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Dezembro à porta

António Torrado

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Câmara Municipal de Matosinhos


BIBLIOTECA MUNICIPAL FLORBELA ESPANCA
CLE – Centro de Leitura Especial
Tel.: 22 9390950

Dos contos desta coletânea apenas foram publicados em livro


O MEU SEMÁFORO ÚNICO, numa antologia escolar, e O PERU QUE
CORREU A CIDADE METIDO DENTRO DE UM CESTO no livro Pinguim em
Fundo Branco (Lisboa, Edições Afrodite, 1973), há muito esgotado. Os
restantes provêm do site www.historiadodia.pt.
A.T.

À Maria Teresa, ao José Carlos e ao Luís

O meu semáforo único

O semáforo à esquina da minha rua tem caprichos que são dele, só dele e de
mais nenhum semáforo que eu conheça.
Posso garantir que é caso único, porque tenho convivido com imensos
semáforos por todo o mundo e não sei de nenhum com os caprichos do meu,
isto é, do semáforo da minha rua.
O que vou contar é segredo, mas eu sei que fica tudo entre nós.
(p. 9 do original)

Calcule-se que o semáforo, farto de passar o dia a dar luz verde, amarela,
encarnada, vai daí, à noite, noite alta, volta não volta, dá-se ao gosto de
experimentar outras cores.
Primeiro certifica-se de que não há trânsito nem transeuntes, porque ele é um
semáforo muito escrupuloso. Só estou eu à janela, quando trabalho até mais
tarde. Sou o seu único confidente.
- Uma vida inteira sujeito a três únicas cores é de rebentar com a paciência de
qualquer um — diz-me o semáforo. — Ora repara neste lilás, que tal?
Eu aprecio e aplaudo, mas moderadamente, para não acordar os vizinhos.
— E este azul-marinho, não é lindo? — Pergunta-me ele, sabendo
antecipadamente a resposta.
Não pára de experimentar. Cor-de-rosa, verde-oliva, azul-ultramarino,
encarnado-beringela, roxo, laranja, amarelo-torrado, amarelo-canário, amarelo-
gema-de-ovo (tantos amarelos!), verde-folha, azul da prússia, violeta-
carmesim, cor-de-púrpura e mais e mais e mais cores sem nome, tantas, que o
semáforo da minha rua, a meio da noite, parece um arco-íris aos soluços.
Acreditem ou não acreditem, é um espetáculo deslumbrante.
Os gatos vadios até se esquecem daquilo ao que andam e ficam estarrecidos,
a olhar para o semáforo. Eu e os gatos somos os únicos espectadores, os seus
admiradores fiéis. (
p. 10 Do original)
Fosse da aragem mais fresca de uma destas noites ou do que fosse, apanhei
um resfriado e passei vários dias fechado em casa, a curar-me da constipação.
Quando voltei a sentir-me bom, fui logo postar-me no meu miradoiro de janela.
Mas para estranheza minha, o semáforo nunca mais passava do verde,
amarelo e vermelho dos seus mais ajuizados dias. Que lhe sucedera? Seria
ainda cedo para a grande gala das cores, em passagem de modelos?
Perguntei-lhe e ele respondeu-me:
— Ontem à noite apanhei um susto que nem queiras saber.
Estava eu a ensaiar um novo pigmento, entre o azul-cobalto e
(p. 11 do original)
o cinzento-de-mercúrio, quando dou com um polícia a olhar para mim e a
esfregar os olhos, abismado. Atrapalhei-me, não consegui recompor-me e
disparei uma quantidade de cores, à doida. O verde, o amarelo e o encarnado
é que não havia meio.
— E o polícia de boca aberta — ri-me eu.
— O caso não é para rir, porque o polícia agarrou-se ao telemóvel e pôs-se a
chamar por outros polícias. Eles quase a chegarem e eu cada vez mais aflito,
sem atinar com as cores do costume.
Ora me saía azul-celeste ora castanho-terra ora rosa-pálido.
-E o polícia? - Perguntei-lhe eu, em brasa. (
p. 12 Do original)
— O polícia só gritava: “1035... Semáforo avariado. Perigo público. Remoção
urgente. Escuto!” Já me via a ser arrancado, atirado para um monte de sucata,
substituído por um desses semáforos vulgares, sem imaginação Nenhuma.
— O que seria uma péssima vizinhança — comentei.
— Tanto mais que já estou habituado a esta rua. À noite, é pacata. De dia, não
dá muito trabalho — continuou ele. — Enfim, lá consegui estabilizar as cores.
Quando a carrinha da polícia chegou, encontraram um semáforo normalíssimo
(p. 13 do original)
— E o polícia que deu o alarme? — Quis eu saber, condoído. - Passou um mau
bocado. O chefe recomendou-lhe que só bebesse laranjada ao jantar e, dentro
da carrinha em que regressaram à esquadra, deve ter-lhe dito mais coisas
desagradáveis.
— E tu? — Perguntei.
— Eu fiquei penalizado e com remorsos. Tanto assim que decidi não voltar às
experiências.
— Nunca mais?
A minha voz saiu-me como se estivesse quase a fazer beicinho. Mas o
semáforo tranquilizou-me, a tempo:
— Decidi que uma vez por ano, mas só uma vez por ano, na noite de Natal,
quando estiverem todos agasalhados em casa, até os polícias, nessa noite, só
nessa noite é que apresento o meu espetáculo total furta-cores. Respirei
fundo.
Está a chegar o frio e eu vou juntar camisolas e cachecóis e casacão e
sobretudo e carapuço e boné, para não perder um único segundo da feérica
noite que me espera.
Claro que, como já avisei, tudo isto é segredo. Eu até nem digo onde moro.
(p. 14 Do original)
Fim

A estrela de prata

Numa árvore que eu cá sei - que nós sabemos — estão uma estrela de prata e
uma bola de cristal.
— Que fazemos aqui? — perguntou a estrela.
— Estamos a enfeitar — respondeu a bola.
— O que é enfeitar? — perguntou a estrela.
— É fazer vista, ornamentar, alindar… — respondeu a bola de cristal.
Passou-se um tempo e a estrela perguntou de novo:
— Porque estamos a enfeitar?
— Porque esta árvore não é como as outras. Os frutos dela são raros.
Aparecem um dia, luzem o seu quê, conforme sabem ou podem, e depois são
colhidos e guardados, até para o ano.
A bola de cristal tinha muita experiência de
outros Natais, ao passo que a estrela era nova, de prata fresca, e não
sabia quase nada. (p. 17 do original)
Mas tinha ouvido falar que havia estrelas cadentes, estrelas que caem do céu e
no céu desaparecem, num sopro de luz.
- Não serei uma dessas? – perguntou à bola.
- Talvez sejas, talvez não sejas… Mas não experimentes.
Passou-se um tempo mais, e a estrela guardou para si aquela ideia, uma ideia
pequenina.”Não experimentes”, dissera-lhe a bola.
E se experimentasse? Foi o que fez.
Caiu, num susto, mas como era leve, inocente e frágil, uma corrente de ar,
vinda de uma porta aberta, algures, levou-a consigo.
Levou-a consigo e fê-la poisar, sem estrago, no fofo musgo.
- Olha, é a estrela da gruta – disse alguém que estava a armar o presépio.
E estrela do presépio ficou.
Donde estava, onde a puseram, via o presépio, os pastores, os reis magos, as
lavadeiras com a trouxa à cabeça, as leiteiras com a bilha à cinta, os
vagabundos, o moleiro, o azeiteiro e todo o povo do presépio e mais as
pessoas de carne e osso, que vinham admirar aquela lindeza, sorrir para o
Menino Jesus e olhar para a estrela, suspensa do alto da gruta.
(p. 18 do original)
Estrela de sete pontas que era, a apontar em todas as direcções, nem ela
sabia para onde, brilhou imenso. Brilhou o mais que pôde.
Para o ano, a estrela de prata já tem muito que contar à bola de cristal.
(p. 19 do original)
Fim

O peru que correu a cidade metido dentro de um cesto


Há bem perto de três meses que o Senhor Firmino mantinha, na capoeira do
seu quintal, um bonito peru, alimentado a preceito com sopinhas de pão, migas
de couves e milho do melhor.
Uns dias antes do Natal, o Senhor Firmino agarrou o peru pelas asas, a
calcular-lhe o peso, e disse para a mulher:
- Está em boa conta.
A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça, limpou as mãos ao
avental e foi à cozinha. Ao ver estes preparos, o peru sentiu-se muito levezinho
e pensou: «Agora é que é… Ela vem com a faca e…» Afinal, em vez da faca, a
mulher do Senhor Firmino trouxe da cozinha uma fita vermelha que atou às
pernas do peru, em jeito de laçarote. (p. 21 do original)

- O nosso compadre Augusto vai gostar – disse o Senhor Firmino.


A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça e meteu o peru dentro
dum cesto.
****
- Ó mana, venha ver o presente que o compadre Firmino me mandou. Bonito
peru!
A mana do Senhor Augusto veio da cozinha com uma faca na mão…
«Ai! Ai! Ai! Desta é que eu não escapo», pensou o peru, muito encolhido dentro
do cesto.
- Espere lá, mana! – exclamou o Senhor Augusto. – Este peru tão bonito estava
mesmo a calhar para o Doutor Hipólito. Ele tem sido tão atencioso, tão
simpático… Que acha, mana? (p. 22 do original)
A mana do Senhor Augusto achou bem.
****
- Senhor doutor, para onde quer que leve o peru? – perguntou a empregada do
Doutor Hipólito em pessoa.
- Leve-o para a cozinha…
«É desta. Desta vez é que é…», pensou o peru todo a tremer e a encher-se de
suores frios.
Mas o Doutor Hipólito mudou de ideias:
- Nós já temos um peru para a ceia, um outro peru para o dia de
Natal, ainda outro para o dia de Ano Novo. Este peru está a mais. Pensando
bem, talvez seja mais sensato oferecê-lo ao senhor Inspector. (p. 23 do
original)
****
- Mais um peru! – disse, muito arreliado, o senhor Inspector. – Se os vou matar
a todos, fico enjoado de peru para toda a vida.
O peru, dentro do cesto, com as patas atadas pelo laçarote vermelho, nem se
mexia de tão atrapalhado que estava.
- Com é que me hei-de livrar deste peru? – dizia o senhor Inspector. – Já sei.
Mandem-no ao senhor Capitão, com os meus cumprimentos.
****
Pobre peru. Em cada nova casa em que entrava era um desmaio. Sacudido de
um lado para o outro, em bolandas de aqui para ali, o infeliz conheceu quase
todas as casas dos senhores importantes daquela cidadezinha de província.
«Agora é que é!», não era. (p. 24 do original)
«Desta não escapo!», escapava.
«Ai que eu morro!», não morria.
Da casa do senhor Capitão, passou à do senhor Major. O senhor Major
ofereceu-o ao senhor Tenente-Coronel. O senhor Tenente-Coronel ofereceu-o
ao senhor Brigadeiro. O senhor Brigadeiro não o ofereceu
(p. 25 do original)
ao senhor General, porque lhe tinham dito que o senhor General só podia
comer pescada cozida. Em compensação, ofereceu-o ao senhor Arcebispo,
com os seus respeitosos cumprimentos e desejos de Boas-Festas.
Se o peru desse acordo de si, talvez pensasse que, por aquele andar, ainda
viria a conhecer o Papa. Mas o pobre peru, mirrado e doente com tantas
emoções, já nem forças tinha para pensar o que quer que fosse.
Na capoeira do jardim do senhor Arcebispo, havia vinte e três perus, onze
gansos, quinze patos e outros bicos de menor importância.
- Vou dar um bodo aos pobres. No dia de Natal não quero uma única ave na
minha capoeira – ordenou o piedoso Arcebispo.
E nem houve tempo para desatar as pernas ao desgraçado peru. Cumprindo
as ordens do senhor Arcebispo, os criados começaram imediatamente a fazer
a distribuição das galinhas, galos, patos, gansos e perus pelos pobres mais
necessitados da diocese. O peru do laçarote coube ao Jacinto, o Jacinto
carpinteiro.
Juntou-se a família toda para ver o peru.
-Como o senhor Arcebispo é bondoso – dizia a mulher do Jacinto.
-Que bonito peru – dizia o sogro do Jacinto.
- Um laçalote encanado! – dizia o filho mais novo do Jacinto, um trapalhão a
falar. (p. 26 do original)
«Desta não me salvo!», pensava, todo chupadinho de medo, o peru.
-É pena que já tenham deitado o bacalhau de molho para a ceia – monologava
o Jacinto. – Talvez não fosse mal feito mandar o peru de presente ao meu
patrão…Ele ficava satisfeito e como eu lhe devo uns certos favores…
****
-Olha bem para este peru que o pequeno do Jacinto me trouxe. Não parece
mesmo o nosso peru? – perguntou o Senhor Firmino à mulher.
(p. 28 do original)

A mulher do Senhor Firmino fez que sim com a cabeça.


- Ainda vem com o laçarote e tudo! Que voltas teria ele dado até voltar cá para
casa?
O Senhor Firmino nunca se espantara tanto.
- E como ele está magro, coitado! Até parece que mirrou pelo caminho!
Com tantos sustos, o peru ficara só em penas, pele e ossos. Nem uma
febrazinha de carne que prestasse.
-Volta para a capoeira – decidiu o Senhor Firmino. – Ele que engorde, porque
no próximo Natal vamos dá-lo…
-Ao compadre Augusto, nunca mais! – interrompeu a mulher.
-Claro que não. Vamos dá-lo…ao Doutor Hipólito. Aposto contigo em como o
endemoninhado do peru vem cá parar outra vez. Tinha a sua graça!
****
Pois claro que tinha a sua graça. Eu é que não estou para contar outra vez a
mesma história. E o peru que goze muitos anos regalados de boa vida!...
(p. 31 do original)
O bolo-rei
O bolo-rei tomava-se muito a sério. Não havia discussão: ele era o rei dos
bolos.
Como tal, quando lhe caiu uma passa da coroa, ordenou ao bolo-inglês:
- Traz-me essa passa de volta.
O bolo-inglês fez-se desentendido e respondeu:
- Sorry! I don’t understand…
O que queria dizer na dele que pedia desculpa, mas não tinha entendido.
Então, o bolo-rei virou-se para um bolo de natas e deu a mesma ordem.
Queria, outra vez, a passa a ornamentar-lhe a coroa. (p. 33 do original)
O bolo de natas tinha uma fala atrapalhada, por causa do excesso de natas.
- Flá, plefe, pflu, pfló…
Não se percebia nada.
O bolo-rei, muito irritado, ordenou ao bolo de amêndoa, que lhe respondeu:
-Também a mim me caiu uma amêndoa torrada e não me queixo.
O bolo-rei, cada vez mais exasperado, deu a mesma ordem a um pudim de
gelatina, mas o pudim de gelatina era muito frágil, muito nervoso e só tremeu,
tremeu, incapaz de dizer ou fazer o que quer que fosse.
- São uns rebeldes estes meus súbditos – concluiu, numa grande exaltação, o
bolo-rei. – Condeno-os a que sejam todos cortados às fatias.
E assim aconteceu. Mas nem o bolo-rei escapou. (p. 34 do original)

A cerejeira do Natal
O Senhor Tadeu tinha, lá na horta, uma cerejeira de que gostava muito.
Quando chegava o tempo das cerejas, era uma fartura, uma doçura que não
havia igual.
Pois é, mas os pardais também diziam o mesmo. Tinham uma predilecção por
aquela cerejeira nem que as cerejas fossem de mel. Eram quase.
O Senhor Tadeu enxotava-os, pendurava fitas nos ramos para assustá-los e
chegou a armar um espantalho de vassoura na mão, que prendeu no alto da
cerejeira.
Fazia vista, mas não metia medo.
Mal chegava o tempo das cerejas amadurarem, a pardalada vinha em excursão
festiva para o meio da cerejeira. Depenicavam com tal arte que chegavam a
deixar (p. 37 do original)

só o caroço das cerejas, preso ao pezinho suspenso da árvore. Um desespero


para o Senhor Tadeu.
Há dias, encontrei-o, na loja de artigos de Natal, a carregar um enorme
embrulho.
- Ena! – exclamei eu. – O seu pinheiro vai ficar bem enfeitado.
- Não é para o pinheiro – emendou o Senhor Tadeu. – É para a cerejeira.
Então, explicou-me o seu plano. Quando, da Primavera para o Verão, os frutos
da cerejeira começassem a engordar, ele ia enfeitar a árvore com sininhos e
bolas de Natal.
- Para os pardais julgarem que é um pinheiro – concluí eu, pouco convencido
da eficácia do projecto. – Eles são mais espertos do que isso.
Seriam, de facto, reconheceu o Senhor Tadeu, mas também são uns
passarinhos alarmados. Detestam ruídos imprevistos. Ouvindo os sininhos,
agitados pelo vento, fogem. E as bolas de Natal, brilhando ao Sol, também lhes
hão-de meter respeito.
O Senhor Tadeu lá se foi, muito contente com o seu plano. Resulte ou não
resulte, a cerejeira há-de gostar. (p. 39 do original)

O cabeça de alho chocho


Era uma cabeça de alho chocho.
Não fixava nada.
A mãe dizia-lhe:
- Vai à farmácia e traz-me um frasco de álcool. Vai à padaria e traz-me meia
dúzia de pãezinhos.
Ele ia à farmácia e pedia:
- Meia dúzia de pãezinhos se faz favor.
- Não temos – diziam-lhe, na farmácia.
Ia à padaria e pedia:
-Um frasco de álcool, se faz favor.
- Não temos – diziam-lhe, na padaria.
Então ele voltava para casa e despachava-se assim:
-Está tudo esgotado, mãe. Posso ir brincar?
Outras vezes, a mãe dizia-lhe:
-Vai à mercearia e compras-me três quilos de bacalhau e cento e vinte cinco
gramas de azeitonas pretas. (p. 41 do original)
Passado um bocado, ele, o cabeça de alho chocho, voltava ao pé-coxinho pelo
passeio e despachava-se assim:
- Mãe, eles na mercearia dizem que cento e vinte e cinco de bacalhau nem que
fossem só espinhas e três quilos de azeitonas pretas não têm que chegue.
Posso ir brincar?
Mas a mãe não desistia. No Natal, recomendou-lhe:
-Levas este embrulhinho para o vizinho Almiro e este bolo de amêndoas para a
tia Clotilde, com as nossas boas festas.
Recado feito, voltava ele, o cabeça de alho chocho:
-Ó mãe, o vizinho Almiro agradece, mas diz que não pode comer bolos, porque
é diabético e a tia Clotilde, depois de abrir o embrulho, perguntou-me se
andamos a brincar com ela ou quê… A propósito, posso ir brincar?
Sabem o que continha o embrulho?
Continha uma loção para depois da barba, que, sendo para o Senhor Almiro,
estaria bem, mas para a tia Clotilde, um pouco forte de buço, já parecia mal…
(p. 42 do original)

Oficina dos brinquedos


Começa num sótão de uma velha casa a história que vamos contar. De uma
mala entreaberta sai uma vozinha queixosa:
- Está frio, hoje! A quantos estamos?
«Talvez em Dezembro», «Parece-me que em Novembro…», «Não sei se em
Janeiro…», respondem várias vozes estremunhadas.
-O cuco do relógio sabe. Dêem-lhe corda que ele diz – lembra outra voz mais
esperta.

Da mala entreaberta sai um ursinho cor de canela, mas um pouco descorado.


Espreguiça-se, volta a espreguiçar-se e trepa (p. 45 do original)
custosamente a um escadote. Pendurado na parede e parado está o relógio de
cuco, que já não se usa.
O que não se usa está usado ou estragado, no sótão fica guardado.
— Não trabalho, mas faço contas de cabeça — diz de lá o cuco. — Se perco a
conta ao tempo, nunca mais me acerto. — Anda lá, despacha-te, e diz-nos a
quantos estamos! — impacienta-se o ursinho de peluche.
— Neste momento são precisamente nove horas, treze minutos e vinte e cinco
segundos... Cucu... cucu... cucu... (p. 46 do original)

— O dia, o dia! — exigem várias vozes do rés-do-chão.


— ... do dia 24 de Dezembro de… Cucu... cucu... cucu…
— Véspera de Natal, imaginem – e uma boneca de cabelo emaranhado e saia
traçada salta de uma gaveta a correr.
— Para onde vais tu com tanta pressa? – pergunta-lhe, do cimo do escadote, o
ursinho cor de canela.

— Vou arranjar-me para a ceia. Estou atrasadíssima.


Um palhaço amolgado aparece, a piscar os olhos, detrás de uma velha
cómoda.
— Vai ver-te ao espelho, boneca tola! – diz-lhe ele. (p. 47 do original)
- Detesto espelhos... — e a boneca põe-se a chorar.
De caixas, gavetas e arcas saem mais bonecos e brinquedos. Soldadinhos de
espingarda partida, cavalos sem orelhas, macacos de algodão com o algodão à
mostra, burros de pasta ratada e até um carro de bombeiros, equilibrado em
três rodas, acorrem ao choro da boneca.
- Há novidade? Há fogo, inundação, desastre? É preciso ajuda? - perguntam os
bombeiros uns aos outros.
O palhaço amolgado tranquiliza-os:
- Nada disso. É ela que não se conforma e não acredita que já ninguém a quer.
Quem precisa de uma boneca velha?
- Pois é. Já não prestamos para nada — comentam os outros bonecos.
Lentamente, esgaçados uns, esbarrigados outros, rachados uns quantos,
regressam às gavetas, arcas, sacos e caixas… Estas conversas não adiantam.
Mais vale dormir. (p. 48 do original)

Mas o urso de peluche, que continua empoleirado no cimo do escadote, fala


para a boneca, de forma a que os outros oiçam:
- Estou, daqui, a ver a máquina de costura antiga. No armário, há vestidos
pendurados, tão velhos como nós, mas alguns de bom tecido. Lembrei-me de
que tu podias…A boneca limpa as lágrimas e levanta os olhos para o
ursinho:
- Que linda ideia! Achas que posso?
Mais brinquedos oferecem os seus serviços.
- De caminho, podias consertar-me a barriga — pede o macaco de algodão. —
Estou todo descosido.
- Também me dava jeito que me pregasses as orelhas … - lembra o cavalo de
feltro.
De novo a voz do ursinho de peluche, do cimo do escadote:
- Do meu mirante também vejo latas de tinta, que os pintores, que andaram a
arranjar a casa, aqui deixaram.
- Era óptimo para nós — exclamam os soldadinhos de chumbo. — Estamos
mesmo precisados de fardas novas.
- E nós! E nós! — ecoam os bombeiros.
- Pregos, martelos e outras ferramentas não faltam,
por aí espalhados — grita, cada vez mais alegre, o ursinho de peluche. —
Mãos à obra, meus amigos! (p. 50 do original)
Digamos já, para encurtar a história, que aquele sótão, há pouco triste e
sonolento, se transformou numa animada oficina de brinquedos.
— E agora? — perguntam os bonecos, com caras novas e vestidos floridos.
— Agora vamos descer pela chaminé — comanda o urso. — Já deve faltar
pouco para a meia-noite. Que grande surpresa vai ser!

O pêlo do ursinho de peluche está eriçado de entusiasmo.


Na manhã seguinte:
— Alfredo, vem ver o que está na chaminé!
— Que é, Noémia? Caiu algum tijolo?
— Qual quê, homem! Anda ver. Caíram bonecos e brinquedos do telhado. Foi,
com certeza, o Pai Natal. (p. 51 do original)

- O Pai Natal? Na nossa idade?


O Senhor Alfredo ficou embasbacado. Imaginem dois amáveis velhinhos, o
Senhor Alfredo e a Dona Noémia, únicos habitantes daquela casa, a olharem,
sem acreditar, para as surpresas reluzentes que o Pai Natal lhes deixou na
chaminé...
- Repara, mulher: aquela boneca não é parecida com a que demos à nossa
filha? E aquele macaco? Naturalmente, caíram do sótão. O soalho deve ter
dado de si… Vou lá acima ver.

- Deixa lá isso, agora! Repara que estes brinquedos estão como novos. Parece
que o tempo não passou por eles.- Até é mal empregado que estejam lá em
cima a estragar-se. E se fôssemos...? — sugere o Senhor Alfredo.
- Vamos - responde a Dona Noémia.
O Senhor Alfredo e a Dona Noémia entendem-se por meias palavras, mas nós,
nas linhas desta história, temos de contar as palavras todas.
Saibam, pois, que graças aos dois simpáticos velhinhos, transformados, para o
efeito, em ajudantes de Pai, os brinquedos do sótão voltaram a conhecer as
mãos macias dos meninos. (p. 52 do original)

A filhó dourada

A história que vou contar chama-se “A filhó dourada”. Douradas, muito


douradinhas são elas todas, empilhadas na travessa, como um castelo por
conquistar.
As últimas são as melhores. Têm mais açúcar, desfazem-se mal lhes
tocamos... A gente pega delicadamente numa das que sobraram, dá-lhe um
impulso que a ponha a deslizar na travessa, para ensopar bem, e num gesto
rápido, sem pingar a toalha, mete-a na boca. O estalar dela, de encontro aos
nossos dentes, é música com açúcar.
Naquela ceia de Natal, todos tinham comido filhós.
— Estão uma delícia — comentavam.
E, porque estavam uma delícia, não tinham sobrado senão uma, no fundo da
travessa. Era uma ilha minúscula e redondinha, rodeada por
(p. 55 do original)

um mar de açúcar. Todos os olhos fitavam a filhó, que estalava em reflexos de


oiro. Uma tentação.
À roda da mesa, diziam para o avô:

- Só ficou uma filhó. Porque é que não a come?


O avô, então, virava-se para a avó e segredava-lhe:

- Come tu, anda lá.

A avó não queria.

- Comam vocês — dizia ela, apontando para a filhó e


para os filhos.
- Eu já comi muitas — desculpava-se um.

- Também tenho a minha conta — dizia outro.


- Nem mais um bocadinho — declarava um terceiro.
Parecia que nenhum queria tomar a responsabilidade de comer a filhó. No
entanto, ela lá estava muito dourada, (p. 56 do original)
a recortar-se no meio da calda de açúcar. Apetecia mesmo ver e... comer.
Mas, à volta da mesa, não se decidiam. E a filhó, a última filhó, andava de boca
em boca, sem se fixar na boca de ninguém. De oferta em oferta, chegou a vez
da tia Luísa propor:

— Os pequenos que comam. Sempre quero ver qual dos meus sobrinhos
chega primeiro à filhó.
Os meninos não se precipitaram sobre a filhó apetitosa, como seria de esperar.
Cada um ficou à espera do primo ao lado, e o primo ao lado do outro primo ao
lado... Fosse por acanhamento ou fosse por que fosse…
— Afinal ninguém a come — observaram do outro extremo da mesa. — Esta
filhó deve ser mágica. (p. 57 do original)

Olharam uns para os outros e sorriram.


A ceia estava no fim. Os meninos tinham sono. O avô cabeceava. Começou a
ouvir-se o arrastar das cadeiras. Era a debandada.
- Amanhã se arruma a casa — disse a tia Luísa, e apagou a luz da sala de
jantar.
Quando todos já se tinham ido embora, a filhó, no lusco-fusco, ao meio da
mesa, começou a brilhar. Intensamente. Acreditem ou não, como se tivesse luz
dentro. Como um pequeno Sol ou um bocadinho de oiro, a desfazer-se em
açúcar. (p. 58 do original)
Fim

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