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DIR 200 - Hermenêutica Jurídica

Paulo César
Júlia Marques Alves

Aula 1: 20/07/2021

Unidade I - Conceitos preliminares

1) Noção ou sentido da expressão “hermenêutica”

a) Expressões próximas, porém distintas: Hermenêutica, interpretação e exegese

O que é hermenêutica?

O nome da disciplina nos induz em erro, porque não existe hermenêutica jurídica.

Hermenêutica não é teoria da interpretação, mas um traço estrutural da relação do homem com o
mundo, faz parte do modo de existência no mundo histórico sedimentado. Uma teoria é
necessariamente anti-hermenêutica.

A existência é sempre finita em um mundo histórico sedimentado. Ao existir, estamos em


relação com campos de sentido conhecidos pela história que vão determinar cada um dos nossos
comportamentos e pensamentos mundanos. Hermenêutica é a estrutura do mundo que permite
que a existência se estabeleça.

As ciências, para que possam ser esclarecidas a respeito de suas condições, cumprindo com clareza
seu objetivo de investigação com método, devem estar atentas para o aspecto hermenêutico da
realidade. Estudar o seu objeto, levando em consideração o aspecto hermenêutico que permite que
esse objeto apareça enquanto tal. Hermenêutica é a reflexão a respeito do modo que a existência
se desenvolve. As ciências estão sim conectadas à vida. Tudo que existe no interior de uma
época, um contexto, existe imediatamente atrelado a esse mundo, a essa história, a esse tempo.

A hermenêutica deixa em evidência, chama atenção, lança luz para esse mundo histórico no qual
a existência se desenvolve. Existe um mundo histórico que determina todo e qualquer
comportamento no seu interior. O mundo histórico nos fornece condições de possibilidade.
Hermenêutica é a relação da existência com o mundo histórico.

Hermenêutica é um gênero, uma disciplina, que tem como espécies a interpretação. A


interpretação é uma espécie que pode ser abarcada no grande gênero da hermenêutica.

1
O que é interpretação?

Interpretação é uma teoria que se dedica a construir um modo de realização da compreensão.


Tentativa de trazer algo a compreensão, tornar algo compreensível. Justamente pelo fato de a
interpretação buscar compreensão, parte-se, antes de tudo, do incompreendido. No interior da
interpretação e da hermenêutica, o que se encontra em questão é a tentativa de mediação.

O intérprete procura mediar um conteúdo alheio em linguagem própria.1 A hermenêutica e a


interpretação colocam em questão a relação do eu com o outro. Realização de mediação, para
aproximar aquilo que de início está distante/afastado, aproxima o idêntico do diverso. Quando
essa aproximação se cumpre, acontece a compreensão. Compreensão é o resultado da atividade
interpretativa.

O que é EXEGESE?

Exegese tem sua origem no grego ex-gestain, que diz respeito a trazer algo para a clareza, trazer
algo escondido para a compreensão. Exegese é esclarecimento, desdobramento, tornar exposto
aquilo que estava escondido. A interpretação é o esforço para conseguir a compreensão, então seu
ponto de partida deve ser uma exegese, normalmente textual - esclarecimento de palavras. Exegese
é uma etapa para que a interpretação aconteça.

b) Raiz grega da expressão hermenêutica :hermenêutica tem raízes em duas expressões gregas:
hermeneuien (verbo) e hermeneias (substantivo).2

c) Jean Grondin: sentidos possíveis

Jean Grodin ainda esclarece que essas palavras têm um campo semântico com três sentidos
específicos: enunciar, declarar e explicar/esclarecer.

A hermenêutica sempre coloca em relação pensamento e linguagem. Se faz necessária para


permitir que o pensamento consiga, superando um déficit, na maior medida possível, se
expressar em linguagem.

Enunciar e declarar estabelecem relação entre pensamento e linguagem, do primeiro para o


segundo, de dentro para fora. Já explicar/esclarecer tem movimento distinto, parte de um

1
Hermenêutica desde o começo esteve atrelada ao mistério, ao aspecto religioso - sacerdote religioso está em contato
com os deuses para trazer suas mensagens, realizando uma função de mediação.
2
Alguns filósofos afirmam que o radical aponta para a figura do deus grego Hermes, que recolhia mensagens dos
deuses e levava aos homens, foi, assim, o primeiro mediador, que tentava enunciar uma mensagem que até então todos
não tinham acesso.

2
conteúdo linguístico enunciado, procurando desdobrá-lo, do exterior, da linguagem, para
procurar o conteúdo de sentido.

d) Raiz grega da expressão exegese: ex-gestain

e) Raiz latina da expressão interpretação: inter-praetatio.

A palavra interpretação tem também uma origem religiosa através da fonte latina/romana. Palavra
inter-praetatio que significa ENTRE PARTES.3 O intérprete é aquele que torna algo
compreensível, a partir de uma habilidade de ler nas entrelinhas, nas entranhas.

Hermenêutica é um gênero, uma relação do homem com o mundo. Interpretação é uma técnica que
procura o esclarecimento para alcançar a compreensão por meio do sentido, que se manifesta
linguisticamente.

f) Da inexistência de uma Hermenêutica Jurídica enquanto disciplina: técnica de


interpretação, de aplicação e de integração do direito

A expressão “hermenêutica jurídica” é contraditória. Por ser técnica, jamais poderia ser
hermenêutica, porque essa é anti-técnica, só mostra o caráter histórico da técnica. É
anti-teórica, quer mostrar os fundamentos/condições que permitem a colocação da pergunta,
as condições de possibilidade do aparecimento da pergunta. Como a pergunta é possível? Quais
condições históricas permitiriam que ela surgisse?

O que se chama de hermenêutica jurídica é uma técnica de integração/interpretação/aplicação do


Direito.

Interpretar o Direito (Carlos Maximiliano): definir o sentido e o alcance da norma jurídica. O


conteúdo de uma norma é um direito, um dever ou uma sanção. Interpretar o Direito é fixar o
sentido e o alcance (quais situações fáticas podem receber esse sentido? Até onde o texto chega?
Abarca quais fatos?) da norma.

Aplicar o Direito: toda aplicação envolve decisão, aplicar é decidir. Decisão envolve vontade
(Aristóteles). A vontade é racional, e deve ser justificada/motivada/fundamentada. Aplicar o direito
significa decidir volutaristicamente amparado no Direito e nos fatos. 4

Integrar o Direito - resolver as lacunas jurídicas. 5


3
Em Roma existia a figura do algore, o sacerdote romano, na fase pré-clássica do direito romano, que deveria autorizar
o exercício da autorização nos dias hábeis, a partir da análise das entranhas de um corvo.
4
Subsunção: relação entre Direito e os fatos.
5
Antes de tudo é preciso identificar as lacunas. Por que existem lacunas? Existem de fato?
Existe uma figura próxima a da lacuna, que é o silêncio eloquente. Difícil identificação.
3
Hermenêutica jurídica é a garantia que as decisões serão consonantes ao Estado Democrático de
Direito, com motivação e fundamentação.

Aula 2: 27/07/2021

Hermenêutica é uma atividade de mediação que tem por objetivo permitir a compreensão.
Fez-se necessária porque, desde seu nascimento, havia uma relação não plena entre pensamento e
linguagem. A hermenêutica tem por objetivo fazer com a linguagem discursiva em sentido
amplo permitisse fazer ver o pensamento do autor produzido em um contexto histórico
específico.

Características fundamentais do pensamento hermenêutico:

1. Para que a hermenêutica se desenvolva é necessário tomar como ponto de partida o fenômeno
particular inserido na totalidade, ou seja, a hermenêutica sempre lida com a universalização do
particular.. Procura enxergar a relação entre particular e universal, permitindo àquele que este seja
visto. Relação fundamental entre parte e todo: parte sempre permite ver o todo e o todo sempre
se forma pela conjunção de partes.

2. Essa relação entre parte e todo é sempre construída historicamente, ou seja, há um nexo
que permite unir imediatamente parte e todo. Isso faz com que a hermenêutica seja uma relação
entre TEXTO e CONTEXTO. O texto é parte de um contexto e essa relação é sempre mediada
historicamente.

Voltando as expressões etimológicas:

Hermenêutica é uma relação entre pensamento e linguagem. A linguagem se insere na totalidade do


discurso que tem por fundamento o pensamento. Essa relação entre pensamento e linguagem
discursiva se constrói historicamente. Daí a necessidade de um esforço interpretativo para que
aquele que recebe essa expressão possa se reportar ao seu contexto histórico de produção e
permitir que o pensamento do autor possa se fazer presente de maneira mais plena possível no
interior da linguagem discursiva.

2) Situação gnosiológica da disciplina:

Expressão hermenêutica surge no mundo grego, assim como exegese. A partir daí surgiram
modalidades específicas de interpretação que se unificaram com Schleiermacher no séc XIX,
permitindo que a hermenêutica se tornasse uma disciplina que tinha por espécie a interpretação.

4
● Emprego da expressão hermenêutica como gênero gnosiológico: Danhauer e Claudenius -
séculos XVII e XVIII - hermeneutica generalis.
● Hermenêutica enquanto disciplina autônoma e unificada - século XIX - Friederich
Schleiermacher.
○ Unificação das modalidades de interpretação setorizadas: interpretação teológica,
bíblica e literária

UNIDADE II - História da Hermenêutica6

1) Situação Histórica Inicial: as interpretações setorizadas

Savigny7 é o pai da hermenêutica jurídica, uma vez que procurou adaptar as teses de
Schleiermacher, a Hermenêutica Clássica, ao Direito.

Já Schleiermacher foi considerado o pai da hermenêutica, porque trouxe autonomia


epistemológica à disciplina. Antes dele, existiam correntes interpretativas esparsas/fragmentadas/
autónomas, e, quando se falava em interpretação, se discutia uma técnica para lidar com objeto
específico, sobretudo quando apresentasse dificuldades ao seu intérprete

A hermenêutica surge entre os gregos e vai até Schleiermacher marcada pela característica de ser
uma técnica para que o intérprete decifrasse o fenômeno entendido a partir das características
pontuais e particulares desse objeto. O objeto pautava o modo adequado de se compreendê-lo.

Com Schleiermacher tudo muda de figura. Ele constrói uma disciplina universal chamada
hermenêutica para compreensão de todo e qualquer tipo de discurso, independentemente de
suas características, seja oral ou escrito.

Antes, existiam três grandes correntes/modalidades interpretativas: bíblica, jurídica e


filológica/literária (textos clássicos, sobretudo de filosofia grega). Cada uma dessas permitiria
uma técnica apta a encarar esse objeto pontual em questão.

Platão: oráculo de delfos, pitonisas; musas, poesia e rapsódia

A primeira teoria interpretativa surge no mundo grego, intimamente abraçada com o


contexto religioso. A hermenêutica surge no contexto religioso, no interior das tradições religiosas
do mundo grego.
6
Campo histórico de formação das principais teses hermenêuticas que foram recepcionadas
principalmente no século XIX a partir daquilo que se convencionou chamar de hermenêutica
jurídica.
7
Se insere na terceira fase do romantismo alemão.

5
Essa tradição religiosa é encontrada sobretudo em Platão, nos diálogos Íon e Fedro. No primeiro,
discute-se a beleza e a arte em sentido amplo; no segundo, mediação e como a beleza permite a
verdade. Os dois diálogos tem temática semelhante - arte, verdade e teoria interpretativas.

Tese platônica: Platão, e a tradição grega em geral, defendem que o intérprete tem papel
secundário. No caso dos poetas, esses são a todo instante tocados pelas musas - somente escreve
porque é inspirado pelos deuses/musas.

Aristóteles diz que a poesia é mais universal do que a história. História para o grego é a
narrativa dos grandes feitos heróicos, das grandes personalidades do mundo grego, recontava fatos
grandiosos que tinham por finalidade despertar vocação cívica, mostrar a tradição da polis. A
poesia tinha um caráter universal, porque o poeta é aquele que se valia do logos, da palavra,
para permitir ver a ideia.

Para Platão8, não tem como a linguagem discursiva/poética em sentido amplo se articular se não
houver campos ideais. Quando se fala, discursivamente se movimenta o campo das ideias.
Logos tinos significa falar sobre alguma coisa, e aquilo de que se fala aparece em meio a palavra.
Ainda que se faça de forma deficitária, se diz sempre. Quando se diz, o dito toma corpo em meio a
linguagem. Logos é palavra articulada.

A poesia é universal porque articula o universal, a ideia, formas eidéticas, essenciais,


essências. Poesia nunca é algo puramente subjetivo, mas articulação de campos ideias, é por isso
mais universal do que a história, mera reconstrução de fatos que se deram no mundo empírico.

Para Platão, quando o poeta fala, as musas falam por meio dele.

Existia também na literatura grega a figura do intérprete dos poetas, o rapsodo, que recebia os
textos poéticos e procurava transmitir/mediar para uma linguagem popular, acessível a todos.

Para Platão, as artes em sentido amplo sempre são deficitárias, alocadas em um patamar
secundário em relação à filosofia. Artes lidam com as formas sensíveis, cópias, mimesis,
repetições, que nunca são perfeitas, porque o sensível nunca consegue reproduzir perfeitamente
o ideal.

8
Filosofia platônica parte dos fatos para permitir ver a articulação das ideias. Parte da realidade
sensível para ver a articulação do supra sensível/ideal.
Segunda navegação: a partir do sensível, ver, em meio ao sensível, o supra sensível, o racional.

6
Em primeiro vem os filósofos, que lidam com as formas racionais/ideais. Abaixo dele estão os
artistas, que lidam com a manifestação sensível das formas ideias. Ainda abaixo estão os
intérpretes, rapsodos, que traduzem a linguagem artística pro povo em geral.

Através do Platão, lembramos também que a interpretação se relaciona ao contexto religioso. As


pitonisas, sacerdotisas do oráculo de delfos, realizavam interpretação.

A religião grega era dividida em duas vertentes, pública e privada. Pública tinha seus cultos
desenvolvidos na ágora. Privada se realizava em espaços fechados, cuja principal expressão de
deidade era a figura de Hermes. Principal braço teórico era o orfismo, a religião privada grega.

Para os gregos, o modo de se acessar a verdade era através da razão. Para a tradição
misteriosofica, ligada ao orfismo, a verdade era acessível não através da filosofia, mas do culto
religioso. Pitagorismo é uma vertente filosófica que nasce atrelada ao orfismo. Daí surge uma
tradição exoterica (aberta, exógena) e uma tradicao esoterica (se realiza em espaço privado,
acessível apenas a alguns eleitos, círculo fechado)

Na tradição exoterica, na religião pública, os cultos eram realizados abertamente. Um dos cultos
mais populares era ao Deus Apolo, onde surgiam presságios em relação ao sucesso ou insucesso da
batalha, a partir do oráculo de delfos. Era um modo de Apolo transmitir mensagens aos homens,
intermediado pela figura das pitonisas.

Pitonisa era uma mediadora, intermediária entre os deuses e os homens. Para que os homens
tivessem notícias dos céus, precisariam recorrer às pitonisas, que colocavam contextos de sentido
em relação. Homens não tinham acesso a mensagem divina por conta própria, precisavam dessa
técnica exercida pela pitonisa. Assim, a tradição religiosa permitiu o surgimento da figura do
intérprete. Assim como a tradição artística poética de Platão permitiu a figura do intérprete
através da técnica do rapsodo.

A rapsódia e a tradição délfica são as origens da teoria da interpretação. Nasce com a religião,
se transmite a arte.

Aristóteles: peri hermeneias - Órganon e logos apophanticos

A primeira manifestação científica de uma teoria da interpretação surgiu com Aristóteles,


primeiro filósofo a adotar a teoria interpretativa de dignidade epistemológica, estatuto científico.

7
Desenvolve a tese de logos apofânticos, a predicação de caráter científico, a linguagem que
articula essências. Predicação é a atribuição de uma essência a uma base9 que é capaz de
sustentá-la. Em seu interior, existe uma relação entre essência e linguagem.

Aristóteles desenvolve uma técnica10 que permite que aquele que lida com o logos apofântico tenha
maior clareza a respeito do processo de predicação.

Interpretação significa clarificação do discurso para que permita-se ver o pensamento em


questão. Para que eu consiga ver a essência com mais facilidade, preciso me valer de uma técnica
chamada interpretação. Técnica científica de interpretação. A interpretação é uma técnica
secundária, feita para que as ciências elevadas possam se desenvolver.

A partir dessas raízes podemos ver a interpretação em contexto religioso, interpretação em torno da
arte, interpretação em torno da técnica que permite relação entre pensamento e linguagem.

Sem essas reflexões iniciais de Platão e Aristóteles, não seria possível desenvolver as três
modalidades de interpretação setorizadas. A base teórica que permitiu o nascimento de uma teoria
da interpretação é grega.

Essa técnica grega é a certidão do nascimento das três modalidades de interpretação que surgem
a partir daí: religiosa, jurídica e literária/filológica.

2) Interpretação Religiosa

Toda interpretação religiosa nasce com a pretensão de, a partir do discurso religioso, se pudesse
ter acesso a mensagem sagrada veiculada por Deus ou deuses.

a) Tradição judaíco-cristã: a primazia do texto

A interpretação religiosa, pensada de forma racional, surge com o judaísmo. É a primeira corrente
religiosa a refletir a respeito do modo adequado de lida com seus textos sagrados, para que, a
partir deles, a mensagem sagrada viesse à presença.

Essa técnica ganha expertise racional quando surge o cristianismo enquanto religião articulada e
procura-se conciliar as teses da filosofia grega com a fé cristã.

9
Eipokamenon: aquele que tem capacidade de sustentar uma essência. A filosofia moderna
transforma eipokamenon em sujeito, atualização do contexto aristotélico
10
Desenvolve-a no apêndice do livro “Organon”, que se chama "Peri hermeneias/da interpretação"
- apresenta técnicas de clarificação da linguagem científica para que a predicação possa ser vista
com mais clareza.
8
b) Patrística: conciliação entre conhecimento e fé

Quando o império romano assume o critianismo como religião oficial, esta torna-se uma política de
estado. A igreja se articula enquanto uma instituição religiosa e política, e o cristianimo
absorve técnicas da república do Império Romnao: estruturação do poder, hierarquização
política. A Igreja também passa a produzir as fontes de suas regras - costumes e decisões dos
membros da igreja, em concílios e sínodos.11 No interior dessas reuniões, os textos são
interpretados.

PATRÍSTICA surge como corrente de pensamento que tem por meta conciliar a iluminação da fé
com as teses racionais da filosofia grega.

Filon de Alexandria e Orígenes: a interpretação alegórica e a tipologia

A primeira tradição religiosa no interior da patrística é aberta por Filon de Alexandria, primeiro a
desenvolver uma técnica de interpretação da bíblia, que ele chama de alegorese, teoria
alegórica da interpretação.

Defende que o texto deve sim ser recepcionado em sua literalidade, mas a mensagem da salvação
está sempre para além do texto, da técnica literal. É necessário ler o texto procurando elementos
para além do texto. Tomavam o texto bíblico como se fosse repleto de alegorias. Alegorese é a
procura da mensagem oculta no texto a partir da lida com a sua literalidade. Busca pelo
oculto, que é o responsável por permitir a salvação dos indivíduos. Parte do texto para procurar
uma mensagem mais profunda, que se daria quando se conseguisse conciliar o antigo testamento
com o novo testamento.

Contudo, essa capacidade de ler nas entrelinhas não era dada a todos, só conseguiria ser
acessível aqueles iniciados nos mistérios da fé cristã, os membros do clero. Só os membros do
clero eram tocados de uma forma autêntica pela fé e poderiam interpretar os textos para decifrar os
mistérios do sagrado. Aí se desenvolve o monopólio da interpretação das escrituras, que marca
toda a tradição inicial do cristianimo, o que só é revertido com a reforma protestante.

A segunda expressão teórica da patrística é Orígenes, que desenvolve uma técnica interpretativa
chamada TIPOLOGIA. Diz que quando você se encontra diante de uma passagem difícil de ser
entendido, é preciso lê-la a partir da chave “vinda do Cristo”. Utilizam o conceito platônico de
parusia (amostração sensível da ideia) em relação ao retorno de cristo a terra

Santo Agostinho: da Doutrina Trinitária: intellige ur credas, crede et intelligas

11
Concílios eram reuniões dos bispos. Sínodos eram reuniões mais abertas dos membros da igreja.
9
A grande expressão da patrística é Santo Agostinho, um dos grandes teóricos da igreja. Santo
Agostinho leva a tese da interpretação orientada pela fé as últimas consequências, conciliando
fé e conhecimento (entender para crer e crer para entender).

O homem tem compreensão finita, porque é marcado pelo pecado original. Para que consiga ter
acesso à verdade, é necessário que Deus intervenha e permita que ele tenha condições de
entender algo. A razão humana tem um teto, um limite, e esse só pode ser transposto em
termos de acesso à verdade por meio da FÉ. Só o clero tem acesso à verdade.

c) Lutero:

Relação entre corpus e membra - o círculo hermenêutico e a retórica antiga; princípio da sola
scriptura - sui ipsus interpres; requisição entre contextus e scopus, a iluminação e a
necessidade de graça da fé

Lutero é o autor que contesta o acesso à verdade por parte do fiel através da mediação do
corpo burocrático da igreja. Contesta a tese de que só os membros da igreja tem palavra
interpretativa em relação às escrituras

O texto religioso é interpretável por si mesmo. Daí, para que o fiel tenha acesso à verdade,
basta a lida com o texto bíblico, não é preciso recorrer a um corpo religioso para que tenha acesso
a mensagem e a salvação. Sozinho, a partir do texto, tem condição de ter acesso à verdade cristã.

Lutero resgata a figura da retórica medieval para permitir que o fiel tenha acesso à verdade
através do texto. Tese do círculo interpretativo ou círculo hermenêutico. Círculo
hermenêutico, nesse contexto, é a relação entre parte e todo.

Lutero é o primeiro a resgatar a primeira característica da hermenêutica, a relação entre


parte e todo. Por isso a reforma protestante é fundamental para a história da hermenêutica.

Para entender uma passagem setorizada do texto tenho que ler todo o contexto linguístico que
envolve aquele texto. Ir da parte para chegar o todo, e entender o todo a partir de cada uma
das suas partes. Relação entre membro e totalidade, corpus e membra. Quando essa relação entre
parte e todo fosse analisada em cada um dos seus aspectos, o sentido da mensagem bíblica viria a
presença.

10
Contudo, para que essa mensagem viesse a presença, era necessária também a fé. O fiel teria
condição de ter acesso a mensagem cristã através da graça da iluminação.12

A reforma protestante é fundamental para Schleiermacher desenvolver a hermenêutica clássica,


porque se toma a interpretação de um texto sagrado da mesma forma de um texto
profano.Não há diferença de texto, a técnica de lida é a mesma.

Schleiermacher aborda algo que Lutero não percebe, o caráter histórico do nexo que liga
parte e todo. Lutero não percebeu que a bíblia é um texto reunindo textos produzidos em distintos
contextos históricos. Schleiermacher viu a importância da história para a hermenêutica. A
principal crítica a teoria de Lutero é a ausência de distinção temporal, de consciência
histórica entre os contextos de produção dos textos da bíblia.

Dúvidas

- Para Platão, interpretação significa duas coisas. Tem origem mítica - pitonisas -, em contexto
religioso. A interpretação é técnica que o rapsodo utiliza para decifrar as poesias para a
população
Para Aristóteles, a interpretação é uma técnica com estatuto científico. É necessário uma técnica
para entender a preposição, por meio da interpretação. Técnica de clarificação da linguagem para
que o pensamento do autor do texto apareça.

- Hermenêutica e interpretação são conceitos muitos próximos, e antes do Schleiermacher eram


tomados de forma indistinta. Atividade de mediação que permite compreensão. A palavra
interpretação não existia no mundo grego, que falava ou hermenêutica ou exegese. Exegese como
um ato de clarificação de preposição. Hermenêutica é atividade interpretativa em sentido amplo. A
palavra interpretação só surge em Roma
Interpretação, hermenêutica e exegese são termos usados sem muita distinção até Schleiermacher.
Com Schleiermacher, isso se estrutura, hermenêutica passa a ser uma ciência, a arte da
compreensão, e para que cumpra seu objetivo são necessárias exegese - atividade mais básica de
clarificação - e interpretação - técnica gramatical e divinatória com métodos específicos que
permitem a compreensão.
Savigny utiliza a expressão hermenêutica e transpô-la no mundo jurídico. Chama essa disciplina de
hermenêutica jurídica. Contudo, como a hermenêutica filosófica ficou claro que hermenêutica não
era uma técnica de interpretação, porque passou a designar a relação entre homem e mundo, para

12
Teoria da interpretação bíblica da reforma protestante também é religiosa, porque precisa da
figura de Deus para acesso a mensagem da salvação

11
além da técnica. Por isso a expressão hermenêutica jurídica no séc xxi deveria ser lida como teoria
da interpretação da integração e da aplicação do Direito.

- Logos thymos significa literalmente “palavra de”, que mostra a relação indissociável entre
palavra e apalavrado. A Palavra sempre remete a ideia que toma corpo pela palavra. Palavras
sempre apontam para essências. Filosofia para Platão é diminuir a distância entre logos e physis,
fazer com que, a partir do discurso, as coisas possam aparecer.

Aula 3: 03/08/2021

Schleiermacher e a formação da Hermenêutica Clássica

Schleiermacher é o pai da hermenêutica epistemológica, foi o primeiro que pensou a hermenêutica


na forma de uma ciência. O objetivo da hermenêutica clássica é justamente lançar as bases
científicas e metodológicas que estruturam o pensamento hermenêutico como um todo.

Interpretações setorizadas são modalidades em que o objeto pauta o modo adequado de se


desenvolver interpretação. Essas modalidades pautem todo o modo de se desenvolver uma teoria da
interpretação até o século XIX. Com Schleiermacher essas modalidades setorizadas são
unificadas na formação de uma ciência hermenêutica.

A despeito de tentativas de se criar uma hermenêutica epistemológica terem acontecido antes de


Schleiermacher (Danhauer e Claudenius, Aristóteles), foi ele que desenvolveu a ciência
hermenêutica e hermenêutica em sentido amplo. O século XIX permite a formação da hermenêutica
epistemológica, aqui chamada de hermenêutica clássica.

O que é hermenêutica clássica?

Disciplina que surge no século XIX a partir do trabalho de Schleiermacher, que procura criar uma
ciência interpretativa unificando as técnicas esparsas setorizadas observadas antes. Ao invés
do intérprete se pautar pelo objeto específico, se pensa em uma técnica/ciência metodológica que se
aplicaria a todo e qualquer tipo de objeto possível. Tentativa de se pensar numa estrutura
metodológica-científica que se aplicaria a todo e qualquer tipo de objeto possível.

A hermenêutica clássica é um gênero que comporta duas espécies: romântica e historicista

12
Hermenêutica Clássico-Romântica

Para Schleiermacher o objetivo da hermenêutica como um todo é garantir a compreensão. Esse


objetivo de compreender passa a ter um sentido distinto. Arte da compreensão significa entender
o autor melhor do que ele mesmo.

Por outro lado, o objeto dessa disciplina é diferente do objeto até então visualizado no interior das
distintas modalidades de interpretação. Não é mais o objeto texto bíblico, direito, etc, mas o
discurso em geral, independentemente de sua natureza ou conteúdo. Todo e qualquer tipo de
discurso, oral, narrado, escrito, historiográfico, etc. O objetivo fundamental é alcançar a unificação
das modalidades esparsas de interpretação

13
Interpretação laxa e interpretação austera

A interpretação antes de Schleiermacher era pensada como uma arte de esclarecimento de textos
obscuros. Se verificava com mais clareza quando o intérprete se deparasse com passagens que
gerassem mal entendido. Ou seja, era requisitada diante de uma passagem textual obscura.

Para Schleiermacher, a partir das teses do iluminismo, esse tipo de interpretação é laxa,
descuidada, não tem segurança, porque só se preocupa em compreender adequadamente
quando se depara com a não compreensão.

O ponto de partida deve ser exatamente a atenção que a razão deve ter com a atividade
interpretativa, sobretudo em relação aos preconceitos que circundam ao intérprete. Essa é tese
típica de modernidade filosófica, como no pensamento cartesiano14.

Na proposta de Schleiermacher, temos que quebrar o preconceito de que a correta interpretação


só se faria exigível quando não compreendesse. Intérprete deve se vigiar desde o início da
atividade interpretativa, para que desde o começo tivesse atenção à atividade e o resultado
pudesse ser certo, seguro e indubitável.

13
Schleiermacher tem influência do iluminismo e do romantismo alemão. Isso se verifica no modo
peculiar como ele observa/analisa a atividade interpretativa.
14
Possibilidade do erro, produto da falta de conciliação entre a razão humana finita e a vontade
humana infinita. O erro se manifesta em dois tipos de preconceitos, segundo Descartes, por
precipitação e por autoridade. Preconceito por autoridade se dá quando aquele que procura
compreender algo se pauta a partir dos argumentos de autoridade. O preconceito por precipitação
é o modo de realização filosófica que se faz para além do método, aquele que acredita que a
realidade exterior existe por si mesmo. Pré-conceito da existência natural do mundo exterior. Esse
sistema de crítica dos preconceitos através da razão permeia toda a ciência moderna.
13
Interpretação austera é uma atividade interpretativa em que o intérprete está ciente do risco
de os preconceitos contaminarem a atividade. Atenção ao método para não cair nos mesmos
vícios da interpretação laxa. Interpretação austera tem consciência de sua atividade desde o começo.

Schleiermacher aponta as principais falhas das modalidades interpretativas anteriores, sobretudo da


hermenêutica bíblica.

Duas são as características fundamentais de todo e qualquer tradição de pensamento hermenêutico:

1. O fenômeno só é completamente entendido a partir do momento em que é visto a luz


da totalidade da sua vida, percepção de que se insere em um todo maior. Pensar
hermeneuticamente é ver a parte na sua particularidade e perceber que esta está
imediatamente articulada com uma totalidade. Essa tese se desenvolveu na hermenêutica
luterana. Lutero utiliza o círculo hermenêutico para analisar passagens bíblicas - relação de
parte e todo.

A diferença de Schleiermacher e Lutero é que ele aponta um ponto marcado por uma
ingenuidade. Lutero não percebeu que a Bíblia é antes de tudo também um texto histórico,
composto por passagens que foram escritas em contextos históricos diferentes. O recurso da fé
havia apagado as peculiaridades históricas envolvidas no texto bíblico. Schleiermacher chama
atenção para a segunda característica fundamental.

2. Esse nexo entre parte e todo é construído historicamente. Para que a interpretação
austera se desenvolva, é preciso superar o preconceito que não consegue perceber a distância
histórica de texto e presente. Necessidade de perceber relação imediata entre texto e
contexto.

Técnica científico-filosófica da modernidade se desenvolve sobretudo a partir de dois grandes


métodos, dedutivo (racionalismo) e indutivo (empirismo). O romantismo alemão quer resgatar a
importância da intuição como elemento de acesso à verdade e mediação do conhecimento. É
necessário perceber a importância da história no processo de compreensão. 15

Para entender o autor, é necessário encontrar um modo de acesso ao contexto originário da


redação do texto. É necessário que o intervalo que separa passado e presente seja superado, para
que a compreensão como arte possa acontecer. Schleiermacher tenha uma saída pra isso, que ele
chama de estética da congenialidade.

15
Isso é peculiar na relação hermenêutica (relação entre parte e todo e vínculo histórico). Distância
temporal ou consciência histórica. Gardemar usa isso para chamar atenção para a importância da
história no interior da hermenêutica.
14
Outra influência do iluminismo no interior da hermenêutica clássica romântica é justamente
resgatar a importância do método. Schleiermacher pensa a hermenêutica como ciência
desenvolvida em duas espécies de interpretação: gramatical e psicológica. Essas duas modalidades
devem ser realizadas conjuntamente, se desenvolvem necessariamente de forma metodológica.
Fora do método, não há como obter compreensão.16

Para que as duas modalidades de interpretação se conciliem para obtenção da arte da compreensão,
é necessário que se utilizem métodos específicos.

Quais são essas etapas a serem percorridas pelo intérprete?

Círculo hermenêutico; Coetaneidade; Estética da congenialidade ou a retomada do princípio


estruturante da obra a partir da chamada estética do gênio ou salto hermenêutico

Círculo hermenêutico: suspensão dos preconceitos.

Assim como a hermenêutica bíblica, o ponto de partida é o discurso, por uma interpretação
gramatical que consiga superar preconceitos através do método do círculo hermenêutico.

Para Schleiermacher, o círculo hermenêutico é utilizado no interior da interpretação gramatical


para garantir a superação dos preconceitos. Isso significa entender aquela modalidade do
texto inserida no todo do gênero linguístico daquele texto - o nexo que une parte e todo. Além
disso, também é preciso perceber que a vida do autor é fundamental para que se entenda seu
texto. Analisar a importância da articulação da vida do autor em relação à obra.

O círculo hermenêutico, apesar de ser um método importante, apresenta uma limitação denominada
circularidade viciosa: qual tem mais importância, o todo ou a parte?

Sendo assim, diante da viciosidade, para que a interpretação gramatical cumpra seu objetivo,
precisa do auxílio da interpretação psicológica.

A interpretação psicológica/divinatória permite superar a viciosidade do círculo hermenêutico


a partir da utilização da estética da congenialidade.

16
Essa mesma característica chega à hermenêutica jurídica clássica, de Savigny, influenciado de
perto pelo pensamento de Schleiermacher. Savigny resgata as teses de Schleiermacher para
desenvolver uma hermenêutica jurídica clássica, que se vale dos distintos métodos de interpretação
(gramatical, lógico sistemático, histórico e teleológico) para acesso ao sentido compreendido, a
verdade da compreensão
15
A estética da congenialidade significa, então, que o intérprete vai se valer do gesto heroico de
saltar ao passado e obter assim a coetaneidade17. A estética da congenialidade é uma etapa que
se desenvolve no interior da hermenêutica psicológica, que vai permitir que o intérprete volte
ao contexto de produção do texto, e consiga articular a obra por dentro.

Gênio, no interior do romantismo alemão, é aquele que tem a capacidade de criar a partir do
nada, sobretudo, aquele que consiga se valer da linguagem convencional para utilizá-la de
modo até então não observado, utilizando formas linguísticas de modo autêntico. Para
Schleiermacher, o autor que está no passado é o gênio - inovou no uso da linguagem. O
intérprete tem obrigação de desenvolver um gesto heróico, sendo tão genial quanto o criador
da obra. Estética da congenialidade significa conversa entre gênios.

O intérprete consegue ser genial a partir do momento em que se lança para a obra
procurando o estilo do autor, que sempre aparece intuitivamente. O gênio tem sua marca, o seu
estilo (traço específico particular que cabe a cada um). O intérprete detecta o estilo de um
artista a partir de tentativa e erro, aparece intuitivamente pela leitura do texto. A partir do
momento em que o intérprete detecta o estilo do autor, continuaria até a redação da obra por
conta própria. Isso é entender o autor melhor do que ele mesmo. Só a posse do estilo permite
suplantar a distância temporal que separa intérprete e autor.

Interpretação psicológica é o modo de adentrar a psique do autor através da análise do seu


estilo. A interpretação psicológica desenvolve a necessidade de entender o autor, captar o
pensamento que se desenvolve no seu estilo.

Essa tese tem inúmeras críticas.

● O primeiro ponto de contestação é a ideia da distância temporal. Schleiermacher diz que


passado está atrás, Gadamer diz que não, o passado está aqui, não há distância temporal
porque o passado veio até mim através do movimento da história.
● A segunda crítica é que o acesso à psique do autor através do salto congenial. Não tenho
como me lançar ao interior da obra para entender o pensamento do autor, isso é impossível.
A obra está aqui, o que importa é a configuração da obra na sua recepção.

Aula 4: 10/07/2021

Dúvidas

17
Coetâneo significa aquilo que coexiste temporalmente.
16
- Interpretação gramatical versus interpretação psicológica

Interpretação gramatical: analisa a estrutura linguística através do círculo interpretativo, espécie


discursiva inserida no todo da língua, procurando relacionar parte e todo.

Interpretação psicológica: uma vez identificados os limites da gramática procura captar o estilo de
outra forma, pela apreensão intuitiva do modo específico como o autor utilizou a linguagem.
Captar o estilo, o pensamento, a ideia, a intenção de redação almejada pelo autor do discurso.

- Claudenius e Danhauer são os primeiros a levantarem a ideia a respeito da necessidade de se


pensar uma hermenêutica unificada. Primeiro a utilizar a expressão hermenêutica para chamar
atenção para uma disciplina que unificaria as interpretações setorizadas.

- Erro do Schleiermacher foi tentar eliminar a distância entre autor e intérprete pela coetaneidade.
Valoriza o presente, não o passado.

4) Hermenêutica Clássica: o Historicismo Alemão - Wilhelm Dilthey

Hermenêutica Clássica-Histórica

Hermenêutica Clássica surge com a pretensão de unificação das interpretações a partir da criação de
uma disciplina chamada hermenêutica. Essa pretensão metodológica aparece primeiro com
Schleiermacher e depois com o historicismo alemão, corrente de pensamento que procura
questionar as teses do idealismo alemão18 e levar adiante seus questionamentos em relação a
história.

b) Historicismo alemão do século XIX: Gustav Droysen, Leopold Von Ranke, Wilhelm
Dilthey.

A principal característica dos dois primeiros autores do historicismo alemão é a necessidade


de desenvolvimento de uma ciência da história.

Hegel apontou a necessidade de pensar a história de modo racional, no campo da reflexão filosófica
e da articulação lógica.

O historicismo alemão quer pensar a materialidade da história, o desenvolvimento de uma


ciência da história. A História como um objeto de conhecimento já tinha sido pensada desde o

18
Para Hegel, a história é o plano de desenvolvimento máximo da razão. A história é racional.
Razão se desenvolveria as suas últimas consequências na história. Valorização da histórica no
desenrolar do desenvolvimento do espírito.
17
mundo antigo, como reconstrução de fatos, de grandes narrativas. A partir do historicismo
alemão, história é ciência. Pretensão de dignidade científica estendida a história.

Droysen é o pai da ciência da história. Com ele, história enquanto ciência e objeto de conhecimento
se desenvolveram.

O historicismo tem como projeto pensar a história como grande objeto de conhecimento
estudado a partir de métodos e procedimentos específicos. Para isso, é impossível utilizar as
mesmas categorias das ciências naturais para a história.

O historicismo alemão, ao defender que a história deveria ter método próprio, resgata um projeto do
Jean Batista Vico, que se contrapôs à filosofia cartesiana, dizendo que seu método não se aplicaria
às ciências humanas.

Para Vico, o ponto de partida é o princípio do verum-factum. A natureza não é passível de ser
entendida as últimas consequências, porque ela não foi criada pelo homem, mas por Deus, e o
homem não tem condição de entendê-la, porque tem razão finita. Contudo, o homem tem
condição de entender o mundo humano, porque as criações da humanidade são produtos
humanos, “carne da nossa carne”.

História é uma ciência possível porque seu objeto, mundo histórico, é a narrativa de feitos humanos.
Contudo, para que essa ciência possa se desenvolver, é necessário um método. Essa ciência da
história recebe o nome de HISTORIOGRAFIA.

Historiografia

Sempre toma como objeto de conhecimento o fato histórico, que só podia ser estudado de modo
documental, por meio de uma fonte (papel, pergaminho, contrato, escultura, notícia, etc, bases
objetivas). Narrativa não serve como prova científica da materialidade do fato histórico19. O objeto
de estudo da historiografia é o fato documentado.

O sujeito que estuda esse fato histórico deve ser neutro, não pode transmitir suas pessoalidades
para seu objeto de estudo. Fazer história é reconstruir, narrar, explicar como o fato histórico se deu,
recompondo a cadeia de causalidade, a partir de um documento, de forma neutra. Uso do método
de descrição neutra. O historiador não pode ter pretensão de transmitir suas opiniões,
impressões, sentimentos, valores, em relação ao seu objeto.

19
Aqui há uma grande ruptura em relação ao passado.
18
20
Droysen antecipa a dicotomia entre juízo de fato e juízo de valor. Aponta que o historiador não
pode ter pretensão de julgar e avaliar os fatos, somente recompô-los, explicando como se
deram e apresentando os motivos de sua apresentação.

Droysen lança as bases para que se desenvolva uma ciência documentada da história, formando
consciência histórica, a necessidade de se ter atenção ao passado, ao modo como os fatos
históricos se estabelecem. 21

A historiografia desenvolve a categoria da causalidade. Trabalha com a ideia de continuação


histórica, de que há um fio que perpassa a história e influencia o modo como os fatos do
presente vão se desenvolver. Resgatam a tese hegeliana22 de que há um sentido na história, os fatos
históricos não são puramente aleatórios, tem sentido, objetivo, telos. Há uma racionalidade
imanente na história. Se os motivos se repetem, os resultados tendem a ser os mesmos.

Essas são as principais características de uma ciência da história. Isso, no futuro, é contestado.23

Dilthey: fundamentação histórica das ciências

Dilthey tecnicamente pertence ao historicismo alemão, mas seu projeto é distinto. Pensa a
história fundamentando a vida, a fundamentação histórica de todas as ciências. Dilthey quer
chamar atenção para a historicidade das categorias científicas. O modo de investigação das
ciências é histórico. A vida como um todo se articula e se desenvolve de modo histórico.

Para ele, tudo que ocorre no interior da vida é histórico. Todas as ciências são históricas,
inclusive as ciências naturais, porque o modo de pesquisa e obtenção de resultados é articulado
também a história. É necessário que todas as ciências percebam que suas descobertas, objetos e
procedimentos investigativos são datados, são requisições de uma época, de um mundo histórico.

Dilthey diz que tudo que ocorre no interior de uma época é o espírito objetivo dessa época. O
Direito, as artes, as ciências, a geografia, a moda, os costumes, valores, política, etc, estão
articulados com o contexto histórico. O modo como desenvolvemos nossa existência é datado
especificamente pela história, estamos sempre atendendo as solicitações da história.

20
Para Weber, o cientista sempre parte de juízo de fato, juízo de realidade, neutro em relação ao
objeto. O político pode lidar com juízos de valor.
21
Atenção aos fatos históricos porque repercutem no presente.
22
Para Hegel, essa racionalidade é a perfeição, a história caminha para o melhor, que seria o Estado.
23
No século XX se desenvolveu a Escola dos Anais Franceses, que defende que a história tem
grande duração. Os fatos sociais são mais importantes do que os políticos. O que é mais importante
são as transformações sociais mais lentas. História não é a história dos grandes feitos. O que é mais
importante é a transformação social, mais lenta, mas permite pensar a história na forma de uma
longa duração.
19
Esse nexo histórico mais abrangente é desconsiderado pela ciência, que ignora a interconexão entre
história e vida. Ciências naturais, para Dilthey, são desvivificantes, porque buscam descrever
neutramente o objeto, ignorando a cadeia histórica, separando o objeto da cadeia mais ampla.

Para Dilthey, as ciências naturais são explicativas, desdobram o fenômeno, mostrando os


fundamentos de sua presença e suas características.24

Dilthey diz que isso tem dignidade, mas é ingênuo, porque se esquece do mais importante, o
fundo histórico que permite que a própria ideia de causa apareça.

Quer resituar as ciências no todo da história. Não quer tirar a dignidade de pesquisas das
ciências, mas que o ofício científico seja ainda mais esclarecido, quando seus fundamentos
sejam de fato evidenciados, com a historicidade totalmente esclarecida.

Para isso, se vale do método de COMPREENSÃO, que significa resituar parte e todo.25

Compreensão26 é método da hermenêutica historicista que permite que a parte seja vista
inserida no todo histórico em que se movimenta. Esforço para perceber a ligação histórica entre
parte e todo.

A função da compreensão para Dilthey é aproximar o EU do TU. Apesar de parecermos distintos,


nos movimentamos existencialmente num todo epocal comum. Compreensão aproxima vidas
particulares aparentemente distintas, a partir do momento em que se percebe que as vivências
particulares se inserem numa mesma época, mesma estrutura histórica. Chamar atenção para
o solo histórico que EU e TU desenvolvem suas existências. Apesar de sermos distintos,
comungamos o mesmo nexo histórico que permite que sejamos quem somos. Tudo que existe
no interior de uma época é articulação dela mesma.

Essa compreensão é difícil de ser executada. Como recompor o nexo histórico e descrever a
época? Tomar o objeto por meio do qual a época aparece, que são as vivências.

A época em si não é passível de reconstrução a partir dela própria, mas pelas suas expressões.
Como é impossível descrever todas as expressões, Dilthey diz que existem algumas eleitas como

24
Isso se relaciona à tese de Aristóteles, que parte do objeto e procura recompor os fundamentos da
presentidade do ente presente. Preocupa-se com as causas de aparecimento do objeto: material,
formal, do movimento e final. Aristóteles diz que fazer ciência é responder sobre as causas do
fenômeno. Ciências resgataram essa tese aristotélica, querendo explicação causal do fenômeno.
25
A Hermenêutica quer lançar luz sobre essa ligação imediata do fenômeno particular com o todo
histórico em que ele se situa.
26
Com prendere - pegar com, prender, apreender - apreende-se um fenômeno inserido no todo em
que ele se movimenta
20
mais audíveis de uma época, a partir das quais esta aparece com mais reverberação. Para
Dilthey, isso aparece sobretudo através da biografia27, que reconta a vida de alguém, o que
permite ver com mais clareza a época.

Para Dilthey, existe um método ainda mais claro que permite que a compreensão se desenvolva, o
que ele chama de PSICOLOGIA DESCRITIVA.

Para que a época se articule com mais clareza, é preciso descrever a vida psíquica interior do
biografado. Para ver o exterior, é preciso descrever a vida psíquica interior. Tenho que partir do
exterior, descrever a vida interior e, a partir disso, ver o exterior.28

Dilthey recua ao vocabulário metafísico da filosofia moderna, da consciência. Ao descrever a


consciência, ela permitiria ver o mundo exterior. A ideia é interessante, mas o método de execução
não é muito claro. Heidegger diz que não há essência, tudo se desenvolve na cadeia histórica.

O esforço da hermenêutica historicista é pensar articulação entre vivências e vida histórica


como um tudo, porque há nexo histórico que perpassa tudo.

Dúvidas

- Hermenêutica é traço estrutural da relação do homem com o mundo porque tudo que existe no
interior do mundo tem uma relação com o todo desse mundo. E tudo no interior disso é histórico.
A hermenêutica descreve esse nexo por meio do qual se relacionam parte e todo no interior da
história.

- Como as coisas permanecem elas mesmas diante da mudança epocal? Historicismo não explica
isso, problema. Existe algum elemento constante?

- Vero factum - só há verdade naquilo que é produzido pelo homem.

- Dilthey tem preocupação de ordem filosófica - como a história pode fomentar as pesquisas
científicas? Para ele, a vida é histórica. Pensa o problema da história para além da historiografia.

Aula 5: 16/08/2021

Fenomenologia29 e Hermenêutica I

27
Uma das principais fontes de estudo de Schleiermacher é a biografia que Dilthey escreveu sobre
ele.
28
Isso é uma grande viagem!
29
A fenomenologia é essencial para todo o movimento filosófico que se desenvolve a partir
dela. Grande vertente filosófica importante do séc XX. Todos os desdobramentos filosóficos da
contemporaneidade de certa maneira dialogam ou com a fenomenologia ou com a teoria crítica.
21
Edmund Husserl30 (1859-1938)

a) Vida e obra: textos e fases filosóficas fundamentais

- Investigações Lógicas (1901): Primeiro Volume - Prolegômenos à Lógica Pura; Segundo Volume:
Introdução à Fenomenologia e a Teoria do Conhecimentos. 31

- Ideias para a Fenomenologia Pura e para uma Filosofia Fenomenológica 1 (1913)32

- Meditações Cartesianas (1931)

- A Crise da Ciência Europeia e a Fenomenologia Transcendental (1936)33

b) Intenção filosófica fundamental: Filosofia como Ciência Rigorosa

Qual a proposta filosófica de Husserl? O que significa procurar filosofia como ciência rigorosa?

Husserl não desenvolve epistemologia, não é filósofo da ciência. É um filósofo que procura a
ideia de evidência, de essência, para que o projeto filosófico da contemporaneidade pudesse
ser corrigido, superando-se os dois problemas da filosofia anterior a ele - das hipostasias
idealistas e realistas.

Pensar filosofia como ciência rigorosa é analisar problemas filosóficos de forma crítica, a
partir de segurança racional, procurando evidência das essências.

Principais problemas filosóficos pretéritos:

30
O que o levou a filosofia foi a relação entre matemática e lógica. Linguagem matematizante que o
acompanha em toda obra. Importante para que se entenda a pretensão de rigor que Husserl quer
fornecer a sua obra, um traço distintivo de sua fenomenologia.
31
Discute o problema da lógica psicologista. Se contrapõe a lógica, as grandes vertentes de seu
tempo. Introduz o método fenomenológico e sobretudo a questão da intencionalidade. Influência da
matemática e da lógica
32
Se nota forte apelo idealista da filosofia husserliana, em que se aproxima muito do Kant e do
idealismo alemão, principalmente pela ideia de que a consciência permitiria ver o mundo em sua
clareza.
33
Crítica ao projeto filosófico que surge com o iluminismo a partir da fenomenologia da história.
Trabalha a tese do mundo da vida, fundamental para a fenomenologia, sobretudo com Gardemar.
22
34
A diferença da filosofia para o senso comum é que a filosofia também parte de crenças, mas as
crenças do senso comum são injustificadas, se aceitam por critérios não filosóficos

A filosofia parte de crenças, de hipóteses, e discursivamente testa essas hipóteses até que os
argumentos ideais permitam que essas crenças sejam aceitas. O movimento da ideia, a partir da
dialética, dianoia, é o movimento ascendente de crença justificada a justificada mais elevada,
até que se chegue ao ponto máximo, a alegoria da linha, em que não tem como ter mais
conhecimento discursivo da realidade, pela falta de visão de aspectos como o princípio
primeiro e uno.

Essa tese platônica de justificação racional do conhecimento a partir de hipóteses se expande ao


longo de toda tradição filosófica, chegando ao idealismo, a kantismo. Kant pensa o
transcendental a partir da indagação das condições de possibilidade de conhecimento de
qualquer coisa possível. Para conhecer as coisas, a razão deve ter a capacidade de saber o que ela
pode conhecer. Indagação a respeito das condições de conhecimento de qualquer coisa que seja.
Esse modelo de crença justificada é transmitido a toda tradição filosófica transcendental.

Husserl diz que essa ideia precisa ser superada, porque levou a hipostasia idealista.

Outro problema fundamental para Husserl é o problema do psicologismo da lógica pura.

Hume afirma que não é possível qualquer tipo de experiência universal de conhecimento
porque somos seres particularmente situados. A lógica não tem condição de se pensar de modo
universal, porque somos seres particulares. O psicologismo mostra que a lógica enquanto ciência
tem falha diante do nosso caráter de particularidade. Aquele que enuncia um princípio lógico
é particular. Todo nosso conhecimento está ligado a sensações associativamente organizadas.
O que chamamos de princípios universais são hábitos que paulatinamente se sedimentam de
forma associativa porque o ponto de partida de qualquer experiência de conhecimento sempre será
situado.

34
Sócrates foi condenado por corromper a religião da Cidade, divulgando teses que
descredenciavam os deuses. No texto da apologia, Sócrates se coloca na condição daquele que não
sabe. A tese de Sócrates é que seus contemporâneos acham que de fato sabem aquilo que sabem.
Sócrates tem certeza que não sabe.
Platão procura as estruturas universais do conhecimento a partir da realidade sensível, que não pode
ser a fonte última do saber, porque essa é uma cópia do mundo ideal. Mas o mundo sensível é o
ponto de partida do conhecimento porque, segundo Platão, não se tem conhecimento intuitivamente
de uma vez por tudo, não se tem visão do universal, mas conhecimento discursivo. O ponto de
partida para o conhecimento discursivo é justamente colocar em questão as crenças.

23
Husserl tenta desenvolver a fenomenologia para se justapor a essa tese. Para ele, as
experiências particulares que vivenciamos, apesar de serem particulares, tem conteúdo
universalizado. O conteúdo das experiências não se confunde com a particularidade dos
entes.35

Para Husserl, há uma diferença clara entre expressão e significado.

O ato de enunciar abre espaço para que o conteúdo apareça, e quando ele aparece, se
autonomiza em relação àquele que diz. Passa a ter significação própria, que tem pretensão de
universalidade. Aquele que escuta pode concretizar esse conteúdo de uma terceiro forma,
havendo preenchimento de significado

A lógica jamais aceitaria isso, porque veria o simples ato de enunciar como uma experiência
particular.

Husserl, em “Investigações lógicas” quer mostrar o conteúdo universal de qualquer ato


enunciativo, de toda linguagem, assim como toda e qualquer experiência pela qual passamos.
Para que isso seja possível, é necessário que a filosofia seja vista como uma ciência rigorosa,
guiada pelas evidências, pelas essências, o que Husserl chama de invariante eidética. Invariante
eidética é o alcance das essências a partir de suas evidências.

Modo tradicional de colocação dos problemas filosóficos: hipostasia. tese da filosofia que
acredita que o ser do fenômeno está para além do fenômeno. A verdade das coisas sempre está
para além do modo de aparição das coisas. O que vemos nunca comporta sensivelmente sua
verdade. Necessário partir do que vejo para procurar o elemento que não aparece sensivelmente e
vai permitir a verdade daquilo que aparece. Desde Platão, o mundo sensível é o da doxa, da opinião,
da crença, nunca o mundo da verdade.

Segundo Husserl, essas hipostasias são de duas ordens, realista ou idealista.

A hipostasia realista se verificou na filosofia greco-romano-cristã, período filosófico conhecido


por metafísica do objeto. A hipostasia idealista se verificou no interior da filosofia moderna,
sobretudo no idealismo alemão, Kant e Hegel.

Hipostasia realista: partia-se da ideia de que haviam essências reais, verdadeiras, imutáveis,
que estavam nas coisas para além de mim. Conhecer, no mundo antigo, é a verdade enquanto
adequação do pensamento às coisas. As coisas teriam verdade em última instância para além
35
Derrida, inspirado em Husserl diz que a linguagem, quando enuncia, sempre enuncia conteúdos
significativos universalizáveis. A linguagem sempre articula conteúdos ideais. O campo estrutural
da linguagem sempre nos coloca em relação com conteúdos universais
24
do que aparece, e conhecer significa buscar o acesso a essas verdades eternas e imutáveis.
Platão chama isso de ideia, Aristóteles, de substância, o cristão, Deus. Existiria verdade nas
coisas em si, que não se mostraria totalmente nas coisas sensíveis. Conhecer é ter acesso a
realidade verdadeira em si para alcançar a medida de constituição de todas as coisas sensíveis.

O problema é que o aparato cognitivo limitado, finito, ao ter acesso às coisas, pode
contaminar o modo de conhecê-las ao transmitir sua subjetividade a elas. Limitação da razão
humana pode ser um obstáculo para que a essência verdadeira das coisas apareça.

Hipostasia idealista: as coisas são verdadeiras, encontram sua medida de verdade, na


consciência. Kant defende que, antes de conhecer as coisas, razão deve avaliar as suas próprias
condições de conhecê-la. As coisas devem girar em torno da razão.

A filosofia idealista aos poucos radicaliza essa posição, ao ponto de o idealismo ver o objeto como
uma outra face do sujeito. Reduz toda a realidade exterior a razão. A realidade nada mais é do que a
razão experienciando a si própria no tempo, o que Hegel chama de espírito. O objeto sensível do
mundo exterior é uma etapa para que o objeto verdadeiro possa aparecer. A realidade se limita à
realidade da razão. Isso tem um grande defeito: acreditar que o mundo exterior nada mais é do
que uma grande sombra da razão, pode ser uma grande fantasia.

Husserl diz que as duas hipostasias são problemáticas, porque sempre pensam em polos
reduzidos da realidade. Realista sempre pensa as coisas em si, essências em si mesmas prontas.
Idealista pensa na realidade da razão.

Husserl resgata justamente a ideia do fenômeno, aquilo que conduz toda investigação
fenomenológica. Fenômeno, para Husserl, é aquilo que se dá por si mesmo, para si mesmo, a
alguém. Fenômeno aparece por conta própria a alguém. Com isso, Husserl deixa claro que a
consciência tal como pensada pelo idealismo e pelo realismo não pode mais ser sustentada. Para
Husserl, a consciência é intencional

A ideia de intencionalidade surgiu com um autor da lógica chamado Franz Brentano. A


consciência nunca é pura, mas sempre DE alguma coisa. Husserl resgata esse conceito e o
trabalha de outra forma. A consciência é sempre intencional.

25
A consciência nunca é um bloco monolítico, pronto e acabado. 36 Husserl diz que a consciência
não é pronta, mas um fluxo de vivência. Quando a consciência se debruça sobre cada um dos atos
que compõem esse fluxo (lembrança, percepção, imaginação, representação, fantasia, etc) nunca é
uma só, mas a soma desses, em fluxo e constante desenvolvimento.

Os atos da consciência não se dão sozinhos. Toda vez que um ato se estabelece, abre-se, na
consciência, uma relação no interior da qual o objeto aparece.

Para Husserl, fenomenologia significa consciência intencional, aparição imediata da coisa à


consciência por conta própria.. Quando o ato de consciência se estabelece, abre espaço para
que o objeto correlato se autoconstitua co-originariamente. Toda vez que ato de consciência se
dá, abre espaço para que a coisa apareça por conta própria na relação com a consciência.

Husserl não diz que a consciência cria ou posiciona a coisa. Quando o ato intencional de
lembrar se estabelece, imediatamente o lembrado aparece por conta própria, sem que eu me dê
conta, sem que tente controlar ou induzir a aparição. Husserl deixa claro que todo ato de
consciência é intencional. Não tem como ter o lembrado sem o ato de lembrar, mas o
lembrado apareceu por conta própria em meio, na relação, com o ato de lembrar. Sempre
tenho o percebido junto a percepção. Percepção é sempre de alguma coisa.

Intencionalidade significa que a consciência explode rumo às coisas. Quando a consciência se


analisa, sempre se depara com coisas que aparecem a ela.

Fenomenologia lida com os fenômenos que aparecem por conta própria a alguém, na relação.
Consciência cria possibilidade de estabelecimento de uma relação no interior da qual ato
requisita correlato. Intencionalidade significa que a consciência tende ao interior dos objetos.

Não tem como ter objeto sem ato. Não tem anterior e posterior, como pensa filosofia antiga. Não há
existência prévia da essência para depois haver o ato de conhecimento da essência, como
pensavam os antigos. A filosofia moderna pensava na existência da razão para depois haver
experiência.

Fenomenologia diz que são co-originários, surgem concomitantemente. Relação imediata


entre ato e correlato é de co-requisição, denominada pelo Husserl de intencionalidade.

36
Desde os gregos, o que vigora é a tese da existência natural do mundo sensível, o mundo exterior
está pronto e pode ser experimentado por mim. Toda tradição filosófica parte da ideia de que o
mundo exterior é pronto e acabado e pode ser conhecido por uma consciência. Kant é o autor que
procura apresentar faculdades a essa consciência para acesso ao mundo. O problema da filosofia
moderna é o do acesso, pensando em métodos por meio dos quais a consciência acessa as coisas.
26
Fenomenologia é a descrição desse modo de autoconstituição de fenômenos, movimento de
autodaçao das coisas na consciência.

A consciência não cria o objeto, mas abre espaço para que apareça. Quando aparece, o ofício do
filósofo é descrever o modo de aparição. A estrutura da consciência é intencional, quando isso se
estabelece, ha possibilidade de fazer ciência rigorosa. Filosofia enquanto ciência rigorosa
significa a descrição fidedigna dos modos de autoapresentação dos fenômenos na consciência.

Essa relação pessoal entre consciência e coisa na consciência é chamada de distintas formas. Ato e
correlato, noesis e noema (ato intencional e objeto intencional que aparece na relação para
com o ato)

Princípio de autodação do Husserl, as coisas se mostram a partir delas mesmas, para elas
mesmas, na relação com a consciência

Sem relação com a consciência não há fenômeno. Isso não significa que a consciência crie o
fenômeno.

Quando isso acontece, a filosofia tem possibilidade de abertura maior do que até então. Toda
tradição filosófica do séc XX parte desse princípio fundamental.

Uma vez que o filósofo consegue mapear a gênese dessa relação que permite o aparecimento dos
correlatos na sua relação com os atos, se tem o que Husserl chama de essência, aquilo que é
invariante a partir de várias variações

Filosofia como ciência rigorosa é descrição da essência, fenômeno completamente entendido a


partir dos seus distintos modos de aparição A filosofia tem condição de se desenvolver enquanto
ciência rigorosa quando se percorrem três vias: a epoché, redução fenomenológica e redução
transcendental.

Epoché significa literalmente abstenção de julgar. Palavra que surge no interior do ceticismo
filosófico antigo. Suspensão de julgamento, abstenção. O ponto de partida da filosofia conduzida
fenomenologicamente deve ser a contestação da tese da existência natural.

27
A epoché é justamente a contestação da verdade da existência do mundo exterior.37 Suspensão
do juízo. Husserl é orientado pelo gesto cartesiano, dúvida hiperbólica de Descartes, contesta a
existência de todas as coisas passíveis de serem postas em dúvidas pelo pensamento.

Epoché é o ponto de partida para a segunda etapa: redução/recondução fenomenológica.


Suspendo o mundo exterior e me volto para a própria dinâmica da consciência. Deixo de fora
mundo exterior e passo a analisar o mundo da consciência. Reconduzir a investigação:
questionamento da dinâmica interna da consciência.

Quando estou imerso na redução fenomenológica, percebo que a consciência acontece nessa
relação de fluxo de atos e correlatos. Um ato de consciência abre espaço para que se autode, se
autoapresente, o correlato desse ato. Analiso cada um dos correlatos e percebo que o modo de
seu aparecimento nunca é pleno.

Os objetos nunca se mostram claramente de uma vez só, sempre fica algo se não se mostra, o
que ele chama de zona de penumbra ou de alumbramento.

É preciso perceber os distintos modos de aparição do objeto para que então, a partir das
variações, encontrar aquilo que não varia. Isso só é obtido no interior da redução
transcendental. Quando obtenho elementos invariantes, a redução transcendental permite ver a
essência. Essência é elemento invariante que se dá a partir de todas as variações possíveis do
objeto.

Filosofia, diante da essência, tem sua evidência. Filosofia descreve o modo de aparição da
evidência, com apresentação da essência. Filosofia é ciência rigorosa porque sempre devo me ater
à dinâmica interna da consciência, e quando consigo alcançar a essência evidente dos modos de
aparição não posso negar que a coisa é tal como é.

A principal característica da fenomenologia é eliminar de uma vez por todas uma tradição
que se implantou a partir do platonismo, a distinção entre SER e APARÊNCIA.

Quando me coloco no campo da redução fenomenológica e no campo da redução transcendental,


aquilo que aparece não pode ser negado. Não há ser que não se mostra na aparência. O que
VEJO é o que É. Não há ser para além da aparência, porque a existência se desenrola no
mundo em que vejo. O que aparece não pode ser negado enquanto tal como SER da coisa.

37
Cotidianamente existimos de forma natural, e quando o fazemos, nos movimentamos no velho
problema da tese natural, de existência do mundo exterior. Pressupomos que as coisas existem e são
tal como as encontramos. A existência do mundo exterior não é passível de contestação, desde os
gregos.
28
Gesto filosófico autêntico, não procura ser para além dos distintos modos de aparição. A filosofia é
reconduzida as coisas elas mesmas. Quando alcanço a evidência, alcanço a coisa tal qual ela é.
Quando suspendo a existência do mundo exterior e analiso os distintos modos de autodação
eidética da coisa, de essência, não há como negar a aparição.

Husserl as vezes é alocado entre os idealistas porque, de certa maneira, está dizendo que sem
consciência não há objeto.

c) As meditações cartesianas

Husserl mostra como as coisas se sedimentam paulatinamente na relação com a consciência. Chama
atenção para que não apenas os objetos que experimentamos são temporais, a própria
consciência se temporaliza, porque tem experiência e antecipa experiências.

As experiências da consciência não são definitivas, vão aos poucos se sedimentando no tempo -
retenção - e essa sedimentação abre espaço para que novas experiências possam se constituir -
protensão.

Mundo para Husserl é a reunião de todos os objetos que sofrem algum tipo de retenção na
relação com a consciência.

A consciência, ao passar por distintos estágios de experiências com objetos correlatos, foi
armazenando esses objetos, e isso permite que uma nova experiência se antecipe. O futuro se
abre pra mim, antecipando elementos do passado.

Mundo é a reunião dessas experiências retensivas e protensivas, elementos que se sedimentam


temporalmente. Mais tarde ele chama isso de mundo da vida. Toda experiência da consciência se
realiza no interior do mundo da vida, que é pré-dado. Esse mundo da vida já aparece na síntese
passiva com a consciência. As experiências da consciência se sedimentam e se armazenam no
mundo. Mundo é pensado como totalidade de sentido previamente estabelecido.

Esse mundo se apresenta estruturalmente pra mim como um horizonte. Horizonte é uma
estrutura que permite experiências temporais posteriores. A estrutura vai se concretizando aos
poucos, quando vou experimentando um objeto. Horizonte é sempre elemento inalcançável,
sempre está para além. Estrutura de mundo nunca se concretiza de uma vez só. Não tem como ter
a experiência última do mundo. É sempre uma estrutura que vai regulamentando experiências
futuras. 38

38
A inspiração para Husserl pra ideia de horizonte do mundo é Kant, que dizia que as categorias da
razão passam a ter a pretensão de conhecer para além de fenômeno, e quando isso ocorre, os juízos
29
Horizonte é como se fosse elemento de regulação, de manutenção, de possibilidade de futuras
experiências, porque as antecipa para que se concretizem aqui e agora.

Husserl trabalha com a ideia de consciência cinestésica.

O problema filosófico do movimento pressupõe o movimento das coisas, mas não do


movimento do observador39. A percepção se modifica quando o sujeito perceptor altera sua
posição inicial. Isso que Husserl chama de consciência cinestésica. Isso acontece a partir do
momento em que a percepção é carnal. Toda percepção é corporal. Importância da
corporeidade na constituição do percebido.

Percepção do outro também é corporal, mas diferente. Eu sou corpo vivo, o outro é também
corpo vivo que percebe objetos. Há uma limitação, não há como ter acesso a consciência
interior do outro para perceber como ele percebe os objetos. Não tenho como entender o modo
como o outro, por ser corpo vivo, percebe os objetos. Como tenho limitação de acesso à
consciência interior do outro, só posso pressupor que ele percebe como eu percebo. A relação
com o outro é sempre análoga. Pressuponho que perceba como eu percebo por ser corpo vivo tal
como eu, mas não tenho como comprovar isso.

Husserl chama esse mundo de percepção corporal, composto de consciência cinestésica e pela
relação de percepção do outro e para outro, de mundo da intersubjetividade ou da
monadologia intersubjetiva.

Aula 6: 24/08/2021

Dúvidas

- Retenção e protensão

A retenção é uma forma de sedimentação dos correlatos da consciência no interior do ego


meditante. Ao mesmo tempo, essas retenções permitem protensão, abertura do mundo ou
horizonte.

Horizonte é como se fosse a estrutura formada pelas reiteradas retenções que permitem a protensão.
No interior do horizonte se coloca a relação entre atualidade e potencialidade. As reiteradas

que se formam são contraditórios. Essas ideias não podem ser objeto de conhecimento porque não
têm sentido, mas são responsáveis por ordenar todo material de conhecimento
39
Classicamente, quando percebemos o objeto não nos damos conta que, ao perceber, estamos
sempre lidando com o observador que é estático. A minha descrição do objeto sempre é de um
sujeito estático diante de objetos que se movimentam.
30
sedimentações dos correlatos vão formando uma estrutura chamada de horizonte. Quando os atos da
consciência se estabelecem, esse conjunto de sedimentação de significados antecipa o significado
da própria consciência.

Protensão é o conjunto de potencialidades dessa estrutura que se forma de maneira


sedimentada. Conjunto de correlatos se sedimentam, formando estrutura que fornece
potencialidade dos atos futuros da consciência. Antecipação do mundo, que se estabelece na
relação com a própria consciência.

- Redução fenomenológica e redução transcendental :são as duas etapas para que se dê o retorno
as coisas elas mesmas.

Fenomenologia quer superar a crença de que as coisas são dadas para além de nós. Quer
acompanhar o processo em que as coisas se dão por elas mesmas na relação conosco. Quer
eliminar as duas hipostasias, realista e idealista.

Redução fenomenológica é o primeiro passo para perceber que, antes da relação com a
consciência, as coisas não podem ser. (Epoché) Suspensão da tese natural do mundo exterior.
Essa etapa permite a próxima.

Redução transcendental é acompanhar o movimento da consciência na sua relação com as coisas.


Investigação da gênese constitutiva. Quando esse processo é alcançado, obtém-se a
essência/invariante eidética, que representa a volta das coisas elas mesmas, no seu movimento de
constituição na relação com a consciência.

Transcendental é a estrutura peculiar a razão que já existe antes da experiência acontecer

Quanto o ato de percepção se estabelece, o percebido aparece por conta própria, mas não por
completo, evidenciando todos os seus lados. Analiso cada uma das faces da coisa para que ela
se mostre por completo.

- Consciência cinestésica

O movimento daquele que percebe influência no modo como o percebido se estabelece.


Corporeidade também se percebe enquanto uma entidade que percebe algo.

Influência da relação entre corporeidade e recepção - consciência cinestésica.

31
- Relação entre fenomenologia e hermenêutica: quando a compreensão deixa de ser vista
através de método, como na hermenêutica clássica. Existência permite que a compreensão
seja um correlato do modo de ser do ser aí. Existindo, imediatamente me lanço no mundo.

- Intencionalidade: remissão imediata de um ao outro. Elemento que procura eliminar a ideia de


causalidade, de anterior e posterior. Ressalta a ideia de co-originalidade. Os dois se dão da mesma
forma e simultaneamente. Quando se existe, imediatamente se compreende, por isso não é
necessário método (Heidegger). O problema do acesso desaparece, porque esse passa a se dar de
forma imediata. Já me relaciono com as coisas de imediato.

- Husserl: expressão e significado

Não há simplesmente relação entre expressão e significado, mas uma relação TRÍPLICE.

Quando se expressa algo, o ato é carregado de uma intenção de significado, contudo, essa
intenção não é totalmente veiculada pelo significado expresso. O que eu digo não é
necessariamente o que eu quis dizer. O que digo se autonomiza no meu ato de dizer e ganha
vida própria.

Tres: expressão, significação e concretização da significação

Esses são independentes, não caminham juntos. A intenção de significado não


necessariamente tem correspondência com o significado expresso.

Idealidade do significado. Em termos de hermenêutica jurídica, isso é revolucionário. Palavras tem


campo de idealidade de significação que são delas.

Fenomenologia aponta para conteúdos ideais que se dão independente de nós.

Nesse contexto, não haveria intenção/vontade do legislador, mas o significado das próprias
palavras. Textos tem expressão própria, a vontade da própria lei. Palavras tem conteúdo ideal
que se impõe por conta própria e não podem ser refutadas.

- Schleiermacher e Dilthey se movimentam no interior de questões puramente cientificas.


Husserl diz que esse modo de pensar questões filosóficas a partir do horizonte das ciências
precisa ser superado. As Ciências sempre se movimentam num horizonte sedimentado, e a
filosofia deve se mostrar como esse veio a se tornar o que.

32
A Fenomenologia procura pensar filosoficamente para além dos limites estabelecidos pela
ciência.

- Concretização do significado é o preenchimento significativo. É como se dá concreção ao


conteúdo que tem natureza ideal.

Esse preenchimento de significado é universal. A espécie tem uma universalidade.

As espécies dão voz a conteúdos universais. Faces da essência que se mostram. Faces distintas não
trabalham contra a coisa, mas são suas vozes.

Heidegger40

A tese filosófica de Heidegger é dedicada a ontologia, sobretudo a relação entre ontologia,


metafísica e história. Pensa a questão do ser para além do ente que historicamente se
estabeleceu.

O modo como Heidegger desenvolve essa questão se altera em suas distintas obras.

Textos desenvolvidos por Heidegger: Ser e Tempo; Contribuições à filosofia; Conceitos


fundamentais da metafísica: mundo, finitude e solidão; Conferência a origem da obra de arte. Se
articulam para que possamos entender a questão filosófica fundamental: relação entre
ontologia e história.

Ser e ente são coisas distintas (diferença ontológica), e, para Heidegger, a tradição filosófica se
esqueceu dessa distinção, a metafísica acabou por equivaler essas duas expressões..

O SER permite distintos modos de os ENTES se estabelecerem.41 Apesar dos distintos entes se
estabelecerem na relação com o SER, o SER não se reduz a eles. O SER transcende a cada um
dos entes específicos.

Historicamente, a filosofia pensou o SER como presença. Desde os gregos42, há ideia de que ser
é presença constante

40
Relação entre fenomenologia e mundo a partir da análise da existência por meio da obra de
Heidegger.
41
Unidade básica de pensamento é um juízo, uma predicação, atribuição de predicado a um sujeito.
Esse vínculo é realizado por meio do verbo SER. Há distintos modos de o verbo ser se apresentar
nos distintos juízos
42
Questão fundamental dos gregos é a unidade em meio a multiplicidade, permanência em meio a
mudança Metafísica grega estabelece ser como presença estável. Olha para o ser e ver como
permanência, como constância, porque a mudança trabalha contra o ser.
33
Heidegger quer mostrar que apesar dos distintos modos de se pensar os entes, o ser não se
confunde com nenhum deles. Ser enquanto ser para além dos entes, que não se reduz a cada um
desses entes enquanto aparecem enquanto tais.

Questão fundamental é pensar a ontologia como reflexão a respeito do ser enquanto ser para
além dos distintos modos de caracterização dos entes.

Essa relação se dá no interior da história, porque a história pensou a relação entre ser e ente de
distintas maneiras. Decisões históricas da filosofia não são só passado, se transmitem e
contaminam/pautam o modo como a relação entre ser e ente se estabelece.

Por isso, para Heidegger, essa relação entre ser e ente precisa ser pensada na forma de uma
destruição da história da metafísica para que se possa voltar ao campo original de formação
dos conceitos. A vida formativa dos conceitos ficou para trás. As palavras deixam de ter relação
com as coisas, porque a vida de formação das palavras é esquecida. Prega a ideia de destruição da
história da metafísica para que a vida do conceito possa ser uma vez mais tematizada.

Lidamos com conceitos desarticulados com a vida histórica de formação dos conceitos. O ser
acabou se sedimentando de modo a se confundir com os entes, mas essas são coisas distintas.

Heidegger critica todo o pensamento científico que se arvora na condição de apresentar


respostas definitivas para todas as coisas.

Essa questão fundamental a respeito do ser precisa ser pensada para além do domínio
científico. Porque o que a ciência faz é demarcar objeto no espaço e tempo e descrever o modo
como se constitui enquanto tal, permitindo as causas explicativas de sua presentidade. Sempre se
movimenta em domínios estabelecidos.

Filosofia deve atacar o campo tradicional de constituição dos entes para que a questão do ser
possa ser analisada de forma global Filosofia é pensamento de totalidade, pensar
universalidade, sendo a categoria mais universal o ser.

Ser precisa ser pensado para além dos entes. O que é ser para além dos seus distintos modos de
caracterização dos entes?

Começa com a análise existencial. Para que possa pensar a questão do ser para além da metafísica,
devo realizar análise do modo de ser desse ente em particular que se indaga a respeito do ser
das coisas.

34
Devo começar analisando o ente que se indaga a respeito do ser das coisas, justamente o
homem. Porque tem precedência ôntico-ontológica, se indaga a respeito do ser das coisas. Se eu
faço análise do modo de ser desse ente, consigo ter condição privilegiada de acesso ao ser.

Primeira premissa da análise existencial é o modo como se analisa esse ente. Análise do modo de
ser desse ente que coloca a questão a respeito do ser .

Esse ente é chamado de “ser aí” ou “Dasein”.

“Ser aí” não é definição de homem, ou conceito desse ente, mas reflete o MODO DE SER
desse ente, sua performance existencial.

Para Heidegger, esse ente não tem nenhum tipo de essência, é um ente negativo. O homem não
tem essência.43

Ontologia fundamental é a descrição do modo de ser do homem, por ser este que coloca a
questão a respeito do ser em geral. Análise da existência do homem ao mesmo tempo em que se
realiza uma hermenêutica da faticidade.

Ontologia fundamental significa analisar como se dá o ser ai e como o ser ai é ao mesmo tempo
“ser no mundo”.

Heidegger diz que qualquer questão filosófica precisa estar atenta à situação hermenêutica. Todos
os conceitos filosóficos acabam deixando para trás o processo histórico de sua formação. Mas
nós nos movimentamos no interior desse processo histórico, e este orienta a nossa visão acerca
das coisas. Sempre nos movimentamos numa situação hermenêutica.

A ontologia fundamental depende disso. Não basta que o ser se coloque a questão do ser. É
necessário analisar a própria estrutura do ente que pergunta a respeito do ser, é isso que
Heidegger chama de análise existencial. É necessário analisar a situação da qual as perguntas
aparecem.

O ponto de partida da ontologia geral é a ontologia fundamental, investigação a respeito do ente


que questiona a respeito do ser.

O ponto de partida da analítica existencial é o ser aí. Ser aí é um a priori performático. Não é um
conceito de homem, mas uma performance, um movimento. Heidegger quer rechaçar o
conjunto de definições substancialistas do homem.

43
Quando diz isso, claramente se contrapõe à tradição filosófica ocidental

35
Para Heidegger, ser aí não é o conceito de homem, mostra o movimento dessa estrutura no
interior do qual o homem se movimenta.

Homem não é humanidade. Ser aí significa dizer antes de tudo que o homem não tem nenhum tipo
de essência. Homem simplesmente existe. Existência não significa efetividade, não é
concretização. Ser aí é literalmente o movimento de existência do homem. O homem se lança, se
projeta. Ser aí significa dizer que é um ente que não tem essência ou conteúdo prévio e
simplesmente existe lançando-se no mundo exterior. É um ente negativo. Precisamos então
efetivamente existir para sermos. Nós somos projeto, possibilidade. Precisamos existir para
concretizar essa finitude originária, essa abertura. Ser aí é finito, limitado, negativo.

Cada um dos seus modos de ser na dinâmica cotidiana o constitui enquanto tal. O ser sempre está
em questão em cada uma das suas performances, porque não é efetivamente nada para além
dessa dinâmica de concretização. Ser um ente negativo significa ser eternamente um projeto
aberto, possibilidade.

Ser aí existe na forma do cuidado, que significa a determinação do ente na relação. Somos seres
aí, somos finitos, não temos essência, de modo que cada um dos meus modos de ser tem impacto
profundo naquilo que estou exercendo, me constitui. Nenhum desses modos de ser é definitivo.

Os demais não tem essa possibilidade de pergunta a respeito do ser. Só o ser aí pode se perguntar a
respeito do ser em geral

Ao descrever a estrutura ser aí, Heidegger se movimenta em termos de temporalidade. Se o ser


aí é possibilidade, abertura, sempre se movimenta numa categoria temporal, o futuro.
Projeção de futuro no passado, durante o presente. Se analisa-se a temporalidade desse ente
fundamental, é possível articular a temporalidade do ser em geral.

O ser aí concretiza existência em meio a dinâmica existencial. A priori performático. Por isso ser
aí não é um conceito, não é uma categoria. Toda categorização pressupõe presença e descrição
de essência.

Não há distância entre SER e SENDO. Tudo o que faço tem impacto imediato naquilo com o
qual estou me constituindo, no meu projeto existencial. Tudo o que eu faço define quem eu sou.
Me concretizo enquanto existente a partir da soma dos meus atos.

Dinâmica do cuidado significa que o ser aí sempre vai se constituir na relação. É sempre modo
de ser.

Como ser ai concretiza seu projeto existencial?


36
Ser um ser aí significa de imediato, de forma intencional, ser um ser no mundo. Ser aí, por não ter
sentido, precisa do mundo para ser. A estrutura ser ai é concomitante com a estrutura ser no
mundo.

Mundo significa o conjunto de sentidos históricos que vão aos poucos se sedimentando.
Conjunto da capa de pré-conceitos.

Somos ser aí e nos movimentamos no mundo, que é uma totalidade de sentidos, que já estava
pronto antes de eu chegar. Imediatamente me movimento no interior de pré-conceitos, de sentidos
históricos.

Ser o ser aí de imediato significa estar no mundo, enquanto capa de pré-conceitos que já está
estabelecido antes de eu chegar. Esse mundo não tem essência, é formado por sentidos que vão se
sedimentando historicamente, pré-conceitos. Esses sentidos/preconceitos orientam a existência do
ser aí, que não tem um sentido. Ser aí precisa da rede remissiva do mundo para que possa
concretizar sua existência. Ser ser aí significa estar no mundo enquanto cadeia de preconceitos
que nos abriga. Cada um dos nossos projetos não são nossos, não são produtos de vontade,
mas simplesmente orientações prescritivas e diretivas do mundo.

Relação intencional. Ser um ser aí significa de imediato ser um ser no mundo.

Essa estrutura “ser no mundo” é composta de três sub-estruturas: compreensão, disposição e


discurso. Elementos acoplados na categoria ser no mundo

Compreensão: abertura da existência ao mundo. Existindo o ser aí compreende. Ser ser aí


significa se colocar diante de campos de sentido, que fornecem significado de cada uma de
nossas ações mundanas. 44

Compreensão para Heidegger é correlato da existência (ontologização da compreensão). A


compreensão está intimamente relacionada ao modo de existência do ser aí.

Ao mesmo tempo em que sou compreensivo, me abro para o mundo, o mundo me devolve
sentidos que vão paulatinamente orientar minha existência. Quando concretizo cada um
desses sentidos, realizo interpretação.

Interpretação é concretização da compreensão.

44
Diferença da hermenêutica clássica, em que a compreensão é resultado de um processo
interpretativo, por meio de método.
37
Heidegger realça a importância do mundo prático sobre o mundo teórico. Intepretação é
concretização da compreensão, e isso não precisa de métodos.

Hermenêutica da faticidade significa dizer que compreensão e interpretação são modos de ser do
ser aí. Não preciso de método que me faça interpretar. Imediatamente existo compreendendo e
interpretando. Essa estrutura é devolvida a toda tradição hermenêutica e fenomenológica. É a
ontologização da hermenêutica. Compreensão faz parte do modo de ser cotidiano.

Chave fundamental para Ser e Tempo: relação entre propriedade e impropriedade.

Sendo ser no mundo, me perco de mim, porque estou me identificando nos campos de sentido
no mundo, mas não sou nenhum deles, só me ocupo. Nos perdemos de nós mesmos, esquecemos
que somos possibilidade aberta, O cotidiano aberto pela compreensão é sedutor, acho que sou algo.
Essa ilusão do cotidiano é a IMPROPRIEDADE. Eu, propriamente, não sou aquilo com o que
me ocupo, sou ente negativo.

Ser no mundo permite a diária fuga de si, a impropriedade. Sempre sou ente que deve ser lido
na chave singular, ninguém é igual a ninguém, porque cada um é um projeto aberto,

Aula 7

Heidegger se dedica a analisar a da ontologia, a perceber como esta se relaciona com a história.
A sua questão fundamental é pensar o ser para além das dinâmicas de presentificação do ente
no interior da sedimentação histórica. O que é o ser enquanto ser, para além da dinâmica de
sedimentação histórica?Tem como objetivo contestar a identidade promovida entre ser e ente,
pela metafísica.

Heidegger começa descrevendo o modo de ser desse ente privilegiado que é o responsável por
colocar a questão a respeito do ser. Descrição do modo de ser do ente privilegiado para que se
estabeleçam as condições de possibilidade do desenvolvimento de uma ontologia em geral.

Toda vez que se trabalha um tema de forma fenomenológica, o que se coloca em questão é
justamente as coisas no seu campo de dação respectivas, com descrição desses modos de
autodação

Isso se dá inicialmente com o ser aí.

Heidegger inicia a Analítica Existencial, que é ponto de partida para uma Ontologia Fundamental
justamente mostrando que o ser aí não pode ser tomado a partir de uma chave conceitual.

38
Ser aí não é um conceito de homem, mas um aspecto performático, o modo de ser do ser aí,
que marca sua existência. Ser ser aí é não ser determinado por nenhum tipo de essência. Ser aí é
um ente marcado pela negatividade originária.

Por não ter essência, por não ter conteúdo originário, o homem inicialmente é marcado por uma
ideia de indeterminação ontológica originária. É um projeto, uma eterna possibilidade, não
tem essência que oriente seu modo de se constituir.45

Pelo fato de o homem ser um ser aí, não tem essência, e por isso é um projeto aberto, tem uma
indeterminação existencial originária. Por isso, o ser aí é um projeto finito. Nenhum modo de
ser é definitivo. Para o ser aí, não há estabilidade essencial na sua existência. Existência é sempre
um movimento em eterna transição.

Existência aqui não significa presença efetiva de algo em algum lugar em um tempo.

Existência significa que o ser aí, em seu modo de ser, projeta-se para além dele próprio. Com
isso fica percebido o elemento fenomenológico na hermenêutica da analítica existencial do ser
aí, na hermenêutica da faticidade. (?)

Ser um ser aí significa existir, o lançamento em um mundo. Movimento de saída de si, da existência
para o mundo. Existir é lançar-se em um mundo.

Ser aí necessita do mundo para que possa concretizar as suas possibilidades existenciais, seu
projeto existencial. Precisa do mundo, porque ele mesmo não é especificamente nada

Esse movimento através do qual a existência vai paulatinamente se concretizando a partir da


relação com o mundo é chamado pelo Heidegger de cuidado.

Cuidado significa que o ser aí é um ente que, ao existir, assumindo determinados modos de ser,
coloca seu ser em questão, e este nunca é de forma definitiva, mas é marcado pela
possibilidade da abertura. Não há distinção entre ser e sendo. Ser aí é um ente que tem de ser
para que tenha os direcionamentos para realização da sua existência

Há uma relação de co-requisição imediata entre existência e mundo.

Para a filosofia heideggeriana, mundo não é uma mera reunião de coisas, significa a totalidade de
sentidos que historicamente vão se formando e aos poucos vão se sedimentando

45
Aqui se rompe com a tese metafísica aristotélica, de que a causa final, a essência, dirigiria o
processo, o movimento, por meio do qual as coisas saem da potencialidade para atualização.
Quando Aristóteles trabalha a intelecia, movimento que leva da potência ao ato, este é conduzido
pela causa final, que abre espaço para que a coisa atinja sua plenitude de essência.
39
Ser aí é ao mesmo tempo ser no mundo. A existência sempre se movimenta em um conjunto
de pre-conceitos, sentidos, que foram se sedimentando historicamente, e funcionam como
elementos que balizam as chaves para o ser aí possa concretizar sua existência.

Essa relação entre ser ai e mundo é imediata. Imediatamente se existe no mundo. Ser aí se
movimenta na dinâmica de sentidos que se constituem a partir do passado

Com isso, há uma relação de temporalidade atinente ao modo de ser do ser aí. Ser um ser aí
significa ser possibilidade, e isto está na dimensão do futuro. Ao mesmo tempo, ser ser ai é ser
um projeto lançado. Esse mundo sedimentado em que ele se encontra aponta para a dimensão
do passado.

Ser aí é um ente marcado pela possibilidade de ser que se concretiza em meio ao já sido.

Modo de ser do ser aí, a análise da sua existência, sua hermenêutica cotidiana, aponta para uma
temporalidade que faz parte do seu modo de ser. Essa ideia é fundamental para que Heidegger
desenvolva seu projeto de uma historização da questão relativa a ontologia

Pelo fato de o ser aí não ser passível de categorização, de conceito, é sempre visto através da
chave singular. Não é possível um conceito de humanidade, porque o ser aí é seu modo concreto
de ser, aqui e agora.

A estrutura ser no mundo configura a impropriedade.

Cotidianamente, ser aí se movimenta em campos de sentido históricos, e essas orientações vão


permitir que o ser aí concretize sua existência. Contudo, o ser aí é um ente negativo, por mais que
ele se movimente e assuma esses sentidos, não é especificamente nenhum deles. Essa ilusão de
que somos a dinâmica do mundo, aquilo com o que nos ocupamos, é chamada de
impropriedade. Cotidianamente, existimos na forma da impropriedade, e por isso nos perdemos de
nós mesmos, porque somos entes negativos

Essa estrutura ser no mundo é constituída e marcada por três caracteres: ser compreensão, ser
disposição e ser discurso.

COMPREENSÃO

Pelo fato de ser aí e ser no mundo serem estruturas existenciais co-originárias, existindo
relação de remissão fenomenológica intencional entre eles, o ser aí existe de forma
compreensiva.

40
Compreensão é um existencial. Compreensão significa estar imediatamente diante de campos
de sentidos, de capas de pre-conceitos, que são historicamente articulados. De pronto e
imediato, a existência se dá no meio desses campos de sentido. Existência é, portanto,
compreensiva.

Compreensão é se encontrar diante da facticidade do mundo. Faticidade aponta justamente para


um fato que não pode ser negado.

Heidegger quer dizer que em todas as ocasiões que tento refutar o mundo, o campo histórico, acabo
por reforçá-lo46. Não posso negar o caráter envolvente do mundo em relação a minha
existência. Não posso abdicar da capacidade do mundo de orientar minha existência.
Heidegger chama isso de faticidade.

Ser compreensão significa que necessariamente, taxativamente, a existência se movimenta em


meio aos campos de sentido do mundo. É isso que se chama de facticidade.

Sartre e Husserl chamam atenção para a faticidade do corpo, o limite fático que não posso
abandonar, que condiciona minha percepção. Para Heidegger, o elemento que não pode ser
abandonado é o próprio mundo.

Compreensão é chamar atenção para o fato de que o ser aí sempre se movimenta em meio as
capas de preconceitos do mundo.

Mundo é a totalidade de sentidos históricos sedimentados

Heidegger diz que o mundo é uma capa de sentidos históricos, que sempre vão se formar de
forma encurtada47. Conceitos vão se desarticulando de suas vidas históricas, vão se deslocando do
mundo a partir do qual se originaram. Esses conceitos sempre vão se sedimentar historicamente,
ser transmitidos historicamente, mas sempre de forma encurtada, havendo deterioração dos
significados originários dos mesmos.

Fenomenologia quer reconectar os conceitos com as suas próprias vidas.

O mundo é um conjunto de preconceitos historicamente constituídos que nos são transmitidos de


forma encurtada.

46
Resgata tese típica do Dilthey: ao existir numa época, herdo as compreensões históricas
dela, e contra isso nada posso fazer.
47
Ex: diferença de “livre arbítrio" na contemporaneidade e na modernidade.
41
Ser um ser aí significa ser um ser no mundo, permitindo que a compreensão estabeleça um liame
entre existência e mundo. A existência, portanto, é compreensiva.48

Compreensão é modo de ser, existencial. Existência é compreensiva. Heidegger ontologiza a


compreensão, a articula com a existência.

Heidegger descreve a situação hermenêutica, justamente a limitação da existência de forma


compreensiva.

Para Heidegger, existir significa ter sempre uma posição prévia, um ter prévio e um conceber
prévio.

Assim como Dilthey previu, ao existirmos em um mundo histórico, nos colocamos numa
posição diante de campos de pré-conceito. Uma posição prévia, situação perante pré-conceitos.
Essa situação perante pre conceitos me fornece as chaves da minha existência, é um ter prévio.
Esse ter prévio possibilita que eu conceba, uma conceitualidade prévia.

Todos os conceitos devem ser estudados articulados com a situação histórico-compreensiva em


que se movimentam.

Compreensão faz parte da tarefa filosófica. Para que a filosofia volte a ter condição de pensar a
vida dos conceitos, é necessário que a compreensão seja tematizada. Olhar para a situação
hermenêutica e perceber como o mundo orienta meu modo de acesso aos fenômenos.

Para estudar filosofia, preciso ter consciência da minha situação hermenêutica. Consciência
da minha situação prévia, do meu ter prévio, para que consiga manejar conceitualidade
prévia.

Interpretação significa a ratificação do compreendido.

Nosso acesso aos entes é mais de ordem prática do que teórica. Sempre lidamos com as coisas
enquanto coisas. A compreensão nos chama atenção para a primazia do mundo prático sobre o
aspecto teórico.

48
Diferença fundamental da hermenêutica clássica, para qual a compreensão é resultado de
um procedimento intelectual metodológico que permite um resultado proveitoso.
Schleiermacher: compreensão é produto do conjunto de interpretações produzidas pelo método
Dilthey: compreensão é articulação entre vivências e todo da vida, por meio de método
42
Quando ratifico a compreensão, realizo interpretação. A ideia de interpretação é a explicitação da
compreensão.49 Heidegger diz que compreensão é correlato originário da existência.
Explicitação do compreendido é interpretação.

Por ser um projeto jogado, todas as minhas possibilidades existenciais enquanto ser aí se
realizam em meio ao mundo. Por isso Heidegger trabalha o problema da mundanidade do
mundo circundante. Fenomenologia do mundo.50

Heidegger diz que para que eu perceba o mundo como conjunto de pré-conceitos, tenho que
tomar os entes intramundanos a partir do seu modo de ser.

Ser aí é um ente intramundano que tem um modo de ser específico, a existência, o lançamento
ao mundo para que este dê orientações para que possa existir.

Entes intramundanos também tem modos específicos de estarem no mundo.

Aqui Heidegger mobiliza uma tese husserliana essencial. Para Husserl, o princípio
fenomenológico fundamental é tomar as coisas sempre nos seus modos de autodação. Quando a
redução fenomenológica se estabelece o objetivo é justamente superar as hipostasias de ordem
realista e idealista. Análise das coisas do modo como se dão, surgem, se apresentam.

Heidegger faz a mesma coisa com os entes intramundanos. Para Heidegger, eu vejo o mundo
analisando o modo como os entes intramundanos se apresentam para mim.

Esses entes intramundanos sempre se apresentam para mim de três modos: ocupação,
preocupação e cuidado.

A ocupação retrata o modo como os entes instramundandos se mostram enquanto utensílios


na sua dinâmica de uso. As coisas são sempre PARA, são sempre utensílios.

49
Inversão em relação à hermenêutica clássica, que acreditava que a interpretação é um
procedimento que leva à compreensão.
50
Relação com o problema do Dilthey em relação a tarefa de fazer com que as vivências se
articulem em uma época, como desenvolver a compreensão - é impossível que passe por cada uma
das expressões de uma época para analisar individualmente e reconstituir um nexo vital como um
todo. Dilthey aposta numa psicologia descritiva, para que possa ver o mundo e articular com as
vozes audíveis de uma época
43
Heidegger não usa outros termos como poiesis, coisa, objeto, mathesis, porque esses termos tem
uma história muito peculiar. 51 Heidegger prefere utilizar utensílio, cujo correspondendo grego é
pragma, algo que serve para alguma coisa.

De pronto e imediato, ser ai se relaciona com entes intramundanos que tem como modo de
autodação e mostração imediata a lógica da ocupação utensílios. Eles servem para alguma coisa.

Heidegger quer dizer que os entes intramundanos aparecem na lógica da ocupação. Mostra
como os utensílios se relacionam com o ser aí.

O utensílio sozinho nunca é, sempre aponta para uma rede referencial mais ampla em relação a ele
(exemplo: caneta aponta para o papel). Todos os entes intramundanos existem a partir de uma
lógica de ocupação referencial mais ampla, uma cadeia de significados mais amplos. Dinâmica
conglobante em meio a cadeia utensiliar. Utensílio sempre aponta para a ideia de totalidade
utensiliar.

A lógica da ocupação necessariamente vai articular a preocupação.

Os utensílios, ao me mostrar seus modos de ser, também fornecem os mobilizadores das


nossas ações. Na dinâmica utensilial, vão aparecendo o modo como nós devemos nos
comportar em relação a esses utensílios. Os utensílios, na lógica da preocupação, nos mostram
imediatamente os outros.

Os utensílios sempre apontam para a presença do outro que deveria estar ali. Experiência imediata
do outro em meio a lógica de ocupação dos utensílios.

Nossa experiência existencial é sempre uma experiência socializante.

A tese do contrato social, de constituição de uma vida social a partir de contrato é BALELA,
Sempre, de imediato, nos relacionamos com os outros, se não efetivamente, a partir da
dinâmica de utensílios que permite vê-los.

A lógica utensiliar sempre vai apontar para o outro, fornecendo critérios para que possa agir,
mobilizando minha existência.

51
Heidegger não chama os entes intramundanos de poiesis, porque poiesis marca o ente no seu
aspecto de produtibilidade técnica, de construção. Não usa o termo coisa, porque coisa significa o
ente para ser conhecido, tomado no seu processo de conhecimento. Entes intramundanos tem
primazia de mostraçao prática em relação a mostração teórica.. Mathesis é objeto do conhecimento,
uma matemática, mathesis universal, análise do universo do ponto de vista da possibilidade do
conhecimento. Se pressupõe um ente que serve para ser conhecido, e não é esse o modo de dação
dos entes intramundanos. Não usa objeto porque este pressupõe um sujeito. O ser aí não é sujeito,
não tem essência.
44
Preocupação significa o modo de lidar com as coisas, os mobilizadores da minha existência e
os modos a partir dos quais consigo ver o outro em meio a dinâmica utensiliar.

Esse utensílio pode ceder espaço, a lida com esses objetos, a partir do modo da presença vista.

Se estou usando um utensílio, imerso na sua dinâmica da ocupação, quando ele para, a dinâmica
do uso se encerra, e quando isso acontece, passo a analisar este utensílio de outra maneira, me
atento para seu modo de funcionamento em termos de constituição de substância. Saio de
modo de ocupação para lidar de outra maneira, como coisa dotada de propriedade.

Com a paralisação da lógica de ocupação, passo a lidar com os objetos de outra maneira,
como entes dotados de propriedade que precisam ser estudados, marcados pela lógica da
substância.

Os entes intramundanos também são utensílios que apontam para uma dinâmica maior de
realização, e também permitem me relacionar com os outros, permitindo também mobilização
da minha existência.

Esses utensílios podem parar de funcionar, quando passo a presctuá-los como entes dotados
de propriedades. Aqui entra em jogo a figura das ciências.

Contudo, existe um ente intramundano que não se apresenta na forma da ocupação e da


preocupação, o ser aí. O modo de ser do ser aí é cuidado, ao relacionar-se com o utensílio e
com os outros, coloca seu ser em questão. Ente negativo pode se determinar sempre a cada vez
em que ele assume um projeto existencial, nunca está acabado, é marcado pela finitude.

Esses entes intramundanos sempre permitem ver uma relação entre sentidos e significados.
Compreender é se colocar diante de campos de sentido. Quando mudam os campos de sentido,
mudam os significados. Significados são alterados quando os sentidos também se alteram.

Ser um ser no mundo é ser antes de tudo compreensão - mundanidade no mundo circundante.
A compreensão coloca o ser aí diante de campos de sentido que permitem que se articulem
significados. Ser um ser no mundo além de ser compreensão é ser disposicao

DISPOSIÇÃO significa o modo de abertura do mundo para o ser aí.

Para Heidegger, disposição se relaciona a ideia de tonalidades afetivas ou doutrina dos afetos.

A filosofia moderna rejeita a filosofia antiga e sua concepção de verdade. A verdade para a
filosofia antiga é adequação do pensamento às coisas. As coisas tem essenciais que precisam
orientar o modo de a razão lidar com eles
45
Na filosofia moderna, a verdade significa adequação das coisas ao pensamento. Pensa-se numa
substância pensante que vai se relacionar com as coisas no mundo exterior a partir do problema do
acesso. Tese de pensar o modo como a razão interior se expande para lidar com as coisas. Problema
do método - indutivo ou dedutivo

Para a filosofia moderna, existem dois modos específicos de a razão se relacionar com as
coisas: a partir do aspecto teórico e a partir do aspecto prático. Duas faculdades básicas:
faculdade cognicitiva (permite conhecer as coisas no mundo exterior) e faculdade prática da
vontade (que permite querer as coisas no mundo exterior, orienta o agir em meio as coisas no
mundo exterior).

Me relaciono com as coisas do mundo exterior de duas formas: com a intenção de conhecê-las
ou de, através da vontade, estabelecer minha ação em relação a elas.

Contudo, existe um terceiro modo de me relacionar com as coisas do mundo exterior: através
dos afetos, que, ao longo da história da filosofia ocidental, sempre foram uma via não
estudada, uma coisa de menor importância.

No interior da disposição, Heidegger tenta resgatar a dignidade dos sentimentos. Disposição


significa o modo a partir do qual o mundo é aberto a compreensão. Os afetos são os responsáveis
por abrirem o mundo à compreensão. Tonalidades afetivas permitem que o mundo se abra, e
permitem estabelecer o modo como me relaciono com o mundo. Nossos afetos vão determinar
o modo como nós lidamos com os entes intramundanos. Heidegger está dizendo que o modo
como me relaciono com as coisas, inclusive com o espaço, é marcado pela dinâmica de
sentimentos.

Para Heidegger, o espaço é afinado pelos afetos.52 Os afetos permitem que eu me relacione com o
espaço de uma forma muito específica.

Para Heidegger, existem dois modos de os afetos permitirem o relacionamento com o mundo:
tonalidades afetivas cotidianas e as tonalidades afetivas fundamentais.

Tonalidades afetivas cotidianas são as responsáveis por abrir o mundo e permitir que os entes
intramundanos apareçam.

Esse é um elemento que Heidegger tira do Husserl. Toda vez que o horizonte se abre, que o mundo
se abre, o ente vem a presença mas o fundo se retrai. Quando o horizonte é aberto, os entes se
mostram, mas o horizonte ele mesmo não é passível de alcance. Horizonte recua para que os

52
Isso é um tapa na cara do Kant, que diz que o espaço é elemento racional.
46
entes apareçam. Tonalidades afetivas cotidianas abrem o horizonte, então ele mesmo se retrai,
e os entes vêm a presença. Tonalidades afetivas cotidianas abrem o mundo para que os entes
venham a presença. Com isso, o próprio mundo se esconde.

Já as tonalidades afetivas fundamentais são as responsáveis por abrir o mundo e mantê-lo


aberto. Quando o mundo se mantém aberto, os entes não se mostram, e, por isso, não tenho
campos de sentido, logo, não tenho significados, e, assim, não tenho dinâmica de ação.

Quando as tonalidades afetivas fundamentais se estabelecem, não consigo fazer nada. Não tenho
como mais seguir a orientação remissiva do mundo. As coisas deixam de ter capacidade de
orientar minha existência.

Duas são as tonalidades afetivas fundamentais: tédio profundo e angústia (mais radical,
responsável pelo processo de singularização, fundamental para que o ser aí se reconecte com a sua
negatividade, sua nadidade estrutural).

Os afetos abrem o mundo e estabelecem o modo como se lida com o mundo. Quando o mundo é
aberto e os entes vêm a presença, tenho a possibilidade de interpretação, de concretizar a
compreensão.

O último elemento dessa estrutura ser no mundo é o DISCURSO.

Discurso é articulação dos significados em linguagem

Compreensão me coloca diante de campos sentidos. Disposição são os afetos que me abrem o
mundo a esses campos. Quando esses sentidos vem a presença, se articulam em palavras, pelo
discurso.

A fala, os juízos, nada mais são do que articulação das vozes do mundo. Quando falamos, não
somos nós que articulamos palavras, as proposições não criam significados. Quando falamos, o
mundo fala através da nossa linguagem. Discurso é articulação do projeto jogado, do mundo..

As palavras não tem condição de estabelecer campos de sentido. Pragmática discursiva é bobagem.

Discurso é modulação de sentido e significado cotidiano. Quando se fala, é o mundo que


tagarela. Falar é articular vozes do mundo.

Sempre falamos porque nós nunca temos algo a dizer. Nós não temos sentido, somos entes
negativos.

47
O discurso cotidiano é falatório, a linguagem que permite ver o mundo, permite articular o
mundo.

Isso é perigoso, porque as palavras perdem a capacidade de nomeação.

Heidegger diz que pelo fato de o discurso cotidiano ser aquele em que se movimentam
significados intramundanos, sedimentados, quando falamos as palavras se desarticulam dos
campos de aparição dos fenômenos, para simplesmente movimentar pré-conceitos.

Falatório é uma movimentação de pré-conceitos. Mobilizamos discursivamente a fala do


mundo.

A existência abriu compreensivo-dispositivamente esses campos de sentido do mundo. Logo,


sempre mobilizamos significatividade discursiva do cotidiano, da impropriedade.

Por isso que o projeto fenomenológico de Heidegger passa exatamente pela desconstrução da
história da metafísica para que as palavras deixam de simplesmente reverberar a significância
do mundo e permitem outra vez que o fenômeno originário venha a presença, que o
movimento das coisas ganhe corpo para além da sedimentação histórica no interior da
metafísica.

Aqui, através da articulação da estrutura ser no mundo, conseguimos perceber a relação entre
projeto/existência e mundo. Relação entre ser aí e ser no mundo

O ser aí, por ser possibilidade, é um projeto. Mas é um projeto jogado no mundo. Isso aponta
aquilo que Heidegger chama de existência cotidiana da impropriedade.

Essa existência cotidiana da impropriedade é chamada de decadência. Decadência significa a


existência cotidiana do ser aí enquanto ser no mundo.

Decadência tem três elementos que a marcam: falatório, curiosidade pelo novo e a
ambiguidade.Por ser um ser no mundo, o ser aí assume, através das estrutura ser no mundo, os
elementos da decadência

Ser no mundo é ser compreensão, disposição e discurso. O ser aí, existindo enquanto ser no
mundo, o faz de modo decaído, de forma impessoal, porque sempre se movimenta no interior
do falatório, da curiosidade pelo novo e da ambiguidade.

Falatório é a articulação discursiva da linguagem do mundo.

48
Curiosidade pelo novo é se relaciona ao modo como o ser aí vai saltando de um fenômeno
intramundano para outro, tem atenção difusa, vai distendendo sua atenção de uma nova
informação para outra. Isso ressalta a estrutura da decadência.

Ambiguidade é uma consequência do falatório e da curiosidade pelo novo. O ser aí acha que tem
conhecimento, mas na verdade não sabe nada, porque está simplesmente mobilizando o
mundo. Ser aí não é especificamente nada, não tem essência. Ambiguidade do próprio ser aí,
porque lida com a capa do impessoal, com a impropriedade, e acha que é exatamente o que os
pré-conceitos articulam. Ambiguidade aponta para essa sedução do mundo.

Decadência é uma eterna fuga de si. Quando me aprofundo na estrutura do impessoal me


afasto de mim, porque eu sou um ente negativo. Existir é perder-se de si. Decadência é a fuga,
cada vez mais avassaladora, de si próprio. O mundo me fornece uma forma de sedução, me fornece
fórmulas que obscurecem meu caráter de possibilidade original, uma certa quietude, estabilidade.

Somos entes em transitoriedade porque somos entes negativos. A ambiguidade mostra


justamente esse castelo de areia em que o ser aí se apoia, porque acha que é um modo de ser
fornecido pelo mundo, mas na verdade não é, porque é um ente negativo.

Heidegger chama atenção para a necessidade de a filosofia reconduzir o ser aí, reconduzir as
ontologias para os fenômenos originários. Tem que permitir o rompimento com a capa de
pré-conceitos do mundo.

A filosofia deveria tentar justamente resgatar a dimensão de propriedade do ser aí, trazer a
presença para o ser o fato de que é um ente negativo, quebrando a sedução do cotidiano. É
preciso que o ser aí se liberte dessa cápsula aprisionante dos campos de sentido do mundo, que
tenha liberdade de fato.

Para Figel, toda obra de Heidegger é a respeito da liberdade.

Com o processo de singularização, Heidegger quer exatamente promover uma dimensão de


liberdade do ser aí frente aos pré-conceitos, para que de fato possa existir abraçado a sua
negatividade, sua finitude, sem sofrer com isso, sem pretensão de completude, de perfeição

Para que o ser aí se movimente no mundo de uma outra maneira, é necessário que
experimente o processo de crise existencial. Para que se reconecte com a negatividade estrutural,
o mundo enquanto campo de sentido que fornece significado não pode mais atuar prescritivamente
sobre o ser aí. A estrutura ser no mundo tem que deixar de operar em relação ao ser aí, não pode

49
mais orientá-lo. Isso acontece a partir da crise existencial, que se dá quando se abate a
tonalidade afetiva fundamental da angústia

Angústia para Heidegger é um elemento que não tem perante o que, não sabemos com que nos
angustiamos. A angústia é uma tonalidade afetiva que abre o mundo e o mantém aberto.
Quando ela se abate, o ser aí não consegue fazer mais nada, porque os campos de sentido não
atuam mais. Angústia traz de forma escancarada para o ser aí sua negatividade. Sendo ente
negativo, precisa do sentido do mundo para que possa concretizar sua existência. Quando a
angústia se dá, os campos de sentido do mundo deixam de atuar em relação ao ser aí, ele,
então, deixa de se movimentar.

Singularização é o processo a partir do qual a angústia se estabelece e ressalta para o ser aí


que ele é um ser-para-a-morte.

Heidegger diz que a morte significa a possibilidade máxima da impossibilidade, significa a


demonstração da finitude do ser aí. Nós experimentamos sempre a morte dos outros, não temos
experiência ôntica da nossa própria morte.53

Heidegger diz que a morte é a radicalização da experiência da impossibilidade maxima.

Quando o ser aí antecipa a morte, tem consciência da sua mortalidade, sua finitude se
estabelece para ele. Quando a angústia se estabelece, ser aí tem consciência máxima de que é
um ente negativo, percebe sua finitude, que não tem nenhum sentido a não ser em estando no
mundo.

Quando o ser aí tem consciência de sua situação, se estabelece o que Heidegger vai chamar de
singularização.

Singularização é quando o ser aí experimenta a sua finitude a volta a lidar com o mundo, com
consciência de que o sentido intramundano é do mundo, não é dele. Tem consciência de que
cada um dos seus modos de ser vão o determinar.

Quando a angústia se estabelece, quando há antecipação da experiência da nadidade máxima da


morte, quando se conclui o processo de singularização, o ser aí volta a lidar com o mundo,
porque é impossível não o fazê-lo.

Quando volta, tem consciência da sua finitude, de que cada um dos seus modos de
performance existencial vão o constituir enquanto tal. Com isso passa a ter responsabilidade

Epicuro diz que preocupar-se com a morte é uma grande tolice, porque quando a morte é, nós não
53

mais somos.
50
por ser quem ele é. Não mais transmite para o outro a culpa por ser quem ele é. Passa a
experimentar ser quem ele é, tendo prazer nisso.

Singularização permite que o ser aí tenha outro modo de lida com as coisas, e isso é fundamental
para a ideia da experiência da verdade dos fenômenos originários

Ser aí passa a tomar os fenômenos no seu campo de autodação. Vê os entes intramundanos


como entes intramundanos. Se vê também como ente negativo. Percebe que os entes têm sua
relação com o mundo, e que ele depende deles para constituir o sentido. Tem consciência de si.
Chama para si as rédeas da vida, tem consciência da sua finitude, de que, existindo, se
constitui enquanto existente. Heidegger pensa num modo distinto de o ser aí lidar com os
preconceitos do mundo.

Contudo, esse projeto acaba falhando.

Heidegger tem a ideia de que, ao se corrigir através da finitude, se tem outro modo de lidar com a
temporalidade, porque o ser aí se vê como possibilidade aberta de um modo distinto no presente. Ao
se temporalizar, ele abre espaço para que o ser se temporalize.

Por isso, nas obras tardias, Heidegger pensa outro caminho

Ao invés de trabalhar a re-historização dos pré-conceitos a partir da crise existencial do ser aí,
passa a pensar a historização do ser, do mundo, a partir dele mesmo. Ao invés de o caminho ser
do ser aí para o aí, procura-se o caminho que vai do aí para o próprio ser aí.

O conceito de acontecimento apropriador ou ereignis. Heidegger pensa como o mundo se


temporaliza, se historiciza, a partir dele mesmo. Quando isso se estabelece, cabe ao ser aí dar
voz a esse processo de historização do mundo através da poética do homem de estado e da
filosofia.

Modo distinto de a filosofia lidar com a história e com os preconceitos.

Aula 8: 14/09/2021

Dúvidas

- Modo de ser do ser aí aponta para a temporalidade porque ele aponta para a total abertura e
total possibilidade, pelo fato de não ter essência. Não tem nenhum tipo de teleologia, de fim para
seu projeto. Possibilidade se articula com o futuro. Essa possibilidade se concretiza a partir da
estrutura ser no mundo. Ser um ser no mundo significa se movimentar no interior de

51
pré-conceitos. Ser aí é jogado num mundo já pronto, e todas as chaves para concretização das suas
possibilidades são fornecidas pelos pré-conceitos, logo, para o passado.

Ser aí é um ente temporal que se movimenta no presente a partir do momento em que seu futuro
é aberto no passado. Concretiza seu projeto existencial a partir da tradição.

- Ser aí é finito porque nenhuma configuração que vá preencher seu projeto existencial é
definitiva. Nenhum projeto que ele faça dura pra sempre. Cada modo de ser é articulado com os
pré-conceitos. Continua sendo possibilidades. Assume os papéis do mundo, mas não é efetivamente
nenhum desses. Cuidado é o ser que se determina na relação, que nunca é definitiva. A tonalidade
afetiva fundamental da angústia permite que ele se rearticule com sua indeterminação originária.
Ele é continuamente indeterminado, ainda que vez por outra assuma algum papel no mundo. Se
ele fosse infinito, se realizasse em termos de essência, deixaria de ser ser aí. Ele sempre vai ser
possibilidade aberta que tem condições de se concretizar no mundo. Não se perpetua para além
dele mesmo, por isso é finito. Finito no sentido de não estar totalmente acabado, perfeito. Não há
elaboração definitiva de si próprio.

- Campo de autodação. Husserl esclarece que quando o ato de consciência se estabelece, aquilo
que aparece como correlato se autoestabelece, se autodá, se apresenta por conta própria.

Todo pensamento fenomenológico trabalha com a relação entre consciência e correlato da


consciência que se autoestabelece.

No caso do Heidegger, a estrutura fenomenológica é transferida para a própria analítica do ser


aí.

A existência é intencional, existir significa projetar-se, ir além de ser próprio. Ser aí projeta sua
existência no mundo, que se apresenta por contra própria. Pelo fato do ser aí ser ser jogado, o
próprio mundo se autoapresenta concomitantemente a existência do ser aí. Existo em um mundo
estabelecido antes de eu chegar aqui. Existência intencional/co-originária com o mundo. Campos
de sentido do mundo se apresentam a mim de forma imediata, e contra isso nada posso fazer.
Heidegger transpõe o elemento intencional para a existência. A existência é intencional. O
mundo tem caráter prescritivo em relação a nós. Imposição, autoapresentação da história.

Ser aí não tem possibilidade de suplantar essa estrutura nem dizer que é efetivamente esta. É
originariamente indeterminado.

- O mundo está pronto e acabado antes de chegarmos até aqui

52
Ser aí, a partir do momento em que passa pela experiência da tonalidade afetiva fundamental da
angústia, se rearticula com sua nadidade ordinária. O mundo deixa de atuar sobre o ser aí. Com
isso, ele se rearticula com seu caráter finito. Pelo fato de me reconectar com minha nadidade,
re-historicizo os campos de sentido do mundo. Tenho consciência da minha finitude, logo, quando
for me relacionar com o mundo, tenho consciência de que cada um dos projetos que assumo não
são definitivos. Heidegger quer tentar corrigir a historização dos preconceitos a partir da
temporalização do próprio ser aí, que se reconecta com sua nadidade, e traz esse caráter com o
próprio mundo.

Esse projeto é pretensioso. É impossível o ser aí se temporalizar e a partir daí corrigir o caráter de
sedimentação histórica dos preconceitos do mundo. Heidegger até abandona essa tese, em que
quer a correção do caráter temporal do mundo a partir dele mesmo. Aí entra em jogo o conceito de
acontecimento apropriador. Acontecimento de ser, que posiciona as distintas épocas históricas.
Esse acontecimento não se identifica totalmente com essas épocas. Ser posiciona o fundamento
histórico, mas ele mesmo não o é. porque se ele, ser, fosse fundamento histórico não seria possível
que novas configurações de fundamento acontecessem,

Ser e ente são distintos. O acontecimento de ser funda época, mas não é a época fundada. A
correção histórica do mundo ocorre por conta do próprio mundo.

- Ser e tempo é uma obra que lança hermenêutica da faticidade. Hermenêutica da faticidade é o
esclarecimento da situação existencial do ser aí. Como existe cotidianamente a partir da relação
com pré-conceitos

Os pré-conceitos fornecem qualquer tipo de acesso compreensivo interpretativo a qualquer relação


no mundo.

Ser e tempo mostra que a existência é compreensiva. Existir é compreender, imediatamente me


colocar em relação com os pré-conceitos do mundo. A existência é compreensiva. Isso é uma
grande diferença em relação à hermenêutica clássica, que tratava da compreensão por meio de um
método interpretativo. Me relaciono e interpreto os campos de sentido do mundo a partir do
momento em que coloco em prática as orientações do mundo.

Hiedeggger resgata Dilthey. Ciências tem desatenção em relação ao contexto histórico. Não
existe compreensão a partir do zero, porque sempre vemos algo como algo. A Ciência sempre se
movimenta em pré-conceitos.

53
Toda orientação mundana já está pronta antes de o ser aí chegar até aqui. Tudo se origina na
tradição, dos pré-conceitos, porque a existência é compreensiva. Método é desnecessário, porque
informação existencial é fornecida pelo mundo, as coisas se autoapresentam, se autodão.

Se deve ter atenção ao modo como o mundo se dá. Hermenêutica da faticidade - esclarecimento
ao ser aí em relação a condição da faticidade, do caráter histórico sedimentado do mundo. Não
posso fazer nada contra a faticidade. Tradição é fática, elemento pronto e estabelecido, me oriento
em relação a ela.

- A temporalidade para Heidegger é da existência. O ser aí é ser temporal. Projeto minha


possibilidade existencial no passado, trazendo-o na sua relação com o futuro no presente.

A história se movimenta de forma sedimentada, por isso, em “Ser e tempo” há necessidade da


angústia para re-historização, e em “Contribuições à filosofia", há necessidade da diferença
ontológica para que as épocas possam se estabelecer enquanto qual.

Em Schleiermacher e Dilthey, a história e a historização acontecem por meio de métodos.

Gadamer

Gadamer foi orientando de Heidegger, mas, apesar de muitos acharem que isso ocorre de forma
recorrente, a obra gadameriana tem mais inspiração do Husserl.

A grande influência de Gadamer é Husserl, não Heidegger.

- “Verdade e método” (1960)


- “Atualidade do belo”
- “Hermenêutica em retrospectiva” (2007)

A principal orientação para nossa disciplina é Verdade e Método.

Essa obra marca o nascimento da hermenêutica filosófica. Apesar de existirem reflexões


filosóficas acerca da hermenêutica em “Ser e tempo” (análise fenomenológica da existência,
hermenêutica da faticidade), a disciplina no interior da filosofia com esse nome só surge com
Gadamer.

É uma obra que tem por intuito fundamental apresentar o caráter universal da hermenêutica.
Qualquer comportamento intramundano é hermenêutico. A hermenêutica é um traço
estrutural da relação do homem com o mundo, tudo o que acontece conosco é hermenêutico,
desdobramento da história efeitual.

54
Nós nos movimentamos no interior de tradições, mas isso não significa que as tradições não se
reconfiguram. Diferente de Heidegger em Ser e Tempo, Gadamer prevê o modo através do qual
os pré-conceitos se reconfiguram, se reformulam a partir da ideia de fusão de horizontes.

Se é em Ser e Tempo há todo um procedimento dramático, da angústia, para que o mundo tenha um
modo diverso de relacionamento com o ser aí, e, depois, há necessidade de acontecimento de ser
para que o mundo tenha uma nova configuração; no interior de Verdade e Método há um modo
muito mais fácil de os pré-conceitos se rearticularem temporalmente, através da chamada
fusão de horizontes, que acontece cotidianamente de uma forma que as vezes nem
percebemos.

Existência é marcada pela ideia de fusão de horizontes, que permite então a atualização dos
pré-conceitos.

Para Gadamer, o ser dos pré-conceitos é temporal, porque constantemente se reconfigura no


interior da história. O grande propósito da obra é chamar atenção para a verdade dos processos
históricos. É uma obra que, de certa maneira, resgata o projeto de Dilthey de uma ciência
histórica, queria pensar a compreensão como elemento que forneceria as condições de
possibilidade de todas as ciências, chamando atenção para o fato de que todas as ciências são
compreensivas. Dilthey peca, porque pensa a compreensão ainda estruturada metodologicamente.

Verdade e Método retoma o projeto diltheyano, de pensar a compreensão como elemento


marcante do mundo, como acontecimento histórico, pensando na chamada verdade dos
processos históricos.

Verdade dos processos históricos. Gadamer defende que existe uma verdade diferente da que se
observa no interior das ciências naturais, em que existe uma verdade categorial/lógica, aquela em
que os fenômenos são tidos como verdadeiros a partir do momento em que são subsumidos a uma
regra universal. Subsunção do particular ao universal.

Gadamer pensa que existem medidas históricas que se impõe por conta própria, e essas não
podem ser negadas em seu caráter de objetividade, a despeito de elas não se constituírem
metodologicamente. Há verdade nas categorias do humanismo, senso comum, retórica, tradição,
gosto, obra de tarde. Imposição de uma estrutura objetiva da história contra a qual nada podemos
fazer. Esse tipo de imposição objetiva, de formação de uma medida objetiva, para as ciências
naturais, só poderia se criar a partir de um método, de submissão de particular a uma regra
universal.

55
A palavra verdade, no interior da tradição filosófica, já representou coisas distintas. No mundo
antigo, é adequação do pensamento a coisa54; no mundo moderno, a partir principalmente de
Descartes55, verdade é a adequação das coisas aos pensamentos.

O esforço da filosofia moderna é pensar a verdade articulada com a adequação das coisas às
categorias da razão. Sem a razão as coisas não são possíveis. Os pensamentos cartesiano e
kantiano vão articular todo esforço investigativo das ciências. Filosofia moderna desenvolve, com
a ideia de método, são meios que permitem que a razão tenha acesso às coisas. Preciso
racionalmente criar um caminho para que as coisas me sejam acessíveis. Com o pensamento
moderno, criou-se a tese de que o pensamento científico só vai alcançar a verdade se se seguir um
método.

A tradição científica da modernidade nos forneceu a tese de que para que a investigação
científica aconteça é preciso que meu procedimento se subsume, se adeque às regras prévias
ao próprio procedimento. Regras que pautam toda investigação científica. Caminho metodológico
a ser seguido.

Tese de que se não sigo método, toda minha investigação é subjetiva. Para universalizar resultados
investigativos que encontrei, é preciso método. Se não há método, estou articulado a subjetividade.
Método é elemento de garantia da objetividade. Por não existir possibilidade de objetivação, as
coisas continuam na minha esfera pessoal.

Verdade e Método diz que é possível que medidas objetivas se imponham independentemente
de método. Há uma verdade, há uma autodação, autoimposição, automostração, de
objetividades que prescindem, que independem de método para se apresentar. É isso que
Gadamer chama de verdade dos processos históricos. Gadamer diz que a tradição nos lega, nos
transmite, nos entrega objetividades que não podem ser negadas no seu caráter de objetivo.

54
Procurava a verdade enquanto adequação do pensamento às coisas. Gregos - verdade relacionada à ideia de
alethea - desvelar da realidade.
Pré-socráticos procuram arché, princípio fundante de todas as coisas - de onde tudo veio, para onde tudo vai
e qual a essência de todas as coisas?
Diminuição da distância entre pensamento e coisa, logos e physis. Verdade é apresentação da arché a razão
55
Descartes: contestação da existência do mundo exterior, porque não sei se este é tal qual como o vejo. Uma
única coisa resiste a este aspecto questionador, o próprio pensamento que questiona. Verdade se estabelece
quando as coisas se adequam às categorias da razão.
Kant pensa nas categorias racionais que vão permitir o conhecimento e a ação, o que chama de
transcendental. Três questões fundamentais: condições de conhecimento, que dependem do fenômeno, que é
organizado pelas categorias da razão. Há conhecimento quando ocorre união das categorias da razão com os
aspectos do fenômeno, união de sensibilidade e razão.
Sem a razão, a realidade não consegue ser posicionada.
56
Assim como Husserl disse que no interior da investigação fenomenológica aquilo que aparece à
consciência, o correlato, não pode ser negado na sua objetividade; assim como Heidegger diz que
o mundo aparece intencionalmente ao ser aí, e esse aparecimento não pode ser negado; Gadamer
diz que as medidas da tradição se impõe e não podem ser negadas no seu caráter de
transmissibilidade histórica.

Tradição vem do latim tradere, entrega. O que está em jogo nessa expressão é o ato de transmissão
de algo do passado para o presente, algo esse que não pode ser negado no seu caráter de
transmissão.

Gadamer quer pensar na verdade dos processos históricos que se manifestam nas categorias
do humanismo, bom senso, gosto, tato, fronesis, obra de arte. Há um caráter objetivo no interior
do acontecimento artístico, aparecendo do mesmo modo que faz a história. O modo como a obra de
arte acontece é o mesmo com que a tradição nos entrega medidas objetivas.

Verdade e Método se dedica à verdade dos processos históricos, justamente para se rejeitarem
as categorias do pensamento científico. Com isso, o que interessa para Gadamer é a formação de
medidas históricas objetivas que se autoapresentam.

Toda a tradição fenomenológica parte, primeiro, da autodação dos fenômenos; e segundo, se


preocupa com a investigação acerca da formação desses elementos que se auto-apresentam.
Fenomenologia vai identificar que existem elementos que se autoapresentam e investigar como o
fazem.

Gadamer é um autor tipicamente inserido na tradição fenomenológica. Gadamer diz que há na


tradição a transmissão de medidas históricas objetivas. Quer investigar o modo através do
qual essa transmissibilidade da tradição acontece, como se dá a formação dessas medidas
históricas para além da subjetividade.

Por isso as ideias de adequação entre coisa e pensamento, de correção da verdade precisa ser
superada. Há um elemento de auto imposição do caráter histórico das verdades tradicionais.

Verdade e Método é uma obra que quer rejeitar a concepção de verdade antiga (adequação do
pensamento a coisa) assim como rechaçar a ideia de verdade moderna (adequação da coisa ao
pensamento, correção da verdade). Gadamer quer rejeitar essas duas concepções clássicas de
verdade através do acontecimento da tradição.

Essa ideia de verdade, em Verdade e Método, acaba, por consequência, pensando na


universalidade da hermenêutica. Se todo comportamento existencial, toda teoria científica,

57
todo comportamento prático, só acontece no interior do acontecimento da tradição, a
hermenêutica é um fenômeno universal.

Diferente da hermenêutica clássica, que pensava a hermenêutica como uma técnica de adequado
acesso ao sentido, a hermenêutica filosófica mostra que tudo o que acontece no interior de uma
época histórica do processo tradicional, responde a este.

Verdade e Método quer mostrar a universalidade do fenômeno hermenêutico. Tudo pode ser
pensado hermeneuticamente. Em cada um dos domínios científicos particulares há a imposição da
verdade da tradição. A hermenêutica filosófica quer mostrar como a tradição acontece, e, em
acontecendo, se manifesta em qualquer tipo de ciência específica. Modo através do qual a
tradição vai impactar no procedimento das investigações.

A hermenêutica é universal porque está articulada com a história, com a tradição.

Primeiro objetivo/consequência é a universalidade do fenômeno hermenêutico. Hermenêutica é


universal porque, assim como Heidegger já havia visto, a compreensão faz parte da existência e nós
nos movimentamos sempre no interior das verdades da tradição Com isso se rejeita a ideia de uma
verdade construída a partir de métodos. Há verdade a despeito de método. Combate a
necessidade de método para acesso à verdade.

Isso tem claras consequências para a hermenêutica jurídica. A hermenêutica jurídica clássica só
consegue pensar o acesso ao sentido do texto das fontes do direito através do método -
filológico, sistemático, histórico, teleológico. Se o aplicador não demonstra seu acesso
metodológico ao sentido dos textos, sua interpretação é marcada pela subjetividade. Art. 98, IX, da
CF - decisão não fundamentada/motivada não existe. A hermenêutica jurídica se constrói no
interior de uma tradição tipicamente metodológica.

Hermenêutica jurídica tecnicamente não é hermenêutica, porque a hermenêutica filosófica se


revolta, se contrapõe, a necessidade de um método para acesso ao sentido.

O sentido me é fornecido imediatamente pela história efeitual, e é isso que Gadamer vai
chamar de verdade. A mobilidade dos processos históricos que vão fornecendo medidas objetivas
na movimentação histórica, no aparecimento temporal das medidas.

O que chamamos de hermenêutica jurídica clássica (descrição do método para acesso ao


sentido das fontes do direito) seria melhor denominado de teoria da interpretação e da
aplicação do Direito. Não é hermenêutica, porque essa prescinde da ideia de método.

58
Gadamer, no seu esforço genuinamente fenomenológico, mostra como se formaram medidas
históricas capazes de se imporem, em seu caráter de objetividade, para além da requisição
metodológica. Trabalha, na primeira metade de Verdade e Método, as categorias centrais do
humanismo. Mostra como as ciências humanas têm suas objetividades a despeito do método.
Gadamer acompanha Dilthey, que pensa na hermenêutica das ciências do espírito. Atrela as
humanidades a hermenêutica. O erro de Dilthey foi ainda se apoiar em um método das ciências
humanas. Não é necessário método, porque as ciências humanas já tem suas medidas objetivas
que se formam historicamente. Mostra a formação histórica de elementos no interior das
humanidades, sem necessidade de requisição metodológica.

Gadamer vai mostrar como alguns conceitos das ciências humanas se formam para além do
método. Gadamer resgata um debate iniciado com Helmholtz, primeiro que se esforçou para pensar
as categorias centrais do humanismo.

Categorias: formação para humano, tato, juízo, gosto e retórica. Todas elas podem ser
pensadas a partir da ideia de fronesis.

Formação para humano. Gadamer diz que há na formação humana a apresentação de


medidas objetivas. A história da cultura ocidental é justamente a cunhagem de elementos objetivos
que vão se sedimentando historicamente sem que haja um método para tanto. Existência sempre
lida com elementos formativos que não dependem de método para se estabelecer.

Você pode contestar o modelo atômico de Bohr, a teoria da física, etc. Mas você pode contestar
Platão, Machado de Assis, Mozart, Beethoven? A classicidade deles não é abalada pela minha
contestação.

Caráter de formação da classicidade dos clássicos. Como os clássicos se tornam clássicos? O que
permite que algo se cunhe enquanto clássico? Retomado sucessiva no processo histórico, de
modo que hoje se torna medida objetiva. O próprio caráter de classicidade de um texto clássico
diz muito sobre formação. Podemos contestar posições pontuais dos autores, mas não perde sua
classicidade a partir de posições de contestação individuais.

Clássico é elemento que se formou no passado e continua sendo sucessivamente retomado no


presente, ainda que possa ser recepcionado de diferentes formas, por distintas tradições.

É isso que Gadamer chama de formação para humano.

Distintas vozes podem articular o ser da obra em questão, mas ela está presente no interior da
retomada da classicidade.

59
A classicidade não se forma metodologicamente. A obra se faz obra não pelo método.

Tato: Tato é ter habilidade para lidar com uma situação prática. Habilidade não ensinada
metodologicamente. Tato é a habilidade de atender as demandas da situação concreta. Isso,
para Aristóteles, era fronesis. Gadamer é marcado do começo ao fim por Aristóteles56. Isso não se
ensina, mas se aprende em se agindo.

Para Aristóteles, a pessoa se torna virtuosa pela ideia de exis, o comportamento57, se age de forma
virtuosa, e, para isso, é preciso que haja fronesis - repetição do hábito e saber perceber aquilo
que está em jogo na situação. Fronesis não se ensina teoricamente, mas se aprende pelas
requisições da situação. Isso está presente no tato, gosto e juízo. Em cada um desses, nos
comportamentos a partir da oitiva do que está em jogo na situação.

Gosto O gosto nunca é pessoal, subjetivo, sempre há uma formação histórica, que impõe, em
determinado contexto histórico, aquilo que é passível de ser gostado ou não. Não escolhemos
aquilo que é passível de ser gostado, mas são medidas históricas que se apresentam
automaticamente enquanto tais, e, para isso, não há método.

No juízo, no gosto, formação para humana, e sobretudo na retórica, há elementos de caráter


hermenêutico.

Retórica, desde os sofistas, acabou sendo vista de forma puramente pejorativa, como habilidade de
convencer o outro quando não se tem verdade. Tese de vencer argumentação mesmo quando não se
tem verdade.

Em Platão e Aristóteles, retórica significa escolher a melhor palavra para dar voz à coisa em
questão. Habilidade de escutar a coisa em questão para que a palavra pudesse ter maior relação
com o apalavrado. Maior relação entre physis e logos. Eleição da melhor palavra para dar voz a
coisa em questão no interior do discurso.

Logos é a palavra que tem origem grega no verbo legen, justamente o ato de eleição. O elemento de
partida da retórica não é a verdade, mas a verossimilhança. Na retórica, o que se quer encontrar é
o nexo de proporcionalidade com a coisa em questão. Com as distintas palavras, manter viva a
relação de aproximação com as coisas em questão, o que Platão chama de logos thynos. Nunca há
aproximação plena, verdadeira, definitiva, mas apenas proporcional.

56
A diferença da ética platônica para a aristotelica - Platão é autor da ciência do bem, pensa no bem
e como pode ser aplicado na realidade sensível. Aristóteles quer um agir bom, um agir virtuoso, e,
assim, pensa na ideia da fronesis, da sabedoria prática.
57
Para Platão e Sócrates, a pessoa age de forma boa/má a partir do seu conhecimento do bem.

60
Na tradição retórica, não havia método que permitisse chegar à palavra definitiva. Através da
prática, você tinha mais capacidade para escolher a palavra em questão. Hábito, repetição.

A tradição retórica que Gadamer resgata de Platão, Aristóteles58 e Vico, mostra que a retórica é
típica das humanidades, que acabou sendo vendida como arte do mero convencimento.

Em cada uma das categorias do humanismo (gosto, juízo, bom senso, retórica, formação para
humano), há uma relação com a ideia de fronesis, capacidade de escutar a situação em
questão, situação hermenêutica, aquilo forjado e transmitido pela história, e isso não se forma
de maneira metodológica.

Tradição é boa a partir do momento em que é interpretativamente mais rica. Quanto mais
lido com as coisas em questão, melhor aparecem enquanto tal.

- Dúvida: Gadamer poderia pensar como a formação histórica de um instituto se faz a partir da
retomada de um instituto no tempo. A construção da pandectista alemã é hermenêutica, retomou e
atualizou um texto clássico.

Hermenêutica é perceber historicamente como os institutos se formaram e foram recepcionados,


e comparar as distintas configurações na saída e na chegada, com fusão de horizontes.

Fronesis - lida com situações em diversos contextos. Habilidade de escutar a situação prática em
questão

Aula 09

Verdade e Método é uma obra que se preocupou com a tentativa da possibilidade de se pensar uma
verdade no interior dos processos históricos. Rejeita toda necessidade da ciência e da filosofia
moderna de se pensarem objetividades que se formam no interior da ideia de método. Procurou
acompanhar o processo pelo qual se formam medidas marcadas pela objetividade que se transmitem
no interior do fluxo do processo histórico. Verdade da tradição.

Se preocupa em pensar a possibilidade da universalidade da compreensão, retomando-se uma tese


heideggeriana, nossa existência é histórica, e acontece compreensivamente. Gadamer procura
atrelar, apresentar como correlato do existir, o compreender histórico. Existência é compreensiva.
Imediatamente somos lançados no interior do mundo histórico e estamos em contato com
pré-conceitos, com campos de sentido tradicionais, que vão paulatinamente moldar cada um de

58
Retórica em Aristóteles e Platão é ideia de adequação da linguagem para aproximação da essência
das coisas.
61
nossos comportamentos intramundanos, e fornecer a condição de possibilidade do desenvolvimento
de qualquer reflexão teórica ou ação prática.

Tanto a ciência quanto a ética se movimentam no interior da sedimentação de sentido que é


estabelecida pela/na história. Justamente por conta disso, a hermenêutica é universal, porque
qualquer domínio ôntico-científico específico pode desenvolver, ao mesmo tempo em que questiona
seu objeto de estudo particular, reflexões de ordem hermenêutica. À medida que são questionados
os objetos específicos de cada um desses setores científicos, deve-se atentar para o horizonte de
colocação de questões.

O filósofo acompanha o modo a partir do qual as ciências questionam seu objeto de estudo e
também consegue lançar atenção à estrutura histórica que permite que em seu interior questões
científicas se apresentem.

A obra gadameriana retoma o projeto de Dilthey, de fazer presente essa rearticulação entre
vivências e o todo da vida do espírito, agora corrigido pelo aspecto fenomenológico.

Abordagem das categorias centrais do humanismo . Quando, a partir do paradigma científico, se


falou em tato, juizo, gosto, etc, imediatamente cada uma dessas categorias que constituem o
universo das humanidades, foram simplesmente relegadas ao universo do subjetivo, do acientífico,
pelo fato de que se constituíam a despeito do método.

Gadamer, resgatando o pensamento de Helmholtz, mostra como cada uma dessas categorias
representam o modo através do qual a verdade dos processos históricos se estabelece. Modelo da
fronesis, que permite a articulação com a situação concreta de ação.

Gadamer procura desenvolver a tese husserliana da chamada universalidade da espécie. Ha no


interior de cada uma dessas figuras, o desenvolvimento em termos de objetividade e universalidade,
que somente são possíveis em virtude do movimento da história.

O caráter pragmático da experiência e da ontologia da obra de arte para hermenêutica


filosófica

Gadamer dedica boa parte de Verdade e Método para a análise da experiência do acontecimento da
obra de arte. Fenomenologia da obra de arte.

Para Gadamer, o modo através do qual a experiência estética se desenvolve é o modo atraves do
qual a história se realiza. O que acontece com a experiência do acontecimento da obra de arte
também se verifica no interior da história. Logo, Gadamer vê a experiência do acontecimento da

62
obra de arte como profundamente paradigmática para o modo através do qual a história se desdobra
em seus efeitos.

A ideia de história efeitual tem exatamente o mesmo movimento que se dá no interior da


experiência estética. Com isso, Gadamer quer chamar atenção para a tese típica da fenomenologia
de que não há estabelecimento do ser das coisas para além da relação com as coisas.

O belo na arte: Platão e a ideia do belo; Baumgartem e a aisthesis

Platão tem toda tentativa de esvaziar a cidade dos poetas. Na República, os poetas foram expulsos
da cidade. Na República, no Íon e Fedro, Platão coloca o artista numa posição subsidiária, inferior
em relação à ciência, a filosofia. A arte lida com formas sensíveis, e o sensível tem formação
inferior em relação ao inteligível, porque não permite ver, em sua plenitude, o movimento de
constituição das ideias.

As coisas sensíveis estão animadas pela ideia, a ideia sempre participa do sensível - methexis. Mas
o sensível por si só não consegue traduzir por excelência o movimento de concreção do campo
ideal. Necessidade de realizar fuga aos logoi - busca do elemento inteligível em meio e a partir do
sensível.

O belo também se manifesta enquanto forma sensível. O belo, ainda que para platão, tenha
importância maior em relação às demais artes, a forma bela tem importância porque foi dado ao
belo se a forma mais evidente das ideias.

Metafísica platônica: As ideias somente são alcançadas pelo pensamento, só temos conhecimento
discursivo a respeito das idéias - diánoia. Não temos noesis, apreensão imediata da ideia de forma
intuitiva. Precisamos falar sobre as coisas, para que as ideias articulem o movimento da fala, e, em
meio a isso, as coisas apareçam no interior do campo aberto pelo discurso. A partir do
conhecimento discursivo, dianoia, temos acesso às ideias. Daí a necessidade de um esforço racional
para que as ideias apareçam.

Contudo, especificamente para a ideia do belo, há possibilidade de mostração sensível da ideia, em


meio a forma física tida por bela. O belo tem peculiaridade: a ideia da beleza consegue ser visível
aos olhos físicos, sem necessidade de um esforço maior de ordem especulativa. A ideia do belo,
então, tem maior possibilidade de mostração sensível.

Contudo, a estética enquanto setor filosófico destacado não havia surgido ainda. Platão pensa
estética no interior da tradição epistêmica.

63
Somente no século XVIII, através de um pensador chamado Alexander Baumgarten, que a estética
adquire o estatuto de uma disciplina filosófica autônoma.

Baumgarten desenvolve uma reflexão estética a partir da ideia de aisthesis. Aisthesis em grego
significa sensação. A beleza tem relação com a sensação, inclusive de ordem física. O modo como o
pensamento moderno pensou a estética atrelava o belo às sensações de ordem física. Esse aspecto é
superado a partir da obra kantiana.

Kant desenvolve suas reflexões sobre a estética, sobretudo na crítica da faculdade de julgar. Kant
desenvolve a obra em duas partes: primeiro analisa o juízo do belo, depois a teleologia da natureza.
Modo através do qual kant vê o juizo do gosto/belo no interior dessa obra

Para Kant, belo é prazer desinteressado. As duas principais obras anteriores do Kant se situavam no
interior do criticismo filosófico: a crítica da razão pura, que se preocupava em responder à questão
fundamental “o que e como posso conhecer?”. A faculdade do conhecimento se lançava as coisas
que apareciam as formas a priori da sensibilidade (espaço e tempo), para produzir conhecimento na
forma de uma síntese, um juízo, no interior do qual se ligavam as categorias do entendimento, que
são a priori, com as formas organizadas da sensibilidade que constituiriam o fenômeno. Para Kant,
não há conhecimento da coisa em si, mas daquilo que se apresenta às formas a priori da
sensibilidade. A razão pura é interessada em conhecer.

Da mesma maneira acontece com a razão prática, que é também interessada. O seu interesse é em
agir, de forma ética, a partir das formas a priori da razão, da vontade pura prática. Antes de a ação
se desenvolver, é necessário que a partir da razão o critério da ação já esteja pronto por conta
própria. A razão orienta o agir de um modo tal que a ação é livre se parte da razão para alcançar as
finalidades desta. Tese do dever pelo dever.

Esse interesse gnosiológico da razão pura e prática da filosofia da ética pratica, não se notam no
interior da crítica da faculdade do julgar, porque Kant diz que o belo é prazer desinteressado. A
partir do momento em que a razão se coloca diante de algo belo, há o livre movimento das
faculdades do entendimento e da sensibilidade. Faculdade de entendimento e da imaginação entram
em movimento tal que quando se coloca diante da obra de arte bela acontece o chamado prazer
desinteressado.

Quando se está diante da obra de arte bela, há uma organização interna da razão que permite a
plenitude, a completa presentidade, diante da obra bela. Quando se está diante de uma bela obra,
nada mais importa do que observar, estar em presença dela. Ao observar a obra, não há nenhum tipo
de requisição, de necessidade, nada mais a se fazer, a não ser acompanhar sua presentidade.

64
Belo é prazer desinteressado porque promove nas faculdades do entendimento e da imaginação um
livre jogo, de modo que não há nenhum tipo de requisição ou necessidade para além desse
movimento de estar diante da obra de arte bela.

Kant foi o primeiro a pensar na ausência de funcionalidade da obra de arte. Quando se está diante
do belo, não há outra requisição de compromisso a não ser estar diante dela. Contudo, a despeito de
valorizar esse movimento de lida com a obra de arte, Kant acaba subjetivando o belo, porque o belo
está antes de tudo na razão.

Kant acaba interiorizando o belo, porque é produto do juízo do gosto. Com a estética kantiana, a
subjetivação do belo, que vai acabar se transmitindo ao próprio romantismo alemão.

O romantismo alemão difunde a tese da distinção estética, que aparece sobretudo em Schiller, da
primeira geração romântica.

Schiller realiza uma articulação entre ética e política. Essa é uma tese que de certo modo já estava
no Kant. Kant diz que faz parte da natureza do belo essa ideia de comunidade. Quando vemos algo
belo, é natural que tenhamos intenção imediata de comunicar ao outro.

A partir do romantismo, difundiu-se a tese de que o belo congrega, tem aspecto comunitário, nos
une. Isso se desenvolve ao ponto de Dostoievski, no futuro, dizer que só a beleza salvará o mundo -
a beleza tem esse aspecto de congregação, capacidade de estabelecer laços de ordem comunitária.

Para Schiller e para o romantismo alemão, a educação estética não tinha por meta simplesmente
desenvolver no indivíduo que lida com o belo a sensibilidade a cores, formas, conteúdos; não é só
isso, a educação estética poderia lançar sementes para a comunidade política.

Esforço de estabelecer vínculo político a partir do belo.

Belo semearia uma geração vindoura, que teria seus vínculos comunitários/éticos constituídos a
partir do laço estético. Formação de uma república estética, projeto fundamental do romantismo
alemão.

Contudo, a partir do romantismo alemão difundiu-se a tese da distinção estética.

Distinção estética. A despeito do romantismo ter pensado nesse vínculo entre estética, ética e
política, acabou por procurar o chamado núcleo da obra de arte. O fenômeno estético teria uma
parte principal, o núcleo, a distinção estética, que poderia ser isolada de aspectos contingenciais
acessórios.

65
Esse mesmo modo de lidar com a obra de arte na forma da distinção estética que se observou a
partir do romantismo é transmitido ao idealismo alemão.

No interior das preleções de estética de Hegel, aparece aquilo a que Gadamer vai chamar caráter de
passado da obra de arte.

Hegel procura a todo tempo sobressaltar o próprio movimento do espirito. Ele não consegue ver o
particular na sua plena e total particularidade. Para ele, o particular é sempre um aspecto do
universal, o espírito em seu movimento. Daí então que uma obra de arte seria então a mostração do
absoluto, a intuição do absoluto; assim como a religião seria a representação do absoluto; e a
filosofia, ciência do absoluto. A obra de arte é uma etapa, ainda nao plena, de realização do
absoluto, do espirito que tem certeza de si mesma.

Por isso, Gadamer diz que a obra de arte em Hegel tem caráter de passado, porque é uma forma de
manifestação não plena do espírito.

Esse aspecto de passado da obra de arte, a partir do idealismo alemão, vai desembocar, no século
XIX, em toda cultura dos museus.

A obra de arte no interior idealismo alemão é marcada por sua vez por uma forte tendência de
instrumentalização, de funcionalização. Sempre apontaria para algo além dela. Nunca me contento
com o movimento de apresentação da obra, seria necessário, para o idealismo alemão, visualizar, na
obra de arte, o elemento que a transcende. Abandonar o campo de mostração específico da obra
para me apegar a elementos puramente além da sua fenomenalidade.

Caráter de passado da obra de arte significa transcender o campo de mostração fenomenal da obra
de arte para ir buscar elementos para além desse campo fenomênico.

Fenomenologia nos ensinou que não há distinção entre ser e sentido, essência e aparência, porque a
realidade acontece em meio a superfície da sua mostração.

Então, o caráter de passado da obra de arte vai sobrelevar justamente esse esforço do idealismo
alemão em procurar uma transcendência da obra de arte, o que é contestado por Gadamer no
interior de Verdade e Método.

Teses do Gadamer sobre a obra de arte

Diz que a obra de arte nunca é, nunca está pronta para além da sua dinamica de apresentação. Não
existe obra de arte acabada que vai ser simplesmente recepcionada/fitada pelo seu observador. O ser
da obra de arte se articula em meio a sua apresentação. Obra se torna obra quando há seu encontro

66
com o intérprete. Obra nunca é plena e acabada, é uma imagem que vai se reconfigurando a cada
apresentação dessa obra, o ser da obra se articula em meio a sua observação, em cada uma das suas
apresentações

Gadamer ressalta o movimento no interior do qual o ser da obra se articula através da figura que ele
herda de Huzinga, o jogo. Huzinga mostra como o jogo é elemento constitutivo da antropologia
ocidental, constitui a cultura ocidental. Faz parte da nossa formação enquanto humanidade.
Gadamer se inspira no Huzinga para perceber o modo através do qual a obra de arte acontece
através da figura da imagem do jogo.

Gadamer usa a palavra “jogo” para ressaltar o movimento de constituição da obra de arte.

No idealismo alemão a obra de arte está pronta e vem do passado ao presente, chegando ao presente
preciso introjetar na sua mostração o elemento que fornece seu sentido. Para Gadamer, a obra de
arte se forma enquanto obra em meio a sua apresentação; quando o observador/intérprete se coloca
diante da obra, ela acontece nesse movimento/livre jogo que traz intérprete e obra.59

Jogo é tão melhor jogado quando o sujeito do jogo deixa de ser o jogador. A importância do jogo
recai na própria dinâmica do jogo. O jogo é tão melhor quando os jogadores desaparecem em meio
a dinâmica. O sujeito do jogo é o próprio jogo.

A obra de arte estabelece seu ser na sua dinâmica de apresentação, e quando isso acontece, o
intérprete se coloca diante da obra de arte não para dizer o que ela é, mas para se inserir no seu
movimento de acontecimento e para que, a partir do observador, a obra de arte ganhe voz.

A partir do momento em que uma obra é executada, ganha seu ser, que não é pronto antes da sua
dinâmica de apresentação. O ser da obra não é pronto, adquire outras vozes/configurações em meio
a sua retomada no presente. Ideia de caráter medial da obra de arte. O ser da obra de arte não existe
para além da apresentação. Cada versão é versão da própria obra. Caráter da propria obra que media
sua execução.

A interpretação é abrir o espaço para que o interpretado ganhe voz em meio a atividade o interprete.
O bom interprete, quando ele fala, o que aparece é a obra, e nao o proprio inteprete. Se o interprete
faz realçar ele mesmo ao invez da obra, essa é uma interpretação ruim.

Dizer que a obra de arte se forma em todas as apresentações não significa dizer que ela é relativa.
Existe a idealidade da obra, mas essa se rearticula em suas sucessivas retomadas apresentativas.

Como se fosse a physis antiga:a natureza antiga tinha em si mesma o princípio constitutivo do seu
59

movimento.
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Ao mesmo tempo em que a arte é jogo, Gadamer vai dizer que a arte é símbolo.

Arte como símbolo - influência de Platão, tessera hospitalis (tábua de hóspedes)

Platão diz que há na Grécia uma tradição de que, quando visita alguém, ao sair, o hóspede recebe a
metade de um prato que é quebrado pelo anfitrião. Se depois, descendente do hóspede vier visitar
novamente a casa, deve levar o pedaço que seu ancestral recebeu. Este símbolo funciona como se
fosse um passaporte, em um elemento de reconhecimento da outra parte.

Platão, quando pensa no simbólico, está se referindo a tese do banquete, das almas gêmeas

O símbolo significa a parte que requer necessariamente a outra metade para que adquira totalidade.
Aquilo que requer sua outra parte para que exista sentido

A obra de arte é simbólica porque sem o observador/intérprete, ela não é. Porque a obra de arte não
existe para além da sua apresentação. Há uma necessidade de co-requisição entre obra e observador,
acontecimento da obra e observador deste. A obra só adquire ser através do encontro dessas duas
partes solicitantes: execução, apresentação e observador. Necessita da execução para que, então,
diante do intérprete, adquira ser.

Símbolo é aquilo que requisita outra parte para que seja pleno na totalidade de seu sentido.

Obra de arte é jogo, símbolo e, por fim, é festa.

Obra de arte é festa. Festa é imagem para o caráter temporal da obra de arte. Gadamer está sob
influência de Kierkegaard, que desenvolve dois textos sobre o modo através do qual se lida com o
aspecto do tempo.

Tempo era representado, na tradição grega, por duas imagens, Cronos e Kairós. Tempo cronológico
é o tempo do relógio, do movimento, o eterno fluxo, e inerente a essa figura está o eterno
movimento que nunca cessa. Kairós é a divindade grega que procura estabilidade em meio ao fluxo,
em meio ao movimento. Kairós marca a dimensão temporal do instante, relacionado a estar presente
em. Aqui estão em jogo os dois grandes pilares da tradição pré-socrática: Heráclito (eterno
movimento), e Parmênides (tese da identidade). Instante é a dimensão temporal que procura
unidade na multiplicidade, permanência na mudança.

O cristianismo pensa a relação de Deus com o tempo dessa mesma maneira. Deus é eterno, porque
está fora do tempo. Nós que estamos em meio ao tempo estamos submetidos ao calendário, a
mudança, a alteração do eterno correr do tempo, aspecto do movimento, da mudança.

68
É necessário que se pense algo que está em meio ao tempo, mas que ganha identidade em meio ao
fluxo, que permanece em meio a mudança estando no próprio espaço de constituição do
movimento. Essa é a figura do instante. Kierkegaard pensa na reconciliação com o divino nesse
elemento do instante.

Kierkegaard usa metáforas para criticar determinados filósofos, como a tese de consciência infeliz
hegeliana, aquele que experiencia a satisfação, o consumo, mas nunca está satisfeita, nunca se sacia,
sempre requisita algo mais. Kierkegaard vê na figura do Don Juan exatamente este modo da
consciência infeliz: é aquele sedutor que nunca se contenta com quem conquista, sempre procura
uma outra. Por isso é melancólico, porque precisa voltar ao passado para lembrar todas as
conquistas amorosas que teve, nenhuma delas o deixa plenamente feliz. O Don Juan se contrapõe à
ética kantiana.

Kantiano recusa o prazer por respeito à regra, não se coloca no movimento de constituição
temporal. Kierkegaard pensa na figura de casamento religioso como elemento de permanência em
meio à mudança. Diz que quando você se casa, convive com ela por muito tempo. Aquela pessoa
com quem você se casou não é a mesma exatamente com quem você vive o resto da sua vida, ela se
modifica. Se você se lembra do instante feliz do casamento religioso, a retomada dele devolve a
você, no presente, a chave para perceber a identidade em meio e mudança, permanência em meio ao
fluxo temporal. Só o amor religioso consegue te devolver essa permanência em meio a mudança.

Ele diz que Sócrates e Cristo são os mestres da existência. Sócrates, porque te fornece as chaves
para viver feliz. Sócrates é um mestre atrelado à vida temporal. Cristo é aquele que fornece as
chaves da existência que transcendem a dimensão puramente temporal. É a tese do instante feliz:
experiencia o divino em meio ao fluxo temporal. Kierkegaard é cristao

Na figura da festa, Gadamer retoma a figura da reprise Kierkegaardiana.

Ex: Natal, 25 de Dezembro. A cada vez que essa data é retomada, essa festa acontece de maneira
distinta.

Quando se está diante da festa, o tempo cronológico é suspenso. Dinâmica de solicitação cotidiana é
suspensa. Surge a temporalidade da permanência. Quando a festa se estabelece, não se tem mais
tédio. Tédio é ser desinteressante para si próprio. Na festa, não há tédio, porque você não percebe a
dimensão temporal. Algo permanece em meio ao fluxo temporal.

Instante feliz é recuperação de algo do passado, no presente, que permite a própria reconfiguração
do que veio do passado. O ser da festa adquire outra face, em cada vez que a cada é retomada.

69
O ser da obra de arte é temporal. Ser temporal não significa que é necessário sempre ter
estabilidade.

A partir da tradição metafísica ocidental, vinculamos ser com presença, com permanência.

Gadamer diz que ser é mudança, é dissolução. Essa dissolução não atenta contra o próprio caráter
ontológico, porque o ser temporal existe em se diferenciando no tempo. Faz parte da estrutura
ontológica, do ser, a dissolução histórica. Isso é Heidegger, ser é diferença ontológica.

A cada vez que a obra de arte acontece, há possibilidade de o ser da obra se reconfigurar , se
rearticular, adquirir outra roupagem, outra voz na apresentação. Essa possibilidade de reestruturação
do ser da obra não atenta contra o próprio caráter ontológico da obra. Existe uma unidade
fenomenológica entre obra e intérprete, sempre se mostra para alguém, e quando o faz, há uma
relação que permite que o ser da obra se articule em meio a relação para com o intérprete.

Husserl - fluxo de consciência abre espaço para que o correlato apareça. Isso não quer dizer que a
consciência criou ou posicionou o objeto, porque os objetos correlatos aparecem na forma da
autodação.

Isso acontece em Gadamer. Quando o intérprete se coloca diante da obra, o ser da obra se auto
apresenta diante do intérprete. Não quer dizer que o intérprete diz o que a obra é, mas sem ele, não é
possível que essa relação se estabeleça. A obra de arte nunca é para além da dinâmica de
apresentação, ao mesmo tempo em que o ser da obra se articula com a observação do intérprete,

Obra de arte requer relação com o intérprete. Grande influência do texto de Heidegger, “A origem
da obra de arte” . Heidegger diz que no interior da obra de arte sempre se nota uma relação entre
mundo e terra. Toda vez que você se coloca diante de um quadro, o mundo da obra de arte vem a
presença. [Husserl - o correlato se autoapresenta]. Contudo, existe uma dimensão de
impenetrabilidade no quadro, que resiste à penetração do olhar do observador, e Heidegger vai
chamar isso de terra.

Existe uma dimensão de mundo e de terra, que impede que eu calcule o mundo. Tensão entre
abertura e fechamento. Essa é a grande inspiração para a ontologia da obra de arte de Gadamer.

A obra de arte sempre tem uma relação entre ser da obra e intérprete. Só que a obra definitiva nunca
é, porque sempre adquire nova voz na sua retomada temporal.

Para Gadamer, a ontologia da obra de arte é fundamental para o modo através do qual ele enxerga a
hermenêutica filosófica.

70
O mesmo que acontece com a estrutura da obra de arte se repete no interior da história.

Gadamer trabalha a ideia de situação hermenêutica e horizonte hermenêutico, retoma dois autores
fundamentais para seu percurso filosófico: Husserl e Heidegger.

A palavra horizonte aparece pela primeira vez nas meditações cartesianas de Husserl. Horizonte é
um termo que Husserl constrói a partir da inspiração da ideia de Kant. Quando, na “Crítica da razão
pura”, a razão começa a raciocinar utilizando somente as categorias e abrindo mão dos fenômenos,
produz raciocínios contraditórios, que Kant chama de paralogismos e antinomias da razão pura
prática ou ideia. Esses juízos, que se formam sem fenómeno, podem existir, mas não tem nenhum
tipo de importância para o conhecimento.

A ideia tem dois tipos de função: prática, ideia de liberdade; e reguladora, que consegue organizar o
conhecimento, sendo elemento de determinação futura, determinidade indeterminada.

Então, horizonte é essa estrutura que é indeterminada, no começo, mas adquire determinação
paulatina, que nunca é definitiva. Estrutura que é aos poucos concretizada, mas nunca em definitivo.

Horizonte hermenêutico é a situação hermenêutica.

Heidegger chama atenção para a ideia de situação hermenêutica, que significa colocar-se no interior
de uma determinada configuração de sentido que é herdada pela história. Ser ser aí significa ser
imediatamente ser no mundo, somos jogados no mundo em que campos de sentido são transmitidos
a nós imediatamente. Isso é situação hermenêutica, é sempre se movimentar no interior de um ter
prévio, um ver previo, um conceber prévio e de uma conceitualidade previa. Sempre se coloca no
interior de uma posição da história que vai te orientar a ver as coisas como você as vê, e identificar,
conceituar como você o faz. Tudo o que fazemos é uma replicação do horizonte histórico
hermenêutico. Nossa existência é sempre situada. Aqui existe inspiração na ideia de situação limite,
sempre nos movimentamos no interior de um horizonte de sentido historicamente constituído Esse
horizonte de sentido sempre atua perante nós na forma da tradição.

Estar no interior de uma situação histórico-hermenêutica significa, antes de tudo, estar em relação
com campos de sentido que são transmitidos pela história. É isso que se chama de tradição.

Tradição é a pluralidade de vozes do passado que nos chegam ao presente. Nós somos efetivamente
tradição. Tudo o que pensamos, fazemos, sentimos, esperamos, é tradição, porque nós
inevitavelmente, sempre nos movimentamos no interior de um horizonte hermenêutico de sentido.
A história nos concede elementos que vão permitir que nossa existência se desenvolva.

71
Quando se fala em tradição, imediatamente estamos falando de pré-conceitos. Aqui, há uma crítica
da hermenêutica filosófica a toda dinâmica do esclarecimento, do iluminismo.

É impossível eliminar os pré-conceitos, e se fosse, seria totalmente desaconselhável.

É impossível eliminar pre-conceitos porque nós acontecemos existencialmente através deles. A


ideia de situação hermenêutica diz respeito a posição no interior da história que nos fornece
pré-conceitos, campos de sentido que fornecem significado para as coisas.

Ainda que fosse possível, não seria recomendável, porque não conseguiríamos fazer absolutamente
nada. Os preconceitos nos fornecem os elementos para levarmos adiante nosso projeto existencial.
Obtemos significados que vão modular cada uma de nossas ações a partir dos campos de sentido
que se estabilizam no interior do tempo.

Com isso, Gadamer chega à ideia de história efeitual.

Sempre vemos a história como narrativa de um passado, reconstrução de fatos.

Movimento histórico é diferente da história científica.

História efeitual se liga ao próprio movimento do acontecimento histórico.

História efeitual nada mais é do que a tradição oferecendo sentidos à existência.

Historia sempre acontece na forma de transmissão de pré-conceitos, de seus efeitos, é efeitual.

Pelo fato de eu existir em uma época específica, a história efeitual vai me apresentar um horizonte
hermenêutico no interior do qual estou lidando com pré-conceitos.

Contudo, nós não estamos condenados à imutabilidade dos pré-conceitos.

Heidegger dizia que a história ocorre através da forma dos pré-conceitos, que se transmitem de
forma encurtada. Necessidade de destruição da história da metafísica. Conceitos foram transmitidos
de modo encurtado. É preciso voltar ao fenômeno originário, o conceito se formando enquanto
conceito

Heidegger, com a ideia de fusão de horizontes, desdramatiza esse gesto heideggeriano.

Fusão de horizontes significa a checagem conjunto do horizonte de saída, a posição na história


efeitual, e do horizonte de chegada, aquilo que a obra quer me dizer

Pré-concepção junto ao que a obra efetivamente diz.

72
A interpretação é feita quando as pré-compreensões do intérprete, que são inafastáveis, são
referendadas, refinadas, balizadas por aquilo que o texto diz. Fundir horizontes é corrigir
pré-conceitos pela obra. O próprio do ser da obra adquire reconfiguração no encontro com seu
intérprete. Fusão de horizontes representa a correção conjunta de pre-conceito e ser da obra, o
mesmo que acontece na ontologia da obra de arte.

A obra de arte vem do passado e se encontra com intérprete, adquirindo uma outra voz. O mesmo
acontece com a história efeitual - minha posição no presente, minha situação hermenêutica, entra
em contato com a configuração de sentido que a história me apresenta, e essa leitura conjunta de um
e outro realiza a fusão de horizontes.

A toda vez que a obra é retomada, o ser dela se rearticula de outra forma, acréscimo de ser a obra
toda vez que ela é executada, porque há fusão de horizontes. Uma tradição filosófica/cultural é tão
mais rica se há fusão de horizontes. Quando o autor é retomado, o ser da obra adquire uma outra
voz.

Esse processo de fusão de horizontes nunca termina, é constantemente aberto. Nunca há em


definitivo a obra, que vai constantemente se atualizar na sua retomada interpretativa.

O diálogo é elemento que faz parte da hermenêutica filosófica. Gadamer não quer dizer que as
pessoas conversem entre elas e chegam ao acordo sobre algo específico. O diálogo ressalta
justamente o movimento de fusão de horizontes, que se dá entre o ser da obra e o intérprete.

Quando Sócrates conversava com as pessoas, queria que elas percebessem que seus conceitos eram
marcados por posições que não eram definitivas. Quando vão questionando os distintos sentidos de
justiça, a própria ideia de justiça se impõe ao diálogo e se mostra.

Algo semelhante ocorre aqui. Quando a fusão de horizontes se estabelece, o ser da obra pauta a
relação.

A partir do momento em que se dirigem questões à obra, os pré-conceitos do intérprete são


corrigidos pelo texto. Isso é fusão de horizontes

O diálogo serve para que o interprete, ao questionar a obra, a própria obra se auto apresenta, ganhe
presentidade.

Diálogo é componente hermenêutico não porque as partes chegam em um consenso, em um acordo,


mas porque quando se questiona a obra, a obra responde na fusão de horizontes.

73
Por isso, Gadamer diz que o ser que pode ser compreendido é linguagem. A linguagem é esse
espaço no interior do qual a coisa hermenêutica ganha voz. Quando me coloco no espaço de
estabelecimento da linguagem, aquilo que se movimenta em seu interior aparece - tese do dito
poético - o poeta abre espaço para que as coisas ganhem corpo em meio a palavra poética.

O ser que pode ser compreendido é linguagem porque a fusão de horizontes acontece no interior da
linguagem.

Relação entre fenomenologia e linguagem: as coisas se apresentam em seu campo de autodação a


partir da linguagem.

Derrida e a crítica a Gadamer: o problema do logocentrismo. Gadamer é um autor logocentrista.


Para Derrida, Gadamer é um autor otimista, porque acredita que não há ruptura, mas sempre uma
acréscimo no ser da obra de arte. Não é necessário construir sempre, mas desconstruir o ser da obra.
Possibilidade de desconstruir ao invés de pensar em atribuição de sentido sempre. Importante
pensar no decréscimo de ser, a desconstrução.

Aula 10: Turma 1

Aula 11

Unidade III - O Juizo de aplicação do Direito: A Hermenêutica Jurídica Clássica

01) Hermenêutica Jurídica: noção fundamental

Carlos Maximiliano é a grande referência do Direito brasileiro em relação à hermenêutica jurídica.


Autor do século XX, foi ministro do STF. Define hermenêutica jurídica como conjunto de
procedimentos investigativos que tem como objetivo/meta determinar/fixar o sentido e o alcance do
Direito, das expressões do Direito.

O que se encontra em jogo no interior da hermenêutica jurídica são três técnicas: interpretação,
integração e aplicação do Direito.

A hermenêutica jurídica não poderia ser bem entendida enquanto hermenêutica, porque se preocupa
com a construção de uma técnica de integração, aplicação e interpretação do Direito.

A hermenêutica diz respeito a uma relação estrutural entre existência e mundo.

Essa disciplina, hermenêutica jurídica, está a meio do caminho entre a filosofia do direito e a
teoria/ciência do direito, como também a própria história do direito. Hermenêutica jurídica é
disciplina complexa porque é difícil aloca-la dentro do próprio eixo introdutório das disciplinas que

74
compõem o curso de Direito. A HJ tem características das disciplinas reflexivas do direito posto e
também de outras mais investigativas.

Hermenêutica jurídica é investigação dos procedimentos que se dedicam a fixação do sentido e do


alcance do Direito.

Interpretar é uma expressão que não é totalmente nova. Se encontra a questão a ideia de mediação
significativa. Lidar com significados, com campos de sentido, com objetivo de fazer com que esses
significados que vem do passado e chegam ao presente. Interpretação significa mediação de
significados, de sentidos.

No caso da interpretação jurídica, além desse aspecto de mediação de significados, há algo a mais.
Por interpretação jurídica, intenta-se a necessidade de se fixar o sentido e alcance das expressões do
Direito.

Sentido do direito é justamente a análise dos conteúdos deontológicos das normas jurídicas. Lidar
com o conteúdo que advém das situações jurídicas.

Quando falamos em situações jurídicas, estamos nos locomovendo no interior da teoria das fontes
do direito. Interpretação jurídica tem como seu objeto de análise as fontes do Direito.

Fontes do Direito são justamente os atos e fatos capazes de produzir normas jurídicas.

Fontes material e formal. As fontes formais podem ser mediatas ou de apoio. Por fontes imediatas
temos a legislação, os costumes, a jurisprudência, atos e manifestações de vontade.

As fontes secundárias e supletivas são aquelas invocadas diante da ausência das imediatas, como é o
caso da analogia, dos princípios do direito, da equidade.

Interpretar o Direito significa precisar o sentido e o alcance das normas. A análise das fontes do
direito, para que consiga, a partir delas, depreender as situações jurídicas.

Para que consiga fixar o sentido do direito, preciso consultar as fontes, para que elas possam me
apresentar as chamadas situações jurídicas.

Das fontes do direito, surgem situações jurídicas. Situações jurídicas são as posições dos
destinatários das regras diante delas, porque dessas regras surgem efeitos, é a alocação dos sujeitos
de direitos diante das regras.

As situações jurídicas podem se dividir em dois modos: objetiva e subjetiva.

75
A situação jurídica subjetiva é aquela a partir da qual diante da posição do sujeito de direito perante
as regras jurídicas, surgem para esse sujeito prerrogativas pessoais vantajosas, como acontece na
hipótese do direito subjetivo, da faculdade jurídica, etc.

A situação jurídica objetiva é aquela que, por meio de uma regra jurídica, surge para o destinatário
um conteúdo que ele não pode ignorar, não pode afastar, como é o caso da imposição de um dever.

O intérprete é aquele que vai analisar as fontes do direito para mapear situações jurídicas objetivas e
subjetivas que permitirão o aparecimento de direitos subjetivos, deveres jurídicos ou sanções.
Interpretar o Direito é precisar direito subjetivo, dever jurídico e sanções que surgem em meio a
situações jurídicas subjetivas e objetivas que se originam das fontes do direito enquanto atos ou
fatos capazes de produzir normas jurídicas.

A interpretação jurídica, contudo, é também delimitar o alcance do Direito. Precisar as situações


fáticas que vão receber a incidência do sentido interpretado.

Interpretar é identificar o sentido - direito subjetivo, dever jurídico, sanção - mas também precisar
até onde esse sentido pode ser direcionado nas situações fáticas. Analisar quais fatos terão
condições de receber aquele sentido, até onde o texto se aplica. Quais são as situações fáticas que
refletem, a partir das suas características essenciais, a situação típico-hipotética prevista no texto.
Análise conjunta de realidade e texto, de fattispecie normativa e situação fática concreta que pode
ser inserida nesse gênero.

A norma jurídica é composta de duas estruturas, a fattispecie, ou fato-tipo, a hipótese de incidência


da regra, e a consequência.

Fixar o alcance da regra é perceber se o sentido que se obteve na interpretação tem condições de se
aplicar em determinadas situações fáticas, e caso possa, até onde pode ir, quais fatos podem
suportar sua incidência. Se encontra em jogo análise conjunta de realidade e direito, que ganha
corpo a partir da ideia de subsunção.

É necessário amplo conhecimento de técnica jurídica e de conhecimento do direito.

Integração jurídica

Integração é desenvolvimento de uma técnica que permite resolver o problema das lacunas
jurídicas. Integrar o Direito é colmatar lacunas. Preencher o vazio jurídico que se nota diante das
lacunas. Para que tenha condições de integrar o direito, tenho que voltar na teoria do ordenamento
jurídico é entender quando as lacunas jurídicas se fazem presentes.

76
A Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, no art. 4º, prevê os elementos/mecanismos de
integração do Direito. Diante da ausência de lei, o intérprete deve recorrer à analogia, aos costumes
e aos princípios gerais do Direito. Esses elementos são as fontes secundárias ou de apoio de direito,
que servem para que o intérprete cumpra sua obrigação constitucional de decidir, não alegando a
ausência de regras.

O aplicador do direito, pelo fato de a jurisdição ser inerte, não pode se eximir de decidir, deixar de
proferir decisão, alegando que não há lei - princípio da proibição do non liquet. Diante da carência
de regras, o intérprete não pode deixar de decidir. Para isso, a teoria do direito desenvolveu as
técnicas de integração, previsão de mecanismos que auxiliarão o intérprete a resolver o problema
das lacunas jurídicas e possibilitar que ele possa promover a aplicação do Direito.

Os objetivos da interpretação e da integração são distintos. Interpretação parte da presença do


direito, identificadas suas fontes. Integração parte da carência de regras, e precisa se valer de
elementos que vão corrigir essa aparente falha do sistema

Bobbio: o ordenamento jurídico nunca é completo, tem lacunas. A despeito disso, tem obrigação de
ser completável, prevendo mecanismos que se farão utilizáveis nas hipóteses de ausência prévia de
texto.

Aplicação do direito

Toda aplicação é antes de tudo um ato de decisão. Aplicar o Direito é decidir. A decisão é ato de
vontade, “eu quero” do aplicador. Essa manifestação de vontade nunca é subjetiva, por força do art.
93, IX, da CF, toda decisão jurídica deve ser motivada. Decisão jurídica é ato de manifestação de
vontade justificada do aplicador. Salgado diz que toda decisão é ato de vontade racional, pois se
apoia em fundamentos de ordem objetiva, sobretudo em direitos e fatos. Apesar de ser manifestação
de vontade, decisão nunca é algo puramente arbitrário e subjetivo. Para que possa produzir efeitos
jurídicos em termos de uma decisão, precisa se apoiar na identificação dos fatos e direito que
levaram o aplicador a decidir daquela forma.

Fundamentar é apresentar as razões de decisão, os motivos que levaram o aplicador a decidir de


uma forma, e não de outra. Demonstração objetiva das etapas percorridas para chegar àquele
resultado

A hermenêutica jurídica é necessariamente metodológica. Toda decisão deve apresentar sua


fundamentação, o caminho percorrido para chegar ao resultado. Logo, por mais que se critique a
utilização da metodologia no interior do direito, a hermenêutica jurídica sempre será metodológica.
O texto da CF assim o exige.
77
Hermenêutica jurídica não é rigorosamente hermenêutica, sobretudo em sentido filosófico. Uma das
grandes críticas da hermenêutica gadameriana é justamente em torno da ideia de método como
procedimento para se chegar à verdade.

É impropriamente denominada hermenêutica, o nome mais adequado seria técnica de interpretação,


aplicação e integração do Direito.

Toda hermenêutica jurídica é um gênero, que se apoia nesses três pilares.

A teoria da interpretação ocupa lugar de destaque no interior da hermenêutica jurídica.

Emilio Betti: distinção entre os tipos de interpretação

Toda mediação de conteúdo pode ser de três formas: cognitiva, recognitiva e aplicativa

Interpretação cognitiva se dedica a entender o sentido em questão, alcançar a mensagem das fontes,
entender o conteúdo do discurso.

Schleiermacher diz que o objeto da hermenêutica é o discurso. Betti diz que a interpretação
cognitiva busca o conteúdo do discurso, se dedica a entender o significado.

Toda interpretação é cognitiva, tem por objetivo esclarecer, promover exegese, fazer aparecer o
próprio sentido, o próprio significado.

A interpretação recognitiva antes de tudo desenvolve esforço cognitivo, mas sua missão vai além da
simples capacidade de entendimento do texto: procura entender o texto para reproduzi-lo. Ex: ator
de teatro, professor em sala de aula. Procura entender para, então, reproduzir o conteúdo numa
análise perante terceiros.

Para Betti, a hermenêutica jurídica é tanto cognitiva e recognitiva, mas, assim como a interpretação
teológica, é aplicativa. Tem por missão aplicar o conteúdo às situações concretas. Juiz: interpreta,
reproduz o conteúdo perante os litigantes e tem a capacidade de dirimir, colocar fim ao conflito, de
forma justa, aplicando o texto na realidade. Condição de concretizar o conteúdo presente nas fontes
na realidade sensível. Isso não está presente em todas as demais capacidades interpretativas.

Capacidade de, através da análise da técnica de interpretação, integração e aplicação, desenvolver


uma interpretação aplicativa, fazer com que os textos tenham condições de serem aplicados na
realidade.

Além dos textos, costumes também são fontes do direito, bem como manifestações de vontade, que
podem ser orais. A maior parte das fontes do direito, contudo, são escritas.

78
02) Hermenêutica Jurídica Clássica

Noção fundamental e contexto de surgimento da expressão

Hermenêutica jurídica clássica é uma expressão que se tornou popular sobretudo no século XX,
para se referir a hermenêutica jurídica nascida a partir do seu grande pai, Savigny.

Schleiermacher é o pai da hermenêutica geral enquanto disciplina; e Savigny é o pai da


hermenêutica jurídica. Conseguiu conciliar as teses de Schleiermacher com o conteúdo do direito
romano. Utiliza as teses de Schleiermacher para aplicá-las ao direito romano, criando a
hermenêutica jurídica.

O direito romano passa ser objeto de trabalho dessa nascente técnica da hermenêutica jurídica.

Nasce no interior do direito privado, e é contemporânea ao aparecimento dos grandes códigos.

Apesar de a Alemanha, na época de Savigny, não ter ainda um código, a hermenêutica jurídica
ganha corpo na época das grandes codificações.

Paralelas às teses do savigny, se desenvolve uma grande escola da hermenêutica, a da Exegese


francesa, que se preocupa em dar aplicação ao código de napoleão. Contudo, as teses da Escola da
Exegese são muito mais restritas, por isso não se considera que ela representa o nascimento da
hermenêutica jurídica.

Savigny cria uma ciência da interpretação a partir do direito romano

A hermenêutica jurídica nasce no interior do direito privado e se apoia na identificação de métodos


para que se desenvolvesse de modo adequado as teorias da interpretação, integração e aplicação do
direito.

A partir da segunda metade do século XX, quando as constituições e, por consequência, direito
público passam a ser objeto de destaque da reflexão da teoria do direito, toda investigação
desenvolvida pela hermenêutica jurídica no interior do direito privado passa a receber uma nova
terminologia.

Se pensa que a constituição é o diploma jurídico mais importante, e sua interpretação deve ser
diferente da dos textos infraconstitucionais. Passa-se a se falar em duas hermenêuticas jurídicas:
hermenêutica jurídica clássica, de Savigny, e contemporânea, que se dedicaria à interpretação da
constituição.

79
Se difunde a tese de que a interpretação da constituição deveria ser distinta da do direito
infraconstitucional. Todas as técnicas que surgiram no direito privado passaram a ser denominadas
de hermenêutica jurídica clássica, ao passo que as técnicas de interpretação da constituição
receberam a terminologia hermenêutica constitucional.

O modo de interpretação da constituição não pode ser o mesmo do direito infraconstitucional,


porque as regras são distintas.

Em suma, a expressão “hermenêutica jurídica clássica” passou a ser usada a partir do século XX,
quando se diferenciou as interpretações constitucional e infraconstitucional.

Grande discussão na doutrina: as técnicas de interpretação da constituição são distintas das do


direito infraconstitucional versus não há diferença nenhuma entre os métodos de interpretação da cf
e do direito infraconstitucional (ex: virgílio afonso da silva)

A hermenêutica constitucional procura abolir a ideia de método para se chegar de modo mais
adequado ao sentido da constituição. Para isso, acaba recepcionando várias teses de Gadamer. Isso
faz com que os intérpretes da constituição se arvorem na condição de anti hermeneutas. Na verdade,
contudo, continuam ainda se movimentando no categorial metodológico.

Um dos grandes autores da hermenêutica jurídica clássica é François Geny. Escreve na transição do
século xix para xx. Utiliza a expressão "técnica jurídica de interpretação e aplicação do direito” para
se referir a hermenêutica jurídica clássica. A hermenêutica jurídica clássica diz respeito a técnicas
de interpretação e aplicação do direito que se originaram sobretudo no direito infraconstitucional.

Modo através do qual a hermenêutica jurídica clássica pensa a interpretação, a integração e a


aplicação do direito

03) O Juízo de Aplicação do Direito (Francesco Ferrara: interpretação e aplicação das leis)

A expressão juízo de aplicação do direito se refere ao modo como a hermenêutica jurídica clássica
pensou a interpretação, integração e aplicação do direito.

Essa expressão foi cunhada por Francesco Ferrara. Ferrara chama o raciocínio de
interpretação/integração/aplicação das leis de juízo de aplicação do direito.

Houve um período em que esse raciocínio de aplicação do direito recebeu outras denominações.

A expressão silogismo jurídico se origina sobretudo na escola da exegese francesa, que é


concomitante ao aparecimento do cc de napoleão. A escola da exegese é a corrente de pensamento
que definia os modos adequados de interpretação e aplicação do texto do cc de Napoleão. Esse
80
raciocínio recebia o nome de silogismo jurídico. O juiz era visto como a boca da lei. Juiz não teria a
condição, a permissão, para interpretar a lei. Só cabia a ele aplicar de forma mecânica, de forma
silogística, o direito, tal como a boca da lei. Havia uma desconfiança muito grande em relação ao
judiciário, porque o judiciário pós revolucionário era o mesmo da pré revolução. Para evitar que
houvesse retrocesso em relação ao absolutismo jurídico, a escola da exegese fechou a porta para a
possibilidade de juízes interpretarem o texto do código civil.

Silogismo é uma unidade de pensamento trabalhada pela lógica. É um raciocínio que se faz a partir
da coerência interna de premissas/proposições. Uma proposição é uma assertiva situada na lógica
que é composta basicamente por um juízo. É uma afirmação judicativa. Um juízo é uma união entre
sujeito e predicado por meio de um conectivo. Uma proposição se compõe por um juízo. Raciocinar
é analisar conjuntamente premissas, e perceber que existe entre elas uma lógica interna, uma
coerência, de modo que a partir da ligação lógica entre elas, consegue-se chegar a uma conclusão
produzida por inferência a partir da leitura das premissas. É a isso que se chama de silogismo.
Silogismo é raciocínio a partir do qual se chega a uma conclusão a partir da inferência que se obtém
diante da análise das premissas.

Geralmente o raciocínio silogístico apresenta duas premissas: premissa maior e premissa menor. A
partir da coerência interna entre essas se obtém uma conclusão por inferência. A conclusão não é
dada, é obtida a partir da coerência interna entre as premissas.

Ex: modus barbara. No modus barbara, a premissa maior é aquela que contém uma assertiva de
alcance universal. A premissa menor se refere a uma situação de alcance particular. Todos os
homens morrem. Sócrates é homem. = Sócrates é mortal

Essa passagem de uma premissa a outra, essa análise conjunta a partir da coerência interna é
chamada de argumento. Argumento é análise lógica do conteúdo das premissas, porque a partir
delas chega-se a inferência, a conclusão.

Desde a lógica, desde Aristóteles, primeiro autor que sistematizou a lógica, se difundiu a tese de
que a lógica seria fonte de raciocínios coerentes, mas não de raciocínios verdadeiros. Silogismo não
é fonte de verdade, mas de coerência.

O raciocínio que tem coerência mas não remete a realidade é chamado de sofisma. Sofisma é um
argumento aparentemente coerente mas sem correspondência com a realidade.

A escola da exegese desejava que a aplicação do direito fosse desenvolvida de forma silogística. A
premissa maior era a lei. A premissa menor era a situação fática decidida no processo. A conclusão
era a decisão do juiz. A função do aplicador era desenvolver essa inferência a partir da relação entre
81
texto e fato, sem interpretação. Isso era silogismo jurídico. A aplicação é mecânica, lógica,
silogística, sem margem interpretativa.

Essa concepção da escola da exegese foi profundamente crítica. Problemas da concepção silogística
de aplicação do Direito.

Primeiro problema:

Um processo se inicia quando as partes apresentam relato às autoridades. Pelo fato de a jurisdição
ser inerte, só podendo atuar a partir de provocação. Esse relato apresenta resumo dos fatos. “Me de
os fatos que te dou o direito”. Situação fática mais meios de prova para corroborar com a alegação.
Se a premissa menor se refere a situação fática, e se o processo se inicia a partir do fato, o raciocínio
de aplicação do direito começaria a partir da premissa menor, não da maior. O juiz receberia fatos
para então localizar o direito que se aplicaria a eles. Em tese, o juízo de aplicação do direito não
pode ser silogismo porque começa com o particular, com a análise do fato.

Segundo problema:

A conclusão desse raciocínio não se faz por inferência, por dedução, mas por subsunção. Subsunção
é uma figura chave da hermenêutica jurídica, vem do latim sub sumere, tomar o lugar de.
Subsunção é a análise conjunta de texto e realidade, movimento que parte do fato pro texto, e do
texto para o fato, para investigar se o fato possui as características indicadas no texto, e caso o faça,
o intérprete transpõe as consequências abstratas previstas no texto para a realidade concreta.
Movimento a partir do qual o caso é alocado na fattispecie do texto para que os efeitos previstos na
fattispecie de modo abstrato possam de concretizar diante do fato. Conclusão é muito mais
complexa do que uma mera inferência.

Terceira crítica

A premissa maior do raciocínio de aplicação do direito tem uma natureza distinta da premissa maior
do silogismo no interior da lógica. A premissa maior no silogismo é um juízo de realidade; a
premissa maior no raciocínio de aplicação do direito é um juízo de dever-ser. O conectivo que faz a
cópula entre sujeito e predicado no interior da lógica é o verbo ser; ao passo que o conectivo que
une sujeito e predicado, previsão e consequência, no texto da regra jurídica é um dever ser.

Princípio da imputação, e não da causalidade. São impostas consequências no caso de verificação


de ocorrência da hipótese de incidência da regra. Caso se verifique a hipótese, as consequências
devem ser aplicadas.

Se estrutura a partir do dever-ser, e não do puramente ser.


82
É por isso que a expressão silogismo jurídico não é a mais adequada para expressar o raciocínio de
aplicação do direito.

Henrique Cláudio Lima Vaz, no interior da ética, sugere que ao invés de se utilizar a expressão
silogismo, se utilize “silogismo prático-moral” para realçar o movimento a partir de como a regra
ética vai ser cumprida na realidade sensível. Se pode falar então, diante dessas características, de
um silogismo prático jurídico ou de um raciocínio de interpretação e aplicação do direito.

Ao invés de se utilizar a expressão “silogismo jurídico”, é mais adequado que se utilize “silogismo
prático-jurídico” ou “juízos de interpretação e aplicação do direito”, para realçar esse raciocínio a
partir do qual o direito vai ser interpretado e aplicado.

3.2.) Juízo de Aplicação do Direito

a) Modelos

a.1) Ferrara: premissa maior, premissa menor e conclusão por subsunção

Juízo da aplicação do direito se constituiria das seguintes etapas: análise da premissa maior, análise
da premissa menor e conclusão por subsunção. Esse caminho do juízo de aplicação do direito
previsto por Ferrara é criticado, justamente pela incompatibilidade com a estrutura processual: o
processo começa pela premissa menor.

a.2) François Geny: técnica jurídica - cinco etapas: i) identificação da quaestio facti; ii)
identificação da quaestio iuris; iii) crítica jurídica formal e material; iv) interpretação; v) e
aplicação

Prefere falar não de um juízo de aplicação do direito, mas de uma técnica jurídica de aplicação.

Geny, diferente de Ferrara, diz que existem cinco etapas:

i) Identificação da quaestio facti. Questão de fato é o relato das partes a respeito do fato a ser
estudado pela jurisdição. Análise da narrativa acompanhada das suas provas

ii) Identificação da quaestio iuris, questão de direito, a qualificação jurídica do fato, enquadramento
do fato no direito.

Alguns autores, como Engish, que diz que a identificação da questão de direito, a qualificação
jurídica do fato, já é subsunção.

iii) Crítica jurídica formal: identificar as fontes do direito que podem regular essa questão. Essa
crítica também pode ser feita de modo material, que representa a análise das categorias jurídicas. A

83
crítica jurídica formal identifica as fontes; a formal analisa as categorias jurídicas que se aplicam a
fonte.

iv) Interpretação: utiliza os quatro grandes métodos de interpretação: literal, lógico-sistemático,


histórico e teleológico, para fixar o sentido e o alcance do direito.

v) Aplicação

São dois modelos para defender os caminhos que o hermeneuta deve percorrer para interpretar e
aplicar o direito.

OBS: PC utiliza o caminho de Ferrara, porque apesar do inconveniente de acreditar que deve se
partir da premissa maior, seu método é mais didático.

b) Premissa maior do juízo de aplicação do direito

Existem dois modos de a regra jurídica incidir: incidência em abstrato ou aparelhada.

Incidência abstrata é aquele em que a regra jurídica abstratamente é questionada pelos seus
destinatários. Ex: professor discutindo o texto do Código Civil

Incidência aparelhada acontece perante a jurisdição.

Ao longo dessa unidade, estamos basicamente nos referindo a incidência aparelhada, porque nela
conseguimos analisar todas as premissas.

A interpretação e aplicação do direito começa pela premissa maior, a partir da identificação do


direito existente.

b.1) Identificação do direito existente

Identificar o direito é procurar a sua existência.

O direito surge a partir do momento em que é exteriorizado para o mundo exterior, sobretudo a
partir da atuação da autoridade. Direito existe quando vem à tona no mundo exterior a partir do
trabalho da autoridade. Uma lei existe quando é promulgada/sancionada pela autoridade e publicada
no Diário Oficial. Identificação do direito é a procura pela sua existência, o que Geny chama de
crítica jurídica formal.

Não basta identificar o direito, é necessário realizar a crítica jurídica material, a análise das
categorias jurídicas.

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O ponto de partida do raciocínio de aplicação do direito é identificar sua existência e as categorias
que permitem que o direito existente alcance toda sua força deontológica, seu caráter de
obrigatoriedade.

As categorias jurídicas servem para aperfeiçoar o processo de aquisição de juridicidade das regras
jurídicas, de força obrigatória/deontológica do direito.

Essas categorias jurídicas são validade, vigência, eficácia, vigor.

Validade é aquisição da força obrigatória da regra, quando passa a integrar o sistema jurídico. Se dá
quando a regra é posicionada por uma autoridade competente, respeitando o procedimento previsto
em regras anteriores e o conteúdo regulatório. Posta pela autoridade competente, com procedimento
de elaboração respeitado, e conteúdo adequado. Uma vez que essa validade formal, esse trâmite, é
respeitado, a lei existe, aparece no mundo exterior, entra no sistema jurídico.

Uma lei perde sua validade somente diante de lei posterior no tempo que a revoga. A lei não perde
sua validade diante do desuso ou do costume contra legem. Desuso ou caducidade é o
comportamento que não leva adiante o texto. Costume contra legem é aquele que vai na contramão
do texto. Ambos não retiram a validade da regra. Art. 2º da LINDB. A revogação se dá a partir do
aparecimento de outra lei que revogue a anterior.

LC 95/1998 determinou que a revogação deve ser explícita, devendo a lei indicar claramente o que
está sendo revogado, em parte ou em todo.

Revogação tácita se daria com aparecimento de nova lei que regulamenta a mesma matéria da lei
anterior de modo contrário. A doutrina defendia a possibilidade de revogação global, quando nova
lei mais ampla do que anterior regulamentou a mesma matéria de modo mais abrangente.

A revogação só pode ser explícita, afastando-se a revogação implícita tácita ou global.

A lei válida tem condição de se tornar vigente. Toda lei vigente é válida, mas nem toda lei válida é
vigente. Vigência é qualificação temporal da validade.

Vigência é prorrogação do tempo do início da possibilidade de produção dos efeitos da regra, o


adiamento do início da eficácia da regra. A vigência geralmente é indicada no texto legislativo. No
caso de o texto não indicar, pela Lindb, presume-se o prazo de 45 dias.

Esse intervalo entre validade e vigência é vacatio legis.

Uma vez que a lei é válida e vigente, tem condição de produzir seus efeitos, é eficaz.

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Eficácia é que a lei tem condição de produzir efeitos, efetividade é quando ela de fato produz. Lei
efetiva pega, seus efeitos de fato são produzidos. Eficácia é potencialidade de produção de efeitos.

O vigor ou ultratividade se dá quando a lei não é mais válida, vigente e eficaz, mas mantém seus
efeitos mais produzidos. Vigor se dá nas hipóteses de validade, vigência e eficácia, mas por outro
lado, de manutenção da efetividade. Se dá nas hipóteses de certeza jurídica, sobretudo no direito
adquirido, no ato jurídico perfeito e na coisa julgada. Nesses três institutos, a lei não é válida,
vigente e eficaz, mas mantém a efetividade, seus efeitos.

Vigor é a manutenção dos efeitos jurídicos da regra mesmo diante da sua exclusão do sistema
jurídico.

Tudo isso deve ser analisado pelo intérprete no momento em que se encontra da premissa maior do
juízo de aplicação do direito.

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