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Resumo: Este artigo trata de algumas disputas em torno dos rumos da capoeira entre as
décadas de 1950 e 1970. Por um lado, o entendimento da capoeira como arte/cultura
propicia sua folclorização através de espetáculos turísticos. Por outro, a ênfase em seu
caráter luta leva a experiências de esportivização nos moldes de outras lutas, bem como a
tentativas de normatização e controle que visam deslocar a centralidade baiana em suas
definições político-identitárias.
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Bacharel em Comunicação Social pela UFMG, especialista em Educação e Relações Étnico-Raciais pela
UESC, mestre em Ciências Sociais pela UFBA. Aluno especial do Doutorado em Cultura e Sociedade e
funcionário da Editora da Universidade Federal da Bahia. paulomagalhaes80@gmail.com
sua apresentação para turistas teve um forte impacto na formação de novos capoeiristas, e
alterou de forma significativa o ritual e a dinâmica da roda de capoeira.
Por outro lado, o discurso da capoeira esporte tomará força e resultará em diferentes
tentativas de normatização e controle da capoeira a partir de órgãos centralizados, como
federações e confederações. Posteriormente, seguindo esta linha, o sistema CREF/CONFEF
elaborará um projeto de lei tendo em vista restringir o ensino de capoeira aos profissionais
de educação física.
A batalha entre esses dois projetos teve como combatentes intelectuais orgânicos de
ambos os lados. Mestre Bimba expandiu seu trabalho a partir de sua academia no
Pelourinho, vizinha à Faculdade de Medicina, e de lá saiu boa parte de seus alunos. Os
primeiros intelectuais da capoeira são oriundos da capoeira regional. A capoeira angola só
viria forjar seus próprios quadros a partir da década de 1980, com seu processo de
revitalização e intelectualização, sob a influência do movimento negro. Mas a valorização
da capoeira angola e da capoeira de rua seriam feitas a partir de todo um ambiente
teórico/cultural que emergia nesse período.
Folclorização e Turismo
Simone Vassallo aponta a formação de um momento especialmente propício para a
valorização das tradições populares nordestinas, dentre as quais se insere a cultura de
matriz africana. Ela analisa a emergência de um paradigma culturalista nas ciências sociais,
a partir da publicação do clássico “Casa Grande e Senzala” (Gilberto Freyre - 1934). De
acordo com a autora, há uma série de pesquisadores que produzem a partir deste período,
como Édison Carneiro, Artur Ramos, Renato Almeida e Câmara Cascudo, e que a partir de
distintas bases teóricas, vão privilegiar a busca de nossas expressões culturais mais “puras”
e “autênticas”, típicas da nossa identidade. Nas palavras de Vassallo (2003),
O paradigma culturalista emergente possui uma especificidade: classifica
as expressões culturais em termos de pureza ou de degradação. As
manifestações culturais consideradas autênticas exprimiriam a “essência”
da brasilidade, ao passo que as outras seriam fruto dos processos de
sincretismo, urbanização e industrialização. A modernização, que atinge
mais intensamente o país a partir desse momento, conduz vários
intelectuais à procura das “sobrevivências” culturais que estariam
ameaçadas pelo progresso. (p. 3).
O cientista social argentino Néstor García Canclini (2003) elabora fortes críticas às
clássicas noções folcloristas de tradição e popular, que, segundo ele, privilegiam a busca
por sobrevivências de antigas estruturas sociais, caricaturando essas manifestações como
puras, orais, ingênuas e imutáveis. De acordo com o autor, “esta indústria multinacional que
é o turismo necessita preservar as comunidades arcaicas como museus vivos (...), a cultura
popular transformada em espetáculo” (1983, p. 66). Segundo Milton Moura (2005), o
turismo cultural “conota a ânsia pelo consumo de bens simbólicos elaborados de forma
especial ou singular como plenos de riqueza cultural”, constituindo “uma forma de
empresarizar pequenos pacotes de alteridade” (p. 50).
O regime autoritário instaurado a partir do golpe de 1964, embora tenha exercido
forte censura sobre parte da produção artística, ajudou a fortalecer uma indústria cultural
brasileira. Neste período, tem início a criação de um Sistema Nacional de Cultura. Em
1967, consolida-se o Sistema Nacional de Turismo. Em Salvador cria-se a Superintendência
de Turismo de Salvador – SUTURSA. Esta, por sua vez, cria o Centro Folclórico, visando
incrementar o fluxo turístico com apresentações do folclore baiano.
Jocélio Teles dos Santos (2005) mostra que o regime militar, em busca da
hegemonia, pressupunha a preservação do patrimônio cultural como fonte da identidade
nacional. “O Pelourinho era visto, desde o final dos anos sessenta, como prioridade na
preservação do patrimônio histórico e implementação do turismo na cidade de Salvador” (p.
85). Em um momento de intensa modernização capitalista na Bahia, com “novos padrões
culturais trazidos pela mídia”, havia uma nítida tensão entre modernidade televisiva e a
tradicional vivência cotidiana. A solução estatal para conciliar estes interesses opostos
consistia na preservação da cultura popular através do que se chamava de turismo cultural.
As ações governamentais traduziram-se em intensas campanhas turísticas em que se
vendia uma imagem da Bahia negra. Embora calcada no paradigma da democracia racial e
do sincretismo religioso, a cultura popular que se vende como parte do pacote turístico é
predominantemente de matriz africana. Imagens de baianas, do candomblé, da culinária
afro-baiana e de negros musculosos e sem camisa jogando uma capoeira acrobática
misturam-se às praias e monumentos históricos, como que se naturalizando e fazendo parte
do ambiente. A criação da Fundação do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia
(posteriormente transformado em IPAC) materializa essa política governamental de
preservação do Pelourinho, incentivo ao folclore e estímulo ao turismo.
Na década de 1960 surgem diversos grupos e shows para-folclóricos como
VivaBahia e Olodumaré, que estilizavam a capoeira, o samba de roda, o maculelê, o
candomblé, a puxada de rede e outras manifestações da cultura popular afro-brasileira
(NÓBREGA, 1991). A maioria dos grupos de capoeira se integra à lógica do turismo e
passam a depender dele. O próprio Mestre Pastinha, considerado o principal guardião das
tradições da velha guarda da capoeiragem baiana, dependia do turismo para a manutenção
de sua academia. Em relação a isto, é sintomática a reportagem da Revista Quatro Rodas de
Dezembro de 1963, que apresenta o candomblé, a capoeira e as festas populares da Bahia,
com fotos da academia de Mestre Pastinha. Diz a revista:
Agora atração turística, a capoeira tem locais próprios de apresentação
para você assistir. Geralmente cobra-se uma média de Cr$ 200 por pessoa
para um belo espetáculo. (...) Mestre Pastinha – Largo do Pelourinho, 19.
Exibições às terças, quintas e sextas-feiras a partir das 19 horas; aos
domingos das 15 horas em diante. O mestre prontifica-se ainda a ensinar a
qualquer turista os principais golpes do jôgo em aulas de uma hora. Preço
Cr$ 2.000 por aula e vale a pena.
Mestre Nô, de forma semelhante ao que Mestre Waldemar afirmara décadas antes,
não reconhece o atabaque como um instrumento tradicional da capoeira angola, atribuindo
sua inserção na capoeira aos espetáculos folclóricos que também trabalhavam com danças
dos Orixás.
Influenciou até os que se dizem angoleiros autênticos. Estão usando
atabaque, um atabaque deste tamanho! Antes não tinha atabaque não,
somente berimbau e pandeiro, antes da década de 60. A capoeira era
proibida, pô! O cara ia pra rua com um atabaque? Era complicado! Até
mesmo na década de 60 capoeira era muito mal vista. A polícia dava em
cima ainda. O atabaque começou a entrar na roda de capoeira com o grupo
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As entrevistas dos mestres Geni, Itapoan, Jorge Satélite, Nô e Renê são de MAGALHÃES FILHO, 2011.
folclórico Viva Bahia. Depois com o Afonjá, do Vermelho Maurício.
Depois de alguns anos mais pra cá, o grupo folclórico Filhos de Obá, da
D. Augusta de Periperi. Então, desde o Viva Bahia da professora Emília
Biancardi, ou melhor, um pouco antes, do Mestre Canjiquinha, no
Belvedere da Sé, o atabaque já estava se incorporando na capoeira.
Atabaque grande. Porque o candomblé era antes da capoeira. E depois da
capoeira, o samba duro e o samba de roda. O atabaque já ficava logo pra
roda. Era show!
(Mestre Nô)
O discurso da folclorização ganha força nos jornais na década de 1970, embora não
seja mobilizado para defender uma suposta pureza ou tradição da capoeira, mas para
sustentar uma proposta de regulamentação e controle, como veremos adiante.
Esportivização e Graduações
O regime militar, com sua ideologia nacionalista, também investiu pesadamente na
educação física e nos esportes, numa perspectiva de adestramento, disciplina, controle e
estabelecimento de um biopoder. As propostas “brancas e eruditas” de esportivização da
capoeira, citadas por Letícia Reis, atualizaram-se.
Em 1968 e 1969 aconteceram dois simpósios nacionais sobre capoeira, no Rio,
promovidos pela comissão de desportos do Ministério da Aeronáutica, a fim de padronizar
nomenclaturas e técnicas. Mestre Bimba retirou-se do II Simpósio em protesto, por não
aceitar o pretenso protagonismo federal nas redefinições dos rumos da capoeira. Em 1972,
uma portaria do MEC reconheceu oficialmente a capoeira como esporte. A capoeira foi
vinculada então à Confederação Brasileira de Pugilismo, através de seu Departamento
Especial de Capoeira. A CBP estabelece um sistema oficial de graduações, baseado na
bandeira do Brasil.
Havia uma série de insatisfações entre os capoeiristas, por terem que se submeter às
federações estaduais de pugilismo, e em 1974, se funda a Federação Paulista de Capoeira, a
primeira do Brasil. Também lá acontece o primeiro torneio nacional, em 1975, e começa a
se consolidar este modelo de capoeira como esporte para competição. Ainda nesta década, a
PM-BA inicia um curso de formação de instrutores de capoeira na corporação. Tratava-se
de uma proposta de ensino racional e sistemática, que procurava ensinar a luta de forma
metodizada e científica. Consolida-se assim mais uma tentativa de transformar a capoeira
em esporte nacional, um esporte mestiço, limpo de seu passado negro (entendendo aqui
tanto a dimensão étnico-racial, de desvinculação das origens africanas e da religiosidade do
candomblé, como de sua prática marginal pelos valentões que surravam policiais e
desafiavam o poder do Estado). Esse processo se insere num amplo movimento de
transformação de símbolos étnicos em elementos constitutivos da identidade nacional,
como o samba e a feijoada.
Mestre Itapoan fala de alguns dos questionamentos que surgiram em contraponto a
essa tentativa de padronização das graduações a partir do sudeste, e os inúmeros formatos
que se estabeleceram desde então.
A Confederação Brasileira de Pugilismo, no Rio, oficializou esses cordéis,
botaram o nome de cordel. Na época a gente disse “Pô, cordel meu irmão!
Vai confundir com teatro de cordel, literatura de cordel”. E como nunca
tinha sido feito, um cara pegou os regulamentos que tinham lá e misturou
tudo.
Então as pessoas em contraponto começaram a criar graduações. E aí pra
não chamar de cordel começaram a chamar de corda. Outros, pra não
chamar de corda, começaram a chamar de cordão. Aí uns diziam assim:
“cordel é teatro de cordel”, outros: “corda é pra amarrar burro”, ou:
“cordão é pra gente amarrar pão”. Aí ficou essa merda, cada um fez a sua,
virou uma baderna total. Hoje essa graduação só serve pra segurar a calça
do capoeirista. A ideia é que a graduação identificasse quem era você na
roda de capoeira. Mas sempre existem 300 graduações. Você chega numa
roda, não conhece ninguém, como é que você sabe quem é quem ali, quem
é mestre, quem não é?
(Mestre Itapoan)
O uso de cordões de graduação pelos angoleiros baianos será combustível para uma
série de disputas na década de 1980, em torno dos rumos da tradição angoleira. Neste
artigo, nos interessa acompanhar um amplo debate que se deu nos jornais baianos ainda na
década de 1970, envolvendo diferentes projetos políticos para a capoeira. Veremos como os
discursos circulam, são ressignificados e tomam vida própria. A crítica à folclorização, feita
a partir de um certo paradigma antropológico, e que traz implícito uma ideia de pureza
cultural, foi utilizada para respaldar uma tentativa de transformação muito mais profunda da
capoeira.
Percebemos que Mestre Caiçara está aqui encarando duas batalhas: uma contra o
sudeste, outra contra a regional. Em virtude do crescimento da capoeira esporte, Caiçara,
sem perder de vista a perspectiva folclórica que lhe dava sustento através do Grupo Santa
Bárbara Filhos de Alecrim, aventa para a capoeira angola a possibilidade de entrar nos
campeonatos esportivos, como fizera seu mestre Aberrê no Parque Odeon. De forma
semelhante aos conflitos ocorridos nos ringues baianos em 1936, sua proposta de
esportivização inclui a manutenção dos rituais tradicionais da capoeira, ao invés de sua
mutilação, como protagonizada pelo projeto hegemônico da CBP.
Considerações
A popularização dos shows folclóricos, se por um lado garantiu uma fonte de renda
regular para os capoeiristas, por outro foi acusada de descaracterizar a capoeira. Uma forte
parcela do pensamento antropológico da época, baseada em um “paradigma da pureza”,
subsidiou esta condenação enfática à folclorização.
Com o processo de esportivização levado a cabo pelos militares em parceria com os
capoeiristas do sudeste, pudemos ver um forte conflito em torno da organização e controle
da capoeira. As propostas baianas de regulamentação utilizaram-se da crítica à folclorização
para difundir sua tentativa de controle da capoeiragem baiana, em contraponto à
organização do sudeste.
Costumeiramente definida como arte/luta, a capoeira entre as décadas de 1950 e
1970 viveu as intensas contradições de sua transformação em mercadoria, seja como
arte/cultura/produto turístico, seja como luta/esporte de competição. A ambiguidade dessa
arte/luta faz com que ela resista a classificações e sobreviva gingando entre diferentes
projetos político-identitários, entre shows e campeonatos, entre mestiçagem e negritude,
entre folclore e esporte, entre angola, regional e contemporânea. Somente na década de
1980 o processo de revitalização da capoeira angola, protagonizado por mestres como João
Pequeno, Paulo dos Anjos, Curió, Moraes e Renê, dentre outros, voltaria a enfatizar o
caráter tradicionalmente ritualístico da capoeira. Mas essas são cenas de um outro
capítulo...
REFERÊNCIAS: