascemos, aprendemos a nos virar sozinhos.
Definimos a nossa ocupação e focamos em fornecer
o melhor para o Universo. Atualmente, meus pais
estão em Júpiter, vivendo juntos até o fim de seus
dias.
Fiquei ainda mais confusa.
— Você tem irmãos?
— Alguns. Não conheço a maioria. — Gê
percebeu minhas expressões esquisitas e explicou
mais uma vez: — Somos criaturas solitárias por
natureza, Estrela. O dever do venusiano é a
contribuição, a realização de tarefas relevantes.
— Qual é a tarefa de seus pais? — dei de
ombros, estupefata. — Você falou que os
venusianos são solitários, mas acaba de dizer que
os dois estão juntos em Júpiter.
— Eles são Procriadores. A tarefa deles é
garantir que a nossa raça não seja extinta.
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Infelizmente, temos poucos Procriadores em


atividade.
— Por quê? — apoiei os cotovelos nos
joelhos e o meu queixo nas mãos. Estava
maravilhada, surpresa e assustada com aquela
história fascinante. As perguntas passaram a sair da
minha boca sem que eu pensasse muito.
— O primeiro motivo é uma questão
meramente física. Nem todos os venusianos nascem
férteis. O segundo motivo é mais incompreensível,
pelo menos para mim. — Gê deu de ombros sobre
o banquinho. Era engraçado que ele, uma criatura
grande, estivesse se equilibrando naquele
pedacinho de madeira. Continuei com os olhos bem
abertos, aguardando a sua explicação. — Os
venusianos costumam se relacionar com apenas um
parceiro ao longo de suas vidas. É o único laço
emocional que existe em nossa raça. Portanto, os
Procriadores precisam, necessariamente, ser um
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casal. O problema é que, por sermos solitários, não


existem muitos casais.
Aquelas informações invadiram a minha
mente como uma enxurrada. Pensei em tanta coisa
em tão pouco tempo que formular uma pergunta foi
tarefa complicada. Gê até tinha voltado a observar
pelo telescópio, pois fiquei muda, sem reação.
— Mas por que você não compreende? —
pisquei os olhos.
— Porque seria mais eficiente se reunissem
os venusianos férteis para reproduzir de forma mais
acelerada, ou até mesmo em um processo artificial.
Não é necessário haver laços emocionais para um
ato que depende apenas da química. Mas é de nosso
costume usar o método natural.
Aquiesci, sentindo-me meio esquisita.
Então, Gê acreditava que o sexo não tinha nada a
ver com sentimentos. Tudo bem, eu concordava
com ele, mas confesso que fiquei um tanto
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frustrada. Aquele extraterrestre não era tão inocente


quanto eu pensava que fosse.
— Você é um venusiano fértil? — a questão
escapuliu de meus pensamentos sem nenhum aviso.
Gê balançou a cabeça em negativa.
— Não. Portanto, nenhuma decisão sobre
procriação me diz respeito. — Fiquei sem saber o
que achar daquilo, mas creio que imaginei ser
ótimo o fato do Gê não ter pressa de encontrar uma
parceira com quem viverá o resto de seus longos
dias. — Os venusianos seguem um código
enfadonho de conduta e há decisões tomadas
democraticamente entre aqueles que serão afetados
por elas.
— Parece uma política muito mais justa que
a nossa — comentei, ainda bastante reflexiva. Eu
precisava fazer a pergunta que permeava a minha
mente. — Gê... Você... hm... Você não é fértil, mas
você pode... hm... ter uma parceira?
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— Certamente — ele respondeu enquanto


analisava o telescópio. Agradeci por não ter que
encará-lo naquele momento. — Mas seria
imprudente de minha parte.
— Por quê? Não pensa em ter uma
companheira?
Gê voltou a me encarar, e precisei segurar a
respiração.
— Seria extremamente inútil viver com
uma parceira quando eu poderia usar minhas
habilidades para contribuir de outra forma. —
Apesar de ter soado natural e corriqueira, não
gostei da forma como ele falou aquilo. — Se sou
infértil e nada posso fazer para mudar esta fatídica
realidade, não há motivos para criar laços
emocionais com uma fêmea.
— Você não poderia fazer as duas coisas?
— insisti no assunto, mesmo sabendo que não
deveria. — Continuar contribuindo e ter uma
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parceira?
— Eu não sei, Estrela — Gê me pareceu
bastante sincero. Ele só me diria que não sabia de
algo se realmente não soubesse. — Possuo um
conhecimento muito escasso sobre essas questões
sentimentais. De qualquer forma, estou preso na
Terra e ter uma parceira é a última de minhas
preocupações.
— É... — soltei meu milésimo suspiro.
Eu sabia que em algum momento o Gê ia
mexer no telescópio. Se fosse outra pessoa, não
deixaria de jeito nenhum que mexesse no meu
“bebê”. Mas Gê era curioso demais para ficar
quieto, além de bastante cuidadoso com tudo o que
tocava, por isso permiti que ajustasse a lente para
onde quisesse.
— E a senhorita? — perguntou depois de
um tempo regulando a aparelhagem.
— Eu o quê? — Nem preciso dizer que
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estava totalmente distraída.


— Pretende encontrar um parceiro humano
para fins reprodutivos, para criar laços afetivos ou
ambas as opções?
— Nenhum dos dois, Gê... Não pretendo ter
filhos nem tão cedo — desabafei, exalando outro
suspiro pra minha coleção. — E conheço sobre
questões sentimentais tanto quanto você.
— Vem aqui, Estrela — Gê sorriu de um
jeito bonito e se levantou depressa, provocando-me
um pequeno susto. — Eu a encontrei.
— Quem?
— Veja você mesma.
Sua animação repentina me deixou
maravilhada e curiosa. Trocamos de banquinhos
rapidamente e tratei de olhar no telescópio o que
ele havia encontrado. Era um ponto de luz grande,
extremamente brilhoso e com as bordas
incandescentes. Eu sabia perfeitamente que aquilo
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era uma estrela, mas não compreendi por que


aquela era especial para o Gê. Havia tantas
espalhadas pelo céu naquela noite.
— O que é?
— Essa estrela possui uma fonte de energia
inimaginável. Algumas partículas da 14038 foram
extraídas da poeira cósmica deixada por ela. — Os
olhos do Gê brilhavam de expectativa. — Passei
anos a estudando, analisando todos os componentes
e reaproveitando uma boa parcela em meu
experimento, e cheguei à conclusão de que esta
estrela está morrendo. Posteriormente, daqui a
milhões de anos, ela virá a se tornar um novo
planeta, ou talvez outra galáxia, e certamente
originará novas espécies.
— Sério? — Fiquei exasperada. — Como é
possível?
— Somos todos poeiras de estrelas,
senhorita. É o processo de vida e morte das estrelas
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que permeia todo o Cosmo.


— Uau... — Tornei a visualizar o ponto de
luz através do telescópio. — Ela não parece estar
morrendo. Eu diria que está nascendo.
— A senhorita está completa de razão —
senti a animação no timbre dele e voltei a encará-
lo. — Toda estrela renasce várias vezes, existe em
uma constante transformação. São todas donas de
uma beleza peculiar, difícil de ser compreendida,
porém fácil de ser apreciada.
Meu rosto inteiro foi tomado por um calor
horroroso. O modo como o Gê falou aquilo olhando
para mim me deixou absorta e envergonhada.
Afinal, meu nome era Estrela e, por um momento,
achei que estivesse falando ao meu respeito. Não
que eu me achasse dona de uma beleza peculiar,
embora não pudesse reclamar de minha aparência.
Era só que aquele elogio, caso fosse pra mim, seria
mais do que eu poderia merecer.
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Ficamos nos encarando durante o tempo


necessário para que todo o meu juízo se esvaísse.
Gê não tocou em nenhum outro assunto, ou mesmo
desviou o rosto, por isso reuni toda a coragem para
tirar a sua atenção sobre mim:
— Como conseguiu aquietar os cavalos?
Ele piscou os olhos algumas vezes, como se
acordasse de um transe.
— Os animais são bastante sensíveis à
presença extraterrena — Gê olhou para além da
única e larga janela do celeiro. — Em meu
treinamento como Recolhedor, aprendi uma forma
de aquietá-los e fazer a nossa presença passar
despercebida.
— Isso é o máximo.
Aquiesceu e pegou as bananas de seu bolso
novamente.
— A senhorita gostaria de me acompanhar
durante a refeição?
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Sorri e segurei a fruta que ele me oferecia.


— Certamente, senhor — brinquei, rindo
um pouquinho.
Começamos a comer enquanto Gê me
explicava alguns detalhes sobre a confecção de sua
nave, as viagens no espaço-tempo que realizou e
inúmeras curiosidades sobre as estrelas, coisas que
eu não sabia e que não existia em nenhum meio de
comunicação terrestre.
Durante a nossa longa e despretensiosa
conversa, uma pulga do tamanho de um elefante
continuou me cutucando atrás da orelha. Eu não
sabia se o Gê tinha passado uma cantada na maior
cara dura, e nem tive a mínima coragem de
perguntar. O modo como me olhou pareceu
diferente; o brilho em sua íris avermelhada, seu
rosto mais expressivo.
Aquele extraterrestre era uma verdadeira
incógnita para mim. Além do mais, entre achar que
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ele deu em cima de mim e achar que eu tinha


endoidado, preferia a segunda opção. Ao menos,
considerava-a muito mais segura.
Com certeza eu estava ficando mais louca
do que de costume.

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13

Eu estava bem distraída, totalmente


desconectada do meu serviço enquanto me apoiava
na cerca que separava os cavalos durante o
costumeiro banho de sol. Valentim cuidava dos
bichos com muito esmero, porém percebi que me
observava vez ou outra, o que só não me deixava
incomodada porque meus pensamentos estavam
bem longe do planeta Terra. A noite anterior tinha
sido tão mágica que a sessão de suspiros ainda não
cessara, deixando-me feito uma boba durante a
maior parte do tempo.
Prometi a mim mesma que levaria o Gê ao
celeiro mais vezes, para que pudesse me contar

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mais de suas histórias fantásticas e impressionantes.


Ele se animou muito com a ideia, era visível o
prazer que sentia em me explicar tudo com
detalhes. Eu nunca havia me sentido tão pequena,
tão ínfima diante de um Universo inteiro cheio de
possibilidades. O trabalho na fazenda se tornou um
detalhe tão desimportante que levou qualquer
interesse de dentro do meu peito. Só pensava em
explorar o espaço, em observar os planetas, estrelas
e cometas, em fazer alguma coisa verdadeiramente
útil.
Gê havia despertado em mim não apenas a
curiosidade, mas a vontade de obter
conhecimentos, mesmo os mais complicados, e agir
conforme eles. Não dá para continuar pensando
dentro da caixinha quando temos o conhecimento
de que há muito mais a ser desvendado sobre todas
as coisas que existem. Eu queria fazer parte daquele
mundo, e quando falo “mundo”, não me refiro a
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outro planeta, mas sim ao modo de viver que o Gê


levava; realizando pesquisas, confeccionando naves
e quebrando as barreiras do impossível.
— ESTRELA! — ouvi um grito espantado
e, de repente, um trambolho apareceu na minha
frente. Tirei as mãos que se apoiavam na cerca e
perdi o equilíbrio, caindo de bunda no chão.
Açucena estava do outro lado da cerca,
soltando seus costumeiros relinchos, exigindo
atenção. Ela podia ser bastante arisca quando
queria. Não era a primeira vez que escapulia dos
domínios de Valentim quando me via por perto.
Eu me coloquei de pé e a olhei de cara feia.
Não daria nenhum dengo àquela danadinha, pois
poderia acostumá-la mal.
— Você está bem? — Valentim se
aproximou, parecendo preocupado. Não pude
deixar de notar que me observou dos pés à cabeça.
— Ela saiu em disparada! — enlaçou o pescoço da
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égua com exatidão, utilizando uma corda. Sua


paciência para lidar com os bichos era marcante. Eu
não teria a mesma.
Açucena reclamou um bocado, toda
alvoroçada, mas depois percebeu que o Valentim
não abaixaria a guarda de novo.
— Estou bem, relaxa — retirei a terra que
tinha grudado na calça jeans em meu traseiro. —
Como estão os cavalos?
— Bem... Nada novo. — Valentim ficou me
encarando enquanto eu dava de ombros. — Você
estava bem distraída. Aliás, faz uns dias que anda
assim. Aconteceu alguma coisa?
Havia uma coisa bem grandiosa
acontecendo, sem dúvida nenhuma, mas aquele
homem não precisava saber de nada.
Principalmente porque buscava novas informações
sobre mim na intenção de descobrir com quem eu
estava “dormindo”.
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— Está tudo numa boa — sorri de uma


forma meio cínica. — Vou dar uma olhadinha no
milharal — falei de uma vez, antes que ele
prosseguisse com o assunto, fazendo mais
perguntas que eu não queria responder.
Virei as costas a tempo de ver o seu Luís se
aproximando, montado em seu cavalo particular,
como ele o chamava. Parou muito perto, de um
jeito agitado que me fez ter certeza de que algo
muito ruim tinha acontecido.
— Senhorita Estrela, aconteceu de novo! —
Seus olhos estavam esbugalhados de pavor. O
cavalo em que estava montado capengava para
frente e para trás. — Aquela marca no milharal.
Apareceram outras!
— Outras? — Engoli em seco, mortificada.
— Mais de uma?
Aqueles extraterrestres de uma figa estavam
marcando minhas terras alucinadamente,
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estragando o meu milho. Se continuassem daquela


forma, o que iríamos colher no fim do ciclo? Aliás,
como faziam os sinais sem chamar a atenção de
ninguém? A que horas fizeram as novas marcas, se
Gê e eu havíamos passado boa parte da madrugada
no celeiro, de olho em tudo?
Depois de uma semana de ausência, por que
resolveram aparecer? Será que finalmente
cumpririam as ameaças?
Meu corpo permaneceu travado enquanto
seu Luís aguardava por novas ordens. Eu parecia
ter criado raízes ali mesmo, incapaz até de respirar.
Não me lembrava de ter sentido um medo tão real,
tão sufocante e aterrador. Se os Recolhedores
estavam de volta, era porque não tinham desistido
de obter o experimento do Gê. Foi bobagem da
minha parte acreditar que haveria trégua.
Valentim apareceu depressa com uma cela
para Açucena, já sabendo que eu deveria conferir
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os sinais de perto. Montei na égua sem nada falar,


uma parte porque não conseguia e outra porque
simplesmente não havia o que ser dito. Era
perceptível no rosto apavorado do seu Luís que ele
achava que, em algum momento, eu o culparia
pelas falhas no terreno. Coitado. Se soubesse o que
realmente tinha acontecido, seu pavor seria um
tanto maior.
O funcionário responsável pelo controle de
pragas me mostrou, com bastante paciência, cada
um dos sinais. Eu os inspecionei atentamente,
calada, com o corpo tremendo e o coração mais
agitado do que tudo. Todas as marcas eram
circunferências, porém de variados tamanhos.
Nenhuma era tão grande quanto a primeira, no
entanto. Não consegui perceber um padrão, mas
peguei um papel na prancheta que vivia com seu
Luís e tentei fazer um desenho. Talvez fosse mais
fácil se analisássemos de cima, em um helicóptero
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ou algo do tipo, mas não havia como fazer aquilo.


Consegui fazer um desenho com a
circunferência grande em cima — correspondendo
ao primeiro sinal —, duas mais embaixo, ao lado
uma da outra, uma maior no centro e uma pequena
abaixo dela.

Para mim, aquela imagem poderia não fazer


o menor sentido, porém a guardei no bolso da calça
na intenção de consultar o Gê. Ele certamente
saberia o que dizer a respeito. Eu só torcia para que
não fosse nada de mais, apenas uma forma idiota
daqueles extraterrestres curtirem com a minha cara.
— Senhorita... — Seu Luís se aproximou

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depois que concluímos a nossa inspeção. — Juro


por Deus que não sei o que está acontecendo. O
milharal está saudável...
Toquei em seu ombro para confortá-lo. O
homem ainda estava com os olhos assustados,
torcendo para não ser demitido. Sua mulher estava
grávida de gêmeos e aquele era o momento em que
ele mais precisava manter o emprego.
— Não se preocupe. Sei que a culpa não é
sua.
— Fiz algumas pesquisas e conversei com
uns colegas... — ele tirou o chapéu de palha da
cabeça e coçou os cabelos. — Ninguém sabe o que
pode ser. Um deles disse que era coisa extraterrena.
Mas esse meu amigo é meio desajuizado.
— Pois eu acredito piamente que é coisa de
ET! — Valentim surgiu, de repente, entre uns pés
de milho. Também estava com o semblante
intrigado. Havia feito questão de nos acompanhar
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na vistoria, mas tinha se mantido quieto até então.


— Não tem outra explicação.
— Não seja besta, Valentim — desdenhei,
tentando soar sincera. Descartar aquela
possibilidade, tirá-la da mente dos funcionários,
seria a minha única saída, a melhor forma de
protegê-los. — Não existe essa coisa de ET.
— Quem sabe? O espaço é grande demais
— ele olhou para o céu, e nós dois o
acompanhamos. Seu Luís era um cara prático e
realista, mas aqueles sinais deviam estar mexendo
com seu discernimento, de forma que percebi que
acreditava no Valentim. — Com certeza deve ter
vida em outros planetas.
— Vocês deveriam, sim, manter a cabeça
no lugar — comecei a andar na direção da estrada,
a fim de reencontrar Açucena e voltar ao casarão o
mais depressa possível. Queria mostrar logo o
desenho ao Gê. — Só porque desconhecemos a
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causa, não significa que seja coisa de outro mundo.


Os dois homens me acompanharam sem
pestanejar.
— E o que faremos, senhorita? —
questionou seu Luís. — Creio que um replantio
será em vão.
— Deixaremos como está, por enquanto —
ordenei, ainda me tremendo toda. Estava me
controlando para não sair correndo e gritando. — O
que não tem remédio, remediado está, já dizia o
meu pai.
Tão logo cheguei ao casarão, peguei almoço
escondido na cozinha e entrei na suíte tentando não
fazer alarde. Seu Frederico estava trabalhando em
algum lugar, mas dona Margarida estava por perto.
Podia ouvir o som de seu radinho a pilha, ela
gostava de ouvir música enquanto lidava com os
serviços domésticos.
Encontrei o Gê sentado na cama, com as
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pernas esticadas e a coluna apoiada por um monte


de travesseiros. Mexia no meu celular com uma
destreza sobre-humana, certamente realizando suas
muitas pesquisas sobre o nosso mundo e o
conhecimento que acumulamos ao longo das eras.
— Boa tarde! Trouxe o seu almoço —
depositei a bandeja sobre a mesinha, percebendo
que a outra, a que eu havia deixado pela manhã, se
encontrava vazia.
— Boa tarde, senhorita — Gê largou o
celular no colchão e ficou me olhando.
Seria estranho se, internamente, eu fizesse
uma comparação sobre como era ser observada
pelo Valentim e pelo Gê? Diria que eram dois
opostos. Um me incomodava e o outro me deixava
tonta. Um parecia saber mais do que o que estava
implícito, havia malícia e intenções obscuras. O
outro, apesar de saber tantas coisas, encarava-me
como se eu fosse um grande mistério, e que, por
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mais que tivesse curiosidade, aceitava o fato de eu


não querer me revelar.
— Fazendo pesquisas? — apoiei as mãos na
cintura, sem saber como iniciar o principal assunto,
aquele que tinha me feito vir depressa.
— Certamente. Há muito a se saber sobre os
humanos. É curiosa a maneira como sobrevivem,
como agem em sociedade.
Eu me sentei na cama ao lado dele,
ofegando porque estava cansada. Por mais que eu
quisesse conversar com o Gê sobre suas pesquisas,
precisava manter o foco.
Puxei da calça o papel onde eu tinha feito o
desenho e entreguei a ele. Gê segurou e observou
atentamente. Não percebi nenhuma mudança em
sua expressão, porém o fato de ter ficado quieto me
assustou. Ele já teria feito alguma pergunta, em
condições normais.
— Você sabe o que significa isso? —
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questionei em um murmúrio, já que o Gê parecia


petrificado.
— É um sinal — respondeu simplesmente.
Não fazia o seu estilo ser tão sucinto.
— O que significa?
— Onde encontrou isso, Estrela? — Gê, por
fim, me encarou. Continuei sem conseguir decifrar
o seu olhar, porém se manteve sério, compenetrado.
Soltei um longo suspiro antes de responder:
— Apareceram mais sinais no milharal. Fiz
este desenho à mão para termos uma ideia... — Gê
continuou me olhando sem nem piscar. — Pode me
dizer o que significa ou vai fazer mistério e me
deixar completamente louca?
— Desculpe-me, Estrela, não foi minha
intenção deixá-la louca. — Voltou a observar o
desenho, demorando-se como se fosse algo difícil
de interpretar. Qual é? Eram somente cinco
bolinhas. — Este símbolo significa invasão — Gê
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ergueu o olhar novamente. — Os Recolhedores


ganharam autorização para interferir neste terreno,
desde que se mantenham discretos.
— Autorização? — Meu coração estava
quase saindo pela boca. — E quem autorizou?
Gê deu de ombros.
— As autoridades de seu planeta, muito
provavelmente.
— Eu sabia que aquele tal de Trump faria
merda! — levei uma mão à cabeça
desesperadamente. Gê não comentou nada, prova
de que não entendeu o que falei. Nem eu sabia se o
presidente dos EUA estava envolvido naquela
palhaçada, mas era bem provável que sim. — Gê...
O que a gente vai fazer? Eles vão invadir a
fazenda?
Meu extraterrestre favorito se levantou
ligeiro, com um só movimento. Passou a andar de
um lado para o outro no quarto, com o olhar
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reflexivo.
— Eles utilizarão bastante cautela para
arquitetar uma sorrateira invasão. É provável que
tudo se resolva caso eu simplesmente me entregue
aos seus domínios.
— Não! — berrei, assustada. — Você não
vai se entregar.
— A senhorita corre perigo, bem como as
suas terras. Este sinal é o suficiente para que
tenhamos certeza de que qualquer atitude tomada
pelos Recolhedores não receberá punição.
— Não, Gê... — balancei a cabeça em
desespero, apavorada com a ideia de vê-lo ser
levado por aqueles idiotas. — É o seu experimento.
Vale a pena lutar por ele.
— Esta noite, senhorita — Gê foi incisivo.
Seu olhar sério quase rasgava a minha carne. Ele
não parecia contente, mas era apenas uma sensação.
— Esta noite me entregarei aos Recolhedores antes
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que uma tragédia seja irrompida.


Meus olhos se encheram de lágrimas
instantaneamente. A dor que aprofundou em meu
coração não me deixou apta a controlá-las. Não
queria vê-lo partir, odiaria que seus objetivos
fossem roubados, bem como meus sonhos. Em
poucos instantes, uma cascata de lágrimas foi
deixando meu rosto ensopado. Gê ficou me
olhando, daquela vez com uma expressão confusa.
Sua indiferença finalmente tinha ido embora.
— A senhorita está... — ele interrompeu
sua própria fala, ainda bem confuso.
— Chorando — resmunguei, fungando.
Tentei me fazer de forte só para não assustá-lo
muito. — Os venusianos não choram?
— Certamente temos a capacidade de
chorar devido às glândulas existentes em nossos
corpos. Porém, nunca presenciei tal cenário.
— Você nunca chorou?
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Gê balançou a cabeça de um jeito robótico.


— Jamais encontrei motivo para demonstrar
infelicidade.
— Sorte a sua... — suspirei, enxugando o
rosto para não soar mais patética do que aquilo.
Gê se aproximou calmamente, de forma
hesitante. Parou bem na minha frente, e fiquei sem
saber o que faria por alguns segundos. Os olhos
vermelhos se mantiveram fixos nos meus, de uma
maneira profunda capaz de arrancar o meu fôlego.
Arquejei diante de sua proximidade, e soltei outro
arquejo quando sua mão tocou a minha.
Entrelaçamos os nossos dedos.
— Ainda que se passem mais vinte e dois
anos em seu planeta, eu retornarei com o único
objetivo de buscá-la, Estrela — ele falou em um
tom ameno, porém intenso. Havia a mais pura
verdade em seu timbre doce. — Estou desistindo de
uma possível invasão que possa vir a prejudicá-la.
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Jamais desistiria da senhorita.


Apertei sua mão quente contra a minha.
— Vou sentir saudades — usei a mão livre
para tocar o seu rosto, aproximando-me mais, de
forma que nossos corpos grudaram. Gê não se
afastou, manteve seu olhar no meu, fixamente.
Talvez aquela atitude maluca tenha servido
para que fizesse igual. Na dúvida, ele resolvera me
copiar, por isso senti sua outra mão passeando pela
minha bochecha tal como eu fazia nele.
— É errado em tantos sentidos... —
sussurrou bem perto. Eu já estava inebriada com
sua presença, como se seu corpo por inteiro fosse
hipnótico.
— O que é errado, Gê?
Ele não me respondeu, mas se afastou
depois de um tempo. Soltou a minha mão e deu
alguns passos para trás, como se eu o oferecesse
alguma ameaça.
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— Também sentirei a sua falta, senhorita,


porém estou decidido a partir.
Não havia mais o que ser feito. Também
não poderia insistir. Não concordar talvez fizesse
com que o Gê partisse às escondidas, sem uma
despedida decente e sem que eu conferisse se
ficaria bem.
Recolhi a bandeja vazia e deixei a suíte sem
mais nada dizer. Assim que fechei a porta, no
entanto, novas lágrimas se formaram. Todas as
tentativas de me manter afastada foram
completamente em vão. Gê me deixava encantada,
sedenta pela vida, com os pensamentos no espaço.
Sem ele, minha existência voltaria a ser
monótona e desinteressante. E cada um dos meus
sonhos seriam apenas frutos de uma eterna mente
infantil.

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14

O frio que aquela noite fazia talvez


significasse que era um péssimo momento para
entregar um trabalho de anos nas mãos de
extraterrestres do mal. Eu dirigia a minha
caminhonete aos prantos, sentindo-me desesperada
e relembrando a despedida azeda, única opção
possível diante do meu mau humor.
Depois de se vestir com as roupas
venusianas de novo, Gê comeu sua última banana e
segurou a minha mão. Prometeu novamente que
retornaria e eu não tive a capacidade de lhe dizer
sequer um “até logo”. Fiquei quieta, segurando a
vontade de chorar e engolindo, sem sucesso, o nó

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que se formara em minha garganta.


Eu o assisti saindo pela janela. Vi quando
seus olhos vermelhos brilharam em minha direção e
ele hesitou. Percebi quando abriu a boca para falar
alguma coisa desconhecida por mim, depois
acompanhei sua desistência. Gê se perdeu na
escuridão dos arredores da enorme casa e eu fiquei
sozinha, destruída por dentro, sentindo uma
saudade que parecia que não o via há séculos.
Aquele sentimento era uma porcaria de admitir,
mas eu tinha realmente me apegado a ele, de uma
forma impensável.
Esquecer que o Gê passou pela minha vida
seria tarefa difícil. Pensar nos próximos vinte e dois
anos me deixou agoniada, como se meu espírito
quisesse se afastar do meu corpo e sair correndo
atrás dele. Confesso, vergonhosamente, que não
pensei nem por um segundo em não atender aos
pedidos que pulsavam em meu coração junto com o
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sangue. Cada batimento parecia exigir uma atitude.


Eu me consideraria mais estúpida ainda se não
tivesse pegado as chaves, deixado a suíte e dado
partida na caminhonete.
Dirigi com os faróis desligados pelo
caminho que eu estava careca de fazer, e que o Gê
devia ter feito cautelosamente, a pé. Apenas a fraca
luz refletida pela lua iluminava a fazenda. Não
havia o menor sinal de nave espacial no céu. Era
como se fosse uma noite comum, sem nada
interessante acontecendo. Era até engraçado
considerar a naturalidade do clima, pois em meu
coração havia uma tempestade nebulosa em pleno
acontecimento.
Estacionei no lugar de praxe, respirei fundo
e daquela vez mantive a chave na ignição, para o
caso de emergência. Já estava tão acostumada a
fazer aquele percurso, fazíamos em toda
madrugada, que sabia perfeitamente qual caminho
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seguir. Reconhecia as árvores e os arbustos


próximos do ovo, portanto me perder não se tornou
um problema. Ainda bem, pois havia muitos para
lidar.
Com bastante cautela, localizei a nave,
sorrindo aliviada por ainda estar no mesmo local,
intacta. Por um momento, acreditei que chegaria
tarde demais. Percebi o Gê logo adiante, parado
como uma estátua, apenas esperando ser levado
pelos outros aliens. Não movia nem um músculo de
seu corpo, era como um robô perfeitamente
programado para fazer o que achava mais sensato.
Respirei fundo e continuei andando,
deixando mais arbustos para trás.
— Sabe... — comecei a falar, tentando criar
uma coragem que parecia cada segundo mais
distante de mim. — Vinte e dois anos é tempo pra
caramba. Além do que não tenho nenhuma garantia
a respeito do seu retorno.
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Gê finalmente se moveu, um tanto


assustado.
— Estrela? O que faz aqui?
— Daqui a vinte e dois anos eu terei
cinquenta anos e você, uns seiscentos e lá vai o
trem. É tempo demais, Gê. — Parei na frente dele,
com a cabeça erguida e o coração palpitando.
— Precisamente, setecentos e vinte e oito
— falou de um jeito espantado que eu nunca tinha
visto nele. Gê olhou ao redor, demonstrando estar
aflito com uma possível presença dos
Recolhedores.
— Eu sou de humanas — dei de ombros,
justificando minha péssima capacidade de fazer
cálculos, mas acho que o Gê não entendeu. — A
verdade é que não sei se estarei viva amanhã. E
você não faz ideia se sobreviverá.
— Estrela, restam-me apenas a esperança e
os esforços que estou disposto a realizar para que
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minha promessa não seja em vão.


— Confio na sua esperança e nos seus
esforços, Gê. — Conseguia enxergar apenas parte
de seu rosto com a ajuda da lua. O restante estava
tomado pela escuridão. Grilos e cigarras cantavam,
alheios a nós dois. — Mas realmente não sei se vou
suportar a espera.
— Creio que seja mais apropriado a
senhorita se afastar — Gê continuou aflito,
observando entre as árvores de um jeito agitado. —
Não é seguro permanecer aqui.
— O que faria se soubesse que nunca mais
vamos nos ver? — questionei de uma vez, fechando
os olhos por um instante apenas para encontrar
forças e prosseguir. — Eu me perguntei isso depois
que te vi pulando a minha janela.
— Eu diria que sinto muito, Estrela — Gê
me encarou, finalmente parando de se preocupar
com o que estava a nossa volta. Seria muito mais
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perigoso, para mim, deixá-lo partir sem um adeus


decente. — Diria que fiz o possível, fiz o que
estava em meu alcance para realizar o seu maior
sonho. Pediria sinceras desculpas pela minha
incapacidade de atendê-la.
Aquiesci, sentindo lágrimas se formarem
em meus olhos. Gê era tão genuíno que me
emocionava. Estava realmente preocupado em
cumprir sua promessa, e eu nunca seria capaz de
considerar sua atitude menos do que a melhor coisa
que alguém já fez por mim.
— E a senhorita, o que faria?
Resfoleguei, soltando todo o ar dos
pulmões. Foi difícil pensar em alguma coisa. Meu
raciocínio estava derretendo feito uma gelatina fora
da geladeira, por isso deixei que apenas a emoção
falasse por mim.
— Diria que você é a criatura mais
impressionante que já conheci — murmurei, e notei
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que Gê ficou estático. Ainda mais, quero dizer. —


Diria que não guardarei nenhuma mágoa caso não
conseguir voltar, pois sei que dará o seu melhor. E
também que vou pensar em você a cada segundo
durante o tempo em que não estiver aqui.
— Estrela... — Gê balbuciou e segurou
minha mão.
Aquela era a forma que ele conhecia, pois
eu mesma tinha ensinado, de apoiar alguém em um
instante difícil. Achei que fosse terminar naquele
gesto, porém me surpreendi quando o Gê me puxou
para si e me abraçou com força. Foi um abraço
totalmente diferente do nosso primeiro. Aquele era
mais apertado, cheio de significado.
Afundei meu rosto em seu peito e lá
permaneci, sentindo aquela quentura confortável,
que me protegia do frio e do medo. Gê balbuciou
umas palavras estranhas naquela língua sem vogais.
— O que disse? — ergui o rosto, porém fiz
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o possível para me manter perto, ainda em seus


braços.
— Não encontro meios de traduzir o que
falei. É uma palavra venusiana dita em ocasiões
especiais, que significa, aproximadamente, o
máximo respeito que alguém pode ter com outra
criatura.
— Obrigada, Gê — abri um largo sorriso.
— Por tudo que fez por mim.
— A senhorita fez por mim, em poucos
dias, muito mais do que fiz pela senhorita nos
últimos trezentos anos. Eu que devo demonstrar
minha eterna gratidão. — Ele se afastou devagar,
infelizmente me deixando com frio e com medo de
novo. — Porém, ainda considero imprudente que
esteja aqui, em um terreno inseguro que pode ser
invadido a qualquer momento.
Eu lhe ofereci um meio sorriso e me afastei
devagar.
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— Tudo bem. Adeus, Gê.


Virei as costas quase em câmera lenta
porque queria adiar minha partida o máximo que
pudesse. Dei um passo, dois e engoli o nó na
garganta. Apoiei a mão numa árvore para não
bambear, para manter a dignidade até o fim.
Quando estava prestes a dar o terceiro passo, e
considerando se olharia ou não para trás, alguém
puxou o meu braço e o meu corpo foi junto,
despreparado para o ataque.
Fui projetada para o tronco da árvore e, sem
qualquer cerimônia, lábios extremamente quentes
empurraram os meus. Demorei um século a
entender que o Gê estava me beijando, e, quando
finalmente entendi, não acreditei. Supus estar
dentro de um sonho, ou sei lá, qualquer coisa que
fizesse de sua atitude algo completamente irreal.
Ainda assim, seu corpo estava no meu, bem
como sua boca. Ela não se movia, provavelmente
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porque o Gê não sabia da existência de um beijo de


língua. Mal pensei a respeito e ele abriu um pouco
a boca, enfiando a língua quente entre os meus
lábios e exigindo um beijo mais aprofundado.
Eu realmente só podia estar sonhando.
Percebi sua inexperiência logo de cara, mas
quem se importava? Meus sonhos eram criativos e
eu precisava aproveitar. Foi por este motivo que
enrolei meus braços em seu pescoço, trazendo-o
para mais perto, e movimentei minha língua com
mais exatidão, de forma que o beijo se tornou
menos desajeitado. Havia um calor absurdo
emanando dele, e outro insuportável fervendo entre
as minhas pernas.
Agarrei os cabelos azuis com gana, e gemi
entre seus lábios diante da excitação que fazia meu
corpo vibrar. Gê aprendia rápido com os meus
movimentos a cada investida, de maneira que eu já
poderia considerá-lo um ótimo beijador. Deixei
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meu corpo derreter sob o seu, e por um ínfimo


instante achei ter sentido seu coração batendo tão
acelerado quanto o meu.
Estava cogitando a possibilidade de me
pendurar sobre o seu corpo quando o Gê se afastou
ligeiro, como se eu pegasse fogo. Mal consegui ver
seu rosto, mas ouvi nossas respirações ofegantes.
Ele tinha me tirado o fôlego com extrema
facilidade, e eu ainda podia sentir sua quentura
mesmo com o retorno do frio.
Toquei em meus próprios lábios, estupefata.
— Perdoe-me a indelicadeza, senhorita.
Eu...
Ainda estava tonta e nem um pouco apta a
ouvir suas desculpas, porém elas tiveram que ficar
para depois. Luzes fantasmagóricas atravessaram a
mata repentinamente, e ouvimos um ruído terrível
que mais parecia que alguém estava arranhando um
garfo tamanho família em um quadro negro
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gigante.
Os pelos do meu corpo se eriçaram, daquela
vez devido ao pavor.
— Os Recolhedores estão aqui — Gê
murmurou a trágica notícia. Passei um tempo sem
me mover, até sem respirar, então ele me empurrou
com cuidado, fazendo-me acordar do transe. —
Estão perto demais.
Outro ruído se fez presente, e coloquei as
mãos nas orelhas, assustadíssima.
— Meu Deus...
— Corra, Estrela. Corra o mais rápido
possível! Não há tempo para se esconder.
Bem que tentei puxá-lo comigo, mas Gê se
desvencilhou das minhas mãos e me empurrou mais
uma vez. Ainda tentei insistir, porém ele se afastou
para longe. O barulho se tornou tão insuportável
que meu instinto de sobrevivência acabou falando
alto.
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Comecei a correr mata adentro, sem


nenhum direcionamento e nenhuma garantia de que
veria o Gê novamente. Só haveria esperança, seus
esforços e a eterna lembrança de um beijo roubado.

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15

— Estrela...
Eu ouvia sussurros como se houvesse uma
presença constante logo atrás de mim, feito um
fantasma que não desistia de me assombrar nem
com reza braba. Não ousei parar de correr um só
segundo desde que deixei o Gê para trás, ainda
assim, os Recolhedores pareciam cada vez mais
perto de me alcançar. Meus pés e pernas latejavam,
provocando-me uma dor horrível, porém tudo o que
menos queria era ser apanhada por extraterrestres
malignos.
— Volte aqui, Estrela... — aquele sussurro
gutural soou em um timbre irritado.

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O desespero me fez tropeçar perigosamente


em um tronco grosso de uma árvore. Sujei minhas
mãos e o meu rosto de terra, porém não podia
desistir de continuar. Eu me levantei aos tropeços,
o mais rápido que pude, e ao ouvir um farfalhar na
minha retaguarda, tornei a correr como se a minha
vida dependesse daquilo. A respiração ofegante,
bem como o ruído de passos, foram minhas
companhias durante alguns minutos.
Será que finalmente tinham desistido de
mim?
Olhei para trás sem ousar desacelerar o
passo, pois ainda era cedo para achar que estava
fora de perigo. Não entendia por que os
Recolhedores me seguiam, já que eu nada tinha
para lhes oferecer. Obviamente, não parei para
perguntar. As luzes tinham sumido de vez, e não
voltei a escutar o terrível barulho, que eu sequer
sabia de que forma era provocado.
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Não parava de pensar no Gê e em como as


coisas tinham terminado para ele. Será que os
Recolhedores já o tinham levado? A dúvida
aumentava o meu desespero a níveis catastróficos.
Eu torcia para que Gê tivesse sido mais inteligente
e arquitetado alguma espécie de armadilha, e não
simplesmente se entregado de mão beijada.
E por falar em beijo...
— Estrela... — mais um sussurro me
arrancou a concentração e me fez cambalear para o
lado esquerdo. Ainda estava sendo seguida e não
podia pensar no beijo que havia deixado a minha
pele em brasa.
Mudei de percurso somente para não cair,
porque a verdade era que não fazia ideia de que
direção tomar. A mata se tornava mais fechada, de
forma que a única certeza que eu tinha era a de que
me distanciava das terras de meu pai a cada passo
dado. Jamais havia explorado tão longe, portanto
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nada me parecia conhecido; as árvores, os bosques


e as pedras. Agradeci aos céus por ter colocado um
tênis confortável antes de deixar o casarão, caso
contrário estaria mais frita ainda.
Vi uma luz amarelada passando rápido
adiante, entre umas árvores, e parei, quase
tropeçando de novo. Outra luz passou até que me
dei conta de que se tratava da rodovia
intermunicipal. Se estivesse certa, então havia
percorrido uma distância absurda em pouco tempo.
Eu me senti a salva em um instante, porém no outro
ouvi mais agitação atrás de mim, sinal de que os
extraterrestres se aproximavam.
Não tive dúvidas e corri na direção das
luzes amarelas, que se apagaram provavelmente
porque não passavam muitos veículos àquela hora
da madrugada. Alcancei a pista, que naquele trecho
nada mais era que uma estrada deserta e escura,
sem qualquer poste de luz ou sinalização. Ainda
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ofegante, olhei a mata deixada para trás. Não tinha


muito que fazer, então resolvi pegar a direita e
correr até que algum carro aparecesse e eu pudesse
pedir ajuda.
— ESTRELA! — Tão logo me distanciei,
ouvi a voz do Gê gritando por mim. Não foi como
um sussurro, mas um timbre real e desesperado. —
ESTRELA!
— GÊ! — parei no meio da pista, olhando
para a mata densa e extremamente escura. Não
consegui ver absolutamente nada, mas tive certeza
de que era o Gê me chamando. — GÊ, ESTOU
AQUI!
Entretanto, ele se calou. Passei as mãos em
meus cabelos, desesperada e sem saber o que fazer.
Entrar na mata de volta me parecia loucura, mas se
Gê estivesse em perigo eu jamais me perdoaria por
ter ignorado.
— GÊ! — gritei novamente, buscando
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alguma resposta, qualquer indício de que ele ainda


estava por perto. Nada. Não houve qualquer
retorno. Torci para que algum veículo passasse,
porém a rodovia continuou deserta, como se tirasse
sarro da minha cara. — Puta merda... — balbuciei
e, tomando coragem, corri em disparada na direção
da mata.
Gritei pelo Gê feito uma louca, atenta a
qualquer sinal de luz, sussurro ou ruído. Não obtive
nada em troca além da sensação de que eu tinha
pirado de vez e estava mais perdida do que alguém
poderia ficar na vida. Depois de alguns minutos, já
não sabia nem mesmo em que direção ficava a
rodovia, por isso tentar voltar não se tornou uma
boa opção. Estava sedenta, cansada e não sentia
minhas pernas direito.
— Gê... — choraminguei e finalmente me
deixei cair sobre algumas plantas.
Virei a barriga para cima, encarando o
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trecho do céu estrelado que as árvores ao redor


permitiam. Meu corpo formigava e o coração batia
acelerado, tanto que não suportei e comecei a
chorar. Cada nervo do meu corpo se manteve em
estado de desespero. Eu só queria saber onde o Gê
estava, se ficaria bem e se nos veríamos de novo. O
resto poderia explodir que eu não me importaria.
Fechei os olhos. Não queria pensar nos
Recolhedores, no meu extremo cansaço e no fato de
estar sozinha em uma mata escura repleta de ETs.
Queria somente que as coisas fossem mais fáceis e
que eu estivesse nos braços do Gê naquele
momento.
O ar ao meu redor começou a ficar mais
denso, tanto que tive dificuldade para respirar. A
mata foi engolida por uma força descomunal e me
vi rodopiando no espaço, flutuando como uma nave
ou como um pedacinho de poeira cósmica.
Assustada, observei a Terra de longe, apenas um
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pontinho azulado. Alguém segurou a minha mão.


Era o Gê, que também flutuava. Parecia
aflito.
— Como conseguiu fazer isso, Estrela? —
perguntou de uma forma acelerada bem atípica para
ele. — Onde estamos?
— Eu... N-Não sei. Estou sonhando?
— Pare neste exato momento. Os
Recolhedores irão localizá-la facilmente.
— O que está acontecendo, Gê? —
continuamos bailando no espaço como se ele nos
pertencesse. A sensação era tão esquisita quanto
maravilhosa.
— Eu não sei como a senhorita conseguiu
realizar um contato psíquico comigo partindo de
sua atmosfera, porém... — Gê esbugalhou os olhos.
Ficou me olhando como se, na verdade, eu fosse o
verdadeiro ET entre nós dois. — Não pode ser
possível.
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— O quê?
— A senhorita não pode ter deixado a
atmosfera terrestre. Eles a capturaram?
— N-Não. Quero dizer, acho que não. Gê,
está tudo tão confuso. Como viemos parar aqui?
Ele apertou a minha mão com mais força.
— Ainda que o meu corpo padeça tentando,
irei resgatá-la, Estrela. É uma promessa, e desta vez
a cumprirei.
Uma intensa luz tomou conta da gente e
logo abri os olhos, sentando-me em um rompante.
A mata ressurgiu a minha volta, o Gê desapareceu e
fiquei sem saber se aquilo tudo havia sido real ou
apenas um sonho. Olhei para o céu, constatando
que não estava mesmo flutuando no espaço.
Eu me levantei um pouco desconfiada,
analisando ao redor em busca de algum indício que
me fizesse crer que eu tinha mesmo feito um
contato psíquico. De repente, uma faixa de luz se
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acendeu acima da minha cabeça. Olhei para o alto


no susto, e soltei um grito ao visualizar uma imensa
nave espacial. Era redonda, cheia de luzes e pairava
a apenas alguns metros das árvores.
A luz me encontrou em questão de
segundos. Fiquei tão paralisada que sequer pensei
na possibilidade de correr. Acho que uma parte de
mim sabia que não adiantaria fugir, eles haviam me
achado e não tinha mais nada a ser feito. Uma força
estranha se juntou à luminosidade e o meu corpo
foi erguido do chão facilmente. Chacoalhei minhas
pernas no ar, desesperadamente, porém nada me fez
descer. Pelo contrário, continuei subindo em
direção à nave.
Então, soltei um grito escandaloso:
— GÊ! SOCORRO!
Eu sabia que apenas ele teria a capacidade
de me salvar de uma abdução. Continuei me
debatendo enquanto a luz me guiava para cima
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inexoravelmente. Gritei por socorro novamente,


mas nem um gemido escapuliu pelos meus lábios.
Foi como se eu tivesse perdido as cordas vocais, e a
agonia que senti foi tanta que me debati com mais
veemência ainda.
Visualizei o galho de uma árvore e o agarrei
com as duas mãos. A luz tentou me sugar, porém
usei toda a força dos meus braços para manter o
galho em mãos. Um barulho ensurdecedor me fez
gritar. Tive vontade de me soltar para tampar os
ouvidos e não ouvir tão medonho som. Fiz o
possível e o impossível para não ser levada pelos
extraterrestres.
— ESTRELA! — ouvi a voz do Gê logo
abaixo, no chão da mata. Seu rosto desesperado
estava iluminado pela mesma faixa que tentava me
sugar. — SEGURE-SE!
— Gê, me ajuda! — gritei de volta,
sentindo um misto de alegria e nervosismo. Ainda
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podia sentir a força tentando me puxar a todo custo.


Reparei quando o Gê tocou o próprio pulso,
balbuciou algumas palavras esquisitas e ergueu um
braço na direção da enorme nave. Um filete de luz
vermelha saiu de seu punho e a atingiu, fazendo
faíscas saltarem para todos os lados. Eu não sabia o
que estava acontecendo, mas o Gê parecia ter uma
arma no pulso, acionada com as palavras sinistras
que balbuciava.
Mais luzes vermelhas escapuliram de seu
punho e atingiram a nave, até que meu corpo
capengou para baixo. A sucção foi encerrada, por
isso quase caí do alto da árvore. Mantive-me
agarrada ao galho enquanto observava a faixa de
luz apagar totalmente e a nave bizarra ganhar o céu
em alta velocidade, como se fosse uma estrela
subinte.
— Gê! — voltei a olhar para baixo, para
onde ele estava. No entanto, não o encontrei.
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Aquela criatura tinha evaporado, deixando-me em


apuros no topo de uma árvore altíssima. — Ai, meu
Deus... Gê?
— Segure-se, Estrela! — ouvi apenas a sua
voz, o que já me trouxe certo alívio.
— Onde você está?
— Aqui! — Olhei para o lado e o encontrei
se equilibrando no talo do mesmo galho onde eu
me segurava. — Não se mova. Segure a minha
mão. — Ele se esticou todo, porém ainda estava
distante demais. Eu não conseguiria alcançá-lo.
— Gê... Eu vou cair — choraminguei.
Minha mão estava suada e suportar o meu corpo se
tornava tarefa difícil a cada segundo.
— Não vai, senhorita. Concentre-se. —
Olhei para baixo sem querer e soltei um grito. Eu
estava a uns bons dez metros do chão. — Olhe para
mim! Estrela, olhe para mim.
Eu o encarei fixamente, toda trêmula, com a
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adrenalina a mil. Gê estava espantado, meio


despenteado, porém concentrado na tarefa de
esticar sua mão na minha direção. Tentei me esticar
uma vez, mas o mínimo esforço me fez quase cair.
Soltei outro grito.
— Estrela, este galho não suportará o peso
se eu for mais para frente — Gê explicou com
paciência, uma calma que eu estava longe de sentir.
Minhas mãos estavam escorregando.
— Gê... — olhei-o, espantada.
— Segure-se em mim — falou firmemente
para, logo em seguida, atirar-se contra o meu corpo.
Gritei, apavorada com aquela ideia de
jerico. Tudo aconteceu muito rápido. Minhas mãos
deixaram o galho, Gê me agarrou e caímos como
duas frutas maduras. Ele me protegeu com o seu
corpo grande, colocando-se abaixo de mim, e o
barulho da queda foi tão horrível que fechei os
olhos com força. Por longos instantes, ouvi apenas
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a minha respiração e senti o medo absurdo


crescendo em meu peito.
Ninguém sobreviveria a uma queda
daquelas, não sem pelo menos alguns ossos
quebrados. Aquele maluco tinha absorvido todo o
impacto para si, de forma que terminei ilesa.
— Gê... — gemi seu nome, abrindo os
olhos devagar.
Ele estava me olhando de volta, parecendo
intacto.
— A senhorita está bem?
— Que ideia foi essa? — quase berrei,
nervosa até o último fio. — Você está bem?
Quebrou algum osso? Meu Deus, você precisa de
um hospital, Gê. A culpa foi minha... Eu...
Gê se sentou comigo em seu colo.
— Meu organismo está em perfeito
funcionamento, senhorita — avisou como se nada
de mais tivesse acontecido. — A gravidade em sua
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atmosfera funciona de forma diferente com relação


ao meu corpo, os venusianos possuem uma...
Não deixei que o Gê concluísse a sua longa
explicação. Nada mais me interessava além de sua
presença tão próxima. Ele estava bem, ficaria ótimo
e ainda permanecia na Terra. Os Recolhedores
tinham ido embora e eu não precisaria mais pensar
no beijo roubado. Poderia eu mesma roubar outro.
E foi o que fiz.

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16

As mãos enluvadas apertaram a minha cintura e


fiquei sem saber se queriam me repelir ou me puxar
para mais perto. Gê parecia indeciso enquanto eu o
beijava com a mesma intensidade do beijo anterior,
porém com a vantagem de que ele já sabia
perfeitamente como movimentar seus lábios e
língua, que, ao contrário das mãos, não hesitaram
nem por um segundo. Sua inteligência espantosa
foi percebida até mesmo na forma ligeira como
funcionava o seu aprendizado.
O ser extraterreno me beijou como se
tivesse treinado a vida inteira para aquele momento
ensandecido e arrebatador. De novo, percebi seu

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coração batendo forte contra o meu corpo, como se


necessitasse ganhar liberdade. Pude sentir as
mesmas doses de excitação circulando em meu
sistema, deixando-me pronta para ser dele ali
mesmo, no meio da mata. O fato de eu não saber se
aquilo seria fisicamente possível sequer me passou
pela cabeça. Havia apenas o desejo ardente, uma
vontade insuportável de ir além, de ficar nos braços
dele até que descobríssemos todas as possibilidades
de nossos corpos tão diferentes, mas que naquele
momento se completavam.
Eu ainda estava em seu colo, com os braços ao
redor de seu pescoço e as mãos sentindo a
consistência interessante de seus cabelos azuis.
Estava tudo escuro e a brisa congelante da noite
soprava com força, mas não fui capaz de sentir
qualquer frio diante da quentura proveniente
daquela criatura especial. Apesar de Gê estar
usando suas vestes venusianas, fui atingida pelo
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calor que me aconchegava ao mesmo tempo em


que me deixava mais louca.
A empolgação me sobressaltou e decidi ser
mais específica, por isso me movimentei, abrindo
as pernas ao seu redor, e o empurrei para trás com
uma lentidão calculada. Não queria assustá-lo ao
deixar meus desejos tão claros, mas precisava pular
aquela etapa antes que Gê se afastasse e resolvesse
pedir desculpas outra vez.
Ele se deitou sobre o chão coberto por uma
vegetação rala que lembrava grama. Não era o
ambiente ideal para o que eu tanto queria, mas
quem se importava? Gemi entre seus lábios e me
curvei sobre seu corpo grande. Lamentei por ele
estar usando uma roupa tão fechada, e que eu mal
sabia como retirar. Continuei beijando-o em alta
velocidade, enroscando nossas línguas e aplacando
cada necessidade que exigia de mim várias atitudes.
Uma delas foi puxar suas mãos da minha cintura
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para os meus seios.


Gê me tocou com certa hesitação e me pus
ereta, findando nosso longo beijo apenas para
encará-lo sob a fraca luz do luar. Movimentei
minhas mãos sobre as suas, ensinando-o a forma
certa de estimular os mamilos, que enrijeceram
imediatamente. Ele trocou seu olhar avermelhado, e
muito sério, entre os meus olhos e o meu corpo.
Não consegui decifrá-lo, o que me trouxe certa
apreensão. Não sabia o que Gê estava achando
daquilo tudo. No entanto, ele continuou me tocando
e me analisando atentamente, sem pestanejar.
Como não teceu nenhum comentário,
ganhei carta branca para prosseguir. Ainda não
estava certa se era aquilo que o Gê queria, mas não
ousei fazer perguntas. Empurrei suas mãos para
baixo, de modo que atravessaram minha barriga e
pararam por cima da calça. Puxei o tecido da luva
pelas pontas de seus dedos, e ela foi puxada com
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certa dificuldade. Gê ficou com uma mão livre, a


pele aveludada exposta, e então eu a guiei para
dentro da minha calcinha. Curvei-me para frente na
tentativa de deixá-lo mais livre.
Seus dedos hesitaram em reconhecimento,
mas o simples toque foi capaz de me fazer
contorcer e gemer. Soltei um arquejo repleto do
mais puro prazer que era tê-lo tão intimamente. Eu
me deixei ser descoberta com naturalidade; parei de
guiá-lo e permiti que me tocasse como bem
entendesse. Gê foi muito hesitante. Continuou me
observando com seriedade enquanto explorava cada
dobra, cada saliência, cada parte de mim que estava
úmida e pronta para recebê-lo.
A curiosidade me fez retribuir aquele gesto,
portanto levei uma mão para baixo, buscando o
local onde deveria existir a sua genitália. O volume
que encontrei estava atipicamente teso, o que me
fez ficar um pouco assustada. Acredito que o Gê
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percebeu meu estranhamento, pois retirou seus


dedos de mim e segurou minhas mãos pelos pulsos,
impedindo-me de continuar a tocá-lo com a mesma
intimidade.
— Estrela... — murmurou, tão baixo que só
o ouvi porque nossos rostos estavam muito
próximos. — Nosso comportamento é
extremamente inapropriado. — Balancei a cabeça,
pronta para refutar sua questão, porém o Gê se
adiantou: — Agi muito mal ao beijá-la mais cedo.
Jamais foi minha intenção fazê-la acreditar que
imagino uma relação com... — resfolegou —...
características humanas entre nós dois.
Aquele havia sido o fora mais educado que
já recebi na vida. A frustração me tomou em cheio,
tanto que fechei os olhos e suspirei fundo, tentando
conter a vergonha para, enfim, criar a coragem de
sair de cima dele. Fiquei me sentindo uma
aproveitadora por alguns instantes, porém logo em
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seguida me lembrei do alto volume em que toquei e


percebi que o Gê, por mais racional que fosse, tinha
sentido tesão por mim.
— Por que me beijou? — sussurrei a
pergunta. Ainda não estava pronta para me levantar
dali. — Poderia ter me deixado ir embora sem
aquele beijo, Gê. Você é inteligente, depois de
todos aqueles romances lidos, sabe muito bem o
que um beijo significa.
Ele ficou calado por uns instantes, creio que
pensando a respeito do que diria.
— Eu sinto muito pela minha atitude
irracional, Estrela. — Gê finalmente soltou meus
punhos. — Considero mais apropriado que nos
levantemos e nos mantenhamos fisicamente
distantes.
— Você não me respondeu — insisti, um
pouco irritada com a sua proposta. O que eu menos
queria era me manter distante dele, mesmo depois
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daquele fora educado. — Por que me beijou?


— Não consigo definir com exata precisão
o motivo por tê-la beijado, Estrela. Nunca agi sem
pensar pelo menos um milhão de vezes antes. —
Seu olhar vermelho me pareceu realmente perdido.
Não fui capaz de duvidar de suas palavras. —
Apenas tenho a certeza de que, por um instante, a
curiosidade foi maior do que minha natural razão, e
que a senhorita não pode duvidar de que me
considero um ser extremamente ponderado.
Assenti calmamente. Por mais que tivesse
acreditado em suas justificativas, nada me faria
pensar que aquele extraterrestre tomou uma atitude
longe de seu desejo.
— Gê, eu não sou boba. Estou acostumada
a perder a razão e agir sem pensar... Quando a
gente faz isso, é porque queremos uma coisa
profundamente. — Ele arregalou os olhos como se
tivesse se dado conta disso pela primeira vez, e a
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percepção claramente o assustou. — Acabei de te


tocar e percebi que estava excitado. Quero dizer, eu
acho que sim, não sei como funciona com os
venusianos, mas alguma coisa diferente aconteceu.
E se aconteceu, significa que, mesmo sendo
estranho, você deseja conhecer o meu corpo tanto
quanto desejo conhecer o seu.
— A senhorita deseja conhecer o meu
corpo? — aquela pergunta trouxe alguns segundos
de silêncio. Ficamos nos encarando. Eu, morta de
vergonha, e ele, visivelmente surpreso.
— Desejo.
Gê piscou os olhos algumas vezes.
— Não faço ideia de como explicar qual é o
tamanho de minha estupefação ao compreender que
a senhorita possui esta curiosidade. — Ri meio sem
graça, ainda me sentindo envergonhada. Encontrei
forças para ficar de pé e o Gê fez o mesmo, só que
sem nenhuma dificuldade. Ele se manteve um
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pouco afastado e me abracei, sentindo-me desolada


com sua distância. — No entanto, nenhum desejo é
capaz de anular o fato de que somos seres distintos,
Estrela. A senhorita não pode ser minha parceira e
nem eu posso ser seu parceiro. Não fomos feitos
para nos relacionarmos. Lembra-se do exemplo do
cavalo e da galinha?
Bufei, extremamente chateada.
— Eu me lembro disso o tempo todo, Gê —
revirei os olhos. — Quer saber? Você que sabe.
Talvez tenha razão e eu seja uma maluca completa
por achar que nossas diferenças não são
empecilhos. — Ele ficou me olhando e eu não pude
mais sustentar aquele olhar sem me sentir um
pedaço de lixo. Comecei a andar na direção que eu
achava ser a certa para voltarmos à fazenda. —
Vamos sair dessa mata sinistra.
— Estrela... — Gê me alcançou agilmente,
passando a me seguir. — Preciso compreender de
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que forma a senhorita conseguiu entrar em contato


psíquico comigo. Essa informação ainda é um
mistério em minha mente.
— Eu não sei, Gê — dei de ombros.
Atravessamos várias árvores aleatórias e nenhuma
delas me fez reconhecer o caminho. — Só fechei os
olhos e fui transportada para lá. — Ele parou atrás
de mim e parei também, virando-me para encará-lo.
— O que foi?
Gê balançou a cabeça, confuso.
— Não faz o menor sentido. Sua mente
humana não é evoluída o suficiente para realizar
projeções psíquicas, sobretudo com um ser que não
é de sua espécie.
Fiz uma careta terrível.
— Certo, senhor “mente evoluída”, sou uma
energúmena de mente inferior, mas aconteceu e eu
não sei como.
— Perdoe-me, Estrela, não quis ser
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indelicado... — Gê começou a se explicar, só que


não fiquei para ouvir as desculpas. Continuei
andando com os passos mais acelerados, pois
estava louca para sair dali. — Estrela! — Ele
correu para me alcançar novamente. — Desculpe-
me mais uma vez, não quis ofendê-la. Estou
absurdamente surpreso com suas capacidades e não
deixei de notar que a senhorita é uma humana
diferente.
— Uma humana diferente? Como assim? —
Tentei não dar muita bola, mas fiquei curiosa e
acabei desacelerando o passo.
— Primeiro existe o fato de que tomou uma
injeção que deveria ter excluído todas as
informações sobre a abdução de seu cérebro, e
ainda assim a senhorita se lembrou de tudo. — Gê
apontou para o meu braço. Eu estava usando um
casaco, mas nós dois sabíamos que havia uma
cicatriz bem ali. — A senhorita também é capaz de
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escutar o chamado dos Recolhedores.


— Chamado? Que chamado, Gê?
— Aquele barulho ensurdecedor que
ouvimos quando eles chegaram para me caçar. O
objetivo era atingir somente a mim, não a você.
Nenhum humano é capaz de ouvi-lo, Estrela.
Fiquei tão assustada ao saber daquilo que
parei de andar de vez. Ainda me recordava daquele
ruído, era horripilante e muito real. Cambaleei um
pouco, quase perdendo o equilíbrio. O que o Gê
estava tentando dizer com aquilo? Que, na verdade,
sempre fui uma aberração da natureza?
— Por fim, a senhorita é capaz de realizar
contato psíquico. — Gê se aproximou
tranquilamente, observando-me como se eu fosse
atração turística. — A superfície terrestre possui
uma espécie de camada energética blindada. Esta
camada não permite que seres extraterrenos
influenciem a mente dos humanos, a não ser que
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haja uma ligação maior entre eles.


— Nós temos uma ligação, Gê — tentei
explicar, defender o meu ponto de vista.
— Desde que nos encontramos, anos atrás,
possuímos uma ligação mais avançada, porém não
o suficiente para romper a camada energética de
seu planeta.
— Talvez essa ligação seja maior do que
você pensa — insisti, olhando-o fixamente. Eu
devia parar de fazer aquilo. Gê já tinha deixado
claro que não rolaria nada e eu ainda estava me
insinuando de um jeito doentio. — Não sei como
consigo fazer essas coisas e nem quero saber. Só
quero sair daqui depressa!
Retomamos a nossa caminhada. Daquela
vez, ele tomou a frente e mudou a direção, prova de
que sabia exatamente para onde ir. Não discuti ou
fiz perguntas, apenas o segui com a certeza de que
ele era um melhor guia do que eu.
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— Confesso que estou extremamente


preocupado com a senhorita — Gê prosseguiu a
conversa. Dei de ombros e não o respondi, então
ele se explicou: — Demorei um pouco a me
entregar aos Recolhedores, por este motivo me
escondi entre algumas árvores. Gostaria de saber o
que eles pretendiam fazer com a 14038, antes de
qualquer coisa. Eu os vi recarregando a nave e
tentando outros métodos de furto, porém sem obter
sucesso. Contei dez Recolhedores a princípio.
Depois, ouvi o seu nome entre eles e três saíram de
perto. Não achei que fossem caçá-la também.
— Eles me seguiram pela mata... Foi
horrível!
— Imagino que sim — Gê assentiu, mas sua
voz saiu inexpressiva, bastante séria. — O mais
estranho aconteceu quando decidi deixar as árvores
e me apresentar. Os Recolhedores não me
capturaram, como achei que fariam, mas fizeram
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muitas perguntas sobre você.


— Sobre mim?
— Exatamente. Não respondi precisamente
a nenhuma delas, pois não queria que a
localizassem. Então, a senhorita fez contato
psíquico e percebi que estava em perigo. Quando
minha consciência voltou, os Recolhedores não
estavam mais próximos. — Tentei controlar os
batimentos cardíacos enquanto Gê explicava de
forma mecânica, como um professor de Matemática
faria. — Fui deixado para trás, bem como a 14038.
— Então você não fugiu? — perguntei em
um tom alto, afobado.
— Não. Por um instante, achei que tivessem
capturado a senhorita.
— Eles quase conseguiram...
— Jamais me perdoaria se tivessem obtido
êxito — Gê se virou para me encarar. O rosto sério
estava ainda mais grave. — Porém, agora sabemos
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que os Recolhedores não querem a mim ou a


14038, pelo menos não com tanta urgência. — Ele
soltou o ar em um arquejo pesado.
Eu sabia o que o Gê estava tentando dizer,
mas fiquei presa num estado de negação pavoroso.
Meu cérebro deu um nó e o medo se apossou de
cada reentrância do meu corpo. De repente, ele
apontou para o alto de uma árvore. Olhei para cima
sem saber o que encontrar, no entanto, o que vi me
deixou ainda mais espantada, de forma que um
arrepio sinistro e gelado invadiu meus sentidos.
A minha caminhonete estava fincada na
árvore como se fosse um pedaço de churrasco num
espeto.
— Eles a querem, Estrela — Gê deu o
veredito final.

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17

Fiquei um tempão olhando para o alto,


tentando imaginar de que forma aqueles
extraterrestres idiotas conseguiram erguer a
caminhonete ao ponto de enganchá-la nos galhos da
pobre árvore. Eu nem precisava de uma revisão
mecânica para ter certeza de que havia sido perda
total; meu veículo fora para o beleléu e a culpa era
daqueles cretinos de uma figa. O prejuízo que
estavam me causando ficava mais grave a cada
noite, e a raiva se tornou tão intensa que minha
única vontade era de revidar.
— O que faremos, Gê? — apoiei as mãos
na cabeça enquanto não parava de analisar os

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estragos. Eu estava nervosa e com vontade de


chorar, principalmente porque a caminhonete
pertencera ao meu pai, mas não daria aquele
gostinho aos Recolhedores. — Puta merda, o que
vamos fazer agora? Meus funcionários não podem
ver isso!
Gê também observava o caos diante de nós,
mas seu olhar era muito mais analítico, embora eu
pudesse detectar resquícios de preocupação. Ele
não respondeu ao meu questionamento e andou até
a árvore de maneira reflexiva, um jeito sério que
indicava que ele estava pensando muito antes de
agir.
Achei que não fosse tentar tirar a
caminhonete dali, por isso me surpreendi quando o
Gê alertou:
— Afaste-se, Estrela. A última coisa que
necessitamos neste momento é que a senhorita se
machuque.
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Dei vários passos trêmulos para trás, sem


coragem até mesmo de questionar. Se alguém me
dissesse que o Gê foi capaz de arrancar o veículo
dos galhos usando apenas a força de seus braços, eu
não acreditaria de jeito nenhum. Arregalei os olhos
ao máximo, tentando acreditar naquilo que os meus
olhos viam. Eu sabia que aquele ser era forte pra
dedéu, mas ainda me surpreendia compreender até
onde tanta força chegava, portanto considerei
normal o fato de eu ter ficado completamente
pirada depois que ele depositou a caminhonete no
chão com um baque surdo.
— Lamento informar que é muito provável
que este veículo humano esteja com o
funcionamento interrompido — Gê falou em um
tom didático quase despreocupado, mas me olhou
em seguida. — Entretanto, fico contente por ser ele
e não a senhorita.
Sua última frase me fez engolir em seco.
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Obviamente, eu estava morrendo de medo do que


os Recolhedores ainda podiam fazer antes de
realmente me capturarem, mas a raiva ainda era
maior que os temores. Passei as mãos pelos cabelos
nervosamente.
— Prometo tentar consertá-lo utilizando o
que estiver em meu alcance — Gê prosseguiu
diante de meu silêncio. Eu ainda tentava controlar
os batimentos cardíacos e formular uma frase que
soasse audível.
— Não tem conserto, Gê — suspirei, dando
de ombros. A esperança se esvaía entre os meus
dedos conforme mais pensamentos se agrupavam
em meu cérebro. — Além do mais, ouvi muito bem
quando você disse que eles carregaram a nave. É a
sua chance de pegar aquele ovo e dar o fora daqui
antes que seja tarde demais.
Gê me olhou assustado.
— Deixá-la sozinha é uma atitude
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impraticável, Estrela — seu timbre saiu sério, quase


como se estivesse chateado com a possibilidade. —
Não a deixarei vulnerável sob nenhuma hipótese.
14038 ganhou um pouco mais de carga, e talvez
seja suficiente para deixarmos a atmosfera terrestre,
porém não arriscarei sermos interceptados pelos
Recolhedores.
— Qual é a sua grande ideia, então? —
apoiei as mãos na cintura. — Não percebe que isso
vai dar merda, Gê? Eles são muito mais numerosos,
você não vai conseguir me defender sozinho. E
eu... — deixei os braços caírem nas laterais do meu
corpo. — Sou uma mosquinha assustada perto
deles.
Por um momento, achei que o Gê fosse
refutar, me consolar e me botar pra cima, mas ele
apenas ficou me olhando. Creio que se dando conta
de que eu tinha plena razão.
— Será em vão fugir, Estrela. Os
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Recolhedores nos localizariam em qualquer


situação que possamos imaginar. — Ele me
pareceu realmente perturbado com aquela
conclusão. Não fiquei diferente, embora a birra me
fizesse demonstrar uma coragem que eu,
definitivamente, não possuía. — Não há outro lugar
para ficarmos senão aqui mesmo, em suas terras.
Estamos encurralados e protegê-la é o que me resta.
— Gê olhou para o céu estrelado. — Eles tentarão
ser discretos e esta é a nossa vantagem.
— Não vejo vantagem nenhuma, Gê.
Aquela luz pode vir me sugar a qualquer momento,
e então já era.
— Duvido muito de que os Recolhedores
arrisquem retornar esta noite — ele voltou a me
encarar com aqueles olhos vermelhos. — Temos
tempo suficiente para prepararmos uma estratégia
de defesa que seja eficaz. Por hora, a senhorita
precisa descansar. Sua aparência se encontra
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visivelmente exausta.
Olhei para o Gê e constatei que nem
adiantaria retrucar, ele estava tão bem que parecia
ter saído de um comercial de perfume caro.
— Vamos ter que andar até o casarão —
informei em um timbre choroso.
Gê se aproximou e, por instante, a ilusão
contida em minha mente doentia me fez acreditar
que me beijaria novamente. Em vez disso, ele me
tomou em seus braços como se eu fosse um bebê,
ou uma princesa em apuros, tirando-me do chão
com uma facilidade impressionante. Pudera, se
havia erguido aquela caminhonete sem se cansar,
meu peso deveria ser equivalente ao de uma
formiguinha para o Gê.
— Ei! O que está fazendo? — reclamei, me
debatendo um pouco. Não queria proximidade com
aquela criatura quente nem tão cedo, não depois
daquele fora. Eu ainda estava melada entre as
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pernas e a culpa era dele.


— Segure-se em mim, senhorita. Desta
forma, chegaremos mais depressa.
Gê não me deu tempo de resposta e
começou a correr em altíssima velocidade. Fiquei
espantada com a sua ligeireza, pois parecia não ter
qualquer dificuldade em movimentar as pernas, era
como se bailasse no ar. Segurei seu pescoço para
não cair e fechei os olhos porque ficar com eles
abertos me deixou meio tonta. Dentro de poucos
minutos, alcançamos o casarão.
Gê me devolveu ao chão logo em seguida,
mantendo-se distante como havia sugerido depois
de meu ataque. Percebi que as luzes da sala
estavam acesas. Embora não tivesse nenhuma
noção da hora, achei melhor não arriscar e conferir
se dona Margarida e seu Frederico tinham acordado
ou procurado por mim.
— Gê, siga até a janela da suíte — apontei.
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— Verifique se a barra está limpa antes de entrar.


— A qual barra a senhorita se refere? — seu
olhar ficou confuso. Eu tinha me esquecido de que
o Gê ainda era muito literal, mesmo que tenha
aprendido algumas expressões.
— Nenhuma. Só verifique se não tem
ninguém por perto antes de entrar no meu quarto.
— Ele aquiesceu, finalmente compreendendo. —
Vou entrar pela frente mesmo, assim aproveito e
pego alguma comida. A gente se encontra lá.
— Perfeitamente.
Gê meneou a cabeça e se perdeu na
escuridão da lateral do casarão. Soltei um longo
suspiro antes de subir as escadarias e adentrar o
meu lar, doce lar. Para a minha surpresa, não
apenas seu Frederico e dona Margarida estavam
acordados, mas o Valentim também estava
presente.
— O que é isso? — cheguei já perguntando.
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— Reunião no meio da madrugada?


— Oh, graças a Deus! — dona Margarida
deixou seu corpo cair no sofá, colocando a mão no
peito.
Seu Frederico se aproximou de mim com o
olhar alarmado.
— Menina, onde você estava? — tocou
meus ombros, parecendo aliviado por me ver ali.
Fiz uma careta confusa.
— Nós te procuramos por toda parte! —
Valentim estava afobado, com os cabelos
despenteados e olheiras profundas. — Para onde
raios você foi, Estrela?
Odiei a forma possessiva como ele falou
comigo, mas a preocupação era visível no olhar de
seu Frederico e dona Margarida, por isso resolvi
não discutir com o Valentim, pelo menos não na
frente deles. Queria apenas acalmá-los e tentar
entender o motivo de tanto alarde.
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— Estava sem sono e fui tomar um ar, só


isso — dei de ombros, sabendo que eu nunca fui
boa com mentiras. — Por que ficaram tão
preocupados? Não é a primeira vez que faço isso.
— Você costuma ir ao celeiro — Valentim
resmungou. — Quando não te encontramos lá, nos
preocupamos com seu paradeiro.
— Não precisavam se preocupar — ergui a
cabeça para mostrá-lo que eu não estava nem aí
para a sua opinião a respeito do que eu fazia ou
deixava de fazer.
— Não sabemos com que tipo de gente
você está, claro que temos que nos preocupar — o
homem falou de uma forma atipicamente grosseira.
Valentim costumava me tratar superbem, claro,
antes de termos discutido, de modo que aquele
timbre não combinava com ele.
— Menina... — seu Frederico tomou as
rédeas da conversa. — Valentim nos contou sobre
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um suposto namorado. É verdade?


Olhei para a cara do Valentim e tive
vontade de matá-lo. Não dava para acreditar que
tivesse chegado ao ponto de contar aquela história
logo para o seu Frederico, um cara que eu
respeitava como se fosse o meu pai e que se
escandalizaria se soubesse que tinha um “homem”
dormindo na minha suíte.
— Eu pensava que fosse o Valentim... —
dona Margarida criou forças para se levantar do
sofá e se aproximar com o olhar sofrido apontado
para mim. A raiva só fez aumentar. Não queria
preocupar ninguém, sobretudo aqueles dois, que
tanto faziam por mim e eram a minha família. —
Quem é o sujeito, Estrelinha? Você é adulta, não
precisa nos esconder nada.
Eu não fazia ideia do que responder.
— Pessoal... — parei um pouco para pensar
melhor numa forma de me livrar daquele
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constrangimento. Negar não adiantaria. Margarida


já sabia da existência de um cara, portanto seria
melhor inventar outra desculpa. — Agradeço a
preocupação, mas estamos nos conhecendo e não
achamos que está na hora de oficializar.
— Como assim, menina? — Seu Frederico
fez uma careta enrugada. Tirou o chapéu de palha e
coçou a cabeça, coisa que sempre fazia quando
estava nervoso. — Quem é esse sujeitinho que não
quer assumir um compromisso? Homem de
verdade tem atitude e conversa logo com a família
da moça.
Revirei os olhos, impaciente.
— Estamos em 2017 — murmurei, meio
cansada. Dei um beijo no topo da cabeça de dona
Margarida e depois beijei a bochecha de seu
Frederico. Passei por Valentim sem sequer olhar
pra cara dele. — Preciso de espaço. Quando for o
momento certo, vocês serão os primeiros a
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conhecê-lo. Enquanto isso, eu adoraria ter um


pouco de privacidade.
Valentim soprou o ar dos pulmões,
visivelmente irritado.
— Vamos todos dormir, está tarde — seu
Frederico amansou de vez. Sorri ao perceber que
ele tinha compreendido quais eram os meus desejos
e que respeitaria a minha escolha. — Boa noite,
menina. Juízo.
— Boa noite — saudei e tratei de seguir
pelo corredor, rumo à suíte, antes que alguém
fizesse mais questionamentos.
Antes que eu pudesse abrir a porta, ouvi
alguns murmúrios vindos da sala.
— Será que ela viu as luzes? — seu
Frederico questionou. Congelei com a mão na
maçaneta e tentei ficar o mais quieta possível para
ouvir a conversa. A ideia de pegar comida chamaria
muita atenção, então desisti.
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— Não sei. Acho que sim, pelo que eu a


conheço — Valentim respondeu.
— Ora... Vamos parar de falar nessa
besteira — dona Margarida, sempre cética,
resmungou. — Não tem nada na mata.
— Mas eu vi umas luzes esquisitas,
mulher... — seu Frederico tentou insistir.
— Vamos dormir que amanhã é dia de
labuta — Margarida cortou depressa. — Boa noite,
Valentim.
Entrei na suíte de uma vez, antes que eu
fosse descoberta e piorasse as coisas. A porta
estava destrancada, o que me fez pensar que eles
haviam me procurado e não encontrado, por isso
estavam tão aflitos. Tranquei-a atrás de mim.
Aquela noite estava sendo longa demais e tudo
fazia questão de acontecer fora de qualquer
planejamento.
— Estão preocupados comigo — desabafei
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para o Gê, que estava sentado na poltrona e me


encarou tão logo entrei. — Digo, seu Frederico e
dona Margarida.
— Eles certamente não são os únicos.
Porém, creio que temos motivos distintos.
Andei até ser possível me sentar na beirada
da cama.
— O motivo deles é a coisa mais idiota do
mundo — arfei de um jeito exausto. Joguei meu
corpo para trás, deitando-me. — Eles sabem que
estou trazendo alguém para o meu quarto e exigem
conhecer essa pessoa.
Gê ficou em silêncio. Apoiei-me nos
cotovelos para encará-lo. Seu olhar avermelhado se
tornou confuso.
— Seus parentes desejam me conhecer? —
Aquiesci. — Por qual motivo? Não pensei que
tivessem conhecimento de minha existência. Achei
que a senhorita tivesse sido discreta ao meu
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respeito.
Deixei meu corpo cair totalmente de novo.
— Não contei nada a ninguém, Gê, só que
eles me conhecem há anos e descobriram sozinhos.
— Coloquei as mãos nos olhos, percebendo o
quanto eu estava esgotada em todos os sentidos. —
Eles acham que estamos namorando.
— Namorando?
Olhei para o teto. Evitei ao máximo
registrar sua reação, mas não demorou nem um
segundo e precisei encará-lo. Gê estava com os
olhos bem abertos e a boca escancarada em
surpresa. Poucas vezes o vi tão expressivo quanto
naquele instante.
— Sabe o que significa namorar? —
perguntei.
— Sim — Gê murmurou. Os olhos
piscavam mais que o normal. — O que exatamente
seus parentes sabem ao meu respeito, Estrela?
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— Nada, Gê, não se preocupe.


— Não compreendo por que desejam me
conhecer.
— Não é exatamente você, mas o cara que
está na minha suíte.
Gê olhou ao redor.
— Existe alguém nesta suíte além de mim e
da senhorita?
Soltei uma gargalhada involuntária.
— Não, Gê! — Eu me sentei na cama para
olhá-lo de frente. — O cara, neste caso, é você.
Obviamente, eles não sabem que você é venusiano,
só querem saber quem é o meu novo namorado.
— Mas eu não sou o seu namorado, Estrela
— Gê ainda estava espantado.
— Eu sei.
— Por que seus parentes acreditam que sou
o seu namorado?
Soltei mais um suspiro. Aquela explicação
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seria difícil de dar. Gê com certeza daria outro piti


a respeito de não podermos nos relacionar, cavalo e
galinha, blá-blá-blá.
— Porque você está dormindo no meu
quarto. Geralmente, um homem e uma mulher não
dormem juntos se não estiverem em um
relacionamento mais... íntimo. — O seu silêncio foi
gutural. Dei de ombros e tentei amenizar: — O que
é uma bobagem, claro. Somos apenas amigos. As
pessoas que gostam de confundir tudo. Alguns
acreditam que não existe amizade entre homem e
mulher, mas acho isso uma besteira.
— Eu não sou um homem, Estrela — Gê
balbuciou. Estava tão reflexivo que começava a me
assustar. — Porém, creio que compreendi. Seus
parentes estão preocupados porque não me
conhecem, sendo assim, não sabem com quem a
senhorita está se relacionando. Eu também me
preocuparia.
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Abri um sorriso.
— Exatamente, garoto esperto.
Gê ficou me olhando e decidi que aquele
era o momento de sair de cena, antes que a vontade
de atacá-lo de novo ganhasse a batalha que estava
sendo travada em mim. Fui ao banheiro, vesti
minha camisola, escovei os dentes e voltei para
cama. Havia algumas noites que o Gê tinha
insistido para que ele ocupasse a poltrona com o
objetivo de não me deixar desconfortável. Tentei
questionar sua decisão, até sugeri dividirmos o
colchão de casal, mas ele se manteve irredutível.
— Boa noite, Gê.
— Desejo que a senhorita durma muito
bem.
Eu sabia que o Gê ainda demoraria um
pouco antes de fazer sua higiene, do jeito que
ensinei, e ir dormir. Geralmente ele ficava lendo,
mexendo no meu celular ou simplesmente
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pensando enquanto encarava a parede ou a mim.


Sempre fui de pegar no sono depressa, e daquela
vez não foi diferente. Por mais que eu estivesse
muito preocupada, nervosa, ansiosa, com raiva e
com um problemão para resolver, o cansaço me fez
apagar e ter um sono pesado, sem nenhum sonho,
pesadelo ou contato psíquico.
Acordei com a cabeça girando um pouco.
Meu corpo estava pesado, como se eu tivesse
dormido além da conta. Ergui a cabeça para
verificar o relógio na cabeceira e levei um susto:
eram quase nove horas da manhã. Eu já deveria ter
acordado há muito tempo. Sentei-me na cama e
levei o segundo susto em menos de um minuto. Gê
não estava na poltrona. A porta do banheiro se
encontrava aberta.
— Gê? — Eu me levantei meio
cambaleante. Parecia que tinha levado uma surra de
tão dolorido que o meu corpo estava. Entrei no
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banheiro e não havia ninguém. — Gê? Puta


merda...
Abracei o meu próprio corpo e voltei para o
quarto me sentindo desolada. Meus olhos
marejaram de imediato diante da possibilidade do
Gê ter ido embora de vez. Aquele papo da noite
anterior devia tê-lo assustado a tal ponto que ele
achou melhor se afastar definitivamente. Também,
no que eu estava pensando ao lhe dizer aquelas
informações? Deveria tê-lo poupado daquelas noias
familiares.
Fiquei tão desesperada que saí do quarto
sem pensar em muita coisa. Só queria respirar
melhor, pois aquelas paredes começaram a me
sufocar, arrancar o meu fôlego e me deixar
totalmente sem controle. Alcancei o corredor e ouvi
a voz da dona Margarida.
— Banana é uma excelente fonte de
potássio — sua voz soava animada de uma forma
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incomum. Margarida costumava ser bastante séria.


— Que bom que você gosta. Estrela não come
quase nada, fico feliz que você seja bom de boca.
— Bom de boca? — ouvi a voz do Gê e
travei no meio do corredor. O que aquele maluco
estava fazendo fora da suíte? Tinha enlouquecido
de vez? O que estava fazendo conversando com
dona Margarida? — Não sei se a compreendi,
senhora Margarida, porém confesso que realmente
gosto muito de banana.
Não podia ser possível.
Corri o mais rápido possível na direção da
sala de jantar. Meu coração quase escapuliu pela
boca ao ver o Gê sentado à mesa com um monte de
guloseimas ao seu redor. Dona Margarida estava de
pé como sempre ficava quando servia alguém
especial, mas não foi nela que meus olhos se
fixaram.
Foi nele. Gê. E não era para menos.
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Aquela criatura me olhou e eu arquejei


diante de seu novo olhar azulado. Tão diferente,
mas tão... encantador. Gê havia colocado as lentes
de contato que eu comprara dias atrás e eu
simplesmente não soube o que pensar a respeito.
Para piorar o meu estado atônito, seus cabelos na
altura dos ombros estavam soltos em ondas fartas
e... loiras. Gê tinha pintado seus cabelos e estava
ali, na minha frente, parecidíssimo com um humano
qualquer.
Aliás, não... Não dava para considerá-lo um
humano qualquer. Ele era, sem sombra de dúvidas,
o homem mais lindo que eu já vi na minha vida.

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18

Dona Margarida começou a falar um monte


de coisas que simplesmente não foram detectadas
pela minha mente. Para ser sincera, tudo ao meu
redor pareceu ser tragado para outra dimensão, bem
distante de onde eu me encontrava. Permaneci no
meio da sala, olhando o Gê minuciosamente e
recebendo seu olhar diferente de volta. Por mais
que a cor tivesse mudado, ainda existia muito da
criatura que conheci na forma séria como me
encarava, de maneira que me senti aliviada por não
haver estranhamentos. Havia apenas o bater
frenético do meu coração.
— Vem comer alguma coisa, Estrelinha —

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dona Margarida empurrou a cadeira que ficava ao


lado do Gê. Estava afobada e com o rosto um
pouco corado, coisa que era bem anormal vindo
dela. — Finalmente vocês deixaram de mistério!
Isso precisa ser comemorado. Vou fazer um almoço
de lamber os beiços hoje, assim conversamos todos
juntos. Você gosta de cozido, rapazinho?
Ele desviou o rosto pela primeira vez desde
que adentrei a sala. Usei aqueles segundos de folga
para tentar voltar a respirar.
— Tenho certeza de que qualquer alimento
que a senhora decidir cozinhar será de meu extremo
agrado — Gê abriu um meio sorriso e percebi que
fez um esforço para demonstrar ser uma pessoa
amigável.
— A senhora está no céu, meu querido —
Margarida soltou uma risadinha. Eu a observei
apenas para constatar que ela realmente tinha
gostado do Gê. Certamente percebeu o quanto ele
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era belo e educado. — Pode me chamar só de


Margarida. E pode parar de falar tão difícil
também, desse jeito mal entendo o que você fala!
Ela começou a rir sozinha e parou ao
perceber que continuamos sérios.
— Vou pegar um cuscuz quentinho. Senta,
Estrela, você precisa comer, menina. Nada de ir
trabalhar sem forrar o bucho! — Margarida se
virou para o Gê antes de sair da sala. — Fica de
olho nela, Gê, Estrela adora me enrolar e sair sem
comer nadinha.
Fomos deixados a sós numa sala ampla e
iluminada. Tomei coragem para me sentar na
cadeira ao lado dele, sem ousar desviar o olhar.
Quanto mais perto ficava do Gê, mais rápido o meu
coração batia.
— O que deu em você? — perguntei em um
murmúrio abafado, repleto de surpresa. — Por que
fez isso? — apontei para os seus cabelos pintados.
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Ainda dava para sentir um pouquinho de cheiro de


tinta para cabelo.
— Perdoe-me por não tê-la consultado antes
de tomar essa decisão, Estrela — Gê se explicou
em um timbre sério. — Tive receio de que a
senhorita me impedisse.
— Por que eu te impediria?
Ele deu de ombros, desviando os olhos para
o prato diante de si.
— Meu objetivo, além de deixar seus
parentes tranquilizados com minha presença, é
também protegê-la, Estrela — voltou a me encarar
de muito perto. — A senhorita não deve
permanecer sem proteção mesmo nas horas de sol.
Ainda que eu não acredite que os Recolhedores
tentarão um ataque em plena luz do dia, é perigoso
deixá-la sozinha. Não sei se a senhorita deseja a
minha constante companhia, por este motivo o
receio de que me impedisse de tentar acompanhá-la
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em sua rotina.
Fiquei o olhando por simplesmente não
acreditar que o Gê estava mesmo sugerindo que a
gente andasse por aí grudados durante vinte e
quatro horas. Já era difícil resistir à sua presença
durante as noites. Eu estava completamente ferrada.
Além do que o meu coração ainda não tinha se
aquietado.
— Não vou te impedir, Gê. Só vai ser meio
estranho. As pessoas farão perguntas sobre você e
eu não sei como responder a nenhuma delas.
— Não se preocupe com este detalhe. Tive
muito tempo para refletir sobre a possibilidade de
viver como um humano, portanto realizei inúmeras
pesquisas e me sinto capacitado para responder
inverdades quando for de extrema necessidade.
Tive vontade de rir do seu jeito de dizer que
inventaria um monte de mentiras.
— Tudo bem... — soltei um suspiro e me
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aprumei na cadeira. Bem que eu estava tentando


não manter contato visual, mas era impossível. Gê
estava particularmente belo demais para ser
ignorado. O elogio escapou dos meus lábios sem
que eu racionasse: — Você ficou... bonito. Na
verdade, muito bonito mesmo.
Gê meneou a cabeça.
— Creio que fiquei mais parecido com um
humano, por isso a senhorita está considerando a
minha aparência mais agradável.
— Sempre achei a sua aparência muito
agradável, Gê — falei de uma vez, mas me
arrependi logo em seguida. Eu e a minha boca
grande. Nós duas ainda entraríamos em muitos
apuros. — Como um venusiano ou como um
humano, você sempre foi belo aos meus olhos.
Definitivamente, eu precisava parar com
aquilo. O arrependimento e a vergonha atingiram o
seu auge, e fariam a minha cabeça explodir se o Gê
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não tivesse tocado a mão que eu repousava sobre a


mesa e dito em um timbre suave:
— Obrigado pela gentileza, Estrela. É com
sinceridade que confesso que esse é um
pensamento recíproco. Jamais me deparei com um
ser tão encantador quanto a senhorita.
Abri um sorriso de orelha a orelha. Foi
instantâneo, bastou um elogio feito daquela forma
singular e pronto, eu já estava toda derretida. Não
que não estivesse antes. Gê não precisava nem ter
aberto a boca para me deixar com os quatro pneus
arriados por ele. Eu me senti muito bem por saber
que ele me achava bonita, mas me senti melhor
com o seu toque aconchegante sobre minha mão.
Sabia bem que Gê não era muito de tocar nada e
nem ninguém, prova de que estava se esforçando.
Ousei entrelaçar nossos dedos e comecei a
alisar meu polegar em sua pele.
— Aqui está! — Dona Margarida apareceu
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da cozinha com um prato de cuscuz fumegante e


cheiroso. — Acabou de sair. — Ela o depositou
sobre a mesa e olhou para as nossas mãos
entrelaçadas. Abriu um sorriso animado. Pensei em
me distanciar, mas ali fiquei, creio que alimentando
a ilusão de ter o Gê na minha vida da forma que o
meu coração tanto queria. — Vou deixar as
perguntas para a hora do almoço, mas estou tão
curiosa pra saber como vocês se conheceram...
Nunca vi o Gê pela cidade. Onde você foi encontrar
esse moço bonitão, Estrelinha?
Eu ri junto com ela. Gê apenas abriu um
sorrisinho.
— Nós nos esbarramos por aí... —
expliquei de forma evasiva.
— Houve um incidente e o meu veículo
ficou impossibilitado de funcionar — Gê começou
a falar como se tivesse treinado para aquilo a vida
toda. — Por sorte, Estrela estava presente e me
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prestou socorro. — Ele me olhou e sorriu de leve.


Eu estava adorando aquele novo Gê, com direito a
expressões fáceis de decifrar. — Foi assim que nos
conhecemos.
O mais legal de tudo foi que ele não
precisou mentir.
— Gê estava me dizendo que vai passar uns
dias aqui conosco... — dona Margarida falou,
acredito que querendo nos sondar.
— Sim, ele... ele está de férias e vai ficar
um tempo aqui na fazenda — respondi, adiantando-
me para não gerar desconfianças. Eu não sabia o
que o Gê inventaria, e não saber passou a me deixar
aflita.
— De férias? Você trabalha com o quê,
rapaz?
Olhei para o Gê e travei. Abri a boca para
soltar uma resposta qualquer, mas ele apertou a
minha mão como se dissesse: “deixa comigo!”.
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— Eu sou um Pesquisador da área


científica.
— Ah... — Margarida sorriu meio sem
jeito. Continuei admirada com o fato do Gê não ter
mentido até então. — Está explicado por que você
fala assim, feito um doutor estudado. Vou avisar ao
Frederico que... — dona Margarida deu um tapa na
própria testa. — Que cabeça a minha! Frederico e
Valentim foram para aquele leilão de que tanto
falavam.
— É hoje? — estranhei. Valentim
costumava me avisar sempre que precisava deixar a
fazenda por mais tempo. Aquele leilão de gado
acontecia numa cidade um pouco distante, mas nos
traria uma bela grana, portanto não era um
acontecimento desimportante para ele ter se
esquecido de me avisar. — Como que não fiquei
sabendo disso previamente?
— Não sei, menina. Eles saíram hoje
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cedinho, antes do cantar do galo. Ainda fiz umas


marmitas para os dois. Achei que você soubesse do
leilão.
— Eu sabia do leilão, já tinha separado os
gados com Valentim. Só tinha me esquecido de que
era hoje.
— É assim mesmo, mocinha, quando a
gente está apaixonada afeta a nossa memória! —
Margarida riu sozinha, pois só consegui sentir
vergonha. Meu rosto inteiro corou, tanto que evitei
olhar para o Gê. — Bom, vamos deixar o almoço
para amanhã, então. Pelo menos agora posso
cozinhar sem pressa.
— Eu preciso trabalhar... — desconcertada,
levantei da cadeira, empurrando-a para trás.
Tentei soltar a mão do Gê, mas ele me
segurou com mais firmeza.
— A senhorita não ingeriu absolutamente
nada. — Tornei a me sentar porque minhas pernas
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bambearam um pouquinho. — Margarida pediu


para que eu ficasse de olho em seus hábitos
alimentares, a fim de garantir que a senhorita se
alimentaria bem.
Margarida abriu um sorrisão.
— Já gostei muito desse rapaz!
— Tudo bem, Gê, vamos comer — decidi
não reclamar.
Eu não sentia nem um pingo de fome, eram
mais de nove horas e eu ainda estava de camisola.
Mas sabia perfeitamente que aqueles dois não me
deixariam trabalhar em paz se eu não comesse. A
vigilância se tornaria ainda mais acirrada.
Após o desjejum, deixamos Margarida
cuidando da cozinha e segui com o Gê para mais
um dia de trabalho. Aquele extraterrestre ainda não
havia tido a oportunidade de conhecer a fazenda
com a luz do sol brilhando, e devo admitir que tudo
era muito mais lindo durante o dia. A admiração
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pelas minhas terras ficou visível em seu olhar


entusiasmado conforme eu lhe mostrava a horta, as
plantações, as atividades que os funcionários
realizavam sempre com sorrisos em seus rostos.
Tive que apresentá-lo a um monte de gente
porque seria pior não fazê-lo; a curiosidade do
pessoal aumentaria e nossa privacidade diminuiria.
Gê foi educado e gentil na medida certa, porém se
manteve um pouco silencioso nos momentos em
que tivemos companhia, creio que com receio de
cometer alguma gafe. Eu lhe ensinei um pouco da
minha profissão e lhe contei detalhes sobre o
andamento da fazenda. No geral, achei delicioso
trabalhar com ele por perto, pois me lembrava
muito bem da saudade que eu passava durante o
dia, sem sua presença intrigante.
Como Valentim e seu Frederico não
estavam presentes, sobrou para mim a tarefa de
guardar os cavalos no fim do dia. Gê, claro, sempre
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prestativo, me ajudou pra caramba falando aquelas


palavras malucas que deixavam os bichos
calminhos. Nem dava para acreditar em como o dia
tinha passado rápido e não fui capaz de me
estressar com absolutamente nada. Sentia-me feliz
mesmo diante de uma ameaça tão cruel feita pelos
Recolhedores. Com o Gê sempre por perto, eu
acreditava que tudo ficaria bem.
Mesmo assim, quando a noite caiu de vez,
percebi a apreensão no semblante do Gê. Ele foi
ficando mais sério conforme o sol morria no
horizonte, e notei que olhava ao redor com mais
frequência, mantendo um olhar sempre atento. Seus
modos me incomodaram um bocado, mas não dava
para julgá-lo. Ele estava tentando me proteger e eu
feito uma boba vivendo uma grande ilusão
enquanto aproveitava sua companhia.
— A senhorita já concluiu o trabalho deste
dia? — ele perguntou de um jeito aflito depois que
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todos os cavalos já estavam em suas baias.


— Acredito que sim. Por quê?
— Porque já é noite. Não acho seguro
permanecermos aqui, vulneráveis a um ataque.
— E onde mais ficaremos, Gê? Estamos
vulneráveis em qualquer lugar, aqui no celeiro ou
no casarão — dei de ombros, começando a ficar
preocupada de verdade. Minha alegria tinha durado
apenas as horas de sol.
— Conheço um esconderijo perfeito para a
ocasião. — Gê saiu de trás de um tonel cheio de
água para os cavalos e se aproximou com passos
decididos. — Pegaremos o mais rápido possível o
que for necessário para passar a noite e nos
esconderemos antes que uma tragédia aconteça.
— Vamos dormir em um esconderijo? Onde
fica? — fiz uma careta. — Como o encontrou?
— A senhorita obterá todas as respostas em
breve. Neste momento, preciso apenas que saiamos
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deste lugar inseguro.


Assenti e decidi não fazer mais perguntas.
O olhar do Gê estava tão agravado que não ousei
me demorar, afinal, meu medo aumentou
drasticamente e eu só queria me sentir segura de
novo. Voltamos ao casarão em silêncio,
caminhando lado a lado em um ritmo acelerado,
como se alguém estivesse à espreita. Jantamos com
dona Margarida, porque não deu para despistá-la
antes de experimentarmos sua deliciosa sopa de
feijão, e depois fomos para a suíte, alegando
estarmos cansados. Ela não fez nenhuma objeção
sobre dormirmos juntos, graças aos céus, pois eu
não estava a fim de discutir.
— O que temos que levar a esse
esconderijo? — perguntei tão logo entramos no
quarto. Tranquei a porta como em todas as noites.
— O que a senhorita desejar com o intuito
de dormir confortavelmente. — Gê apontou para a
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cama de casal. — Creio que travesseiros e lençóis.


Água e comida para o caso de sentir fome ou sede.
— Certo... Mãos à obra!
Peguei uma sacola grande, coloquei dentro
dela dois travesseiros e dois lençóis. Peguei
também um edredom de casal com o tecido grosso
para o caso de precisarmos dividir. Numa mochila,
depositei minha camisola, itens de higiene para
mim e para o Gê, duas garrafas de água e algumas
frutas, que roubei da cozinha sem que dona
Margarida percebesse. Ela estava distraída
assistindo à sua minissérie na sala de estar.
Tomamos um banho — infelizmente,
separados — e trocamos nossas roupas antes de
deixarmos a suíte. Gê estava com pressa, mas fiz o
possível para não enlouquecer e organizar tudo com
calma, sem agonia. Pulamos a janela larga e,
cautelosamente, seguimos na direção da mata.
— Tem certeza que é uma boa ideia? — O
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medo já me deixava apavorada e nem mesmo a


presença do Gê me tranquilizava. Não estava nem
um pouco a fim de entrar na mata mais uma vez.
— Sim, Estrela, a senhorita vai ficar em
segurança. Vamos depressa.
Andamos por alguns minutos por entre as
árvores e arbustos. Estávamos distantes do local
onde os Recolhedores haviam nos caçado, mas
ainda assim o meu corpo inteiro tremia de pavor.
De repente, um ovo gigante surgiu na nossa frente e
a minha cabeça ficou confusa.
— O que a sua nave está fazendo aqui? —
apontei, embasbacada.
— Eu a desloquei utilizando o sistema
operacional enquanto a senhorita se banhava — Gê
se aproximou do ovo com entusiasmo. — 14038,
ativar.
Em poucos segundos, a nave se abriu por
inteira, obedecendo ao comando.
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— Está funcionando! — sorri. — É este o


esconderijo?
— Exatamente — Gê informou com
seriedade e me ofereceu uma mão. Eu a segurei de
imediato, sem sequer pestanejar. — A 14038 é,
neste momento, o lugar mais seguro para a
senhorita.
Aquela criatura me guiou para dentro do
ovo com muita cautela. A nave voltou a se fechar
ao nosso redor, e tentei não me sentir um
passarinho dentro de uma gaiola. Gê começou a
murmurar comandos esquisitos ditos em sua língua
natal. Já eu, fiquei analisando os botões — que não
eram botões — e tentando encontrar um cantinho
onde pudéssemos dormir. No entanto, era tudo tão
compacto que mal nos cabia.
— Gê... — interrompi um de seus
comandos. — Acho que não vamos conseguir nos
deitar aqui.
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Ele me olhou e assentiu.


— 14038, expandir.
Sua nova ordem fez o ovo se remexer sob
nossos pés. O piso foi aumentando de
comprimento, realmente se expandindo. Um monte
de compartimentos, que outrora estavam
justapostos, formando as paredes do ovo, se
abriram como uma flor desabrochando, e então
percebi que aquela nave era, na verdade, enorme.
— Uau! Como pode ser possível? — Fiquei
embasbacada muito tempo depois do ovo ter se
expandido, analisando cada reentrância para tentar
descobrir de que forma tinha surgido. O ambiente
ficou do tamanho de um quarto comum, talvez um
pouco menor do que a minha suíte.
— Lamento não termos uma cama. Quando
construí 14038, não sabia que os humanos não
dormiam em armários — Gê sorriu e fiquei
surpresa com seu senso de humor. Aquilo tinha
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sido quase uma piada.


— Agora dá pra gente se arranjar por aqui.
— Peguei a sacola e logo abri o edredom grande no
piso brilhoso da nave. Eu nem sabia do que era
feito aquele material, e algo me dizia que saber a
resposta não adiantaria nada, pois eu continuaria
ignorante.
Organizei os travesseiros lado a lado e
puxei os lençóis de dentro da sacola.
— 14038, climatizar — Gê murmurou e um
vento fresco começou a sair de alguns
compartimentos embutidos no teto.
— Temos ar-condicionado? Que legal! —
Tirei minha camisola de dentro da mochila e olhei
ao redor. — Onde fica o banheiro? Ou melhor,
existe um?
Gê andou até uma reentrância e puxou uma
espécie de baldinho embutido. Fiz uma careta de
nojo.
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— Isso aí é o banheiro?
Ele deu de ombros.
— Se eu tivesse um pouco mais de
conhecimento sobre os humanos antes de ter
construído esta nave, certamente tudo seria
diferente. O funcionamento do experimento exigiu
de mim muita energia...
— Sua nave é perfeita, Gê — interrompi-o,
já que percebi seu descontentamento e não queria
vê-lo daquele jeito. — Não se preocupe com isso.
Só preciso que olhe para o outro lado, pois vou me
trocar agora.
Ele abriu bem os olhos vermelhos — pois
havia retirado as lentes antes de tomar banho — e
tratou logo de ficar de costas. Retirei minhas roupas
calmamente, não me importando nem um pouco de
ser flagrada. Vesti a camisola e só então avisei ao
Gê que ele poderia se virar de novo. Eu me deitei
sobre o edredom e suspirei fundo. Aquela seria a
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nossa primeira noite dormindo realmente próximos.


— Você vem? — apontei para o travesseiro
ao meu lado.
Gê aquiesceu e retirou apenas os tênis antes
de se deitar. Ficamos um tempo olhando para o teto
da nave, lado a lado, sem nada dizer.
— Seria tão bom se a gente pudesse ver as
estrelas, né? — o comentário escapuliu. Eu não
queria fazê-lo se sentir mal por não ter nem um
buraquinho em sua nave por onde pudéssemos
visualizar o lado de fora.
— 14038, espelhar — ele murmurou e o
teto foi derretendo feito gelatina. Fiquei tão
assustada que me agarrei ao seu braço. — Está tudo
bem, senhorita, não é necessário sentir medo.
Não ousei me afastar dele, por mais que
tivesse conseguido me acalmar usando aquela voz
doce. Uma superfície envidraçada deu lugar ao
antigo teto, de forma que pude contemplar as
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árvores ao redor do ovo e, adiante, um pedaço do


céu estrelado que os galhos permitiam que nós
visualizássemos. Soltei um suspiro.
— Que lindo...
— Espero que tudo esteja do agrado da
senhorita agora.
— Está tudo perfeito, Gê. — Eu o olhei
demoradamente, de muito perto. Ele me encarava
de volta sem sequer piscar. Minhas mãos estavam
em volta de seus braços fortes e o queixo ficou
apoiado em seu ombro. — Boa noite.
Ele fechou os olhos e os reabriu em seguida.
Pensei que falaria alguma coisa, mas permaneceu
calado. Nem mesmo retribuiu a saudação.
Continuei olhando-o. Não queria fazer nada além
de admirar aquela beleza descomunal até pegar no
sono.
— Senhorita... — ele fez uma pausa brusca.
— O quê?
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— Não é minha intenção preocupá-la.


— O que foi, Gê? — Eu me coloquei em
alerta, distanciando-me um pouquinho apenas para
olhá-lo sem desconcerto.
— Não sei se este assunto é devidamente
apropriado, apenas gostaria de compreender o que
está acontecendo comigo. — Gê balançou a cabeça
em negativa. — Às vezes, tenho dificuldade de
respirar e o meu coração bate tão acelerado que me
sinto mal. Temo que eu esteja ficando doente em
sua atmosfera.
— Doente? — A preocupação fez com que
eu me sentasse sobre o edredom. — O que mais
você está sentindo?
— Não consigo identificar os sintomas com
precisão. Às vezes sinto uma dor incômoda aqui —
Gê tocou na região onde devia existir um estômago.
— Uma dor? Dói muito? — Peguei em sua
testa para conferir a temperatura, mas tão logo o
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toquei percebi que minha atitude seria em vão. Gê


era tão quente que parecia estar com febre
naturalmente.
— Creio que não é exatamente uma dor. É
um incômodo.
— Hum... Eu não sei, Gê, estou preocupada.
Tem outros sintomas? Diarreia, enjoo? Tem alguma
mancha nova em seu corpo?
— Não... — Gê soltou o ar dos pulmões. —
Creio que não deve ser algo grave. Não me lembro
de ter ficado doente em toda minha existência.
— Pode ser psicológico. Ansiedade,
nervosismo...
— É uma possibilidade. Fui submetido a
situações de estresse nos últimos dias. — Ele ficou
me encarando. Puxou o ar com força e soltou
devagar. — Deite-se, Estrela, não há necessidade
de se preocupar.
— Você está respirando direito?
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— Sim, senhorita. — Pela primeira vez,


achei que o Gê estivesse me contando uma mentira.
— Desejo que tenha uma agradável noite.
Voltei a me deitar, percebendo que o meu
corpo estava exausto como sempre. Gê fechou os
olhos e assim ficou até sua respiração se
tranquilizar. Depois de um tempo, notei que tinha
caído no sono. Fiquei sem saber o que pensar,
estava preocupada, morrendo de medo de alguma
coisa na Terra ter afetado a sua saúde.
Tudo o que eu menos precisava era que o
Gê ficasse doente.

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19

O pequeno pedaço de céu que eu conseguia


ver de dentro da nave foi minha companhia durante
muitas horas daquela madrugada insone. Passei um
tempão distraída com as estrelas e, confesso, com
medo do ovo receber um novo ataque dos
Recolhedores e eu testemunhar tudo através
daquele vidro. Já o Gê não parecia tão preocupado.
Dormia ao meu lado sem provocar qualquer ruído,
tanto que conferi muitas vezes se ainda estava
respirando. Minha preocupação com relação à sua
saúde foi mais um fator determinante para a falta de
sono.
A névoa densa foi o primeiro sinal de que

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alguma coisa estava errada. Olhei o interior da nave


e percebi uma fumaça branca enevoando tudo,
impedindo-me de enxergar com clareza. Tentei
acordar o Gê, mas, para a minha surpresa, ele havia
sumido como todo o restante. Soltei um grito
desesperado, sem saber o que estava acontecendo.
Pensei em me levantar do edredom esticado no
chão, porém meu corpo perdeu todas as forças e eu
já não era mais dona de mim mesma. Meu grito foi
silenciado por uma força invisível.
— Estrela... — ouvi um murmúrio macabro,
similar aos que escutei enquanto era perseguida na
mata. — Ouça-me, Estrela.
— Socorro! — choraminguei. Minha voz
saiu sufocada, de forma que a palavra se perdeu
dentro do meu íntimo sem ser devidamente
pronunciada.
Uma figura encapuzada apareceu em meio à
névoa, de pé ao meu lado, encarando-me
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demoradamente. Fiz o maior esforço do mundo


para me levantar e sair correndo, em vão. Aquele
Recolhedor tinha invadido a nave e dado cabo do
Gê de um segundo para o outro, não era possível.
Como não notei a sua entrada no ovo? Foi tudo
muito de repente.
— O experimento... — a criatura ergueu
uma mão e sussurrou de uma maneira sinistra. —
Queremos o experimento.
Nada fazia muito sentido. Os Recolhedores
tiveram a chance de obter o experimento e não a
aproveitaram. Gê o tinha entregado praticamente de
mão beijada e aqueles filhos de uma mãe insistiram
em me caçar pela mata, em vez de pegá-lo. Por que
eles achavam que eu era a responsável pelo que
tanto queriam?
— Estrela X-189 — o encapuzado insistiu,
ainda com a mão erguida, como se eu pudesse
entregá-lo naquele exato momento.
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— Não está comigo! — novamente, tentei


falar, mas minha boca se manteve fechada. De
alguma forma, o encapuzado pareceu entender, pois
abaixou a mão que me era oferecida.
Demorou alguns segundos até que houve
uma nova tentativa:
— Entregue-nos o experimento Estrela X-
189.
— Não está comigo! — gritei mentalmente,
e, para minha surpresa, meus pensamentos se
tornaram reais a ponto de eu ter certeza de que
funcionava aquela técnica de comunicação por
telepatia. — Me deixe em paz!
A criatura apontou um dedo ossudo e
branco em minha direção.
— Haverá consequências — ameaçou em
um tom severo, que reverberou pelo meu corpo e
me provocou arrepios horripilantes. — Não haverá
paz até obtermos o experimento Estrela X-189.
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— Já falei que não está comigo! —


continuei de forma grosseira. O medo já estava
dando uma aliviada para a raiva vir à tona. Quem
aqueles imbecis achavam que eram para me
ameaçar daquele jeito? Eu não tinha feito
absolutamente nada a eles! — E vocês estão me
devendo uma caminhonete nova! Sem
caminhonete, sem experimento nenhum!
O encapuzado virou o pescoço para a esquerda,
como quem me analisava melhor. A névoa
continuava pairando sobre o meu corpo, trazendo-
me uma horrível sensação de sufocamento.
Nenhum sinal do Gê em lugar algum.
— Haverá consequências se este acordo for
rompido — a figura voltou a ameaçar. — Podemos
transformar a sua medíocre existência em
absolutamente nada, Estrela.
Mais do que de repente, o ser estranho se
curvou, abaixando-se, e circulou as mãos ossudas
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em meu pescoço. Fiz o possível para gritar e me


debater, porém meu corpo permanecia estático e a
voz simplesmente não saía, por mais que eu
tentasse. O ar foi ficando cada vez mais escasso em
meus pulmões. A garganta ardia por causa da
pressão colocada nela, e observei o ser com os
olhos bem abertos enquanto esperava pela morte.
Tive a impressão de ver duas luzes vermelhas
dentro do capuz. Eu só conhecia um extraterrestre e
ele tinha os olhos brilhantes daquela mesma cor, o
que fez com que eu me lembrasse do Gê e ganhasse
um pouco mais de força para lutar. Eu me debati e
gritei fervorosamente, utilizando todas as minhas
últimas energias para não me deixar ser morta por
aquele esquisitão.
Que jeito mais idiota de morrer!
— NÃO! SOCORRO! — finalmente
consegui ouvir os meus próprios gritos. O corpo
agitado se debatia enquanto aquele Recolhedor
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ainda estava sobre ele. Podia sentir o seu peso


tentando conter os meus movimentos desajeitados.
— Estrela! Pare, Estrela, por favor! — a voz do
Gê me fez abrir os olhos, espantada. Minha
respiração ofegante foi o único ruído ouvido
durante o tempo que levei para perceber que o
encapuzado tinha sumido, bem como a névoa e
todas as esquisitices.
Havia apenas o Gê muito perto, com as mãos
segurando os meus punhos e o tronco pesado sobre
o meu, contendo-me. Os olhos vermelhos
permaneceram arregalados na minha direção. Gê
estava visivelmente assustado com o meu
rompante. Continuei tentando respirar para, enfim,
começar a explicar que eu havia acabado de sair de
um pesadelo assustador.
— A senhorita está em plena condição física e
psicológica? — perguntou suavemente, mantendo-
se perto e bastante atento. Não pude deixar de
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admirar seu rosto perfeito próximo ao meu, foi


inevitável. Ainda que eu estivesse assustada, o
alívio por ter o Gê de volta era muito maior. —
Estrela?
Pisquei os olhos, atônita.
— Acho que foi um pesadelo — murmurei,
apaziguadora. Ganhei consciência de sua quentura
sobre a minha pele e fui atiçada em questão de
segundos. O medo se esvaiu como se tivessem
aberto a tampa de uma banheira. Com aquele ser
por perto, eu estava segura. — Foi muito real, mas
não passou de um pesadelo. Está tudo bem, Gê.
— A senhorita tem certeza? Permite que eu a
solte?
Olhei-o demoradamente. Sua expressão se
suavizava conforme percebia que eu estava fora de
risco, voltando à seriedade que lhe era comum.
— Você pode me soltar apenas se quiser, Gê —
falei baixo, sem conseguir conter as segundas
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intenções.
Mesmo que eu tivesse prometido nunca
mais fazer aquilo, era impossível resistir a ele, à sua
proximidade tão acolhedora. Era como se o seu
corpo me hipnotizasse, como se sua alma clamasse
pela minha e me deixasse zonza com a
possibilidade de tê-lo, seja da forma que fosse. Eu
me sentia forte o bastante para encarar até os
Recolhedores, mas não passava de uma fracote para
conter o desejo que aquele extraterrestre me
causava. Claro, tinha muita vergonha desse
sentimento, mas nada fazia com que parasse de
bater em meu peito, nem mesmo minha própria
consciência.
— Não quero largá-la se essa atitude
permitir que se machuque — Gê respondeu com
seriedade. Por um momento, achei que tivesse
reparado em minha boca. Estava um pouco escuro
dentro da nave, de modo que não consegui ter
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certeza. Talvez meus pensamentos impuros


estivessem me fazendo ver coisas que não existiam.
— Preciso que me garanta que está tudo bem agora,
senhorita.
— Não sei se está bem... — ofeguei, meio
hipnotizada pela proximidade de seus lábios.
Balancei a cabeça em negativa, a vergonha de mim
mesma crescendo. — Talvez fique melhor se você
se afastar de uma vez, Gê. Não consigo pensar
direito com você tão perto, então, se não quer que
eu o ataque de novo, melhor ficar bem longe de
mim. Sou uma mulher inconstante, louca e carente
o suficiente para tentar um novo ataque e,
obviamente, me dar muito mal, pois você não quer
nada comigo e tem todo o direito de não querer...
— comecei a falar tudo de uma vez, quase sem usar
vírgulas. — Desculpa por ser assim, tão louca, juro
que quero manter a nossa amizade numa boa, mas,
cara, você é tão lindo e eu não sei o que fazer com
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esse desejo, principalmente quando você me olha...


Quando me toca, quando me...
Gê não esperou que eu terminasse a frase,
juntou nossos lábios com urgência, como se
estivesse esperando por aquele reencontro tanto
quanto eu. Não ousei cair naquela ilusão, nem
mesmo me permiti pensar em nada além de
exatamente aquilo que estava acontecendo. Sua
língua estava enrolada na minha de novo e eu mal
podia acreditar em como aquela criatura aprendera
a beijar tão depressa.
Ele deixou o corpo afundar sobre o meu,
ainda me mantendo presa em suas mãos, e circulei
as pernas ao redor de sua cintura para deixar claro
que eu queria, sim, que ele avançasse todos os
sinais possíveis e imagináveis. Os lábios quentes
bailaram junto com os meus em um beijo que tirava
o meu fôlego tanto quanto o meu juízo. Era incrível
como nossos corpos, tão diferentes, pareciam se
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encaixar com perfeição. Eu me sentia realmente


completa enquanto o beijava com todo desejo
reprimido e reunido em chamas dentro do meu
espírito.
De repente, Gê largou as minhas mãos e se
ajoelhou diante de mim. Ofereceu-me um olhar
avermelhado muito próximo ao sedento, o que me
deixou estupefata e igualmente maravilhada. Era a
primeira vez que eu reconhecia o desejo em sua
expressão, e não podia me sentir mais feliz com o
inusitado reconhecimento. Ainda assim, seu
distanciamento me fez perceber o quanto era errado
insistirmos.
— Tudo bem, Gê... — murmurei, tentando
me consolar por ao menos ser alguém por quem ele
sentia certa atração, mesmo que por um segundo.
— Não precisa fazer uma coisa que você não quer
só para me agradar. Sei que é errado, que você acha
estranho, que...
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Ele não falou absolutamente nada, mas


retirou a camiseta que vestia e a jogou de lado,
exibindo o seu tórax bem desenhado diante de mim.
Eu ainda estava deitada, com as pernas abertas e ele
em meu centro, de forma que arregalei os olhos em
profunda surpresa. Gê segurou uma de minhas
mãos e a puxou para o seu peitoral firme, quente e
sem nenhum pelo visível. Sentei-me, meio
inclinada para ele. Olhei-o de baixo enquanto ele
analisava o movimento de nossas mãos em sua
pele.
Gê estava me mostrando o jeito certo de
tocá-lo, assim como eu tinha feito com ele no meio
da mata.
Nossos olhares se cruzaram. Não ousei
estragar o momento com nenhuma palavra. Todo o
vocabulário humano era insuficiente para traduzir a
minha satisfação. As emoções borbulhavam dentro
do meu peito, instigando-me a apenas prosseguir,
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sem dúvidas ou questionamentos, simplesmente


com a certeza de que aquilo era a coisa certa a ser
feita.
Enquanto me olhava, Gê escorreu nossas
mãos. Atravessamos sua barriga rígida até nos
perdermos dentro de sua calça jeans nova. Segurei
a ponta de um volume teso e grosso. Continuei o
olhando, daquela vez sem demonstrar qualquer
estranhamento. Não queria que ele pensasse que eu
o tinha achado esquisito. Não achara. Apesar de a
consistência ser diferente e do tamanho ser bem
avantajado, seu membro firme não podia ser
considerado tão distante da realidade humana.
Gê soltou um leve suspiro. Piscou os olhos
de uma forma mais demorada.
— Eu quero, Estrela — um silvo baixo
escapou de seus lábios. — Quero que conheça o
meu corpo venusiano e desejo conhecer o seu corpo
terráqueo.
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Sua confissão me fez abrir um sorriso de


pura alegria. Eu poderia achar que estava sonhando
se não tivesse acabado de acordar de um pesadelo.
— Não tem isso de venusiano e terráqueo,
Gê... — Balancei a cabeça em negativa enquanto o
atiçava lentamente, movimentando a minha mão.
Com a outra, tentava abrir o botão e o zíper de sua
calça. — Só tem eu e você. Nós dois queremos nos
conhecer intimamente.
Eu me coloquei de joelhos e, por hora,
larguei seu membro. Sentia que precisávamos ir
bem devagar se quiséssemos que desse certo. Sem
alardes, sem sustos, apenas dois seres vivos
desvendando um ao outro. Por este motivo, retirei
minha camisola devagar, deixando à mostra meus
seios, já que estava sem sutiã. Usava apenas uma
calcinha simples de algodão.
Trouxe as mãos dele para o meu corpo e
voltei a segurá-lo. Gê começou a me tocar como se
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eu fosse uma preciosidade, um objeto caro e que


poderia quebrar com qualquer gesto mais brusco.
Estávamos tão próximos que eu podia sentir o calor
gostoso que emanava dele. Naquele instante, senti-
me completa e segura.
— Espero que a senhorita compreenda o
quanto isso é loucura, por mais consentida que
seja... — ele murmurou em certo momento,
enquanto seus dedos circulavam e atiçavam meus
mamilos. Parecia ter gostado deles. — E que eu não
faço ideia se vai dar certo. Também não faço ideia
de onde foi parar a minha sensatez, de forma que
não sei como reagirei quando reencontrá-la.
Soltei um risinho meio nervoso. Sabia bem
que o Gê jamais faria aquilo se estivesse com o seu
raciocínio no lugar. Entretanto, me senti orgulhosa
por ter lhe retirado a razão. Precisava aproveitar o
momento, porque era provável que não existisse
uma segunda oportunidade.
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— Vamos nos dar o direito de não pensar


em nada essa noite, Gê — falei com a voz abafada
pelo desejo.
Consegui livrá-lo da calça e puxei seu
volume duro a fim de conferi-lo sob a fraca luz da
nave. Percebi que o Gê não possuía bolas como um
humano comum. No lugar delas, havia apenas pele.
Tudo bem, quem precisa de bolas? Eu não
precisava, e pelo visto nem os venusianos. Fora
isso, tudo normal, quero dizer, tirando o fato de que
precisáriamos de mais cuidado para nos encaixar e,
com certeza, não caberia tudo.
— A senhorita me traz uma absurda
vontade de não refletir sobre qualquer outra coisa
— Gê murmurou e me puxou para perto de si. —
Devo confessar que jamais senti tanta vontade de
permanecer na ignorância.
Não tive tempo de respondê-lo. Ele me deu
um beijo poderoso, que já começou intenso,
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fazendo-me derreter com o contato de nossas peles


e com as promessas feitas em silêncio para aquele
resto de madrugada.
Eu estava mais do que pronta para ser dele.

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20

Os beijos se tornavam mais eloquentes


conforme nossas línguas se reconheciam e os lábios
se tornavam complementos um do outro. Deu para
sentir cada fibra da conexão que nos unia sobre
aquele humilde edredom. Embora as diferenças
existissem, e fossem bem óbvias, havia também o
desejo de rompê-las até que elas não fizessem o
menor sentido diante daquele instante de puro
prazer. E eu as sentia caindo por terra a cada toque,
cada carícia suave como uma pluma que o Gê fazia
questão de me oferecer com seus dedos cuidadosos.
Gemi quando ele, em um gesto mais
ousado, invadiu a minha calcinha e passou a me

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dedilhar de forma mais decidida, totalmente


diferente de quando me tocou ali pela primeira vez.
Sua pele ardia em um calor estrondoso, que já me
fazia suar antes mesmo de nos entregarmos de fato.
Sentia que eu também estava esquentando, meu
corpo se adaptando ao dele com naturalidade, uma
química que nunca tive antes com qualquer outra
pessoa.
Fechei os olhos e soltei mais um gemido
entre seus lábios quando um de seus dedos escorreu
para dentro de mim. Eu estava tão molhada que não
sofri nenhuma resistência com aquela invasão
repentina. Arquejei e usei um braço para me apoiar
em seu pescoço, colando nossos corpos. Mantive
uma mão o atiçando com constância, querendo
devolver a ele as mesmas doses de prazer que me
proporcionava com tanta delicadeza e até certa
inexperiência. Não considerei um defeito o Gê
conhecer pouco sobre o corpo de uma mulher.
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Muito pelo contrário, acompanhar suas descobertas


me deixava completamente pirada.
— Estrela... — Gê murmurou em meu
ouvido, aproveitando que precisei me distanciar um
pouco para gemer e recuperar o fôlego perdido. —
A senhorita precisa me deixar ciente de como devo
proceder para que meus atos sejam de seu agrado.
Sorri diante de sua inocência, da escolha de
palavras e da bondade que teve ao deixar claro que
queria me ver satisfeita. Gê fazia qualquer
momento se tornar especial, e se eu já estava
ardendo em desejo antes, seus murmúrios só me
atiçaram ainda mais.
— Duvido muito que algum ato seu não
seja de meu agrado, Gê — respondi enquanto
beijava seu pescoço. Ele cheirava a sabonete e
shampoo, que combinados com a consistência de
sua pele deixava uma sensação perfeita em mim
toda vez que eu respirava com mais veemência. —
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Seja simplesmente você. Faça comigo o que tiver


vontade, o que considerar melhor.
— Receio não atender às suas
expectativas... — Gê insistiu com um timbre suave.
Retirou os dedos de minha calcinha e me segurou
pela cintura.
Eu o trouxe para mais perto, juntando
nossas testas calmamente.
— Me diga o que quer fazer comigo —
instiguei, tentando tranquilizá-lo. Gê me olhou
fixamente, e senti suas mãos apertando a minha
carne com mais força.
— Quero explorar todas as partes de seu
corpo, a fim de reconhecê-lo por completo de tal
forma a jamais tirá-lo de minha memória — Gê
confessou em meio a vários suspiros discretos. Eu
ainda o atiçava e, pelo movimento de seu ventre e a
expressão desejosa, certamente estava gostando.
Afastei-me diante de suas palavras e o Gê
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ficou me olhando, meio confuso. Não tive coragem


de responder absolutamente nada. Sabia que aquela
noite ficaria na minha memória independente de
qualquer coisa, portanto eu daria ao Gê o que ele
tanto almejava.
Retirei a calcinha devagar, tentando ser uma
mulher sensual, depois me deitei sobre o edredom,
ainda o encarando sem romper a ligação criada
pelos nossos olhares sedentos por mais.
— Tome o meu corpo, Gê — sussurrei,
concentrada na excitação que fazia meus nervos
ferverem. Tive a impressão de que não precisaria
de muita coisa para que eu entrasse em um êxtase
profundo. — Ele é todo seu.
A criatura fez uma expressão séria de
repente. Achei que fosse questionar minhas
palavras, ou mesmo que a sua razão tivesse
retornado e ele estivesse a fim de desistir do que
começamos. Entretanto, sua seriedade não durou
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muito tempo. A expressão desejosa retornou e ele


imitou o meu gesto, terminando de retirar a calça
junto com a cueca e se deixando exposto para mim.
Qualquer coisa que poderia deixar nossas peles
separadas desapareceu. Eu não via a hora de nos
tornarmos uma só carne.
Gê depositou o seu corpo nu sobre o meu, e
começou a exploração com um beijo tão intenso
quanto todos os outros. Suas mãos foram me
tocando em lugares impensáveis, com tanta cautela
que fiquei emocionada, sentindo-me a criatura mais
bem-amada do Universo. Seu cuidado era visível, a
gentileza em cada carícia, em cada ofego que
soltava vez ou outra, conforme seu desejo
aumentava.
Ele desviou sua boca da minha para beijar o
meu rosto, descer pelo pescoço e encontrar meus
seios. Usou mãos e lábios para não permitir que
nenhum pedacinho de pele pertencente a mim
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ficasse sem a sua atenção.


Soltei um arquejo misturado com gemido
quando ele me virou de costas. Meu corpo se
moveu sem hesitar, todo molenga por causa
daquela sessão louca de carícias fenomenais. Gê
passou a beijar minha coluna, apalpando o meu
traseiro e me deixando absolutamente arrepiada.
— A senhorita tem um cheiro
extremamente agradável — murmurou em minha
nuca, afastando os fios pintados de loiro para o
lado. Sorri, toda orgulhosa de mim mesma. Gê nem
precisava dizer nada, eu já me sentia uma mulher
bonita, gostosa e cheirosa só pelo modo como me
explorava. — Temo não suportar mais um segundo.
O momento está se aproximando, Estrela.
— Que momento, Gê? — perguntei, meio
bêbada de tesão e toda arrepiada com seu corpo
grudado em minha retaguarda.
— O momento em que descobriremos se
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nossa loucura dará certo... — ele falou e beijou a


ponta de minha orelha. Suas mãos desceram pelas
minhas coxas e pararam em meu centro. Soltei mais
um gemido. — Se é realmente possível um
venusiano e uma terráquea... — fez uma pausa,
hesitante. — Se podemos fazer isso.
Girei meu corpo para vê-lo de frente.
Percebi que ele estava um pouco aflito.
— Claro que podemos. — Eu não sabia
direito do que o Gê estava falando, mas minha
positividade estava nas alturas. Não conseguia
enxergar nenhum modo que pudesse dar errado. —
E agora é a minha vez...
Eu o empurrei para trás, deitando-o no
edredom com a barriga para cima. Não lhe dei
tempo para questionar, comecei a beijá-lo
alucinadamente enquanto o explorava com minhas
mãos. Fiz mais ou menos o percurso que o Gê tinha
feito comigo, porém não consegui usar a mesma
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velocidade lenta, suave. Minha pressa se tornou


assustadora e eu só queria explorá-lo logo,
conhecer seu corpo de uma vez por todas.
Sentei-me ao redor de sua cintura, atiçando
seu membro com a quentura e umidade existentes
entre minhas pernas. Gê soltava suspiros e arquejos
baixos, ora segurando meus cabelos, ora os meus
ombros. Eu o beijei de cima a baixo, alisando
minha língua em sua pele, movendo meus lábios e
esfregando meus seios, bem como minhas mãos.
Utilizei tudo o que podia para atiçá-lo, reconhecê-
lo, acariciá-lo e mostrar o quanto eu o desejava
através de meus toques.
— Estrela... — Gê arfou, puxando-me para
que eu parasse de me esfregar em seu corpo.
Encarei-o meio sem saber o que tinha feito de
errado. — Chegou o momento. Não suporto mais
me conter.
— Tudo bem, Gê... — Olhei bem para ele,
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dando de ombros. Não fazia ideia do que ele queria


que eu fizesse. — O que você...
Aquele ser impressionante me girou com
extrema facilidade, deitando-me no edredom e se
colocando sobre mim sem qualquer explicação.
Antes que eu pudesse fazer perguntas ou ao menos
ter algum pensamento racional, Gê segurou minhas
coxas e me penetrou de uma vez, selvagemente.
Soltei um gemido bem mais alto, louca por ter sido
preenchida de um modo perfeito.
— Eu a machuquei? — Gê parou de
imediato, assustado com meu grito. Sua expressão
estava meio esquisita, como se estivesse sonolento.
— Continua, Gê, pelo amor dos céus... —
implorei, movimentando o meu ventre na ânsia de
senti-lo outra vez. Ele retomou o movimento e eu
não pude acreditar no quanto era delicioso tê-lo
dentro de mim.
Meu corpo reagiu de uma forma totalmente
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inusitada. Comecei a sentir um prazer tão poderoso


que era como se eu estivesse em um êxtase
contínuo, ininterrupto, como milhares de orgasmos
justapostos. Passei a gemer forte, ruidosamente,
conforme o Gê ia e vinha, possuindo-me,
penetrando-me, tomando um corpo que ele mal
sabia que o pertencia com tanta intensidade.
— Estrela... — Gê arquejou, acelerando o
ritmo da entrega. Parecia estar imerso em um
êxtase tão louco quanto o meu. Era incrível que
alguns minutos tivessem se passado e eu ainda me
sentia no caminho para o paraíso, uma estrada que
não tinha retorno. — Estrela...
— Gê... — respondi o seu nome de volta e
milhões de imagens invadiram a minha mente. Foi
como se tivessem ligado um interruptor repleto de
memórias dentro do meu cérebro, mas aquelas
lembranças estavam longe de ser minhas.
Eram lembranças do Gê. Vi o rosto de seus
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pais venusianos, duas criaturas com os mesmos


cabelos azuis e olhos vermelhos. Enxerguei muitas
naves, planetas, buracos negros, estrelas, meteoros
e poeira cósmica. Meu corpo navegou como um
foguete através do Universo, rodopiando sem
direcionamento. Visualizei uma quantidade
inigualável de extraterrestres de várias espécies.
De repente, eu soube de tudo o que o Gê
tinha passado durante seus longos anos de
existência até cair em meu milharal, como se
tivesse lido a sua biografia completa em questão
segundos. Não havia mais mistérios ou incógnitas,
aquela criatura se transformou na mais transparente
de todas.
Soube a respeito de cada um de seus
sentimentos. Aprendi tudo o que ele sabia sobre o
espaço, o Universo, os cosmos. Acompanhei a
árdua construção da 14038 e o experimento Estrela
X-189. Cada memória do Gê me pertencia, cada
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emoção, cada conhecimento. A consciência daquela


criatura impressionante estava em mim, de forma
que não me senti apenas conectada a ele. Eu me
senti como se fosse o próprio Gê.
Por mais anatomicamente diferentes que
fôssemos, nosso encaixe não podia ter sido mais
perfeito. Achei que sentiria dores, mas não
aconteceu em nenhum instante. Meu corpo se
manteve relaxado, pronto, recebendo-o como se eu
tivesse nascido para ser dele. O clímax
interminável exigia de mim um gás absurdo, tanto
que, em vários momentos, precisei me segurar em
seu pescoço. Não tive sequer tempo de entender
que tipo de reação estranha, porém fantástica, era
aquela.
Abri os olhos em meio a gemidos. Gê
estava ofegante, indo e vindo sobre o meu corpo, e
a sensação de êxtase ainda circulava em mim.
Contudo, para a minha surpresa, não estávamos
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mais dentro de sua nave, mas em uma superfície


brilhante, resplandecente. Olhei ao redor, assustada,
inebriada, com variadas emoções batendo em meu
coração junto com o sangue. Eu via o Universo
adiante, uma colcha negra com muitos pontos
luminescentes, uns maiores que os outros.
— Gê... — ofeguei, já meio tonta de tanto
ter orgasmos. Meus olhos marejaram por causa dos
sentimentos que habitavam em mim. Era uma
espécie de empatia inigualável que eu sentia por
aquela criatura. Conhecê-lo me fez ter certeza do
quanto era solitário, mas o quanto era bondoso. —
Onde estamos? O que está acontecendo?
Gê me encarou com uma expressão de
pleno gozo.
— A... — arfou, fazendo uma pausa, porém
sem cessar o ritmo. Ele se manteve deliciosamente
acelerado. — A senhorita consegue... ver?
— Sim... — Agarrei-me ao seu pescoço de
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novo, um pouco assustada com o nosso paradeiro.


Tudo parecia girar e brilhar ao nosso redor.
Gê arregalou os olhos de surpresa. Não me
deu nenhuma explicação, no entanto. Pelo seu
semblante, parecia impossibilitado de formular
qualquer frase que fosse. Como eu também estava
completamente fora de mim, decidi aproveitar o
momento e deixar as perguntas para depois.
Absorvi cada gota de prazer que
embebedava o meu espírito. Admirei o Universo
girando a nossa volta, o brilho das estrelas e o seu
corpo nu me possuindo com vontade. Beijei-o em
vários momentos, quando a surpresa se tornava
grande demais para que eu suportasse sozinha,
como se a troca de nossas salivas fosse o bastante
para dividir o peso que era gozar continuadamente
e, ao mesmo tempo, mergulhar através do espaço.
Meu desejo era dividir a minha vida, minha
existência inteirinha, como ele tinha feito comigo.
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O clímax foi esmaecendo aos poucos, após


longos minutos de intensa entrega. Senti minha
consciência voltando, as memórias do Gê
desaparecendo e o Universo dando lugar à nave
onde deveríamos estar. No lugar de todas as
surpresas, apenas uma saudade enlouquecedora
preencheu o meu peito.
Gê nos desencaixou e se deixou cair sobre
mim, ofegante. Ergueu o olhar avermelhado para
me encarar de muito perto. Percebi que eu estava
completamente molhada de suor devido ao seu
calor, que não parava de emanar, e ao esforço físico
e psicológico que o momento me proporcionara.
— Gê... — balbuciei, embasbacada. — O
que significou tudo isso?
Ele balançou a cabeça em negativa,
parecendo tão assustado quanto eu.
— Significou que deu certo — murmurou.
Sua respiração continuou errática feito a minha. Ele
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engoliu em seco e envolveu as mãos nas laterais do


meu rosto. — Estrela... Os venusianos possuem
uma experiência transcendental quando procriam.
Diferente dos humanos, que procriam de maneira
excepcionalmente física e, às vezes, emocional.
Soltei o último arquejo, sentindo meu corpo
voltando ao normal devagarzinho.
— Foi uma experiência... fantástica! —
Sorri, emocionada de verdade. Mal tinha acabado e
eu já queria de novo. Era como entrar numa
montanha-russa viciante. No entanto, Gê
permaneceu sério, o extremo oposto de como eu me
sentia. — O que foi?
Ele suspirou e se deixou cair de lado. Pensei
que se distanciaria de vez, por isso dei graças a
Deus, aliviada, quando me puxou para si, apoiando
nossas cabeças nos travesseiros. Permanecemos
grudados, do jeito que eu queria.
— Estrela, não sei como foi acontecer, mas
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não é comum a senhorita, como terráquea, ter uma


experiência psíquica tão evoluída.
Dei de ombros.
— O importante é que deu certo, não é? —
Alisei seu braço firme, e o Gê tirou uma mexa de
meu cabelo que estava colada na bochecha. —
Tivemos uma experiência física, emocional e
transcendental.
Ele aquiesceu e abriu um sorriso tímido.
— Eu a vi — Gê comentou em voz baixa.
— Vi a sua vida do princípio até este instante,
Estrela.
— Sério? — Abri os olhos, admirada. — Eu
também vi você!
— Viu? — Gê apoiou o corpo no cotovelo,
encarando-me com atenção. — A senhorita...
transcendeu a minha existência?
— Sim! Foi o máximo, Gê! Depois quero
que me fale mais a respeito de...
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— Como é possível? — Gê se sentou,


apavorado, e ficou me olhando como se eu fosse
uma aberração. — Estrela, não compreendo como
chegamos a este nível de envolvimento telepático.
Fizemos uma troca de experiências simultâneas.
Para que isso ocorra, é fundamental que sejamos da
mesma espécie.
Ele estava realmente encafifado com aquela
história. Sinceramente, não queria saber como foi
possível, apenas era grata por ter tido a
oportunidade.
Eu me sentei ao seu lado e comecei a
acariciar seus cabelos recém-pintados.
— Pelo visto, não é. Relaxa. — Gê
continuou me olhando com preocupação visível. —
Está tudo bem. Eu gostei de tudo.
Ele soltou um suspiro e me puxou
facilmente, de modo que me sentei com as pernas
abertas em volta de seu corpo. Gê apertou minha
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cintura e juntou nossas testas, repetindo o ato que


tínhamos feito mais cedo.
— Nunca pensei que fosse possível me
sentir tão feliz e satisfeito — suas palavras soaram
como música aos meus ouvidos. Sorri de orelha a
orelha.
Gê começou a girar a ponta de seus dedos
sobre a minha pele.
Tomei a iniciativa e o beijei
demoradamente, prometendo a mim mesma que só
o largaria quando os meus lábios não suportassem
mais. Era incrível que eu estivesse tão plena, tão
completa, porém ainda tão sedenta. Percebi que ter
o Gê se tornaria o meu mais novo vício.
Eu só rezava para que ele também tivesse se
viciado tanto quanto eu.

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21

Abri os olhos devagar, como alguém que


desperta de um sonho maravilhoso, e logo procurei
vestígios de que aquele sonho, na verdade, havia
sido realidade. O primeiro sinal foi o meu corpo nu
e grudento pelo suor que tinha secado. O segundo
foi uma dorzinha boa de ser sentida entre as minhas
pernas. O terceiro foi a felicidade que não me
permitia sentir menos do que plena satisfação. Sorri
amplamente e rastejei pelos lençóis à procura do
Gê. Não o encontrei, por isso me sentei de imediato
para tentar localizá-lo pela nave, já pedindo aos
céus para que ele não tivesse me deixado sozinha
depois de uma madrugada tão intensa.

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Eu o vi sentado sobre uma mesa prateada,


que parecia importante por possuir vários pseudo-
botões, usando apenas a calça jeans e comendo uma
banana despreocupadamente. Estava tão belo, com
aqueles cabelos loiros assanhados e os músculos
visíveis, que soltei um suspiro ruidoso, chamando a
sua atenção para mim. Nossos olhares se cruzaram
e meu sorriso se intensificou. No entanto, Gê não
sorriu de volta, manteve-se sério e parecia
temeroso.
— Bom dia, Gê — saudei, espreguiçando-
me, tentando soar natural para não enlouquecer
com a sua seriedade fora de contexto. Eu sabia que
tínhamos feito uma grande loucura, mas foi tudo
muito delicioso e valera a pena. Não me sentia nem
um pouquinho arrependida. — Como está se
sentindo?
— Eu me encontro em perfeito estado,
senhorita — falou em um murmúrio, mastigando
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sua fruta favorita. Não senti verdade em seu timbre.


Gê manteve seus olhos em mim, mas sua mente
parecia muito distante. — Desejo um bom dia e
também que esteja se sentindo ótima.
— Eu me sinto maravilhosa!
Levantei-me da nossa cama improvisada.
Pensei em levar um lençol comigo, mas estava a
fim de provocá-lo na intenção de termos outra
rodada pela manhã. Sexo matinal podia ser perfeito,
mas, com aquele venusiano, com certeza seria além
do fantástico. Caminhei sensualmente até ele,
percebendo seu olhar vermelho fixado em meu
corpo exposto, do jeito que eu queria. Jamais me
cansaria de encontrar o desejo em sua expressão,
pois Gê ficava ainda mais lindo aos meus olhos.
Coloquei-me entre as suas pernas e tomei a
liberdade de dar uma mordida na banana em suas
mãos. Olhei-o atentamente enquanto mastigava
devagar, tão próxima que dava para sentir o cheiro
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que eu tinha deixado em seu corpo. Gê permaneceu


estático, como se não soubesse exatamente o que
fazer com a minha presença. Sua visível inocência
só me deixou ainda mais louca de vontade de tê-lo
outra vez.
— A senhorita sente fome? — ele
perguntou, desviando o rosto por alguns segundos.
Estava desconcertado e eu não sabia como era
possível, principalmente depois do que fizemos.
Não era para haver nenhum tipo de vergonha entre
nós. Eu o conhecia mais do que qualquer outra
pessoa.
— Estou faminta, mas não é de comida... —
sussurrei, passando meus braços ao redor de seu
pescoço. — Estou com fome de você, Gê.
— Estrela... — ele deixou a fruta de lado e
segurou meus ombros, afastando-me um pouco. Eu
estava desejosa e meio cega, mas ainda assim
consegui ver o desespero em seu semblante
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iluminado. Gê estava com medo daquela intimidade


toda. Finalmente, sua razão havia retornado. —
Espere um pouco, por favor. Nós... Precisamos...
Eu acredito que temos a necessidade de iniciar uma
conversa.
— Gê... Eu sei o que está pensando —
tomei a iniciativa, ganhando um pouco de distância
apenas para encará-lo.
— A senhorita sabe?
Aquiesci.
— Sei que está se sentindo mal pelo que
fizemos. Sei que se considera um inconsequente e
que não sabe como agir comigo de agora em diante.
— Gê aquiesceu devagar, concordando, e eu resolvi
prosseguir: — Mas você não precisa ter nenhuma
preocupação. Nós, humanos, tratamos o sexo de
maneira diferente. Não sou nenhuma donzela
indefesa buscando compromisso, Gê, sou apenas
uma mulher que faz o que sente vontade.
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Ele ficou me encarando muito tempo depois


que terminei de explicar. Quando eu estava quase
abrindo a boca para perguntar se tinha me
entendido, Gê perguntou com ar extremamente
confuso:
— A senhorita não busca nenhum
compromisso?
— Claro que não! — Sorri, meio sem saber
se aquilo era verdade. Obviamente, Gê e eu não
podíamos ter um relacionamento, certo? Eu que
não iria assustá-lo dizendo que pensava nessa
possibilidade, pois era muito sem sentido e ele me
julgaria uma perturbada da cabeça. — Como você
já disse antes, nós, humanos, somos muito físicos.
Não ligamos, necessariamente, sexo a sentimentos.
Portanto, não se sinta pressionado a nada, Gê.
Estamos apenas nos divertindo, aproveitando a
companhia um do outro. Não precisa sentir nenhum
medo.
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— A senhorita não crê que sexo necessita


de sentimentos... — ele balbuciou, encarando-me
de um jeito ainda mais assustado. Gê parecia
profundamente embasbacado com aquela
conclusão, como se fosse uma grande novidade.
Não fazia o menor sentido. — É uma criatura...
meramente física.
Eu não sabia se tinha falado alguma besteira
para deixá-lo tão transtornado. Ainda estava
sonolenta e só queria que ele parasse de ficar
assustado e me beijasse de uma vez por todas.
— Não sou meramente física, Gê, fui capaz
de te sentir de muitas formas — expliquei, tentando
me fazer ser entendida. — Só quero que entenda a
situação como um todo. Você também não acredita
que sexo tenha a ver com sentimentos, lembra?
Você mesmo me disse que era mais lógico os
venusianos se juntarem para procriarem sem
necessitar de parceiros. Portanto, não se preocupe.
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Compreende o que eu quis dizer?


Gê assentiu e mordeu os lábios.
— Sim, Estrela, eu a compreendi — seu
timbre saiu meio esquisito, como se estivesse
embargado, porém não tive certeza. — A senhorita
não quer que eu me preocupe com um suposto
compromisso, pois não é de seu interesse.
— Exatamente! — Sorri e me aproximei de
novo, já que todos os pingos estavam em seus
devidos is. Como a sua seriedade havia retornado
de repente, mantive-me estática, um pouco
temerosa em avançar o sinal. Meu sorriso morreu
ao perceber sua expressão robótica. — Não precisa
fazer nada se não quiser, Gê. A regra é essa: fazer o
que sentirmos vontade.
— Perdoe-me se soar indelicado, Estrela,
mas não desejo fazer absolutamente nada neste
momento. Sugiro que vista suas roupas para que
possamos deixar a 14038 — Gê soltou um
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resmungo, pegou a banana e desceu da mesa,


obrigando-me a dar alguns passos para trás. Eu o
olhei sem acreditar em suas palavras tão frias.
Bufei, irritada de verdade.
— Soou indelicado pra cacete, se quer saber
— virei as costas, fazendo o caminho de volta para
o edredom, onde eu sabia que poderia encontrar a
mochila e pegar roupas limpas.
— Perdoe-me... Eu...
Sequer olhei para trás diante de suas
desculpas. Comecei a me vestir em silêncio,
sentindo-me a pior das criaturas e sem entender
nadinha a respeito do comportamento do Gê. Logo
eu, que achava que o conhecia, não fazia a menor
ideia do que estava pensando e por que agia de
forma tão cretina. Dar um fora numa mulher nua e
toda fogosa era um grande pecado. Ainda que ele
não estivesse a fim de transar, havia milhões de
formas mais delicadas de deixar claro.
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— Estrela... — Gê se aproximou depois que


vesti uma calça e uma blusinha.
— Vamos voltar ao casarão — fui taxativa,
passando por ele já com a mochila nas costas. —
Acho melhor deixar os lençóis aí, se vamos passar
a dormir aqui todas as noites.
— Tudo bem. — Ouvi o Gê soltar um
suspiro e tomei coragem para encará-lo. Seu
semblante estava tão transtornado quanto antes.
Em nome da belíssima madrugada que
passamos, de todas as carícias recebidas e dos seus
murmúrios de prazer em meu ouvido, respirei
fundo e tentei manter a calma. Eu sabia que aquela
criatura era bondosa, humilde, prestativa e incapaz
de machucar alguém, seja por qualquer motivo.
Não era possível que eu estivesse tão errada ao seu
respeito, eu me recusava a crer, principalmente
porque duvidava muito de que aquelas lembranças
tinham sido mentirosas.
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Portanto, achei por bem perguntar de uma


vez:
— Gê, o que está havendo? Por que está tão
estranho? Por que me tratou assim, poxa? — Ele
permaneceu em silêncio, porém deu de ombros.
Decidi me aproximar com cuidado. — O que
houve? Fala comigo, por favor.
— Eu apenas não posso prosseguir, Estrela
— ele falou baixinho, tocando a lateral do meu
rosto repentinamente. Seu dedo suave circulou pela
minha pele, arrepiando-me. — Perdoe-me, de
verdade, por ter soado grosseiro. Não foi a minha
intenção. Jamais será minha intenção deixá-la
chateada.
— Eu quero te entender, Gê. Por que não
pode prosseguir?
— Porque não sou assim, Estrela, não é de
minha natureza. A senhorita foi o primeiro ser vivo
com quem tive um contato tão íntimo — confessou,
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e do nada as lembranças voltaram à minha mente.


De fato, não me lembrava da presença de nenhuma
parceira na vida do Gê. Não houve uma venusiana
ou qualquer ser que tivesse em seus braços como eu
estive. A surpresa me fez abrir a boca. — Não acho
correto termos um relacionamento meramente
humano baseado em vontades físicas e desejos
infundados. Perdoe-me, mas não posso.
Assenti, por um lado, compreendendo-o. Gê
era bom demais para manter uma relação daquela
espécie. Precisava respeitar sua natureza como
venusiano. Se não podíamos nos relacionar de
verdade, por causa das tantas diferenças, então eu
deveria entender de uma vez e agir de acordo com
isso, sem forçar a barra.
— Certo — murmurei, pensando sobre o
que faria para esquecer uma noite inesquecível.
Além disso, pensei também no que faria para não
desejar ardentemente uma segunda dose. — Eu fico
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muito feliz por ter tido a chance de te conhecer


melhor, Gê. Me sinto muito honrada também por
ser sua primeira. Eu... gosto muito de você.
— O sentimento é recíproco, Estrela — Gê
respondeu e, sabendo que ele não se adiantaria,
tomei a liberdade de abraçá-lo com força. O
extraterrestre devolveu o abraço sem pestanejar, o
que me deixou muito feliz. Já sentia tanta saudade
daquele corpo que achei melhor nem pensar a
respeito, caso contrário cairia no choro. — A
senhorita é realmente uma humana peculiar. Passou
por alguns sofrimentos em sua existência e ainda é
capaz de sorrir e de ser bondosa. Eu me sinto
prestigiado por conhecê-la demasiadamente, e devo
admitir que a senhorita é ainda mais especial aos
meus olhos após nosso... momento íntimo.
— Digo o mesmo, Gê. — Eu me afastei
antes que as lágrimas escorressem e ele fizesse
perguntas. Não queria preocupá-lo de forma
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alguma, apenas desejava respeitar suas vontades e


agir com maturidade pelo menos uma vez na vida.
Gê merecia a minha total consideração. — Vamos
voltar para o casarão?
— Certamente — ele assentiu, encontrou
sua camisa jogada ao chão e a vestiu ligeiro. —
14038, retornar.
A nave obedeceu ao comando prontamente.
O teto envidraçado foi forrado por uma superfície
opaca e metálica. O ovo foi ganhando forma de
novo, deixando-me com a velha sensação de
sufocamento, até que ele, finalmente, abriu-se em
camadas. Deixei a nave com um pulo e o Gê me
seguiu um instante depois. Os raios solares já
iluminavam a mata. Pude ouvir o cantar de alguns
pássaros e a brisa fresca correndo entre as árvores.
Nem parecia o lugar sinistro que ficava à noite.
— 14038, encerrar funcionamento — Gê
deu o último comando e a nave se fechou
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completamente, provocando um estalido. — Creio


que a senhorita deve estar... — Ele se virou na
minha direção e parou. Sua expressão ficou em
choque, observando alguma coisa além de mim.
Olhei para trás num impulso, sem saber o
que tanto havia o assustado. Para o meu total
estarrecimento, a minha caminhonete se encontrava
ao lado de uma grande árvore, completamente
reparada. Não havia nenhum sinal de que esteve
destruída em algum momento.
Corri até ela, estupefata, reparando que,
sim, era mesmo a minha caminhonete.
— Estrela... A senhorita pediu a algum
funcionário para que consertasse o seu veículo? —
Gê perguntou atrás da mim, a seriedade evidente
em sua voz.
Toquei no capô lisinho e suspirei. Balancei
a cabeça em negativa.
— Gê... — Virei-me em sua direção.
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Minhas mãos e pernas estavam trêmulas. — Você


precisa me contar mais detalhes sobre o
experimento Estrela X-189.
— Perfeitamente, senhorita, mas por qual
motivo se lembrou do experimento neste instante
confuso? — Seus olhos vermelhos ainda estavam
bem abertos, prova de que o Gê tentava controlar o
medo como podia. Com certeza já tinha percebido
que tudo aquilo havia sido obra dos Recolhedores,
só não queria me assustar.
O problema era que eu já estava
completamente apavorada.
— Porque eu sei exatamente o que os
Recolhedores querem — falei de uma vez, antes
que o meu coração saísse pela boca.

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22

Gê fez uma grandiosa careta de


interrogação, porém me abstive de lhe oferecer
qualquer resposta elaborada, até porque meu
coração batia acelerado e as ideias pareciam se
enroscar dentro do meu cérebro. Eu ainda estava
surpresa com o fato de ter a caminhonete
devidamente consertada pelos recolhedores, uma
prova concreta de que o sonho da noite anterior não
havia sido um sonho coisa nenhuma. Como
percebeu que eu estava perturbada demais até para
falar, Gê apenas deu de ombros e me guiou de volta
para o ovo, creio que para finalmente me mostrar o
experimento que levava o meu nome.

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Depois de murmurar os comandos de praxe,


a nave, nosso ninho de prazer da noite passada —
que, infelizmente, não se repetiria e ficaria apenas
na minha memória, arrancando-me todo o juízo —,
tornou a se abrir em camadas. Entramos em
silêncio, temerosos, com olhares desconfiados
apontados para toda a parte e, ao mesmo tempo,
para lugar algum. Não sabia onde aquela treta toda
terminaria, mas tinha certeza de que não queria
entrar numa guerra com os extraterrestres, seres
muito mais inteligentes, fortes e preparados do que
eu. Portanto, precisava saber exatamente que tipo
de acordo eu havia feito sem ao menos tomar
conhecimento.
Gê me levou até um compartimento dentro
da nave. Abriu uma espécie de porta toda prateada,
e eu me perguntei como não a havia reparado antes.
Uma pequena cabine se fez presente diante de nós.
Nela, havia apenas uma poltrona e nada mais, até
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porque o espaço era bem limitado, meio


claustrofóbico. Havia muitos botões por toda parte,
mas eu supus que não fossem botões de verdade,
como todos os outros. Aquela criatura
impressionante apontou para frente, como se me
convidasse a entrar.
— É isso? — murmurei, meio surpresa e
curiosa, observando cada reentrância
meticulosamente construída. Aquela nave me
surpreendia a cada segundo. — Essa cabine é o
experimento?
— Não exatamente, senhorita, porém este
espaço é estritamente necessário para a sua
segurança e a do experimento — Gê falou com a
voz mais grave, indicando que também estava
nervoso com a situação. — Por favor, queira
repousar sua mão neste quadrado — apontou para
uma cavidade luminosa ao lado da porta.
Não fiz perguntas, apenas o obedeci. Senti
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uma energia estranha alcançando a minha mão e


invadindo todo o meu corpo, como uma força
invisível que se espalhava com facilidade. A nave
se acendeu e fez alguns ruídos estranhos, voltando
a se fechar ao nosso redor. Algumas palavras
estranhas foram emitidas pelo ovo, e o Gê
murmurou mais esquisitices em resposta. Eu estava
bem confusa naquele momento, até que algumas
luzes azuladas piscaram na passagem para a cabine
e depois de foram completamente.
— O que foi isso? — resolvi perguntar
depois que tudo ficou silencioso.
Gê soltou um suspiro consternado.
— Apenas a senhorita é capaz de entrar
nesta cabine — apontou para a poltrona, e eu dei
um passo trêmulo para frente. Gê se manteve do
lado de fora. Virei-me para encará-lo. — Criei um
sistema avançado de segurança com base não
somente em suas digitais, mas em seu DNA, de
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forma que é impossível outra criatura burlá-lo.


— Nem você pode entrar? — engoli em
seco, nervosa por estar começando a compreender
o que os recolhedores queriam de mim.
Gê apenas balançou a cabeça em negativa.
— A 14038 reconhece a sua presença,
Estrela. O funcionamento é interrompido diante de
qualquer eventualidade fora dos padrões exigidos
pelo sistema. Apenas a senhorita é capaz de utilizar
o experimento Estrela X-189.
Olhei ao meu redor, atônita.
— E onde está o experimento?
Gê abriu um leve sorriso.
— Sente-se — indicou, e eu prontamente
fiz o que pediu.
A poltrona era extremamente confortável,
parecia se moldar ao meu corpo como se tivesse
sido feita para me receber. Os botões começaram a
piscar e finalmente enxerguei duas cavidades
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luminosas na minha frente. Por instinto, e porque o


Gê já tinha mencionado um local onde eu podia
depositar as mãos para tocar uma estrela de
verdade, afundei nos meus braços. A superfície era
gelada e escorregadia, o que me trouxe certo receio,
porém aquele material intergalático se ajustou às
minhas mãos como se fosse uma luva antiga, já
acostumada comigo. A nave soltou mais ruídos.
— É com isso que vou tocar uma estrela?
— murmurei, tão surpresa quanto emocionada.
Meus olhos marejaram pelo simples fato de estar
ali, dentro de um lugar especialmente criado para
atender ao meu desejo infantil.
— Certamente, senhorita.
Olhei para o lado e percebi que o Gê ainda
mantinha um sorriso. Finalmente entendi os
motivos de sua repentina alegria. Ele estava
orgulhoso por me ver no lugar que criou com tanto
esmero, durante anos de trabalho árduo. Fiz o
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possível para conter as lágrimas. Se eu já estava


assim naquele instante, imagina quando
estivéssemos realmente no espaço, bem pertinho do
sol? Não dava para mensurar a emoção que me
invadiria, portanto me concentrei somente em
movimentar as mãos, percebendo que a luva era
maleável e permitia que eu me locomovesse
perfeitamente.
— Por que X-189? — questionei, curiosa.
— Porque as outras 188 tentativas não
foram satisfatórias — Gê respondeu em um timbre
tranquilo. Eu o encarei com os olhos arregalados.
— Mesmo? 188 tentativas? Caraca, Gê!
— A senhorita considera um número
excessivo?
— Claro que sim! Poxa vida, você teve uma
força de vontade impressionante. Estou muito
surpresa e... — engoli em seco para não deixar as
lágrimas escorrerem —... emocionada com tudo
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isso.
— A senhorita deveria, então, tomar
conhecimento de que o nome da nave não é em
vão. Confesso que ela me deu muito mais trabalho
para ser construída do que o experimento em si.
— 14038?! — quase gritei. Ele aquiesceu
de um jeito divertido, capaz de me arrancar um
suspiro. — Está brincando comigo, Gê! Não pode
ser sério!
— De forma alguma, Estrela. Jamais
brincaria com a senhorita a respeito de um assunto
tão importante.
— Mas 14038? Isso explica você ter
demorado trezentos anos. — Retirei minhas mãos
do experimento. Esperava vê-las sujas de algum
líquido nojento, mas estavam limpinhas, o que me
deixou em dúvida sobre o conteúdo escorregadio da
luva. No entanto, decidi não fazer perguntas por
acreditar que a resposta seria irrelevante.
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— A senhorita agora pode me informar o


que os Recolhedores querem?
Soltei um profundo suspiro. Levantei-me da
poltrona confortável e deixei a cabine na intenção
de me aproximar do Gê. Eu ainda não acreditava
que o tive dentro de mim há algumas horas. Que
passamos por momentos deliciosos e
transcendentais. Eu o olhava de uma forma
totalmente diferente do que antes, muito mais
especial. Meu coração doeu ao encarar seus olhos
vermelhos atentos. Não dava para evitar querê-lo
mais do que qualquer coisa que eu já quis na vida.
Era uma pena que as nossas diferenças nos
separassem.
— Eu acho que ontem à noite não tive um
pesadelo... Sabe, antes da gente... — olhei-o
significativamente. Tive a impressão de que o Gê
fez uma careta ao recordar a nossa noite. Busquei
fôlego para começar a explicar: — Foi um contato
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psíquico. Os Recolhedores querem o experimento e


vieram me pedir como se eu o possuísse. Agora,
entendi tudo. Só eu posso entregá-lo, talvez por
este motivo eles não te levaram na outra noite.
Gê intensificou a sua careta, daquela vez
demonstrando pura confusão.
— Estrela... Eles não possuem nenhum
conhecimento sobre o experimento. Eu o criei em
total sigilo.
— Não sei como, Gê, mas eles conhecem o
experimento, sim, senhor — dei de ombros. — O
cara falou perfeitamente o nome “Estrela X-189”.
— Quem?
— O Recolhedor. Não sei quem é, ele
estava encapuzado. Se bem que eu com certeza não
saberia mesmo se pudesse ver o seu rosto.
De repente, Gê abriu um pouco mais os
olhos e ficou me observando como se eu fosse uma
aberração.
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— O que foi?
— Nada — murmurou, tão baixo que não
me convenceu. — A senhorita precisa se alimentar
e se dedicar ao trabalho em suas terras. Vamos
retornar.
— Espera, Gê... — segurei sua mão no
impulso. Uma onda de calor invadiu a minha pele e
não evitei soltar mais um suspiro. As lembranças da
noite passada ainda estavam muito vívidas. Sentia
que ainda o pertencia profundamente, mesmo que
ele não me quisesse mais. Olhamos, juntos, para
nossas mãos. Resolvi soltá-lo antes que começasse
a dar piti. — O que aconteceu? Você pareceu ter se
lembrado de alguma informação importante.
— Não foi nada, Estrela.
— Promete?
Ele aquiesceu, mas não me encarou como
sempre fazia em situações sérias. Naquele
momento, soube que o Gê tinha mentido muito feio
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para mim. Porém, não era minha intenção


pressioná-lo. Se não queria me dizer naquela
conturbada manhã, em algum instante eu sabia que
diria, quando estivesse mais preparado.
Obviamente, a curiosidade me preencheria até lá.
— E o que vamos fazer a respeito dos
Recolhedores? — perguntei enquanto seguia o Gê
para fora da nave. Ele parecia ansioso para deixar a
mata. Não que eu também não estivesse, mas vê-lo
daquela forma me deixava pior.
— Eu a protegerei com a minha própria
vida, Estrela — Gê falou em um tom decidido,
porém ainda sem me encarar. — Não permitirei que
nenhum mal a alcance.
Deixamos o ovo, não antes de o Gê soltar o
último comando para fechá-lo. Andamos na direção
da caminhonete como se já estivesse combinado
que o nosso retorno seria dentro dela. Melhor
ainda, pois eu não estava mesmo disposta a
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caminhar até o casarão. Pelo menos aqueles


malditos extraterrestres haviam devolvido o antigo
veículo do meu pai. Aquela precisava ser uma boa
notícia diante de tantos desastres.
Entramos juntos na caminhonete. A chave
estava miraculosamente na ignição.
— Mas não vamos entregar o experimento a
eles? — questionei antes de dar a partida. — Foi
um acordo, Gê. Pedi a minha caminhonete em troca
do experimento.
Sua expressão se agravou.
— A senhorita fez um acordo através de um
contato psíquico? — Gê me ofereceu um olhar de
desaprovação. — Trocou um experimento
avançado por um veículo humano? Por quê?
— Eu não sabia que era um acordo — dei
de ombros, sentindo-me uma verdadeira idiota.
Meu jeito doidinho de falar e eu, sabia que juntos
daríamos errado em algum dia. Só não fazia ideia
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de que daria tão errado. — Eles que me entenderam


mal!
— A senhorita têm ciência da gravidade da
situação? — continuou com aquele olhar que fazia
com que eu tivesse vontade de me atirar pela janela
e sair correndo. — Um acordo dificilmente é
rompido pelas leis universais. Por meio de um
contato psíquico, que pode ser arquivado e
visualizado a qualquer momento, há provas contra
a senhorita caso não cumpra com a parte que lhe é
cabível.
— Eu... Eu não sabia... disso.
Gê soltou um suspiro e desviou o olhar,
porém não me senti menos idiota que antes. Se
tivesse um concurso para reunir os seres que mais
faziam merda em toda galáxia, eu certamente
ganharia um prêmio.
— Não há qualquer forma de entregar o
experimento aos Recolhedores, Estrela —
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desabafou em mais um suspiro. — Não é algo que


eu possa arrancar da nave e oferecer. O sistema se
desintegraria antes que conseguíssemos movê-lo.
— E agora? — Meu coração estava na mão.
O medo parecia pulsar junto com o meu sangue.
— Se os Recolhedores pretendem utilizar o
experimento, seja para qualquer finalidade, então
terão que... — Gê voltou a me olhar. Parecia muito
mais do que chateado. Estava triste de verdade. —
Levá-la.
Cada nervo do meu corpo entrou em
choque. Eu tinha um problemão dançando funk
bem na minha cara e não fazia ideia de como
resolver. Nem mesmo aquele extraterrestre
experiente e muito mais sábio parecia ter alguma
saída.
Só podia significar uma coisa: eu estava
irremediavelmente ferrada.

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23

Enquanto tomava um banho revigorante,


esperando a água do chuveiro me deixar mais
calma e levar todos os vestígios deixados pelo Gê
na noite anterior — embora este último não fosse o
meu desejo —, pensava na imensa confusão em que
eu havia me metido. Era certo que os Recolhedores
voltariam exigindo o experimento, e pior, que eu os
entregasse pessoalmente. Eu não estava nem um
pouco pronta para ser levada por extraterrestres
esquisitos que tinham planos desconhecidos ao meu
respeito. Já bastava ter acontecido uma vez, quando
eu era criança.
Os pensamentos durante o banho geraram

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muitas perguntas, mas eu sabia quem poderia


respondê-las com propriedade. Eu me enrolei em
uma toalha e abri a porta devagar, já sabendo que o
Gê estaria escorado na madeira, protegendo-me de
uma repentina invasão alienígena. Ele tinha ficado
meio neurótico desde que deixamos a mata, não
permitindo que eu ficasse longe de suas vistas nem
por um segundo. Sua proteção era muito bem-
vinda, para ser sincera. Eu estava com medo da
minha própria sombra, porém não deixaria meu
pavor transparecer, pois não queria assustá-lo ainda
mais.
O olhar avermelhado e atento foi colocado
sobre o meu corpo molhado por um segundo,
depois subiu para os meus olhos e assim
permaneceu, evitando me analisar com mais
cautela. Eu não soube dizer o que senti ao perceber
seu desejo por mim sendo reprimido de uma forma
tão brusca, como dois desconhecidos que nada
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sabiam sobre o outro. Havíamos tido uma


experiência surreal, que nos permitiu adentrarmos
em nossa intimidade da forma mais ampla que
poderia existir. Gê não deveria se mostrar
envergonhado diante de minha quase nudez.
Aquilo tudo fez com que eu me lembrasse
de uma grande dúvida que tive ao lavar o meu
corpo.
— Gê... Não deixei de reparar que... —
Olhando para ele fixamente e recebendo seu olhar
marcante de volta, fiquei constrangida para fazer o
tal questionamento, por isso parei por alguns
segundos. Não sabia direito como escolher as
palavras.
— O que a senhorita reparou? — Sua
expressão estava assustada. Eu o havia deixado
meio traumatizado, coitado. Gê, dali em diante,
esperava que eu lhe oferecesse mais doses de
péssimas notícias, tudo graças à minha costumeira
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falta de tato. — Estrela?


— Calma. É que... Bom, nós não usamos
nada para nos proteger. — Comecei a enroscar as
mãos na barra da toalha, completamente
envergonhada. Logo eu, que havia me entristecido
com a vergonha do Gê, estava agindo da mesma
forma. — E não senti, sabe, nenhum líquido
escorrendo em momento algum. Não havia nada.
Ele agravou ainda mais a expressão.
— Não tenho certeza de tê-la
compreendido, senhorita.
— Eu... Não sei se... Sai algum líquido ou...
— Acenei para o ponto abaixo de seu umbigo,
numa tentativa patética de fazê-lo me entender.
— Ah! — Gê soltou um resfolego e, em
seguida, puxou o ar para os seus pulmões, se é que
ele possuía esse órgão em seu sistema. —
Certamente a senhorita estranhou o fato do meu
corpo não liberar nenhum excremento durante o
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nosso ato de copulação.


Se eu não estivesse tão aflita, sem dúvida
cairia na gargalhada com a sua escolha de palavras.
Em vez de chorar de tanto rir, apenas chacoalhei a
cabeça, aquiescendo e aguardando a sua
explicação.
— Eu me encontro extremamente curioso.
O que a senhorita esperava?
Dei de ombros.
— Não sei. Alguma gosma esverdeada ou
azul, talvez. Qualquer coisa. Só não esperava esse...
nada.
Gê abriu um leve sorriso, mas logo o
apagou. A preocupação não o abandonava. Decidi
que eu não gostava de vê-lo daquele jeito. Queria
que relaxasse, que ficasse mais leve, porém a
situação exigia muito dele. Não dava para pedir que
deixasse de se preocupar. Eu poderia ser levada a
qualquer momento, afinal de contas. Abracei o meu
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próprio corpo na tentativa de conter um arrepio.


— Os venusianos férteis costumam excretar
um líquido transparente bastante similar ao seu —
Gê informou de maneira quase didática. — A
senhorita mal o diferenciaria. No entanto, sou
infértil, por este motivo não tenho como oferecer
qualquer sinal de futura vida.
Assenti novamente.
— Então, não preciso mesmo me preocupar
em ficar grávida, né?
Gê abriu bem os olhos.
— De forma alguma, Estrela. É impossível
um venusiano gerar vida com uma terráquea. Ainda
que eu fosse fértil, seria impraticável. Lembra-se do
exemplo do cavalo e da galinha?
— E voltamos ao maldito cavalo e à
galinha... — Revirei os olhos, um tanto impaciente.
— Mas acho que entendi. Somos de espécies
diferentes, por isso não procriamos.
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— Perfeitamente.
Eu queria fazer mais perguntas a respeito,
porém de nada adiantaria. Gê já tinha me repelido
completamente e nós nunca mais faríamos aquele
sexo maravilhoso de novo. Era uma pena. Na
verdade, meu peito doía apenas em pensar que eu
jamais o sentiria de novo. Contudo, precisava
deixar a poeira baixar, tentar esquecer o que
fizemos e, principalmente, concentrarmos nossas
atenções na resolução do problema com os
Recolhedores.
Andei até o armário com o objetivo de
separar roupas limpas para vestir.
— Não vai tomar o seu banho? — perguntei
sem olhá-lo.
— Neste momento, estou tentando
encontrar uma maneira de me lavar sem deixá-la
sozinha.
Eu poderia dizer para que não se
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preocupasse e tomasse banho em paz, mas a


verdade era que eu também tinha medo de me
distanciar dele. Fiz uma expressão de quem estava
com tudo sob controle — pura balela — e falei com
a voz mais firme que consegui:
— Não sairei daqui, prometo. Se preferir,
deixe a porta aberta.
— Desde que a senhorita mantenha
comunicação constante comigo.
— Está certo. — Sorri para acalmá-lo. Gê
se perdeu no banheiro, deixando a porta
escancarada do jeito que sugeri, e eu percebi que
não sabia bem o que falar. Tive real vontade de
adentrar sua intimidade e vê-lo se despindo, depois
se banhando. A saudade de seu corpo e de seu
cheiro chegava a ser gritante.
Eu realmente não sabia o que faria com as
lembranças do nosso momento transcendental.
— Estrela? Comunique-se comigo, por
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favor! — Gê falou do banheiro, assustando-me um


pouco com seu timbre mais alto. Saí dos meus
loucos devaneios.
— Eu não sei direito o que dizer, Gê —
respondi no mesmo tom, começando a vestir a
calcinha de algodão, bem confortável. Eu precisaria
do maior conforto possível para afrontar os
Recolhedores. — Tenho curiosidade de saber sobre
o dia em que nos conhecemos.
— O dia em que minha nave se chocou
contra o seu milharal?
Ouvi o ruído da água do chuveiro caindo no
chão.
— Não. Falo de quando eu era criança e fui
abduzida. O que você sabe sobre a minha abdução,
Gê? O que fizeram comigo? Por que me pegaram?
— Ele ficou calado por alguns instantes. Tempo
demais para a minha paciência suportar. — Gê?
Você me ouviu?
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— Sim, senhorita, perfeitamente.


— Não pode responder essas perguntas? —
Fiz um muxoxo, insatisfeita. Terminei de vestir a
calça jeans e me sentei na cama a fim de calçar as
botas.
— Eu era apenas um funcionário primário,
Estrela. Não sei exatamente o que fizeram com a
senhorita, nem mesmo com que objetivo. Meu
serviço era apenas monitorar as gaiolas.
— Gaiolas? — Fiz uma careta, imaginando
um monte de gente presa feito bicho por aqueles
extraterrestres. — Havia mais gaiolas tipo aquela
em que me colocaram?
— Dezenas.
— Puta merda... — balbuciei bem baixinho,
de forma que o Gê não ouviu. — Quer dizer que os
Recolhedores abduzem humanos para fazer
experimentos desconhecidos e trancá-los como
animais?
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— Todos são soltos em algum momento,


Estrela.
— Ainda assim, são presos sem
consentimento.
— Eu também não acho correto, jamais a
senhorita me verá defendendo tal atitude. Acredito
que deveria haver formas menos cruéis de estudar
os humanos sem ferir os direitos primários de todos
os seres vivos. — Permaneci calada, apenas
pensando sobre suas últimas palavras. Porém, o Gê
continuou: — Mas a senhorita precisa compreender
que nem todos os seres extraterrenos veem os
humanos com bons olhos.
— Sério? Por quê?
— Porque alguns consideram a raça
humana extremamente destrutiva e perigosa. Há
uma vertente que acredita que os humanos devem
ser extintos, mas o Conselho Intergaláctico jamais
autorizaria tamanha atrocidade.
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Aquela conversa ficava cada segundo mais


séria. Eu estava com a respiração presa e o coração
batendo acelerado diante das informações que o Gê
me oferecia.
— Você a-acha que a Terra corre p-perigo?
— perguntei aos gaguejos.
— A Terra corre perigo se os humanos
continuarem maltratando-a, utilizando os fartos
recursos sem qualquer responsabilidade.
— Falo de um ataque alienígena, Gê. Acha
que vão invadir a Terra e acabar com a raça
humana que nem nos filmes de ficção científica?
Ele demorou tempo demais para responder.
Soube o motivo quando aquela criatura
maravilhosa atravessou a porta do banheiro com a
cintura enrolada em uma toalha. Soltei um suspiro
totalmente involuntário.
— Eu não saberia responder, senhorita. —
Ele chacoalhou os cabelos tingidos e eu quase tive
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orgasmos múltiplos só de vê-lo tão maravilhoso. —


A maldade é comum a todas as espécies que
possuem certo nível intelectual. Nem mesmo
demasiada inteligência é capaz de contê-la.
Infelizmente, não posso garantir a integridade de
ninguém. — Ele se aproximou com cautela. —
Apenas a sua.
— Gê... Não passa pela sua cabeça que, se
os Recolhedores vierem me buscar, eles serão
muitos e estarão mais preparados do que nós? —
Eu me levantei da cama e me aproximei dele ainda
mais. Encarei-o seriamente. — Não acha que é
melhor pensarmos na melhor forma de nos
entregarmos de vez?
— Não — respondeu simplesmente, sem
qualquer adicional. Contudo, percebi o medo em
seus olhos. Gê sabia que eu estava coberta de razão
por pensar daquela forma. Sua esperança era
descabida.
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— Coloque suas roupas e não esqueça as


lentes — alertei, decidida a não entrar no assunto
de novo. Queria a paz enquanto ela me fosse
permitida.
Assim que ficamos prontos, deixamos o
meu quarto e logo encontramos dona Margarida
empolgada, andando para lá e para cá. Ela nos viu e
abriu um largo sorriso de contentamento.
— Estrelinha! Gê! Que bom que
levantaram. O café da manhã está na mesa!
— Por que a senhora está tão animada? —
Embora fosse uma pessoa extremamente agradável,
dona Margarida não era muito conhecida pelo bom
humor matinal. — Aconteceu alguma coisa?
— Fico feliz quando cozinho para uma
ocasião especial. Frederico e Valentim acabaram de
sair e aceitaram que o almoço de apresentação do
Gê fosse hoje.
Olhamos, juntas, para a criatura em questão.
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Gê estava com a expressão serena e um pouco


confusa, tudo ao mesmo tempo. Nem preciso
acrescentar o quanto estava lindo, com os cabelos
ainda molhados, recém-penteados.
— Sério? Valentim não falou nada? — Fiz
uma careta.
— Não estava com a cara muito boa, é
verdade. Mas estou preparando uma bacalhoada de
lamber os beiços, ele logo tira aquela carranca!
Antes que dona Margarida pudesse ir para a
cozinha, Gê acrescentou:
— Desejo que a senhora tenha um bom dia.
— Ah, que mal-educada eu sou... Bom dia,
Gê. Bom dia, Estrelinha! — saudou e saiu
cantarolando animadamente na direção de seus
afazeres.
Eu não sabia como reagir àquela situação,
por isso continuei olhando para o Gê. Sabia que seu
Frederico o encheria de perguntas constrangedoras
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e que o Valentim certamente ofereceria suas


alfinetadas, as quais o Gê não saberia lidar porque
não compreenderia nada. Porém, pensar no almoço
me faria esquecer um pouco que eu estava prestes a
ser levada por alienígenas, então não considerei a
ideia tão ruim.
Gê soltou um suspiro e finalmente me
deixou saber o que o afligia:
— Afinal, o que é uma bacalhoada,
senhorita?

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24

Gê não tirou os olhos de mim nem por um


mísero instante, enquanto eu dava conta de meus
deveres dentro da fazenda. Conferimos, juntos,
mais um carregamento de vinho, analisamos o
milho, checamos os cavalos e acompanhamos a
colheita na horta. Ele acabou conhecendo boa parte
dos funcionários, que o recebeu com a velha e
calorosa recepção de pessoas que vivem no campo.
Sua educação exacerbada foi capaz de conquistar a
todos, e por um momento imaginei como seria se o
Gê nunca mais voltasse para o espaço e ficasse
comigo para sempre. Seria bom demais para ser
verdade. Eu sabia que ele precisava retornar o mais

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breve possível, pois a Terra não era o seu habitat.


Sendo assim, não era justo que eu estivesse
tão envolvida. Já era péssimo demais olhá-lo e não
poder tocá-lo, observar seus modos sempre tão
calculados e saber que haveria um dia em que
nossos momentos não passariam de lembranças
perdidas. Acompanhar a sua preocupação evidente
para comigo, ouvir a sua voz falando daquele jeito
sempre tão correto, receber seu olhar fixo de
volta... Eram informações demais para o meu
cérebro processar. Eu não estava nem um pouco
imune aos seus encantos, de maneira tal que tudo
que o pertencia, tudo que vinha dele, deixava-me
derretida como uma bola de sorvete ao sol.
A notícia só podia ser péssima. Ainda que
eu tentasse me enganar, fingir que absolutamente
nada acontecia em meu peito toda vez que o Gê
encostava, sem querer, sua pele na minha, a
obviedade da situação me espantava. Eu me
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detestava por ter alcançado aquele limite, por ter


me permitido chegar ao cume da loucura.
Infelizmente, não pude fazer muita coisa a respeito,
se tudo que envolvia o Gê me fascinava em um
nível estratosférico. A verdade era apenas uma: eu
estava completamente apaixonada por um
extraterrestre. Precisava arranjar uma forma de
lidar com isso sem me sentir tão perdida.
A hora do almoço chegou e, com ela, o
nervosismo. Parecia que eu realmente apresentaria
um namorado à família que me restara, ou, sei lá,
talvez a real situação fosse pior do que uma mera
reunião familiar. Não era todo dia que eu tinha a
chance de apresentar um alienígena às pessoas que
mais amava. Meu maior medo era que o Gê, de
alguma forma, fosse descoberto. Àquela altura do
campeonato, chamar atenção para ele era o que
menos precisávamos.
Um pouco cansados, retornamos ao casarão,
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mas eu podia perceber a curiosidade do Gê em


provar a bacalhoada, prato que passei quase meia
hora explicando do que se tratava. Foi uma tarefa
meio complicada, visto que ele não sabia o que era
bacalhau, nem mesmo o que era um peixe. Depois
tive que, na horta, mostrar o que era batata,
pimentão, cebola e tomate. Gê considerava a
culinária humana muito rica e interessante. Pelo
que entendi, não havia tantas opções de alimento
em Vênus.
— Ah, finalmente vocês chegaram! Que
demora! — Dona Margarida nos interceptou na sala
de estar, assim que cruzamos a porta. Segurava
uma travessa enorme de arroz e exibia um sorriso
que ia de orelha a orelha. — Valentim e Frederico
já estão à mesa.
— Seja o que Deus quiser... — murmurei
para mim mesma, mas creio que o Gê ouviu, pois
fez uma expressão confusa.
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Seu Frederico e Valentim estavam


conversando animadamente quando adentramos a
sala de jantar, porém, o clima mudou da água para
o vinho muito depressa. O papo divertido foi logo
substituído por semblantes sérios, tensos. Seu
Frederico foi o primeiro a levantar da cadeira e se
aproximar da gente.
— Finalmente vou conhecer esse rapazote!
— comentou, tentando soar amistoso, mas eu podia
ver que estava um tanto enciumado. Colocou a mão
na frente, esperando um cumprimento. Àquela
altura, Gê já sabia como cumprimentar as pessoas,
por isso ambos apertaram as mãos. — Meu nome é
Frederico e praticamente vi essa menina crescer. —
Ele me olhou e sorriu. — Então, sou como se fosse
um segundo pai.
— É um prazer e uma grande honra
conhecê-lo, senhor — Gê falou com seu costumeiro
jeito educadíssimo. Estava maravilhoso, exibindo
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um sorriso leve, espontâneo. Aquela criatura ficava


cada dia mais humana. — Eu me chamo Gê.
— Gê? — Seu Frederico afastou a mão e
coçou o topo da cabeça grisalha. — Gê de Gerson?
Geraldo?
— Não, é Gê de Gê mesmo, seu Frederico
— eu me adiantei antes que o Gê se enrolasse para
explicar. Ninguém precisava saber que o seu
verdadeiro nome parecia uma senha de Wi-Fi. —
Os pais dele não são tão criativos.
— Ah! Que curioso...
— E aí, cara — Valentim se aproximou de
repente, já oferecendo uma mão.
Gê virou o rosto para olhar quem o saudava.
Acompanhei o exato instante em que seus olhos
cobertos pelas lentes azuis se abriram ao máximo,
ficando parecidos com duas bolas de gude. Seu
sorriso morreu subitamente, deixando apenas uma
carranca séria e um tanto assustada. Não entendi
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direito a reação do Gê, por isso toquei sua mão para


acordá-lo do transe, já que tinha deixado Valentim
no vácuo, com a mão estendida.
— Gê? — murmurei, chamando-o. A
situação começava a ficar bem constrangedora. —
Esse é o Valentim, sobrinho de dona Margarida e
um amigo meu.
Os dois continuaram se encarando, até que
Valentim desistiu de saudá-lo e recolheu a mão,
insatisfeito em ter sido ignorado na cara dura. Gê
permaneceu estático. Seu rosto costumeiramente
branco começava a ficar vermelho feito um
camarão frito. Não consegui entender se ele estava
com vergonha, com raiva ou — havia aquela
hipótese? — enciumado por se lembrar da noite em
que me viu beijando o Valentim.
— Bom, vamos todos nos sentar para
comer! — dona Margarida propôs, tentando
melhorar o clima tenso na sala. — Já está tudo na
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mesa.
Gê só se mexeu novamente quando o puxei
pela mão, guiando-o para a cadeira que ficava ao
lado da minha. Frederico se sentou na ponta da
mesa e Margarida à sua esquerda. Valentim ficou
ao lado da tia, exatamente de frente para o Gê. Não
pude deixar de perceber que continuaram se
olhando em um embate silencioso, como se
travassem uma guerra em que só os dois
participavam. Eu estava admirada com a atitude do
extraterrestre. Ele não era de fazer aquele tipo de
coisa. Ainda que estivesse enciumado, costumava
ser educado com todo mundo.
— E então, Gê... O que faz da vida?
Ele não respondeu. Dei-lhe um cutucão na
coxa até chamar sua atenção. Gê desviou o rosto e
finalmente respondeu:
— Neste momento, estou de férias, senhor.
Mas sou um cientista.
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— Parece uma coisa difícil. Onde você foi


arrumar um cientista, garota? — Frederico me
olhou, rindo, e eu revirei os olhos.
Se ele soubesse da missa um terço...
— Também estou curioso para saber como
se conheceram — Valentim comentou em tom de
deboche, enquanto servia o seu prato. — Já que
Estrela mal sai dessa fazenda.
— Nós nos conhecemos no centro da
cidade, em uma de minhas idas a trabalho —
expliquei com certa tranquilidade. Não gostava de
mentir, mas daquela vez seria estritamente
necessário.
— E por que demoraram tanto pra se
assumirem? — Valentim perguntou ironicamente.
Era claro que ele estava disposto a transformar
aquele almoço num inferno. — Não é direito um
cara dormindo com a Estrela debaixo de um teto
familiar.
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Eu lhe ofereci uma careta desgostosa.


Hipocrisia era o que estava escrito em sua testa,
pois eu não podia contar nos dedos as tantas vezes
que transamos dentro do casarão, às escondidas.
— Isso é verdade — seu Frederico,
obviamente, concordou. Margarida enchia o prato
dele até formar uma montanha imensa. Eu não
sabia como aquele senhor franzino conseguia
comer tanto. — Não sei se gosto dessa situação. Se
vai passar as férias na fazenda, Gê, acho mais
apropriado que durma no quarto de hóspedes.
— Compreendo, senhor, e concordo que, de
fato, é mais apropriado.
Eu o olhei, indignada. Como o Gê podia
concordar com uma caretice daquelas?
— Espera aí! Ninguém vai decidir por mim
o que fazer a respeito do Gê. Ele é o meu
convidado e vai ficar onde eu quiser que ele fique.
Seu Frederico deu de ombros. Dona
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Margarida tentava ignorar a conversa, pois não


queria dar sua opinião a respeito. Eu sabia que, por
ela, tudo bem o Gê dormir comigo, mas ela jamais
admitiria na frente do marido. Valentim encarava o
meu convidado com satisfação, como se tivesse
acabado de vencer o primeiro round.
Servi o prato do Gê porque ele ainda
parecia incapaz de reagir. Queria muito
compreender o que estava pensando. Não era
possível que tudo aquilo fosse ciúme. Era um
comportamento irracional demais para alguém
como ele.
— Mas quais são as suas intenções com a
Estrela? — Seu Frederico perguntou entre uma
garfada e outra.
Coloquei a comida na boca.
— Essa bacalhoada está uma delícia!
Parabéns, dona Margarida! — tentei mudar de
assunto, mas todos estavam olhando para o Gê,
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esperando uma resposta. Margarida só sorriu para


mim e voltou a prestar atenção nele.
— Minhas intenções? — Gê soltou um
resfolego. Brincou com a comida em seu prato,
creio que tentando discernir os ingredientes que eu
tinha mencionado mais cedo. — Acredito que não o
compreendi, senhor.
— Suas intenções, rapaz. Com certeza o
relacionamento de vocês é sério, não é? Pois não
aceito que brinque com a minha menina. Vocês
pensam em casamento? Já que tudo foi consumado,
imagino que...
Minha nossa senhora.
— A salada também está uma delícia! —
Segunda tentativa de mudar de assunto.
— Minha intenção certamente não é brincar
com a Estrela, senhor — Gê falou com muita
seriedade. Eu o observei, percebendo o quanto
estava firme em suas palavras. — E eu não sei o
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que ela pensa sobre casamento.


— Então, quais são suas intenções? —
Valentim insistiu, botando mais lenha na fogueira.
— Minha... intenção... — Gê me olhou,
finalmente. Poucas vezes o tinha visto tão hesitante.
— É protegê-la. Fazê-la permanecer segura e...
feliz.
— Isso é ótimo! — dona Margarida soltou
uma risada que não foi acompanhada por ninguém.
Eu tinha certeza de que o meu rosto estava
completamente vermelho. Gê ainda me olhava, mas
era de um jeito diferente. Parecia... hipnotizado?
— Pretendem casar, então? Porque não vou
deixar Estrelinha ficar desonrada — Frederico
insistiu. Revirei os olhos, absolutamente
constrangida.
— Quem disse que quero me casar, seu
Frederico? Essa conversa está muito anos 70 pro
meu gosto. Não sou nenhuma criança.
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— Mas, menina...
— Farei exatamente o que estiver dentro
dos anseios de Estrela — Gê acrescentou,
interrompendo a discussão que se formaria porque
eu não desistiria de dar o meu ponto de vista. —
Pretendo respeitar sua natureza e suas opiniões.
Não farei absolutamente nada que estiver distante
do que ela deseja para si mesma.
Houve um minuto completo de silêncio. Eu
estava tão embasbacada que não conseguia sequer
respirar.
— Fico mais aliviado, então, rapaz. A
felicidade da Estrela é o que me preocupa —
Frederico se adiantou.
— Este sentimento também é compartilhado
por mim — Gê falou um pouco mais baixo. Eu me
assustei ao sentir sua mão quente sobre a minha.
Fiquei com o rosto ainda mais afogueado do que
antes. — Prometo jamais magoá-la ou deixá-la
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sozinha. — Ele desviou o rosto para encarar o


Valentim, e então o meu cérebro deu um looping. O
que o Gê sabia sobre mim e ele? Eu nunca havia
comentado nada a respeito.
— Que lindo! — dona Margarida soltou um
suspiro. — O amor é mesmo maravilhoso, não é?
— Amor? — Gê perguntou, surpreso. A
expressão confusa que fez me deu vontade de rir de
nervoso. A coisa toda só piorava.
— Sim, vocês dois são tão lindos. É bonito
ver um casal que se ama.
— A senhora acredita que somos um casal
que se ama? — A ficha do Gê finalmente tinha
caído. Será possível que, durante aquele tempo
todo, ele não tinha percebido que todo mundo
achava que éramos namorados?
— Com certeza, meu querido. Dá pra ver
nesses rostinhos lindos. A forma como se olham é
inspiradora — ela soltou um suspiro.
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Olhei para ele, mas o Gê continuou com


aquela expressão de quem tinha acabado de levar
um susto. Soltou a minha mão depressa, como se
eu, na verdade, fosse a assombração da história. Ele
me encarou por um segundo e desviou o rosto para
o seu prato. Resolvi disfarçar também e tomar um
pouco do suco.
— Dona Margarida, essa bacalhoada está
realmente fantástica.
Quase cuspi tudo pelos ares. Foi só
impressão ou o Gê usara a mesma tática para mudar
de assunto? Só que, ao contrário da minha, sua
tentativa funcionou, pois ninguém deixou de
poupar elogios à dona Margarida, que se
envaideceu toda.
O almoço seguiu sem mais
constrangimentos. Eu conhecia a família, chegava
um momento em que todos queriam apenas encher
a barriga e conversavam estritamente sobre como
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estava tudo uma delícia. Daquela vez, não foi


diferente. A única coisa que eu percebia era o olhar
do Gê recaído ora sobre o Valentim, ora sobre mim.
— Eu estava pensando... — foi o sobrinho
de dona Margarida que nos tirou do silêncio. — Se
o Gê vai ficar na fazenda, bem que podia
contribuir, não é? Estamos precisando de força nos
estábulos.
Aquele idiota estava começando a me fazer
ter desejos sanguinários de enfiar uma faca bem no
meio de sua testa. Ele que ficara encarregado de
contratar um funcionário novo, mas ainda não tinha
feito o serviço e estava querendo abusar do Gê.
— Ele está aqui descansando, não vai
trabalhar — rebati.
— Ficarei muito contente em contribuir
com os serviços da fazenda — Gê não se deixou
abater. — Posso ser bastante útil, se me permitirem.
— Gostei do seu namorado, Estrela —
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Frederico salientou, sorrindo. — Educado,


prestativo e parece ter mais juízo do que você.
— Nós não somos... — Gê começou, meio
aflito, mas eu o interrompi antes que estragasse
tudo:
— Tenho bastante juízo, sim, senhor! —
Terminei a última garfada, percebendo que o Gê
tinha comido tudo, e repetido, em questão de
minutos. Foi tão depressa que eu não sabia como
não estava passando mal. — A comida estava
muito boa e o papo estava ótimo, pessoal, mas
preciso conferir... hm... a horta — falei por falar,
sem ter muitas ideias para disfarçar a vontade de
sair correndo dali. — Vamos, Gê. Preciso te
mostrar uma coisa.
Todos o cumprimentaram de novo, menos o
Valentim, que daquela vez preferiu ficar sentado
apenas observando. Puxei o Gê pela mão e
praticamente o arrastei para fora do casarão, rumo à
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caminhonete estacionada. Não sabia para onde


levá-lo, mas tínhamos que dar uma volta e
conversarmos melhor.
Ainda na escadaria, ele parou de andar.
— O quê? — Gê apenas me encarou com
seriedade. Resolvi soltar as perguntas que não
queriam calar: — O que foi tudo aquilo? Por que
agiu daquele jeito com o Valentim?
— A senhorita não pode desejar que eu
confraternize com um humano que tanto a magoou
— ele falou com certa rispidez, porém, foi
suavizando o timbre. — Eu o vi, Estrela. Quando
nós... copulamos, aquele homem estava em seu
passado, e o que ele te fez... Não consigo encontrar
uma palavra em qualquer língua terráquea que
descreva a crueldade. Vi as lágrimas que ele lhe
arrancou e não pude tocá-lo. Sinto muito.
— Gê...
— Não consigo compreender o que ele
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ainda está fazendo em sua vida.


Soltei um suspiro.
— Valentim não é mais nada, Gê. Nem
mesmo um amigo. Ele se tornou apenas um
funcionário antigo.
— Eu desejaria mantê-la bem longe dele —
resmungou, mais sério do que nunca. Pude perceber
seu maxilar se firmando em raiva. Poucas vezes o
Gê me pareceu tão humano. — Infelizmente, nada
posso fazer além de ressentir o fato de ele ter tido
você por completa e ainda tê-la ferido.
— Gê...
Ele tocou a lateral do meu rosto com tanta
ternura que me senti derreter.
— Se eu tivesse a sorte de ter o seu amor,
de poder gerar uma vida contigo, de ser seu
companheiro sem que nada impedisse, jamais
cometeria tal atitude baseada em uma extrema falta
de sensibilidade e de inteligência.
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Dito aquelas loucas palavras de forma


acelerada, quase sem respirar, ele simplesmente
terminou de descer as escadas sem esperar por
mim. Fiquei estática, estupefata, ainda tentando
engolir sua última frase, mas tendo bastante
dificuldade.
O que o Gê quis dizer com aquilo?

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25

Olhei para trás, com os olhos arregalados e


a respiração errática, apenas para conferir o Gê se
aproximando da caminhonete tranquilamente, como
se não tivesse acabado de soltar uma bomba bem na
minha cara. Não adiantaria fingir que nada
perturbador havia sido dito, por isso achei por bem
tirar a limpo. Era melhor do que ficar
mancomunando possibilidades e enlouquecendo
por dentro diante das dúvidas. Sendo assim, desci
as escadas quase aos tropeços, pulando os degraus
como se a minha vida dependesse de uma resposta
mais objetiva vinda daquele extraterrestre bonitão.
— Gê, espere! — gritei, e ele se virou para

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me encarar. O semblante muito sério que me


ofereceu não foi capaz de me fazer desistir. Eu me
aproximei, meio ofegante, e perguntei de uma vez:
— O que você quis dizer com isso?
Gê me olhou como se eu fosse uma ameba.
— Desejei dizer exatamente o que foi dito,
senhorita.
Balancei a cabeça em negativa e soltei uma
risadinha que foi mais um ofego do que qualquer
outra coisa. Meu coração ainda batia acelerado e
não ajudava nada ter aquele par de olhos azuis me
observando seriamente. Não sabia como explicar
que o que foi dito abria um leque de interpretações
que eu não estava sabendo lidar.
— Não sei se entendi direito, Gê —
balancei a cabeça novamente. — Por um momento,
pareceu que você gostaria de ser o meu
companheiro, se não fossem os tantos empecilhos
entre nós dois. É isso ou eu estou ficando doida?
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Ele abriu a boca, mas nenhum som escapou


entre seus lábios. Permaneci ansiosa, esperando
qualquer resposta que me arrancasse aquele aperto
no peito, mas ela não vinha e eu não estava
suportando mais. Sua expressão se tornou
completamente indecifrável, de modo que foi
impossível adiantar qualquer possibilidade.
— Senhorita, eu não...
— Ei, Gê, para onde vai? — Valentim
berrou do topo da escada, assustando-nos e
interrompendo a fala da criatura. Até nos
distanciamos um pouco, como se estivéssemos sido
pegos no flagra. No entanto, o começo de sua frase
me fez perceber o quanto eu estava agindo feito
idiota. Gê jamais falaria o que eu queria ouvir. —
Chegou a encomenda das rações, a fazenda precisa
da sua ajuda.
— Valentim, não seja um... — comecei,
mas Gê me interrompeu.
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— Ficarei satisfeito em ajudar — respondeu


em um tom mais alto e depois se virou para mim,
amansando a voz: — Mas a senhorita precisa nos
acompanhar. Não posso permitir que fique sozinha,
sem proteção.
— Você não precisa fazer isso se não
quiser, Gê. Ele só está te testando — apontei com a
cabeça para o Valentim, que descia as escadas com
as mãos nos bolsos, despreocupadamente.
— É o meu desejo realizar as tarefas
necessárias para manter a sua fazenda em ordem,
senhorita. Tenho ciência de que a minha vinda
trouxe alguns prejuízos, portanto é extremamente
adequado que eu ofereça ajuda.
— E então, vamos? — Valentim se
aproximou e nos encarou, um a um, porém se
demorando mais no Gê. Pude ver a malícia
brilhando em seus olhos, e aquilo me irritou tanto
que passei a questionar, de fato, o que ele ainda
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fazia na minha vida. — Uma fazenda não se toca


sozinha.
— Vamos — resmunguei, tirando as chaves
da caminhonete de dentro da calça.
Ao longo da tarde, não tive muitas escolhas
além de acompanhar Gê no serviço. Como já havia
resolvido várias coisas pela manhã, não se tornou
complicado realizar aquela tarefa. Valentim queria
ditar as ordens, mas eu não deixava totalmente,
sempre me metia em tudo e me certificava de que
ele não estava sendo abusivo com o Gê e os outros
trabalhadores. Percebi o quanto ele tinha um porte
arrogante, como se fosse o dono da fazenda, e
enxergar seus defeitos tão de perto foi me enchendo
de ranço.
Eu estive cega durante muitos anos da
minha vida. Valentim me fez acreditar piamente
que ele era a única opção de homem para mim, e eu
fiquei tão acostumada a lidar com isso que já não
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enxergava o quanto podia ser um cretino. Não era


em vão que muitos funcionários não gostavam dele.
Eu achava que a sua rigidez, seriedade e
compromisso podiam afastar algumas pessoas, mas
a verdade era que Valentim agia de forma
mesquinha. Tudo o que ele fazia passou a soar falso
para mim.
Assim que o sol se escondeu no horizonte,
percebi que o Gê ficou nervoso, desconfiado até da
própria sombra. Terminou de guardar as
ferramentas utilizadas junto com outros
funcionários e logo me alcançou, escorada perto da
saída do galpão de instrumentos, com o olhar aflito.
— Temos que voltar para a 14038
imediatamente, senhorita.
Aquiesci sem nada comentar. Eu também
estava bem angustiada. A noite me trazia uma
sensação horrível no peito, um sufoco nos pulmões.
Aquela podia ser, perfeitamente, a minha última
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noite na Terra, se assim os Recolhedores


quisessem. Já tinha colocado na cabeça que o Gê
não conseguiria me defender deles sozinho,
portanto me mantinha quase conformada com
aquilo.
Fomos ao meu quarto a fim de tomarmos
banho e trocarmos nossas roupas, além de
carregarmos a mochila com mais suprimentos. Nós
nos organizamos depressa, pois cada minuto
poderia significar a nossa ruína. Eu só queria uma
noite de paz, dormir tranquilamente sem contato
psíquico e invasão alienígena, mas isso era pedir
demais. Os Recolhedores exigiriam o experimento
a qualquer instante.
Quando adentramos a 14038, depois de
pegarmos a caminhonete e seguirmos até a parte da
mata onde a havíamos deixado, permaneci em
alerta, assim como o Gê. Ele balbuciou todos os
comandos necessários para o ovo se abrir e nos
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receber com mais conforto, por isso me deitei em


nossa cama improvisada e lá fiquei, olhando para o
teto envidraçado que me deixava admirar as
estrelas no céu.
Gê percorreu o interior da nave como se
verificasse seu funcionamento por completo.
Balbuciou vários outros comandos em uma língua
estranha, e alguns painéis luminescentes surgiram
do nada. Ele os mudou de lugar girando a mão no
ar. Era tão incrível que aquela tecnologia, vista
apenas em filmes, realmente fosse possível! Nós
ainda tínhamos muito a evoluir.
Depois de quase uma hora inspecionando a
14038, Gê se deu por satisfeito e se deitou ao meu
lado, tomando o cuidado de manter certa distância.
Aquela atitude me deixou cabisbaixa e
introspectiva. Eu me sentia uma tapada por querer
mais do que ser um objeto de preservação para o
Gê.
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— Por que não há uma venusiana? — a


pergunta escapou pela minha boca sem que eu
raciocinasse muito. Para ser sincera, pensei alto
sobre assunto.
— Perdoe-me, senhorita, não a compreendi.
— Por que você nunca se relacionou com
ninguém?
— Creio que já conversamos a respeito. É inútil
— Gê se remexeu, parecendo bastante incomodado.
— Só porque você não é fértil? Poxa vida...
Passar por tantos anos sozinho deve ser uma tarefa
muito solitária.
— Sim, Estrela, é. Mas eu me acostumei. Cada
ser vivo tem a sua utilidade, seu dever no Universo.
O meu não é perder tempo com questões
sentimentais.
— Você nunca se viu apaixonado por
ninguém? — questionei, novamente, no impulso.
Prendi os lábios com força, sentindo o coração
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retumbando no peito. — Nunquinha mesmo?


Gê virou o rosto para mim. Sem as lentes, seu
olhar era ainda mais hipnotizante, de forma que
precisei suspender a respiração.
— Já idealizei, sim, senhorita — murmurou de
uma forma meio triste. Fiquei curiosa com a
maneira como falou aquilo. — Porém, continua
sendo inútil. Às vezes é preciso lidar com o fato de
que nem sempre temos aquilo que queremos.
Fiquei muito surpresa com aquela confissão.
Então o Gê, apesar de tudo, queria uma
companheira em sua vida, alguém que lhe
acompanhasse nas aventuras e em seus projetos
incríveis.
— Se é o que quer, não vejo por que não ir
atrás... — dei de ombros.
Gê balançou a cabeça lentamente, ainda me
observando com seriedade.
— Estrela... — balbuciou em um sussurro
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capaz de me arrepiar, sentando-se sobre o edredom.


Ele lambeu os próprios lábios, como se pensasse
sobre o que dizer. — Sobre o que me perguntou
hoje, depois de nosso almoço...
— Não se preocupe, Gê — eu o interrompi,
temerosa. Preferia que ele não falasse nada. Seria
difícil demais lidar com mais uma rejeição. —
Deixa isso pra lá.
— A senhorita perdeu o interesse em tomar
conhecimento a respeito de minha resposta? — Ele
me pareceu profundamente decepcionado, por isso
me adiantei.
— Não, eu quero saber, de verdade. Mas tenho
muito medo.
Gê aquiesceu.
— Compreendo. Confesso que não me sinto
diferente da senhorita.
— Como assim, Gê?
— É a primeira vez que desenvolvo extremo
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medo de meus próprios sentimentos — Gê desviou


o olhar, meio confuso. Eu me sentei ao seu lado,
pois percebi a aflição exalando de seus poros. —
Mal consigo compreendê-los. A senhorita já sentiu
algo parecido?
— O tempo todo. Nós, humanos, somos peritos
nisso — soltei um riso, mas não sentia a menor
graça. Ele assentiu, reflexivo. — Me conta o que
você está sentindo, Gê... Quem sabe eu possa te
ajudar?
Assim que fiz aquela pergunta, tudo aconteceu
muito rápido. Primeiro, um barulho ensurdecedor
foi ouvido. Depois, algo muito grande se chocou
contra a nave, de forma que sentimos o impacto
reverberar em nossos corpos. Gê me agarrou com
muita força e eu gritei alto, sem entender nada.
— 14038, campo de força! — ele gritou perto
do meu ouvido, que ainda não tinha se recuperado
do barulhão. Até fiquei zonza.
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A nave pareceu se estabilizar, pois tudo


ficou silencioso por alguns segundos. Ouvi apenas
as nossas respirações ofegantes enquanto sentia os
braços quentes dele me envolvendo, protegendo-
me.
— Que merda foi essa? — gritei, espantada.
— Estamos sendo atacados — Gê se ergueu
sem qualquer dificuldade, levando-me junto em
seus braços. Tentei me desvencilhar, mas ele
parecia uma barra de aço de tão rígido que estava.
— Vamos. Não será um ataque fácil.
— Gê... — Ele me depositou sobre a poltrona e
o cinto de segurança me prendeu de forma
automática. — Gê, espera. Eles vão nos levar. Você
sabe disso e eu também, então...
Ele segurou o meu rosto com as duas mãos,
aproximando-se tanto que seu nariz quase encostou
ao meu.
— Nada é impossível, Estrela. Foi você quem
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me ensinou, há muitos anos, e eu acreditei. Agora,


acredite em si mesma e me deixe te salvar.
Gê encostou seus lábios aos meus, em um gesto
rápido e poderoso. Ele teve tanta gana que os meus
dentes até doeram. Não houve tempo para
perguntar o que tinha sido aquela atitude. Tão logo
se afastou, Gê sentou na poltrona ao lado.
— 14038, preparar para o ataque! — bradou, e
cada célula do meu corpo se manteve em alerta.
Mal a nave se iluminou por inteira, um segundo
estrondo foi ouvido.

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26

Fechei os olhos e me ative a apenas sentir tudo


ao meu redor girando como um carrossel
desgovernado. A nave passou a dar cambalhotas,
trazendo-me a sensação de que estava em um dos
brinquedos do parque de diversões que ficava na
cidade vizinha. Sequer tive coragem de conferir o
que estava acontecendo de fato. Eu sabia que os
Recolhedores estavam nos atacando, era óbvio, mas
o medo de comprovar que não teríamos a menor
chance foi maior, ainda que eu não tivesse tanta
esperança assim desde o princípio.
Soltei alguns gritos, que escaparam pela minha
boca involuntariamente, compondo uma trilha

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sonora assustadora. Não ouvi nem mesmo um


resmungo vindo do Gê, e a preocupação que senti
foi o único fator que me fez ganhar coragem para
abrir os olhos. Os lençóis da nossa cama
improvisada chacoalhavam para toda a parte da
nave, fora isso, tudo parecia preso, conectado a
14038. Menos mal. Gê mantinha os olhos abertos
apontados para mim, e parecia tão assustado que só
consegui gritar ainda mais alto.
— Gê, o que vamos fazer?
— Estou aguardando a 14038 estabilizar os
ataques, mas os Recolhedores conseguiram romper
o quadrante do campo de força — falou de uma
forma ligeira, porém muito firme para alguém que
estava virando de cabeça para baixo
constantemente.
Um travesseiro bateu no topo da minha cabeça
antes de se perder do outro lado. Havia uma
pressão horrível no meu cérebro, um zunido chato
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em meu ouvido e a vontade de vomitar se tornava


maior a cada giro do ovo. Nós precisávamos,
urgentemente, fazer alguma coisa além de nos
deixar ser atingidos por eles.
— E cadê o contra-ataque? — berrei, já com
lágrimas nos olhos. Estava com tanto medo que não
deu para controlá-las. — Atire nesses desgraçados
de uma vez, Gê!
Ele permaneceu calado por alguns giros.
Estávamos nos distanciando, e muito, do ponto em
que o Gê havia estacionado a 14038. Podia ouvir as
árvores cedendo por causa da força aplicada pela
nave. Plantas, galhos, animais, tudo o que aparecia
pela frente estava sendo devastado e eu podia
assistir boa parte através do teto envidraçado, que
exibia todo o estrago como uma grande tela de
cinema. Não pude detectar sinal algum dos
Recolhedores, mas sabia que eles estavam
próximos.
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— Gê! — gritei mais uma vez. — Eu vou


vomitar, faça alguma coisa!
— É absurdamente perigoso contra-atacar,
Estrela! — ele gritou de volta, de um jeito que me
deixou alarmada porque, pela primeira vez, percebi
que aquele extraterrestre tinha saído completamente
do sério. — Seu planeta tem leis que precisam ser
seguidas. Os Recolhedores possuem muitas formas
de burlá-las sem que sejam punidos, mas eu... Sou
apenas um invasor! As consequências de uma
batalha travada dentro da atmosfera terrestre são
assustadoras.
— MAIS ASSUSTADOR DO QUE ISSO? —
berrei de volta, impressionada com o autocontrole
que o Gê possuía mesmo quando estava aos gritos,
visivelmente apavorado e sem saber como
proceder.
Ele ficou em silêncio por segundos cruciais,
parecendo refletir.
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— 14038, revidar ataque! — ordenou, por fim,


e a nave soltou vários ruídos antes de concentrar
uma luz forte, e meio azulada, em uma de suas
laterais. Pude ver pelo teto o trajeto percorrido pela
luminosidade. Atingiu um ponto relativamente
distante, escondido entre árvores imensas.
Só podia ser dali que vinha a força que nos
empurrava pela mata.
— 14038, campo de força! — Gê tentou
mais uma vez.
Finalmente paramos de girar, mas a péssima
notícia foi que aconteceu justamente quando
estávamos de cabeça para baixo. Eu estava muito
enjoada. Nunca gostei dos brinquedos mais radicais
dos parques de diversões da vida.
Virei o rosto para o Gê, que, como eu,
estava sendo mantido na poltrona apenas por causa
do cinto de segurança. O meu traseiro não sentia
mais o assento, pois eu estava suspensa no ar como
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um balão de gás.
— E agora? Conseguiu acertá-los? —
perguntei com a voz trêmula. Os cabelos pintados
do Gê estavam todos para cima, ou melhor,
espetados para baixo, deixando-o pendurado de
uma forma que seria engraçada se não fosse tão
assustadora.
— A 14038 dificilmente erraria o alvo,
senhorita.
— E o tal campo de força? Para que serve?
Está funcionando? — Eu sabia perfeitamente que
aquela não era a hora para sanar tanta curiosidade,
porém o nervosismo me fazia não querer calar a
boca.
— O campo de força é um envoltório
energético que tem como objetivo proteger a nave
de eventuais ataques — Gê estava ofegante, como
eu. — Seu funcionamento retornou, mas creio que
não durará muito tempo.
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— Por quê?
— Os Recolhedores neutralizaram o
primeiro campo de força, então suponho que não
hesitarão em fazê-lo novamente. Só não entendo
por que estão demorando tanto.
— Ataque de novo, Gê, até que vão embora.
Não podemos esperar por eles!
— Estrela, é muito perigoso. Eu não sei até
onde os Recolhedores têm permissão para chegar.
Temo que este embate se transforme em uma
tragédia.
— O que mais pode acontecer? —
questionei, com a adrenalina nas alturas. Afinal, se
estávamos na chuva, deveríamos nos molhar. Eu
não acreditava que um encontro pacífico
funcionaria com os Recolhedores. — Eles querem
me levar, Gê. Já é a pior coisa que poderiam fazer
comigo.
— A senhorita não teme a morte?
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— Claro que temo. Mas prefiro morrer a ser


levada por esse povo esquisito! — confessei quase
aos gritos, agitada, aflita e disposta a ir até o fim
naquela história. No fundo, talvez o Gê soubesse
que eu jamais me entregaria, não sem luta.
E talvez saber daquilo o assustasse, do
mesmo jeito que me assustou quando eu descobri
que não me deixaria ser levada sem mais nem
menos. Um ataque preciso me fez ter a certeza de
que me submeter aos Recolhedores nunca foi uma
opção.
— A senhorita não irá morrer e não será
levada. É uma promessa. Não permitirei que nada
de ruim aconteça, porque eu jamais saberei lidar
com a culpa caso a senhorita sofra as
consequências dos meus erros.
Parei por uns instantes para encará-lo. O
sangue já estava descendo para a minha cabeça, de
forma que eu poderia ter um troço a qualquer
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momento. Ainda assim, meu único desejo foi de


confortá-lo. A perturbação em seu olhar
avermelhado se manteve visível.
— A culpa disso tudo não é sua, Gê. Não
importa o que aconteça, você foi a melhor coisa
que já aconteceu na minha vida.
Ele fez uma careta de confusão.
— Como posso ser a melhor coisa se eu
apenas te trouxe problemas?
— Apenas? — Soltei uma risada meio
resfolegante. Eu estava considerando a ideia de
soltar o cinto de segurança, mas, olhando para
baixo, percebia que a queda não seria nada
agradável. — Você trouxe tudo o que eu mais
queria, Gê.
— Desejo saber o que tanto a senhorita
queria, e que eu lhe trouxe mesmo sem tomar
conhecimento.
Deixei um gemido de dor escapar. Não
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aguentava mais permanecer naquela posição.


— Companhia, amizade, conhecimento,
esperança... Um sexo de outro mundo! — enumerei
entre ofegos angustiados. — Experiências
fantásticas. A certeza de que eu não sou louca
como achei que fosse. Por que estão demorando
tanto?
— Certamente estão nos testando. Aguente
mais um pouco, Estrela, não posso tirá-la da
proteção e deixá-la vulnerável a um novo ataque.
— Pois eu vou resolver isso agora mesmo!
Acho que o Gê pensou que eu me
desvencilharia do cinto de segurança e daria adeus
a qualquer chance de me proteger de mais uma leva
de cambalhotas. Ele deve ter se admirado quando
simplesmente fechei os olhos e pensei no último
Recolhedor que entrou em contato comigo. A
lembrança estava vívida na minha mente. Jamais
me esqueceria do capuz, dos olhos avermelhados,
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da voz sinistra.
A coisa mais fácil do mundo foi entrar em
contato psíquico com aquele camarada. Eu estava
ficando boa naquilo. Sendo assim, quando me vi no
meio da mata, com fumaça por toda parte, tive a
certeza de que tinha conseguido, mais uma vez,
fazer aquilo que o Gê dizia que era impossível para
uma humana. Bem, eu era diferente. Não sabia o
que me distinguia dos demais, talvez fosse a
estupenda força de vontade, mas precisava
aproveitar cada oportunidade que a vida me
oferecia.
O cara do capuz estava logo adiante, e,
ainda que eu não pudesse ver seu rosto com nitidez,
a expressão corporal deixava claro que tinha sido
pego de surpresa. Ele não esperava que fosse eu a
procurá-lo, a fim de colocá-lo contra a parede. Era
exatamente o que eu estava prestes a fazer.
— E aí, mano? — iniciei a conversa da
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forma mais despreocupada que eu conhecia. Ele


ficou em silêncio. — O gato comeu a sua língua?
Qual é? Não quer resolver isso tudo no papo? Quer
continuar girando a nossa nave como se fosse uma
bola de neve descendo um barranco?
— Desculpe-me a indelicadeza, Estrela,
apenas fiquei surpreso com este contato psíquico.
Não tenho certeza se é uma fonte segura de
comunicação. — O Recolhedor olhou ao redor
como se esperasse que outra pessoa aparecesse do
nada.
— Claro que é segura, tudo está aqui dentro
— toquei a lateral da minha cabeça. — Fui eu que
te chamei pra gente ter uma conversinha.
— Não há o que ser conversado — sua voz
se tornou mais rígida, do jeito como eu a conhecia.
— Desejamos o experimento e o fato de terem se
escondido dentro da nave é uma prova de que não
nos entregarão de bom grado, ainda que tenhamos
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acatado a nossa parte no acordo.


— Houve um engano. Eu nem sabia que
aquilo era um acordo — revirei os olhos e me
aproximei. Sentei-me sobre uma rocha porque sabia
que, ali, dentro da minha mente, era um ambiente
seguro. Aquele Recolhedor jamais me pegaria de
verdade. — É injusto fazer um trato sem que a
segunda parte tenha conhecimento. Não acha?
— Não estamos interessados no nível de sua
ignorância, Estrela. Entregue-nos o experimento e
deixaremos a senhorita e as suas terras intactas.
Caso contrário...
— Caso contrário o quê? Não tenho medo
de vocês — menti. Eu tinha picos de valentia que
me deixavam sempre numa fria, mas aquele
sentimento de autoproteção era maior do que
qualquer pensamento racional. — Esse
experimento não pertence a vocês.
— A senhorita está enganada. O
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experimento nos pertence por direito — o


Recolhedor se manteve parado, ereto, com aquela
voz meio metálica ecoando pela mata nebulosa de
uma maneira sinistra.
— Não é verdade. Pertence ao Gê! Foi ele
quem desenvolveu tudo durante anos. Vocês não
têm o direito de roubar!
— A criatura a quem a senhorita chama de
Gê é o verdadeiro ladrão, Estrela. O experimento
foi criado com nosso material, logo, pertence a nós.
Fiquei muda porque não sabia nada sobre
aquilo. Gê não havia mencionado como tinha
juntado o material para construir a nave ou o
experimento, só sabia que eram coisas raras
conseguidas com muito custo. Não fiquei chateada,
no entanto, mesmo se a informação fosse
verdadeira. Gê não poupara esforços para realizar o
meu sonho de tocar uma estrela.
— A tecnologia foi desenvolvida por ele.
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Ainda que o material seja de vocês, quem teve todo


o trabalho foi o Gê!
O Recolhedor soltou uma risada desprovida
de graça.
— Este é o jeito humano de pensar sobre as
situações. Para vocês, nada mais importa, nem
mesmo as regras. — Balançou a cabeça encapuzada
em negativa. — Queremos o que é nosso.
— Vocês não vão ter. Simples assim.
— Haverá consequências.
— Podem vir! — Levantei-me da rocha.
Aquela onda de coragem me fez agir como alguém
que tinha acabado de tomar algumas garrafas de
vodca. — Podem vir quentes que a gente vai botar
pra ferver.
Desfiz a comunicação psíquica no mesmo
instante. Já tinha percebido que não adiantaria
discutir com o Recolhedor, ele jamais cederia e eu
também. O jeito era nos defender, como o Gê
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propusera desde o começo. Voltei ao interior da


14038, mas meu retorno foi o mais louco possível.
Tudo porque os ataques haviam retornado e a nave
voltara a dar suas cambalhotas, devastando tudo ao
seu redor.
Soltei um grito apavorado.
— O que você fez, Estrela? — Gê gritou ao
meu lado, parecendo tão perturbado quanto eu. —
O que fez?
— Eles não vão ceder! — gritei em
resposta.
— Comunicou-se com eles?
— SIM! AH! — A nave começou a girar
com ainda mais velocidade.
— Estrela! — Gê se limitou a berrar.
Depois de alguns segundos girando, o teto
envidraçado, juntamente com as luzes emitidas pela
nave, me fizeram visualizar, de relance, a
aproximação do lago que ficava no coração daquela
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mata. Eu costumava passar as tardes com o meu pai


naquele lugar, tomando banho de cachoeira e
aproveitando a paisagem maravilhosa. Àquela hora
da noite, contudo, não havia nada de bom para ser
visto além de uma escuridão penetrante.
Era para lá que a 14038 estava sendo
arrastada.
— Gê! — apontei para frente. — O lago!
— Que lago?
— O LAGO! — continuei apontando
freneticamente, até que o teto ficou no ângulo
certo, permitindo que o Gê visse o que tanto estava
me afligindo. Seus olhos arregalaram
instantaneamente.
Estávamos a cada giro mais próximos.
— 14038, proteção aquática!
O ovo soltou vários ruídos e emitiu uma luz
prateada forte, que envolveu cada compartimento.
Foi a última coisa que consegui distinguir antes de
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atingirmos a água em cheio, provocando um


choque intenso.
Afundamos depressa.

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27

Abri os olhos lentamente e comprovei que


não adiantaria de nada mantê-los abertos, visto que
tudo estava imersa na escuridão. Ouvia apenas um
silvo constante, como se a nave estivesse ligado a
uma máquina que mostrava os seus batimentos
cardíacos. Tentei não pensar que estávamos presos
no fundo do lago, assim evitei me sentir
claustrofóbica. Rezava tão somente para que o ovo
tivesse atendido ao último comando do Gê e
continuasse funcionando mesmo submerso. Caso
contrário, estaríamos definitivamente fritos.
— Estrela? A senhorita está em seu perfeito
estado físico e psicológico? — Senti as mãos do Gê

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segurando os meus ombros e a sua respiração bem


próxima, mas não ousei abrir os olhos. Pelo menos
eu sentia que não estava de cabeça para baixo, e
aquilo precisava ser uma notícia boa diante de
tantas intempéries. — Consegue me ouvir? Estrela?
— Gê me chacoalhou um pouquinho e soltei um
arquejo ruidoso.
— Consigo. — Tornei a abrir os olhos, mas
daquela vez visualizei o interior da nave tomada
por uma luz avermelhada bem sinistra. O rosto do
Gê foi a única coisa que me deixou mais calma,
embora estivesse tão aflito quanto o meu deveria
estar. — E agora? Como vamos sair do fundo do
lago? E se o ar começar a faltar?
— A 14038 tem um sistema único
pressurização, Estrela. A senhorita ficará bem se
permanecer tranquila.
— Tranquila? Gê, sofremos um ataque! —
berrei, agoniada com aquele cinto de segurança.
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Retirei-o imediatamente, sem a ajuda do Gê, e me


levantei. No entanto, dei uma cambaleada e precisei
me apoiar em seus braços.
— A senhorita precisa de um tempo de
descanso para que o seu corpo retorne ao
funcionamento normal — Gê murmurou muito
próximo. Eu o encarei ainda com as mãos trêmulas,
em choque.
— E os Recolhedores? Por que nos
empurraram para cá? Eles querem o experimento
ou nos matar?
— Provavelmente, as duas opções, Estrela
— sua voz se tornou dura. Meu coração gelou
diante de tão tenebrosa possibilidade. —
Certamente os Recolhedores pegarão o que
necessitam e descartarão tudo o que lhes trouxer
problemas.
— Eles não podem nos matar sem mais nem
menos. Não há regras? E um Conselho?
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— Há — limitou-se a responder.
— E então?
— No fim das contas, eles farão parecer que
nós somos os algozes. — Gê soltou um suspiro
profundo e se afastou devagar, rumo ao outro lado
da nave. — Eu não deveria tê-los atacado. Diga-
me, Estrela, o que foi conversado durante o seu
contato psíquico? Necessito compreender todas as
informações.
Girei o corpo para acompanhar o caminho
que o Gê fazia dentro da nave. Parecia verificar o
seu funcionamento, analisando os pseudo-botões
como se neles houvesse uma solução para o nosso
grande problema.
— Não conversamos muita coisa. Eles
querem o experimento a todo custo e eu neguei até
o fim.
Gê aquiesceu devagar, ainda bastante
reflexivo.
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— O Recolhedor disse que... — engoli em


seco porque sabia que o assunto era delicado. —
Que você era o verdadeiro ladrão. Que roubou os
materiais deles para fazer o experimento, portanto
querem obtê-lo por direito.
Gê estava com as costas viradas para mim, e
assim permaneceu. Não comentou absolutamente
nada durante longos segundos. Seu silêncio foi o
bastante para que eu soubesse: o Recolhedor não
havia mentido. Gê tinha mesmo os roubado.
— Gê... — aproximei-me calmamente.
Toquei a mão em seu ombro quente. — Você pode
me dizer qualquer coisa. Não vou te julgar. Sei que
se esforçou muito para criar o experimento, que,
inclusive, deve ter feito coisas não muito certas.
— Eu precisava de informações sobre a
senhorita para criar o sistema de segurança e
funcionamento do experimento Estrela X-189 —
ele murmurou, foi um silvo baixo quase
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ininteligível. Gê se envergonhava daquilo, deu para


perceber seu desconcerto. — Informações genéticas
valiosas. Eu sabia que eles haviam arquivado
quando a abduziram, anos atrás. Invadi o sistema
de dados em busca das documentações feitas a
respeito da senhorita.
— Apenas isso? — perguntei, porque não
queria mais surpresas entre nós. Era óbvio que o Gê
era o mocinho da história, mas aquela coisa de
roubo, querendo ou não, acabou acendendo em
mim uma faísca de desconfiança. Um sentimento
que eu não queria, de maneira alguma, nutrir por
aquele extraterrestre. — Pode confiar em mim.
— Digo o mesmo à senhorita.
Falar olhando para as costas dele estava
começando a me irritar, por isso dei a volta e parei
bem na sua frente. Gê me encarou com seriedade.
— Por que me beijou? Digo, antes do
ataque.
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Ele prendeu os lábios, mas não desviou o


olhar atento.
— Porque eu não sabia se teria outra
oportunidade.
— Gê...
— Estrela... — Ele se aproximou mais,
envolvendo as mãos nas laterais do meu rosto.
Minhas costas foram imprensadas em uma das
faces da nave. — Se eu não confiasse na senhorita,
jamais teria feito metade do que fiz desde que a vi
pela primeira vez. — Sua boca se manteve a
centímetros da minha. — Eu confio e espero que
confie nas minhas boas intenções, ainda que,
confesso, tenha feito coisas das quais não me
orgulho em nome da realização do seu sonho.
Perdoe-me se não consegui realizá-lo de forma
completamente limpa. É insanidade crer que os fins
justificam os meios, porém um sonho... Um sonho,
talvez, justifique tudo, desde que ele seja bom.
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Assenti devagar enquanto o Gê tirava suas


mãos de mim, infelizmente. Engoli em seco,
tentando controlar as ondas de excitação que
invadiram o meu corpo depois de seu toque e de
sua proximidade perturbadora.
— Como sairemos daqui? Eles pararam de
atacar?
— Não posso acreditar que tenhamos sido
jogados no lago em vão — Gê comentou, voltando
à seriedade costumeira. — Certamente os
Recolhedores tentarão nos instabilizar antes de
obterem o experimento.
— Eu me sinto bastante instabilizada
agora...
— É mais viável aguardar o amanhecer
antes de sairmos daqui. A 14038 possui o modo
flutuante, porém é necessária muita energia para
que não haja qualquer problema de funcionamento.
Precisamos economizar enquanto estivermos
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presos.
— Tudo bem. — Levantei a cabeça para
conferir através do teto de vidro. Estava muito
escuro no interior do lago, de forma que nada
consegui ver além de um véu enegrecido. —
Vamos simplesmente esperar?
— Exatamente.
Gê começou a recolher a nossa cama
improvisada, que havia sido espalhada por toda
parte da nave, passando a montá-la em um canto
diminuto. O ovo estava em seu menor formato, e
algo me dizia que aquele era o espaço que
ocuparíamos durante toda a noite, para economizar
o máximo possível de energia.
— Esquece, Gê, eu não vou conseguir
dormir. Não depois das tantas doidices que
aconteceram.
— Vamos apenas descansar nossos corpos.
Precisaremos de energia tanto quanto a 14038. A
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senhorita trouxe banana?


Abri um sorriso e tentei localizar a mochila
dentro da nave. Encontrei-a jogada sem o menor
cuidado embaixo de uma espécie de mesa metálica,
mas as bananas estavam em um ótimo estado.
Sentei-me ao lado do Gê sobre o edredom e
comemos juntos, calmamente, como se nada tivesse
acontecido. Ele gostava tanto da fruta que parecia
distraído enquanto comia, sem demonstrar qualquer
preocupação.
Depois de longos minutos, resolvi voltar ao
assunto que me intrigava:
— Gê... Por que te preocupou a
possibilidade de não ter outra chance de me beijar?
Eu... Achei que você nunca mais me tocaria, não
dessa forma.
Aquela criatura me olhou de soslaio, porém,
logo em seguida, voltou a se concentrar na banana.
Quase arranquei a fruta das mãos dele e exigi uma
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resposta.
— Prometo que não se repetirá — disse, por
fim, muito sério.
O balde de água fria que me deu foi
devidamente sentido pelo meu corpo, que se
encheu de decepção diante de uma resposta que eu
não gostaria de ouvir. Balancei a cabeça em
negativa, cansada de sentir aquela paixão não
correspondida.
— E se eu quiser que se repita? — soltei
sem pensar. Gê parou a boca aberta no ar e me
olhou de imediato. — E se você também quiser?
— Estrela...
— Porque você talvez não saiba, mas eu sei
reconhecer o desejo quando o vejo bem na minha
frente. — Seus olhos vermelhos se arregalaram. Eu
já tinha passado por tanta coisa, não seria aquele
olhar intenso que me intimidaria. — Você pode
tentar negar, Gê, mas sei que me quer. E, quer
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saber, eu também te quero. Muito. Não há nada de


errado nisso, não percebe?
— Eu não deveria te querer, e a senhorita
não deveria corresponder a essa falta de
racionalidade — ele falou com a voz baixa, porém
intensa.
Soltei uma pequena risada.
— Esquece a razão, Gê. Nem tudo é
racional, pelo menos não nessa atmosfera. —
Toquei o seu ombro só para conferir se me
rejeitaria, contudo, Gê apenas aceitou de bom grado
a pequena carícia.
— Não sei se consigo agir com tanta
inconsequência... — Gê sussurrou enquanto
fechava os olhos e me deixava tocá-lo. Desci a mão
pelo seu peitoral firme, depois subi para o pescoço
carinhosamente. A pele quente me hipnotizava.
— E se nunca tivermos outra chance? —
murmurei o questionamento. — Eu não quero
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morrer, ou mesmo ser levada, sem ser sua de novo.


— Estrela... — Gê abriu os olhos e inclinou
o corpo para nos deixar próximos. Voltou a segurar
o meu rosto. Ele pareceu refletir muito antes de
dizer: — É difícil conviver com a triste ideia de
nunca mais tê-la em meus braços novamente. Eu
não sei lidar com essa fatalidade.
— Mas... Eu sei que tem um “mas”. —
Pisquei os olhos, atônita. — Do contrário, você já
teria me beijado.
— Mas é ainda mais difícil lidar com a
insuportável ideia de tê-la em meus braços essa
noite e não tê-la em todas as outras. Portanto,
prefiro não correr o risco. — Gê me soltou depressa
demais.
Meu cérebro deu um nó do tamanho de um
caminhão.
— Sei que você não pode ficar para sempre,
Gê — falei, ainda bastante perturbada com as suas
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últimas palavras. Jamais imaginei que ele pudesse


gostar de mim a ponto de me querer sempre. Talvez
o Gê não saiba calcular o desejo como nós,
humanos, somos acostumados a fazer. — Sei
também que não posso viver no espaço. Mas eu não
perderia nem um segundo do agora pensando no
amanhã. Prefiro te ter hoje, aqui, neste momento, a
não te ter nunca mais.
Gê aquiesceu.
— Entramos em um curioso paradoxo.
— Não é paradoxo algum, Gê... —
murmurei, trazendo sua mão para o meu corpo.
Permiti que me acariciasse os seios sensualmente.
Ele ficou me olhando enquanto me tocava, usando
uma firmeza que não senti na primeira vez. Gê já
me conhecia. Seria mais fácil, e até mais gostoso,
daquela vez. Eu tinha certeza. — Se chama paixão.
— Paixão?
— Sim... — balancei a cabeça
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positivamente. — Quando queremos uma coisa na


máxima intensidade, podemos chamar de paixão.
Eu estou apaixonada por você.
Gê abriu bem os olhos vermelhos.
— Neste caso, acredito que estou
profundamente apaixonado pela senhorita.
Abri um largo sorriso.
Não importava mais o que viria a acontecer.
Eu sabia que aquele desejo que invadira o Gê era o
mesmo que dominava o meu corpo, portanto nada
mais era relevante. Nem mesmo os Recolhedores
eram capazes de arrancar de mim a tamanha alegria
que invadiu o meu peito.
Quando nossos lábios se juntaram, pude
sentir toda a energia contida na antecipação do
momento transcendental que certamente
reviveríamos. Concentrei-me nela e me deixei
levar, como um peixinho que seguia a correnteza.

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28

O vasto Universo me recebeu de muito bom


grado, e também ao êxtase prolongado que permitia
que eu fosse a mulher mais feliz de todas as
galáxias. Podia sentir o corpo nu do Gê abaixo de
mim enquanto eu comandava a nossa entrega, um
pedaço dele se conectando a cada partícula do meu
ser por meio do meu ventre em polvorosa. Jamais
conseguiria explicar como era a sensação de ter um
orgasmo que durava vários minutos. Talvez fosse
igual a ir ao paraíso e finalmente descobrir todos os
mistérios da vida. Era um preenchimento
inigualável, o ápice do entendimento e do
sentimento humano.

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De fato, eu me sentia sobre-humana ao


navegar entre as estrelas, meteoritos, cometas,
planetas e poeira cósmica. Sentia que ali no espaço
era o meu verdadeiro lar, onde eu podia ser
plenamente feliz e realizada. Tudo era acolhedor.
Os beijos que o Gê me oferecia no pescoço,
descendo pelos ombros e concluindo em meus seios
ajudavam a me deixar ainda mais segura,
pertencente ao transcendentalismo momentâneo.
Não houve medo, como da primeira vez, ou mesmo
estranhamento. Soou tão natural que eu não podia
acreditar que não tivesse nascido exatamente para
ser dele, somente daquele venusiano de olhar
penetrante.
— Estrela... — ele sussurrou em meu
ouvido, rouco, em pleno gozo. Eu adorava vê-lo de
forma vulnerável, porém tão feroz. Gê sabia como
ser intenso. Nossos suores misturados não negavam
a intensidade do ritmo exigido. — Estou te vendo...
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Assim que soltou a informação, flashes


começaram a surgir na minha mente, em paralelo
com o Universo que girava à nossa volta. Tornei a
ver a infância do Gê, seu trabalho com os
Recolhedores, a construção da nave e do
experimento. Visualizei todos os planetas que já
visitou, as criaturas estranhas que cruzaram o seu
caminho e os longos anos de solidão absoluta,
recluso enquanto se dedicava às pesquisas. Por fim,
pude ver cada detalhe de sua vinda a Terra, o medo
que sentiu ao perceber sua nave caindo, o coração
batendo forte ao me ver assustada.
Rememorei as suas próprias memórias
como se me pertencessem. Senti cada uma de suas
emoções e me vi completamente encantada diante
de tanta pureza. Gê era um ser pudico por natureza.
A ingenuidade contrastava com a inteligência
incomum, assim como suas carícias suaves eram o
oposto da selvageria com que me possuía.
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— Gê... — gemi de volta, maravilhada. Não


dava para limitar o meu controle naquele instante.
Eu podia ser, sentir, pensar o que quisesse. —
Também te vejo! — avisei em um arquejo
prazeroso.
Os flashes não pararam de surgir como um
turbilhão de informações que, miraculosamente,
fazia todo o sentido. Vasculhei as memórias como
se estivesse com o livro da vida do Gê aberto em
minhas mãos. Confirmei o roubo dos dados ao
sistema dos Recolhedores. Assim como ele havia
dito, as únicas informações tomadas foram ao meu
respeito, nada além disso.
Repentinamente, as lembranças pararam em
uma cena fugaz, perdida entre tantas outras, mas
que chamaram a minha atenção completamente.
Tudo porque percebi a presença de um ser
encapuzado, igualzinho ao Recolhedor com quem
tive um contato psíquico mais cedo. No entanto, a
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criatura retirou o capuz e deixou à mostra olhos


vermelhos intensos, muito parecidos com os do Gê,
além de cabelos azuis compridos, que se perdiam
por dentro da vestimenta sinistra.
— É impossível obter uma permissão
objetivando uma tola invasão à Terra, sobretudo
para abduzir uma humana específica, que já foi
monitorada em nossos arquivos — o extraterrestre
dizia seriamente, de pé no centro de uma nave
espacial elegante. Ele ocupava uma poltrona tão
grande que caberiam três ETs iguais a ele. — Sua
solicitação é absurda, agente G12L07N98P.
O nome inteiro do Gê me chamou ainda
mais atenção. Demorei a perceber que, na verdade,
a língua falada era muito diferente de qualquer uma
que fosse humana. Contudo, por incrível que
pudesse parecer, eu a compreendia perfeitamente.
— O senhor necessita compreender a
importância deste experimento — Gê respondeu
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com a voz firme, como se nada tivesse lhe sido


negado. — É imprescindível que a humana esteja
presente. Caso contrário, jamais poderei comprovar
a eficácia da nova tecnologia que criei.
— Compreendo seus esforços e a
importância de sua pesquisa, agente G12L07N98P.
Porém, repito, é impossível obter uma autorização
do Conselho e dos governantes terrestres. — A
criatura pareceu refletir um pouco mais. — A não
ser que a Ordem dos Recolhedores esteja ligada ao
pedido.
Gê aquiesceu, concordando.
— Depois da comprovação do experimento,
ele pode pertencer aos Recolhedores sem que eu
faça qualquer objeção — Gê falou, e quase tive
vontade de gritar diante de sua proposta. Ele tinha
sugerido dar de mão beijada seus anos de pesquisa?
Impossível de acreditar! No fim das contas, o
coitado só queria mesmo era atender ao meu pedido
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infantil. — Meu único desejo é testá-lo.


— Interessante... — o Recolhedor apoiou a
mão de aparência esquisita no queixo pontudo. Ele
também era venusiano. Pelas características, ficou
bem óbvia a semelhança com o Gê.
— Seria de muita utilidade para a Ordem
dos Recolhedores possuir uma nave capaz de
atravessar o tempo/espaço em questão de segundos.
E não é apenas isso, a 14038 é capaz de...
— Li o relatório a respeito da 14038 — o
extraterrestre interrompeu o discurso empolgado do
Gê. — É realmente de extrema serventia à Ordem.
— Após alguns segundos de silêncio, completou:
— Verei as possibilidades de uma autorização, mas
pode levar alguns anos.
— Não tenho muito tempo. Os anos
terrestres correm demasiadamente rápidos e a
humana em questão precisa estar em perfeita
condição física para suportar uma viagem tão
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exaustiva.
O Recolhedor acenou positivamente.
— Esqueçamos a autorização e façamos um
trato — sugeriu com um olhar carregado de certa
malícia. — Você precisa de nós para atravessar a
atmosfera terrestre e nós precisamos do
experimento e da nave. O Conselho não precisa
tomar conhecimento desta troca.
Gê deu de ombros.
— Seria uma atitude ilegal, senhor.
— Sim, porém teríamos o tempo hábil.
O ser que naquele momento me possuía
acabou concordando, ainda que um pouco
relutante. Gê não gostava de fazer nada errado.
Minha vontade era de gritar para que não aceitasse
aquele absurdo, mas nada pude fazer. O que eu via
era apenas uma lembrança do que já havia
acontecido. Não tinha volta. Gê fora enganado por
aquele Recolhedor malicioso e não nos restava
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mais nada além de tentar sobreviver.


— Temos um acordo, senhor — Gê fez um
gesto esquisito com as mãos, que significava
máximo respeito a uma autoridade.
Mais informações me bombardearam e
permaneci num estado louco que mesclava êxtase e
desespero. Gê invadiu os meus lábios com os seus,
tomando-me por completa e permitindo que tudo
dele fosse meu também. Era uma entrega tão
intensa, crua e maravilhosa que meus olhos
cerrados se encheram de lágrimas não derramadas.
Senti todo o cuidado que havia me
oferecido enquanto esteve comigo. Minha mente
guiou meus pensamentos para uma noite na
fazenda, exatamente no instante em que Gê velava
o meu sono com um olhar apaixonado. Achei que
ele não fosse capaz de sentir aquilo com tanta
força, mas era muito óbvio: pude reconhecer cada
fibra do sentimento que nutria por mim. E, com
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toda sinceridade, não era mera paixão.


Gê me queria. Muito. Não apenas naquela
noite, não somente para satisfazer desejos sexuais
ou mesmo transcendentais. Ele me queria para
sempre, desejava me levar ou ficar, o que fosse
mais fácil para tornar a união possível.
Diferentemente do que sempre pensei, ele jamais
me achou estranha, muito pelo contrário. Gê me
considerava encantadora.
Perceber a mim mesma pela janela de seus
olhos vermelhos foi uma experiência reveladora.
De repente, senti que minha existência valia a pena.
Senti que eu, Estrela, era a companheira certa para
aquele ser de outro mundo. Não importava o que
acontecesse, meu dever, a partir daquele instante
revelador, era tornar possível o desejo enorme de
um coração puro, que só queria uma companhia,
uma amante, uma amiga, alguém que lhe causasse
extrema vontade de perder a razão. Eu era aquela
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pessoa.
— Gê... — balbuciei. Deixei algumas
lágrimas escaparem, mas ele não as percebeu
porque estava muito ocupado beijando e lambendo
o meu pescoço, provocando-me uma série de
arrepios. — Eu sou sua, Gê... Toda sua.
Ele soltou um gemido mais ruidoso do que
todos os outros que escaparam pela sua boca. Girou
nossos corpos de forma que fiquei por baixo dele.
Gê abriu as minhas pernas ao máximo e trabalhou
intensamente, acelerando o ritmo, aprofundando a
entrega, trazendo-me mais memórias.
Todavia, aquela, em específico, me deixou
chocada. Não foi um acontecimento, um diálogo
feito nem nada do tipo. Foi apenas uma ideia que
me acometeu, e que eu sabia que fazia parte dos
planos dele:
“O experimento Estrela X-189 precisa ser
destruído para garantir a segurança de Estrela.
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Ela é a criatura mais importante para mim,


portanto perdê-la é inaceitável. Ao amanhecer,
atravessarei sozinho a atmosfera terrestre,
deixando-a em plena segurança e, no espaço,
desintegrarei o sistema da 14038, causando uma
explosão capaz de destruí-la em poucos segundos.
Desta forma, os Recolhedores a deixarão em paz
definitivamente.”
Aquela ideia circulou em minha mente feito
um mantra grotesco. Enquanto gemia de prazer,
impossibilitada de sentir qualquer outra coisa além
do clímax eterno, fui tomando consciência do que
aquela mensagem significava. Cheguei a algumas
difíceis conclusões:
1 – Gê prezava muito pela minha segurança;
2 – Ele estava disposto a perder o
experimento para me manter a salva;
3 – Ele pretendia me deixar sozinha e partir
para o espaço muito em breve, mesmo que tenha
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prometido nunca me abandonar;


4 – Gê seria capaz de desintegrar a nave
estando dentro dela.
Ou seja:
5 – Gê morreria por mim.
Quando o total entendimento me dominou,
rompi nosso contato físico, espiritual e psíquico
imediatamente. Empurrei-o para bem longe, usando
toda a força que me foi possível, o que nem foi
tanta assim, visto que o Gê mal se moveu para trás.
— NÃO! — gritei, horrorizada, aos prantos.
Ele não podia fazer aquilo comigo. De jeito
nenhum.

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29

Por menos que eu desejasse, a nossa


conexão profunda foi desfeita em um clique
torturante, deixando as informações seguintes no
ar, tudo porque eu jamais conseguiria continuar
com a nossa entrega sabendo que o Gê estava
prestes a cometer uma barbaridade contra a própria
vida. Pior ainda, para me proteger dos
Recolhedores. No entanto, partir a corrente
energética e espiritual que nos ligava me deixou
tonta no mesmo instante, de modo que, tão logo me
afastei, apoiei as costas em uma das faces da nave,
ofegante e toda trêmula.
— O que aconteceu, Estrela? — Gê

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questionou, assustado. Tentou se aproximar com


aquele corpão todo nu, mas espalmei as mãos em
seu peitoral, contendo-o. Nós precisávamos ter uma
conversa muito séria. Eu precisava tirar a ideia de
se matar da cabeça dura dele. — A senhorita está
em perfeito estado físico e psicológico?
— N-Não... — balbuciei, ainda sentindo os
últimos resquícios de nossa conexão se perdendo,
aos poucos. — Não, Gê... — ofeguei.
— Eu a machuquei? — ele pareceu
transtornado com a ideia, abrindo uma expressão
aterrorizada. — Perdoe-me, Estrela, não quis, de
forma alguma...
— Você não me machucou, Gê —
interrompi-o antes que se desesperasse mais. —
Pelo menos não fisicamente. Eu... Descobri tudo.
Ele abriu bem os olhos vermelhos.
— O que a senhorita descobriu?
— Suas pretensões. Eu vi tudo, Gê. Seu
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plano é esperar amanhecer para se ver livre de mim


e ir embora sozinho — dei uma pausa para respirar.
Estava completamente sem fôlego e o meu coração
batia forte, tanto pelo orgasmo prolongado quanto
pelo medo do porvir. — Pretende explodir a
14038... Com você dentro dela.
Gê deu de ombros. Talvez soubesse que não
adiantaria negar, pois a nossa ligação era profunda
e não tinha como burlá-la. Tudo o que visualizei
era a mais pura verdade. Os pensamentos dele eram
reais.
Por alguns segundos, esperei que se
explicasse, ainda lhe dando a chance de mostrar
que aquele absurdo era somente uma ideia, nada
concreto. Contudo, Gê apenas desviou o rosto e
permaneceu calado, consentindo tudo.
— Você não pode fazer isso... — sussurrei,
assustada. Meus olhos se banharam de lágrimas
diante daquela possibilidade terrível. Eu não queria
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nem pensar em como seria viver sem ele. — Não


pode e não vai. Não permitirei.
— Estrela... É a sua única opção — Gê
falou seriamente, ainda sem ter a decência de olhar
no fundo dos meus olhos. — Não consigo encontrar
outra. Já tentei refletir sobre soluções mais fáceis
para o nosso problema, porém a forma definitiva de
resolvê-lo é desintegrando o experimento e todo o
sistema da 14038.
— Não — balancei a cabeça rapidamente.
— Essa não é uma opção. Prefiro me entregar aos
Recolhedores agora mesmo a te deixar fazer isso. É
um absurdo!
— E eu prefiro resolver a situação de uma
vez a permitir que seja levada por eles — Gê
completou, a voz ficando ainda mais séria e
robótica conforme o desespero aumentava. — Fui
eu que a coloquei em perigo, deixei a senhorita
vulnerável, no meio do alvo. Preciso corrigir meus
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erros de maneira definitiva, para não prejudicá-la


mais do que já prejudiquei ao criar esse
experimento.
— Você fez tudo por mim, Gê.
— Ainda assim, deveria ter feito de uma
forma menos inconsequente. Uma maneira que não
fosse perigosa para a senhorita — ele balançou a
cabeça em negativa, ficando muito parecido com
um humano aos meus olhos. Finalmente me
encarou. Consegui perceber uma tristeza profunda
em seu olhar avermelhado. — Não é meu desejo
deixá-la. Contudo, cometerei qualquer espécie de
absurdo se significar a sua integridade.
Deixei muitas lágrimas escaparem. Ele não
podia estar falando sério.
— Não vou ficar nem um pouco íntegra
sem você aqui comigo, Gê. Vamos pensar em
outras opções, por favor!
— Nosso tempo é demasiadamente
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limitado, Estrela. Os Recolhedores não vão nos dar


uma trégua. Eles obterão o que desejam com
bastante facilidade se não formos mais rápidos.
Continuei chorando e balançando a cabeça
em desespero.
— Não há um jeito de destruir o
experimento sem que isso te destrua também? Pelo
amor de Deus, Gê, você não pode se matar! —
pranteei, agarrando minha cabeça e puxando os
cabelos com força. Ele precisava entender o
tamanho da agonia em que eu estava inserida
naquele momento perturbador. — Não faz sentido
acabar com sua existência assim!
Gê ficou me observando, transtornado.
Creio que ele jamais tinha se deparado com tanta
aflição em sua vida. Era visível que não sabia lidar
comigo e muito menos com os sentimentos novos
que lhe invadiam. A careta confusa e perdida não o
largava, bem como aquela tristeza, que fazia seus
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olhos sempre brilhantes se opacarem. Eu não queria


vê-lo daquele jeito, mas não havia o que ser feito
para acalmá-lo. Eu estava no meio de um ataque de
pânico, e minha única vontade era a de agarrá-lo e
implorar para que não me deixasse.
— Criei um sistema de segurança tão
perfeito que não daria tempo de deixar a nave,
Estrela. — Eu me tornei incapaz de dizer qualquer
coisa, então Gê continuou: — Morrer pela
senhorita me parece uma forma honrosa de deixar
de existir. — Encarei-o fixamente, sentindo um
misto de admiração e agonia. A pureza do Gê não
conhecia limites. Achei que eu não pudesse ficar
mais apaixonada, porém ele me mostrou, naquele
instante, que eu podia, sim. — Somos apenas
pedacinhos de nada em órbita, Estrela. Não
morrerei, meu corpo apenas se transformará em
poeira e, com o passar das eras, serei um fragmento
estelar.
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O modo como falou seria poético se não


fosse tão trágico. Chorei ainda mais diante de sua
tranquilidade a respeito da morte.
— Não quero que seja um fragmento, Gê —
choraminguei. Abri a boca para discutir mais,
porém nenhuma palavra saiu. Eu estava perdendo
os argumentos por causa do pavor que a ideia de
perdê-lo me trazia.
— Todos os seres vivos serão fragmentos
um dia.
— Não quero que seja agora, logo agora
que nos encontramos e que... nos apaixonamos.
Temos muitas coisas para viver, juntos.
Gê balançou a cabeça.
— Eu gostaria de acreditar que a senhorita
possui a razão, porém o que percebo é que essa
paixão é impossível de ser vivenciada como
aqueles romances que estão na estante de seus
aposentos — Gê voltou a falar de forma robótica,
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assustando-me. Às vezes, seu lado extraterrestre


falava mais alto e eu ficava muito confusa. Sua
mente estava longe de funcionar como a minha. —
Não sou um humano, Estrela, e jamais serei. Prefiro
deixar de existir a viver sem a senhorita, o que
certamente acontecerá, cedo ou tarde, já que os
anos humanos são curtos em relação aos meus anos
venusianos. Estou tentando fazê-la compreender
que esta opção é a melhor para nós dois, de todos
os âmbitos imagináveis.
Fiquei muda, estática, com o coração
retumbando dentro da caixa torácica e um
sentimento terrível de vazio. Talvez o Gê tivesse
razão, um relacionamento entre nós dois não
duraria mais do que os anos humanos que me
restavam, e ele me veria envelhecer sem que o
tempo fizesse absolutamente nada em seu corpo
atual. Observei-o da cabeça aos pés. Analisei a pele
leitosa, os cabelos tingidos, cada detalhe de sua
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face, seu sexo e as pernas compridas, ausentes de


pelos.
Os pensamentos do Gê estavam sempre à
frente dos meus. Ele já raciocinava sobre o futuro,
mais precisamente sobre o momento em que eu não
estaria mais aqui e ele ainda teria que lidar com
muitos e muitos anos de vida, até finalmente
padecer. Se fosse o contrário, certamente eu me
preocuparia. Talvez, por este motivo, eu tenha
assentido devagar, finalmente começando a
entendê-lo.
Para Gê, se matar não significaria apenas
me salvar, mas salvá-lo de anos de solidão, sem a
minha presença no universo. Ele já sabia que o
nosso envolvimento era fadado ao fracasso. Talvez
preferisse nem mesmo se comprometer mais, se
conectar a mim com mais força só para ter que me
deixar depois. Quantos anos de vida ainda me
restavam? Cinquenta? Sessenta? Talvez menos.
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Talvez mais. Não era exato, tudo podia acontecer.


E imaginava que aqueles anos era muito pouco para
quem vivia tanto. Para alguém como ele.
— A senhorita consegue obter alguma
compreensão a respeito do que acabei de explicar?
— ele perguntou em um sussurro, tentando se
aproximar de novo. Deixei que viesse. Gê segurou
uma mecha do meu cabelo, carinhosamente.
Continuei o encarando. — Estrela?
Assenti mais uma vez.
— Sim.
— Compreende a minha motivação para
cometer atitude aparentemente absurda, porém
repleta de racionalidade?
— Compreendo — falei com firmeza.
Precisava demonstrar entendimento para que o Gê
não se preocupasse mais comigo. Eu já sabia
perfeitamente o que fazer, só me restava buscar
tranquilidade e, claro, muita coragem. — Tudo
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bem, Gê. Se essa é a sua escolha, e se tem certeza


de que é a melhor opção, faça.
— Ao amanhecer — ele sussurrou,
passando as mãos suaves pelo meu rosto. — A
senhorita estará apta a prosseguir com a sua vida
sem interrupções.
Assenti, arriscando um sorriso sem graça.
Gê abriu algo parecido com um também.
— Vai ficar tudo bem — falei, tentando me
convencer. — Sentirei a sua falta.
Gê encostou seus lábios nos meus com
bastante doçura.
— Prometa-me que a senhorita será
imensamente feliz, e que viverá tranquilamente
entre os seus. Um dia, nossos fragmentos poderão
se encontrar para fazer parte de uma brilhante
estrela — ele balbuciava suavemente, arrancando-
me lágrimas dolorosas. — Será a minha forma de
atender ao seu pedido.
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Soltei um soluço proveniente do âmago do


meu ser, incapaz de respondê-lo. Tudo doía tanto
que não consegui mais me segurar, caí no choro
novamente, sendo embalada por seus braços
sempre quentes. Chorei até que todas as lágrimas
secaram, porém não ousei me afastar do Gê.
Permanecemos juntinhos durante longos minutos,
até que percebi seu denso respirar, indicando que
havia adormecido.
Era o momento de colocar o meu plano em
ação.
Sem hesitar, fechei os olhos e pensei no
Recolhedor com quem sempre mantinha contato, e
que parecia ser o chefe da gangue toda, o
bambambã do pedaço. Bom, eu não me importava.
Ele tinha que resolver o meu problema, do
contrário tudo estaria perdido.
Alguns segundos foram necessários para
que a minha própria consciência me levasse para o
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meio da mata, local onde geralmente nos


encontrávamos. Como da outra vez, o Recolhedor
estava encapuzado e de pé entre as árvores,
mostrando toda a sua imponência. Não parecia
assustado por eu ter sido capaz de criar o contato de
novo, muito pelo contrário, consegui visualizar o
resquício de um sorriso em seus lábios finos.
— A que devo a honra, senhorita? — falou
com a voz robótica, causando-me calafrios. Aquele
era o instante decisivo. — Imagino que deve estar
curtindo sua estada nas profundezas do lago.
Inspirei profundamente e me aproximei,
decidida. Estava morrendo de medo, mas ele não
precisava saber disso. Meu dever era ignorar o
pavor e deixar toda a coragem se reunir dentro de
mim. Pelo Gê. Por nós dois.
— Quero fazer outro acordo com o senhor
— expliquei formalmente, com a cabeça erguida.
Ignorei até mesmo a sua gracinha para o meu lado.
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Não estava com paciência para jogos, precisava ser


bem sucinta para ser compreendida.
— Um acordo? Interessante. A senhorita
possui a minha atenção.
Assenti e inspirei com força de novo.
— Gê pretende voltar ao espaço sozinho,
assim que amanhecer — falei de uma vez, como se
tivesse arrancando um band-aid. — Levará a nave
junto com o experimento e... Pretende desintegrar
todo o sistema.
O Recolhedor ficou estático, sem nada
comentar mesmo depois que terminei de falar. De
repente, tirou o capuz, mostrando-se pela primeira
vez diante de mim. Era o mesmo extraterrestre que
tinha feito o acordo ilegal com o Gê, sem dúvida
alguma. Não senti mais medo. Só raiva daquele
sujeito por ter rompido com o seu lado no acordo.
Mas de uma coisa eu sabia: aquele idiota queria o
experimento a qualquer custo, e era exatamente
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daquele seu desejo que eu necessitava.


— Por que a senhorita está me informando
sobre os planos de seu amigo?
— Ele vai me deixar aqui na Terra. — O
Recolhedor continuou calado, creio que esperando
a minha explicação. Por isso, resolvi continuar: —
O senhor deve saber, e se não souber, tudo bem,
que o sistema da nave é bem complexo. Gê não
conseguirá deixá-la quando a 14038 explodir.
Ele abriu seus olhos vermelhos ao máximo,
parecendo surpreso.
— Não é possível. O agente G12 não
cometerá um atentado contra a própria vida,
rompendo uma das principais leis venusianas.
Eu não sabia que era lei para os venusianos
não se matar, mas aquela informação era
irrelevante no momento. Eu sabia que o Gê tinha
perdido todos os princípios só para me ver bem, e
não era nada justo que se sacrificasse tanto.
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— Cometerá — falei seriamente. — Ele


está certo disso.
— Ainda não compreendo por que a
senhorita está me contando a respeito desse plano
engenhoso, porém trágico e extremamente contra o
regimento de Vênus.
— Você quer o experimento, não quer? E
sabe que apenas eu posso utilizá-lo sem desintegrá-
lo.
— Perfeitamente — o Recolhedor
aquiesceu.
— Vim aqui para dizer que eu me rendo.
O extraterreste abriu um sorriso malicioso.
— E o que a senhorita deseja em troca?
Tenho certeza de que não se renderá de bom grado,
apenas porque é seu desejo. Estou certo?
— A lógica é muito simples. Ao amanhecer,
Gê irá ao espaço e o senhor me encontrará no meio
da mata para me buscar. — Fechei os olhos,
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suspirei e tornei a abri-lo. Eu não acreditava que


estava fazendo aquilo, mas era de extrema
necessidade. — Vamos interceptá-lo, impedir que
cometa essa barbaridade. Deste modo, o senhor terá
o que quer e Gê ficará a salvo. Mas precisa me
prometer que o devolverá ao seu planeta de origem.
O Recolhedor ainda sorria.
— E a senhorita e o experimento
pertencerão aos meus domínios, sem qualquer
objeção?
Prendi os lábios.
— Eu juro — confirmei. — No entanto, se
o senhor não cumprir com o seu lado do acordo,
juro que farei de sua existência um verdadeiro
inferno. Vai compreender exatamente por que os
extraterrestres não gostam dos humanos, caso me
contrariar.
O alienígena soltou uma risada assustadora.
— Temos o nosso acordo, senhorita
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Estrela? — ele fez um gesto esquisito, que supus


ser de alguém que fechava um tratado importante.
Por isso, repeti-o, sentindo-me um tanto idiota.
— Temos o nosso acordo, senhor
Recolhedor.

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30

Foi tarefa impraticável dormir naquela


fatídica noite, e mais impossível ainda foi manter a
calma diante de tanta perturbação mental. Roí todas
as minhas unhas até arrancar a pele dos dedos,
andei pela nave para lá e para cá, feito uma
alucinada, pensei nas milhões de possibilidades do
meu plano desesperado dar errado — e, venhamos
e convenhamos, aquilo tudo tinha mais chance de
dar em merda do que de dar certo. Mas eu
precisava arriscar. Não havia outra opção; Gê
estava decidido a se explodir e nada que eu falasse
faria sua racionalidade exacerbada parar de
funcionar.

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Não podia permitir que aquele doido virasse


fragmento. Só de pensar a respeito, meu corpo
sofria calafrios gélidos, que me deixavam ainda
mais fora de mim. Aquele Recolhedor-chefe era a
minha única saída. Eu precisava ter coragem para
seguir o acordo, pelo Gê. Ainda que nós nunca
ficássemos juntos — já que ele seria devolvido para
Vênus e eu viveria a eternidade nas mãos dos
Recolhedores —, jamais me perdoaria se
simplesmente o deixasse ir embora para ter um fim
tão catastrófico. Não fazia o meu estilo me manter
conformada diante daquele absurdo.
Ainda que eu desejasse que o tempo jamais
passasse, para que não fosse necessário amanhecer
e, logo, não ver o Gê partir, em algum momento ele
abriu os olhos e me percebeu aflita, de pé em um
canto perdido da nave. Então eu soube que havia se
passado muitas horas e que o Sol já deveria estar
brilhando na superfície do lago em que estávamos
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submersos.
Eu ainda não estava nem um pouquinho
preparada.
— Já amanheceu — Gê informou
didaticamente, levantando-se do edredom com
tanta tranquilidade que me irritou. Como poderia
estar tão calmo? Meus nervos estavam em
frangalhos. — A senhorita está em perfeito...
— Cala a boca, Gê — interrompi-o,
exalando nervosismo. Minha vontade era de gritar
bem alto, mas me contive. Não ajudaria em nada,
afinal. — É claro que não estou em perfeito estado,
nem físico e nem psicológico.
Totalmente despido, ele se aproximou e
segurou a lateral do meu rosto. Senti sua pele
quente, de textura indefinida, porém macia, e me
senti ainda mais desesperada. Como viver sem
aquele toque? Como existir sem o Gê?
Meus olhos se encheram de lágrimas
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imediatamente.
— Poucas vezes as palavras me escaparam
como agora — ele murmurou enquanto me
analisava de um jeito intenso. Eu não conseguia
mensurar o tamanho da falta que aqueles olhos
vermelhos me fariam. — Meu único desejo é que a
senhorita não perca um segundo de seu tempo
sofrendo pela minha ausência.
Balancei a cabeça em negativa.
— Como, Gê? — deixei as lágrimas
escaparem. — Como não sofrer?
— Todo o Universo está em constante
transformação, Estrela. Nada é capaz de morrer,
pois nada se torna inútil para a natureza — Gê
abriu um sorriso ameno. Continuei balançando a
cabeça. Não queria suas explicações cosmológicas,
pois elas não aliviariam minha dor, queria apenas
que ele ficasse. — Lamentar um processo de
transformação, pelo qual passarei em breve, é
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sofrer pela evolução do Universo. E não haveria


nada, nem eu ou você, sem evolução.
— Foda-se o Universo, Gê. Fica comigo —
tentei mais uma vez, de uma forma desesperada.
Ainda nutria esperanças de que ele mudaria de
ideia. — Não me deixe.
— Estrela...
Sem me dar qualquer resposta — que era o
que eu precisava mais do que tudo —, ele juntou
nossos lábios com paixão. Senti gosto de despedida
naquele beijo desesperado, como se fosse o último
que daríamos. Agarrei o seu pescoço na tentativa de
fazê-lo entender que nunca mais desgrudaria dele, e
que sua opinião a respeito disso não importava.
No entanto, fomos separados por um alarme
que começou a soar alto e insistentemente dentro
do ovo. Luzes vermelhas, estrategicamente
embutidas, passaram a piscar e eu me percebi ainda
mais angustiada.
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— O que é isso?
— A 14038 entrou em modo de alerta —
Gê informou e começou a falar alguns comandos
na sua língua natal, enquanto se vestia, aos
tropeços, com a camiseta e os jeans. Resolvi me
vestir também, já que me pareceu tão apressado,
embora ainda necessitasse de uma resposta vinda
dele. — Precisamos deixar as profundezas do lago
imediatamente.
Gê balbuciou mais algumas palavras
esquisitas e a nave começou a se mover dentro da
água. Meu coração outrora apertado se afunilou
com mais força, arrancando-me o ar dos pulmões.
Só me restava esperar pelo que viria. Eu sabia que
o momento estava próximo e, pela expressão séria
do Gê, ele não cederia com facilidade.
O extraterrestre me puxou para a poltrona
como se fosse uma marionete, pois eu permaneci
estática diante da movimentação da nave, e prendeu
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o cinto de segurança ao redor do meu corpo. Em


seguida, fez o mesmo consigo e segurou a minha
mão. Eu o observei. Prendi a respiração ao me
deparar com aquele par de olhos vermelhos e
sérios. Gê estava preparado para fazer o que achava
que era certo.
E eu precisava estar pronta para destruir os
seus planos.
— Desejava que não fosse necessário tomar
uma atitude tão definitiva, Estrela — falou
firmemente, do mesmo jeito robótico de quando
nos conhecemos. Gê havia se tornado um pouco
humano desde que pisara na Terra, incluindo
muitas emoções às suas expressões faciais e ao
modo de falar. Será que tinha percebido aquilo
tanto quanto eu? — Entretanto, sua integridade
jamais deixará de ser uma prioridade para mim. Seu
bem é ainda mais importante do que qualquer
pedido que possa realizar.
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Engoli em seco. A esperança se espatifou


em mil pedaços, e naquele momento só me sobrara
a vontade de impedi-lo, mesmo que fosse da forma
mais complicada, já que tentar dialogar não surtira
efeito.
Puxei bastante ar para os meus pulmões.
— Faça o que deve ser feito, Gê — soltei
tudo de uma vez. Segurei sua mão com mais força e
continuei o encarando fixamente. — Eu farei
exatamente o que me cabe.
Ele sorriu, certamente sem imaginar o que a
minha última frase significava. Se soubesse, se
sequer tivesse noção, reagiria de uma forma
totalmente diferente.
O ovo subiu tranquilamente, até ouvirmos
um estalido. Consegui ver o céu azul, quase sem
nuvens, através do teto envidraçado. Não consegui
sentir nenhum alívio, apenas angústia e vontade de
chorar. Percebi que havíamos alcançado a terra
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firme após outro estalo; um mais alto que o


anterior.
Gê exigiu que a 14038 se abrisse, e a nave
foi se encolhendo, guardando seus compartimentos,
até finalmente desabrochar em camadas,
mostrando-nos o interior da mata. As árvores,
arbustos e pássaros, tudo parecia pacato, natural.
Nem um sinal de que coisas extremamente bizarras
estavam acontecendo nos últimos dias.
O extraterrestre por quem me apaixonei
tomou minhas mãos, retirando o cinto e me
ajudando a deixar a nave com bastante cautela.
Olhava ao redor com cuidado, como se um
Recolhedor fosse surgir a qualquer instante para
nos atacar novamente. Achei que o Gê fosse descer
também, logo atrás de mim, mas permaneceu sobre
o ovo, mostrando, mais uma vez, que estava
convicto de sua decisão.
Observou-me de cima, com um olhar
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indecifrável. Devolvi aquela intensidade na mesma


medida. Por dentro eu estava gritando. Por fora
mantinha a pose de durona, o olhar fixo e deixava
evidente a coragem que eu não possuía. Ele não se
despediria de mim decentemente? Eu não merecia
nem mesmo um abraço, um último beijo?
Gê abriu a boca, porém voltou a fechá-la.
Não consegui formular nenhuma frase. Pensei em
implorar, em gritar e me descabelar, mas não seria
útil. Sendo assim, apenas esperei que ele dissesse
alguma coisa.
— Eu a amo profundamente, Estrela —
falou, e seu olhar se tornou mais manso. Meu
coração errou uma batida e soltei um arquejo
estupefato. De todas as coisas que Gê poderia falar,
aquela era a que eu menos esperava. — Os
venusianos dificilmente amam uma segunda vez. A
primeira já é demasiadamente rara. Portanto,
respeite os meus sentimentos por você e preserve a
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sua existência com felicidade e sabedoria.


Novamente, meus olhos me traíram e
marejaram.
— E os meus sentimentos? —
choraminguei, desesperada. — Você os respeita?
— Gê arregalou os olhos, surpreso. — Eu te amo
na mesma medida, mas, para você, deve parecer um
sentimento inferior.
— Nada que a pertence é inferior, Estrela.
— Então, fique. Por favor.
Gê ofereceu a sua mão. Abri um sorriso e a
segurei, achando que ele desceria da nave, me
tomaria em seus braços e desistiria daquela loucura,
mas me enganei completamente. Ele apenas me
tocou por alguns segundos, delicadamente, e depois
nos separou. Fiquei com a mão no ar, trêmula e
aflita.
— Possuo a certeza de que o sentimento se
chama amor justamente porque farei isso pela
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senhorita — Gê se explicou em tom de desculpas.


Pediu para que a nave se fechasse e as camadas
foram sendo erguidas devagar. — Caso ficasse e
desistisse de salvá-la, eu questionaria a veracidade
do que sinto.
— Gê!
As portas se fechavam devagar, enquanto
minha angústia crescia. Aquela podia ser a última
vez que o veria e não estava pronta para raciocinar
a respeito.
— Não se esqueça jamais, Estrela. Eu a
amo essencialmente. Onde quer que meus
fragmentos estiverem, eles continuarão te amando,
porque me tornei, em essência, o amor que sinto
por você.
Aquela foi a coisa mais bonita que me
disseram em toda a minha vida, e de longe a
declaração de amor mais profunda que já tinha
ouvido falar, mas não consegui sentir nada além de
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pavor. Ser alvo do amor puro daquela criatura


poderia ser motivo de orgulho e honra se ele não
estivesse prestes a acabar com a própria vida em
nome dele. Sendo assim, eu preferia que o Gê não
me amasse.
— Gê! — gritei, mas nada impediu o
maldito ovo de se fechar completamente.
Dei alguns passos para trás quando a nave
tremelicou, soltou um ruído e começou a levitar de
forma assustadora. O ovo ganhava o céu
lentamente, e a cada metro percorrido, mais meu
coração gritava. Estava acontecendo. Gê foi
embora de vez e a minha vida perderia o sentido até
conseguir interceptá-lo. Eu precisava ouvir sua voz
de novo. Necessitava do seu toque, do cheiro, dos
olhos vermelhos me encarando. Antes de qualquer
coisa, precisava ter certeza de que sobreviveria.
Apenas isso me bastava.
Acompanhei a trajetória da nave até ela
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aumentar de velocidade e sumir completamente das


minhas vistas, de um jeito meio sobrenatural, mas
eu sabia que era ciência pura. Olhei ao redor. As
árvores permaneceram intactas. A vida na fazenda
seria exatamente igual aos tantos anos em que
trabalhei sem qualquer objetivo, sonhando com as
estrelas e os planetas.
Sentei-me sobre uma pedra abandonada,
ainda olhando para os lados como se, do nada, o Gê
pudesse surgir e dizer que tudo aquilo havia sido
uma baita pegadinha. No entanto, a figura que
apareceu após um leve farfalhar de folhas era bem
diferente do Gê, apesar de terem uma aparência
semelhante.
O homem de cabelos longos e azuis se
aproximou sorrindo, trajando uma roupa preta igual
a que o Gê usava quando foi resgatado em meu
milharal. Respirei profundamente, tentando manter
a calma. Estava assustada. Na verdade, apavorada
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era a palavra que se encaixava perfeitamente. Eu


me levantei e esperei que concluísse a sua
aproximação.
— A motivação do agente G12 se tornou
clara como a luz das estrelas depois que ouvi suas
últimas palavras — o Recolhedor falou, e sua voz
era bem menos bizarra pessoalmente do que no
contato psíquico. Para ser sincera, ele me pareceu
bem normalzinho, nada horripilante. Podia até dizer
que era belo, se eu não o odiasse tanto. —
Finalmente eu a estou conhecendo pessoalmente,
senhorita Estrela. Meu nome é extremamente difícil
de pronunciar em sua língua, mas pode me chamar
de Xis. — Ele fez um gesto esquisito, que imaginei
que demonstrava cortesia. — Permita-me dizer que
estou encantado.
Revirei os olhos.
— Chega de papo furado — resmunguei,
ignorando todo aquele show diante de mim. Eu
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estava para a educação tanto quanto uma baleia


estava para um automóvel. — Não temos muito
tempo. Leve-me de uma vez e vamos impedi-lo de
explodir.
O Recolhedor sorriu.
— Curioso.
— O quê?
— O amor entre um venusiano e uma
terráquea é extremamente curioso. Só acompanhei
um caso similar a esse apenas uma vez durante os
setecentos e quatro anos chefiando a Ordem dos
Recolhedores. Obviamente, não acabou em
sorrisos.
Dei de ombros. Os olhos vermelhos de Xis
continuaram em mim.
— Vamos de uma vez — insisti.
Olhei para cima e percebi que não tinha a
menor noção de quanto tempo levaria para o Gê
concluir os seus planos. Talvez ele já tivesse
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explodido, enquanto aquele idiota falava suas


ladainhas.
— Como quiser, senhorita Estrela — Xis
começou a andar na direção do matagal, e eu o
segui sem pestanejar.
Caminhamos entre algumas árvores, durante
poucos minutos, até alcançarmos uma clareira.
Levei um susto imenso ao reparar a imensa nave
que estava repousada entre as árvores da mata. Era
um objeto redondo e cheio de botões, que imaginei
que não fossem botões de verdade. Eu parecia
imersa em um filme de ficção científica, pois a
nave era igual a muitas das que víamos nos filmes.
Abaixo dela, havia uma rampa larga e comprida,
além de outros extraterrestres vigiando ao redor,
segurando armas esquisitas e vestidos de preto da
cabeça aos pés.
— Uau! — Não contive a surpresa.
O Recolhedor-chefe de nome esquisito não
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falou absolutamente nada. Continuou andando com


a cabeça erguida, de um jeito que indicava que ele
era o dono da porra toda. Eu o segui por falta de
opção, mas quase morri de infarto quando meus pés
passaram a subir a rampa rumo ao desconhecido.
Os outros Recolhedores me olhavam atentamente,
como se eu oferecesse muito perigo.
Não dava para acreditar que eu estava me
entregando aos Recolhedores, que viveria no
espaço, em seus domínios, servindo de cobaia para
pesquisas e ações com a 14038 e o experimento.
Certamente a minha vida não seria a mesma, mas,
de repente, a coragem que eu tanto precisava
invadiu o meu espírito. Tirei o semblante
abobalhado do rosto e olhei fixamente para o
interior da nave, que se aproximava conforme a
rampa finalizava. Era tudo brilhante e esquisito,
mas eu tinha que aprender a lidar da melhor forma
possível.
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O Gê valia qualquer sacrifício.

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31

Eu teria me atentado mais ao que existia no


interior da nave se estivesse no meio de uma
excursão tranquila, em nível de curiosidade, e se
soubesse que depois voltaria para casa numa boa.
Como aquela não era a minha realidade, ignorei os
compartimentos esquisitos, a maquinaria
tecnológica, os pseudo-botões e a enorme
quantidade de Recolhedores que passavam por nós
em silêncio absoluto, graças a Deus, usando
máscaras e capuzes. A nave era, com certeza, muito
maior do que eu imaginava.
Percorremos alguns corredores, brancos do
piso ao teto, um verdadeiro contraste com as

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vestimentas daqueles extraterrestres. Por incrível


que pudesse parecer, o medo havia ido embora. Só
conseguia pensar no Gê e na demora daquele
pessoal para ganhar o espaço. Queria impedi-lo de
se desintegrar junto com a 14038 o mais rápido
possível, mas o Xis parecia se divertir enquanto,
silenciosamente, caminhava por entre o que parecia
ser cada pedacinho da nave. Eu não estava com
paciência para visitações.
— Quando iremos decolar? — perguntei,
rompendo o silêncio. Apenas o ruído de nossos pés
em atrito com o piso branco podia ser ouvido, o que
já estava me deixando ensandecida.
— Em instantes, senhorita — Xis não
parecia nem um pouco apressado. Parou diante de
uma porta, que se abriu automaticamente.
Adentramos um imenso salão, repleto de máquinas
que não faziam o menor sentido. — A paciência é
uma virtude, é o que dizem os terráqueos.
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— Uma virtude que não possuo. Vamos


logo com isso, o Gê já deve estar no espaço, pronto
para virar fragmento!
O Recolhedor-chefe nada comentou a
respeito. Andou até uma poltrona enorme e se
sentou com ar de quem sabia das coisas; cabeça
erguida junto com o queixo e um olhar sério
debruçado sobre mim. Supus que aquele lugar fosse
uma espécie de trono, pois me lembrava bem dele
nas lembranças do Gê. Fora naquele salão que os
dois haviam feito aquele acordo nunca cumprido.
Dois Recolhedores encapuzados, segurando
suas armas, entraram no recinto e permaneceram
cada qual em um lado, como se me vigiassem.
Compreendi por que estava com a sensação de estar
sendo seguida até chegar ali; os seguranças de Xis
haviam nos acompanhado atentamente, sem que eu
percebesse.
— As regras para sua estada são de fácil
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compreensão, senhorita Estrela — ele falou em um


timbre duro. — Antes de partirmos, gostaria de
garantir seu entendimento com relação aos
procedimentos.
— O senhor não pode me falar sobre eles
enquanto salvamos o Gê? — retruquei, impaciente.
— Tempo é ouro, é o que dizem os terráqueos.
Xis abriu um leve sorriso. Achei que fosse
rebater e continuar me enrolando, mas ele
simplesmente falou um monte de coisas em uma
língua estranha, que eu bem reconhecia, e estalou
um dedo. Os seguranças deixaram o salão
imediatamente, e Xis apontou para uma poltrona
menor que ficava perto da sua, no canto esquerdo,
convidando-me a sentar. Fui sem pestanejar.
Automaticamente, cintos de segurança
surgiram e nos prenderam. As poltronas giraram de
repente, deixando-nos frente a frente com um
imenso e reluzente painel. Não havia botões
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naquele, no entanto. Apenas ícones que se


sobressaíam em 3D, como nos tantos filmes de
ficção. Um compartimento começou a ser aberto,
exibindo uma camada envidraçada similar ao teto
de vidro da nave do Gê.
Aquilo estava ficando mais empolgante.
Remexi-me no assento, ansiosa para ganhar o
espaço. Queria ver de perto tudo o que sempre
observei através da luneta. Seria uma experiência
incrível, isso se, óbvio, conseguirmos salvar o Gê.
Eu não queria pensar na possibilidade de
chegarmos tarde demais. Impedi-lo era a única
opção que meu cérebro podia processar.
Xis não parava de soltar comandos
ininteligíveis para o sistema luminescente. Em
algum momento, ouvi respostas de outro
Recolhedor em uma espécie de alto-falante, o que
me fez perceber que, talvez, não fosse o chefe que
dirigisse a nave, ou pelo menos ele não era o único
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no controle direto de todo o sistema.


Senti um solavanco quando a gigante
construção começou a subir. O início foi de forma
lenta, percorrendo os primeiros metros calmamente,
mas num piscar de olhos as árvores sumiram por
completo e nuvens surgiram no lugar delas, através
do vidro, e eu fiquei sem entender bulhufas. De que
forma a mata desaparecera tão depressa?
— Como...?
Xis me observou de soslaio.
— Os seres humanos possuem uma
tecnologia demasiadamente atrasada — informou
didaticamente, e eu me lembrei de já ter ouvido
aquela frase antes. A falta do Gê gritou em meu
peito em instantâneo. — A senhorita não ficará
isenta de surpresas durante sua estada na Ordem
dos Recolhedores. Há muito a ser aprendido.
— Vou aprender coisas? — fiz uma careta
admirada. Achei que eu fosse ser uma mera
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prisioneira daqueles extraterrestres.


— Certamente. Aprendizagem é
fundamental para garantir a sua utilidade em nossos
domínios. Um ser ignorante se torna obsoleto.
Eu estava tão surpresa que não tive tempo
de ficar chateada por ter sido chamada de ignorante
e obsoleta por um Recolhedor metido a sabichão.
Reparei na camada de vidro e percebi as nuvens
ficando cada segundo mais distantes. Um véu negro
nos aguardava logo acima. Meu coração passou a
bater mais forte ainda. Não dava para acreditar que
eu iria para o espaço de verdade. Parecia um sonho.
Ou um pesadelo, dependia muito da perspectiva.
— Já pode me falar sobre as regras? —
mudei de assunto, curiosa e agitada. Minha vontade
era de sair quicando pelo salão. Poucas vezes tantas
emoções se juntaram dentro do meu corpo.
— Não toque em nada sem permissão —
Xis começou de maneira suave, quase como se
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estivesse apenas jogando conversa fora, e não


exigindo obediência. — Não faça nada diferente
daquilo que for exigido. Não tente fugir. Cumpra
com o acordo sem discussões.
Ele parou e eu esperei que prosseguisse.
Como não o fez, estranhei.
— Só isso?
— Eu alertei que eram regras de fácil
compreensão. A senhorita as compreendeu ou
prefere que sejam repetidas?
— Compreendi muito bem — fiz uma
careta de desaprovação. Aquele idiota achava que
eu era uma energúmena só porque era uma humana.
Voltei a observar o vidro. Prendi a respiração ao
reparar que já estávamos no espaço. Não consegui
ver nada além da mais repleta escuridão, mesmo
assim, tive vontade de berrar. — Já estamos fora da
Terra?
— Sim, senhorita.
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— Ai, meu Deus, que louco! Não estou


sentindo meu corpo flutuar por causa da ausência
de gravidade. Por quê?
Xis voltou a sorrir.
— Temos um sistema gravitacional bastante
avançado.
— Ah... — Já imaginava aquilo, mas não
custava nada perguntar. Meu interesse só
aumentava conforme sentia que ganhávamos
distância. Era muito louco que eu não estivesse
sentindo nenhuma vertigem ou mesmo qualquer
chacoalho no estômago. — Já localizaram a 14038?
Gê não pode ter ido tão longe.
— Ainda não localizamos.
Meus nervos petrificaram. E se nunca o
achássemos?
— Mas vão. Certo? Vocês têm um sistema
bem fodástico pra localizar uma nave pequena em
comparação a essa, né? — Xis não respondeu.
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Fiquei completamente fora de mim, por isso


aumentei o tom: — Por favor, me digam que estão
procurando por ele e que não me enganaram!
— Necessitamos da tecnologia do
experimento, senhorita — ele pareceu irritado com
a minha desconfiança. — Não desistiremos
facilmente. Sua utilidade em nossos domínios é
reduzida a zero sem ele. Não seria inteligente de
nossa parte abduzir uma terráquea sem motivo.
— Acho bom mesmo! — cruzei os braços
na frente do corpo, por cima do cinto de segurança.
— Não faço ideia do que significa a palavra
“fodástico” — ele comentou em tom ameno.
— O senhor não gostaria de saber, acredite.
Algumas vozes soaram nos alto-falantes,
interrompendo a conversa. Deixei que o Xis se
comunicasse com os extraterrestres enquanto
tentava enxergar alguma coisa. Consegui localizar
alguns pontos luminosos adiante, até que a nave
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virou o ângulo e uma luz maior se sobressaltou,


dando-me um susto. Ela foi crescendo, crescendo,
até que eu pude identificá-la por causa da presença
de crateras visíveis a olho nu. Era a lua!
Soltei vários palavrões, baixinho. Não dava
para acreditar. Estávamos muito perto do único
satélite terrestre.
— Localizamos a 14038 — Xis soltou a
ótima notícia de uma vez.
— Meu pai amado! — resfoleguei, tão
nervosa que algumas lágrimas me escaparam. Eu
não estava conseguindo lidar com tantas emoções
controversas. — Está muito longe da gente?
— Felizmente, não. — Xis soltou vários
comandos de forma eloquente. A nave, novamente,
mudou o ângulo, e pude ver um pequeno ovo
branco adiante. A lua desapareceu totalmente de
nossas vistas, porém, nada mais importava naquele
momento: Gê ainda estava vivo! — Como a
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senhorita pode verificar, estamos quase o


alcançando — o chefão apontou para o vidro.
Segurei meu peito com as duas mãos.
— Não dá pra ir mais depressa?
Xis soltou uma risada suave.
— Estamos em nossa velocidade excedente
desde que deixamos a Terra, senhorita. A 14038 é
extremamente veloz. Comprometemos o nosso
próprio sistema na tentativa de alcançá-la.
Fiquei chocada com aquela informação.
— Estamos em risco?
— Certamente. É necessário que o
impeçamos o mais rápido possível, caso contrário
nós que poderemos nos desintegrar no espaço.
— Senhor Jesus Cristo! — berrei
alucinadamente. A situação era ainda mais
apavorante do que eu imaginava. Mais apavorante
ainda era perceber o olhar tranquilo do Xis
enquanto ele me observava com atenção,
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interessado no meu desespero. Os venusianos


realmente não eram conhecidos por demonstrar
emoções. Por falar naquilo... — Você também é um
venusiano, Xis?
— Sim, senhorita. Também sou integrante
do Conselho de Vênus.
Ele era mesmo um bambambã espacial.
— Sua tripulação sabe que corremos riscos?
— Evidentemente. A Ordem é uma
instituição extremamente focada em atingir seus
objetivos, portanto, corremos riscos
constantemente.
— Isso explica a sua tranquilidade —
ofeguei, reparando em seu olhar avermelhado que
quase beirava o tédio. Xis possuía um belo rosto,
como o Gê, no entanto, havia algo em seu olhar que
me deixava com uma pulga atrás da orelha.
Mais vozes agitadas soaram nos alto-
falantes.
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— Estamos quase alcançando a distância


ideal para uma captura — Xis informou logo em
seguida, como se tivesse realizado uma tradução
instantânea daquilo que foi dito.
De fato, a 14038 estava cada segundo mais
próxima.
— Senhor! — uma voz feminina se fez
ouvida no salão, de forma que o Xis se assustou e
fez a sua poltrona girar imediatamente.
Ele falou naquela sua língua estranha,
parecendo irritado com a dona da voz. Fiquei
bastante curiosa, tentando enxergar a suposta
extraterrestre em versão fêmea que havia adentrado
o recinto sem qualquer aviso, porém minha
poltrona continuou virada para o painel.
— Só quero vê-la. Por favor. Permita-me
vê-la ao menos uma vez.
Xis soltou um suspiro e, de repente, minha
poltrona girou.
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Fiquei de frente para um ser que parecia


também ser de Vênus, a tirar pelos cabelos longos
azuis e os olhos vermelhos, mas se tratava mesmo
de uma fêmea. Uma bela fêmea, diga-se de
passagem. Eu não sabia como o Gê não havia se
encantado por uma venusiana antes, pois eu fiquei
bastante encantada.
Ela me olhou atentamente, por vários
segundos, e pude jurar que vi seus olhos
marejarem.
— Retire-se imediatamente, agente — Xis
balbuciou em um rosnado.
A extraterrestre balançou a cabeça e deu um
passo na minha direção. Fiquei sem entender nada
do que estava acontecendo. Quem era aquela
venusiana? Por que estava emocionada? Talvez
uma terráquea lhe causasse curiosidade e
estranhamento em um nível mais elevado.
— Deixe-me tocá-la, senhor. Por favor, eu...
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— Não — Xis foi taxativo. Pela primeira


vez, concordei com ele. Eu não queria ser tocada
por aquela extraterrestre, seria muito esquisito e eu
me sentiria uma aberração. — Saia agora.
— Estrela... — ela murmurou, ainda me
encarando fixamente. Era normal uma Recolhedora
saber o meu nome, certo? Todos naquela nave
deviam ter conhecimento de quem eu era.
Dei de ombros.
— SAIA! — Xis gritou e a venusiana deu
um passo para trás. Fez um gesto estranho e virou
as costas, retirando-se do salão sem mais nada
comentar.
— O que foi isso? — perguntei, confusa e
agoniada.
— A senhorita não gostaria de saber — ele
disse, devolvendo minhas palavras, depois abriu
um sorriso e fez nossas poltronas girarem de novo.
Eu me assustei ao ver a 14038 já tão
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próxima.
— Vamos capturar o seu namorado,
senhorita Estrela — Xis informou de forma
divertida.
Respirei fundo e rezei para que aquele plano
desse certo.

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32

Permaneci em absoluto silêncio enquanto o


Recolhedor-chefe soltava comandos naquela língua
que sempre seria capaz de me provocar calafrios,
não importava quantas vezes eu a ouvisse. Deveria
estar excitada com a ideia de percorrer o espaço em
uma nave espacial de verdade, porém a aflição não
me permitia aproveitar o momento que tinha tudo
para ser incrível. A 14038 continuava à nossa
frente, cortando o véu negro em alta velocidade,
mas Xis se mantinha compenetrado no dever de
alcançá-la, dava para perceber em seu semblante
sério.
Após alguns minutos de pura angústia, luzes

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vermelhas passaram a piscar em todo painel à nossa


frente, como se o sistema estivesse em seu modo
emergencial. Um silvo alto e constante iniciou,
deixando-me ainda mais aflita. Olhei para o Xis,
buscando por respostas, mas ele continuou sério e
conversando avidamente com os outros
Recolhedores. Não quis atrapalhá-lo em um
momento que parecia crucial, sendo assim, calei
meu nervosismo e afundei na poltrona para não ter
um surto.
Ainda que eu estivesse rezando
fervorosamente para nada de ruim acontecer, a
nave começou a perder a estabilidade. Principiou
com um tremelico suave, que logo foi se
intensificando até que tudo passou a chacoalhar
como se estivéssemos no meio de um perigoso
terremoto.
— O que está acontecendo? — berrei para o
Xis. Mesmo sabendo a resposta, achei por bem
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perguntar. Assim, quem sabe, pudesse desabafar


aquela angústia cravada em meu peito.
— Estamos muito próximos a entrar em
colapso — ele respondeu como se nada de mais
estivesse acontecendo. Tudo ao nosso redor
continuava tremendo mais que vara verde. —
Segure-se, Estrela.
Senti que a nave da Ordem dos
Recolhedores se tornava mais veloz a cada
segundo, o que provavelmente estava causando
aquela instabilidade toda. Não sabia até que ponto
nós aguentaríamos, nem o que poderia acontecer
caso a nave entrasse realmente em colapso. Eu não
queria virar fragmento nem tão cedo, mas estava
feliz porque aqueles extraterrestres faziam o
possível para resgatar o Gê, ainda que por um
motivo totalmente egoísta. Pessoalmente, arriscaria
qualquer coisa para salvá-lo.
Eu me perguntei se o Gê tinha
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conhecimento de que estava sendo seguido, e a


resposta veio de imediato. Claro que ele sabia, era
muito inteligente para voar pelo espaço sem
cautela. Vi a 14038 se mover em ziguezague antes
de, mais do que repente, desaparecer
completamente das minhas vistas.
Xis soltou um berro que poderia muito bem
ter sido um palavrão, a tirar pela agressividade que
emanou. A nave da Ordem desacelerou
bruscamente, tanto que, se eu não estivesse usando
cinto de segurança, certamente bateria com a
cabeça no painel luminoso. Ao menos as luzes
vermelhas apagaram, bem como o barulho que já se
tornava insuportável para os meus ouvidos.
— O que houve? — gritei com eloquência,
procurando o olhar avermelhado de Xis. Ele estava
visivelmente irritado. — Onde a 14038 foi parar?
Sumiu!
O Recolhedor-chefe me olhou com raiva
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evidente.
— A 14038 tem a capacidade de viajar no
espaço-tempo — disse, por fim.
Meu cérebro, a priori, deu um nó e não
permitiu que eu tivesse qualquer entendimento a
respeito daquela informação. Precisei de alguns
segundos para compreender que o Gê podia saltar
em vários pontos do espaço em pouquíssimo
tempo, mexendo com a relatividade. Era daquela
forma que alcançaríamos o Sol em apenas oito
minutos. Significava que ele poderia estar em
qualquer lugar, a qualquer espaço de hora do
presente, do passado ou do futuro?
— Vocês podem localizá-lo, não podem? —
perguntei com a voz embargada.
Xis demorou demais a responder. A nave
desacelerou tanto que parecia estar apenas
flutuando no meio do nada, sem qualquer
direcionamento. Nem mesmo as luzes diferentes, e
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muito bonitas, rodopiando perto de nós me


trouxeram calma.
— É impraticável, senhorita — finalmente
obtive uma resposta.
Meus nervos pareceram congelar. Senti a
esperança sofrendo um grande abalo dentro de
mim, de forma que me percebi prestes a abrir o
maior berreiro.
— E agora?
— Certamente o agente G12 alcançará o seu
objetivo — Xis soltou um ofego como se estivesse
exausto. Recostou-se na poltrona e continuou me
observando atentamente. — Sem o experimento
Estrela X-189, não vejo qualquer motivo para
permanecer com a senhorita.
Uma lágrima escapou. Não dava para
acreditar que tínhamos chegado tão perto para
simplesmente falharmos. Gê não podia morrer.
Simplesmente não podia.
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— O que vão fazer comigo?


— A senhorita será devolvida ao seu
planeta.
Balancei a cabeça em desespero.
— Não. Não vou voltar, Xis, não sem o Gê.
— É impossível encontrá-lo, Estrela,
qualquer tentativa será vã. Ele atingiu a velocidade
necessária para viajar através do espaço-tempo,
nossa chance de interceptá-lo foi encerrada.
— Não pode ser! — pranteei. As lágrimas
começaram a escorrer em enxurradas.
— Demoraríamos milhões de anos-luz à
procura dele e ainda assim haveria a chance de
jamais nos encontrarmos novamente — Xis falou
tranquilamente, de forma didática e indiferente. Seu
timbre manso me deixou possessa. — Reitero o que
falei antes: é impossível alcançá-lo.
— Tem que haver um modo! —
resmunguei. De imediato, uma ideia me acometeu
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como se acendessem uma lamparina bem no âmago


do meu cérebro.
Havia um jeito de alcançar o Gê. Ou
melhor, uma maneira do Gê nos alcançar. Como
dizia o ditado, se Maomé não vai à montanha, a
montanha vai a Maomé.
Apoiei a cabeça no encosto da poltrona e
coloquei meu plano em ação instantaneamente, pois
não havia tempo para discutir ou explicar.
Precisava contatar o Gê o mais depressa possível,
antes que fizesse alguma besteira. Fechei os olhos e
me concentrei o máximo que pude, pensando no
belo rosto daquele extraterrestre que tanto mexia
comigo. Imaginei seu abraço, seu toque e seus
olhos profundos me analisando. Relembrei o exato
instante em que disse que me amava.
Não demorou. Em questão de segundos,
apareci dentro de uma nave, mas não era a que
pertencia à Ordem. Minha alma planou através do
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espaço para se conectar ao Gê dentro da 14038. Ele


estava sentado em sua poltrona, murmurando
comandos do seu jeito costumeiramente calmo, mas
arregalou os olhos quando me viu.
— E-Estrela?
— Volte, Gê — ajoelhei aos seus pés. —
Por favor, volte.
— E-Eu não sei como a senhorita
consegue... manter contato psíquico do seu planeta
com alguém que está no espaço, mas... — balançou
a cabeça em negativa. — É loucura! Por favor,
Estrela, não torne a situação ainda mais difícil.
— Eu não estou na Terra — informei de
uma vez. — Estou no espaço, dentro da nave
enorme dos Recolhedores. Volte, Gê! Entregue-se a
eles.
— O-O quê? — Nunca tinha visto o Gê tão
gaguejante. Ele geralmente tinha muita firmeza
quando falava, ainda que a situação fosse
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periclitante. — Por quê? Como?


— Fiz um acordo. Pedi para que eles te
interceptassem e, em troca... — parei, olhando-o
fixamente. Gê ainda balançava a cabeça,
certamente sem acreditar no que eu dizia.
— O que você fez, Estrela? — perguntou
em um timbre desesperado.
— Eles querem a mim e ao experimento. Eu
quero que você sobreviva — toquei nos seus
joelhos com as duas mãos, ainda ajoelhada. —
Você será devolvido ao seu planeta, são e salvo.
Ele fez uma careta tão expressiva que mal
pude traduzi-la. Parecia um misto de espanto,
decepção, incredulidade e tristeza.
— E a senhorita?
Dei de ombros.
— Sempre quis conhecer o espaço e
aprender sobre ele — murmurei, convicta. —
Agora, tenho a oportunidade de seguir os
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ensinamentos dos Recolhedores.


— Não. Não, Estrela... — Gê soltou alguns
gaguejos. Pela primeira vez desde que o conheci,
percebi verdadeiro desespero em sua bela face.
Analisando seus olhos, reparei que marejaram.
Nunca tinha visto o Gê chorar antes, por isso, vê-lo
tão angustiado me trouxe mais lágrimas. — Não. A
senhorita não fez isso.
— Eu te amo, Gê — sussurrei, tão baixo
que não passou de um fraco ruído. Segurei suas
mãos com força. Ele continuou me olhando. — Eu
te amo humanamente. Pode não ser raro como o
amor venusiano, mas é intenso, de verdade, pura
chama, eterno enquanto durar. É egoísta na maioria
das vezes, mas também consegue ser altruísta nas
situações emergentes. Não é racional e nem pode
ser calculado, mas existe e eu sinto. Sinto tanto que
não posso viver sem saber se você está vivo.
Uma lágrima escorreu e atravessou seu
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rosto surpreso. Prendi a respiração enquanto


acompanhava mais lágrimas se juntarem à primeira.
Eu não sabia que o Gê era capaz de externar tanta
emoção, afinal, o choro é a maneira mais
emergente de desabafar sentimentos conflituosos.
Uma característica que pensei que fosse
essencialmente humana. Mas tanto ele quanto
aquela venusiana esquisita me fizeram entender que
todos os seres vivos eram capazes de se
emocionar.
— Então, respeite os meus sentimentos e
volte — continuei, já que ele nada comentou,
apenas chorava enquanto me encarava. — Viva
com felicidade e sabedoria, por favor. Não deixe de
viver — devolvi as palavras que usou em nossa
despedida e finalmente o Gê aquiesceu,
demonstrando compreensão.
Sorri para ele e recebi um sorriso tímido de
volta.
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Achei que a minha tarefa tinha sido


concluída e deixei a consciência retornar à nave dos
Recolhedores. Pisquei os olhos por causa da
iluminação. Xis estava de pé na minha frente,
analisando-me com curiosidade, quando despertei.
— A senhorita está em perfeito estado físico
e psicológico? — questionou, com o semblante
confuso. Sorri porque me lembrei do Gê e das
tantas vezes que fizera aquela pergunta. — Fez um
contato psíquico com o agente G12?
— Sim e sim — enxuguei as lágrimas que
tinham ensopado o meu rosto. Não havia mais
motivo para tanta aflição. Eu sabia, tinha certeza,
que o Gê não se mataria. — Vamos esperá-lo.
Xis abriu um sorriso malicioso e voltou a se
sentar na poltrona ao meu lado.
— A senhorita acredita que ele virá de bom
grado?
Assenti, convicta.
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— Acredito.
No instante seguinte, a 14038 simplesmente
se materializou alguns metros à frente da nave dos
Recolhedores. Xis começou a berrar ordens na
língua estranha enquanto eu ria
descontroladamente, em uma crise de riso fora de
hora.
Ele tinha voltado. Gê não viraria fragmento.
Não importava o nosso futuro, se ficaríamos
juntos ou não, se poderíamos alimentar aquele
amor ou não. Eu estava tranquila por ser
correspondida e por tê-lo vivo, sobrevivendo, seja
lá onde fosse; em Vênus, na Terra ou na Lua.
— A senhorita o ama em veracidade — Xis
comentou depois que parou de se comunicar com
os seus. A nave fazia alguns barulhos estranhos,
aproximando-se cada vez mais da 14038, que
parecia estacionada no espaço. — Porém não
acredito que deva cultivar esperanças. Um
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relacionamento entre espécies tão distintas é


impraticável.
Dei de ombros.
— Não me importo.
— O agente G12 poucas vezes perdeu sua
racionalidade. Ainda estou impressionado com o
rumo dos acontecimentos — o Recolhedor-chefe
coçou o queixo com os dedos longos. — Creio que
levar a situação ao Conselho de Vênus é o certo a
ser feito.
— Conselho? Pra quê?
— Muitas regras foram ignoradas, senhorita
Estrela. Temo que o agente G12 seja um perigo
intergalático.
— Perigo? — Eu me chacoalhei na
poltrona, encafifada com o rumo daquela conversa.
O que aquele doido estava querendo? — Gê não é
perigoso.
— Um venusiano que constrói uma arma
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poderosa, pois aquela nave é verdadeiramente uma


arma, vai à Terra de forma ilícita, convive com uma
humana a ponto de se relacionar amorosamente,
quase faz a nave da Ordem dos Recolhedores entrar
em colapso, depois pratica um atentado contra a
própria vida... São muitas regras quebradas,
senhorita.
— O senhor também quebrou muitas regras,
acordos e promessas! Será que o Conselho vai
gostar disso? — praticamente berrei, irritada de
verdade com o sujeito.
Xis permaneceu tranquilo. Tive vontade de
lhe dar um soco bem no meio da cara.
— Verei o que posso fazer, senhorita.
Minhas atitudes a respeito do acontecido
dependerão do comportamento adequado do meu
irmão.
— Hã? O que disse?
O chefão continuou com aquele semblante
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de quem sabia demais e de quem era


completamente perverso.
— O agente G12 é um dos tantos filhos
procriados pelos meus pais.
Daquela informação eu não sabia. O
relacionamento entre Xis e Gê não era de meu
conhecimento, por isso fiquei admirada por não ter
visto nada do tipo durante o nosso momento de
entrega transcendental. Não sabia direito o que
pensar sobre eles serem irmãos, queria apenas o Gê
seguro e de volta à Vênus, sem essa história de ir
para o Conselho. Não queria que se metesse em
apuros.
A nave se aproximou da 14038 até que
praticamente a engoliu. Através do vidro não deu
para ver o que aconteceu de fato, mas supus que os
Recolhedores abriram um compartimento onde
cabia o ovo inteirinho.
— Vamos recebê-lo devidamente — Xis se
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levantou da poltrona e, no mesmo instante, os


cintos livraram o meu corpo. Eu me levantei logo
em seguida. — E então decidirei o que fazer com o
improvável casal.
— Achei que estivesse claro. Gê voltará
para Vênus e eu ficarei aqui, ajudando com o
experimento.
Xis deu de ombros, já seguindo na direção
da saída do salão. Não respondeu nada. Só me
restou segui-lo e rezar para que não nos colocasse
em outra situação insuportável.
Eu não aguentava mais tanta emoção.

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33

Xis caminhou a passos vagarosos através


dos mesmos corredores que percorremos para
chegar ao salão. Eu o segui em silêncio. Seus
capangas encapuzados voltaram a nos acompanhar
e daquela vez notei suas presenças atrás de nós
desde o início. Por mim, correria na máxima
velocidade para reencontrar o Gê, de forma que
aquela calmaria toda estava me deixando surtada.
Até mesmo os alienígenas que passavam por nós
pareciam mansos, como se nenhum colapso tivesse
se avizinhado há apenas alguns minutos.
Eu queria ter aquela paciência toda, mas
acreditei que não fosse uma virtude dos humanos.

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Se a nave fosse composta de terráqueos, estaria


barulhenta, um verdadeiro caos, além de que
certamente teria lixo espalhado pelo chão. Pensar
naquela possibilidade me distraiu por um tempo,
até que paramos em frente a uma porta dupla, tão
branca quanto as paredes. Ela se abriu em um
redemoinho esquisito, deixando à mostra um salão
ainda maior, repleto de máquinas tecnológicas
longe de minha compreensão. Naquele ambiente,
vários Recolhedores circulavam. No centro,
identifiquei a 14038 estacionada.
Enquanto nos aproximávamos, a nave do
Gê foi se abrindo em camadas, revelando, aos
poucos, a sua figura de aparência cansada. Ele me
viu entre os Recolhedores e tomou impulso para me
alcançar, porém foi interceptado por dois
alienígenas que tomaram seus braços, impedindo
sua locomoção.
— Gê! — berrei e também tomei impulso,
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mas os seguranças do Xis me seguraram antes que


eu pudesse correr. Eu não sabia o que seria da
gente, mas precisava abraçá-lo de novo antes de
cumprirmos com o nosso destino. — Gê!
— Estrela! — ele gritou de volta, tentando
se desvencilhar e falhando miseravelmente.
Aqueles Recolhedores pareciam ainda mais fortes
do que o Gê, portanto sequer tentei me soltar. Seria
em vão.
— Xis, deixe-me tocá-lo! — pedi em
desespero.
O Recolhedor-chefe olhava o irmão com
um semblante indiferente que me irritou de
verdade. Ignorou o meu pedido, que ficou sem
qualquer resposta, e se aproximou dos
extraterrestres que impediam o Gê de me alcançar.
Balbuciou uma única palavra esquisita e depois,
pelo que supus, traduziu para a minha língua:
— Levem-o.
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— Não! — gritei enquanto acompanhava a


ordem de Xis ser colocada em ação sem pestanejar.
Os dois Recolhedores arrastaram o Gê, que se
debatia insanamente, contra a vontade, guiando-o
para um canto desconhecido do salão. — Não, por
favor!
— Estrela! — Gê bradou em um timbre alto
e firme, parecendo desesperado. Eu nunca o tinha
visto daquele jeito. — Soltem-me!
— Xis! — fiz mais um pedido angustiado.
O chefão finalmente se virou para me
encarar. Fiquei com tanta raiva de seu jeito
dissimulado que comecei a me debater, tentando
me livrar dos idiotas que me impediam de acabar
com a raça daquele sujeito.
— Por que fez isso? — questionei entre
lágrimas. — Só queria abraçá-lo, que crueldade! O
senhor não pode e não vai nos impedir!
Ele continuou sério.
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— O agente G12 é um prisioneiro do


Conselho agora.
— O senhor disse que pensaria nessa
situação! — Minha raiva daquele Recolhedor de
uma figa só fazia crescer mais e mais. Balancei a
cabeça em negativa, indignada. — É um
mentiroso... Não sabe cumprir com nenhuma
promessa. Suas palavras são desonrosas.
Xis colocou as mãos para trás, deu de
ombros e virou as costas, começando a se distanciar
como se eu não passasse de um incômodo
facilmente erradicado. Aquela indiferença toda me
deixou tão irritada que senti o ódio querendo
explodir em meu peito. Agitei meus braços e firmei
as pernas no piso. O movimento foi ligeiro e
preciso, o que fez com que os seguranças me
soltassem na surpresa.
No instante seguinte, corri na direção do
Xis e não pensei em muita coisa. Queria destruí-lo,
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machucá-lo, enfim, qualquer coisa que o fizesse


sentir a mesma dor que corroía o meu coração.
Comecei puxando seus cabelos grandes com força,
trazendo-o para trás.
O Recolhedor-chefe soltou um arquejo
admirado, talvez com a minha ousadia. Só sabia
que não pararia tão cedo. Aproveitando seu
desequilíbrio, cerrei meus punhos em sua face
leitosa e lhe desferi um soco digno de MMA. Eu
não tinha pretensão de que ele realmente fosse
sentir qualquer dor, afinal, ele era um ser muito
mais forte do que uma mera humana. No entanto,
me surpreendi quando seu corpo foi jogado para
longe de uma só vez, estatelando-se contra uma
parede.
Arregalei os olhos ao máximo, sem
acreditar que pude dar um soco tão poderoso. Olhei
para o meu próprio punho por alguns segundos. A
distração fez com que uma equipe inteira de
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Recolhedores me interceptasse. Aparelhos


esquisitos, muito maiores que algemas, foram
colocados em meus braços, deixando-os presos, e
também em minhas pernas. Terminei
completamente imobilizada, à mercê daqueles
aliens.
— Me solta! — berrei, entre lágrimas e
muita raiva. O aparelho em meus braços cedeu um
pouco com o movimento que fiz, então outra
maquinaria foi colocada por cima, deixando-me
presa com mais reforços. — NÃO!
Um Recolhedor me empurrou e caí de
joelhos no chão. Assim que ergui a cabeça, percebi
o Xis já recomposto, de pé diante de mim. Havia
uma marca avermelhada, no formato de meus
dedos, na pele lisa de sua face. Tive a minha
segunda crise de riso fora de hora. Gargalhei alto
enquanto os extraterrestres permaneceram em total
silêncio. Pude até ouvir a risada ecoando pelo
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salão.
Xis só disse alguma coisa depois que a
minha graça foi embora.
— Percebo que a senhorita também é um
perigo para a Ordem — falou brutalmente, com
raiva evidenciada. Com certeza ele não gostou de
ter apanhado na frente de seus subordinados. —
Não se pode confiar em humanos. São seres
irracionais e incapacitados.
— Ao menos sabemos cumprir acordos! —
retruquei imediatamente. Estava disposta a não
deixar nada barato. Não levaria desaforos para casa,
se bem que eu nem sabia se voltaria para o meu lar
algum dia. — Você é um farsante, Xis.
— Cale-se. Em nenhum aspecto de nosso
acordo ficou claro que eu era obrigado a deixar que
a senhorita se aproximasse do agente G12.
— Mas ficou claro que ele seria devolvido a
Vênus!
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— Ele será devolvido a Vênus — Xis


continuou sério e irritado, utilizando um timbre
grosseiro. — Especificamente, ao Conselho de
Vênus, para que a justiça seja feita. Cumprirei com
o meu lado no acordo, e a senhorita?
Balancei a cabeça. Aquilo estava errado. Eu
não queria que o Gê vivesse como prisioneiro de
Conselho nenhum. Não era minha pretensão lhe
trazer apuros. Ainda que fosse melhor do que tê-lo
morto, meu desejo era apenas que ficasse feliz e
sobrevivesse da melhor forma possível.
— Assim que o Gê for solto, cumprirei com
a minha parte. — Começava a ficar extremamente
desconfortável naquela posição, de joelhos no piso
duro. Tentei me levantar, porém os Recolhedores
forçaram a minha cabeça na direção do chão. Soltei
um resmungo de dor.
— Não posso soltá-lo.
— O senhor pode, sim, só não quer —
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murmurei. Qual é? O cara era o chefe da porra


toda, comandava as situações ao seu bel prazer e
vinha com a ladainha de que não podia? Para cima
de mim, não. — Se o Gê não for liberado, adeus
acordo. Em vez disso cumprirei a ameaça que fiz e
transformarei a sua vida num inferno! — Ergui a
cabeça com ódio exalando pelos poros. —
Entendeu bem ou quer que eu repita?
Xis sorriu ironicamente.
— A senhorita é divertida — depois, falou
na língua alienígena com os seus capangas e eles
finalmente me tiraram do chão, puxando-me pelos
cabelos sem qualquer delicadeza. Gemi de dor. —
Será neutralizada até perceber que, aqui dentro, a
senhorita não impõe qualquer temor.
— Veremos, seu filho de uma p... — Os
Recolhedores começaram a me levar aos tropeços,
interrompendo o xingamento entalado em minha
garganta. Várias mãos me seguravam em pontos
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diferentes. — NÃO! SOCORRO!


Uma venda escura foi colocada sobre o meu
rosto e fiquei rodopiando para lá e para cá, guiada
de uma forma louca por aqueles extraterrestres —
parecia que estavam brincando de cabra-cega
comigo. De repente, empurraram-me em um espaço
pequeno. As aparelhagens que me prendiam foram
retiradas em seguida, bem como o tampão, porém
uma porta de vidro se fechou ao meu redor a tempo
de eu acompanhar os capangas se afastando.
Terminei em uma sala branca, vazia, dentro
de um cilindro envidraçado que ia do chão ao teto.
Parecia que eu estava dentro de um tubo de ensaio
tamanho família. As informações para processar
eram tantas que me atirei no chão, exausta. Chorei
de várias formas; em silêncio e aos prantos, solucei,
berrei pelo Gê e chamei o Xis de muitos nomes
feios. Nada aconteceu. Parecia que ninguém me
ouvia.
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Os segundos se agruparam em minutos, que


viraram horas, e nada de alguém aparecer. Eu
estava com sede e morrendo de fome, mas não
conseguia parar de chorar para tentar arranjar um
jeito de escapar. Tinha cansado de gritar, já estava
praticamente sem voz e nenhum apelo meu surtira
efeito.
Quando minhas esperanças se esgotaram,
ouvi um pequeno ruído do lado de fora do tubo.
Uma porta dupla se abriu rápido e um Recolhedor
encapuzado entrou no recinto. Eu me levantei
rapidamente, ainda que estivesse muito cansada e
fraca. Torcia para que aquele tivesse me trazido
algum alimento, ou ao menos um copo de água,
porém suas mãos enluvadas estavam vazias. As
portas se fecharam atrás dele.
— Ei, eu quero água... — murmurei. A voz
saiu rouca, falha. — E comida. Vou morrer se não
me... — Parei de falar porque ouvi murmúrios na
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língua estranha e, em seguida, o vidro do tubo se


abriu completamente.
O Recolhedor ergueu as mãos para retirar o
capuz. A bela venusiana, a mesma que queria tanto
me tocar, surgiu bem na minha frente, observando-
me com os olhos redondos e vermelhos abertos em
admiração.
— Não temos muito tempo, Estrela. Vem
comigo — ela segurou a minha mão e me puxou
antes mesmo que eu pudesse compreender o que
estava acontecendo. — Precisamos ter muita
cautela.
— Espera... O que está fazendo? Quem é
você?
— Precisa sair daqui — sua voz saiu com
urgência, mas havia algo mais naquele rosto. Era
uma emoção que não se distanciava de suas
expressões. — O agente G12 não está muito longe,
vamos libertá-lo e alcançar a 14038 para que
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possam escapar.
— E-Escapar? — Ela não comentou mais
nada. Sussurrou algumas palavras e a porta dupla se
abriu. Atravessamos um corredor estreito, mal nos
cabia lado a lado. — Vai me ajudar a escapar? Por
quê?
A Recolhedora parou diante de outra porta
dupla. Virou-se para me encarar. Abriu a boca,
porém tornou a fechá-la, como se tivesse em dúvida
sobre o que dizer. Sem que eu conseguisse obter
qualquer lógica, ela ergueu uma mão e tocou o meu
rosto delicadamente.
— Você se parece com o seu pai, Estrela —
sorriu amplamente. — É curiosa e destemida, além
de possuir uma beleza peculiar.
— Meu pai? — franzi o cenho. Quem era
aquela alienígena, afinal? — Você o conheceu?
— Perfeitamente.
Abri bem os olhos diante daquela revelação.
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As coisas não poderiam ser mais surpreendentes.


— Como? Quando? — Balancei a cabeça.
Meu cérebro estava todo travado, sem compreender
nada. — Como é possível?
— Estrela... — a venusiana fechou os olhos
e arquejou. Reabriu-os em seguida, parecendo
decidida a falar: — Eu sou sua mãe.

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34

Um filme passou pela minha cabeça


enquanto aquela venusiana, a mesma que acabara
de dizer que era a minha mãe, observava-me com
emoção evidente brilhando em seus olhos tão
vermelhos quanto os do Gê. O quebra-cabeça que
sempre considerei fazer parte do meu caminho
finalmente encontrou a última peça, a que
permitiria que todo o restante fizesse sentido. Era
tão óbvio que aquela extraterrestre fosse quem dizia
que era que não pude deixar de me autointitular
uma grande idiota por não ter sequer cogitado a
ideia antes.
Os pensamentos retornaram a fatos nunca

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antes compreendidos da infância. Meu pai falava


que a minha mãe tinha morrido no parto, porém
jamais me levara à sua lápide; sequer sabia onde
tinha sido enterrada. Não existia qualquer
fotografia dela. Ele era obcecado pelo céu, como se
estivesse constantemente esperando por alguma
coisa, mas negava com veemência quando eu
perguntava se ele acreditava em seres de outros
mundos. Fez com que eu acreditasse que havia
ficado louca toda vez que falava a respeito da
abdução. Detestava tanto esse assunto que mal me
ouvia. Dona Margarida também evitava falar da
minha progenitora. Será que sabia de tudo?
Passei a vida toda tendo sonhos loucos, isso
sem contar as estranhezas que o Gê vinha me
alertando e que não dei bola, pelo menos até
esbofetear aquele Recolhedor com força
sobrenatural. Era certo que existia alguma coisa
muito errada comigo, mas cheguei a pensar que
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fosse obra da ausência de gravidade, nunca que eu


pudesse ser uma humana diferente; com sangue
venusiano e terráqueo. Entretanto, pensando bem,
eu era capaz de fazer contato psíquico quando bem
entendesse e vivi um momento transcendental com
o Gê, compartilhando nossas lembranças, sem
qualquer problema. Era para ter ao menos
desconfiado.
Com um pulo, no meio do corredor vazio,
abracei aquela desconhecida com toda a emoção
que vibrava em meu peito. Não importavam os
motivos que possuía para ter ido embora e nos
deixado na Terra, eu sabia que a situação devia ter
sido bastante complicada. Suas lágrimas já
deixavam claro que ela tinha muitos sentimentos ao
meu respeito, e isso me bastava. Depois de achar
que eu não passava de uma órfã sozinha no mundo,
ganhara uma mãe alienígena. Tinha coisa mais
sensacional?
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Cedo demais, a criatura nos desgrudou,


ainda com o rosto tomado pela emoção.
— Precisamos ir, Estrela, corremos perigo
aqui — murmurou para não ser ouvida e senti a
emergência em seu timbre. Não consegui formular
nenhuma palavra, pois estava num extremo estado
de estupefação, por isso somente aquiesci. —
Vamos!
Ela falou palavras incompreensíveis e uma
porta dupla se abriu diante de nós. Invadimos o
recinto sem pestanejar, e pude localizar o Gê preso
em um tubo similar ao que eu me encontrava. Corri
para alcançá-lo, espalmando minhas mãos na
superfície do vidro. Gê, que estava de pé e com o
rosto consternado, ficou tão surpreso quando me
viu ali que parecia não acreditar e me julgar uma
miragem.
— Viemos te tirar daqui, meu amor —
sussurrei, emocionada. — Vamos fugir, juntos.
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Ele assentiu ligeiro, visivelmente


emocionado, depois franziu o cenho ao reparar na
venusiana dentro da sala. A minha mãe falou mais
coisas e o vidro que me separava do Gê finalmente
se abriu. A primeira coisa que fiz foi lhe dar um
abraço de urso capaz de estalar os ossos de sua
coluna. Não dava para crer que, depois de tanta
agonia, finalmente podia tocá-lo de novo. Comecei
a chorar feito uma idiota.
Gê falou, por cima do meu ombro e sem me
largar por nada, com a venusiana, porém na língua
deles. Ela respondeu no mesmo tom ameno. Fiquei
muito incomodada por não ter entendido porcaria
alguma.
— Não façam isso! — grunhi. — Falem em
Português, por favor.
— Não tenho certeza se conheço a senhora
— Gê prosseguiu, acatando ao meu pedido de
imediato. — Parece-me familiar. Por que está nos
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ajudando?
— Trabalhamos juntos quando você era um
garotinho aqui na Ordem. — Eu me virei, nos
braços do Gê, para vê-la melhor. Estava sorrindo
amplamente enquanto nos observava. Parecia
gostar do fato de estarmos juntos. Fiquei feliz por
possuir a benção da minha mãe; por menos que eu
a conhecesse, era importante para mim. — Eu
poderia lhes explicar tudo, mas não temos tempo.
Vocês precisam sair imediatamente.
— Sair? Com todo o sistema de segurança
ativado? É impossível — Gê arquejou, parecendo
muito exausto.
— Desativei o sistema temporariamente,
pois possuo todos os comandos necessários — ela
explicou enquanto caminhava na direção da mesma
porta por onde havíamos entrado. — Temos cerca
de cinco minutos até ser reativado de novo, caso
contrário alguém nos perceberá.
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A minha mãe não precisou dizer mais nada


para que começássemos a segui-la apressadamente.
No início, Gê pareceu meio cético e desconfiado,
mas logo passou a se esgueirar entre corredores e
reentrâncias, em busca da 14038.
Nós a encontramos numa espécie de galpão
à meia luz, bastante silencioso. Não havia sinal de
Recolhedores em parte alguma, e me perguntei o
que estariam fazendo. A desconhecida, por outro
lado, estava segura de si, seus movimentos
pareciam calculados e o semblante sério inspirava
profissionalismo. Alcançamos a nave do Gê.
— Posso ativá-la? — ele questionou, em
dúvida sobre o que fazer. Olhava de um lado para o
outro com muita apreensão.
— Sim, por favor, depressa. Vocês não
podem hesitar — apontou para um compartimento
redondo desenhado numa das faces do galpão. —
Abrirei aquela saída e vocês precisam me prometer
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que não olharão para trás.


— Como assim? A senhora não vem
conosco? — perguntei, assustada. Larguei o Gê
pela primeira vez desde que nos reencontramos só
para me aproximar dela. Seu olhar já dizia tudo:
não pretendia vir com a gente.
Eu não soube o que sentir. Não queria
ganhar uma mãe para perdê-la no minuto seguinte.
Parecia um absurdo tremendo.
— Alguém precisa abrir a porta, Estrelinha
— tocou a lateral do meu rosto delicadamente,
voltando a sorrir. Senti meus olhos marejarem. Ela
me chamou do mesmo jeito como o meu pai me
chamava. — E fechá-la depois. Também não posso
deixar a Ordem, as consequências seriam trágicas.
Balancei a cabeça em negativa.
— Não...
— Agente G12, por favor, ative a 14038 —
minha mãe pediu em tom desesperado. Gê a
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obedeceu imediatamente, e então a nave se abriu


em camadas.
— Não, mãe — choraminguei. Não olhei
para trás, mas tinha certeza de que o Gê havia
paralisado ao me ouvir chamar a venusiana daquilo.
— Eu nem sei seu nome. Não conheço a sua
história. Por favor!
— Meu nome é impronunciável na sua
língua, meu bem, mas seu pai me chamava de Blue
— ela piscou um olho, sorrindo. Eu já sabia o
motivo, mas ela o informou assim mesmo: — Por
causa do cabelo azul.
— Mãe... Não me deixe — continuei
chorando feito criança. Não estava pronta para
aquela despedida. Era como terem me dado uma
porção de doces deliciosos e eu não poder devorar
nada. — Você sabe que o papai morreu, não sabe?
Ela aquiesceu, ressentida. Percebi profunda
tristeza em seu olhar.
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— Estrelinha, eu nunca a deixei — Blue


segurou e beijou minhas mãos. Depois, largou-me e
retirou do bolso de sua vestimenta um objeto
esquisito. Era uma bolinha de metal toda
ornamentada. — Entregue ao G12, ele saberá o que
fazer com isso e então você entenderá tudo.
Fiquei calada, segurando o objeto e
chorando. Minhas pernas travaram. Não queria
deixá-la de jeito nenhum. Só que, do nada, ouvimos
um barulho perto do galpão. Blue ficou agitada no
mesmo instante.
— Vão! Precisam partir agora! — Deu-me
um beijo na bochecha em um gesto tão sofrido que
só chorei ainda mais. — Eu te amo, minha filha.
Cuide-se.
Ela se afastou e, se não fosse o Gê para me
puxar, eu não teria saído do canto sozinha.
Entramos na nave e logo nos posicionamos
em nossas poltronas. Não havia muito tempo; se
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quiséssemos nos livrar dos Recolhedores, a hora


era aquela. Eu estava inconformada por ter que
deixar Blue naquela nave imunda da Ordem, mas
não havia outra opção. Também não podia nos
atrasar e de repente prejudicar a integridade do Gê.
Jamais me perdoaria se a fuga desse errado por
minha culpa.
— Segure-se, senhorita — Gê informou
depois de ativar o sistema da 14038. —
Atingiremos uma velocidade muito alta em pouco
tempo.
Não dava para ver absolutamente nada ali
dentro, mas ele devia saber que a porta já tinha sido
aberta pela minha mãe, pois a nave começou a se
movimentar depressa e, quando menos esperei, já
podia ver as luzes que compunham o espaço
através do teto envidraçado. Localizei milhares de
estrelas, poeira cósmica e objetos maiores, que
supus serem cometas, a tirar pela cauda luminosa.
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Era tudo tão lindo que não contive um suspiro de


admiração.
Apertei a bolinha de metal em minha palma.
— Felizmente, acredito não estamos sendo
seguidos — Gê informou com seriedade
profissional, mas percebi que tinha ficado aliviado
por ter se livrado dos Recolhedores. — A nave da
Ordem ficou para trás. Temos uma ótima
vantagem.
— Gê... Aquela venusiana... a minha...
— Mãe — completou por mim. — Eu ouvi
o que foi dito e ainda estou tentando assimilar a
informação.
— Ela me deu isso e disse para te entregar
— abri a mão na direção dele. Gê pegou o objeto
sem hesitação. — Sabe o que é?
— Perfeitamente. Trata-se de um projetor
em 3D. — Gê girou a bolinha em sentidos que
pareciam aleatórios, depois a abriu no meio. —
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Guardamos algumas informações importantes em


arquivos deste tipo para ocupar menos espaço.
Entretanto, é uma tecnologia um pouco
ultrapassada. Já existem formas melhores de
reproduzir uma informação.
Ele colocou a bolinha sobre um
compartimento que separava nossas poltronas e
finalmente uma luz azul saiu de dentro dela. A luz
projetou uma imagem perfeita da minha mãe, da
cabeça aos pés, como se ela estivesse presente na
nave, só que flutuando. Eu sabia que era apenas
uma projeção, mas não deixei de ficar emocionada
e de sentir vontade de abraçá-la mais uma vez. O
tempo que tivemos havia sido dolorosamente curto.
— “Querida Estrela, se estiver vendo essa
mensagem agora, significa que encontrei uma
forma segura de comunicação” — a voz de Blue
soou de uma forma eletrônica, meio metalizada.
Soltei um arquejo. — “Não sei como iniciar um
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assunto tão delicado, por este motivo decidi ser


sucinta e direta. Meu nome em sua língua é algo
parecido com URXV689, porém pode me chamar
de Blue, pois era a maneira como seu pai me
chamava. Sou uma venusiana. Exatamente,
pertenço ao planeta Vênus e... Sou sua mãe.” —
Prendi a respiração naquele instante. Gostaria de
fazer uma pausa para respirar, mas acreditei que a
mensagem não podia ser interrompida. Precisava
ser forte e ouvi-la até o fim. — “Seu pai e eu nos
conhecemos por acaso. Estávamos recolhendo
algumas mudas de vegetação, frutos e legumes na
Terra. A fazenda dele sempre foi muito rica e
produtiva, um terreno farto para as nossas
pesquisas. Certa noite, ele me flagrou colhendo
milho e...” — O sorriso dela era genuíno ao narrar a
história. Sorri de volta para aquela projeção. —
“Pouparei os detalhes melosos, mas nos
apaixonamos profundamente. Passamos alguns
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meses juntos, eu fui muito feliz na Terra e vivia


como uma humana normal. Até que fiquei grávida
de você.” — Blue fez uma longa pausa. Aproveitei
para tomar fôlego. — “O meu povo soube da
gravidez e todos ficaram surpresos por uma
venusiana ser capaz de engravidar de um terráqueo.
Meu corpo, de repente, não mais me pertencia. Fui
resgatada para ser objeto de estudos por várias
vezes, porém sempre achei um jeito de voltar para
o seu pai. Quando finalmente dei luz a você,
tivemos a ideia de fingir sua morte. Nós a
escondemos por algum tempo, mas os
Recolhedores nos descobriram e exigiram direitos
sobre você. Não pude deixar que isso acontecesse,
Estrelinha. Queria que tivesse uma vida humana
comum, pois a existência no espaço é muito
solitária e fria.” — Blue fez outra longa pausa. Eu
já estava chorando horrores com aquela história
triste. Meus pais tinham sofrido muito por minha
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causa. — “Depois de muitas tentativas, consegui


fazer com que te deixassem em paz, desde que eu
voltasse a trabalhar na Ordem dos Recolhedores.
Eles tinham medo que eu procriasse mais vezes e
levasse insegurança ao planeta Terra. Foi por este
motivo que precisei me ausentar, Estrelinha, mas eu
não te deixei. Jamais te deixaria.”
— Mãe... — murmurei, soluçando. Gê
segurou a minha mão com força.
— “Quando você tinha seis anos, eles
quiseram te abduzir para recolher material genético.
Não pude fazer nada a respeito, meu bem, mas o
interesse deles cessou quando analisaram seu DNA
e perceberam que havia muito pouco de Vênus em
você, de forma que poderia viver como uma
humana comum pelo resto da vida. No entanto,
continuei analisando, pesquisando sobre sua
descendência e, recentemente, após anos de
análises, descobri sozinha que o seu DNA, na
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verdade, é muito raro. Ele é absolutamente mutável


de acordo com o meio em que habita. Essa é uma
característica bastante venusiana, minha filha.
Significa que você pode se adaptar tanto a Terra
quanto a Vênus ou qualquer outro lugar do espaço,
mas ainda não possuo informações sobre a sua
durabilidade. Tudo indica que seus anos de vida
continuarão humanos. No entanto, você é especial.
Você é híbrida.”
— Meu Deus... — ofeguei.
Olhei para o Gê e ele me olhava de volta,
sério e assustado.
— “Eles não sabem disso. Ainda. Mas um
dia podem saber e querer resgatá-la para estudos.
Não permita, Estrela, não deixem que tirem a sua
liberdade. Viva do jeito que quiser, sem sentir
medo ou obedecer ordens que não te apetecem.
Você é um milagre do Universo. Seja feliz! É o que
desejo profundamente. Peço mil desculpas por te
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oferecer informações tão complicadas de uma só


vez, mas foi a única forma que encontrei para te
deixar ciente. Quero que saiba que amei muito o
seu pai e que te amo mais do que achei que pudesse
amar alguém. Você jamais estará sozinha, minha
Estrelinha, pois estarei sempre contigo.”
A projeção se desfez rapidamente,
provocando-me um pequeno susto. Passei um
tempo olhando para a face da 14038, com a cabeça
cheia de ideias e pensamentos loucos. Realmente,
era muita informação para processar, de modo que
considerei normal estar me sentindo tão perdida,
tão sem chão.
— Estrela? A senhorita está em perfeito
estado físico e psicológico?
Soltei um riso suave. Que saudade eu tinha
sentido do Gê! Mas ele estava ali, ao meu lado,
segurando a minha mão como se não tivesse
considerado uma insanidade o fato de eu ser meio
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venusiana.
— Não sei direito, Gê. Estou feliz por você
não ter virado fragmento. E por estarmos,
finalmente, juntos no espaço.
— Não tenho certeza se é seguro devolvê-la
para a Terra neste momento.
Balancei a cabeça.
— E nem eu quero voltar.
— O que a senhorita sugere?
Pensei por um momento. Olhei para cima,
focando em uma luz mais intensa no meio do
Universo.
— Minha mãe se sacrificou por mim —
murmurei, reflexiva. — Meu pai me criou
praticamente sozinho. Os dois não viveram o amor
que sentiam em sua totalidade e jamais poderão
fazê-lo.
— É uma triste história, senhorita.
Olhei para ele.
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— Sim, Gê. E eu não quero repeti-la. Eu te


amo e quero viver isso ao máximo. Não tenho nada
a perder além de você, e estamos aqui, juntos, com
milhões de possibilidades. Blue pediu para eu ser
feliz. Creio que é minha obrigação, em respeito aos
meus pais, viver da forma que quero!
Gê voltou a apertar minha mão.
— Vamos tocar uma estrela — sussurrou,
depois sorriu.
Abri um imenso sorriso. Ele tinha sacado
exatamente o que eu queria: aproveitar a chance
enquanto podíamos. Viver intensamente cada
segundo. Ser feliz e realizada. Estar com ele
quando uma estrela estivesse em minhas mãos.
— Leve-me para tocar uma estrela, meu
amor.

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35

Após soltar vários comandos distantes do


meu entendimento, Gê assumiu uma expressão
séria, profissional, tão compenetrada que me fez
lembrar de quando nos conhecemos. Aquele ser
robótico e inexpressivo continuava existindo em
sua essência, ainda assim, eu me orgulhava por ter
feito parte de sua grande transformação. Também
me sentia mudada. Para ser sincera, bastante
mudada. No entanto, podia admitir, com convicção,
que jamais me sentira tanto como eu mesma. Só
esperava que a mudança do Gê lhe trouxesse
benefícios na mesma medida em que a minha
própria me trazia.

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A nave passou a cortar o Universo em uma


velocidade impressionante. Dava para sentir que
estávamos rápidos demais — e para ver, através do
vidro, os pontos brilhantes sendo deixados para trás
muito depressa —, ainda que no interior da nave eu
estivesse tranquila, sem enjoos e com a mente sã. A
tecnologia desenvolvida pelo Gê não parava de me
deixar impressionada.
— Antes de alcançarmos o Sol, senhorita,
preciso alertá-la de alguns detalhes fundamentais
para que a experiência não seja desastrosa.
— Sim, claro... — murmurei, ainda
impressionada com a rapidez da 14038. A cada
segundo que passava parecíamos aumentar de
velocidade drasticamente. Meu corpo passou a
grudar na poltrona por causa da força exercida.
— A senhorita não deve deixar a cabine
onde fica a Estrela X-189 até nos distanciarmos do
Sol — ele começou, didaticamente, utilizando o
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timbre robótico que antes eu considerava estranho,


mas naquele momento considerei engraçado. — Há
um sistema de segurança rigoroso que a manterá
viva e a levará de volta para a Terra
automaticamente, caso o restante da nave sofrer
alguma instabilidade.
— Instabilidade? — Um nó cresceu em
minha garganta. — Que tipo de instabilidade?
Gê continuou como se nada o abalasse:
— O Sol está em baixa atividade faz uns
anos, e deve permanecer assim por mais alguns, até
retomar sua normalidade. Por este motivo
considerei essa época a ideal para realizarmos o seu
desejo, Estrela. No entanto, a senhorita deve
compreender que uma estrela nada mais é que
variados gases em constante combustão. A
superfície solar está literalmente queimando.
— Eu sei disso, Gê... — Já havia estudado
muito, em nível de curiosidade e conhecimento,
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sobre o Sistema Solar. Meu pai era apaixonado


pelas estrelas e havia me ensinado praticamente
tudo a respeito delas, e o Sol estava devidamente
incluso. — Mas preciso saber se você corre riscos.
Ele me olhou por um segundo antes de
desviar o rosto e responder, mecanicamente:
— Nós dois corremos muitos riscos,
Estrela. Realizei todos os cálculos necessários, mas
jamais me aproximei do Sol antes. Realizei testes
em outras superfícies demasiadamente quentes,
mas a verdade é que nenhuma se iguala ao calor de
uma estrela viva.
— Podemos explodir?
Gê prendeu os lábios e evitou me encarar.
— Perfeitamente.
— Então, essa é uma missão suicida?
— Jamais a colocaria sob a possibilidade de
morte, senhorita. Por este motivo necessito que
permaneça na cabine, que possui uma estrutura
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ainda mais reforçada e um sistema prático de


refrigeração instantânea.
— Gê...
Eu estava prestes a dizer para a gente
desistir daquela loucura. Pelo que tinha entendido,
a 14038 podia não aguentar o calor e explodir,
porém a cabine que continha o experimento possuía
mais chances de permanecer intacta e me
protegendo. Não era o que eu queria. Gê corria
risco iminente e nem mesmo meu sonho de tocar
uma estrela, ou a ideia de viver a vida
intensamente, valia o sacrifício.
Contudo, antes que eu pudesse abrir a boca
para questionar, uma forte luz arroxeada cobriu a
nave por completa. Aconteceu muito rápido.
Chacoalhamos como se estivéssemos numa louca
montanha-russa e, no instante seguinte, a luz
desapareceu e consegui visualizar uma enorme bola
alaranjada. Meus olhos lacrimejaram
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imediatamente. Não pela profunda luminosidade,


porque, por incrível que pudesse parecer, aquele
vidro foi capaz de proteger meus olhos o suficiente
para que eu conseguisse mantê-los bem abertos. Eu
me emocionei mesmo porque o Sol era magnífico,
único, vivo e emanava uma energia fora do comum.
Meu corpo inteiro se arrepiou diante de tanta força
vital reunida em uma só manifestação da natureza.
Já tinha parado para pensar milhões de
vezes no quanto a vida era fantástica. O Universo,
os planetas, as estrelas, cada ser vivo... Era tudo tão
harmonioso, tão perfeito, que se tornava impossível
não acreditar em uma força única que regia toda a
movimentação da existência, que guiava todas as
essências e fosse responsável pelo equilíbrio. Não
podia deixar de existir uma energia primordial,
mais antiga do que o próprio Universo. Aquela
energia eu costumava chamar de Deus, por falta de
nomenclatura melhor.
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Naquele momento, com o Sol tão próximo,


eu me sentia diante Dele.
— Gê... Como...?
— Acabamos de atravessar o espaço-tempo.
— Meu Deus! — arquejei, estupefata.
Então, era mesmo possível. Havia um modo de se
deslocar para qualquer ponto do espaço como se o
tempo fosse uma variável medíocre.
— Senhorita, devo alertá-la também de que
será uma experiência rápida. Seria inconsequência
de minha parte permanecer por mais do que alguns
segundos próximo do Sol. Portanto, a senhorita
dará apenas um curto toque.
— Gê... Isso é muito além do que sonhei —
balbuciei, praticamente incapaz de refletir com
lucidez. Lágrimas emocionadas escorreram pelo
meu rosto. Eu estava em estado de êxtase. — É
impressionante. Já me sinto realizada neste
momento!
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— Vamos — ele retirou o cinto que o


prendia à poltrona e se aproximou. — Irei deixá-la
em segurança na cabine.
Gê me ajudou a ficar de pé, porque sozinha
não consegui nem mesmo retirar o cinto. Minhas
pernas estavam bambas, pareciam duas marias-
moles. Ele me levou até a porta prateada onde
ficava o compartimento que guardava o
experimento. Abriu-a com cautela, como se
qualquer movimento brusco significasse as nossas
vidas. Eu tinha me esquecido de que aquilo era
loucura demais. Fui tocava pela vontade de seguir
em frente, ou, sei lá, simplesmente não encontrei
forças para questionar.
— Repouse sua mão aqui, Estrela — Gê
informou, apontando para o quadrado que eu já
conhecia.
Mais lágrimas escorreram. Balancei a
cabeça em negativa e o olhei. Gê percebeu que eu
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não queria arriscar a sua vida por causa daquele


capricho.
— Vai ficar tudo bem. Prometo. Agora que
estamos aqui, não recuaremos.
Assenti e inspirei profundamente. Toquei o
local específico que analisava o meu DNA e
permitia a minha entrada na cabine. Porém, antes
que eu desse o primeiro passo na direção do
experimento, Gê tomou a minha cintura e prendeu
seu corpo grande contra o meu. Arrebatou-me com
um beijo intenso, com direito a uma dança
mirabolante feita pelos nossos lábios e línguas.
Meu fôlego foi arrancado com facilidade.
Cedo demais, ele nos afastou, mas segurou
o meu rosto e me encarou, oferecendo-me o brilho
de seus olhos vermelhos.
— Eu a amo — sussurrou.
— Também te amo — respondi,
emocionada, com mais lágrimas ameaçando
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escorrer.
Gê sorriu e se afastou de vez. Fez
reverência para que eu entrasse na cabine. Não
sabia se estava pronta para aquilo, mas entrei
mesmo assim. Confiava naquele extraterrestre, na
sua inteligência e no experimento. Caso contrário,
não estaria ali. Sabia que ele jamais me colocaria
em risco, portanto, por mais que a sua humildade
considerasse uma falha, não havia com o que me
preocupar. Seu modo de fazer ciência era de um
rigor absoluto. Se aquela nave foi feita para resistir
ao calor do Sol, então resistiria e sobreviveríamos
para contar a história.
Sentei-me na poltrona, dentro da cabine, e
um cinto de segurança automático prendeu o meu
corpo.
— Coloque suas mãos no compartimento —
Gê instruiu e eu obedeci. — Precisarei fechar a
porta da cabine agora, senhorita. Não saia até
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considerar seguro, por favor.


— Certo.
— Sente-se capaz de realizar esta tarefa?
Dei de ombros.
— Eu nasci para isso, Gê — olhei-o
fixamente. Ele sorriu. — Obrigada.
— Agradeça-me somente depois. Agora,
concentre-se. Alcançaremos o Sol em
aproximadamente dois minutos. Eu a verei em
breve.
Gê também estava esperançoso. Aquilo me
bastava.
— Até daqui a pouco.
Ele me deu uma última olhada antes de
fechar a porta prateada. Enclausurada em um
espaço bastante reduzido, tentei me acalmar.
Suspirei fundo, buscando algum relaxamento. Ouvi
um ruído esquisito e percebi que uma camada de
metal se abria, exibindo uma espécie de vidro. Abri
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um largo sorriso. Além de tocar o Sol, eu teria a


possibilidade de vê-lo de perto.
Através do vidro, conseguia visualizar a
maior estrela do sistema adiante, e também as
minhas mãos enluvadas pelo experimento. Restou-
me apenas esperar.
Felizmente, não demorou muito. A nave
voltou a acelerar de um jeito impensável, até que
aquela luz roxa nos envolveu de novo e, de repente,
só consegui enxergar o fogo puro. Parecíamos
imersos num vulcão em plena atividade, nadando
no magma como se fosse uma piscina. Meu coração
batia ainda mais forte do que antes, enchendo-me
de pavor, alegria e fascinação.
Estávamos no Sol.
Espalmei as duas mãos simultaneamente.
Senti a energia, a vibração, a vida pulsando com
intensidade. A temperatura continuou a mesma,
nem mesmo um calorzinho senti dentro da cabine,
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prova de que o Gê tinha obtido êxito. Nós não


explodiríamos. A nave continuou percorrendo
aquela camada de fogo, até que a luz se tornou tão
absurda que precisei semicerrar os olhos.
Com o movimento, várias lágrimas
escorreram. Fui atingida por uma emoção sem igual
enquanto buscava tatear o máximo que podia. Sabia
que não estava tocando em nada além de um
amontoado de gás, que queimava inexoravelmente,
mas a sensação foi a de estar espalhando um
líquido viscoso. Estava acontecendo de verdade. Eu
estava tocando uma estrela.
Qualquer coisa podia ser possível. Não
existiam impossibilidades. O impossível era apenas
uma desculpa tola, uma justificativa que trazia
comodismo e fazia os preguiçosos desistirem antes
de tentarem. Qualquer um podia fazer qualquer
coisa, afinal, o Universo era perfeito demais para
considerar um “não” como resposta. Estava em
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nossa essência, intrínseca a nós, a capacidade de


realizar sonhos; éramos frutos de um grande
milagre. Só nos restava encontrá-lo no infinito de
possibilidades.
— Minha nossa! — berrei, entre lágrimas e
soluços.
Tocar o Sol era mesmo como tocar Deus.
Senti uma força absurda levando a nave
para trás, em busca de distanciamento. Aproveitei
os últimos momentos imersa no fogo, chorando,
gargalhando, chacoalhando as mãos por toda parte.
Em pouquíssimo tempo, a 14038 voltou a
atravessar o espaço e, de um segundo para o outro,
já não podia mais ver nenhum resquício do Sol.
Havia apenas o espaço brilhante.
Gê abriu a porta prateada antes que eu
pudesse recobrar o raciocínio. Ele sorriu quando
me viu e eu lhe ofereci de volta apenas minha
expressão mais estupefata.
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— Conseguimos! — ele riu, parecia


atordoado também, porém muito melhor do que eu.
— A senhorita tocou uma estrela! Como está se
sentindo?
Sim, eu havia tocado uma estrela. Aquela
verdade era tão significativa e emocionante que,
por alguns segundos, não consegui responder nada.
Lembrei-me do meu pai e das tantas vezes que
plantou na minha cabeça que eu seria capaz, sim,
de tocar uma estrela. Talvez ele quisesse apenas
alimentar um sonho infantil, como quando falamos
com as crianças sobre o Papai-noel ou o coelhinho
da Páscoa, sem fazer ideia de que seria possível. Ou
talvez ele soubesse que milagres existiam.
Soltei um longo suspiro.
— Estou me sentindo infinito — murmurei
para o Gê, sabendo que aquela era a resposta mais
próxima da realidade.

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36

Deixei a cabine depois de ter certeza de que


poderia sair em segurança, sem causar pane no
sistema por causa da minha admiração com tudo o
que acabara de acontecer. Ainda podia sentir a
energia do astro-rei circulando pelo meu corpo. Era
como se a minha bateria interna tivesse recarregado
e eu irradiasse luz por todos os poros. Meio
trôpega, me atirei nos braços do Gê tão logo o
experimento ficou para trás. Ele tinha conseguido
realizar o meu maior sonho. E, de quebra, havia me
presenteado com um grande amor. Não dava para
me sentir mais grata do que aquilo.
— Obrigada, Gê! — choraminguei, com o

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queixo depositado na curva de seu pescoço. —


Muito, muito obrigada!
Ele apertou o abraço como se quisesse que
nossos corpos se fundissem. Sentir o seu calor
novamente foi um alívio e mais um motivo para
gratificação. Puxei seu rosto e devolvi aquele beijo
intenso que tinha me roubado minutos antes. A
felicidade percorria em minhas veias como se fosse
sangue.
— Eu que gostaria de agradecê-la, senhorita
— sussurrou bem perto, depois de desencostar
nossos lábios. — Não faz ideia do que fez por mim
tocando o Sol. Anos de pesquisa e árduo trabalho
finalmente valeram a pena. — Gê alisou os meus
lábios com os polegares. — E continuará valendo
enquanto eu puder ver esse sorriso.
Voltei a abraçá-lo com força. Abri as pernas
ao seu redor em um pulo, e o Gê me segurou com
facilidade, como se o meu peso não significasse
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nada. Eu lhe dei mais um beijo fervoroso, daquela


vez cheio de intenções. Imaginei o quanto seria
genial fazer amor com aquela criatura em pleno
espaço. A emoção era tanta que se misturava com o
desejo, o amor e a plenitude, deixando-me pronta
para qualquer coisa, desde que o Gê estivesse
presente.
Ele entendeu logo o que eu queria, por isso
me carregou até a mesa de comandos, uma
superfície metalizada fria e cheia de pseudo-botões
luminescentes. Fiquei ainda mais contente por ter
acatado a ideia de nos entregarmos em um instante
louco como aquele, pois cheguei a pensar que diria
que era loucura demais fazer aquilo durante o voo.
No entanto, devíamos estar em segurança, pois mal
dava para sentir o leve flutuar da 14038 sob nossos
pés.
— Estrela... — ronronou feito um gato entre
meus lábios entreabertos. Senti seu membro já teso
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de encontro ao meu ventre e soltei um leve gemido.


Gê fez o meu corpo deitar sobre a superfície
da mesa, curvando-se todo para continuar me
beijando. Abracei-o com pernas e braços. As mãos
firmes navegaram pelo meu corpo com posse,
agarrando-o em partes que me provocaram ainda
mais. Sentia que a nossa entrega, a forma como nos
tocávamos, ficava mais íntima conforme nos
conhecíamos. Saber que ele me amava era
realmente um diferencial. Eu não precisava me
preocupar em ser correspondida no dia seguinte,
sabia que o Gê era meu e que eu era dele.
Pertencíamos um ao outro por completo.
— Gê... — murmurei, fechando os olhos
para me concentrar no movimento que seus lábios
faziam ao descerem pelo meu pescoço. — No fim
das contas, eu não sou tão galinha assim, não é? —
falei, rindo despreocupadamente, referindo-me à
forma como ele tratava a nossa relação.
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Gê sorriu.
— Meio galinha, meio cavalo — balbuciou,
voltando a me beijar o pescoço.
Podia sentir um ponto chamejante entre as
minhas pernas pedindo por atenção. Rebolei meus
quadris e o puxei para mais perto, querendo senti-lo
de qualquer jeito. Gê soltou um arquejo profundo,
capaz de me deixar arrepiada.
Quando eu estava prestes a tirar a sua roupa
e permitir que tirasse a minha, um estrondo nos
interrompeu com tamanha força que, em questão de
instantes, nossos corpos foram projetados para uma
das faces da nave, que ficava a alguns metros da
mesa de metal. O baque me provocou tanta dor que
gritei.
Eu não sabia o que tinha acontecido. A
14038 passou a tremelicar severamente, de forma
que tudo tremia em alta intensidade. Meus ossos
pareciam pipoca estourando junto com o óleo
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fervente, de tanto que pulava e chacoalhava ao bel


prazer da nave. Foi o Gê que recobrou os sentidos
primeiros, berrando em alto e bom tom:
— 14038, estabilizar!
Em um segundo, voltamos a planar como
pássaros despreocupados. Eu ainda estava tonta
quando o Gê me tirou do chão e me carregou até a
poltrona, deixando-me em segurança com o cinto.
Seus olhos vermelhos estavam assustados enquanto
realizava a tarefa com agilidade.
Eu parecia ter levado uma surra.
— O que foi isso? O que está acontecendo?
— Estamos sendo atacados! — ele berrou
como se eu não estivesse bem na sua frente. —
Segure-se, Estrela.
Gê praticamente pulou para a sua poltrona e
se colocou em segurança também. Gritou
comandos para a nave e fizemos uma espécie de
curva. Meu estômago finalmente sentiu que
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estávamos no espaço, e me senti bastante enjoada


com a movimentação precisa do ovo.
Prendi o fôlego quando visualizei a nave
dos Recolhedores perto demais.
— AH! — gritei, apontando para frente.
— Sim, são eles! — Gê alertou com a voz
urgente, depois soltou mais comandos para a
14038.
Vi o momento exato em que uma luz
vermelha atravessou o espaço, percorrendo a
distância entre as duas naves e se chocando na
nossa. Outro estrondo foi ouvido e chacoalhamos
fortemente, porém daquela vez não saímos do lugar
como pedaços de nada. Eu me agarrei à poltrona,
morrendo de medo do que poderia acontecer com
aquele novo ataque.
Fizemos mais uma curva perigosa e não
mais consegui ver a nave dos Recolhedores,
provavelmente porque passamos a seguir na
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direção oposta em alta velocidade. Fomos atingidos


na retaguarda, e o barulho foi tão alto que temi que
um pedaço do ovo tivesse se esfarelado.
— Temos que sair daqui! — gritei o que era
óbvio, mas não sabia por que estávamos
demorando tanto. Tudo bem que a nave precisava
de tempo para atingir a velocidade suficiente,
porém não parecíamos tão rápidos assim. — Faça
aquela coisa do espaço-tempo, Gê!
— Estamos sem energia — ele falou
mecanicamente. Só então reparei que uma luz
vermelha piscava no painel bem na nossa frente.
Aquilo com certeza não podia ser um bom sinal.
— O QUÊ?
— Estamos sem energia. Nunca
alcançaremos a velocidade necessária para...
— PUTA MERDA, GÊ!
Mais uma vez, sofremos um ataque. A
14038 girou duas vezes em torno de si mesma,
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provocando-me um grito desesperado. Demorou


demais para se estabilizar, e parecia cada segundo
mais lenta.
— A gente vai morrer! — gritei aquela
trágica conclusão.
— Não, a senhorita não vai!
Gê parecia ter se acalmado enquanto
comandava o ovo. Não deixei de perceber que ele
não tinha se incluído na questão da sobrevivência.
Só conseguia me sentir ainda mais desesperada.
Ele se levantou da poltrona, mesmo que a
nave não estivesse totalmente estável após o último
ataque. Retirou o meu cinto de segurança e fiquei
sem entender o que faria até que praticamente me
empurrou de volta para a cabine.
— Gê! Não! — Segurei o seu pescoço.
Nada me faria largá-lo.
— Estrela, vá. Agora! — Segurou meus
braços com tanta força que doeu. Eu me senti
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vulnerável diante daquele poder sobre-humano. Se


o Gê quisesse me colocar na cabine, conseguiria
com facilidade.
— NÃO!
Ele mesmo segurou a minha mão e a
depositou sobre o quadrado que liberava a minha
entrada. Comecei a me debater alucinadamente.
Lágrimas tomaram meus olhos, deixando a visão
turva. Pensei que não fosse capaz, mas o Gê
realmente me empurrou para dentro da cabine, à
força.
— GÊ! NÃO!
Fomos atingidos e ele caiu de joelhos no
chão, rente à porta prateada. Parou por uns
segundos e me olhou fixamente. Havia desespero
em seu rosto. Havia tanto medo, mas tanto, que não
ousei sair dali, como era a minha pretensão. Gê
estava fora de si e faria qualquer coisa para me
salvar.
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— Não...
— Vou encontrá-la, Estrela — falou com
convicção, uma firmeza inigualável. — Onde quer
que esteja, eu a encontrarei. É a minha promessa, e
a senhorita sabe que sou capaz de cumpri-la.
— Gê...
— Só temos energia suficiente para o
experimento se deslocar. A 14038 não consegue ir
muito longe desta forma. Jamais sobreviveremos se
ficarmos aqui.
— E você? Se morrer, como irá me
encontrar?
Gê apontou para o vidro dentro da cabine.
Olhei para a órbita que percorríamos, mas me
detive em um véu negro, relativamente grande,
logo adiante, como se houvesse uma cratera
profunda bem no meio do espaço. Abri a boca,
estupefata.
— Isso... Isso é um...
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— Um buraco negro.
— Como...?
— Os Recolhedores jamais me seguirão
através de um buraco negro — Gê informou com a
voz acelerada e os olhos esbugalhados. — O
experimento se soltará e voltará para a Terra em
segurança. Farei a 14038 voar até o buraco negro,
desta forma, nós dois nos salvaremos deste ataque.
Compreendeu os planos, Estrela?
— Mas... O que tem dentro daquele buraco?
Gê deu de ombros.
— Um portal.
— Portal? — Franzi o cenho. Não era a
hora de duvidar da palavra dele. Os buracos negros
sempre foram misteriosos para nós, meros
humanos, portanto, a existência de portais era só
mais um detalhe na lista enorme de coisas que me
surpreendiam. — Para onde?
— Para qualquer lugar. Não importa,
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senhorita. Eu a encontrarei.
Engoli em seco. Gê praticamente ia se atirar
dentro de um abismo indefinido, que o levaria a um
ponto aleatório do vasto Universo. Ele poderia
terminar em outra galáxia, não poderia?
— Promete?
— Eu prometo — assentiu.
Não fui capaz de duvidar dele.
Também sequer tive tempo de pestanejar.
Gê fechou a porta prateada e não me restou nada
além de torcer para que tudo desse certo. Não havia
outra saída. Ele não podia entrar na cabine, caso
contrário o sistema se desintegraria. E o teimoso
jamais me levaria com ele rumo ao buraco negro.
Meu corpo meio-humano podia não
suportar o destino final da 14038.

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37

Não tive tempo de pensar em muita coisa.


Fomos atingidos e quase perdi a consciência de
tanto que a minha cabeça chacoalhou, ainda que a
poltrona da cabine estivesse me protegendo.
Imaginei o Gê em apuros no comando da nave,
ficando sem energia e precisando de tempo. Temi
que ele não conseguisse efetuar o plano de fugir
daqueles Recolhedores de uma figa utilizando o tal
buraco negro.
Analisei a imensa cratera. Não estava tão
longe assim, mas eu não fazia ideia de qual era a
distância e de quanto tempo o Gê precisaria para
alcançá-lo. De qualquer forma, minhas mãos

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estavam atadas. Eu nada podia fazer além de


esperar a cabine me levar de volta a Terra em
segurança, para então continuar esperando pelo
retorno do Gê. Eu sabia que podia durar anos. E
sabia também que morreria de angústia até vê-lo
outra vez. Havia um buraco enorme se abrindo no
meu peito e um nó intragável na minha garganta.
A gravidade finalmente pareceu ter me
atingido quando a cabine se desconectou à 14038,
fazendo o meu estômago borbulhar e o meu corpo
se erguer como se tivesse perdido o peso. Eu nem
sabia que aquilo era possível, até porque o próprio
Gê tinha mencionado que não havia como separar o
experimento da nave, quando nossos problemas
com os Recolhedores começaram. Infelizmente,
aquela dúvida me acompanharia até ter a
oportunidade de perguntar diretamente a ele. E eu
só rezava para que não demorasse tanto.
A cabine passou a girar feito um carrossel,
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deixando-me tonta. O estômago se contorcia


ensandecidamente e o meu corpo estaria flutuando
se não fosse o cinto de segurança. Acreditei que o
sistema de gravidade existia apenas na 14038, era
algo à parte que não tinha a ver com o experimento,
por isso que eu estava sentindo aquelas coisas
esquisitas e continuaria sentindo enquanto estivesse
em órbita. A pequena janela permitiu que eu visse o
ovo se distanciando velozmente, enquanto os
Recolhedores pareciam em dúvida sobre qual alvo
atacar.
Sem que eu oferecesse qualquer comando, a
cabine passou a voar cada instante mais depressa.
Vi a 14038 diminuir de tamanho, e vi também que
se aproximava do buraco negro com sucesso,
desviando-se de alguns raios vermelhos que a nave
dos Recolhedores emanava.
Uma luz roxa tomou conta da cabine e
então eu entendi que atravessaria o espaço-tempo
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para chegar até a Terra. Obviamente, já tinha me


perguntado como voltaria para casa, mas o rumo
dos acontecimentos não permitiu que eu elaborasse
uma resposta convincente para o meu cérebro.
Espalmei uma mão sobre o vidro, percebendo que a
distância entre mim e o Gê ficaria insuportável em
breve. No entanto, não queria perder nem um
segundo daquela silenciosa despedida.
Foi então que aconteceu. A nave dos
Recolhedores, talvez percebendo o que o Gê
pretendia, começou a soltar tantos raios que não
consegui calcular exatamente quantos. A 14038
bem que se desviou de alguns, mas acabou sendo
atingida em diversos pontos. O ataque foi tão
maciço que, antes de eu simplesmente desaparecer
junto com a cabine, consegui visualizar uma
explosão trágica.
— NÃO! — gritei, mas o cenário diante de
mim mudou depressa. Repentinamente, eu estava
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sobrevoando a superfície terrestre.


A imagem era magnífica, no mínimo
impressionante, porém não consegui fazer nada
além de chorar sem qualquer dignidade. Eu tinha
acabado de ver o Gê explodir bem na minha frente,
junto com a sua nave, e nada podia fazer para
diminuir a profunda dor que tomou conta do meu
ser. Solucei forte, chacoalhando os ombros,
berrando o nome com qual eu batizara o meu
alienígena preferido.
Não podia acreditar que ele havia virado
fragmento. Era demais para a minha mente
processar. Entretanto, a imagem da 14038
explodindo em mil pedaços, bem perto de alcançar
o buraco negro, repetia-se incontáveis vezes em
minha memória mais recente, creio que na tentativa
de me fazer entender que tinha sido real. Era
impossível que o Gê tivesse sobrevivido a uma
explosão daquele porte, ainda que tivesse poderes
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extraterrenos.
— Não... — choraminguei, aos prantos. —
Não, não, não, não... — Balancei a cabeça para um
lado e para o outro, ainda incrédula. — Gê...
A visão turva devido às lágrimas só me
permitia conferir um pouco do que era a Terra vista
do espaço. A cabine continuou seguindo em alta
velocidade, sem se importar com o meu coração
despedaçado, sem levar em conta que, naquele
momento, eu preferia milhões de vezes ter virado
fragmento junto com o Gê. Mergulhamos na
exosfera terrestre em um determinado momento, e
descemos tão depressa que a tristeza se juntou à
tontura. Eu já podia ver o continente lá embaixo,
esperando pelo meu retorno.
Senti que ali não era o meu lugar. Meu lar,
na verdade, era nos braços do Gê. Porém, não havia
alternativa. Bem que tentei pensar em fazer alguma
coisa, sei lá, entrar em contato psíquico com o Xis,
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mas de que adiantaria? Só denunciaria a minha


posição e ele me perseguiria feito um rato. Nada
traria o Gê são e salvo de volta para mim.
Soltei um grito carregado de dor. Gritei tão
alto que os meus ouvidos latejaram, mas não ousei
parar. Queria descarregar aquela raiva, aquela
tristeza absurda, a solidão que me corroía por
dentro. Queria, na verdade, que o meu berro fosse
ouvido por alguém que pudesse me dizer que tudo
ficaria bem. Infelizmente, não havia ninguém que
me trouxesse qualquer consolo. Pelo menos foi o
que, a princípio, imaginei.
Eu me lembrei dela em seguida. E, sem
refletir muito, pensei em seu sorriso. Fui tragada
por aquele universo paralelo que existia dentro de
cada mente viva e me percebi numa sala branca,
similar a um escritório. Ela estava parada, olhando
para o horizonte de uma das faces da parede.
Parecia imensamente triste.
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Eu não sabia o que dizer, por isso corri até


ela e me atirei em seus braços.
— Estrela?! — Blue se sobressaltou, porém
me devolveu o abraço sem qualquer hesitação.
Senti o seu calor como se fosse real. — O que...
Isso é... um contato psíquico. Mas como você...?
Não perdi tempo explicando que eu era
capaz de manter contato com ela, já que sabia onde
se encontrava.
— Ele se foi! — berrei, deixando muitas
lágrimas rolarem. — Ele virou fragmento, mãe. O
que vou fazer agora? O que farei sem o Gê?
— Estrela... — Ela passou a acariciar os
meus cabelos. — Sinto muito por isso. Ainda não
sei de que modo a 14038 apareceu tão perto de nós.
Eles me trancaram nessa sala e não pude fazer nada
para impedir o ataque.
Assenti, sabendo que a coitada não tinha
culpa pelo que acontecera ao Gê. Foi muito azar de
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nossa parte voltarmos exatamente para onde os


Recolhedores estavam, depois de uma experiência
tão maravilhosa diante de Sol.
— Eu o amo! — solucei feito uma criança,
sendo embalada por aqueles braços aconchegantes.
Braços de mãe. — Ele não pode ter morrido, não
pode. Gê me prometeu que voltaria, ele prometeu!
— Filha...
Perdi as forças das pernas e nós duas
escorremos para o chão. Depositei a minha cabeça
em seu tronco e Blue foi me puxando para si, até
que eu estivesse em seu colo completamente.
Nunca em minha vida tinha recebido consolo
maternal, o que me fez chorar com mais
intensidade.
— A minha vida acabou, mãe. Não quero
viver sem ele. Não quero! Estou sendo sincera. Não
é minha intenção magoá-la, mas...
— Eu entendo seu sentimento, Estrela.
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Perdi o seu pai e senti a mesma coisa — Blue me


aninhou como se eu fosse um bichinho de
estimação. Ergui a cabeça só para confirmar: minha
mãe venusiana também chorava. — Infelizmente, a
revolta e a dor fazem parte da perda. Chore, meu
bebê. Chore o quanto quiser, estarei aqui contigo.
Lembre-se de que jamais estará sozinha.
Blue nem precisava ter me liberado para
chorar, pranteei e solucei durante um bom tempo
enquanto recebia suas carícias extremamente reais.
Nem dava para diferenciar aquele momento, se era
real ou fruto de um contato psíquico, prova de que
eu estava ficando boa naquilo. Foi então que tive
uma grande ideia.
Sobressaltei-me diante da possibilidade.
— Mãe... Preciso ir. Eu volto assim que
puder.
— Mande notícias, por favor. E não cometa
nenhum ato de insensatez, minha filha. Lembre-se
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de que eu te amo muito e não vou suportar te


perder. Cuide-se.
Aquiesci, enxugando as lágrimas. Soltei um
suspiro. Ver minha mãe triste daquele jeito ao
menos me fez entender que eu tinha que tentar ser
forte. Por ela. Blue já tinha perdido muito na vida,
seria muita maldade de minha parte sequer tentar
encontrar um meio de continuar respirando.
Desfiz aquele contato psíquico apenas
porque precisava, urgentemente, realizar outro.
Pensei no Gê, o que não foi nem um pouco difícil, e
a minha mente, então, foi tragada para uma
escuridão aterradora.
Meu corpo permaneceu paralisado. Não
consegui ver, ouvir ou sentir absolutamente nada.
Não existia porcaria alguma além de um oco
desagradável, sufocante, como se eu tivesse entrado
na paralisia do sono e não conseguisse sair. Soltei
um grito, porém nenhum som pôde ser ouvido
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naquele vácuo.
Ali era o lugar em que o Gê estava. Ou, ao
menos, a sua consciência. O amor da minha vida
estava imerso no nada. No vazio. Nas profundezas
da morte.
Abri os olhos no sobressalto, fazendo a
consciência retornar para o interior da cabine.
Ainda sem ter a ficha devidamente caída, percebi
quando aterrissei no meio de um matagal que não
me era estranho. Seria a mata perto da fazenda?
Estava bastante parecida. Foi um pouso suave, o
que me surpreendeu bastante. Aquela tecnologia
era mesmo fantástica.
Esperei por alguns minutos enquanto meu
cérebro parecia bloqueado por uma imensa rocha.
Até o coração parara de doer. Não houve lágrimas
ou desespero. Havia apenas o vácuo, como se
minha existência tivesse passado a ser uma
extensão daquele lugar horrível onde o Gê se
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encontrava.
Abri a porta prateada porque percebi que
podia fazê-lo em segurança. Notei que, sim, eu
estava exatamente no meio da mata que havia perto
da fazenda. Estava anoitecendo, e me perguntei
quanto tempo tinha passado desde que deixei a
atmosfera terrestre. Não pareceu ser muita coisa.
Talvez aquele ainda fosse o mesmo dia.
Dei um passo na direção que achei ser a
certa. Dei mais outro e tropecei sozinha,
estatelando-me no chão. A ausência do Gê e a
visita ao vazio onde estava a sua consciência
finalmente me fizeram voltar a chorar. Soltei um
forte grito, que reverberou entre as árvores,
assustando alguns pássaros mais próximos.
Eu estava de volta à minha casa. Mas o meu
lar nunca mais retornaria para mim.

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38

Cheguei aos pés da escadaria do casarão


após uma longa e sofrida caminhada. Parei muitas
vezes para chorar sem controle, pois não podia
acreditar que tinha voltado para casa sozinha, que
nunca mais veria o Gê de novo. Meu coração nunca
esteve tão partido. Sentia que a minha existência
havia perdido o propósito, e tudo o que eu fizesse
dali em diante seria completamente em vão. Como
continuar tocando a fazenda como se nada tivesse
acontecido? Como voltar a ser a Estrela de antes?
Era impraticável. Com toda sinceridade, não
aguentava mais aquele lugar. Foi o que constatei
enquanto observava em silêncio a casa que os meus

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pais construíram.
— Onde você esteve, Estrela? — uma voz
imperativa e arrogante surgiu atrás de mim, mas
nem isso me deixou assustada. Eu estava em um
estado esquisito de torpor. Repensando a minha
vida desde a raiz. — Não veio trabalhar hoje.
Aposto como aquele tal de Gê teve a ver com isso.
Eu me virei para olhar o Valentim, que
carregava uma careta irritada e se aproximou até
parar perto demais, creio que na tentativa de me
intimidar. Mais uma vez, perguntei a mim mesma o
que aquele homem estava fazendo na minha vida.
Gê tinha total razão. Eu devia ter me livrado do
Valentim há muito tempo.
— Limpe a sua boca ferina antes de
mencionar o nome dele — resmunguei, exalando
toda a raiva acumulada. — O que fiz ou deixei de
fazer hoje não te interessa.
Ao menos acabara de comprovar que aquele
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ainda era o mesmo dia em que saí da Terra na


tentativa de salvar o Gê de virar fragmento.
Infelizmente, todos os meus esforços tinham sido
em vão. Parei para pensar a respeito por alguns
segundos. Tudo bem, não tinha sido nem um pouco
em vão. Conheci a minha mãe, passei mais um
tempo com o Gê e ele realizou o meu sonho de
tocar uma estrela. Por mais que não tivesse acabado
bem, cada segundo valera a pena.
Valentim segurou o meu cotovelo. Fiz uma
careta, de repente espantada com a sua ousadia.
— Claro que me interessa. Sempre me
interessou. Ainda não acredito que me trocou por
aquele cara. Ele é esquisito, será possível que não
percebeu isso? — Valentim cuspiu as palavras. Um
bolo de ódio foi crescendo na minha cabeça. Sabia
que explodia em breve. — Não confio nele.
Semicerrei os olhos. Desvencilhei-me de
sua mão em um gesto brusco, pois não queria que
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me tocasse por mais nem um segundo. Eu tinha


alcançado o meu limite com relação a ele. Já não
era sem tempo.
— Não confia nele? — soltei uma risada
irônica. Gê é a criatura mais confiável de todo o
Universo. Quero dizer, era. Parei de rir para
suspirar fundo. Jamais me acostumaria a sequer
pensar nele no passado. — Você só pode estar de
brincadeira comigo, Valentim. Eu que não confio
em você.
— Em mim? Sempre te ajudei, sou o braço
direito aqui na fazenda. Passei o dia inteiro
resolvendo os seus problemas e você ainda vem
dizendo que...
— Passou a vida inteira me enganando —
interrompi-o antes que ele mesmo aumentasse a
própria bola. Estava farta daquilo. — Faz tempo
que você só me ludibria. Além de ter me traído de
diversas formas quando éramos namorados, trata os
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meus funcionários como se fossem animais e se


acha o rei da cocada preta aqui dentro. Deixa eu te
dizer uma coisa, Valentim: aqui, você não manda
em nada.
— Eu não te traía, Estrela — ele
resmungou. Seu rosto estava todo vermelho de
raiva. Mas a minha era muito maior.
— Ah, não? — gargalhei com desdém. —
Eu fingia que não via você dando em cima de
qualquer garota que atravessasse o seu caminho.
Pensa que eu não soube do seu caso com a filha do
dono da fazenda vizinha? — Apontei um dedo em
sua direção. — Foi bem na época que fiquei
grávida e você praticamente me obrigou a tirar o
bebê.
— Não vamos conversar sobre o passado...
— Vamos, sim! — berrei, no auge da minha
ira. — Como fui idiota por pensar que era a melhor
saída... Sofri sozinha e calada enquanto você se
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deitava com outras por aí. Nunca se importou


comigo, Valentim, NUNCA. Essa é a verdade.
Ele tentou me tocar de novo, mas dei alguns
passos para trás, deixando claro, por meio de uma
careta, que ele não devia se aproximar, caso
contrário haveria consequências. Fechei os olhos e
visualizei com nitidez um dos momentos mais
cruéis da minha vida: o instante em que Valentim
fez o maior terror psicológico, obrigando-me a
tomar um chá com ervas fortes, que eram
conhecidas por serem rigorosamente abortivas.
Passei dias sangrando, vomitando e me sentindo
um lixo. Meu pai, Dona Margarida e nem ninguém
soube daquilo. Eu tinha apenas dezessete anos.
— Estrela, eu era novo, estava assustado. Já
conversamos sobre isso.
Balancei a cabeça.
— Não conversamos. Você falou, falou e eu
aceitei tudo calada porque era uma estúpida.
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Aceitei sua amizade durante todo esse tempo


porque achei que não existia outra opção, depois
acreditei que sem você eu não conseguiria tocar a
fazenda — dei mais alguns passos firmes para trás.
Valentim estava com os olhos arregalados. Pudera,
eu nunca tinha agido de forma tão severa, nem tão
verdadeira. — Mas essa palhaçada acaba aqui.
Junte as suas coisas e caia fora da fazenda. Quero
você longe daqui antes do amanhecer, ouviu bem?
— O quê? — Valentim se assustou mais
ainda. — Não, Estrela, não pode fazer isso.
— Claro que posso. Sou a dona disso tudo
aqui — abri os braços. — Você está demitido por
justa causa, a considerar a forma cruel como tem
agido com os empregos. Em breve o advogado da
fazenda entrará em contato contigo.
Virei as costas, pronta para subir os degraus
do casarão.
— Não pode fazer isso... — ouvi-o
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murmurar.
Sem olhá-lo, respondi:
— Já fiz. Saia daqui imediatamente.
Assim que terminei de subir as escadas e
olhei para trás, reparando que o Valentim não
estava mais presente, senti um alívio imenso.
Fechar aquele ciclo da minha vida era uma atitude
necessária que eu vinha adiando como uma imbecil
medrosa. Tentava me enganar, colocando na minha
cabeça que aquele homem era meu amigo, que me
ajudava muito e que sem ele não daria certo. Mas, a
verdade era que Valentim não passava de uma
praga que devia ser exterminada,
independentemente de qualquer coisa.
Encontrei Dona Margarida na cozinha,
cantarolando uma moda antiga. Ela me viu e sorriu,
parecendo despreocupada.
— Menina, devia avisar quando for tirar um
dia de folga. Sobrou muito almoço. Estou fazendo
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uma sopa reforçada, mas deve levar um tempo


ainda. Está com fome?
Assenti, percebendo que, na verdade, estava
faminta. E sedenta. Bebi dois copos de água quase
sem pausas, enquanto Dona Margarida comentava
sobre como estavam crescendo saudáveis os
tomates da horta. Mal prestei atenção no papo.
— Vou tomar um banho e descansar um
pouquinho — avisei para não deixá-la preocupada e
saí da cozinha de forma mecânica, quase sem sentir
nada ao meu redor.
— E o Gê? — ela perguntou quando eu
estava me distanciando. Não ousei responder nada.
Fingi que não tinha ouvido e entrei no meu quarto,
trancando a porta atrás de mim.
A vida na fazenda não me pertencia mais.
Eu sentia aquela verdade atravessando a minha
razão. Não existia vontade alguma de cuidar
daquelas terras, de dormir naquela cama, de cuidar
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da horta, do milho, das uvas, dos cavalos.


Precisava, urgentemente, encontrar a minha
essência de novo, mas não podia fazer aquilo ali. A
fazenda era um ambiente sufocante e tudo me
lembrava o Gê: a estante de livros, o chuveiro, a
velha poltrona, a toalha que ele usou pendurada
sobre a cômoda.
Desesperada, abri a última gaveta do
guarda-roupa, onde eu guardava alguns
documentos importantes. Ajoelhei-me no chão e
espalhei a papelada por toda parte, com as mãos
trêmulas e os olhos marejados. Achei o primeiro
documento já providenciado. Era a carta de
demissão do Valentim, faltando apenas a minha
assinatura. Peguei uma caneta e virei de uma vez
aquela página. Queria-o longe do lugar onde cresci,
onde meu pai foi feliz com a minha mãe pelo pouco
tempo que o destino lhes reservou.
Continuei procurando outro documento,
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revirando pastas e mais pastas. Aquele eu tinha


providenciado recentemente, como um prelúdio do
que aconteceria. O meu espírito, mesmo
inconscientemente, já sabia que o Gê entraria na
minha vida e modificaria o meu ponto de vista
sobre tudo a minha volta.
Retirei de dentro de uma pasta preta o papel
oficial que passava a fazenda para Dona Margarida
e Seu Frederico. Deu um pouco de dor de cabeça e
não foi nada barato, mas lá estava ele, apenas
aguardando a minha coragem para assinar. Os dois
mereciam muito mais do que eu. Eram filhos
daquelas terras por muito mais anos do que a
quantidade de velinhas que já soprei.
Guardei de volta toda a papelada espalhada,
deixando de fora apenas os dois documentos
recém-assinados. Parei por alguns segundos
enquanto observava o quarto atentamente. Eu
estava desesperada, era verdade, mas também tinha
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certeza daquelas decisões. Não suportaria ficar na


fazenda, não sem o Gê, não sem a minha mãe, não
sabendo a história triste por trás do meu
nascimento. Além do mais, havia a possibilidade
dos Recolhedores me procurarem ali e eu não
estava nem um pouco a fim de virar escrava deles,
como infelizmente mamãe tinha se tornado.
Claro que queria salvá-la, mas precisava de
tempo e de usar todo o conhecimento obtido com o
Gê, através de suas palavras e de nossos momentos
transcendentais. Eu sabia que tinha muita sabedoria
dele circulando em meu corpo, só necessitava ter
calma e pensar direito, rememorar as tantas
informações que recebi durante nossa entrega, a
fim de separá-las umas das outras e fazê-las ganhar
sentido. O experimento estava comigo e eu sabia
que tinha tecnologia suficiente para voltar à órbita.
Salvar mamãe era o meu novo objetivo de vida. E
eu faria aquilo bem longe da fazenda.
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Peguei uma mochila e coloquei apenas o


necessário: alguns itens de higiene, poucas mudas
de roupa, bastante dinheiro, cartão de crédito e uma
garrafa de água. Eu tinha acumulado uma boa grana
durante os últimos anos, o suficiente para realizar
as tantas viagens que sempre quis, mas que só fiz
planejar desde então. Chegara a hora de conhecer o
mundo, sair sem destino definido, descansar e
pensar. As respostas para o que eu precisava
estavam dentro de mim mesma.
Tentei definir se era egoísmo de minha
parte abandonar o navio daquela forma. Talvez
fosse, de fato. Mas eu só atrapalharia se ficasse.
Não queria me transformar num pedaço inútil de
tristeza, não queria permanecer destroçada sem
nenhuma atitude. Aquela dor não cessaria tão cedo,
era bem verdade, mas precisava focar na minha
mãe e na minha necessidade de voltar ao espaço.
Gê não poderia me encontrar, mas eu tinha
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condições de achar os seus fragmentos e levá-los


até uma estrela, se me esforçasse mais. Era assim
que ele desejava que fosse; que seu corpo virasse
uma estrela brilhante. Eu podia fazer acontecer
mais depressa.
Pensei em conversar com Margarida e
Frederico antes de partir, mas eu sabia que eles
jamais me deixariam ir embora, além de me
considerarem louca. A conversa seria complicada,
dramática, exigiria uma despedida dolorida — isso
se eu conseguisse realmente partir — e seria tão
difícil que simplesmente me dei o direito de evitar a
fadiga. Eles ficariam bem, juntos. Sabiam se cuidar
e conheciam a fazenda como as palmas de suas
mãos. Os coordenadores fariam seus serviços, bem
como os demais funcionários, e tudo se resolveria
por si só, como uma máquina em bom
funcionamento.
Se tudo desse certo, eu poderia voltar antes
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da colheita do milho.
Deixei uma boa parte da grana, que eu
guardava debaixo do colchão, em cima da mesa,
junto com os dois documentos e um simples bilhete
que dizia: “Preciso espairecer, volto em breve. Se
cuidem e não se preocupem comigo. Amo vocês!”.
Destranquei a porta, sabendo que Dona
Margarida apareceria em breve para me chamar
para o jantar. Saí pela janela carregando somente a
mochila, como as tantas vezes que fiz aquilo com o
Gê. Não deixei de derrubar algumas lágrimas
enquanto seguia rumo à escuridão da fazenda.
Pretendia pegar a caminhonete e levá-la até a mata,
precisamente onde tinha deixado a cabine. Eu não
sabia qual era o peso daquela coisa, mas daria um
jeito de levá-la comigo para estudá-la a fundo.
Sabia que também existiam poderes dentro de mim.
Precisava me concentrar no meu lado venusiano.
Aos prantos e soluços, entrei na
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caminhonete e me deixei ficar por algum tempo.


Esperei o desespero ganhar certo alívio antes de
continuar. Observei o céu estrelado enquanto as
lágrimas escorriam em enxurradas, embaçando a
minha visão. Era diferente olhar o céu depois de ter
conhecido o espaço tão de perto. A vontade de
voltar só não era maior do que aquela tristeza
encrustada em meu coração.
Pude até mesmo ouvir a voz do Gê me
perguntando:
— A senhorita está em perfeito estado físico
e psicológico?
Ri sozinha daquela doce ilusão. Chorei com
ainda mais força.
— Não, Gê — choraminguei a resposta
dada para o além. Somente a minha própria solidão
a escutou. — Não estou bem. Você não está aqui.
Enxuguei as lágrimas e girei a chave na
ignição, disposta a ir embora antes que a minha
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loucura imaginosa se amplificasse. Dei mais uma


olhada no céu, mas precisei parar para compreender
melhor se aquilo era real ou se estava no meio de
mais uma ilusão criada pela minha mente
desequilibrada. Apertei os olhos com os dois
punhos e voltei a olhar para cima.
Havia uma nave se aproximando do
milharal. De verdade. Não era ilusão, ou então eu
tinha endoidado de vez e não era mais capaz de
discernir absolutamente nada. Em desespero, saí da
caminhonete sem ousar parar de olhar para o céu. O
objeto voador estava cada vez mais perto, a apenas
alguns metros do chão.
Porém, o que me deixou mais perturbada foi
o fato de ter certeza de que a nave em questão
possuía um formato redondo, similar a um ovo.

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Epílogo
- Gê -

67 anos venusianos
depois...
Encontrava-se longe de minhas intenções
esperar demasiado tempo para concluir o
experimento pelo qual trabalhei durante os últimos
67 anos. A pressa que me acometia era devido à
urgência de reencontrar Estrela tal como tinha lhe
prometido, antes da situação fugir de meu controle.
Infelizmente, precisei começar pelo princípio e só

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demorei tão pouco, em comparação à última vez


em que testei cada procedimento, porque o
conhecimento sobre 90% dos materiais ideais e da
parte técnica já havia sido alcançado anteriormente,
de forma que foi possível acessar grande parte do
trabalho sem temer uma falha no sistema.
Pouco consegui recuperar da 14038; apenas
fragmentos que viajaram junto com o meu
debilitado corpo no âmago do buraco negro. Jamais
consegui calcular exatamente quanto tempo
permaneci inconsciente, imerso na caótica
escuridão, nunca antes definida por qualquer raça
da Via Láctea. Os buracos negros eram misteriosos
em sua natureza, ainda que eu tivesse certeza de
que os mistérios só eram possíveis devido à
ignorância. Muito me chateava a ideia de
permanecer ignorante diante de um aprendizado
importante quanto aquele, mas, naquele momento,
não podia concentrar minha atenção na resolução
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de um mistério que não era só meu.


O que a sabedoria venusiana passava de
geração em geração era que os buracos negros se
tratavam de portais para outras dimensões,
galáxias, universos. Eles eram os responsáveis por
interligar toda a vida existente no infinito, talvez
por isso ainda fossem tão ininteligíveis para os
povos. Havia muito a conhecer sobre a essência do
infinito. Entretanto, eu só almejava concluir a nave
para ter de volta aos meus braços a meia-humana
que havia simplesmente tomado para si uma grande
parte dos meus melhores sentimentos.
Embora tivesse que adiar os meus planos de
ser feliz ao lado dela por 67 anos, por causa da
crueldade de um irmão que há muito se corrompeu
em busca de interesses próprios, sentia-me grato ao
buraco negro, por ter me devolvido à Vênus após o
período de sonolência em que me vi percorrer uma
boa parte do espaço sideral. Não foi fácil voltar
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para casa e perceber que ainda estava vivo. Eu já


tinha me conformado que a morte não significava
nada além de flutuar pelo vazio obscuro do
Universo.
Permanecer fora de estação por tanto tempo
permitiu que os Recolhedores finalmente retirassem
suas atenções sobre mim, já que consideraram a
minha morte e também a desintegração da 14038,
sendo assim, não mais havia motivos para me
caçarem ou para perturbarem a paz de Estrela.
Tentei por muitas vezes realizar um contato
psíquico com ela, porém eu não tinha sua mesma
habilidade de contatar alguém que estava tão
distante. Portanto, contava apenas com a fé que eu
sabia que ela teria em mim, ainda que eu não
focasse necessariamente em sua versão no presente,
nem mesmo na Estrela que habitaria o futuro.
Era o passado o dono de minhas maiores
esperanças.
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— 14039, ativar! — soltei o comando


utilizando a linguagem terráquea da qual tanto
sentia falta, sentindo o meu coração bater com
extrema intensidade, como se eu tivesse acabado de
praticar um árduo exercício. Ouvi o ruído
característico da nave em pleno funcionamento e
suspirei de alívio. Como se fosse um humano, tive
sérias vontades de derramar algumas lágrimas, no
entanto, o foco seria o meu companheiro até atingir
os meus objetivos e eu não podia perder tempo com
sentimentalismos fora de hora apropriada. —
14039, recarregar.
Os comandos pareciam estáveis, bem
compreendidos pelo núcleo do sistema. Os painéis
estavam prontos, a energia necessária estava sendo
ativada e nada mais faltava para que ganhássemos o
espaço novamente. Eu não gostaria de pensar sobre
as possibilidades de haver alguma falha. Já tinha
analisado e reavaliado cada minúcia do meu novo
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projeto, de forma que, caso houvesse erros, seria


obra do puro azar, não de uma suposta falta de zelo
de minha parte.
— Estamos partindo? — a minha
companheira de viagem questionou, surgindo por
detrás da nova versão daquela nave.
— Perfeitamente. Considera-se pronta? —
perguntei, pois sabia que aquela viagem seria
bastante diferenciada. Riscos seriam corridos.
Situações poderiam fugir do controle facilmente,
pois mexer com a relatividade do tempo não era
atividade para ser realizada sem, no mínimo, uma
profunda reflexão.
— Claro. Estou mais do que pronta, agente
Gê.
— Não sou mais um agente, Blue —
corrigi-a e lhe ofereci um sorriso. Aquela venusiana
me lembrava tanto a Estrela que era impossível
olhá-la e não me sentir desesperado para ir embora.
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— Nem a senhora. Somos livres agora.


Um resgate perfeito havia sido realizado
alguns dias atrás, durante o primeiro e único teste
da 14039. Encontrei a nave dos Recolhedores
estacionada na superfície lunar, durante uma
missão de reconhecimento e busca de mais energia.
Foi tão simples tirar a Blue das garras da Ordem
que ainda era difícil acreditar na sorte que nos
acompanhara: não fomos vistos por nenhuma
criatura, pois a interceptei durante um passeio
individual, logo, ninguém jamais desconfiaria de
seu paradeiro.
— Vamos voltar para a Estrela — Blue
sorriu, permitindo que eu me lembrasse com ainda
mais veemência o sorriso do grande amor que se
aprofundava em meu peito a cada segundo que
passava. 67 anos não foram o bastante para sequer
amenizar aquele sentimento. Ainda vibrava com
intensidade. — Estou preocupada. Faz uns meses
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que ela não entra em contato. Da última vez,


confessou que estava prestes a descobrir um modo
de fazer a cabine ir para o espaço.
— Não duvido que conseguirá — sorri ao
falar aquilo. — Mas a senhora sabe que a Estrela do
presente deixará de existir assim que voltarmos,
certo?
Blue aquiesceu.
— Não estou preocupada com isso. Ela será
muito mais feliz quando te reencontrar, Gê.
Eu não perdi tempo pensando no contrário.
Sabia que Estrela seria feliz porque eu,
pessoalmente, estava disposto a fazer o possível
para mantê-la bem, saudável, realizada e plena, em
todos os sentidos de sua existência.
— Vamos. Estou ansioso por esse momento
— apontei para o interior da nave e ajudei a mãe de
Estrela a ingressar a bordo.
Realizei todos os procedimentos necessários
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enquanto tentava controlar o nervosismo, a


apreensão, o medo e a saudade. Aquela versão da
nave era ainda mais moderna e completa, além de
ser segura em sua totalidade. Possui um sistema
anti-explosivo renovado, a capacidade de se
deslocar com ainda mais velocidade, de receber
mais carga energética e de recarregar utilizando luz
solar — feito que só foi possível depois que visitei
a superfície do Sol e compreendi ser viável utilizar
sua energia vital.
Antes mesmo de deixarmos a atmosfera de
Vênus, já havíamos alcançado a velocidade
superior à necessária para completarmos a nossa
viagem. Em um rompante, o espaço dobrou sua
estrutura visível ao nosso redor, mexendo com a
relatividade temporal e permitindo que nos
deslocássemos exatamente para o local de destino
e, principalmente, para o instante correto.
Aquela noite foi a escolhida. A mesma em
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que Estrela retornou a Terra na cabine ocupada


pelo experimento. Blue tinha me dito que ela havia
fugido da fazenda e passado os últimos anos
terrestres como uma nômade cheia de perturbações
mentais, focada em desenvolver uma forma de
retornar ao espaço, sem criar laços com nenhum
humano, isolada de tudo e de todos. Não era o tipo
de existência que eu desejava para ela. Também
sabia que não era o que ela mesma almejava para
si. Sendo assim, decidimos que Estrela não deveria
nem mesmo ter deixado a fazenda por nossa causa.
Se estivéssemos lá antes de ela ir embora, a
situação inteira mudaria de figura. Então,
simplesmente estaríamos lá.
Voltar 67 anos no tempo não foi problema
para a 14039, constatei quando atingimos a
atmosfera terrestre e continuamos voando com
estabilidade, sem qualquer transtorno ou
imprevisto. Sorri diante do acontecimento. Mais
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uma vez, eu tinha conseguido atingir meu objetivo


e, mais uma vez, poderia cumprir a promessa feita
para Estrela.
Eu a alertei que retornaria. Todas as minhas
promessas são cumpridas.
Fizemos um pouso seguro no meio do
milharal, precisamente onde os Recolhedores
deixaram a sua marca. Defini aquele lugar por
conter o solo apropriado para um pouso sem
emergências, e também por saber que, daquele
ângulo específico, Estrela nos veria depressa e viria
até nós antes de chamarmos a atenção dos
moradores e funcionários.
Deixamos a nave em repouso e esperamos,
ansiosos pelo reencontro. Jamais havia sentido o
meu coração batendo tão rápido quanto naquele
instante. E tudo fez sentido quando, primeiramente,
vimos uma luz proveniente de um aparato humano
feito para emitir luz. Se eu não me enganava,
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chamava-se lanterna. Em seguida, alguns pés de


milho emitiram ruídos para logo depois a linda
figura da Estrela se fazer presente.
Seus olhos castanhos estavam assustados, e
temi que não estivesse saudável.
— Senhorita... — murmurei, aproximando-
me devagar. Ela não parecia bem de verdade. —
Está em perfeito estado...
— PORRA, GÊ! — ela gritou uma palavra
que até então nunca tinha obtido conhecimento do
que significava, atirou a suposta lanterna ao chão e
correu até mim. Pulou sobre o meu corpo,
oferecendo-me um forte abraço, do tipo que eu
seria desprovido de sanidade se não
correspondesse. Tomei-a em meus braços e, só
então, permiti que o sentimentalismo me
alcançasse. Reuni as dores e dissabores dos 67 anos
de solidão. — É você? É você mesmo? — Ela se
afastou para me ver de perto. Estava chorando tanto
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quanto eu. — Está vivo?


— Sim, senhorita. Como prometido,
retornei.
— Você... está diferente. Seu cabelo ficou
azul de um dia para o outro? Meu Deus, eu não
acredito. Só posso estar sonhando! Você voltou,
Gê! Mas... Como? Como pode ser? Eu te vi
explodindo não faz tanto tempo e...
Segurei seus ombros, obrigando-a a focar
sua atenção em mim e não nas improbabilidades
daquele feito. Para Estrela, realmente não tinha se
passado tempo algum. Para mim, vê-la de novo
talvez fosse ainda mais desesperador. Ela não fazia
ideia das tantas formas que a saudade se utilizou
para me deixar completamente sem capacidade de
raciocínio. O meu envelhecimento físico foi
natural, apenas alguns anos terrestres.
— É uma história demasiadamente longa,
Estrela. O que posso garantir é que estou de volta e
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também pronto para tê-la como a minha


companheira — segurei seu rosto e a beijei
lentamente. Se eu pudesse congelar o tempo,
certamente seria no momento em que seus lábios
estivessem encostados aos meus. — Temos todo o
tempo em nosso favor — falei, lembrando-me de
que poderíamos recomeçar quantas vezes
quiséssemos, utilizando o sistema da nave. A nossa
diferença de idade jamais seria um problema,
portanto deixei de me preocupar com a forma
distinta como os nossos corpos encaravam o tempo.
— Gê... Precisamos salvar a minha mãe.
Não precisa ser hoje, muito menos agora que você
está de volta são e salvo, mas não paro de pensar
que...
Foi naquele momento que Blue se
aproximou de nós. Estrela soltou um grito e correu
para abraçá-la.
— Não acredito! — berrou em plena
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felicidade. — Não acredito que está acontecendo,


alguém me belisque.
— É real, minha filha — Blue falou com a
voz serena, abraçada à sua filha em uma cena
tocante. — Estamos aqui. Não há mais com o que
se preocupar. Acabou.

Mais tarde, acomodamo-nos no casarão


depois de tantas surpresas acontecerem, como, por
exemplo, o fato de Dona Margarida e Seu Frederico
já conhecerem a Blue e saberem exatamente sobre
a existência dos extraterrestres. Foi um grande
choque para a Estrela, e para mim também, mas os
dois senhores evitavam aquela conversa para
protegê-la e não tinham desconfiado que eu não
pertencia àquele mundo. De qualquer forma, foi

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bom para nós dois não precisarmos mais esconder a


minha origem. Por mais confusa que Estrela tivesse
ficado, em algum momento perceberia que aquele
havia sido mais um presente do destino para nós.

— Gostaria de tomar conhecimento sobre o


que a senhorita está pensando... — falei baixo em
seu ouvido. Estávamos entrelaçados em um
cobertor longo e macio, ambos completamente
despidos sobre a sua cama. Eu tinha lhe contado
tudo o que acontecera durante a transcendência do
nosso amor.
— Ainda estou me recuperando, Gê —
Estrela mantinha a respiração dificultada. Estava
visivelmente cansada do esforço físico, mas parecia
feliz. Eu também estava. Após tantas
incongruências, finalmente pude amá-la de novo.
— Não dá pra acreditar que você passou 67 anos
construindo outra nave, e que veio do futuro para
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me encontrar.
Beijei o topo de sua cabeça.
— Porque eu a amo com todo o meu
coração.
Estrela sorriu e me encarou de perto,
erguendo o rosto na minha direção.
— E eu te amo mais do que tudo no mundo.
Continuei a encarando. Observá-la tinha
sido um grande acontecimento desde o início,
quando éramos crianças. Talvez aquela humana
tivesse mexido comigo desde sempre. Só um
profundo amor justificaria a minha obsessão por
ela. Foram muitos anos dedicados à sua felicidade e
eu não me arrependia por nem um segundo. Além
disso, estava pronto para me dedicar por muito
mais tempo. Daquela vez, ao lado dela.
— Já decidiu se vamos ficar? — perguntou,
fazendo uma expressão confusa. — Percebi dúvida
dentro de você.
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— A dúvida existe porque não sei qual é o


seu desejo, Estrela. Podemos ficar aqui na Terra,
mas também possuímos a opção de viajar pelo
espaço. A decisão pertence à senhorita.
— Irei onde você estiver, Gê.
Beijei seus lábios rapidamente.
— Não tente me enganar, Estrela. Vi
perfeitamente que você sente pressa em sair daqui.
Ela gargalhou, assanhando meus cabelos de
um jeito divertido.
— É verdade. Gê, não consigo parar de
pensar no espaço, no buraco negro e em tantos
mistérios não revelados... Eu... Eu acho que o meu
lado venusiano está falando mais alto. Queria
entender tudo, sabe? E me entender também.
Estudar melhor o meu DNA.
Segurei a mão que acariciava a minha pele e
levei à boca, beijando-a.
— Eu a entendo perfeitamente. Fico feliz
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porque a senhorita possui sede de conhecimento,


uma sede que também sempre foi inerente a mim.
O espaço é o lugar do venusiano, de fato.
— Não precisamos ir pra sempre. Podemos
voltar, não é? Mamãe com certeza ficará aqui, é o
lar dela. Está tão feliz por ter retornado!
— Podemos voltar quando a senhorita
quiser, quantas vezes desejar.
Estrela se sentou, animada. Sorria com tanta
inocência que o meu sorriso escapou sem que eu
tivesse muita consciência.
— Vamos?
Apenas ela era capaz de me fazer rir. Eu
não costumava fazê-lo antes de conhecê-la, e algo
me dizia claramente que seria uma atividade
constante em nossas vidas.
Convicto de que aquela era a decisão que
nos traria a verdadeira plenitude, apenas confirmei:
— O Universo é nosso, minha companheira.
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FIM

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Agradecimentos

Obrigada a você, que chegou até o fim da


leitura com um gostinho de quero mais. Saiba que
nós dois compartilhamos desse sentimento!
Todas as palavras foram escritas em
homenagem a cada pessoinha maravilhosa que
viaja nos meus textos e torce pelo meu trabalho.
Obrigada pelo apoio, pelo incentivo e pelo carinho
que sempre consigo sentir daqui, do meu cafofo.
Obrigada a todos que acompanharam a história
no Wattpad e surtaram com as loucuras da Estrela e
com a fofurice do Gê. Vocês são incríveis!
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Agradeço profundamente cada comentário e


estrelinha.
Aqui vai mais um agradecimento igualmente
especial para as minhas leitoras betas, as melhores
amigas e puxadoras de orelha. Sem vocês eu não
sou nadinha!
Agradeço a Deus, por ter criado o fascinante
Universo e nos presenteado com tantas
possibilidades. Somos seres infinitos!
Beijos,
Mila Wander

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Sobre a autora

Mila Wander nasceu e mora no Recife,


onde atualmente estuda Psicologia e vive de seus
romances. Formada em Pedagogia e apaixonada
por literatura, começou a escrever por hobby.
Empolgou-se com o ofício após a publicação de seu
primeiro livro, Meu Conselheiro de Luz, em 2012
(relançado em 2018 pela Qualis Editora), e,
principalmente, por causa do sucesso

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proporcionado pelas ferramentas virtuais de


autopublicação.
Em 2014, seu romance erótico, O Safado do
105, lançado pela Editora Planeta, conquistou mais
de 4 milhões de leituras na plataforma digital
Wattpad. Além desses dois livros, ela também é
autora de Dominados, da famosa trilogia Despedida
de Solteira, do romance polêmico Meu Maior
Presente, do policial Diário de uma Cúmplice e dos
romances em parceria: Eu Nunca, Proteja-me, Deus
do Oceano, The Sex Game Brasil e Sete Por Cento.

Site: www.milawander.com
E-mail: autoramilawander@gmail.com

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