Você está na página 1de 11

Literatura

Professora Erenice Carvalho


Primeiro ano/ 2023

CONTOS SELECIONADOS

“O Escaravelho de Ouro”, de Edgar Allan Poe

Havia já cinco ou seis anos que eu conhecia William Legrand. Ele descendia de uma velha família
huguenote, que outrora fora muito rica; porém ficara arruinado por uma série de revezes. Para fugir às
consequências dessa decadência, partiu de Nova Orleans e foi se instalar na ilha de Sullivan, próximo a Charleston,
na Carolina cio Sul.
Essa ilha é singular; composta por um banco de areia com o comprimento de três milhas e um quarto de
milha de largura, é separada do continente apenas por uma nesga de mar muito estreita. Toda a vegetação da ilha
se limita a caniços, onde pululam galinhas d'água. Árvore nem uma. Na extremidade oeste, há, ali, forte Moultrie e
algumas cabanas habitadas no verão por pessoas que fogem de Charleston, de sua poeira e de suas febres; no
resto da ilha há somente arbustos ralos.
Legrand construíra na extrema ponta oriental dessa ilha uma pequena casa de tábuas, onde me habituei a
visitá-lo, porque tomara por ele verdadeira amizade.
Depois que se arruinara, Legrand vivia ali tendo como únicas distrações a caça, a pesca, alguns livros e uma
coleção de conchas e insetos, que iniciara, à falta de melhor ocupação. Tinha conto único companheiro um criado, o
velho Júpiter, um preto que servira seu pai e era-lhe dedicado como um cão.
Nesse dia, chegando à ilha e encontrando a casa de Legrand vazia, instalei-me com a sem-cerimônia, que
nossa intimidade me permitia, fazendo café e escolhendo um livro para matar o tempo. Meu amigo só chegou ao cair
da noite em companhia de Júpiter, que trazia duas galinhas d'água para o jantar.
Ambos demonstraram alegria sincera ao ver-me e, como eu perguntasse por sua famosa coleção, Legrand
exaltou-se logo, comunicando-me que capturara na véspera um exemplar raro, talvez único no mundo, um
escaravelho enorme, colossal e tudo cor de ouro...
— Cor de ouro, não, senhor... ele é de ouro mesmo — interveio Júpiter, com a familiaridade inocente de um
criado que andou com o patrão ao colo. — Esse escaravelho é de ouro mesmo.
— Maluco! — disse Legrand, dando de ombros. — De fato esse animal é singularmente pesado... então, ele
pensa que..., Mas, imagine que, não podendo supor que o ia encontrar aqui, deixei o precioso inseto com o tenente
do forte, que me pediu para fotografá-lo. Mas amanhã irei buscá-lo. Espere... vou desenhá-lo aqui, para que faças
uma ideia.
Sentou-se diante de sua pequenina mesa e molhou a pena no tinteiro. Mas procurou em vão um pedaço de
papel no meio dos livros atirados em desordem. Então pesquisou nas algibeiras e acabou por achar uma folha em
branco, embora bastante suja.
— Ora! disse ele depois de hesitar um instante. — Isso mesmo serve.
Riscou rapidamente um desenho e estendeu-o. Quando, porém, eu o tomava entre os dedos, Júpiter abriu a
porta do canil e Gog, o grande cão de Legrand, que era muito meu amigo, veio, aos saltos, fazer-me festas, com tal
ímpeto que deixei cair o papel. Quando o apanhei afinal e lancei sobre ele o olhar, fiquei estupefato.
— Ora essa! — exclamei. Que demônio de escaravelho desenhou você aqui? Isso parece mais uma caveira!
— Como? — redarguiu Legrand. — Uma caveira?
Curvou-se para o desenho e, visivelmente surpreendido, deteve-se a fitá-lo. Houve então em seu rosto uma
série de transformações rápidas. Corou, empalideceu... depois examinou atentamente o papel à luz da lâmpada e,
sem uma palavra, foi se sentar em cima de uma mala, colocada no outro extremo da sala, como se se quisesse
isolar com seus pensamentos.
Por fim tirou do bolso a carteira e guardou nela o papel com muito cuidado, como se fosse coisa das mais
preciosas.
Tornou-se então mais calmo, mas pediu-me desculpas de sua abstração, com ar tão absorto, que me
esquivei de interrogá-lo.
Todo o gênio expansivo de Legrand parecia ter desaparecido. Continuando a me tratar com a cordialidade
do costume, estava distraído e, quanto mais os minutos corriam, mais ele se mergulhava numa preocupação
absorvente e tirânica.
Tanto que, sem mais falar em nossos projetos para o dia seguinte, despedi-me e ele nada fez para me deter
ali. Mas tive a impressão de que me abraçava com mais carinho e entusiasmo do que nunca.
***
Quase um mês se passou, depois disso, sem que eu tivesse notícias de Legrand, quando, um belo dia, tive a
surpresa de ver o velho Júpiter aparecer em minha casa.
— Olá! Você por aqui? perguntei. — Que veio fazer em Charleston?
— Fazer compras e trazer uma carta para vosmicê — respondeu-me o bom preto, pousando no soalho, com
esforço, um embrulho enorme, que tiniu como som de metal.
— E como está seu patrão? — Continuei abrindo a carta.
— Ah! meu senhor... — disse Júpiter, coçando a carapinha, com embaraço. — parece que não está bom.
— Não está bom de quê?
— Da.… da cabeça... vosmicê desculpe. E tudo por causa daquele maldito escaravelho.
— Que escaravelho.... Ah!... o tal de ouro?... Mas que tem ele com a cabeça de Legrand? — interroguei,
inquieto.
— Ah!... eu não sei, meu senhor; mas depois que achou aquele bicho maldito é que meu senhor deu pra
viver calado, para passar a noite inteirinha escrevendo números... e passar dias inteiros fora de casa, sem que eu
saiba onde ele anda.
— Mas tudo por causa do escaravelho?...
— Pelo menos foi desde o dia em que ele apare... o excomungado! — afirmou o preto. — Vosmicê quer a
prova? O escaravelho é de ouro.... Pois agora, meu senhor, até deu para falar sozinho... e fala em ouro.
— Que me diz?
— Eu ouvi, meu senhor, eu ouvi...
— Bom — disse eu, desanimando de compreender. — Vamos ver o que ele me manda dizer.
A carta estava assim redigida.

"Meu caro amigo.


Que fim levou você? Terá se zangado porque não lhe dediquei, no outro dia, a atenção que me merece?
Não o acredito.
Por isso, se não está muito preso por seus trabalhos, venha com Júpiter. Preciso de sua presença esta noite,
para um negócio muito sério.
Seu cordialmente
William Legrand."

Fiquei assombrado. Que negócio muito sério poderia ser esse, para o qual minha presença era
indispensável? Pelo que Júpiter me dissera, eu começava a recear que meu amigo estivesse de fato com as
faculdades mentais alteradas.
— Que compras foram essas, que você vem fazer?
— Ah!... É outra coisa. Meu senhor, mandou-me comprar foices, pás, enxadas... Para que será tudo isso,
meu Deus! Ninguém sabe...
Cada vez mais intrigado, mas por isso mesmo incapaz de abandonar meu amigo, preparei-me rapidamente
para seguir o velho Júpiter.
Chegamos por volta de três horas da tarde. Legrand, que parecia esperar-nos com impaciência, veio a nosso
encontro, com uma vivacidade, que mais aumentou minhas suspeitas. Mas, como só falava em generalidades,
parecendo não saber como começar o que pretendia dizer-me, perguntei-lhe pelo escaravelho.
— Ah!.... — exclamou ele, com um estranho olhar. — Sabe que, afinal, quem tinha razão era Júpiter?
— Como?
— Esse animal é mesmo de ouro.
Pronunciou essas palavras com ar tão sério, que fiquei interdito e desolado.
— De ouro — repetiu Legrand, com um sorriso triunfante. — E ele vai fazer minha fortuna.... Mas venha cá.
Você ainda não o conhece...
Levou-me até uma pequena mesa de mármore onde o escaravelho estava preso sob uma tampa de vidro.
Era de fato um animal soberbo, de um amarelo positivamente cor de ouro, com duas manchas negras nas costas e
outra na cabeça.
— Mandei chamá-lo — disse Legrand, depois de me deixar examinar atentamente o inseto — mandei
chamá-lo, para que me ajude a realizar os desígnios da Providência e do escaravelho.
Disse isto num tom enfático, solene.
Não podendo mais conter meu espanto, tomei-o por um braço e disse-lhe ao ouvido:
— William... você está nervoso... um pouco exaltado.... Por que não se deita para descansar uma hora ou
duas?
Ele desatou a rir, com ar jocoso e houve em seu olhar um lampejo de inteligência tão vivaz, que não me
atrevi a prosseguir. Então ele pousou as mãos sobre meus ombros e, fitando-me bem nos olhos, disse:
— Tranquilize-se, camarada. Eu estou perfeitamente são de corpo e de espírito; apenas um pouco vibrante à
ideia da pequena expedição, que vamos empreender às colinas do litoral. Como precisava, para levá-la a êxito, de
um companheiro em quem pudesse confiar absolutamente, lembrei-me de você. Fiz mal?
— Absolutamente não, respondi num ímpeto de amizade sincera.
— Então não percamos tempo — continuou Legrand. — Mesmo partindo já, temos que passar toda a noite
fora e só poderemos estar de volta ao amanhecer.
— Mas não me dirá?... — balbuciei.
— Pergunte ao escaravelho. Ele sabe — respondeu-me Legrand com um sorriso indefinível, que me deixou
ainda mais perplexo.
Como conciliar os disparates, que meu amigo dizia, com a lucidez de seu olhar? Em todo caso, acompanhei-
o, com o coração opresso. O velho Júpiter ia adiante, carregando as foices e enxadas; o cão seguia-nos, aos saltos.
Eu levava duas lanternas; quanto a Legrand, limitava-se a levar o famoso escaravelho preso a um rolo de barbante,
fazendo-o voltear no ar. Pelo caminho, por duas ou três vezes, tentei esclarecer o intento de nossa expedição. Ele se
limitava a dizer:
— O escaravelho sabe.
Atravessamos o estreito braço de mar em um bote e, subindo a escarpa do litoral, seguimos em direção ao
noroeste, através de uma região absolutamente selvagem, onde não havia o menor vestígio de criaturas humanas.
Ao fim de duas horas de marcha, Legrand, fazendo-me subir a uma elevação do terreno, murmurou:
— E dizer-se que todo esse território já foi o apanágio de minha família! Olhe, ali está arruinada, mas ainda
sólida e imponente, a casa que meu avô construiu.
Olhei na direção que ele me indicava e vi um edifício de aspecto senhorial, mas que parecia abandonado no
campo deserto.
Depois caminhamos mais meia hora e entramos em uma região de aspecto ainda mais desolado e lúgubre.
Era um platô situado no alto de uma colina quase inacessível, coberto por um bosque espesso desde a base até o
cume e cheio de rochedos enormes, espalhados ao acaso pelo solo. Frestas imensas abertas em várias direções,
acabavam de dar a essa colina um caráter sinistro.
Compreendi então a necessidade das foices, que meu amigo mandara comprar em Charleston; sem elas
não teríamos pedido abrir caminho pelas encostas dessa colina, tão intensa e desordenada era a vegetação ali.
Obedecendo às indicações de seu patrão, Júpiter abriu uma vereda em direção a uma árvore gigantesca,
que se erguia ali, no meio de outras, mas passando muito acima de todas.
Quando chegamos junto a essa árvore, Legrand ordenou ao preto que subisse por ela até o início dos
galhos.
— Quando chegar aí, eu lhe direi o que terá a fazer. Mas olhe, leve o escaravelho consigo.
— Eu, meu senhor? — exclamou o velho criado, recuando, com visível temor.
— Oh! Júpiter.... Não seja tolo. Então você tem medo de um bicho tão pequeno? Leve-o seguro pelo
barbante...
— Mas para quê? — perguntei eu.
— Porque é preciso — disse Legrand, sem outras explicações.
Entretanto, com a docilidade habitual, Júpiter enrolou o barbante ao cinto e começou a subir pelo tronco, com
agilidade admirável. Chegando ao primeiro galho horizontal, que ficava talvez a uns vinte metros de altura, instalou-
se para descansar.
O preto, obedecendo, desapareceu entre a folhagem.
— Onde está você? — gritou meu amigo, após alguns instantes.
— Alto, muito alto — respondeu a voz abafada de Júpiter.
— Quantos galhos secundários você já passou?...
— Cinco.
— Vá até o sexto e siga por ele — gritou Legrand, visivelmente nervoso, exaltado.
Esperou um minuto talvez... e ouviu-se um grito de pavor do velho criado...
— Oooh... meu Deus... misericórdia!
— Que é? — perguntou com um riso triunfante.
— Uma caveira. Há aqui uma caveira presa ao tronco por um grande prego.... Que horror!...
— Muito bem. Isso não tem importância. Alguém esqueceu a cabeça ali e prendeu-a para não cair. Ouça!
Preste atenção para fazer bem direitinho o que eu vou dizer. Está ouvindo?
— Estou, sim senhor.
— Enfie o escaravelho pelo olho direito da caveira e deixe o barbante correr até o fim.
Esperamos um instante e vimos o barbante surgir abaixo da folhagem com o escaravelho cintilando na
ponta. Imediatamente, Legrand apoderou-se de uma foice e começou a limpar a terra em um círculo de duas ou três
jardas de diâmetro, exatamente por baixo do lugar de onde o inseto pendia. Feito isso, ordenou a Júpiter que
deixasse cair o inseto e descesse da árvore. Depois marcou com um pedaço de pau o lugar onde o escaravelho
caíra, tirou do bolso uma trena, amarrou-lhe a ponta ao tronco da árvore e desenrolou-a, tomando como rumo a
marca de pau, até uma distância de dez metros; aí, espetou um novo pedaço de pau e traçando em torno um círculo
de um metro de diâmetro, pediu-nos que o auxiliássemos e começou a cavar com verdadeira fúria. Auxiliei-o, mas de
mau humor. Além de não me agradar semelhante serviço, cansado como estava da caminhada, eu estava irritado
com as maneiras de Legrand e não tinha mais dúvida sobre seu desequilíbrio mental. Se pudesse contar com o
auxílio de Júpiter, em vez de me prestar àquele trabalho imbecil, teria posto termo àquela comédia estúpida,
levando-o para casa e obrigando-o a se meter na cama.
Mas não podendo fazer outra coisa, entrei a manejar a enxada à luz das lanternas que acendi, porque era já
noite quase fechada.
Trabalhamos assim penosamente, durante cerca de duas horas, sem uma palavra, e isso era o que mais me
aborrecia. Estávamos já a mais de um metro de profundidade, sem encontrar coisa alguma. Era evidente que meu
amigo, impressionado com o encontro do escaravelho, que parecia de ouro, metera-se em cabeça a mania de
encontrar algum tesouro oculto.
Em certo momento, detive-me e fitei-o como quem diz: "Você não vê que estamos perdendo nosso tempo?"
Porém ele limitou-se a enxugar a fronte com ar preocupado e recomeçou a escavação alargando o diâmetro um ou
dois palmos.
Mas, ao fim de mais meia hora de esforços, ele próprio desanimou. Saiu do buraco, vestiu o casaco,
evidentemente disposto a abandonar a tentativa. De súbito, porém, bateu na fronte e, voltando-se para nós com ar
furioso, disse:
— Foi este preto imbecil, que estragou tudo.... Aposto que ele não deixou o barbante escorrer pelo olho
direito da caveira...
— Eu... eu... — balbuciou o velho Júpiter.
— Você é um animal — berrou Legrand, sapateando de raiva. E explicou-me: —Esse idiota é canhoto... por
isso, erra sempre que se trata de determinar o direito ou o esquerdo. E eu sou outro asno, porque não me lembrei
disso.
O preto, acabrunhado, sacudia uma e outra mão, alternadamente, tão perturbado, que não se atrevia a dizer
coisa alguma.
— Vê? exclamou. — Ele nem sabe qual é a mão direita.
— A mão eu sei..., mas caveira não tem mão — alegou o preto, em tom lamentoso.
— Temos que recomeçar disse meu amigo, trêmulo de furor. Correu à árvore. Apanhou a marca de pau,
colocou-a uns vinte centímetros para um lado, tornou a desenrolar a trena e mediu de novo dez metros na nova
direção, que o levou a várias jardas do buraco que havíamos feito. Nesse ponto, traçou um círculo maior do que o
primeiro e começou a cavar com o vigor duplicado pela cólera.
Não se atreveu a me pedir auxílio; mas, embora terrivelmente fatigado, imitei-o.
Estava certo de que tudo aquilo era uma enorme tolice, mas não tinha coragem para abandonar Legrand.
Tinha medo de exaltá-lo ainda mais... provocar-lhe talvez um acesso furioso.
De repente, o cão, que havia já alguns momentos começado a rosnar de modo singular, saltou para a
escavação e começou também a arranhar a terra com as patas.
Legrand precipitou os movimentos e sua enxada não tardou a pôr a descoberto ossos, muitos ossos
humanos, formando pelo menos dois esqueletos.
Meu amigo recolheu e colocou de parte, respeitosamente, esses tristes despojos e continuou a cavar.
Aparecram então, sucessivamente, uma grande faca espanhola, duas pistolas muito enferrujadas, três ou
quatro moedas de ouro e, por fim, uma grande caixa de madeira chapeada de ferro.
Fiquei mudo de espanto. Júpiter juntava as mãos e benzia-se. Legrand exultou:
— Hein! Eu não te dizia que o escaravelho era mesmo de ouro e ia fazer minha fortuna? Mas não percamos
tempo. É preciso que essa caixa esteja em minha casa, antes do romper do dia.
Não foi fácil esse trabalho. A caixa — um verdadeiro cofre de marinheiro do tempo antigo tinha três argolas
de ferro de cada lado; porém, puxando todos três ao mesmo tempo, não conseguimos sequer movê-lo do lugar.
Felizmente seus fechos estavam tão enferrujados que Legrand não teve dificuldade em rebentá-los com a enxada.
O que vimos, então, encheu-nos de assombro e delírio. A caixa estava cheia, literalmente cheia de moedas
de ouro, joias e pedras preciosas, em quantidade tamanha que, para aliviar o peso, tivemos que tirar dela dois terços
de sua carga, que escondemos em um maciço de arbustos ali perto.
Então começamos por transportar a caixa; depois o resto do tesouro, em sacos. Terminamos esse serviço já
dia claro, tão extenuados que, quando voltamos da última viagem, comemos rapidamente alguns biscoitos, bebemos
água e deitamo-nos a dormir.
***
Só despertei ao meio dia. Júpiter continuava mergulhado no sono, porém meu amigo já estava de pé e
começava metodicamente o inventário do tesouro.
Era ainda mais considerável do que eu imaginara a princípio, porque tudo quanto se continha na caixa fora
escolhido.
Em moedas, todas de ouro, do século XVII e anteriores, espanholas, francesas e alemãs, havia ali
quatrocentos e cinquenta mil dólares. As joias (com exceção de relógios, que eram oitenta e seis, todos cravejados
de gemas) tinham sido amassadas a martelo, mas o valor do ouro ia a mais de duzentos mil dólares. Porém o mais
valioso na caixa era a coleção de pedras preciosas — diamantes, rubis, esmeraldas, todos de grande tamanho,
constituindo uma riqueza que não podíamos avaliar no momento.
Depois de tudo contado e separado, depois de uma farta refeição, Legrand acendeu o cachimbo e resolveu
afinal explicar-me como chegara àquele prodigioso descobrimento.
— Você se lembra da noite em que desenhei o escaravelho para lhe mostrar? — começou ele. — Não
encontrando um pedaço de papel em cima da mesa, procurei nas algibeiras e acabei por achar um muito sujo...
Quando você me disse que, em vez de um inseto, eu desenhara uma caveira, fiquei muito surpreendido...
Examinando, por minha vez o desenho, verifiquei duas coisas que me impressionaram profundamente: 1° —
que a caveira estava do outro lado, nas costas da figura que eu traçara; 2° — que aquilo não era um papel, mas uma
folha de pergaminho muito fina e, portanto, de excelente qualidade.
Uma multidão de ideias disparatadas, mas cheias de esperanças tumultuaram em meu cérebro. Geralmente
os pergaminhos são utilizados para a conservação de documentos importantes... a caveira foi sempre o emblema de
piratas.... Ora, eu sempre ouvira falar na tradição de que o famoso pirata Kidd enterrara um tesouro nos terrenos de
nossa propriedade, esses por onde andamos na noite passada... E como encontrara o pergaminho justamente na
ponta extrema da península formada por esse terreno...
Lembrava-me bem. Eu andava em busca de insetos raros, quando descobri o escaravelho de ouro. Receoso
de segurá-lo com a mão, apanhara aquele suposto papel, cuja ponta surgia de entre dois rochedos próximos.
Depois, ao que parece, metera-o no bolso, distraidamente.
Naquela noite, no primeiro momento, uma tal multiplicidade de hipóteses loucas se erguia em meu espírito
que nada lhe quis dizer e deixei que se retirasse sem uma palavra. Ficando a sós com Júpiter, dediquei-me a
esclarecer aquele mistério. Lavado cuidadosamente, o pergaminho deixou ver outros vestígios de desenhos e letras.
Tudo muito confuso, mal escrito.... Foi por isso que eu despendi cerca de um mês para ter a certeza da
existência de um tesouro oculto em meus terrenos e compreender as indicações. Sabe Deus com que esforço, mas
acabei por decifrar tudo. Pelo menos tive a convicção de que entendera as indicações muito vagas em linguagem
hiperbólica e infantil.
Evidentemente, o pergaminho fora desenhado e escrito pelo próprio capitão Kidd ou por algum de seus
assistentes. Além do desenho da caveira havia ali uma árvore, e os dizeres eram os seguintes:
Um bom copo na casa do bispo e na cadeira do demônio — quarenta graus e treze minutos nordeste e
quatro de norte — galho principal do sétimo tronco lado leste — deixe cair a sonda pelo olho esquerdo do morto e
através da direção dez metros ao largo.
— Que complicação! — Exclamei. — Eu nunca teria decifrado semelhante enigma.
— E eu com grandes esforços. A primeira coisa que me preocupou, foi essa história de casa do bispo. No
tempo de Kidd não havia bispo algum na América. Mas à força de pesquisas, soube que a casa reedificada por meu
pai pertencera primitivamente a um aventureiro chamado Bessop, que foi um dos primeiros habitantes da região. Ora
bispo em inglês é bishop. Casa do bishop podia muito bem ser casa de Bessop. Mas cadeira do demônio?... Para
ver se descobria o que poderia ser, fui até nossa antiga residência e, colocando-me à porta, vi aproximadamente a
dois quilômetros uma rocha negra, muito grande e de forma singular... dando perfeita impressão de uma poltrona.
Não era muita coincidência? Pois bem, ouça.... No prolongamento da linha formada pela casa e essa rocha havia
uma árvore enorme, a maior da floresta que aí começa. Diante disso, não tive mais dúvidas. Mandei Júpiter comprar
a ferramentas necessárias à expedição, mandei chamá-lo e.… aí está.
— Aí está... aí está... — repeti eu, ainda com um resto de mau humor. — Mas você podia me ter dita isso
logo, em vez de nos assustar com palavras e atitudes extravagantes. Eu e Júpiter chegamos a julgá-lo doido varrido.
Legrand riu... meio zombeteiro, meio vexado. — Ora... eu nada queria dizer antes da prova com medo de
um fracasso... Quanto a me servir do escaravelho como instrumento de sondagem e dizer algumas tolices.... Ora,
meu amigo... qualquer outro em meu lugar, entrevendo uma perspectiva inesperada de passar subitamente da
miséria à riqueza, havia de ficar um tanto exaltado...

“A revolução das baratas”, de Juliano Martinz


O dia em que a barata Gene viu sua mãe ser brutalmente assassinada por um chinelo, decidiu que era hora
da revolução começar

Havia décadas que as baratas pensavam em realizar um grande levante. Estavam cansadas do ódio peculiar
que os seres humanos sentiam por elas, figurando como o inseto mais repulsivo do planeta Terra.
Injustiçadas, odiadas, temidas. Mal podiam surgir em um ambiente, e o pânico se instalava por completo.
Fêmeas e machos subindo aos gritos em cadeiras. Mas sempre havia 2 ou 3 algozes, psicopatas, empunhando
chinelos e listas telefônicas, olhos vermelhos injetados, a boca espumando, ansiosos pela carnificina. E se as
baratas não fossem rápidas o suficiente, jazeriam mortas, as patas para cima. Seu poderoso casco de quitina não
seria forte o bastante para lhes salvar a vida.
E Gene era a líder da revolução baratística. Tinha uma inteligência incrível, uma memória invejável e uma
estratégica mente militar. O assassinato da mãe diante dos seus olhos, alguns meses antes, fizera despertar o que
lhe faltava para liderar a revolução: o ódio. O plano estava parcialmente definido, mas era preciso esperar o
momento certo.
Sua melhor amiga, Salete, sempre se postava como a temerosa:
– Mas estamos realmente prontas?
– Nunca antes estivemos tão prontas. – A voz de Gene trepidava com sua raiva incontida. – Em breve,
teremos nossa vingança. Os humanos pagarão cada gota de hemolinfa derramada.
– Não sei, não. Tem coisa errada, Gene. Os números não batem.
– Como assim?
Salete mostrou um esboço.
– Em nosso último censo militar, ficou constatado que somos 85 baratas para cada humano. Agora, pense
comigo: a maioria dos humanos não tem mais do que dois ou três filhotes. E muitas das fêmeas deles nem se
reproduzem. Mas nossas fêmeas, em apenas 150 dias, chegam a botar 320 ovos. A proporção não bate, Gene.
Deveríamos ser milhares ou milhões de baratas para cada humano. Onde estão as outras?
– Você não sabe onde elas estão?
– Não.
– Estão mortas, Salete – arrematou, séria. – A diferença na sua estatística é o número de irmãs
assassinadas injustamente. Sentenciadas à morte por chineladas e sufocamento venenoso, enquanto os algozes
gritam “nojenta”, “maldita”, “desgraçada”.
Houve um silêncio entre as duas amigas.
A verdade calou qualquer argumento.
Naquele mesmo dia, uma notícia se espalhou entre as baratas. Ninguém sabe como, mas as baratas
tomaram conhecimento de que, no próximo mês, os humanos em todo o planeta dormiriam durante uma hora,
simultaneamente. Era a oportunidade que Gene tanto esperava.
Salete desconfiou:
– Como assim?
– É a nossa chance, Salete.
– Por que os humanos vão dormir todos ao mesmo tempo?
– Você deveria estar me perguntando sobre nossa estratégia de ataque.
– É só que me parece estranho.
– Faremos um ataque simultâneo, em todo o mundo. Atacaremos os humanos enquanto estiverem
dormindo.
– Vamos comê-los?
– Não, minha querida. Pelo menos, não enquanto estiverem vivos. Isso os acordaria.
– Então, o que vamos fazer?
– Vamos sufocá-los.
– Como?
– Vamos entrar em suas bocas, e invadir suas vias respiratórias.
– Mas…
– Um ataque em massa. Dezenas de baratas saltando sobre a boca de cada humano. Eles não terão chance
de qualquer reação.
– Isso significa que…?
– Sim. Algumas terão de se sacrificar. Mas seus nomes ficarão registrados na história. Figurarão
na literatura como as baratas que conquistaram a liberdade para suas filhas e irmãs.
O plano estava traçado. Gene enviou baratas mensageiras para que avisassem cada um dos exércitos
alocados em despensas, esgotos, sótãos, porões, e até nas matas. As baratas em todo o planeta precisavam saber.
Todas elas deveriam sair dos seus esconderijos e lutar pela liberdade. A história propagada pelos humanos de que,
para cada barata avistada existem mil escondidas, mudaria. Naquela noite, os humanos veriam todas elas, mas
desta vez, seriam elas a ter os olhos injetados, e a boca espumando de ódio.
E exatamente um mês depois, a guerra teve início.
Gene saiu pelo ralo do banheiro seguida por seu posto avançado de 249 baratas. Era meia-noite.
Encaminharam-se lentamente para os quartos dos humanos, ansiosas pelo ataque final. Em questão de menos de
uma hora, a raça humana estaria extinta da face da Terra. Chinelos e inseticidas nunca mais seriam produzidos.
Gene ainda salivava de ódio, quando ouviu um estranho zumbido. Ergueu lentamente a cabeça. Logo acima,
parcialmente camuflada pela escuridão, viu uma figura familiar: o general Tod, uma vespa-joia. Ele estava a frente do
que pareciam 3 ou 4 centenas de vespas e marimbondos.
O coração de Gene saltou-lhe à boca. Seu cérebro começou a juntar as peças e tudo se encaixou. Salete
tinha razão. O sono coletivo dos humanos não podia ser verdade. O boato havia sido um embuste criado pelas
vespas, as maiores inimigas das baratas, depois dos humanos. Em um relance, Gene já podia ver seus corpos
sendo arrastados para buracos e servindo de alimento para larvas de vespas.
Gene virou-se para seu exército e, quase sem voz, gritou:
– É uma cilada… Fujaaaaam!
Mas era tarde demais. Ao grito de comando do General Tod e dos outros milhares de generais vespas de
emboscada em todo o mundo, o ataque histórico das vespas contra as baratas começou.
Vários anos depois, os jornais ainda noticiariam o misterioso desaparecimento de todas as baratas do planeta terra.
A culpa, para todos os efeitos, recairia sobre o aquecimento global.

“Uma galinha”, de Clarice Lispector

Era uma galinha de domingo. Ainda viva porque não passava de nove horas da manhã.
Parecia calma. Desde sábado encolhera-se num canto da cozinha. Não olhava para ninguém, ninguém
olhava para ela. Mesmo quando a escolheram, apalpando sua intimidade com indiferença, não souberam dizer se
era gorda ou magra. Nunca se adivinharia nela um anseio.
Foi, pois uma surpresa quando a viram abrir as asas de curto voo, inchar o peito e, em dois ou três lances,
alcançar a murada do terraço. Um instante ainda vacilou — o tempo de a cozinheira dar um grito — e em breve
estava no terraço do vizinho, de onde, em outro voo desajeitado, alcançou um telhado. Lá ficou em adorno
deslocado, hesitando ora num, ora noutro pé. A família foi chamada com urgência e consternada viu o almoço junto
de uma chaminé. O dono da casa, lembrando-se da dupla necessidade de fazer esporadicamente algum esporte e
de almoçar, vestiu radiante um calção de banho e resolveu seguir o itinerário da galinha: em pulos cautelosos
alcançou o telhado onde esta, hesitante e trêmula, escolhia com urgência outro rumo. A perseguição tornou-se mais
intensa. De telhado a telhado foi percorrido mais de um quarteirão da rua. Pouco afeita a uma luta mais selvagem
pela vida, a galinha tinha que decidir por si mesma os caminhos a tomar, sem nenhum auxílio de sua raça. O rapaz,
porém, era um caçador adormecido. E por mais ínfima que fosse a presa o grito de conquista havia soado.
Sozinha no mundo, sem pai nem mãe, ela corria, arfava, muda, concentrada. Às vezes, na fuga, pairava
ofegante num beiral de telhado e enquanto o rapaz galgava outros com dificuldade tinha tempo de se refazer por um
momento. E então parecia tão livre.
Estúpida, tímida e livre. Não vitoriosa como seria um galo em fuga. Que é que havia nas suas vísceras que
fazia dela um ser? A galinha é um ser. É verdade que não se poderia contar com ela para nada. Nem ela própria
contava consigo, como o galo crê na sua crista. Sua única vantagem é que havia tantas galinhas que morrendo uma
surgiria no mesmo instante outra tão igual como se fora a mesma.
Afinal, numa das vezes em que parou para gozar sua fuga, o rapaz alcançou-a. Entre gritos e penas, ela foi
presa. Em seguida carregada em triunfo por uma asa através das telhas e pousada no chão da cozinha com certa
violência. Ainda tonta, sacudiu-se um pouco, em cacarejos roucos e indecisos. Foi então que aconteceu. De pura
afobação a galinha pôs um ovo. Surpreendida, exausta. Talvez fosse prematuro. Mas logo depois, nascida que fora
para a maternidade, parecia uma velha mãe habituada. Sentou-se sobre o ovo e assim ficou respirando, abotoando e
desabotoando os olhos. Seu coração, tão pequeno num prato, solevava e abaixava as penas, enchendo de tepidez
aquilo que nunca passaria de um ovo. Só a menina estava perto e assistiu a tudo estarrecida. Mal, porém conseguiu
desvencilhar-se do acontecimento, despregou-se do chão e saiu aos gritos:
— Mamãe, mamãe, não mate mais a galinha, ela pôs um ovo! ela quer o nosso bem!
Todos correram de novo à cozinha e rodearam mudos a jovem parturiente. Esquentando seu filho, esta não
era nem suave nem arisca, nem alegre, nem triste, não era nada, era uma galinha. O que não sugeria nenhum
sentimento especial. O pai, a mãe e a filha olhavam já há algum tempo, sem propriamente um pensamento
qualquer. Nunca ninguém acariciou uma cabeça de galinha. O pai afinal decidiu-se com certa brusquidão:
— Se você mandar matar esta galinha nunca mais comerei galinha na minha vida!
— Eu também! jurou a menina com ardor. A mãe, cansada, deu de ombros.
Inconsciente da vida que lhe fora entregue, a galinha passou a morar com a família. A menina, de volta do
colégio, jogava a pasta longe sem interromper a corrida para a cozinha. O pai de vez em quando ainda se lembrava:
"E dizer que a obriguei a correr naquele estado!" A galinha tornara-se a rainha da casa. Todos, menos ela, o
sabiam. Continuou entre a cozinha e o terraço dos fundos, usando suas duas capacidades: a de apatia e a do
sobressalto.
Mas quando todos estavam quietos na casa e pareciam tê-la esquecido, enchia-se de uma pequena
coragem, resquícios da grande fuga — e circulava pelo ladrilho, o corpo avançando atrás da cabeça, pausado como
num campo, embora a pequena cabeça a traísse: mexendo-se rápida e vibrátil, com o velho susto de sua espécie já
mecanizado.
Uma vez ou outra, sempre mais raramente, lembrava de novo a galinha que se recortara contra o ar à beira
do telhado, prestes a anunciar. Nesses momentos enchia os pulmões com o ar impuro da cozinha e, se fosse dado
às fêmeas cantar, ela não cantaria mas ficaria muito mais contente. Embora nem nesses instantes a expressão de
sua vazia cabeça se alterasse. Na fuga, no descanso, quando deu à luz ou bicando milho — era uma cabeça de
galinha, a mesma que fora desenhada no começo dos séculos.
Até que um dia a mataram, comeram-na e passaram-se anos.

“Herói”, de Domingos Pellegrini


Meio século depois que, aos nove anos, meu avô João me levou à primeira pescaria, levo meu neto Caetano de
quatro anos. Fui de trem, ele vai de cadeirinha, no banco traseiro do carro. Fui a um rio, ele vai a um pesque-pague.
Pesquei com o vô num barranco, agora pescamos sentados em banco à beira da lagoa.
Fiz em casa a massa para a isca, batendo no liquidificador ração de gato, colorau e farinha de trigo, depois
sovando com ovo e missô, fica uma massa vermelha e cheirosa, muito mais atraente para os peixes do que a massa
escura do pesqueiro. Logo pego a primeira tilápia, para mostrar a Caetano como se faz.
Boto a tilápia no samburá, boto nova isca no anzol, boto a vara nas mãos dele. Ele olha a boia, enquanto digo
que deve puxar a vara só quando ela afundar ou correr. A boia tremelica, ele puxa, nada pega, repito as instruções.
Ele olha a boia, ela trisca, tremelica, sacode e afunda, ele ainda olhando fascinado. Grito para puxar a vara, ele
puxa, e então me revejo no momento inesquecível, o peixe dá vida puxando para lá, o menino puxando para cá, a
vara curvando e vibrando com o menino.
Digo para ele cansar a tilápia, mas que, ele puxa até ela bater na beirada, então pego a linha e tiro o bicho da
água. Agachamos olhando o peixe espantado na grama, enquanto o menino se espanta do próprio poderio, até
levantar gritando:
— Peguei, vô, peguei!
Vou ensinando a botar isca e lançar a vara, coisas que ele faz mais ou menos, como também não atina com a
hora certa de fisgar, mas puxar a vara, ah, puxa que só. Quando tiramos o terceiro peixe, uma mulher fala que ele é
um grande pescador, e ele me olha orgulhoso. Depois da quarta tilápia, vamos ao bar para ele pegar suco de
morango, e pergunto se quer fazer xixi, diz que não, quer pescar.
Voltamos à lagoa, e, mais quatro tilápias depois, pergunto se quer fazer xixi, ele diz que não, quer mais suco de
morango. Dou a ficha, ele vai sozinho ao bar, volta homenzinho com o suco. Uma menina vem admirar quando ele
puxa mais uma tilápia, e depois vou ver as varas de espera que deixei numa lagoa maior. Quando volto, cadê ele?
Vou gritando seu nome, olhando a beirada das lagoas, a água, meu Deus, a água. Vou ao bar, grito Caetano,
ele responde lá do sanitário: tô aqui, vô! Volto a lagoa, e logo ele vem, as calças molhadas de xixi:
— Não deu tempo, vô.
Vamos ao carro trocar sua roupa, a menina olhando de longe, ele se envergonha, diz que não quer mais
pescar. Digo que então deve voltar à lagoa, sim, para dar de presente à menina nossa massa tão pescadeira. Ele diz
que não, emburrado. Digo que ele deve, porque é assim que fazem os heróis.
— Todo herói tem sua fraqueza. O Super-Homem enfraquece perto dum a pedra verde chamada kriptonita.
Sansão ficava fraco quando cortava o cabelo. O Homem-Aranha às vezes escorrega. Todo herói tem sua fraqueza.
Ele pensa, pega a bola de massa, vai dar à menina. Vamos ver as varas de espera, e lá está um pacu, que ele
ajuda puxar rodando o molinete, todo feliz. Digo que é seu primeiro peixe grande, que está virando um grande
pescador, e ele passa a caminhar com passos maiores.
Passando pela lagoa menor, a mãe da menina grita agradecendo, já pescaram três tilápias com nossa massa.
A menina vem correndo e lhe dá uma bala, uma simples bala que ele vai levando no carro como se fosse uma
medalha. Dorme. Em casa, deixo que continue dormindo no carro enquanto guardo as varas e os peixes. Depois
cutuco para acordar, ele olha a bala na mão, vai correndo contar:
— Peguei oito peixes, vó! E ganhei uma bala!
Um herói.

Domingos Pellegrini. A caneta e o anzol: histórias de pescaria. São Paulo: Geração Editorial. 2012. p. 91-4.
Fonte: Língua Portuguesa – Caminhar e transformar – Aos finais do ensino fundamental – 1ª edição – São Paulo
– FTD, 2013. p. 88-92.

“Os dragões”, de Murilo Rubião

Os primeiros dragões que apareceram na cidade muito sofreram com o atraso dos nossos costumes.
Receberam precários ensinamentos e a sua formação moral ficou irremediavelmente comprometida pelas absurdas
discussões surgidas com a chegada deles ao lugar.
Poucos souberam compreendê-los e a ignorância geral fez com que, antes de iniciada a sua educação, nos
perdêssemos em contraditórias suposições sobre o país e raça a que poderiam pertencer.
A controvérsia inicial foi desencadeada pelo vigário. Convencido de que eles, apesar da aparência dócil e
meiga, não passavam de enviados do demônio, não me permitiu educá-los. Ordenou que fossem encerrados numa
casa velha, previamente exorcismada, onde ninguém poderia penetrar. Ao se arrepender de seu erro, a polêmica já
se alastrara e o velho gramático negava-lhes a qualidade de dragões, “coisa asiática, de importação europeia”. Um
leitor de jornais, com vagas ideias científicas e um curso ginasial feito pelo meio, falava em monstros antediluvianos.
O povo benzia-se, mencionando mulas sem cabeça, lobisomens.
Apenas as crianças, que brincavam furtivamente com os nossos hóspedes, sabiam que os novos
companheiros eram simples dragões. Entretanto, elas não foram ouvidas. O cansaço e o tempo venceram a teimosia
de muitos. Mesmo mantendo suas convicções, evitavam abordar o assunto.
Dentro em breve, porém, retomariam o tema. Serviu de pretexto uma sugestão do aproveitamento dos
dragões na tração de veículos. A ideia pareceu boa a todos, mas se desavieram asperamente quando se tratou da
partilha dos animais. O número destes era inferior ao dos pretendentes.
Desejando encerrar a discussão, que se avolumava sem alcançar objetivos práticos, o padre firmou uma tese: os
dragões receberiam nomes na pia batismal e seriam alfabetizados.
Até aquele instante eu agira com habilidade, evitando contribuir para exacerbar os ânimos. E se, nesse
momento, faltou-me a calma, o respeito devido ao bom pároco, devo culpar a insensatez reinante. Irritadíssimo,
expandi o meu desagrado:
— São dragões! Não precisam de nomes nem do batismo!
Perplexo com a minha atitude, nunca discrepante das decisões aceitas pela coletividade, o reverendo deu
largas à humildade e abriu mão do batismo. Retribuí o gesto, resignando-me à exigência de nomes.
Quando, subtraídos ao abandono em que se encontravam, me foram entregues para serem educados,
compreendi a extensão da minha responsabilidade. Na maioria, tinham contraído moléstias desconhecidas e, em
consequência, diversos vieram a falecer. Dois sobreviveram, infelizmente os mais corrompidos. Mais bem-dotados
em astúcia que os irmãos, fugiam, à noite, do casarão e iam se embriagar no botequim. O dono do bar se divertia
vendo-os bêbados, nada cobrava pela bebida que lhes oferecia. A cena, com o decorrer dos meses, perdeu a graça
e o botequineiro passou a negar-lhes álcool. Para satisfazerem o vício, viram-se forçados a recorrer a pequenos
furtos.
No entanto eu acreditava na possibilidade de reeducá-los e superar a descrença de todos quanto ao sucesso
da minha missão. Valia-me da amizade com o delegado para retirá-los da cadeia, onde eram recolhidos por motivos
sempre repetidos: roubo, embriaguez, desordem.
Como jamais tivesse ensinado dragões, consumia a maior parte do tempo indagando pelo passado deles,
família e métodos pedagógicos seguidos em sua terra natal. Reduzido material colhi dos sucessivos interrogatórios a
que os submetia. Por terem vindo jovens para a nossa cidade, lembravam-se confusamente de tudo, inclusive da
morte da mãe, que caíra num precipício, logo após a escalada da primeira montanha. Para dificultar a minha tarefa,
ajuntava-se à debilidade da memória dos meus pupilos o seu constante mau humor, proveniente das noites mal
dormidas e ressacas alcoólicas.
O exercício continuado do magistério e a ausência de filhos contribuíram para que eu lhes dispensasse uma
assistência paternal. Do mesmo modo, certa candura que fluía dos seus olhos obrigava-me a relevar faltas que não
perdoaria a outros discípulos.
Odorico, o mais velho dos dragões, trouxe-me as maiores contrariedades. Desastradamente simpático e
malicioso, alvoroçava-se todo à presença de saias. Por causa delas, e principalmente por uma vagabundagem inata,
fugia às aulas. As mulheres achavam-no engraçado e houve uma que, apaixonada, largou o esposo para viver com
ele.
Tudo fiz para destruir a ligação pecaminosa e não logrei separá-los. Enfrentavam-me com uma resistência surda,
impenetrável. As minhas palavras perdiam o sentido no caminho: Odorico sorria para Raquel e esta, tranquilizada,
debruçava-se novamente sobre a roupa que lavava.
Pouco tempo depois, ela foi encontrada chorando perto do corpo do amante. Atribuíram sua morte a tiro fortuito,
provavelmente de um caçador de má pontaria. O olhar do marido desmentia a versão.
Com o desaparecimento de Odorico, eu e minha mulher transferimos o nosso carinho para o último dos
dragões. Empenhamo-nos na sua recuperação e conseguimos, com algum esforço, afastá-lo da bebida. Nenhum
filho talvez compensasse tanto o que conseguimos com amorosa persistência. Ameno no trato, João aplicava-se aos
estudos, ajudava Joana nos arranjos domésticos, transportava as compras feitas no mercado. Findo o jantar,
ficávamos no alpendre a observar sua alegria, brincando com os meninos da vizinhança. Carregava-os nas costas,
dava cambalhotas.
Regressando, uma noite, da reunião mensal com os pais dos alunos, encontrei minha mulher preocupada:
João acabara de vomitar fogo. Também apreensivo, compreendi que ele atingira a maioridade.
O fato, longe de torná-lo temido, fez crescer a simpatia que gozava entre as moças e rapazes do lugar. Só
que, agora, demorava-se pouco em casa. Vivia rodeado por grupos alegres, a reclamarem que lançasse fogo. A
admiração de uns, os presentes e convites de outros, ascendiam-lhe a vaidade. Nenhuma festa alcançava êxito sem
a sua presença. Mesmo o padre não dispensava o seu comparecimento às barraquinhas do padroeiro da cidade.
Três meses antes das grandes enchentes que assolaram o município, um circo de cavalinhos movimentou o
povoado, nos deslumbrou com audazes acrobatas, engraçadíssimos palhaços, leões amestrados e um homem que
engolia brasas. Numa das derradeiras exibições do ilusionista, alguns jovens interromperam o espetáculo aos gritos
e palmas ritmadas:
— Temos coisa melhor! Temos coisa melhor!
Julgando ser brincadeira dos moços, o anunciador aceitou o desafio:
— Que venha essa coisa melhor!
Sob o desapontamento do pessoal da companhia e os aplausos dos espectadores, João desceu ao picadeiro
e realizou sua costumeira proeza de vomitar fogo.
Já no dia seguinte, recebia várias propostas para trabalhar no circo. Recusou-as, pois dificilmente algo substituiria o
prestígio que desfrutava na localidade. Alimentava ainda a pretensão de se eleger prefeito municipal.
Isso não se deu. Alguns dias após a partida dos saltimbancos, verificou-se a fuga de João.
Várias e imaginosas versões deram ao seu desaparecimento. Contavam que ele se tomara de amores por
uma das trapezistas, especialmente destacada para seduzi-lo; que se iniciara em jogos de cartas e retomara o vício
da bebida.
Seja qual for a razão, depois disso muitos dragões têm passado pelas nossas estradas. E por mais que eu e
meus alunos, postados na entrada da cidade, insistamos que permaneçam entre nós, nenhuma resposta recebemos.
Formando longas filas, encaminham-se para outros lugares, indiferentes aos nossos apelos.

“Baleia”, de Graciliano Ramos


A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido, o pelo caíra-lhe em vários pontos, as costelas
avultavam num fundo róseo, onde manchas escuras supuravam e sangravam, cobertas de moscas. As chagas da
boca e a inchação dos beiços dificultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um princípio de hidrofobia e amarrara-lhe no pescoço um
rosário de sabugos de milho queimados. Mas Baleia, sempre de mal a pior, roçava-se nas estacas do curral ou
metia-se no mato, impaciente, enxotava os mosquitos sacudindo as orelhas murchas, agitando a cauda pelada e
curta, grossa nas bases, cheia de moscas, semelhante a uma cauda de cascavel.
Então Fabiano resolveu matá-la. Foi buscar a espingarda de pederneira, lixou-a, limpou-a com o saca-trapo
e fez tenção de carregá-la bem para a cachorra não sofrer muito.
Sinhá Vitória fechou-se na camarinha, rebocando os meninos assustados, que adivinhavam desgraça e não
se cansavam de repetir a mesma pergunta:
– Vão bulir com a Baleia?
Tinham visto o chumbeiro e o polvarinho, os modos de Fabiano afligiam-nos, davam-lhes a suspeita de que
Baleia corria perigo.
Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem dizer não se diferenciavam,
rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo, ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.
Quiseram mexer na taramela e abrir a porta, mas sinhá vitória levou-os para a cama de varas, deitou-os e
esforçou-se por tapar-lhes os ouvidos: prendeu a cabeça do mais velho entre as coxas e espalmou as mãos nas
orelhas do segundo. Como os pequenos resistissem, aperreou-se e tratou de subjugá-los, resmungando com
energia.
Ela também tinha o coração pesado, mas resignava-se: naturalmente a decisão de Fabiano era necessária e
justa. Pobre da Baleia.
Escutou, ouviu o rumor do chumbo que se derramava no cano da arma, as pancadas surdas da vareta na
bucha. Suspirou. Coitadinha da Baleia.
Os meninos começaram a gritar e a espernear. E como sinhá Vitória tinha relaxado os músculos, deixou
escapar o mais taludo e soltou uma praga:
– Capeta excomungado.
Na luta que travou para segurar de novo o filho rebelde, zangou-se de verdade. Safadinho. Atirou um
cocorote ao crânio enrolado na coberta vermelha e na saia de ramagens.
Pouco a pouco a cólera diminuiu, e sinhá Vitória, embalando as crianças, enjoou-se da cadela achacada,
gargarejou muxoxos e nomes feios. Bicho nojento, babão. Inconveniência deixar cachorro doido solto em casa. Mas
compreendia que estava sendo severa demais, achava difícil Baleia endoidecer e lamentava que o marido não
houvesse esperado mais um dia para ver se realmente a execução era indispensável.
Nesse momento Fabiano andava no copiar, batendo castanholas com os dedos. Sinhá Vitória encolheu o pescoço e
tentou encostar os ombros às orelhas. Como isto era impossível, levantou um pedaço da cabeça.
Fabiano percorreu o alpendre, olhando as barúna e as porteiras, açulando um cão invisível contra animais
invisíveis:
-Ecô! ecô!
Em seguida entrou na sala, atravessou o corredor e chegou à janela baixa da cozinha. Examinou o terreiro,
viu Baleia coçando-se a e esfregar as peladuras no pé de turco, levou a espingarda ao rosto. A cachorra espiou o
dono desconfiada, enroscou-se no tronco e foi-se desviando, até ficar no outro lado da árvore, agachada e arisca,
mostrando apenas as pupilas negras. Aborrecido com esta manobra, Fabiano saltou a janela, esgueirou-se ao longo
da cerca do curral, deteve-se no mourão do canto e levou de novo a arma ao rosto. Como o animal estivesse de
frente e não apresentasse bom alvo, adiantou-se mais alguns passos. Ao chegar às catingueiras, modificou a
pontaria e puxou o gatilho. A carga alcançou os quartos de Baleia, que se pôs latir desesperadamente.
Ouvindo o tiro e os latidos, sinhá Vitória pegou-se à Virgem Maria e os meninos rolaram na caca chorando
alto. Fabiano recolheu-se.
E Baleia fugiu precipitada, rodeou o barreiro, entrou no quintalzinho da esquerda, passou rente aos craveiros
e às panelas de losna, meteu-se por um buraco da cerca e ganhou o pátio, correndo em três pés. Dirigiu-se ao
copiar, mas temeu encontrar Fabiano e afastou-se para o chiqueiro das cabras. Demorou-se aí por um instante, meio
desorientada, saiu depois sem destino, aos pulos.
Defronte do carro de bois faltou-lhe a perna traseira. E, perdendo muito sangue, andou como gente em dois
pés, arrastando com dificuldade a parte posterior do corpo. Quis recuar e esconder-se debaixo do carro, mas teve
medo da roda.
Encaminhou-se aos juazeiros. Sob a raiz de um deles havia uma barroca macia e funda. Gostava de espojar-
se ali: cobria-se de poeira, evitava as moscas e os mosquitos, e quando se levantava, tinha as folhas e gravetos
colados às feridas, era um bicho diferente dos outros. Caiu antes de alcançar essa cova arredada. Tentou erguer-se,
endireitou a cabeça e estirou as pernas dianteira, mas o resto do corpo ficou deitado de banda. Nesta posição
torcida, mexeu-se a custo, ralando as patas, cravando as unhas no chão, agarrando-se nos seixos miúdos. Afinal
esmoreceu e aquietou-se junto às pedras onde os meninos jogavam cobras mortas. Uma sede horrível queimava-lhe
a garganta. Procurou ver as pernas e não as distinguiu: um nevoeiro impedia-lhe a visão. Pôs-se a latir e desejou
morder Fabiano. Realmente não latina: uivava baixinho, e os uivos iam diminuindo, tomavam-se quase
imperceptíveis.
Como o sol a encandeasse, conseguiu adiantar-se umas polegadas e escondeu-se numa nesga de sombra
que ladeava a pedra.
Olhou-se de novo, aflita. Que lhe estaria acontecendo? O nevoeiro engrossava e aproximava-se.
Sentiu o cheiro bom dos preás que desciam do morro, mas o cheiro vinha fraco e havia nele partículas de outros
viventes. Parecia que o morro se tinha distanciado muito. Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente, com vontade
de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e corriam em liberdade.
Começou a arquejar penosamente, fingindo ladrar. Passou a língua pelos beiços torrados e não experimentou
nenhum prazer. O olfato cada vez mais se embotava: certamente os preás tinha fugido.
Esqueceu-os e de novo lhe veio o desejo de morder Fabiano, que lhe apareceu diante dos olhos meio
vidrados, com um objeto esquisito na mão. Não conhecia o objeto, mas pôs-se a tremer, convencida de que ele
encerrava surpresas desagradáveis. Fez um esforço para desviar-se daquilo e encolher o rabo. Cerrou as pálpebras
pesadas e julgou que o rabo estava encolhido. Não poderia morder Fabiano: tinha nascido perto dele, numa
camarinha, sob a cama de varas, e consumira a existência em submissão, ladrando para juntar o gado quando o
vaqueiro batia palmas.
O objeto desconhecido continuava a ameaçá-la. Conteve a respiração, cobriu os dentes, espiou o inimigo por
baixo das pestanas caídas. Ficou assim algum tempo, depois sossegou. Fabiano e a coisa perigosa tinham-se
sumido.
Abriu os olhos a custo. Agora havia uma grande escuridão, com certeza o sol desaparecera. Os chocalhos
das cabras tilintaram para os lados do rio, o fartum do chiqueiro espalhou-se pela vizinhança.
Baleia assustou-se. Que faziam aqueles animais soltos de noite? A obrigação dela era levantar-se, conduzi-
los ao bebedouro. Franziu as ventas, procurando distinguir os meninos. Estranhou a ausência deles.
Não se lembrava de Fabiano. Tinha havido um desastre, mas Baleia não atribuía a esse desastre a
importância em que se achava nem percebia que estava livre de responsabilidades.
Uma angústia apertou-lhe o pequeno coração. Precisava vigiar cabras: àquela hora cheiros de suçuarana
deviam andar pelas ribanceiras, rondar as moitas afastadas. Felizmente os meninos dormiam na esteira, por baixo
do caritó onde sinhá Vitória guardava o cachimbo.
Uma noite de inverno, gelada e nevoenta, cercava a criaturinha. Silêncio completo, nenhum sinal de vida nos
arredores. O galo velho não cantava no poleiro, nem Fabiano roncava na cama de varas. Estes sons não
interessavam Baleia, mas quando o galo batia as asas e Fabiano se virava, emanações familiares revelavam-lhe a
presença deles. Agora parecia que a fazenda se tinha despovoado.
Baleia respirava depressa, a boca aberta, os queixos desgovernados, a língua pendente e insensível. Não
sabia o que tinha sucedido. O estrondo, a pancada que recebera no quarto e a viagem difícil no barreiro ao fim do
pátio desvaneciam-se no seu espírito.
Provavelmente estava na cozinha, entre as pedras que serviam de trempe. Antes de se deitar, sinhá Vitória
retirava dali os carvões e a cinza, varria com um molho de vassourinha o chão queimado, e aquilo ficava um bom
lugar para cachorro descansar. O calor afugentava as pulgas, a terra se amaciava. E, findos os cochilos, numerosos
preás corriam e saltavam, um formigueiro de preás invadia a cozinha.
A tremura subia, deixava a barriga e chegava ao peito de Baleia. Do outro peito para trás era tudo
insensibilidade e esquecimento. Mas o resto do corpo se arrepiava, espinhos de mandacaru penetravam na carne
meio comida pela doença.
Baleia encostava a cabecinha fatigada na pedra. A pedra estava fria, certamente sinhá Vitória tinha deixado
o fogo apagar-se muito cedo.
Baleia queria dormir. Acordaria feliz, num mundo cheio de preás. E lamberia as mãos de Fabiano, um Fabiano
enorme. As crianças se espojariam com ela, rolariam com ela num pátio enorme, num chiqueiro enorme. O mundo
ficaria todo cheio de preás, gordos, enormes.

Você também pode gostar