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António Torrado
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por deficientes visuais.
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distribuído para outros fins, no todo ou em parte, ainda que gratuitamente.
O semáforo à esquina da minha rua tem caprichos que são dele, só dele e de
mais nenhum semáforo que eu conheça.
Posso garantir que é caso único, porque tenho convivido com imensos
semáforos por todo o mundo e não sei de nenhum com os caprichos do meu,
isto é, do semáforo da minha rua.
O que vou contar é segredo, mas eu sei que fica tudo entre nós.
(p. 9 do original)
Calcule-se que o semáforo, farto de passar o dia a dar luz verde, amarela,
encarnada, vai daí, à noite, noite alta, volta não volta, dá-se ao gosto de
experimentar outras cores.
Primeiro certifica-se de que não há trânsito nem transeuntes, porque ele é um
semáforo muito escrupuloso. Só estou eu à janela, quando trabalho até mais
tarde. Sou o seu único confidente.
- Uma vida inteira sujeito a três únicas cores é de rebentar com a paciência de
qualquer um — diz-me o semáforo. — Ora repara neste lilás, que tal?
Eu aprecio e aplaudo, mas moderadamente, para não acordar os vizinhos.
— E este azul-marinho, não é lindo? — Pergunta-me ele, sabendo
antecipadamente a resposta.
Não pára de experimentar. Cor-de-rosa, verde-oliva, azul-ultramarino,
encarnado-beringela, roxo, laranja, amarelo-torrado, amarelo-canário, amarelo-
gema-de-ovo (tantos amarelos!), verde-folha, azul da prússia, violeta-
carmesim, cor-de-púrpura e mais e mais e mais cores sem nome, tantas, que o
semáforo da minha rua, a meio da noite, parece um arco-íris aos soluços.
Acreditem ou não acreditem, é um espetáculo deslumbrante.
Os gatos vadios até se esquecem daquilo ao que andam e ficam estarrecidos,
a olhar para o semáforo. Eu e os gatos somos os únicos espectadores, os seus
admiradores fiéis. (
p. 10 Do original)
Fosse da aragem mais fresca de uma destas noites ou do que fosse, apanhei
um resfriado e passei vários dias fechado em casa, a curar-me da constipação.
Quando voltei a sentir-me bom, fui logo postar-me no meu miradoiro de janela.
Mas para estranheza minha, o semáforo nunca mais passava do verde,
amarelo e vermelho dos seus mais ajuizados dias. Que lhe sucedera? Seria
ainda cedo para a grande gala das cores, em passagem de modelos?
Perguntei-lhe e ele respondeu-me:
— Ontem à noite apanhei um susto que nem queiras saber.
Estava eu a ensaiar um novo pigmento, entre o azul-cobalto e
(p. 11 do original)
o cinzento-de-mercúrio, quando dou com um polícia a olhar para mim e a
esfregar os olhos, abismado. Atrapalhei-me, não consegui recompor-me e
disparei uma quantidade de cores, à doida. O verde, o amarelo e o encarnado
é que não havia meio.
— E o polícia de boca aberta — ri-me eu.
— O caso não é para rir, porque o polícia agarrou-se ao telemóvel e pôs-se a
chamar por outros polícias. Eles quase a chegarem e eu cada vez mais aflito,
sem atinar com as cores do costume.
Ora me saía azul-celeste ora castanho-terra ora rosa-pálido.
-E o polícia? - Perguntei-lhe eu, em brasa. (
p. 12 Do original)
— O polícia só gritava: “1035... Semáforo avariado. Perigo público. Remoção
urgente. Escuto!” Já me via a ser arrancado, atirado para um monte de sucata,
substituído por um desses semáforos vulgares, sem imaginação Nenhuma.
— O que seria uma péssima vizinhança — comentei.
— Tanto mais que já estou habituado a esta rua. À noite, é pacata. De dia, não
dá muito trabalho — continuou ele. — Enfim, lá consegui estabilizar as cores.
Quando a carrinha da polícia chegou, encontraram um semáforo normalíssimo
(p. 13 do original)
— E o polícia que deu o alarme? — Quis eu saber, condoído. - Passou um mau
bocado. O chefe recomendou-lhe que só bebesse laranjada ao jantar e, dentro
da carrinha em que regressaram à esquadra, deve ter-lhe dito mais coisas
desagradáveis.
— E tu? — Perguntei.
— Eu fiquei penalizado e com remorsos. Tanto assim que decidi não voltar às
experiências.
— Nunca mais?
A minha voz saiu-me como se estivesse quase a fazer beicinho. Mas o
semáforo tranquilizou-me, a tempo:
— Decidi que uma vez por ano, mas só uma vez por ano, na noite de Natal,
quando estiverem todos agasalhados em casa, até os polícias, nessa noite, só
nessa noite é que apresento o meu espetáculo total furta-cores. Respirei
fundo.
Está a chegar o frio e eu vou juntar camisolas e cachecóis e casacão e
sobretudo e carapuço e boné, para não perder um único segundo da feérica
noite que me espera.
Claro que, como já avisei, tudo isto é segredo. Eu até nem digo onde moro.
(p. 14 Do original)
Fim
A estrela de prata
Numa árvore que eu cá sei - que nós sabemos — estão uma estrela de prata e
uma bola de cristal.
— Que fazemos aqui? — perguntou a estrela.
— Estamos a enfeitar — respondeu a bola.
— O que é enfeitar? — perguntou a estrela.
— É fazer vista, ornamentar, alindar… — respondeu a bola de cristal.
Passou-se um tempo e a estrela perguntou de novo:
— Porque estamos a enfeitar?
— Porque esta árvore não é como as outras. Os frutos dela são raros.
Aparecem um dia, luzem o seu quê, conforme sabem ou podem, e depois são
colhidos e guardados, até para o ano.
A bola de cristal tinha muita experiência de
outros Natais, ao passo que a estrela era nova, de prata fresca, e não
sabia quase nada. (p. 17 do original)
Mas tinha ouvido falar que havia estrelas cadentes, estrelas que caem do céu e
no céu desaparecem, num sopro de luz.
- Não serei uma dessas? – perguntou à bola.
- Talvez sejas, talvez não sejas… Mas não experimentes.
Passou-se um tempo mais, e a estrela guardou para si aquela ideia, uma ideia
pequenina.”Não experimentes”, dissera-lhe a bola.
E se experimentasse? Foi o que fez.
Caiu, num susto, mas como era leve, inocente e frágil, uma corrente de ar,
vinda de uma porta aberta, algures, levou-a consigo.
Levou-a consigo e fê-la poisar, sem estrago, no fofo musgo.
- Olha, é a estrela da gruta – disse alguém que estava a armar o presépio.
E estrela do presépio ficou.
Donde estava, onde a puseram, via o presépio, os pastores, os reis magos, as
lavadeiras com a trouxa à cabeça, as leiteiras com a bilha à cinta, os
vagabundos, o moleiro, o azeiteiro e todo o povo do presépio e mais as
pessoas de carne e osso, que vinham admirar aquela lindeza, sorrir para o
Menino Jesus e olhar para a estrela, suspensa do alto da gruta.
(p. 18 do original)
Estrela de sete pontas que era, a apontar em todas as direcções, nem ela
sabia para onde, brilhou imenso. Brilhou o mais que pôde.
Para o ano, a estrela de prata já tem muito que contar à bola de cristal.
(p. 19 do original)
Fim
A cerejeira do Natal
O Senhor Tadeu tinha, lá na horta, uma cerejeira de que gostava muito.
Quando chegava o tempo das cerejas, era uma fartura, uma doçura que não
havia igual.
Pois é, mas os pardais também diziam o mesmo. Tinham uma predilecção por
aquela cerejeira nem que as cerejas fossem de mel. Eram quase.
O Senhor Tadeu enxotava-os, pendurava fitas nos ramos para assustá-los e
chegou a armar um espantalho de vassoura na mão, que prendeu no alto da
cerejeira.
Fazia vista, mas não metia medo.
Mal chegava o tempo das cerejas amadurarem, a pardalada vinha em excursão
festiva para o meio da cerejeira. Depenicavam com tal arte que chegavam a
deixar (p. 37 do original)
- Deixa lá isso, agora! Repara que estes brinquedos estão como novos. Parece
que o tempo não passou por eles.- Até é mal empregado que estejam lá em
cima a estragar-se. E se fôssemos...? — sugere o Senhor Alfredo.
- Vamos - responde a Dona Noémia.
O Senhor Alfredo e a Dona Noémia entendem-se por meias palavras, mas nós,
nas linhas desta história, temos de contar as palavras todas.
Saibam, pois, que graças aos dois simpáticos velhinhos, transformados, para o
efeito, em ajudantes de Pai, os brinquedos do sótão voltaram a conhecer as
mãos macias dos meninos. (p. 52 do original)
A filhó dourada
— Os pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus sobrinhos
chega primeiro à filhó.
Os meninos não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como seria de esperar.
Cada um ficou à espera do primo ao lado, e o primo ao lado do outro primo ao
lado... Fosse por acanhamento ou fosse por que fosse…
— Afinal ninguém a come — observaram do outro extremo da mesa. — Esta
filhó deve ser mágica. (p. 57 do original)