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Mila Wander
2018
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Ao surpreendente Universo.
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Índice
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Epílogo
Agradecimentos
Sobre a autora
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planeta.
Passei longos minutos observando
fixamente, como se pudesse encontrar algo novo
naquela bola que parecia desinteressante aos olhos
de qualquer pessoa. Às vezes nem eu mesma
entendia tanta obsessão. Os segundos se agruparam
mais e mais, transformando-se em longos minutos,
que fecharam a primeira hora sem que eu me desse
conta.
Foi de repente que uma bola de luz enorme
atravessou a lente do telescópio, fazendo-me gritar
alto. Os cavalos relincharam, inquietos, e eu me
levantei de supetão, derrubando o banquinho atrás
de mim. Corri na direção da janela para tentar
enxergar a olho nu o que havia sido aquilo. A luz
foi tão intensa que não era possível que não desse
para vê-la longe do telescópio.
E lá estava ela. Era similar a um avião, mas
tinha um formato esquisito, além de que parecia
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sobre o peito.
Olhei bem para o estrago feito, acocorando-
me para ter uma ideia melhor do que poderia ter
acontecido. Analisei a terra, até que encontrei um
milho que parecia ter sido pisoteado, como todos os
outros. Os pés de milho daquela área foram todos
achatados, formando uma circunferência perfeita e
enorme no meio da plantação.
Minha mente fantasiosa logo fez com que
eu me lembrasse de um filme chamado “Sinais”. A
plantação do protagonista também havia sido
marcado de um jeito bem similar. Eu me arrepiei
dos pés à cabeça, porque, no filme, aqueles sinais
haviam sido feitos por seres extraterrenos e suas
naves espaciais luminosas.
— Isso só pode ser coisa do demônio! —
uma funcionária deu sua opinião. A mulher estava
tão apavorada quanto todos os outros.
— Deve ter uma explicação lógica para
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pensei a respeito.
— A respeito do quê? — Enrolei os braços
ao redor do meu corpo para conter o frio
proveniente da brisa que corria entre as árvores. —
Por favor, me diga quem você é e o que quer
comigo.
— Não pensei em uma tradução para o meu
nome. Estrela, preste atenção. Eu vim te buscar.
Finalmente meus pés resolveram se mexer.
Dei alguns passos para trás, assustada com a
afirmação daquele cara. Sequestro não estava em
meus planos, de jeito nenhum. Só que, ao recuar
com mais velocidade, tropecei em uma raiz. O
homem conseguiu me alcançar antes que eu me
estatelasse; segurou os meus braços com força.
Suas mãos queimaram a minha pele como se
estivessem em brasa. Soltei um grito abafado pelo
pavor e ele finalmente me largou, dando-me certo
espaço.
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ultrapassada.
Revirei os olhos.
A criatura de nome esquisito segurou um
retrato meu de quando era criança. Sua expressão
modificou um pouco. Os olhos se tornaram menos
agressivos e mais gentis. Senti o princípio de um
sorriso em seus lábios.
— Pode dizer seu nome em sua língua? —
pedi.
Ele emitiu alguns sons fantasmagóricos, tão
ou mais incompreensíveis que seu nome traduzido.
— Tudo bem, desisto. Já que é a primeira
letra, eu vou te chamar de Gê.
— Como quiser, Estrela — depositou meu
retrato no local de origem. — Não se preocupe com
a minha presença. Vá descansar. Eu... — ele olhou
bem para o meu quarto, como se procurasse por
alguma coisa. Andou até o guarda-roupa e abriu as
portas. Enfiou-se dentro dele sob meu olhar
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extremamente curiosa.
Gê interrompeu sua fala robótica, da qual eu
não entendia porcaria nenhuma, e me olhou como
se tivesse esquecido que eu estava em sua
companhia.
— Por que eu apertaria, Estrela?
— Os botões são feitos para isso, não? Para
serem apertados — ergui uma sobrancelha. Gê
continuou me encarando.
— Não há tecnologia mais atrasada do que
aquela que exige que botões sejam apertados — ele
voltou a olhar para frente, bem para o painel
colorido. — 14038 é capaz de atender aos meus
comandos e detectar o que deve ser feito.
— A própria nave que aperta o botão? —
Minha mente era mesmo muito fantasiosa. Eu devia
escrever livros de ficção em vez de cuidar de uma
fazenda. Aquele era um talento que eu estava
desperdiçando.
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imenso.
Parei o carro em frente à escadaria, sabendo
que àquela hora não haveria ninguém por perto. Os
trabalhadores encerraram seus expedientes há
algumas horas. Ainda assim, precisava conferir se
dona Margarida e seu Frederico já tinham se
recolhido. Eles não estavam na varanda, e aquilo
era um bom sinal, porém ainda existia a chance de
estarem na sala de televisão.
— Fique aqui, Gê — finalmente quebrei o
silêncio entre nós. — Preciso conferir se a barra
está limpa. — Ele não falou nada. Eu já tinha
sacado que Gê nunca respondia rapidamente as
coisas que não compreendia, por isso emendei: —
Vou conferir se tem alguém por perto. Não
podemos chamar a atenção das pessoas.
Ele apenas aquiesceu, sem nada falar. Ainda
o olhei por um tempo, a fim de identificar se ele
estava triste a ponto de desejar permanecer calado.
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desconcertada também.
Quando Valentim já estava longe, eu me
virei e abri a porta do carona.
Não havia ninguém na cabine.
— Gê? — Ainda o procurei por cada
compartimento, como se ele coubesse em algum,
apenas para ter certeza de que não havia ninguém
ali dentro. Fechei a porta sem bater muito, pois não
queria chamar a atenção do casal que estava na
sala. — Gê? — soltei um sussurro mais intenso.
Olhei em volta, perguntando-me onde
aquele extraterrestre de uma figa tinha se metido.
Será possível que eu o tinha imaginado mais uma
vez? Não podia ser!
Quando estava prestes a me dar por
vencida, Gê apareceu vindo da lateral do casarão,
na parte oposta a que eu tinha usado para voltar à
caminhonete. Parecia bem tranquilo. Corri até ele,
meio irritada.
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algum conforto.
Depositei a bandeja em uma mesa pequena
apoiada no canto do quarto, percebendo que o
chuveiro ainda estava ligado. Retirei o casaco e a
blusa de manga comprida, trocando-a por uma
regata leve, que me ajudasse a suportar o calor
infernal. Retirei as botas de galocha e fiquei
descalça. Assim que me vi livre delas, não mais
escutei o barulho da água do chuveiro caindo na
cerâmica.
Com o coração na mão, esperei o Gê
aparecer. Não demorou muito e ele abriu a porta
sorrateiramente, como se quisesse ter certeza de
que não havia mais ninguém no quarto, depois saiu
com a toalha grande enrolada em seu corpo pelos
ombros. Os cabelos azuis molhados estavam bem
mais escuros, e a cara que fez quando me viu
parada, observando-o, foi de quem estava aliviado.
— Você precisa de roupas limpas —
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acometeu.
— Foram eles que me abduziram quando era
criança? — Coloquei uma mão no peito para conter
as batidas frenéticas do meu coração, mas de nada
adiantou.
— Sim, Estrela — Gê respondeu com a voz
séria, mas percebi um pouco de ressentimento em
seu timbre.
— E o que você estava fazendo com eles? São
venusianos como você?
— A equipe de Recolhedores geralmente é
composta por seres de diferentes origens. Eu estava
em treinamento na época, aprendendo a língua
terráquea e conhecendo os procedimentos.
— Mas você era tão novo...
— Eu tinha cento e trinta anos, Estrela.
— Meu Deus do céu! Quantos anos você tem,
afinal?
Gê ficou um tanto alarmado com o meu
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sempre?
Eu ainda não tinha pensado a respeito, e
acreditava que, se pensasse, enlouqueceria. Mas,
olhando em seus olhos inexpressivos, percebi que
era uma preocupação que não havia passado
despercebida pelo Gê.
— Vamos pensar em uma coisa de cada vez. —
Eu me levantei da cama sob seu olhar ainda atento.
— Agora, preciso trabalhar e você... Pode usar a
internet do meu celular. — Retirei o aparelho de
bolso e o entreguei. Gê pegou e o observou com
curiosidade. — Sei que a tecnologia é muito
antiquada pra você, mas deve ter alguma resposta
no Google. Pelo menos eu encontro tudo o que
quero lá.
Eu ia começar a explicar como o celular
funcionava, mas o Gê começou a mexer na maior
velocidade, praticamente se esquecendo de minha
existência. Dei de ombros e caminhei até a porta,
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mesmo fantástica.
— Achei que tudo aqui fosse antiquado e
atrasado — ri ironicamente.
Gê balançou a cabeça em negativa. Voltou a
olhar o céu, mas, ainda assim, não largou minha
mão.
— Agora compreendo por que os terráqueos
não sentiram a necessidade de desbravar as
profundezas do Universo — ele falou em um tom
animado que, para ele, soava impressionante.
Deixei as preocupações e incertezas de lado e
tentei aproveitar aquele instante incomum. Segurei
sua mão com mais força, procurando sentir as gotas
geladas entrando em contato com a minha pele.
Fazia um frio horrível, e para ele devia ser ainda
pior, mas cada desconforto se esvaía conforme a
chuva caía.
Gê não falou mais nada, mas eu, no meu
íntimo, já havia compreendido o seu pensamento.
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presos.
— Há uma informação que não compreendi
após a realização de minhas leituras — continuou
me encarando, e eu pouco conseguia enxergar de
seu rosto incomum. Não havia qualquer foco de luz
por perto. — O ato de beijar, ou seja, juntar os
lábios um no outro, faz parte do comportamento
humano, porém este, pelo que entendi, significa um
nível de afeição mais aprimorado, geralmente
realizado por um casal, macho e fêmea, que
pretende procriar.
Desviei o rosto, absolutamente
constrangida, agradecendo por estar tudo escuro e
não precisar disfarçar a quentura que passei a sentir
em minhas bochechas. Eu já imaginava o que o Gê
questionaria, por isso apenas esperei, quieta, que
concluísse seu raciocínio.
— Compreendi que um beijo não é trocado
entre amigos, conhecidos ou parentes, como uma
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interceptar antes.
— Não se formos discretos.
— Não se formos discretos... — Gê repetiu
em um murmúrio, como se refletisse sobre a nova
possibilidade que nos era apresentada.
— Temos que partir no momento certo,
depois que o ovo estiver carregado.
— Pode ser perigoso, Estrela.
— Estou pronta para correr todos os riscos.
Realizar sonhos exige sacrifícios, não acha?
Gê apenas aquiesceu, não fez nenhum
comentário.
Eu já sonhava acordada com a minha visita
ao sol. Não via a hora de vivenciar aquela aventura
ao lado do Gê. Em dezesseis minutos eu poderia
tocar uma estrela e voltar para a Terra me sentindo
a mulher mais realizada de todas as galáxias.
Nenhum extraterrestre ladrão frustraria aqueles
planos mirabolantes, se dependesse de minha força
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de vontade.
Estacionei a caminhonete em frente ao
casarão. O pessoal da roda de viola provavelmente
tinha se protegido da tempestade na palhoça, como
sempre faziam quando chovia, e continuado a festa,
portanto eu não teria problemas de dar de cara com
dona Margarida ou seu Frederico. Sendo assim,
gesticulei para que o Gê me seguisse e andamos até
a suíte sem maiores problemas.
Peguei toalhas limpas e ofereci uma a ele.
Ainda estávamos ensopados. Eu nem queria ver
como o estofado da caminhonete havia ficado
depois que nos sentamos com aquelas roupas
encharcadas. Novamente, liguei o aquecedor no
máximo.
— Vou pegar roupas secas para você —
falei, já pensando em confiscar mais peças no
antigo baú do papai, mas prometendo a mim
mesma que tiraria umas horas no dia seguinte para
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solidão.
— A senhorita se sente sozinha? — Gê,
primeiro, contornou um braço ao meu redor.
Pareceu não saber direito onde repousar a mão, e
acabou segurando um ponto acima de minha
cintura.
— Às vezes. E você?
Ele demorou a responder.
— Não me lembro de não ter me sentido
sozinho até este momento.
Soltei uma risadinha um tanto triste,
emocionada com suas palavras sinceras. Era ótimo
que o Gê estivesse falando sobre sentimentos
porque, se não falasse, eu jamais seria capaz de
adivinhar. Foi então que percebi que ele realmente
não era indiferente às coisas. Aquela criatura
possuía sentimentos, sim, embora eles se
mantivessem escondidos dentro de uma carcaça
inteligente e racional.
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comigo?
— Faça-o se entregar... — a voz ecoou
novamente, causando-me nova onda de arrepios. —
É em vão lutar contra nós. É em vão se esconder.
Faça-o se entregar...
Eu não sabia do que aquele homem estava
falando. Tentava enxergar o seu rosto, mas a luz
forte atrás dele tornasse isso uma tarefa impossível.
A frustração só fazia aumentar conforme os
segundos passavam.
— Quem é você? — voltei a perguntar,
atordoada. — O que quer? Vamos, fale!
— Precisamos do experimento agora — ele
falou com sua voz hipnótica, um murmúrio
metálico de fazer qualquer um tremer nas bases. —
Faça-o se render a nós, Estrela.
— Você e-está f-falando do Gê? — gaguejei
vergonhosamente. Eu começava a ter um pouco
mais de lucidez a respeito daquela figura. Já havia
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perguntou, já sorridente.
— Esse romance. Não sei não... Está na hora de
assumir, os dois são bem grandinhos, passaram da
hora de casar e ter filhos.
Revirei os olhos. Eu tinha vinte e oito anos e
me achava nova para casar, mas Margarida não
compactuava com o mesmo pensamento. Meu rosto
estava em brasa de tanta vergonha. Eu não sabia se
rebatia aquele absurdo ou se saía correndo o mais
rápido possível. Valentim, por outro lado, parecia
se divertir com as suposições loucas de Margarida.
— Bem que eu queria, tia, mas Estrela não me
dá bola — ele me olhou como se eu fosse a sua
segunda sobremesa.
— Como não, menino? Vocês têm passado
quase todas as noites juntos, não venham com essa.
— Ela se levantou, arrastando a cadeira para trás e
segurando a jarra vazia de suco que seu Frederico
não levou. — Tenho certeza que Frederico vai ficar
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parceira?
— Eu não sei, Estrela — Gê me pareceu
bastante sincero. Ele só me diria que não sabia de
algo se realmente não soubesse. — Possuo um
conhecimento muito escasso sobre essas questões
sentimentais. De qualquer forma, estou preso na
Terra e ter uma parceira é a última de minhas
preocupações.
— É... — soltei meu milésimo suspiro.
Eu sabia que em algum momento o Gê ia
mexer no telescópio. Se fosse outra pessoa, não
deixaria de jeito nenhum que mexesse no meu
“bebê”. Mas Gê era curioso demais para ficar
quieto, além de bastante cuidadoso com tudo o que
tocava, por isso permiti que ajustasse a lente para
onde quisesse.
— E a senhorita? — perguntou depois de
um tempo regulando a aparelhagem.
— Eu o quê? — Nem preciso dizer que
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reflexivo.
— Eles utilizarão bastante cautela para
arquitetar uma sorrateira invasão. É provável que
tudo se resolva caso eu simplesmente me entregue
aos seus domínios.
— Não! — berrei, assustada. — Você não
vai se entregar.
— A senhorita corre perigo, bem como as
suas terras. Este sinal é o suficiente para que
tenhamos certeza de que qualquer atitude tomada
pelos Recolhedores não receberá punição.
— Não, Gê... — balancei a cabeça em
desespero, apavorada com a ideia de vê-lo ser
levado por aqueles idiotas. — É o seu experimento.
Vale a pena lutar por ele.
— Esta noite, senhorita — Gê foi incisivo.
Seu olhar sério quase rasgava a minha carne. Ele
não parecia contente, mas era apenas uma sensação.
— Esta noite me entregarei aos Recolhedores antes
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gigante.
Os pelos do meu corpo se eriçaram, daquela
vez devido ao pavor.
— Os Recolhedores estão aqui — Gê
murmurou a trágica notícia. Passei um tempo sem
me mover, até sem respirar, então ele me empurrou
com cuidado, fazendo-me acordar do transe. —
Estão perto demais.
Outro ruído se fez presente, e coloquei as
mãos nas orelhas, assustadíssima.
— Meu Deus...
— Corra, Estrela. Corra o mais rápido
possível! Não há tempo para se esconder.
Bem que tentei puxá-lo comigo, mas Gê se
desvencilhou das minhas mãos e me empurrou mais
uma vez. Ainda tentei insistir, porém ele se afastou
para longe. O barulho se tornou tão insuportável
que meu instinto de sobrevivência acabou falando
alto.
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— Estrela...
Eu ouvia sussurros como se houvesse uma
presença constante logo atrás de mim, feito um
fantasma que não desistia de me assombrar nem
com reza braba. Não ousei parar de correr um só
segundo desde que deixei o Gê para trás, ainda
assim, os Recolhedores pareciam cada vez mais
perto de me alcançar. Meus pés e pernas latejavam,
provocando-me uma dor horrível, porém tudo o que
menos queria era ser apanhada por extraterrestres
malignos.
— Volte aqui, Estrela... — aquele sussurro
gutural soou em um timbre irritado.
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— O quê?
— A senhorita não pode ter deixado a
atmosfera terrestre. Eles a capturaram?
— N-Não. Quero dizer, acho que não. Gê,
está tudo tão confuso. Como viemos parar aqui?
Ele apertou a minha mão com mais força.
— Ainda que o meu corpo padeça tentando,
irei resgatá-la, Estrela. É uma promessa, e desta vez
a cumprirei.
Uma intensa luz tomou conta da gente e
logo abri os olhos, sentando-me em um rompante.
A mata ressurgiu a minha volta, o Gê desapareceu e
fiquei sem saber se aquilo tudo havia sido real ou
apenas um sonho. Olhei para o céu, constatando
que não estava mesmo flutuando no espaço.
Eu me levantei um pouco desconfiada,
analisando ao redor em busca de algum indício que
me fizesse crer que eu tinha mesmo feito um
contato psíquico. De repente, uma faixa de luz se
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visivelmente exausta.
Olhei para o Gê e constatei que nem
adiantaria retrucar, ele estava tão bem que parecia
ter saído de um comercial de perfume caro.
— Vamos ter que andar até o casarão —
informei em um timbre choroso.
Gê se aproximou e, por instante, a ilusão
contida em minha mente doentia me fez acreditar
que me beijaria novamente. Em vez disso, ele me
tomou em seus braços como se eu fosse um bebê,
ou uma princesa em apuros, tirando-me do chão
com uma facilidade impressionante. Pudera, se
havia erguido aquela caminhonete sem se cansar,
meu peso deveria ser equivalente ao de uma
formiguinha para o Gê.
— Ei! O que está fazendo? — reclamei, me
debatendo um pouco. Não queria proximidade com
aquela criatura quente nem tão cedo, não depois
daquele fora. Eu ainda estava melada entre as
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respeito.
Deixei meu corpo cair totalmente de novo.
— Não contei nada a ninguém, Gê, só que
eles me conhecem há anos e descobriram sozinhos.
— Coloquei as mãos nos olhos, percebendo o
quanto eu estava esgotada em todos os sentidos. —
Eles acham que estamos namorando.
— Namorando?
Olhei para o teto. Evitei ao máximo
registrar sua reação, mas não demorou nem um
segundo e precisei encará-lo. Gê estava com os
olhos bem abertos e a boca escancarada em
surpresa. Poucas vezes o vi tão expressivo quanto
naquele instante.
— Sabe o que significa namorar? —
perguntei.
— Sim — Gê murmurou. Os olhos
piscavam mais que o normal. — O que exatamente
seus parentes sabem ao meu respeito, Estrela?
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Abri um sorriso.
— Exatamente, garoto esperto.
Gê ficou me olhando e decidi que aquele
era o momento de sair de cena, antes que a vontade
de atacá-lo de novo ganhasse a batalha que estava
sendo travada em mim. Fui ao banheiro, vesti
minha camisola, escovei os dentes e voltei para
cama. Havia algumas noites que o Gê tinha
insistido para que ele ocupasse a poltrona com o
objetivo de não me deixar desconfortável. Tentei
questionar sua decisão, até sugeri dividirmos o
colchão de casal, mas ele se manteve irredutível.
— Boa noite, Gê.
— Desejo que a senhorita durma muito
bem.
Eu sabia que o Gê ainda demoraria um
pouco antes de fazer sua higiene, do jeito que
ensinei, e ir dormir. Geralmente ele ficava lendo,
mexendo no meu celular ou simplesmente
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em sua rotina.
Fiquei o olhando por simplesmente não
acreditar que o Gê estava mesmo sugerindo que a
gente andasse por aí grudados durante vinte e
quatro horas. Já era difícil resistir à sua presença
durante as noites. Eu estava completamente ferrada.
Além do que o meu coração ainda não tinha se
aquietado.
— Não vou te impedir, Gê. Só vai ser meio
estranho. As pessoas farão perguntas sobre você e
eu não sei como responder a nenhuma delas.
— Não se preocupe com este detalhe. Tive
muito tempo para refletir sobre a possibilidade de
viver como um humano, portanto realizei inúmeras
pesquisas e me sinto capacitado para responder
inverdades quando for de extrema necessidade.
Tive vontade de rir do seu jeito de dizer que
inventaria um monte de mentiras.
— Tudo bem... — soltei um suspiro e me
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— Isso aí é o banheiro?
Ele deu de ombros.
— Se eu tivesse um pouco mais de
conhecimento sobre os humanos antes de ter
construído esta nave, certamente tudo seria
diferente. O funcionamento do experimento exigiu
de mim muita energia...
— Sua nave é perfeita, Gê — interrompi-o,
já que percebi seu descontentamento e não queria
vê-lo daquele jeito. — Não se preocupe com isso.
Só preciso que olhe para o outro lado, pois vou me
trocar agora.
Ele abriu bem os olhos vermelhos — pois
havia retirado as lentes antes de tomar banho — e
tratou logo de ficar de costas. Retirei minhas roupas
calmamente, não me importando nem um pouco de
ser flagrada. Vesti a camisola e só então avisei ao
Gê que ele poderia se virar de novo. Eu me deitei
sobre o edredom e suspirei fundo. Aquela seria a
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intenções.
Mesmo que eu tivesse prometido nunca
mais fazer aquilo, era impossível resistir a ele, à sua
proximidade tão acolhedora. Era como se o seu
corpo me hipnotizasse, como se sua alma clamasse
pela minha e me deixasse zonza com a
possibilidade de tê-lo, seja da forma que fosse. Eu
me sentia forte o bastante para encarar até os
Recolhedores, mas não passava de uma fracote para
conter o desejo que aquele extraterrestre me
causava. Claro, tinha muita vergonha desse
sentimento, mas nada fazia com que parasse de
bater em meu peito, nem mesmo minha própria
consciência.
— Não quero largá-la se essa atitude
permitir que se machuque — Gê respondeu com
seriedade. Por um momento, achei que tivesse
reparado em minha boca. Estava um pouco escuro
dentro da nave, de modo que não consegui ter
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isso.
— A senhorita deveria, então, tomar
conhecimento de que o nome da nave não é em
vão. Confesso que ela me deu muito mais trabalho
para ser construída do que o experimento em si.
— 14038?! — quase gritei. Ele aquiesceu
de um jeito divertido, capaz de me arrancar um
suspiro. — Está brincando comigo, Gê! Não pode
ser sério!
— De forma alguma, Estrela. Jamais
brincaria com a senhorita a respeito de um assunto
tão importante.
— Mas 14038? Isso explica você ter
demorado trezentos anos. — Retirei minhas mãos
do experimento. Esperava vê-las sujas de algum
líquido nojento, mas estavam limpinhas, o que me
deixou em dúvida sobre o conteúdo escorregadio da
luva. No entanto, decidi não fazer perguntas por
acreditar que a resposta seria irrelevante.
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— O que foi?
— Nada — murmurou, tão baixo que não
me convenceu. — A senhorita precisa se alimentar
e se dedicar ao trabalho em suas terras. Vamos
retornar.
— Espera, Gê... — segurei sua mão no
impulso. Uma onda de calor invadiu a minha pele e
não evitei soltar mais um suspiro. As lembranças da
noite passada ainda estavam muito vívidas. Sentia
que ainda o pertencia profundamente, mesmo que
ele não me quisesse mais. Olhamos, juntos, para
nossas mãos. Resolvi soltá-lo antes que começasse
a dar piti. — O que aconteceu? Você pareceu ter se
lembrado de alguma informação importante.
— Não foi nada, Estrela.
— Promete?
Ele aquiesceu, mas não me encarou como
sempre fazia em situações sérias. Naquele
momento, soube que o Gê tinha mentido muito feio
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— Perfeitamente.
Eu queria fazer mais perguntas a respeito,
porém de nada adiantaria. Gê já tinha me repelido
completamente e nós nunca mais faríamos aquele
sexo maravilhoso de novo. Era uma pena. Na
verdade, meu peito doía apenas em pensar que eu
jamais o sentiria de novo. Contudo, precisava
deixar a poeira baixar, tentar esquecer o que
fizemos e, principalmente, concentrarmos nossas
atenções na resolução do problema com os
Recolhedores.
Andei até o armário com o objetivo de
separar roupas limpas para vestir.
— Não vai tomar o seu banho? — perguntei
sem olhá-lo.
— Neste momento, estou tentando
encontrar uma maneira de me lavar sem deixá-la
sozinha.
Eu poderia dizer para que não se
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mesa.
Gê só se mexeu novamente quando o puxei
pela mão, guiando-o para a cadeira que ficava ao
lado da minha. Frederico se sentou na ponta da
mesa e Margarida à sua esquerda. Valentim ficou
ao lado da tia, exatamente de frente para o Gê. Não
pude deixar de perceber que continuaram se
olhando em um embate silencioso, como se
travassem uma guerra em que só os dois
participavam. Eu estava admirada com a atitude do
extraterrestre. Ele não era de fazer aquele tipo de
coisa. Ainda que estivesse enciumado, costumava
ser educado com todo mundo.
— E então, Gê... O que faz da vida?
Ele não respondeu. Dei-lhe um cutucão na
coxa até chamar sua atenção. Gê desviou o rosto e
finalmente respondeu:
— Neste momento, estou de férias, senhor.
Mas sou um cientista.
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— Mas, menina...
— Farei exatamente o que estiver dentro
dos anseios de Estrela — Gê acrescentou,
interrompendo a discussão que se formaria porque
eu não desistiria de dar o meu ponto de vista. —
Pretendo respeitar sua natureza e suas opiniões.
Não farei absolutamente nada que estiver distante
do que ela deseja para si mesma.
Houve um minuto completo de silêncio. Eu
estava tão embasbacada que não conseguia sequer
respirar.
— Fico mais aliviado, então, rapaz. A
felicidade da Estrela é o que me preocupa —
Frederico se adiantou.
— Este sentimento também é compartilhado
por mim — Gê falou um pouco mais baixo. Eu me
assustei ao sentir sua mão quente sobre a minha.
Fiquei com o rosto ainda mais afogueado do que
antes. — Prometo jamais magoá-la ou deixá-la
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um balão de gás.
— E agora? Conseguiu acertá-los? —
perguntei com a voz trêmula. Os cabelos pintados
do Gê estavam todos para cima, ou melhor,
espetados para baixo, deixando-o pendurado de
uma forma que seria engraçada se não fosse tão
assustadora.
— A 14038 dificilmente erraria o alvo,
senhorita.
— E o tal campo de força? Para que serve?
Está funcionando? — Eu sabia perfeitamente que
aquela não era a hora para sanar tanta curiosidade,
porém o nervosismo me fazia não querer calar a
boca.
— O campo de força é um envoltório
energético que tem como objetivo proteger a nave
de eventuais ataques — Gê estava ofegante, como
eu. — Seu funcionamento retornou, mas creio que
não durará muito tempo.
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— Por quê?
— Os Recolhedores neutralizaram o
primeiro campo de força, então suponho que não
hesitarão em fazê-lo novamente. Só não entendo
por que estão demorando tanto.
— Ataque de novo, Gê, até que vão embora.
Não podemos esperar por eles!
— Estrela, é muito perigoso. Eu não sei até
onde os Recolhedores têm permissão para chegar.
Temo que este embate se transforme em uma
tragédia.
— O que mais pode acontecer? —
questionei, com a adrenalina nas alturas. Afinal, se
estávamos na chuva, deveríamos nos molhar. Eu
não acreditava que um encontro pacífico
funcionaria com os Recolhedores. — Eles querem
me levar, Gê. Já é a pior coisa que poderiam fazer
comigo.
— A senhorita não teme a morte?
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da voz sinistra.
A coisa mais fácil do mundo foi entrar em
contato psíquico com aquele camarada. Eu estava
ficando boa naquilo. Sendo assim, quando me vi no
meio da mata, com fumaça por toda parte, tive a
certeza de que tinha conseguido, mais uma vez,
fazer aquilo que o Gê dizia que era impossível para
uma humana. Bem, eu era diferente. Não sabia o
que me distinguia dos demais, talvez fosse a
estupenda força de vontade, mas precisava
aproveitar cada oportunidade que a vida me
oferecia.
O cara do capuz estava logo adiante, e,
ainda que eu não pudesse ver seu rosto com nitidez,
a expressão corporal deixava claro que tinha sido
pego de surpresa. Ele não esperava que fosse eu a
procurá-lo, a fim de colocá-lo contra a parede. Era
exatamente o que eu estava prestes a fazer.
— E aí, mano? — iniciei a conversa da
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— Há — limitou-se a responder.
— E então?
— No fim das contas, eles farão parecer que
nós somos os algozes. — Gê soltou um suspiro
profundo e se afastou devagar, rumo ao outro lado
da nave. — Eu não deveria tê-los atacado. Diga-
me, Estrela, o que foi conversado durante o seu
contato psíquico? Necessito compreender todas as
informações.
Girei o corpo para acompanhar o caminho
que o Gê fazia dentro da nave. Parecia verificar o
seu funcionamento, analisando os pseudo-botões
como se neles houvesse uma solução para o nosso
grande problema.
— Não conversamos muita coisa. Eles
querem o experimento a todo custo e eu neguei até
o fim.
Gê aquiesceu devagar, ainda bastante
reflexivo.
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presos.
— Tudo bem. — Levantei a cabeça para
conferir através do teto de vidro. Estava muito
escuro no interior do lago, de forma que nada
consegui ver além de um véu enegrecido. —
Vamos simplesmente esperar?
— Exatamente.
Gê começou a recolher a nossa cama
improvisada, que havia sido espalhada por toda
parte da nave, passando a montá-la em um canto
diminuto. O ovo estava em seu menor formato, e
algo me dizia que aquele era o espaço que
ocuparíamos durante toda a noite, para economizar
o máximo possível de energia.
— Esquece, Gê, eu não vou conseguir
dormir. Não depois das tantas doidices que
aconteceram.
— Vamos apenas descansar nossos corpos.
Precisaremos de energia tanto quanto a 14038. A
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resposta.
— Prometo que não se repetirá — disse, por
fim, muito sério.
O balde de água fria que me deu foi
devidamente sentido pelo meu corpo, que se
encheu de decepção diante de uma resposta que eu
não gostaria de ouvir. Balancei a cabeça em
negativa, cansada de sentir aquela paixão não
correspondida.
— E se eu quiser que se repita? — soltei
sem pensar. Gê parou a boca aberta no ar e me
olhou de imediato. — E se você também quiser?
— Estrela...
— Porque você talvez não saiba, mas eu sei
reconhecer o desejo quando o vejo bem na minha
frente. — Seus olhos vermelhos se arregalaram. Eu
já tinha passado por tanta coisa, não seria aquele
olhar intenso que me intimidaria. — Você pode
tentar negar, Gê, mas sei que me quer. E, quer
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exaustiva.
O Recolhedor acenou positivamente.
— Esqueçamos a autorização e façamos um
trato — sugeriu com um olhar carregado de certa
malícia. — Você precisa de nós para atravessar a
atmosfera terrestre e nós precisamos do
experimento e da nave. O Conselho não precisa
tomar conhecimento desta troca.
Gê deu de ombros.
— Seria uma atitude ilegal, senhor.
— Sim, porém teríamos o tempo hábil.
O ser que naquele momento me possuía
acabou concordando, ainda que um pouco
relutante. Gê não gostava de fazer nada errado.
Minha vontade era de gritar para que não aceitasse
aquele absurdo, mas nada pude fazer. O que eu via
era apenas uma lembrança do que já havia
acontecido. Não tinha volta. Gê fora enganado por
aquele Recolhedor malicioso e não nos restava
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pessoa.
— Gê... — balbuciei. Deixei algumas
lágrimas escaparem, mas ele não as percebeu
porque estava muito ocupado beijando e lambendo
o meu pescoço, provocando-me uma série de
arrepios. — Eu sou sua, Gê... Toda sua.
Ele soltou um gemido mais ruidoso do que
todos os outros que escaparam pela sua boca. Girou
nossos corpos de forma que fiquei por baixo dele.
Gê abriu as minhas pernas ao máximo e trabalhou
intensamente, acelerando o ritmo, aprofundando a
entrega, trazendo-me mais memórias.
Todavia, aquela, em específico, me deixou
chocada. Não foi um acontecimento, um diálogo
feito nem nada do tipo. Foi apenas uma ideia que
me acometeu, e que eu sabia que fazia parte dos
planos dele:
“O experimento Estrela X-189 precisa ser
destruído para garantir a segurança de Estrela.
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submersos.
Eu ainda não estava nem um pouquinho
preparada.
— Já amanheceu — Gê informou
didaticamente, levantando-se do edredom com
tanta tranquilidade que me irritou. Como poderia
estar tão calmo? Meus nervos estavam em
frangalhos. — A senhorita está em perfeito...
— Cala a boca, Gê — interrompi-o,
exalando nervosismo. Minha vontade era de gritar
bem alto, mas me contive. Não ajudaria em nada,
afinal. — É claro que não estou em perfeito estado,
nem físico e nem psicológico.
Totalmente despido, ele se aproximou e
segurou a lateral do meu rosto. Senti sua pele
quente, de textura indefinida, porém macia, e me
senti ainda mais desesperada. Como viver sem
aquele toque? Como existir sem o Gê?
Meus olhos se encheram de lágrimas
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imediatamente.
— Poucas vezes as palavras me escaparam
como agora — ele murmurou enquanto me
analisava de um jeito intenso. Eu não conseguia
mensurar o tamanho da falta que aqueles olhos
vermelhos me fariam. — Meu único desejo é que a
senhorita não perca um segundo de seu tempo
sofrendo pela minha ausência.
Balancei a cabeça em negativa.
— Como, Gê? — deixei as lágrimas
escaparem. — Como não sofrer?
— Todo o Universo está em constante
transformação, Estrela. Nada é capaz de morrer,
pois nada se torna inútil para a natureza — Gê
abriu um sorriso ameno. Continuei balançando a
cabeça. Não queria suas explicações cosmológicas,
pois elas não aliviariam minha dor, queria apenas
que ele ficasse. — Lamentar um processo de
transformação, pelo qual passarei em breve, é
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— O que é isso?
— A 14038 entrou em modo de alerta —
Gê informou e começou a falar alguns comandos
na sua língua natal, enquanto se vestia, aos
tropeços, com a camiseta e os jeans. Resolvi me
vestir também, já que me pareceu tão apressado,
embora ainda necessitasse de uma resposta vinda
dele. — Precisamos deixar as profundezas do lago
imediatamente.
Gê balbuciou mais algumas palavras
esquisitas e a nave começou a se mover dentro da
água. Meu coração outrora apertado se afunilou
com mais força, arrancando-me o ar dos pulmões.
Só me restava esperar pelo que viria. Eu sabia que
o momento estava próximo e, pela expressão séria
do Gê, ele não cederia com facilidade.
O extraterrestre me puxou para a poltrona
como se fosse uma marionete, pois eu permaneci
estática diante da movimentação da nave, e prendeu
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próxima.
— Vamos capturar o seu namorado,
senhorita Estrela — Xis informou de forma
divertida.
Respirei fundo e rezei para que aquele plano
desse certo.
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evidente.
— A 14038 tem a capacidade de viajar no
espaço-tempo — disse, por fim.
Meu cérebro, a priori, deu um nó e não
permitiu que eu tivesse qualquer entendimento a
respeito daquela informação. Precisei de alguns
segundos para compreender que o Gê podia saltar
em vários pontos do espaço em pouquíssimo
tempo, mexendo com a relatividade. Era daquela
forma que alcançaríamos o Sol em apenas oito
minutos. Significava que ele poderia estar em
qualquer lugar, a qualquer espaço de hora do
presente, do passado ou do futuro?
— Vocês podem localizá-lo, não podem? —
perguntei com a voz embargada.
Xis demorou demais a responder. A nave
desacelerou tanto que parecia estar apenas
flutuando no meio do nada, sem qualquer
direcionamento. Nem mesmo as luzes diferentes, e
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— Acredito.
No instante seguinte, a 14038 simplesmente
se materializou alguns metros à frente da nave dos
Recolhedores. Xis começou a berrar ordens na
língua estranha enquanto eu ria
descontroladamente, em uma crise de riso fora de
hora.
Ele tinha voltado. Gê não viraria fragmento.
Não importava o nosso futuro, se ficaríamos
juntos ou não, se poderíamos alimentar aquele
amor ou não. Eu estava tranquila por ser
correspondida e por tê-lo vivo, sobrevivendo, seja
lá onde fosse; em Vênus, na Terra ou na Lua.
— A senhorita o ama em veracidade — Xis
comentou depois que parou de se comunicar com
os seus. A nave fazia alguns barulhos estranhos,
aproximando-se cada vez mais da 14038, que
parecia estacionada no espaço. — Porém não
acredito que deva cultivar esperanças. Um
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salão.
Xis só disse alguma coisa depois que a
minha graça foi embora.
— Percebo que a senhorita também é um
perigo para a Ordem — falou brutalmente, com
raiva evidenciada. Com certeza ele não gostou de
ter apanhado na frente de seus subordinados. —
Não se pode confiar em humanos. São seres
irracionais e incapacitados.
— Ao menos sabemos cumprir acordos! —
retruquei imediatamente. Estava disposta a não
deixar nada barato. Não levaria desaforos para casa,
se bem que eu nem sabia se voltaria para o meu lar
algum dia. — Você é um farsante, Xis.
— Cale-se. Em nenhum aspecto de nosso
acordo ficou claro que eu era obrigado a deixar que
a senhorita se aproximasse do agente G12.
— Mas ficou claro que ele seria devolvido a
Vênus!
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possam escapar.
— E-Escapar? — Ela não comentou mais
nada. Sussurrou algumas palavras e a porta dupla se
abriu. Atravessamos um corredor estreito, mal nos
cabia lado a lado. — Vai me ajudar a escapar? Por
quê?
A Recolhedora parou diante de outra porta
dupla. Virou-se para me encarar. Abriu a boca,
porém tornou a fechá-la, como se tivesse em dúvida
sobre o que dizer. Sem que eu conseguisse obter
qualquer lógica, ela ergueu uma mão e tocou o meu
rosto delicadamente.
— Você se parece com o seu pai, Estrela —
sorriu amplamente. — É curiosa e destemida, além
de possuir uma beleza peculiar.
— Meu pai? — franzi o cenho. Quem era
aquela alienígena, afinal? — Você o conheceu?
— Perfeitamente.
Abri bem os olhos diante daquela revelação.
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ajudando?
— Trabalhamos juntos quando você era um
garotinho aqui na Ordem. — Eu me virei, nos
braços do Gê, para vê-la melhor. Estava sorrindo
amplamente enquanto nos observava. Parecia
gostar do fato de estarmos juntos. Fiquei feliz por
possuir a benção da minha mãe; por menos que eu
a conhecesse, era importante para mim. — Eu
poderia lhes explicar tudo, mas não temos tempo.
Vocês precisam sair imediatamente.
— Sair? Com todo o sistema de segurança
ativado? É impossível — Gê arquejou, parecendo
muito exausto.
— Desativei o sistema temporariamente,
pois possuo todos os comandos necessários — ela
explicou enquanto caminhava na direção da mesma
porta por onde havíamos entrado. — Temos cerca
de cinco minutos até ser reativado de novo, caso
contrário alguém nos perceberá.
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venusiana.
— Não sei direito, Gê. Estou feliz por você
não ter virado fragmento. E por estarmos,
finalmente, juntos no espaço.
— Não tenho certeza se é seguro devolvê-la
para a Terra neste momento.
Balancei a cabeça.
— E nem eu quero voltar.
— O que a senhorita sugere?
Pensei por um momento. Olhei para cima,
focando em uma luz mais intensa no meio do
Universo.
— Minha mãe se sacrificou por mim —
murmurei, reflexiva. — Meu pai me criou
praticamente sozinho. Os dois não viveram o amor
que sentiam em sua totalidade e jamais poderão
fazê-lo.
— É uma triste história, senhorita.
Olhei para ele.
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escorrer.
Gê sorriu e se afastou de vez. Fez
reverência para que eu entrasse na cabine. Não
sabia se estava pronta para aquilo, mas entrei
mesmo assim. Confiava naquele extraterrestre, na
sua inteligência e no experimento. Caso contrário,
não estaria ali. Sabia que ele jamais me colocaria
em risco, portanto, por mais que a sua humildade
considerasse uma falha, não havia com o que me
preocupar. Seu modo de fazer ciência era de um
rigor absoluto. Se aquela nave foi feita para resistir
ao calor do Sol, então resistiria e sobreviveríamos
para contar a história.
Sentei-me na poltrona, dentro da cabine, e
um cinto de segurança automático prendeu o meu
corpo.
— Coloque suas mãos no compartimento —
Gê instruiu e eu obedeci. — Precisarei fechar a
porta da cabine agora, senhorita. Não saia até
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Gê sorriu.
— Meio galinha, meio cavalo — balbuciou,
voltando a me beijar o pescoço.
Podia sentir um ponto chamejante entre as
minhas pernas pedindo por atenção. Rebolei meus
quadris e o puxei para mais perto, querendo senti-lo
de qualquer jeito. Gê soltou um arquejo profundo,
capaz de me deixar arrepiada.
Quando eu estava prestes a tirar a sua roupa
e permitir que tirasse a minha, um estrondo nos
interrompeu com tamanha força que, em questão de
instantes, nossos corpos foram projetados para uma
das faces da nave, que ficava a alguns metros da
mesa de metal. O baque me provocou tanta dor que
gritei.
Eu não sabia o que tinha acontecido. A
14038 passou a tremelicar severamente, de forma
que tudo tremia em alta intensidade. Meus ossos
pareciam pipoca estourando junto com o óleo
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— Não...
— Vou encontrá-la, Estrela — falou com
convicção, uma firmeza inigualável. — Onde quer
que esteja, eu a encontrarei. É a minha promessa, e
a senhorita sabe que sou capaz de cumpri-la.
— Gê...
— Só temos energia suficiente para o
experimento se deslocar. A 14038 não consegue ir
muito longe desta forma. Jamais sobreviveremos se
ficarmos aqui.
— E você? Se morrer, como irá me
encontrar?
Gê apontou para o vidro dentro da cabine.
Olhei para a órbita que percorríamos, mas me
detive em um véu negro, relativamente grande,
logo adiante, como se houvesse uma cratera
profunda bem no meio do espaço. Abri a boca,
estupefata.
— Isso... Isso é um...
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— Um buraco negro.
— Como...?
— Os Recolhedores jamais me seguirão
através de um buraco negro — Gê informou com a
voz acelerada e os olhos esbugalhados. — O
experimento se soltará e voltará para a Terra em
segurança. Farei a 14038 voar até o buraco negro,
desta forma, nós dois nos salvaremos deste ataque.
Compreendeu os planos, Estrela?
— Mas... O que tem dentro daquele buraco?
Gê deu de ombros.
— Um portal.
— Portal? — Franzi o cenho. Não era a
hora de duvidar da palavra dele. Os buracos negros
sempre foram misteriosos para nós, meros
humanos, portanto, a existência de portais era só
mais um detalhe na lista enorme de coisas que me
surpreendiam. — Para onde?
— Para qualquer lugar. Não importa,
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senhorita. Eu a encontrarei.
Engoli em seco. Gê praticamente ia se atirar
dentro de um abismo indefinido, que o levaria a um
ponto aleatório do vasto Universo. Ele poderia
terminar em outra galáxia, não poderia?
— Promete?
— Eu prometo — assentiu.
Não fui capaz de duvidar dele.
Também sequer tive tempo de pestanejar.
Gê fechou a porta prateada e não me restou nada
além de torcer para que tudo desse certo. Não havia
outra saída. Ele não podia entrar na cabine, caso
contrário o sistema se desintegraria. E o teimoso
jamais me levaria com ele rumo ao buraco negro.
Meu corpo meio-humano podia não
suportar o destino final da 14038.
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extraterrenos.
— Não... — choraminguei, aos prantos. —
Não, não, não, não... — Balancei a cabeça para um
lado e para o outro, ainda incrédula. — Gê...
A visão turva devido às lágrimas só me
permitia conferir um pouco do que era a Terra vista
do espaço. A cabine continuou seguindo em alta
velocidade, sem se importar com o meu coração
despedaçado, sem levar em conta que, naquele
momento, eu preferia milhões de vezes ter virado
fragmento junto com o Gê. Mergulhamos na
exosfera terrestre em um determinado momento, e
descemos tão depressa que a tristeza se juntou à
tontura. Eu já podia ver o continente lá embaixo,
esperando pelo meu retorno.
Senti que ali não era o meu lugar. Meu lar,
na verdade, era nos braços do Gê. Porém, não havia
alternativa. Bem que tentei pensar em fazer alguma
coisa, sei lá, entrar em contato psíquico com o Xis,
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naquele vácuo.
Ali era o lugar em que o Gê estava. Ou, ao
menos, a sua consciência. O amor da minha vida
estava imerso no nada. No vazio. Nas profundezas
da morte.
Abri os olhos no sobressalto, fazendo a
consciência retornar para o interior da cabine.
Ainda sem ter a ficha devidamente caída, percebi
quando aterrissei no meio de um matagal que não
me era estranho. Seria a mata perto da fazenda?
Estava bastante parecida. Foi um pouso suave, o
que me surpreendeu bastante. Aquela tecnologia
era mesmo fantástica.
Esperei por alguns minutos enquanto meu
cérebro parecia bloqueado por uma imensa rocha.
Até o coração parara de doer. Não houve lágrimas
ou desespero. Havia apenas o vácuo, como se
minha existência tivesse passado a ser uma
extensão daquele lugar horrível onde o Gê se
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encontrava.
Abri a porta prateada porque percebi que
podia fazê-lo em segurança. Notei que, sim, eu
estava exatamente no meio da mata que havia perto
da fazenda. Estava anoitecendo, e me perguntei
quanto tempo tinha passado desde que deixei a
atmosfera terrestre. Não pareceu ser muita coisa.
Talvez aquele ainda fosse o mesmo dia.
Dei um passo na direção que achei ser a
certa. Dei mais outro e tropecei sozinha,
estatelando-me no chão. A ausência do Gê e a
visita ao vazio onde estava a sua consciência
finalmente me fizeram voltar a chorar. Soltei um
forte grito, que reverberou entre as árvores,
assustando alguns pássaros mais próximos.
Eu estava de volta à minha casa. Mas o meu
lar nunca mais retornaria para mim.
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pais construíram.
— Onde você esteve, Estrela? — uma voz
imperativa e arrogante surgiu atrás de mim, mas
nem isso me deixou assustada. Eu estava em um
estado esquisito de torpor. Repensando a minha
vida desde a raiz. — Não veio trabalhar hoje.
Aposto como aquele tal de Gê teve a ver com isso.
Eu me virei para olhar o Valentim, que
carregava uma careta irritada e se aproximou até
parar perto demais, creio que na tentativa de me
intimidar. Mais uma vez, perguntei a mim mesma o
que aquele homem estava fazendo na minha vida.
Gê tinha total razão. Eu devia ter me livrado do
Valentim há muito tempo.
— Limpe a sua boca ferina antes de
mencionar o nome dele — resmunguei, exalando
toda a raiva acumulada. — O que fiz ou deixei de
fazer hoje não te interessa.
Ao menos acabara de comprovar que aquele
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murmurar.
Sem olhá-lo, respondi:
— Já fiz. Saia daqui imediatamente.
Assim que terminei de subir as escadas e
olhei para trás, reparando que o Valentim não
estava mais presente, senti um alívio imenso.
Fechar aquele ciclo da minha vida era uma atitude
necessária que eu vinha adiando como uma imbecil
medrosa. Tentava me enganar, colocando na minha
cabeça que aquele homem era meu amigo, que me
ajudava muito e que sem ele não daria certo. Mas, a
verdade era que Valentim não passava de uma
praga que devia ser exterminada,
independentemente de qualquer coisa.
Encontrei Dona Margarida na cozinha,
cantarolando uma moda antiga. Ela me viu e sorriu,
parecendo despreocupada.
— Menina, devia avisar quando for tirar um
dia de folga. Sobrou muito almoço. Estou fazendo
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da colheita do milho.
Deixei uma boa parte da grana, que eu
guardava debaixo do colchão, em cima da mesa,
junto com os dois documentos e um simples bilhete
que dizia: “Preciso espairecer, volto em breve. Se
cuidem e não se preocupem comigo. Amo vocês!”.
Destranquei a porta, sabendo que Dona
Margarida apareceria em breve para me chamar
para o jantar. Saí pela janela carregando somente a
mochila, como as tantas vezes que fiz aquilo com o
Gê. Não deixei de derrubar algumas lágrimas
enquanto seguia rumo à escuridão da fazenda.
Pretendia pegar a caminhonete e levá-la até a mata,
precisamente onde tinha deixado a cabine. Eu não
sabia qual era o peso daquela coisa, mas daria um
jeito de levá-la comigo para estudá-la a fundo.
Sabia que também existiam poderes dentro de mim.
Precisava me concentrar no meu lado venusiano.
Aos prantos e soluços, entrei na
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Epílogo
- Gê -
67 anos venusianos
depois...
Encontrava-se longe de minhas intenções
esperar demasiado tempo para concluir o
experimento pelo qual trabalhei durante os últimos
67 anos. A pressa que me acometia era devido à
urgência de reencontrar Estrela tal como tinha lhe
prometido, antes da situação fugir de meu controle.
Infelizmente, precisei começar pelo princípio e só
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me encontrar.
Beijei o topo de sua cabeça.
— Porque eu a amo com todo o meu
coração.
Estrela sorriu e me encarou de perto,
erguendo o rosto na minha direção.
— E eu te amo mais do que tudo no mundo.
Continuei a encarando. Observá-la tinha
sido um grande acontecimento desde o início,
quando éramos crianças. Talvez aquela humana
tivesse mexido comigo desde sempre. Só um
profundo amor justificaria a minha obsessão por
ela. Foram muitos anos dedicados à sua felicidade e
eu não me arrependia por nem um segundo. Além
disso, estava pronto para me dedicar por muito
mais tempo. Daquela vez, ao lado dela.
— Já decidiu se vamos ficar? — perguntou,
fazendo uma expressão confusa. — Percebi dúvida
dentro de você.
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FIM
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Agradecimentos
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Sobre a autora
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Site: www.milawander.com
E-mail: autoramilawander@gmail.com
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