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O PALHAÇO (BRASIL, 2011): IDENTIDADE CIRCENSE E

TRAJETÓRIA DO CIRCO NO BRASIL.

Rafaela Fernandes Narciso 1


GT04 - Memória(s) e identidade(s): música, cinema e literatura.

Resumo: O presente artigo tem como objeto o filme O palhaço (Brasil, 2011), dirigido por
Selton Mello, utilizando como método a análise de elementos centrais do filme, quais sejam a
identidade circense brasileira, os contrastes entre a vida mambembe e a vida citadina e
questão da identidade do personagem palhaço. Baseando a análise no diálogo entre o filme e a
obras de referência sobre o tema pretendemos discutir de que maneira o discurso fílmico está
estruturado, construção essa que resulta em uma estética diferenciada no interior do modelo
da empresa Globo Filmes, uma das associadas na coprodução, variação que também é
discutida neste artigo.
Palavras-chave: O palhaço (Brasil, 2011), Identidade circense no cinema, Humor no cinema.

Este artigo tem como finalidade analisar a obra fílmica O Palhaço (Brasil, 2011)
através da relação entre elementos mobilizados pelos roteiristas Marcelo Vindicatto e Selton
Mello, que também dirige a obra, e pesquisas acadêmicas sobre o circo no Brasil. Neste
sentido, ressaltamos três aspectos que se relacionam com a construção ficcional feita pelo
filme: a trajetória do circo no Brasil, a identidade circense brasileira e os contrastes entre a
vida mambembe e a vida citadina. Outro elemento central no filme é a questão da identidade
do personagem palhaço, presente através do personagem Benjamin, interpretado por Mello,
que também será explorada neste artigo. Por fim, buscamos compreender a diferenciação da
obra fílmica no interior do modelo da Globo Filmes, braço cinematográfico das Organizações
Globo, que vêm investindo em um modelo bastante padronizado de comédias.

1
Professora Colaboradora da Universidade Estadual de Londrina – UEL, Bacharel (2010) em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” – UNESP/Marília e Mestre (2012) em Ciências
Sociais pela Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP/Guarulhos, tem pesquisas relacionadas ao
Pensamento Social no Cinema e Sociologia do Humor.
1
Trajetória do circo no Brasil e identidade circense brasileira

Embora não possamos falar em espetáculos circenses no Brasil Colônia (1550-1815),


Alice Viveiros de Castro afirma que a comicidade do palhaço brasileiro tem raízes nas festas
coloniais além de sofrer a influencia de saltimbancos europeus que aqui estiveram no século
XVIII (CASTRO, 2005, p. 87). Em meados do século XIX foram registradas diversas
apresentações de circos no Brasil de trupes mambembes que rodavam por toda a América
Latina (Idem, p. 89). Na época do Império (1822-1889), no Rio de Janeiro, notava-se a
presença de inúmeras casas que se dedicavam a apresentação de espetáculos circenses,
mostrando que o circo fazia parte da rotina da capital imperial. Segundo Mário Bolognesi,

No século XIX, entretanto, movidos pelos ciclos econômicos, especialmente


o do café e da borracha, grandes circos estrangeiros visitaram o país. O
itinerário incluía as cidades litorâneas, entendendo-se até o estrangeiro, em
Buenos Aires. Muitos artistas e mesmo família inteiras dessas companhias,
umas vez em solo brasileiro, resolveram permanecer por aqui, Aos poucos
eles foram se organizando, criando relações, e fortalecendo os laços de
sociabilidade, às vezes incorporando os artistas ambulantes. Esse processo
terminou por solidificar uma prática conhecida do circo brasileiro, a
organização de companhias familiares (BOLOGNESI, 2003, p. 46).

Além de apontar para a origem do circo no Brasil, o autor indica uma das
características presentes no filme: a organização familiar. O Circo Esperança é composto por
vários núcleos familiares: João Lorota (Álamo Facó) é irmão de Chico Lorota (Hossen
Minussi), o casal Justine (Bruna Chiaradia) e Tony Lo Bianco (Cadú Favero) são os pais de
Guilhermina (Larissa Manoela), Dona Zaira (Teuda Bara) é mãe do palhaço Borrachinha
(Renato Macedo) e o palhaço Pangaré (Selton Mello) é filho do palhaço Puro Sangue (Paulo
José), que tem como companheira Lola (Giselle Mota). Os nomes da dupla de palhaço
formada por pai e filho também é reveladora de outra característica do circo brasileiro: a
transmissão dos saberes tradicionais do circo se dá de maneira geracional: os mais velhos vão
ensinando aos mais novos os ofícios do circo. Assim, o palhaço “aprendiz”, o filho,
Benjamin, é chamado de Pangaré, alusão a cavalo de pouco valor, enquanto o seu pai,
detentor da técnica circense e com experiência muito maior, é chamado Puro Sangue, alusão a
um cavalo de raça, de grande valor econômico.
Outro fato notável é a homenagem à Benjamim de Oliveira (1890 - 1954), palhaço
filho de escravos que inicia sua carreira ao fugir com o Circo de Sotero Vilela e desenvolveria
2
a tradição do circo-teatro bem como a musicalidade do palhaço brasileiro 2. O nome do
palhaço Puro Sangue, Valdemar, também é uma homenagem a Valdemar Seyssel (1905-
2005), mais conhecido como Arrelia, que marcou gerações através de seus programas
televisivos (MELLO, 2012, p. 17). A organização familiar no circo, já citada acima, é
apontada por Mário Bolognesi:

As famílias que se dedicaram à atividade circense no Brasil envolveram


todos os seus membros na realização do espetáculo. Mais ainda: se o
espetáculo era familiar, também o eram as formas de ensino e aprendizagem.
Essa prática, com o passar dos anos, consolidou algo que talvez seja típico
do circo brasileiro, isto é, a idéia da tradição circense. Desde cedo a criança
era iniciada nas lides circenses, de modo que sua formação (como artista e
cidadão) se dava, prioritariamente, debaixo da lona (BOLOGNESI, 2003, p.
47).

Como citado pelo autor, a transmissão dos saberes do circo se dava no interior deste.
O final do filme, que mostra a estreia da mais jovem integrante trupe, Guilhermina (Larissa
Manoela), é um exemplo da continuidade da tradição circense através das gerações, fato que
gera grande alegria e orgulho em todos no Circo Esperança. A quebra dessa configuração do
ensino dos saberes do circo se deu nos anos 1940 e 1950, quando uma nova geração não
permaneceu embaixo da lona: as crianças eram mandadas para as cidades para terem acesso a
melhores condições e possibilidades futuras diante das dificuldades que os pequenos circos já
enfrentavam. Neste sentido, vale ressaltar o relato da pesquisadora e circense Ermínia Silva,
que faz parte desta geração:

Em idade escolar, fomos mandados para a casa de parentes que possuíam


residência fixa, para iniciarmos nossos estudos “formais” e construirmos um
“futuro diferente” e “melhor” que a vida que haviam herdado, segundo eles
mesmos. Sempre ouvimos as histórias de circo, víamos fotografias ou
recortes de jornais, mas não havia um livro para ler, assim como não havia
nada semelhante a essas histórias em nossos livros escolares. Tratava-se da
história do “povo do circo” que ninguém mais conhecia. Adultos, parte de
nós percebeu que essa distância tornou difícil a continuidade da arte
circense, porque não éramos mais os depositários de suas memórias –
ensinamentos e saberes. A partir das décadas de 1940 e 1950, período de
nascimento da minha geração, iniciou-se um processo de transformação do
2
Ermínia Silva analisou a trajetória de Benjamin de Oliveira através de pesquisa de Doutorado realizado na
Universidade Estadual de Campinas que resultou no livro Circo-teatro: Benjamin de Oliveira e teatralidade
circense no Brasil.

3
modo de organização do trabalho e do processo de socialização, formação e
aprendizagem, alterando-se a transmissão dos saberes circenses, o que fez
gerar outras formas de produção do espetáculo e do artista (SILVA, E.;
ABREU, L., 2009, p. 27).

Podemos situar neste momento o início de uma quebra na tradição circense, que se
formou no século XIX. O circo não iria desaparecer, mas se reinventar. Nos anos 19703
começam a surgir Escolas de Circo que formariam outro tipo de profissionais. O circo nos
moldes anteriores ainda é encontrado, mas, aliado à quebra na transmissão dos saberes
circenses, explorado acima, somaram-se dificuldades sociais e econômicas que dificultaram a
sobrevivência dos circos familiares. É este circo que está delineado no filme de Selton Mello
e, desta forma, vemos nele uma homenagem a uma prática cultural cada vez mais rara.
Fazer circo hoje no Brasil se trata de uma arte de resistência. Desta forma, uma nova
geração formada em escolas de circo tem lutado para somar forças, ao lado dos poucos circos
familiares que ainda resistem, para manter o circo brasileiro em atividade. Algumas
dificuldades do universo circense estão presentes no filme: a burocracia que dificulta a
obtenção dos alvarás necessários para a realização dos espetáculos, as negociações com as
autoridades locais, a cessão de ingressos para os mesmos (que acaba reduzindo o
faturamento), além de outros infortúnios, gerados pelas particularidades do universo circense.
Logo no início do filme, já fica visível uma das características dos pequenos circos
brasileiros: quebrar com a rotina e proporcionar entretenimento aos habitantes da cidade. Mais
do que entretenimento, a chegada do circo desorganiza a lógica da pequena cidade ao
interromper o trabalho dos cortadores de cana e levar as crianças até a praça da cidade para
conhecer os artistas que chegam. Este elemento de quebra com a rotina pode ser explicado
através do contraste entre a vida na cidade e a vida na estrada: os habitantes da cidade são
fixos ali, onde têm suas raízes, suas famílias e trabalho enquanto o trabalho dos artistas
circenses é desenvolvido através da atividade nômade, que consiste em levar sua arte ao
publico de diversas cidades.

3
Segundo Ermínia Silva e Luís Alberto de Abreu, “[...] esse período do final da década de 1970 também é
importante de ser retomado porque nele estava se consolidando um movimento – iniciado na década de 1920, na
antiga União Soviética – que era o da construção de escolas de circo para fora da lona ou para fora do grupo
familiar circense aos moldes da organização do circo-família, como resultado do trabalho de artistas de diversas
origens, circenses ou não, em alguns países da Europa Ocidental, Austrália, Canadá e Brasil” (Idem, p. 41).
4
1. A chegada do Circo Esperança.

Os números apresentados pelo Circo Esperança revelam intensa pesquisa dos


roteiristas que na primeira apresentação mostram a rotina que antecede a apresentação do dia:
o palhaço Benjamin é informado sobre o nome do prefeito da cidade, de sua mulher, do
“maluco” da cidade e da zona de meretrício, elementos que serão usados pelo palhaço no
picadeiro. Vale notar que, embora o espetáculo circense seja composto por várias
apresentações, todos os elementos cômicos da apresentação estão centrados na figura do
palhaço. Segundo Maria Augusta da Fonseca, “a comicidade do circo está forjada na figura do
palhaço” (FONSECA, 1979, p. 19). Desta forma, o Circo Esperança tem quatro palhaços
responsáveis pelos números cômicos: Pangaré, Puro Sangue, Borrachinha e Meio Quilo
(Tony Tonelada).
A própria composição do espetáculo presente no filme também traz características dos
espetáculos dos pequenos circos brasileiros: primeiro, vemos um número de demonstração de
força, com o personagem de Thogun levantando peso; em seguida entra Benjamin arrancando
risos da plateia com seus tropeços e segue com gags típicas de um palhaço augusto, tipo que
se liga ao registro do bobo, inábil para a realização das mais simples tarefas, e apresenta o seu
pai, palhaço Puro Sangue, com quem explora o diálogo entre os tipos de palhaço branco e
augusto, extraindo o humor do conflito entre um personagem de tipo sério e um de tipo bobo.
Eis que entra em cena Dona Zaira, interpretada pela atriz mineira Teuda Bara, que chega na
plateia como se estivesse procurando o pai de seus filhos, que a teria abandonado. Ao iniciar
outro número, que termina com dança com espada feita por Lola, os palhaços Pangaré e Puro
Sangue colocam em cena uma típica alternância do espetáculo circense: entre o sublime e o
grotesco, representado na figura do palhaço. Assim, inicia-se com um número sério, de
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levantamento de peso, que é quebrado pela atuação da dupla de palhaços, e depois retornamos
ao sublime com o número de Lola. Segundo Regina Duarte,

O palhaço aparece como a figura catalisadora da condição fluida do universo


circense entre o sublime e o grotesco, tendo o corpo como principio e fator
espetacular, com a exploração do impossível a cada instante de gloria do
artista. Entre o acrobata, o trapezista, o equilibrista e o engolidor de fogo,
que despertam o espanto e o temor da possibilidade da morte, seguidos do
alivio e admiração, surge o corpo do palhaço, grotesco e exagerado,
intermediando o sério e o risível, o trágico e o cômico, a morte e o riso,
esfacelando os limites entre aparentes oposições, evidenciando como o riso e
a morte dão ao circo um registro emocional único e contraditório [..]
(DUARTE apud BOLOGNESI, 2003, p. 08).

Contrastes entre a vida mambembe e a vida citadina.

Um dos elementos centrais do filme é o contraste entre a vida mambembe e a vida dos
habitantes das cidades por onde os artistas passam. Este contrate, pode ser explicado pelo
estranhamento entre duas realidades distintas em muitos aspectos. O principal elemento de
diferenciação entre esses dois universos é o nomadismo. As estratégias do nomadismo
circense são descritos por Ermínia Silva e Luís Alberto de Abreu:

As particularidades do nomadismo circense são muitas e referem-se às


diversas necessidades e singularidades de sua vida. Os trajetos percorridos
por um circo inserem-se em um complexo plano e conjunto de estratégias
definidores de um roteiro de viagens. Estes planos continham roteiros
diferentes para cada região do país, de acordo com a estação do ano.
Aproveitavam, também, a ocorrência de festas populares, procurando
estabelecer um roteiro que coincidisse com estas festas. Além disso, definir o
roteiro de viagem implicava “preparar” as cidades de destino: fazer a
propaganda, escolher o terreno, reservar as acomodações necessárias, entrar
em contato com as autoridades locais. Este movimento é até hoje realizado e
denominado “fazer a praça”. Assim, para o circense, o ponto de referência é
o destino do trajeto e não o percurso ou o trajeto. (SILVA, E. ABREU, L.,
2009, p. 69).

Vale ressaltar, também, o estigma que a vida nômade carrega. Ao lado da idealização
da vida do circo, pensando segundo o qual “a vida nômade seria oposta ao trabalho fixo e às
pressões de uma vida cotidiana familiar” (SILVA, 2007, p. 90) o que levava muitas pessoas a
fugirem com o circo, há alguns temores sociais relacionados ao circo, como a crença de que
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os circenses e ciganos roubariam as crianças. Segundo pesquisas de Ermínia Silva, o que
ocorria era que as fugas das pessoas encantadas com o universo circense eram vistos pelos
habitantes das cidades como sequestro4. Outro fator, destacado por Mário Bolognesi, é a
contrariedade deste modo de vida em relação a um projeto de nação, que se baseava no
desenvolvimento das cidades a partir de uma população fixa. Em suas palavras:

O nomadismo incomodou sobremaneira os intentos sedentários de uma vida


imperial, e depois republicana, que queria se firmar como nação. Ou seja, em
um momento histórico que apregoava o enraizamento da população em sua
cidade ou Estado, a fim de sedimentar uma identidade, quer seja regional ou
nacional, a itinerância circense caminhava na contramão dos intentos oficiais
(BOLOGNESI, 2003, p.46).

Uma das cenas de maior comicidade do filme está baseada no estranhamento entre o
universo da cidade e aquele mambembe: quando, em um bar, os integrantes do Circo
Esperança conversam sobre “enterrar o morto” e acabam na delegacia local diante do
desconhecimento que o termo citado significa colocar as estacas para levantar a lona que
acomoda o picadeiro. Diante do Delegado Justo (Moacyr Franco), se veem tentando explicar a
situação e se desculpar pelo incomodo à autoridade local da cidade que, ao que nos indica o
filme, está pouco acostumada a ocorrências “fora de horário”. Assim, o delegado, em troco de
dinheiro, acaba desconsiderando o ocorrido que o fez se ausentar da comemoração do
aniversário de sua mulher, além da chateação de ter deixado em casa seu animal de estimação,
o gato Lincoln, que estava se recuperando de uma cirurgia necessária devido a uma
gravíssima queda de pelos gerada por sarna adquirida da tia do delegado.

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Segundo a autora, “o temor que relacionava grupos nômades a roubos de crianças esteve presente no
imaginário dos habitantes das cidades durante o século XIX. Muitos relatos descrevem crianças que foram
roubadas por ciganos ou por circenses, grupos freqüentemente confundidos pela população e pelas autoridades.
[...] Em relação ao circo em particular, em nenhum dos relatos de circenses – entrevistados ou os que deixaram
registros escritos sobre sua vida – há menção de que tenham sido “roubados”, mas sim que fugiram com ele.
Mesmo nos casos contados de moças que foram raptadas por homens de circo, suas histórias de vida permitem
observar que de fato eram seduzidas por eles e acabavam por fugir com os circos na esperança de se casar com
aqueles artistas” (Idem, pp. 92-3).

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2. Delegado Justo e a foto do gato Lincoln.

Outras situações são apresentadas pelo filme, que também tem a comicidade apoiada
neste estranhamento, é o almoço na casa do Prefeito Romualdo (Phil Miller), que gera várias
situações cômicas como os irmãos Lorota enchendo os bolsos de comida para levar embora,
Valdemar que acaba tomando vinho em demasia, Borrachinha que acaba impressionado com
uma cabra com uma rosa vermelha que estampa um dos quadros que decora a casa, o pedido
do Prefeito para que o filho, que “nasceu para artista”, se apresentar no circo, e outro, de
Benjamin, que pergunta se a primeira-dama teria um sutiã grande.

3. Chegada da trupe à casa do Prefeito.

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O gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou palhaço.

Outro conflito apresentado pelo filme é aquele em relação à identidade de palhaço e o


pertencimento ao circo do personagem Benjamin, representado por Selton Mello. Desde o
final da primeira apresentação, notamos que todas as tarefas administrativas e artísticas estão
centradas em Benjamin que, ao final do espetáculo, é abordado pelo seu pai, pelo casal Lara
Lane (Maira Chasseroux) e Robson Félix (Erom Cordeiro), que querem incrementar o
espetáculo se apresentando como se fossem russos, pelos irmãos Lorota, que querem dinheiro,
por um policial da cidade, que veio averiguar se o circo tinha alvará mas se alegra ao
conseguir ingressos, por Tony Lo Bianco, que procura a caixa de remédios e por Dona Zaíra,
que pede um sutiã novo porque o seu estourou as alças. Depois de todos os pedidos, Benjamin
conhece Ana (Pritty Borges), que pergunta se o circo não vai se apresentar na cidade mineira
de Passos.
Quando chegam à cidade de Bom Jesus dos Passos, Benjamin tenta comprar um
ventilador, objeto presente desde o inicio do filme, como uma fixação. Porém, para parcelar a
compra do ventilador, seriam necessários documento de identidade, CPF e comprovante de
residência, documentos estes que o palhaço do Circo Esperança não possui. Mais tarde, em
conversa com filho, Valdemar fala ao filho sobre as dificuldades financeiras do circo e o este
o responde que não está dando conta. Através do encontro, em um bar, com a personagem
Tonha (Fabiana Karla), Benjamim desabafa questionando “eu faço o povo rir mas quem é que
vai me rir ?”. Este conflito, aliado à fixação do personagem por um ventilador e a decepção
com a companheira do pai, que estava roubando dinheiro do circo, que vai levá-lo a
abandonar os companheiros da trupe e radicar-se na cidade.
A frase colocada como subtítulo deste artigo revela um elemento importante para o
circo: a sabedoria popular, ligada à experiência de vida, bastante presente nas pequenas
cidades do interior brasileiro, contexto privilegiado pelo filme. Ao parar no Recanto do
Cowboy, em umas das viagens do Circo Esperança, Valdemar conversa com Juca Bigode
(Jackson Antunes), dono do bar, sobre ter seu próprio negócio. Juca conta a Valdemar que
tinha, em parceria com o pai, uma fábrica de tecidos, que acabou sendo vendida para investir
no plantio de arroz. Porém, o negócio não deu certo porque ambos não entendiam de arroz;
como conclusão da prosa, Juca afirma que “o negócio é seguinte: cada um deve fazer o que
sabe fazer: o gato bebe leite, o rato come queijo, e eu toco meu trabalho”.
É esta frase que Valdemar diz ao Benjamin após uma apresentação mal sucedida: na
vida a gente tem que fazer o que sabe fazer: o gato bebe leite, o rato come queijo e eu sou
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palhaço. E você? Quando retomam a estrada, Benjamin fica no caminho o que é motivo de
grande tristeza para a trupe. Pouco à frente, Valdemar deixa Lola no caminho devido aos
sucessivos roubos que ela vinha fazendo. Benjamin vai para Passos para reencontrar Ana, que
o abordou logo após a primeira apresentação do circo. Porém, ao encontrar o Aldo Auto
Peças, onde ela trabalha, descobre que ela vai se casar com o proprietário, Aldo (Danton
Mello). Na cidade, passa a morar num hotel, tira identidade e arruma um emprego de
vendedor.

4. Benjamin vestido para trabalhar.

Em um dos momentos de lazer, Benjamin sai com os companheiros de trabalho, sendo


um deles Nei (Jorge Loredo) que diverte a turma contando piadas. É este personagem que
coloca fim à crise de identidade de Benjamin que compra um ventilador e vai ao encontro da
trupe do Circo Esperança. No caminho de volta, encontra uma companheira, que vai morar
com ele no circo. Sua volta se dá em um número de seu pai, Valdemar, com Dona Zaira, que
entra no picadeiro dizendo que Puro Sangue é o pai dos filhos dela. Benjamin saí debaixo da
saia dela, chamando-o de papai. O número segue e Valdemar pergunta o que ele está fazendo
ali; como resposta, Pangaré, retomando a fala do pai, diz que “o gato bebe leite, o rato come
queijo e eu sou palhaço”. Seguem vários números feito pela dupla e a citada estreia de
Guilhermina.

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5. A dupla Pangaré e Puro Sangue.

O palhaço e a Globo Filmes

Enquanto discurso estruturado, a obra fílmica está apresentando uma visão sobre o
universo dos pequenos circos que em algumas localidades era a uma das únicas atividades
culturais possíveis em certo momento. Com avanços sociais e econômicos, este tipo de prática
cultural foi perdendo espaço devido ao acesso a outras formas de diversão – aqui destacamos
o surgimento e consolidação de uma indústria cultural no Brasil, em meados de 1960 e 1970
(ORTIZ, 1988) – e a quebra da transmissão dos saberes tradicionais, uma vez que as famílias
circenses enviam as novas gerações para as cidades. Desta forma, a tradição familiar circense
iria encontrar dificuldades para resistir e cederia espaço a uma nova tradição circense, feita
por indivíduos das cidades que adquiriram o domínio das técnicas circenses que ganham
espaço no país a partir da década de 1970.
Ao tomar por base um universo que, de certa forma, vai deixando de ser realidade o
filme pode ser lido como uma homenagem ao universo circense brasileiro tradicional. Assim,
Mello através de intensa pesquisa do universo circense, constrói um discurso que destoa das
produções humorísticas da Globo Filmes. Nos créditos do filme constam como coprodutoras
esta empresa, ao lado da Imagem Filmes, Telecine e Locall, já a produção coube à Bananeira
Filmes, de propriedade de Vania Catani, e a Mondo Cane Filmes, de propriedade de Selton
Mello. O fato é que notamos no processo de produção do filme certa liberdade que não é vista
em outras produções das quais participa a Globo Filmes. Segundo Lia Bahia, “Uma produção
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cinematográfica coproduzida pela Globo Filmes sofre interferência dela em todas as fases do
projeto: roteiro, escolha de elenco, corte final, escolha do título, campanha de lançamento,
entre outros” (BAHIA, 2012, p. 166). O produto final em questão não se enquadra do padrão
no qual a referida empresa vem investindo. O surgimento da empresa é descrito por João
Cardoso e Roberto dos Santos:

Em conformidade com a postura neoliberal da época, a produção de cinema


passou a ser orientada por uma “visão de mercado”. A criação, em 1998, da
Globo Filmes – departamento especializado em cinema pertencente às
Organizações Globo, conglomerado de mídia que engloba rede de televisão,
jornal, editora de revistas, emissoras de rádio etc. – intensifica essa postura,
realizando filmes que adaptam para a tela grande seriados televisivos
brasileiros (A Grande Família, Os Normais), peças de teatro de apelo
popular (A partilha, Divã, O Auto da Compadecida), assim como comédias
(Se eu fosse você) e dramédias urbanas (Redentor), tendo no elenco atores e
atrizes que atuam na teledramaturgia da emissora (CARDOSO, J.; SANTOS,
R.; 2011, p. ).

Quando entra no ramo cinematográfico, esta empresa investe em modelos consagrados


de comédia, levando para as telas do cinema adaptações de programas humorísticos da grade
televisiva ou produzindo filmes que seguem a mesma lógica de produção dirigindo estas
produções para o público televisivo. Outra vantagem da empresa é a divulgação, uma vez que
os filmes da Globo Filmes eram divulgados na televisão. A estruturação desta empresa é
descrito por Melina Marson:

A situação da rede de televisão é invejável na indústria cultural brasileira, e


ela é uma das maiores empresas de comunicação do mundo. Ao entrar no
campo do cinema, a Globo levou consigo seu star system, as fórmulas de
sucesso já padronizadas pela televisão, e sua gigantesca infra-estrutura, que
inclui estúdios, equipe técnica qualificada e equipamentos de ponta. Em
outras palavras, o “padrão Globo de qualidade”, já consagrado no Brasil todo
e em diversos outros países, através da exportação de telenovelas
principalmente (MARSON, 2009, p. 91).

Acreditamos que esta possibilidade de diferenciação está no múltiplo financiamento: à


medida que a Globo Filmes não é financiadora do filme, acredita-se que a autonomia para
criação e realização do filme tenha sido maior. Como financiadores do filme, constam a
Prefeitura Municipal de Paulínia, o Fundo Setorial do Audiovisual, Financiadora de Estudos e

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Projetos – FINEP, Agencia Nacional de Cinema – ANCINE, Governo do Estado do Rio de
Janeiro, através da Secretaria de Estado de Cultura (Lei Estadual de Incentivo à Cultura),
Governo de Minas Gerais e as empresas EMS, Toyota, AMBEV, Neoenergia, Adidas, Oi
Telefonia, Santader, Cemig. Nenhuma destas empresas ou instituições governamentais
interfere no processo de feitio fílmico. Outro elemento é a produção dupla da Bananeira
Filmes, de Vania Catani e MondoCane Filmes, de propriedade do diretor que certamente
tiveram força para se impor diante da Globo Filmes. Acreditamos que estes dois aspectos
possibilitaram uma concepção e direção mais livres que conseguiram se apartar do modelo
citado.
Desta forma, o diretor colocou nas telas brasileiras e mundiais um filme sobre a
tradição dos pequenos circos brasileiros, contando com um elenco diferenciado que colocou
lado a lado atores iniciantes e consagrados, oriundos da televisão (Álamo Facó, Danton
Mello, Erom Cordeiro, Fabiana Carla, Ferrugem (Luiz Alves Pereira Neto), Hossen Minussi,
Jackson Antunes, Jorge Loreto, Larissa Manoela, Michele Martins, Moacyr Franco, Paulo
José, Tonico Pereira, Tony Tonelada, Thogun, do circo (Giselle Motta) e teatro (Cadu Fávero,
Maíra Chasseraux, Teuda Bara), além de três atores conterrâneos de Mello, que nasceu na
cidade mineira de Passos, Renato Macedo, Pritty Borges e Yákara Piotto.
Ao conseguir apresentar uma proposta que se distanciou do modelo das comédias da
Globo Filmes, que domina grande fatia do mercado cinematográfico atual, sendo um dos
grandes responsáveis pela reconciliação entre o público e o cinema, processo este que se
colocou como desafio ao Cinema da Retomada – anos 1990 – sem se distanciar de uma
proposta mercadológica, O palhaço foi grande sucesso de público e crítica agradando desde o
grande público consumidor aos pesquisadores da história do circo brasileiro. A experiência de
Mello aponta para a possibilidade de um produto cinematográfico concomitantemente autoral
e mercadológico, que se aparta de fórmulas prontas, exportadas da prática cinematográfico de
Hollywood, sem abrir mão do foco mercadológico.

Bibliografia:

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13
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Janeiro: Funarte, 2009.
TOWSEN, John. Clowns. Nova Iorque: Hawthorn Books, 1976.
XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico: a opacidade e a transparência. Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2008.

Filmografia

A grande família. Mauricio Farias. Brasil, 2007.


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A partilha. Daniel Filho. Brasil, 2002.
Divã. José Alvarenga Junior. Brasil, 2009.
O auto da compadecida. Guel Arraes. Brasil, 1999.
O palhaço. Selton Mello. Brasil, 2006
Os Normais. José Alvarenga Junior. Brasil, 2003.
Redentor. Claudio Torres. Brasil, 2004.
Se eu fosse você. Daniel Filho. Brasil, 2006.

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