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UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO

DIRETORIA DE TECNOLOGIAS NA EDUCAÇÃO


CURSO DE LETRAS / PORTUGUÊS

JUCILENE DA SILVA SOBRAL

AS CONTRADIÇÕES DA VIDA HUMANA REFLETIDAS NA PROSA


POÉTICA DA OBRA O OLHO DE VIDRO DO MEU AVÔ, DE BARTOLOMEU
CAMPOS DE QUEIRÓS

Açailândia
2022
JUCILENE DA SILVA SOBRAL

AS CONTRADIÇÕES DA VIDA HUMANA REFLETIDAS NA PROSA


POÉTICA DA OBRA O OLHO DE VIDRO DO MEU AVÔ, DE BARTOLOMEU
CAMPOS DE QUEIRÓS

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Letras /
Português da Universidade Federal
do Maranhão.
Orientadora: Prof.ª Thaiane Alves
Mendonça.

Açailândia
2022
Ao Manoel Delamar e à Maria José,
meus pais e à Alysson Franco, meu
marido, pelas referências cotidianas
sobre o significado da vida, o que me
enche de orgulho e enaltece a minha
admiração.
AGRADECIMENTOS

Primeiramente agradeço ao Deus, Pai, todo poderoso, que criou o Céu e


a Terra, e todas as coisas. Pelo dom da vida e por ter me dado forças para chegar
até aqui.
Ao meu marido, Alysson Franco, minha gratidão por toda atenção e
cuidado.
Ao meus pais, Maria José e Manoel Delamar, que nunca pouparam
esforços para investir na educação dos filhos.
À minha professora e amiga Francisca Núbia, que fui presenteada através
da UFMA, agradeço pela indicação do tema para o trabalho. Seu amor, paixão
e dedicação pela profissão me fez tê-la como exemplo no qual quero me
espelhar. Obrigada pelo ser humano incrível que você é, e por todo transbordo
na vida dos seus alunos, fazendo toda diferença.
À minha orientadora Thaiane Alves Mendonça, que muito colaborou com
suas indicações bibliográficas, reflexões, observações e com o envio de material
para este estudo. Obrigada, pela orientação atenciosa e tranquila, por todo
incentivo, abertura e, principalmente, pela paciência que foram fundamentais
para produção e conclusão do trabalho.
À minha amiga e professora Fabiana Silva, pelo apoio e orientação, que
foram fundamentais na execução da pesquisa.
Aos professores e professoras da Universidade Federal do Maranhão, em
especial, às professoras Maria Nascimento, carinhosamente conhecida como
Nana, e Francisca Núbia ou simplesmente Núbia, por toda partilha de seus
conhecimentos, tanto profissionais como os de vida. Obrigada por todo cuidado,
atenção e ajuda, motivações para não desistir.
Não poderia deixar de agradecer aos colegas de classe. A caminhada não
foi fácil, pois nos últimos dois anos ficamos afastados devido ao momento
pandêmico, em decorrência da Covid-19.
Agradeço a todos aqueles não citados que, direta ou indiretamente,
contribuíram de alguma forma para produção e conclusão deste trabalho.
"O ser humano é aquilo que a educação faz dele."
Immanuel Kant
RESUMO

O livro O olho de vidro do meu avô apresenta uma concepção metalinguística na


qual o objeto é visto como a desmitificação da realidade do mundo, anseios e
medos rotineiros, característicos das imagens projetadas na mente do autor. Os
mistérios da vida do avô através de um olhar quase que inóspito, como um
resgate da memória atraído para o presente. O relacionamento do neto e avô
apresenta-se de forma muda, mas explicita o carinho e cuidado do
relacionamento entre os dois, pois essa peculiaridade remete aos segredos e
mistérios carregados pelo olho de vidro. As dúvidas incitam o neto a gerar nos
leitores a vontade de participar da história, no contexto das contradições e
vivências no campo da imaginação do menino. Desta forma, a obra expande os
sentidos mais aguçados no campo dos reveses da vida cotidiana. As ações
humanas se contrapõem na busca pela felicidade e satisfação do bem-estar,
onde o esconderijo da alma retratada pelo autor é feito de verdades e mentiras.
Assim, a realidade da vida humana é vista como um labirinto, onde a
impossibilidade de visão real dá asas ao imaginário. A presente pesquisa
objetiva elucidar as contradições da vida humana sob a visão do autor,
apresentando as perspectivas do estado da inconsciência como guia de
paradoxos. Adotando um viés exploratório de caráter bibliográfico na revisão da
literatura de Bartolomeu Campos de Queirós, sob a ótica literária do tema
proposto. Portanto, a obra reconstrói o universo dentro das contradições da vida
cotidiana dos personagens, mergulhando no universo do imaginário e
identificando sua função na imagem representada pela busca de como o
inconsciente a projeta.

PALAVRAS-CHAVE: O olho de vidro do meu avô. Imaginário. Inconsciente.


Bartolomeu Campos de Queirós.
ABSTRACT

The book My grandfather's glass eye presents a metalinguistic conception in


which the object is seen as the demystification of the reality of the world, routine
yearnings and fears, characteristic of the images projected in the author's mind.
The mysteries of the grandfather's life through an almost inhospitable look, as a
rescue of memory drawn to the present. The grandson and grandfather's
relationship is presented in a mute way, but it explains the affection and care of
the relationship between the two, as this peculiarity refers to the secrets and
mysteries carried by the glass eye. The doubts incite the grandson to generate in
the readers the desire to participate in the story, in the context of contradictions
and experiences in the field of the boy's imagination. In this way, the work
expands the keenest senses in the field of setbacks of everyday life. Human
actions are opposed in the search for happiness and satisfaction of well-being,
where the hiding place of the soul portrayed by the author is made of truths and
lies. Thus, the reality of human life is seen as a labyrinth, where the impossibility
of real vision gives wings to the imaginary. The present research aims to elucidate
the contradictions of human life from the author's point of view, presenting the
perspectives of the state of unconsciousness as a guide to paradoxes. Adopting
an exploratory bias of bibliographic character in the literature review of
Bartolomeu Campos de Queirós, from the literary point of view of the proposed
theme. Therefore, the work reconstructs the universe within the contradictions of
the characters' everyday life, diving into the universe of the imaginary and
identifying its function in the image represented by the search for how the
unconscious projects it.

KEYWORDS: My grandfather's glass eye. Imaginary. Unconscious. Bartolomeu


Campos de Queirós.
Sumário
1.INTRODUÇÃO ............................................................................................... 9

2. O ESTÍMULO DA IMAGINAÇÃO ............................................................... 11

2.1 O Universo imaginário através do olho de vidro. .................................... 11

2.2 O papel do imaginário ............................................................................ 12

2.3 As causas da representação da imagem do olho ................................... 15

2.4 Em busca do inconsciente em “O olho de vidro”. ................................... 18

3. METODOLOGIA DO TRABALHO .............................................................. 24

4. O OLHAR DOS SENTIDOS ........................................................................ 25

4.1 O olhar que toca .................................................................................. 25

4.2 O olhar do olfato .................................................................................... 28

4.3 O olhar que degusta .............................................................................. 30

4.4 A subjetividade do olhar na visão ........................................................... 32

4.5 A personalidade do olhar ....................................................................... 34

4.6 A justificação tangível em o olho de vidro do meu avô ........................... 37

5. CONCLUSÃO ............................................................................................. 45

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 47


9

1 INTRODUÇÃO

A imaginação pode levar aos caminhos que refletem o âmago da alma


humana. Através dos mistérios que o tempo conta, verdades e mentiras
escondidas sobre uma visão de cumplicidade, a obra de Queirós retrata tais
momentos memorialísticos, com características de mistérios marcados por
intensa sutileza.

Os textos com resgate de memórias, apresentam um cotidiano em torno


da vida humana do personagem, evidenciando-se várias situações que remetem
a relutância quanto ao esquecimento. Neste contexto, a atenção disponibiliza um
critério que viabiliza a realidade e o imaginário, relativo ao esquecer ou lembrar.
Ademais, o cotidiano da vida diária humana e as intempéries rotineiras,
viabilizando contradições no roteiro da memória.

Contudo, as obras literárias do autor são marcadas por lembranças de


sua respectiva infância, mencionando-se o amor de um pai ausente, gerando o
viés de um paradoxo marcante.

Em O olho de vidro do meu avô, a mente abre espaço para uma


percepção de mundo através do olho, visto como objeto pretencioso de forte teor
literário, vivenciado por suas percepções e sensações. O escritor remete um
olhar diferenciado do mundo sob a percepção infantil. Porém, as lembranças são
relacionadas a um passado presente, no qual os medos e angústias são
retratados de maneira peculiar através do olho de vidro.

A citação no livro explana uma ideia sobre observar nuances da vida cotidiana
humana em estágios diferentes:

Passei a perceber a proximidade da infância com a literatura. Pude


compreender um conceito de Jung ‘Nascemos originais e morremos
cópias’. A capacidade da criança de não se surpreender com o
consenso me levava a mais fantasias. E tudo na percepção infantil
possui uma linguagem: plantas, água, vento, flor, pedra, tudo podia ser
escutado. A linguagem não se ausentava de nada. Daí minha
proposição de configurar uma literatura capaz de permitir a leitura
também dos mais jovens, e ressuscitar a infância que sobrevive nos
adultos (QUEIRÓS, 2010, p. 34).
10

As reflexões acerca das contradições vivenciadas de um passado


presente, retratam o convívio entre verdades e mentiras, dentro de uma
reconstrução dos sentidos, a literatura tem recorrência memorialística de uma
linguagem clássica que determina os processos da imaginação que moldam o
alicerce sobre a imagem do irreal para o real.

A concretização da imaginação promovida pelo olho de vidro remete a


busca das características sólidas que transcendem a realidade, marcada pela
sinestesia, recurso que promove a transformação de como a vida realmente se
apresenta diante dos desafios ao longo da trajetória humana.

As concepções por trás do mundo imaginário do olho de vidro vislumbram


o contraditório aspecto vivenciado pelo passado, marcando o presente. Essas
experiências do consciente e inconsciente, que são os esconderijos do olhar,
despertam reações de curiosidade do campo sensível infantil. O conhecimento
das percepções sobre as relações da criação de um universo imaginário
produzido pela nova estruturação do mundo real é visto pelo olho de vidro do
avô. As memórias do passado sempre contam a rotina da vida com seus
reveses, onde o mundo da imaginação, através do objeto olho de vidro, ganha
vida, restabelecendo um paradoxo nos sentidos, representado o silêncio da alma
na concepção da visão.

O olho, em sua natureza originária, tem uma condição fixa. Entretanto,


sobrevive à vida cotidiana exemplificada pela visão do menino. Como se a vida
fosse fragmentada na realidade, tornando-se um mecanismo de resgate da
memória sensorial. Essa por sua vez, gera uma facilidade na busca da
fragmentação da imagem projetada pelo olho.

Como as contradições da vida humana podem transparecer um olhar fixo


mais que transcende o imaginário?

Os métodos utilizados para a presente pesquisa correlacionam conceitos


preestabelecidos e são de caráter dedutivo exploratório. Este tipo de pesquisa
delimita todos aspectos estudados anteriormente, relacionando a capacidade de
raciocínio e análise para o tratamento dos dados.
11

Nesta perspectiva, as experiências na caracterização do contexto literário


da obra estudada, mediante a leitura, traçam um campo científico na área do
autoconhecimento, trazendo contribuições através da visão empírica. A partir
deste pressuposto, a investigação foi o campo de articulação entre o consciente
e o inconsciente. A monografia caracteriza-se pelo campo de pesquisa das
Letras, abordando aspectos literários, históricos e técnico-científicos de
avaliação, para o aporte acadêmico e pesquisas futuras:

Consiste em investigações empíricas, porém o objetivo é a formulação


de questões ou de um problema, com tripla finalidade: desenvolver
hipóteses, aumentar a familiaridade do pesquisador com um ambiente,
fato ou fenômeno, para realização de uma pesquisa futura mais precisa
ou modificar e classificar conceitos. (LAKATOS; MARCONI, 2004,
p.188).

2. O ESTÍMULO DA IMAGINAÇÃO

2.1 O universo imaginário através do olho de vidro

As percepções humanas são a essência da existência do campo


imaginário e tendem a ser as percussoras de todos os sentidos. Quando a
imaginação começa a fluir, uma luz surge. Nesse início do contexto da vida
humana, urge o contraditório. Pois o foco principal é a observação de quais
sejam os insondáveis mistérios, vivenciados pelo olhar de seu avô Sebastião:

A memória em Bartolomeu é alargada, “protege tanto o vivido como o


sonhado”. E na sua elaborada simplicidade são lembranças que
pulsam os territórios enormes e mutantes do inconsciente. É a
dimensão proustiana, adaptada às cidadezinhas de Minas, na busca
do tempo perdido, da infância. É uma revisitação, um estar de novo.
(SOARES E PARREIRAS, 2013, P.46).

A curiosidade alargada pela memória vai além da concepção estética,


envolve as imagens projetadas pelo passado, os procedimentos referentes à
imaginação precedem às imagens. Embora existam aspectos da materialidade,
logo em seguida, a imaginação permeia todos os demais. Há a existência de
12

dois tipos de imagens. Porém, existe a necessidade de ser criada a imaginária.


No rol da filosofia, esse paradigma é gerado dentro do próprio ser humano. Logo,
a imaginação deduz o mundo externo e interno da vida humana (BACHELARD,
2008).

O cotidiano da vida humana, segundo o filósofo, são as imagens criadas


durante a trajetória das profundezas do mais íntimo do nosso ser, processo este
resultante de um momento para outro.

2.2 O papel do imaginário

A ação do paradoxo que envolve o inconsciente humano molda a imagem


de forma coletiva, conforme explica C.G Jung:

Uma existência psíquica só pode ser reconhecida pela presença de


conteúdos capazes de serem conscientizados. Só podemos falar,
portanto, de um inconsciente na medida em que comprovamos os seus
conteúdos. Os conteúdos do inconsciente pessoal são principalmente
os complexos de tonalidade emocional, que constituem a intimidade
pessoal da vida anímica. Os conteúdos do inconsciente coletivo, por
outro lado, são chamados arquétipos (JUNG,2013, p.16).

Segundo Jung, as primeiras imagens estruturam uma simbologia que


marcam o universo humano diante do ego exacerbado, dentro dos contextos de
histórias ou contos que são compartilhados por todos os seres humanos. Porém,
seu modo habitual modifica-se consideravelmente.

O processo de busca no imaginário, de acordo com a obra de Bartolomeu


Campos de Queirós em O olho de vidro do meu avô, aponta incertezas nas quais
observa-se no cotidiano humano:

Ao ficar diante de meu avô eu me sentia apenas um menino em seus


olhos. Se alguém nos olha nos multiplica. Passamos a ser dois. Somos
duas meninas dos olhos. Mas no olhar de meu avô eu só podia ser um.
E ser dois é ter um companheiro para aventurar, outro irmão para as
errâncias. Assim, é sempre possível jogar nossa culpa no outro. E ele
desculpa sempre. Toda pessoa é gêmea de si mesma. Há sempre um
outro escondido dentro de nós que nos vigia em silêncio. Só aqueles
que possuem um olhar de vidro não refletem isso. Meu avô me reduzia,
13

me fazia solitário. Eu me sentia único, órfão, sem portas para saídas


(QUEIRÓS, 2004, p.6-7).

Cada ser humano tem dentro de si dois tipos de pessoas, conforme afirma
o escritor. Os dois tipos refletem o âmago da alma de cada indivíduo, recriando
páginas e transformando o silêncio, como um espião de cada atitude. Mesmo
buscando-se imaginar através do olho de vidro, a cegueira está dentro de cada
um, ainda que se tenha dois olhos.

Conforme de Queirós (2004), o olhar do ser humano às vezes é


verdadeiro, às vezes é mentiroso, e quase sempre não acredita no que se vê. A
visão é um campo minado, onde há a possibilidade de despertar o sentimento
de incertezas, criando-se uma falsa bondade, na qual a verdade não dá margem
aos erros, tentando esconder a natureza do homem. As contradições geram
conflitos duvidosos dentro da alma humana, e às vezes o ser humano limita-se
a não enxergar.

A obra em prosa mantém um equilíbrio entre o teor conotativo e


denotativo. Todavia, se presume em assumir estratégias que atraem o leitor a
participar de maneira em que se possibilite a ênfase nas metáforas,
apresentadas pelo autor na prosa-poética. No fragmento a seguir percebe-se tal
interação leitor e autor:

Um dia virei meu avô. Minha mãe me vestiu de pirata. Eu nem sabia o
que era carnaval. Coloquei aquela venda no olho. Eu desejava retirar
a venda que cobria o meu olho e me impedia de ver melhor. Faltava
luz para o meu olhar. Nesse momento, eu me imaginei com um olho
de vidro, como aquele do meu avô e comecei a imaginar como era a
vida dele. Foi então que me acostumei com aquela venda nos olhos.
Com um olho eu via as fantasias, as máscaras e confetes. Com o outro
eu invadia os sonhos, via navios e encontrava tesouros. Com um olho
eu via as pessoas no carnaval e com o outro eu as imaginava em um
baile de reis e rainhas (QUEIRÓS,2004, p.11-12).

A construção da base do livro orienta-se através do resgate da memória.


São experiências vivenciadas na infância, que remetem a momentos entre
familiares. Sabe-se que a memória é uma função psíquica, fazendo com que o
ser humano determine novamente seu estado emocional, seja ela somente
representada ou mesmo vivenciada.
14

Em muitos trechos do livro, o autor apresenta essa evidência quanto a


importância dessa capacidade funcional psíquica-emocional. Entretanto, um
trecho marca visivelmente esse aspecto exposto em: ''A memória é uma faca de
dois gumes. Ela guarda fatos que me alegra em recordar, mas também outros
que desejaria esquecer, para sempre. A memória é como cobra: morde e sopra''
(2004, p. 17). A responsabilidade de armazenar lembranças ao longo da vida é
da memória, resgatando-se momentos passados bons com um ar de nostalgia.
E em outros casos, momentos nos quais prefere-se esquecer. Ou seja, os ruins.
Justificando-se através da comparação do autor entre a memória e uma faca de
aproximação entre o concreto e abstrado.
dois gumes.

Os pensamentos são os responsáveis por realizar um processo no sentido


da realização das experiências nas quais o ser humano vivenciará com o passar
dos anos. O olho visualiza, mas o pensamento constrói um elo de transmissão
através deste.

O mundo da imaginação remete a um processo de libertação do que está


aprisionado no mais íntimo do indivíduo, transportando as pessoas a locais
jamais imaginados, e contextualizando um processo de uma nova forma de viver
alicerçada no mundo dos sonhos. Tal recurso é característico da figura de
linguagem conotativa metáfora, na qual cria-se um mundo com novos sonhos e
novas descobertas, transpondo as barreiras entre o real e o imaginário. Observa-
se que na vida cotidiana do menino estão presentes as experiências mais
simples, como brincadeiras e seus familiares. Contudo, a presença do que
consiste no seu interior é bem marcante na obra.

Bartolomeu Campos de Queirós busca firmar as informações transmitidas


pelos sentidos da mente, conforme o trecho das referidas páginas citadas:

Ao ficar diante de meu avô eu me sentia apenas um menino em seus


olhos. Se alguém nos olha nos multiplica. Passamos a ser dois. Somos
duas meninas dos olhos. Mas, no olhar de meu avô eu só podia ser
um. E ser dois é ter um companheiro para aventurar, outro irmão para
as errâncias. Assim, é sempre possível jogar nossa culpa no outro. E
ele desculpa sempre. Toda pessoa é gêmea de si mesma. Há sempre
um outro escondido dentro de nós que nos vigia em silêncio. Só
aqueles que possuem um olhar de vidro não refletem isso. Meu avô me
reduzia, me fazia solitário. Eu me sentia único, órfão, sem portas para
saídas (QUEIRÓS,2004, p.6-7).
15

Há uma ideia de culpa evidenciada no trecho acima, onde o olho de vidro


encontra-se em uma posição defensiva em relação ao autor, anulando a situação
de duplicidade, criando assim uma possibilidade do jogo da culpa. O olho reduz
o narrador a solidão que retrata a orfandade, local sem escape. A profundidade
de sentimentos e emoções nesse trecho é composta pelo universo de
culpabilidade infantil, causando um efeito destrutivo sob a ótica do menino.

As contradições surgem em torno da forma de ver o mundo sob o aspecto


dos olhos do avô. O autor retrata ao longo dos trechos uma duplicidade do que
seria bom e ruim, e da exposição do real e do imaginário.

2.3 As causas da representação da imagem do olho

As representações são analisadas pelo autor como um fundo de escape


para as emoções retratadas pelo imaginário do olho de vidro do avô. Um
processo complexo de investigação à procura de novos cenários cotidianos na
sensibilidade dos aspectos psicológicos com a realidade, esta por sua vez seria
a capacidade de retratar os sentidos transmitidos pela mente:

Com o olho direito meu avô via o sol, a luz, o futuro, o meio-dia. Com
o olho esquerdo ele via a lua, o escuro, o passado, a meia0noite. Um
dia me falaram que a alma tem dois olhos. Com um, ela olha para o
tempo, com o outro, ela namora a eternidade. Um olho é do amor e o
outro é do desamor (QUEIRÓS,2004, p.8).

Existe uma separação entre máteria e vidro, na qual o escritor especifica


a trajetória das oposições em torno do olho. A duplicidade relata a realidade da
ficção, existindo causas para materizalizar a formalidade, materialidade,
eficiência e finalidade. Cada aspecto retrata uma especificação, e o mundo da
formalidade está elencado como sendo o essencial para todas as coisas, o que
aparentemente é de acordo com o seu formato, um objeto concreto, visto com
exposição de imagens criadas pela imaginação do autor:

Acreditamos que a doutrina da imaginação só será esclarecida se


pudermos fazer a classificação correta dos valores sensuais em
relação aos valores sensíveis. Só os valores sensuais dão
16

correspondências.Os valores sensíveis proporcionam apenas


traduções.É por ter estabelecido, confundido o sensível e o sensual, a
correspondência das sensações (elementos muito intelectuais), que
impossibilitamos um estudo verdadeiramente dinâmico da emoção
poética ( BACHELARD, 2013,p.22-23).

A sensibilidade da imagem poética suscita sensações e estímulos que


evidenciam o imaginário. Sob esta perspectiva, a obra de Bartolomeu Campos
de Queirós ultrapassa a cultura dos sentidos e permeia a profundidade do
inconsciente diante da coletividade de vários paradigmas. Para Charles
Baudelaire (2012), na obra flores do mal, a natureza é vista como o arcabouço
de um cenário cotidiano da vida do ser humano, buscando assimilar as
sensações inventadas harmonizadas ao sentido da psiquê, onde a realidade
busca uma transmissão entre a mente e o inconsciente.

A abstração relatada por Aristóteles define causas para a materialidade


de um sentido tão aguçado como a visão. Através desta linha de raciocínio, a
que mais é justificada por ser de aspecto relacional como essencial para a busca
de comparativa entre o real e o imaginário, é a formal:

Causa, num sentido, significa a matéria da qual são feitas as coisas;


por exemplo, o bronze da estátua, a prata da taça e o mais do mesmo
gênero. Num outro sentido, causa significa a forma e o modelo, ou seja,
a noção de essência e os gêneros dela: por exemplo, na oitava, a
causa formal é a proporção de dois a um e, em geral, o número. Nesse
sentido também são causas as partes que entram na noção de
essência. (ARISTÓTELES apud REALE,2014, p.42).

Partindo deste pressuposto aristotélico que o autor desafia os instintos do


concreto com a abstração da imaginação, uma que dá vida a algo real e outra
que dá vida a algo que foge do controle da nossa inconsciência. Existe uma
superficialidade na existência do campo sensitivo. Neste sentido, surgem ideias
de estado da imaginação material, uma vez que as imagens transmitem o
psicológico da imaginação. Campos de Queirós pontua que ''O pensamento vê
o mundo melhor que os olhos, e tentava justificar. O pensamento atravessa as
cascas e alcança o miolo das coisas'', para definir que o olhar é superficial e que
a imaginação é que está intrínseca dentro de cada ser humano.
17

A imensidão de um olhar pode transmitir somente o que os olhos querem


enxergar na percepção do menino. Existem duas pessoas dentro de cada ser
humano, em meio ao silêncio do nosso inconsciente. Porém, não existe a
possibilidade de descrever a imagem projetada através do olhar de vidro do avô,
pois ele se tornava inóspito, diante da solidão apresentada e significava um
entrave para uma porta de escape.

As imagens projetadas conheceram um mundo inconsciente onde as


horas pareciam passar com uma lentidão, através das fantasias vivenciadas pelo
olho de vidro do avô. Nesse contexto, o imaginário é visto como uma imensidão
de muitas percepções e sensações, numa rotineira forma de abreviar dúvidas
que iam além da imaginação.

Uma contradição em meio às verdades e mentiras, num contexto de


vivência entre o passado e o futuro projetados por meio das paixões e emoções
sentidas, como uma forma de expressão de maldade e bondade, pois nenhum
olhar pode ser esgotado pelo o que não se pode enxergar, projetando assim uma
imagem falsa do que se vê.

O vidro em si busca sintetizar a matéria mediante à representação, caindo


na metáfora do autor em identificar o que a vida poderia ser e não foi, na ótica
do intangível, pois era mero objeto e não existia nada de fantasioso:

Meu avô não deixou herança a não ser sua história. Sobraram os
ternos de linho engomados no guarda-roupa, a mala com as pílulas, a
cadeira de balanço embalando todo o silêncio do mundo. Mas para
mim, depois de passar de mão em mão, restou seu olho de vidro, agora
sobre a minha mesa, dormindo num pires. E sempre que passo diante
dele repito: olho de vidro não chora. Olho de vidro brilha por não ver.
Nunca vou saber o que o olho de vidro do meu avô não viu (QUEIRÓS,
2004, p.46).

Um objeto de sensações exposto sobre a mesa, porém, um paradoxo das


memórias que ressuscitam lembranças do avô do menino. A imagem é projetada
pela busca da matéria primeira do toque em reconhecer que o imaginário
transcende o formal do olho e a matéria do vidro:
18

Se a poesia deve reanimar na alma as virtudes da criação, se deve nos


ajudar a reviver, em toda a sua intensidade e em todas as suas
funções, nossos sonhos naturais, precisamos compreender que a mão,
assim como o olhar, tem seus devaneios e sua poesia. Devemos,
portanto, descobrir os poemas do tato, os poemas da mão que amassa
(BACHELARD, 2008,65-66).

A obra O olho de vidro do meu avô toca o imaginário trazendo a


sensibilidade dos dois sentidos: a visão e o tato. Existe, sem dúvidas, uma
relação entre o olhar e o toque. Dentro dessa poética de Bartolomeu, surge a
contradição do olhar que toca e do olhar que imagina. O olhar imaginário
atravessa a realidade, nesse aspecto literário sinestésico, utiliza a transformação
para sensibilizar o concreto do mundo real, a deixar-se tocar pelo imaginário.

Para transpor o imaginário, utilizam-se os sentidos e, dentro dessa


perspectiva, o sentido que aguça tal imaginação com mais veemência é o tato,
visto que a pele é um dos primeiros sentidos a identificar as sensações:

Seria impossível dizer, de um modo geral, que as técnicas de


reprodução separam o objeto reproduzido do âmbito da tradição.
Multiplicando as cópias, elas transformam o evento produzido apenas
uma vez nem fenômeno de massas. Permitindo ao objeto reproduzido
oferecer-se à visão e à audição, em quaisquer circunstâncias,
conferem-lhe atualidade permanente (BENJAMIN,1975, p.14)

O fenômeno do tato, sob a ótica do fenômeno visual, produz uma


variedade de sensações que aguçam a curiosidade do menino em saber o que
se escondia por traz do olho de vidro, e retratando as formas no sentir, criam um
imaginário no contexto universal.

2.4 Em busca do inconsciente em ''O olho de vidro''

Existe uma consonância entre o mundo do resgate das memórias e a


personificação de um mundo no inconsciente, onde o autor relata um gatilho do
mundo virtual da linguagem, dentro do aspecto da figura do olho de vidro, no
qual a imagem de um mundo imaginado evoca um avô mítico, uma ambiguidade,
retratada por Bartolomeu, na busca inconsciente do que realmente o olho de
19

vidro do avô representa, um imaginário da vida, verdade, incerteza, dúvida ou


mentira:

Tenho medo da palavra verdade. É tão crua. Parece feita de faca. A


palavra verdade não permite o erro, daí não conhecer o perdão. A
verdade, se existe, deve ser exagerada demais. É maior que o mar. O
mar tem margens e a verdade não. A verdade não possui fronteiras. A
verdade não permite perguntas. A verdade é uma reposta quase falsa.
A verdade invade. Eu sempre acreditei mais no olho da mentira do que
no olho da verdade. Com o olho da mentira o meu avô só me via com
encantos (QUEIRÓS, 2004, p.9).

As impressões da verdade escondida através do olho do avô


desmistificam a singularidade dos riscos de impressões em meio a obscuridade
reveladora do inconsciente do seu ancestral, logo, o referido imaginário
personifica esse objeto. Jung pontua que:

O encontro consigo mesmo significa, antes de mais nada, o encontro


com a própria sombra. A sombra é, no entanto, um desfiladeiro, um
portal estreito cuja dolorosa exiguidade não poupa quem quer que
desça ao poço profundo. Mas, para sabermos quem somos, temos que
nos conhecer a nós mesmos, porque o que se segue à morte é de uma
amplitude ilimitada, cheia de incertezas inauditas, aparentemente sem
dentro nem fora, sem em cima, nem em baixo, sem um aqui ou um lá,
sem meu nem teu, sem bem, nem mal (JUNG,2013, p.30).

Quando o escritor Bartolomeu Campos de Queirós retrata a noite como


aporte da verdade ampla e ilimitada, busca transmitir o temor em reconhecer a
capacidade das dúvidas acerca da subjetividade de um olhar envernizado.
Nesse contexto, o livro traça uma dualidade entre verdade e dúvida, uma vez
que o menino relata sobre o avô apenas conseguir ver a vida pela metade, em
meio a um universo de contradições: verdade-mentira, direito-esquerdo, luz-
trevas, existindo uma interação em busca da natureza fragmentada entre o
inconsciente imaginário e o real:

Ao ficar diante de meu avô eu me sentia um menino em seus olhos. Se


alguém nos olha nos multiplica. Passamos a ser dois. Somos duas
meninas dos olhos. Mas no olhar de meu avô eu só podia ser um. E
ser dois é ter um companheiro para aventurar, outro irmão para as
20

errâncias. Assim, é sempre possível jogar nossa culpa no outro. E ele


desculpa sempre. Toda pessoa é gêmea de si mesma. Há sempre um
outro escondido dentro de nós que nos vigia em silêncio. Só aqueles
que possuem um olhar de vidro não refletem isso. Meu avô me reduzia,
me fazia solitário. Eu me sentia único, sem órfão, sem portas para
saídas (QUEIRÓS, 2004, p.6-7).

A solidão especificada nessas páginas do livro, exemplificam a imagem


idealizada, despertando no narrador o sentimento de solidão. E a noite retratada
pelo olhar de vidro do avô, busca no inconsciente do imaginário um encontro
consigo mesmo, com a afirmação de que somente os que possuem o olhar de
vidro não refletem a solidão. Logo, o avô oferece uma solidão que possibilita a
criação do subconsciente imaginário e de mundo irreal.

Quando a função caracteriza e materializa o mundo real, esquecendo-se


assim as sensações do inconsciente, os sonhos, resulta em percepções que não
se encerram em uma aventura.

O homem solitário, visto através do olhar de vidro, imagina um mundo


irreal, e o imaginário reflete as falas do menino. Tal individualização do irreal se
manifesta como centro universal do livro e corrobora para as sensações
expressas pelo menino. “O pensamento vê o mundo melhor do que os olhos”,
aponta o narrador. Não há dúvidas de que a imagem projetada pelo olhar de
vidro é algo do inconsciente, relatando a percepção de sensações vivenciadas,
possibilitando a capacidade de reunir dois universos.

''Meu avô via a vida pela metade, eu cismava, sem fazer meias perguntas.
Tudo para ele se resumia em meio-mundo. Mas via a vida por inteiro, eu sabia.''
Tal característica de dualidade é uma prospecção de um mundo irreal. Dois
universos. Um universo bom e um mau, a capacidade de olhar projetando a
reconstrução de memórias, onde cada situação era representada por nomes e
havia um olhar para tudo que há no seu mundo imaginário.

O fator principal da temática da obra é o olho, visto como a personificação


do universo do olhar obstante e inconstante do avô: ''Seu olhar, muitas vezes,
era parado como se tudo estivesse num mesmo ponto. E estava.''
Correlacionando-se com o contexto de unificação de pontos estratégicos que
demonstram todos os espaços e situações projetadas pela imagem, algo
21

peculiar e familiar que só um olhar muito aguçado pode observar. Pode-se


resumir que o olhar tem a capacidade de delimitar espaços, transpor barreiras e
limites da imaginação, recriar, reinventar, vislumbrar, criando um rol de
contradições.

As funções do inconsciente transpõem identificações que podem causar


as mais variadas sensações: a magia, a obscuridade, e o mais profundo âmago
da alma humana. Nem sempre é fácil transpor um ''eu'' dentro de cada ser. Cada
indivíduo, em sua particularidade, representa uma solidão, uma alegria, um
descontentamento, um autoflagelo. Esta duplicidade persiste em dar vida a algo
que não tem dentro de cada pessoa. O pensamento delimita algo que não se
pode ver, apenas sentir:

Eu também gostaria de possuir um olho assim, que ficasse distante de


mim, sobre o criado. Ter, meu olho me espiando de longe. Quem sabe,
eu me conheceria melhor? Conheceria minha superfície sem precisar
de espelho. Um olho capaz de vigiar meu sono, me protegendo dos
fantasmas que nos visitam se descuidamos de nós (QUEIRÓS,2004,
p.13).

Dentro do aspecto protetor caracterizado pelo olhar do avô, existe uma


percepção investigativa, que tenta desmascarar, que deixa atordoado, que
intimida. Porém, todo o temor é justificado quando a fala do narrador indica uma
forma de carinho e cuidado, dentro da imensidão de emoções de cada ser,
confirmando a existência de profundezas que não se podem ver:

O mundo quer se ver. A vontade, tomada em seu aspecto


schopenhaueriano, cria olhos para contemplar, para se apascentar na
beleza. O olho, por si só, não é uma beleza luminosa? Não traz a marca
do pancalismo? É preciso que ele seja belo para ver o belo. É preciso
que a íris do olho tenha uma bela cor para que as belas cores entrem
em sua pupila. Sem um olho azul, comover realmente o céu azul? Sem
um olho negro, como contemplar a noite? Reciprocamente, toda beleza
é ocelada. Essa união pancalista do visível e da visão foi sentida por
inumeráveis poetas, que a viveram sem defini-la. É uma lei elementar
da imaginação (BACHELARD,2013, p.31).

O olho de vidro possui um lado obscuro. Em sua essência, é um objeto


que causa o desejo em ver a existência do que é belo, dentro da visibilidade
22

representada pelo universo, e neste aspecto delimita-se a forma, relatada pelas


sensações. Logo, a proteção do olho é vista como algo que pode espantar
traumas e percepções de situações circunstanciais dentro de cada trajetória
humana.

O mundo da imaginação perde a característica da dureza, cedendo


espaço ao mundo intrínseco. O olho, ainda que superficial, pode ser a porta para
o interior de cada um, delimitando fragilidades e medos, mas tendo como aporte
a vigilância de tudo que não precisa ser exposto ou falado. Cada um tem algo
dentro de si que só pode ser imaginado, logo, fica somente no inconsciente:

Permaneçamos no visível no sentido estrito e prosaico; o pintor,


qualquer que seja, enquanto pinta, pratica uma teoria mágica da visão.
Ele precisa admitir que as coisas entram nele ou que, segundo o dilema
sarcástico de Malembranche, o espírito sai pelos olhos para passear
pelas coisas, uma vez que não cessa de ajustar sobre elas sua
vidência. (Nada muda se ele mão pinta a partir do motivo: ele pinta, em
todo caso, porque viu, porque o mundo, ao menos uma vez, gravou
dentro dele as cifras do visível.) Ele precisa reconhecer, como disse
um filósofo, que a visão é espelho ou concentração do universo, ou
que, como disse um outro, o ídios kósmos dá acesso para ela a um
koinós kósmos, que a mesma coisa se encontra lá no cerne do mundo
e aqui no cerne da visão, a mesma ou, se preferirem uma coisa
semelhante, mas segundo uma similitude eficaz, que é parente,
gênese, metamorfose do se em sua visão (MERLEAU-POINT,2013,
p.24).

Os olhos percorrem as superfícies de águas profundas, tocando no mais


íntimo do ser humano, procurando um modo geral de visão externa. São as
experiências que atingem a inconsciência dualista de cada ser. O olho escrutina,
não contentando-se com a carência em torno da vida cotidiana. Tal sensibilidade
da memória imaginária sensibiliza as reações em torno dos sentidos, como forma
de transcender o real e o imaginário:

Uma infância potencial habita em nós. Quando vamos reencontrá-la


nos nossos desvaneios, mais ainda que na sua realidade, nós a
revivemos em suas possibilidades. Sonhamos tudo que ela poderia ter
sido, sonhamos no limite da história e da lenda. Para atingir as
lembranças de nossas solidões, idealizamos os mundos em que fomos
criança solitária (BACHELARD, 2006, p.95).
23

A criança idealiza tudo através do que é visto. Desta maneira, surge o ser
solitário na sua jornada de identificação das coisas. A criança vê com o olho, o
toque, o cheiro e o sons. Com a intuição dos sentidos, tem percepções do
universo no qual está inserida.

Existe uma lacuna não preenchida pelo que não foi visto pelo olho de vidro
do avô, levando ao menino a criação de um ambiente de superproteção,
identificado pela magia em torno da causa sentimental que envolve o grau de
parentesco avô-neto, no universo de transição de fases, onde tudo se
transforma.
24

3. METODOLOGIA DO TRABALHO

Os processos que estão ligados à pesquisa científica corroboram para seu


desenvolvimento e estão delimitados desde a escolha do tema, relacionando
todos os aspectos que dão norte para se chegar ao resultado e a conclusão
esperados.

A revisão literária é de suma importância para sustentar qualquer estudo


no campo científico, uma vez que as informações são fornecidas através deste
recurso de investigação, conforme a necessidade do aporte da pesquisa na
busca de sintetizar os assuntos para futuras inovações no campo investigativo.
Novos conceitos surgem quando se deixa a porta aberta para novos
questionamentos. Toda ideia já possui um alicerce no campo científico, pois o
marco inicial, em determinado momento, já foi iniciado por outro pesquisador,
sendo o percussor para o desenvolvimento da pesquisa científica
(FERNANDES, 2009).

A presente pesquisa apresenta-se sob o viés bibliográfico dedutivo, com


a proposta de conciliar os aspectos literários da obra de Bartolomeu Campos
Queirós, trazendo a abordagem no campo da investigação, abrangendo no
contexto outros autores para o embasamento da revisão da literatura (SOUZA,
2013).

Para o levantamento de dados, utilizou-se a plataforma Capes, buscando


autores que abordassem a problemática. A priori, esse percurso metodológico
foi construído como processo de verificação da obra literária de outros autores
que relatassem o contexto do estudo, trazendo reflexões acerca da
complexidade característica nas obras literárias. Ademais, a presente pesquisa
visa estabelecer um processo de reconhecimento da definição da literatura como
juízo de valor em torno do cotidiano da sociedade.
25

4. O OLHAR DOS SENTIDOS

Na percepção do olho de vidro existe um vislumbre de sentidos. No sentir,


no tocar, no cheirar, tais sensações modificam os sentimentos, provocando
reações. Tudo que decorre do mundo em volta é percebido pela capacidade
sensorial, na reconstrução do real e do irreal, e cada estímulo pode ocasionar
sensações que o cérebro interpreta e transcreve como paz, tranquilidade, medo,
alegria ou tristeza. Cada ser humano individualiza sua reação de modo a reação
dos estímulos:

Os estímulos também podem nos remeter a memórias e pensamentos,


cirando uma infinidade de reflexões. As informações podem ser as
mesmas para vários indivíduos, mas a reposta é quase sempre única
para cada um. Nossos sentidos funcionam em determinadas regiões
do nosso corpo a partir de estímulos que recebemos, são os sensores,
frutos da evolução humana (OLIVEIRA,2010, p.8).

Cada pessoa determina a confiança nos estímulos dos sentidos, sendo a


visão considerada uma forma capaz de identificar os fatores mais intrínsecos do
inconsciente, uma inflexão do olhar buscando coisas, percorrendo o âmago da
alma na sua subjetividade. As imagens ligam-se às memórias da vida, onde as
lembranças podem visualizar um resgate de coisas boas e ruins.

4.1 O olhar que toca

O olhar tem uma qualidade mágica quando é desmembrado pelo tato,


como pontua Merleau Ponty ''O espírito sai pelos olhos para passear pelas
coisas.'' Em consonância à afirmação, pode-se afirmar que algumas vezes, as
coisas são perscrutadas pelo inconsciente. Tal atividade de olhar requer o toque,
em todos os sentidos existe uma sinestesia maleável ao mesmo. Os sentidos
tocam os objetos, logo, existe um toque físico necessário para que sejam
identificadas as sensações proporcionadas pelos sentidos.

O toque determina a conexão com o mundo e intensifica as impressões


espirituais. Segundo Bergson:
26

Quem pudesse enxergar o interior de um cérebro em plena atividade,


acompanhar o vaivém dos átomos e interpretar tudo o que eles fazem,
sem dúvida ficaria conhecendo alguma coisa do que acontece no
espírito, mas só ficaria conhecendo pouca coisa. Conheceria tão
somente o que é exprimível em gestos, atitudes e movimentos do
corpo, o que o estado da lama contém de ação em via de realização
ou simplesmente nascente; o restante lhe escaparia (BERGSON,
2009, p.41-42).

Tudo que permeia o espiritual escapa do físico e transcende a esfera


material, uma vez que o olhar de criança do menino enxerga o pensamento como
o interior de tudo, relatando que a imaginação é o toque que acalenta o espírito,
algo que pode fugir do entendimento do intangível para o tangível. O imaginário
especifica um toque interior para expressar os pensamentos mais variados e
criar mundos nunca antes alcançados, ou entender que as vezes os sonhos
podem ser tocados somente dentro do íntimo.

Dentro da forma de expressão literária proposta pelo narrador, verbos são


identificados no livro para expressar o toque no olhar do menino. ''Acariciar'',
''atravessar'', ''alcançar'', o que abrange uma impressão da sensibilidade em
reconhecer que o toque, embora seja uma forma superficial de vislumbre do
mundo, também é algo que consiste na profundidade do pensamento e da
imaginação humana. Essa imaginação possui uma abrangência na magia do
olho em priorizar o que permeia o profundo. Quando o autor relata que ''O
pensamento vê o mundo melhor do que os olhos'', basicamente apresenta o olho
que toca dentro de cada ser.

A relação para definir a função do olho que toca e da imaginação, não se


confunde com a origem do imaginário em prol da criação, logo, a imaginação
comanda o processo. ''A imaginação quer sempre comandar. Ela não poderia se
submeter ao ser das coisas. Se aceita as suas primeiras imagens, é para
modificá-las, exagerá-las'' (BACHELARD,2008, p.22). O olho relatado na obra
de Bartolomeu Campos de Queirós não dá forma a nada dentro do inconsciente
do pensamento.

Existe uma moldagem do imaginário, como se o toque a deformasse, de


modo que ela conseguisse submeter-se à vontade do irreal. O homem, como ser
27

solitário, imprime sensações de valores intrínsecos, desconstruindo uma


imagem de um olhar sobre a matéria e desmistificando a projeção apenas da
simples imagem pelo objeto que é o olho de vidro.

Retirando um fragmento da obra literária para expor esse contexto diante


da contradição expressa por Bachelard, identifica-se que o olho não é um mero
canal de imagem. Porém, possui um alcance que vai além da percepção do olhar
projetor. O olhar, todavia, é o que traça o imaginário, levando o ser humano a
uma viagem que também contextualiza o toque o olhar. Conforme observado
pelo narrador:

Um dia virei meu avô. Minha mãe me vestiu de pirata. Eu nem sabia o
que era carnaval. Meu desejo era agastar a venda que cobria o meu
olho e me impedia de ver melhor. Faltava luz par ao eu olhar. Mas sem
a venda eu deixaria de ser o pirata e ainda mataria a alegria da minha
mão de me ver como seu pai. Com um olho eu via o baile, as máscaras,
os disfarces. Com o outro eu invadia caravelas, assaltava navios,
vencia mares, me assustava com os tesouros. Com meu avô eu via
visível e me encantava com o invisível. Não ter o olho é ver duas vezes.
Com um olho você vê o raso e com o outro mergulha o fundo
(QUEIRÓS,2004, p.11-12).

No fragmento acima, observa-se o olhar que toca, expresso na obra.


Existe por certo a referência e dois olhos. Um que enxerga, que projeta, que vê
o que está ao seu redor. Esse olho tem a percepção de projetar a imagem real,
no caso, o menino vestido de pirata, visto pelo avô, o outro olho ''É o olho
acariciador que traz de volta os rostos e lugares da infância, os restos de linho
branco que anunciam a morte do avô'' (QUEIRÓS,2004, p.45). O resgate da
memória está no cerne do olho verdadeiro, uma vez que protagoniza um baile
de carnaval em seu entorno e com todos os seus adereços. Em meio à
contradição, existe uma justificativa para que a imaginação possa ser alicerçada:

Tanto para a filosofia realista como para o comum dos psicólogos, é a


percepção das imagens que determina os processos da imaginação.
Para eles, vemos as coisas primeiro, imaginamo-las depois;
combinamos, pela imaginação, fragmentos do real percebido,
lembranças do real vivido, mas não poderíamos atingir o domínio de
uma imaginação fundamentalmente criadora. Para combinar
ricamente, é mister ter visto muito. O conselho de bem ver, que forma
o fundo da cultura realista, domina sem dificuldade o nosso paradoxal
28

conselho de bem sonhar, de sonhas permanecendo fiel ao onirismo


das sensações que estão enraizadas no inconsciente humano
(BACHELARD, 2008, p.2).

O olho realista que De Queirós sintetiza, vê apenas o superficial, o raso.


Todo ''olho da verdade'' deve ter um meio-termo com um ''olho da mentira''. E o
próprio narrador sempre acreditou ''Mais no olho da mentira do que o no olho da
verdade'' (QUEIRÓS,2004, p.9). Existe um olho sonhador, aquele que esconde
as profundezas de cada um, que vai além da reprodução de imagens, criando
um mundo particular. Tudo que é criado precisa ter um molde que simboliza o
tato, no caso, o toque. Esse tipo de olho que penetra profundezas:

Na percepção poética do narrador o olho de vidro é um outro modo de


ver a vida com o sentido do toque que acaricia, esse olho é do da
mentira, o olhar da noite que. De acordo com o narrador: “Com o olho
direito meu avô via o sol, o futuro, o meio-dia. Com o olho esquerdo ele
via a lua, o escuro, o passado, a meia-noite” (QUEIRÓS,2004, p.8).

A imaginação é vista como criadora, na medida em que busca tocar algo


que não está tangível ao tato, pois através desse sentido, chega-se do superficial
às profundezas.

4.2 O olhar do olfato

Quando o toque não supre o desejo pela busca, o irreal tenta transpor a
imaginação, dando espaço aos sentidos. Com a insegurança gerada pelo tato,
surgem outros sentidos que concretizam as ambições do olhar de vidro, sendo
o paladar, o olfato, o cheiro e o sabor:

Muitas vezes esse silêncio se misturava com o cheiro de alho que


minha avó refogava para o arroz; possuía o aroma do café coado na
hora; tinha o gosto dos sonhos que minha avó fritava e cobria com
açúcar e canela. E se era por demais imenso o silêncio, exalava entre
ele um perfume das dálias que enfeitavam o canto da sala. O silêncio
é essência. Se o olho do meu avô via, era uma visão em silêncio
(QUEIRÓS, 2004, p.10-11).
29

Não obstante somente às manifestações, os fatos dizem muito sobre a


imaginação criada pelo narrador. O olho que interioriza o toque nas suas mais
intrínsecas profundezas, necessita de uma consciência do que as imagens
representam na realidade. O mundo precisa ser desmistificado pelo seu interior.
Na obra literária, o terreno está associado à casa, porém, não é apenas um local
de movimentações, logo, os sentidos a tornam viva. A figura da avó do menino
traz de volta à memória do inconsciente todas as sensações do interior da casa.

Nota-se que, a presença dos cheiros e todas as sensações descritas pelo


menino, são registros da dualidade proeminente entre avó e avô. Um é o sonho,
um olhar que não transparece realidade através do cheiro. O aroma define e
antecipa o que se vê:

A força insinuante dos odores, o fato de eles se imporem, que se queira


ou não, conferem-lhe a marca de realidades ativas. De fato, o cheiro
costuma se apresentado como prova de realidades individualizadas.
Boerhaave nunca se liberou inteiramente da ideia de que cada ser tem
um princípio individualizador, princípio concreto que uma química sutil
pode pretender isolar (BACHELARD,1996, p.145-146).

A caracterização dos cheiros registrados para identificar a avó, interioriza


o universo de sabores. Porém, existe um silêncio que é essencial para substituir
a ausência de sons. Cada vazio da casa é preenchido com os cheiros, o toque
desses odores preconiza o que a avó do menino estava sentindo, um vazio da
ausência do avô:

Minha avó se aprumou com o dia. Vagou pela casa perseguindo algum
motivo para explicar a ausência do marido. Nem o silêncio, que tudo
sabe, respondeu. Ela debruçou na janela, buscando um milagre no fim
da rua. Passou uma hora e mais duas horas e mais três horas e só o
vazio crescia (QUEIRÓS,2004, p.43)

Lavínia, na percepção do narrador, é um cheiro que permeia a fonte de


inspiração do narrador à imaginação. Esta, por sinal, apresentada na
concretização dos odores que a cercam:
30

Minha avó, que morava em seu olho esquerdo, se chamava Lavínia.


Mulher alva como as nuvens, macia como as nuvens, leve como as
nuvens e com cheiro de alfazema. Seu ofício maior consistia em lavar
os ternos de linho branco do esposo, que só enxergava com o olho de
São Paulo. Suas mãos eram longas e as unhas, brilhantes de tanto
esfregar a roupa. No dedo, uma aliança de ouro com data gravada.
Nas orelhas, um par de brincos, presente da sua mãe. Lavínia lavava
e enxugava com um ar de anil para o branco ficar azulado com o olhar
de seu ainda amado. Passava e engomava como se conhecesse a
China. Soprava as brasas do ferro como se apagasse as estrelas da
noite. Meu Avô se vestia e partia com o olho direito aberto. Sabia onde
o amor o aguardava (QUEIRÓS,2004, p.32)

Embora a avó fosse uma explosão de cheiros, não consegue alcançar o


íntimo do marido. Desta maneira, o avô parte com a sensação de superficialidade
ocasionada pela descrição das suas roupas. E assim, a busca do inconsciente
imaginário do olho necessita aguçar mais um sentido.

4.3 O olhar que degusta

A separação do interno para o externo remete à singela condição do


homem na busca do rompimento com a realidade, na concretização da saída
todos os dias da casa, lançando-se assim ao mar, para explorar o mundo, num
contexto conotativo:

Meu avô imaginava sempre, eu acreditava. Vencia as horas lerdas


deixando o mundo invadi-lo por inteiro. Ele hospedava essa visita sem
espanto. Saboreava o mundo com antiga fome. E inventava bonito,
pois eram da cor do mar os seus olhos. E todo mar é belo por ser
grande demais. Tudo cabe dentro de sua imensidão: viagens, sonhos,
partidas, chegadas, mergulhos e afogamentos (QUEIRÓS,2004, p.6)

A prosa poética de Bartolomeu Campos de Queirós alcança os limites da


degustação universal, diante das incertezas que a vida rotineira proporciona.
Esse saborear nos remete à uma simples figura de linguagem:

Uma substância preciosa deve ser procurada, digamos assim, em


profundidade. Está escondida sob invólucros. Mergulhada em matérias
grosseiras e na ganga. É obtida através de destilações repetidas, de
macerações demoradas, de longas digestões. Assim extraída,
reduzida e depurada, é uma quintessência, é um sumo. Manter um
volume reduzido os princípios da alimentação ou da cura é um ideal
31

frequente que seduz sem dificuldade o pensamento substancialista. O


mito da concentração substancial é aceito sem discussão
(BACHELARD,1996, p.150).

A degustação do mundo pelo avô desperta-lhe uma ânsia, um desejo. O


olho então torna-se um aparelho digestivo, para compreender os anseios da
mente humana, projetando assim uma metáfora em relação ao mar, devido à
sua profundidade, ancorando um olho sem tamanho e sem limites.

Tal relação entre olho degustador e mar não é uma coincidência. Uma vez
que o avô tenta digerir o mundo, através do sal do mar, que nada mais é que
algo dentro de cada ser:

Sob esse aspecto, o sal está ligado a uma concentração típica. Pela
evaporação do supérfluo, logo aparece, numa solução de sal, matéria
essencial, preciosa. O mito é naturalmente levado ao extremo pela
intuição da interiorização. Como afirma Nicolas de Locques, “o sal é
sempre o íntimo do íntimo”. Ou seja, o sal é a essência da essência, a
substância da substância. Daí, uma razão de valor substancial, não
discutida (BACHELARD, 1996, p.151).

A fome que assola a todos os indivíduos, expressa pela representação do


sal do mar, promove uma investigação sobre o mundo da imaginação. Esta
procura digerir o sal para tocar no que há de mais profundo em cada um. O olho
imagina e espiritualiza: viagens, sonhos, chegadas, mergulhos e afogamentos.
O mundo solitário da avó é deixado de lado para dar lugar à imensidão da viagem
em prol de substituir o cotidiano.

Esse sal é representado como um alívio das realidades vivenciadas em


vida pelo avô do menino, logo, não poderiam mais embarcar na viagem do
patriarca:

Sempre gostei do sabor das lágrimas. Minhas dores duravam só o


tempo de a lágrima chegar a minha boca. Quando eu passava a língua
e sentia o sal, esquecia a dor. A lágrima sempre salgou meu sofrimento
com seu mistério (QUEIRÓS,2004, p.16).
32

O sal descrito pelo narrador da obra indica as lágrimas, os choros e


soluços ao longo da vida, e esse mesmo sal representa a cura, ou pelo menos a
cicatrização das feridas e da saudade dos que já partiram.

Fernando Pessoa (1996), classifica o sal como o derramamento dos


sofrimentos. Desta maneira, na linha de raciocínio do inconsciente humano,
diante das agruras da vida, o sal irá retornar ao mar. Há uma fundamentação no
que o escritor quis dizer, ultrapassando um pouco o limite da compreensão do
real: a fuga, o escape. O fechamento das sensações sobre o que se almeja,
remete à uma busca incessante por algo que possa transmitir calmaria e
sossego. Neste aspecto, a imaginação é vista como o mar que abre e dá sentido
a tudo que se almeja viver, um olhar sem fim, que cria, não limita, e ultrapassa
fronteiras:

Lembro-me um dia no quintal, com meu avô, embaixo de um pé de


jabuticaba. Eram milhares de olhos pretos me espiando, me
convidando a saboreá-los. Queira que os olhos do meu avô fossem
pretos para me espiar, como faziam as jabuticabas. Não gostaria de
chupá-los. Mas eles eram azuis e muito longe do mar. Mesmo assim
eu navegava (QUEIRÓS,2004, p.17).

O avô com seu olhar de vidro não almeja mais devorar o mar, tendo em
vista que seu olhar já digeriu todos os sofrimentos através das lágrimas
vivenciadas por ele e por seus entes queridos. Existe uma essência por trás
desse olho, emitindo ensinamentos para a vida do menino. Não há como
identificar como tal transmissão acontece, pois na obra o narrador pontua que
''O silêncio é a essência'' (QUEIRÓS, 2004, p.11).

4.4 A subjetividade do olhar na visão

No ambiente vivenciado pelo menino há uma sonorização, sendo


expressa através de todos os sentidos. Logo, o olho transmite todas as
sensações. Ele cheira, toca, ouve, degusta e vê em meio a tudo. Na sua essência
permeia o silêncio, este porventura seria a ausência do som, mas no espaço das
palavras do narrador nota-se que ''O silêncio decifra todos os labirintos'' (p.10);
33

''Estávamos envolvidos de emudecimento'' (p.11); ''E minhas palavras, ainda


presas em minha garganta, eu as guardava por linhas tortas'' (p.14); ''A casa do
meu avô era silenciosa. Todas as palavras tinham sido ditas. Nada mais mudava
do lugar''(p.34); ''Nem o silêncio, que tudo sabe, respondeu'' (p.43); ''Sobraram
os ternos de linho engomados todo o silêncio do mundo'' (p.46). Existe, portanto,
um respirar dos personagens no silêncio.

Mesmo o silêncio sendo algo imaterial, pode ser agente de transformação


de vida, embora quase não existam vozes na obra: ''Um boato se espalhou pelas
ruas, em sussurro'' (p.45); ''De vez em quando algum suspiro antigo cortava o
silêncio (...)'' (p.41). Quem ousa, porém, interromper o silêncio, traz o terror do
sacrílego do que rompe com o segredo; ''Mas durante a noite, sem sono, terror
me cobria. O barulho das águas se fazia estrondo de tempestade. Eu fechava
os olhos e escutava o pio dos pássaros pedindo amparo. O canto das corujas
virava um lamento''(p.41-42). O silêncio era visto como uma garantia de paz.

Embora o silêncio estivesse reinando sobre a casa, alguém o rompe: ''Ela


era a primeira filha, a primeira fase da lua, primeira cor do arco-íris, primeira nota
musical'' (p.20). Logo, a única que pode desmistificar esse silêncio é a mãe. Ela
constitui a ruptura de algo que foi instituído pelo avô. Agora a mãe surge como
a nota musical perfeita, dando lugar à esperança com um espírito de cura:

Lembro-me de que quando sua dor era maior que a cruz, ela se
assentava na cama, entre lençóis e brancura e se punha a cantar. A
melodia invadia a casa, os cômodos, os quintais, os vizinhos. Sua voz
afinada desafinava a nossa esperança. A música foi sua maneira de
prolongar a partida. Não havia remédio maior que a canção para
ultrapassar seu desespero (QUEIRÓS,2004, p.20-21).

O silêncio é quebrado pelas melodias da mãe. Ela é a percepção de todo


som que transcende o inconsciente e consciente da casa. Nesse pequeno
fragmento da obra, nota-se a fábula que envolve o mundo da infância, onde a
mãe, como protetora direta do menino, evidencia a vida de encantos através de
suas características musicais:
34

Nós éramos seis filhos felizes entre as alegrias da pequena cidade:


cachoeiras, ruas, quintais, matos, árvores, escola e livros. Envolvidos
pela saudade, passamos também a estar no mundo brincando com a
tristeza, improvisando carinhos, sonhando apenas com o que já
tínhamos. E quando as surpresas apareciam, mesmo pequenas, a vida
virava uma festa (QUEIRÓS, 2004, p.21).

Nesse universo de fábula infantil que virava uma festa, o silêncio seria
incapaz de desconstruir tal liberdade das cenas: ''Cachoeiras, ruas, quintais,
matos, árvores, escolas e livros.'' Desafiando todo o cerne do silêncio, surge a
mãe que cria e projeta sonhos através da sua cantiga.

Os olhos que abrangem a sensibilidade dos sentidos, transmitem desde


a forma, como o objeto que transcende a matéria, transfigurando o universo
imaginário, diante dos anseios infantis. Um olhar pode mudar tudo à sua volta,
mas o que pode transformar são as profundezas que ele nem sabe que projeta,
tendo como aporte a forma de como a vida cotidiana pode ser vista.

4.5 A personalidade do olhar

Cada sentido pode criar um universo dentro do contraditório, e cada um


especula emoções, angústias, sofrimentos, anseios. Contudo, a visão carrega
algo de concreto que se materializa em meio à afetividade que a imagem real
consegue enxergar. ''A vista a fumaça e os sonhos! Ao nariz e à boca, os odores
e as carnes!'' (BACHELARD,1996). Na visão do olho que se denota um contexto
imaginário infantil, que vai além de algo real. O olhar não pode percorrer espaços
sem que ocorra a sensibilidade ao mundo no qual se vive. ''E devia ser sem
tamanho o seu olhar de vidro. Ele parecia conhecer até o depois dos oceanos''
(QUEIRÓS,2004, p.6).

O olho transfigura a imaginação por ter como potencial maior o


movimento, mesmo que outros órgãos do corpo humano detenham essa função
de movimentação, não podem levar o avô além dos limites das profundezas dos
mares. O olho, através da carência de movimento imaginário, engloba-se como
agente de movimento, então o olhar se vê capaz de alcançar os limites que os
demais são incapazes.
35

Há uma relação marcante entre o olhar e o andar em o olho de vidro do


meu avô: ''O pensamento atravessa as cascas e alcança o miolo das coisas.''
(p.5); ''Com um olho você vê o raso e com o outro mergulha fundo'' (p.12); ''Mas
meu avô só devia ver o mundo inteiro quando sonhava'' (p.26); ''Eu apreciava
ver meu pai olhando para frente e correndo os olhos sobre o que estava atrás''
(p.28). O olho que vê torna-se a projeção da imaginação. O olho da verdade tem
o que enxerga. Porém, deseja algo que está além da visão. Dois mundos, um
visto pelo lado esquerdo e outro visto pelo direito. O imaginário transmite os mais
profundos desejos. Dentro do alicerce de sonhos o avô, sintetiza uma busca:

Dizem que ele viajou para São Paulo. Naquele tempo. São Paulo ficava
quase em outro país. Foi comprar esse olho que não vi. Ele jamais
acreditou que, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Venceu
longos dias de estrada, poeira, lama, fantasiado de pirata, como se
fosse carnaval. Tudo para conquistar um olho. Meu avô era vaidoso,
mesmo sem desejar ter reinado (QUEIRÓS,2004, p.7).

Esse fragmento da obra registra o olho da imaginação, os desejos dentro


da sensibilidade transmitida através da visão. Mesmo sem ter domínio sobre ele,
o avô deseja possuir o olho de vidro, para que consiga sonhar. Uma busca por
novos horizontes. E enfim, torna-se objeto de conquistas, desejos internos que
antes não podiam ser alcançados:

De repente uma imagem se instala no centro do nosso ser imaginante.


Ela nos retém, nos fixa. Infunde-nos o ser. O cogito é conquistado por
um objeto do mundo, um objeto que, por si só, representa o mundo. O
detalhe imaginado é um ponta aguda que penetra o sonhador,
suscitando nele uma meditação concreta. Seu ser é a um tempo o ser
da imagem o ser da adesão à imagem que provoca admiração. A
imagem nos fornece uma ilustração da nossa admiração. Os registros
sensíveis se correspondem. Completam-se um ao outro. Conhecemos,
num desvaneio que sonha sobre um simples objeto, uma polivalência
do nosso ser sonhador (BACHELARD,2006, p.147-148).

O sonhador concretiza o que sonha através da visão. Logo, o olho de vidro


busca um mundo imaginário, não real, porém desejado. Cabe ressaltar que o
avô do menino transmite através das viagens uma conquista, que para o menino
dá lugar a um objeto imóvel sobre uma mesa, logo após a morte do avô. Como
36

se olho construísse um comando de movimento ao estar repousando sobre o


pires, um movimento imaginário do menino.

O olhar remete às andanças massificadas pela investigação do universo.


Neste contexto dualista, pode-se observar que o olho constrói um mundo dentro
de si mesmo, alicerçando sua profundidade através dos outros sentidos, que o
prendem à casa. O desejo de posse cria um universo de imaginação que rompe
o silêncio através da essencial liberdade das descobertas, buscando uma nova
forma de ver o seu universo.

Em todas as formas sensitivas, o olho conquistou e alicerçou descobertas,


uma vez que existe um desejo investigativo sobre as profundezas do interior,
faz-se necessário instiga-lo através do toque. Pelos postulados da relatividade,
Bertrand Russell disse:

Ao explorar a superfície da Terra, usamos todos o sentido, mais


particularmente o tato e a visão. Em idades pré-científicas, usavam-se
partes do corpo humano para medir comprimentos; “polegada”, “pé”,
“cúbito” e “palmo” era definidos dessa maneira. Para distâncias
maiores, pensávamos no tempo necessário para andar de um lugar a
outro. Pouco a pouco aprendemos a avaliar distâncias
aproximadamente pelo olho, mas quando queremos ser precisos,
dependemos do tato (RUSSELL, 2005, p.21-22).

Quando determinada precisão é indicada, o tato é o sentido mais aguçado


para delimitá-la. Esse sentido mensura o que é o conhecimento acerca do
universo. Tudo que se vê, se quer tocar também. Quando o homem se vê diante
do espelho, existe uma necessidade ao toque. O espelho é um objeto insuficiente
para traçar o inconsciente do que é projetado por ele, trazendo um ar de
curiosidade que só a imaginação alcança:

Eu gosto da palavra crença. Ter crença é ser mais brando, é o poder


mudar, trocar de lado, ser um dia sim e outro não. É não ser certo nem
dar certeza. E a crença do outro pode encantar você, lhe deixando
apaixonado. Na paixão mudamos de lugar. Na paixão você é feliz por
cumprir a crença do outro. A crença escuta. Quem possui a verdade
apenas fala. Meu avô devia viver em dúvida. Não sabia, ao certo, o que
seu olhar alcançava (QUEIRÓS,2004, p.10).
37

Há uma singularidade no olhar que toca, através da forma como todas as


superfícies são exploradas. A matéria segue um curso dos segredos que apenas
o inconsciente esconde:

Se nossos olhos fossem feitos de tal modo que nenhuma parte de


nosso corpo se expusesse ao nosso olhar, ou se um dispositivo
maligno, deixando-nos livres para passar a mão sobre as coisas, nos
impedisse de tocar nosso próprio corpo- ou simplesmente se, como
certos animais, tivéssemos olhos laterais, sem recobrimento dos
campos visuais-, esse corpo que não se refletiria, não se sentiria, esse
corpo que adamantino, que não seria inteiramente carne, tampouco
seria o corpo de um homem, e não haveria humanidade ( MERLEAU-
PONTY,2013,p.20).

O ser homem para ser identificado como tal, necessita de um


autoconhecimento. Investigar-se a si mesmo requer um olhar que depreende
uma insuficiência de explicação para o que o desejo busca e o que ele alcança.

4.6 A justificação tangível em O olho de vidro do meu avô

A causa formal do olho como matéria busca compreender caminhos


profundos, numa decomposição do olho sendo um objeto de simplicidade, serão
quatro elementos para esse estado decomposto da matéria que o olho
representa: terra, fogo, água e ar.

O conceito que viabiliza o olho como sendo sensível, tangível e material


é o elemento, na visão de Aristóteles (2014): ''Elemento é o componente primeiro
imanente, do qual uma coisa é constituída e que é indivisível em outra espécie''.
Diante dessa visão, o filósofo já tinha pretensões em estruturar a matéria aos
quatro elementos.

A visão dualista de Queirós (2004), que envolve a narrativa em o olho de


vidro, remete a um contexto agora entre o quente o frio, e assim constrói as
imagens da narrativa. Nos trechos da obra encontram-se várias referências: ''De
um lado ele sentia frio, do outro calor'' (p.36); ''Pedia água quente e fria, e bebia
sem levar o copo a boca'' (p.36); ''Como o olho frio a gente vê assombração e
com o olho quente só o que nos assombra''(p.37); ''Ter sido levado para um
38

mundo sem memória com um lado quente e outro frio'' (p.44). Essa tensão nos
conduz à uma imaginação da matéria partindo dessa dicotomia: O olho de vidro
do meu avô, em um choque de realidade na projeção de imagens quentes e frias.

As vontades são limitadas ao mundo e o universo, segundo Bachelard:

Há uma grande diferença entre a imagem literária, que descreve uma


beleza já realizada, uma beleza que encontrou sua plena forma, e uma
imagem literária que trabalha o mistério da matéria e quer mais sugerir
do que descrever. Por isso a nossa posição particular, apesar de suas
limitações, oferece muitas vantagens. Deixamos a outros o cuidado de
estudar a beleza das formas; queremos consagrar nossos esforços a
determinar a beleza íntima das matérias; sua massa de atrativos
ocultos, todo esse espaço afetivo concentrado no interior das coisas
(BACHELARD,2008, p.6-7).

O interior das coisas, o mais profundo da matéria, recria uma dureza em


construir um universo de mistérios e das emoções mais profundas,
ultrapassando as memórias para projetar a própria matéria que é o olho.

A busca em transpor a matéria sobre o imaginário é um contraditório.


Porém, o que está descrito na obra de Bartolomeu Campos de Queirós é uma
imagem da imaginação que penetra no universo rígido do avô. ''O pensamento
atravessa as cascas e alcança o miolo das coisas''. A narrativa é construída em
um choque de realidade do mundo, que pode ser transformado através da
imaginação do inconsciente.

O olho codificador da imaginação detém a classificar o mundo da


inflexibilidade e maleabilidade. Tal dureza surge para explicar o campo literário
na narrativa. Dentro dos aspectos linguísticos, observa-se essa dureza sendo
objeto das funções da linguagem, na precisão em transmitir as significações
objetivas e ao mesmo tempo metafórica:

Ele nos doava um sorriso leve com meio canto da boca, como se
zombando de nós. O pensamento vê o mundo melhor que os olhos, eu
tentava justificar. O pensamento atravessa as cascas e alcança o miolo
das coisas. Os olhos só acariciam as superfícies. Quem toca o bem
dentro de nós é a imaginação (QUEIRÓS,2004, p.5).
39

Esse fragmento resume a essência tangível da imaginação do imaginário,


o olho como sendo um elemento de orgulho. Aqui, o olho real é subestimado,
tido como superficial. A rigidez do olho é vista com uma intimidade da realidade.
Em uma visão dualista da existência, tal ausência de tranquilidade é a dureza do
olhar com capacidade de perfurar a realidade.

Dentro do contexto literário da imaginação proposta pelo autor, nota-se


fatos reais, acontecimentos no contexto de vida do avô, transpondo as barreiras
do imaginário. Tal espaço geográfico da história do olho é retratada em ''Nunca
soube se meu avô conhecia o mar. Sua Cidade ficava bem no meio das minas.
Sei que morava entre um mar de montanhas, um mar de filhos, um mar de paixão
e um mar de dúvidas'' (p.6). Tal isolamento cria um universo de metáforas do
universo, intercalado entre a realidade e a imaginação:

Dizem que ele viajou para São Paulo. Naquele tempo, São Paulo ficava
quase em outro país. Foi comprar esse olho que não via. Ele jamais
acreditou que, em terra de cego, quem tem um olho é rei. Venceu
longos dias de estrada, poeira, lama, fantasiado de pirata, como se
fosse carnaval. Tudo para conquistar um olho. Meu avô era vaidoso,
mesmo sem desejar ter reinado (QUEIRÓS,2004, p.7)

Nesse excerto é expresso um delírio da vontade do avô em possuir o olho


de vidro, e a viagem para a cidade de São Paulo é vista com um ar de realidade
e imaginação, pois é retratada como algo impossível, um delírio do avô: ''Naquele
tempo, São Paulo ficava quase em outro país''. Nesse contexto, a imaginação
vai além das impossibilidades de chegada, retratando um olhar que vai além dos
limites, quando ele aponta a fantasia de pirata, relata um conquistador irreal
dentro do imaginário (QUEIRÓS, 2004).

A viagem para São Paulo foi uma experiência dura no contexto de vida
cotidiana do avô. Aqui ele extrai seu orgulho, desprezando coisas superficiais,
onde as suas vontades ultrapassam limites impossíveis.

Nem sempre tudo está ao alcance das mãos, alguns sonhos e conquistas
ficam na imaginação. O universo do olho de vidro traz consigo a semelhança do
olho como órgão, o músculo. Mas na sua introdução, remete que a transparência
do elemento vidro penetra os caminhos da imaginação.
40

A sensibilidade aparente do olho, revela a concretização do real, mediante


a suficiência da dureza que transparece um universo frio e quente.

Das características dos elementos consubstanciados pela visão do olho


de vidro, a capacidade do fogo de purificar o espírito, uma imagem que
transparece a pureza, possibilitando assim uma existência da imagem a pureza:

Uma segunda razão do princípio de purificação pelo fogo, razão bem


mais culta e, por conseguinte, bem menos eficaz psicologicamente, é
que o fogo separa as matérias e aniquila as impurezas materiais. Dito
de outro modo, o que passou pela prova do fogo ganhou em
homogeneidade, portanto em pureza. A fundição e a forja dos minerais
produziam um conjunto de metáforas, todas elas inclinadas para a
mesma valorização (BACHELARD, 1994, p.151-152).

O olho de vidro busca a matéria bruta com o intuito de penetrar a


realidade. São os processos vivenciados pelo avô que trabalham o universo do
inconsciente imaginário.

Tal evidência dentro do contexto purificador que o fogo apresenta,


relaciona-se com as ideias induzidas à sofisticação do natural para ser forjado.
As experiências ocasionadas pela mente humana, traduzem uma revelação da
intimidade do universo da obra O olho de vidro do meu avô, quando o narrador
relata que procurava um ''desejo escuro'', na verdade, é uma forma de tentar
desvendar mistérios das mais íntimas profundezas da figura do avô.

Ele partia no meio da tarde. Andava pelo lado direito da rua, segurando
a bengala na mão esquerda. Procurava as sombras dos muros com se
sentisse calor. Tinha os sapatos engrazados, brilhantes e pretos como
jabuticabas. Andava leve como os gatos em cima dos muros. Se
chovia, trocava a bengala pelo guarda-chuva preto. Continuava
procurando as sombras. Não olhava para os lados. Sem ver, ele
também achava que não era visto. Sabia o caminho de cor. Minha avó
reparava em sua partida e tinha certeza de sua volta. Eu ficava dividido,
morando em dois corações (QUEIRÓS,2004, p.32-33).

O mistério que envolve dois mundos diferentes, uma fagulha da intimidade


do casal, gerando dúvidas do menino, nutre a existência de algo evasivo nas
falas do narrador. Quando o menino afirma que não pedia para ir nos passeios
41

com o avô, deixa subentendido que existiam segredos ocultos nesses passeios.
Tal segredo também gera um contexto duvidoso no aspecto da avó esperar a
sua volta. Na verdade, não se sabe se o menino estava apenas criando um
imaginário dentro da explosão amorosa que representada os olhares do amor.

Segundo Queirós (2004), a curiosidade está expressa no texto pela forma


como tal segredo poderia induzir a volta do marido para o lar. Pode-se imaginar
uma lareira na casa, de acordo com a fala do narrador: ''Passava a atiçar o fogo''
(p.33). O fogo pode ser a representação de uma paixão escondida, quando o
narrador pontua ''Entrou, não atiçou o fogo''. Este, por ventura, representa o
incontrolável despertar de paixões vespertinas, não se sabe se a do olho direito
ou a do olho esquerdo.

Torna-se relevante destacar que não há como identificar de que lado o


coração permanece. Pode-se entender que existe a possibilidade de delírio
identificado pelo olhar acentuado do olho de vidro e fixo na imagem da
sexualidade. Existem várias imagens projetadas na busca de metaforizar o olhar
do avô, no sentido literal, há uma possibilidade de delírio, onde o lar é o espaço
geográfico para tal. Nessa contradição, o narrador expressa a ambiguidade das
suas imagens reais ou imaginadas, quando ele eterniza o olho de vidro.

Porém, a síntese que o olho artificial produz cria uma imagem literária
onde a naturalidade é perturbada. No ambiente doméstico, o olho é um elemento
de paz, ora representado pelas inquietações dos desejos e anseios e das suas
reais necessidades. A água é o posto do fogo, logo, a consonância das
transformações das imagens, como fases da vida do avô, até chegar ao estágio
da morte do avô:

Em primeiro lugar obviamente, a mitologia do mar é uma mitologia


local. Não interessa senão aos habitantes de um litoral. Além disso, os
historiadores, rapidamente seduzidos pela lógica, decidem com
demasiada facilidade que os habitantes da costa são fatalmente
marujos. Gratuitamente, abriu-se a todos esses seres, aos homens, às
mulheres, às mulheres, às crianças, uma experiência real e completa
do mar. Não se compreende que a viagem distante, que a aventura
marinha são antes aventuras marinhas contadas. Para a criança que
escuta o viajante, a primeira experiência do mar e da ordem da
narração. Mas os contos não participam realmente do poder fabulante
dos sonhos naturais; os contos do mar menos que qualquer outro, pois
42

as narrativas do viajante não são psicologicamente verificadas por


aquele que escuta (BACHELARD,2013, p.159).

O que define a artificialidade proposta pelo autor em O olho de vidro do


meu avô, identifica uma imagem do infinito do âmago do ser, onde os jogos
dessa artificialidade propõem as características, como se a dureza que emite o
elemento terra, pudesse traduzir a função máxima do mundo extremo,
procurando sombras no interior humano, que seriam as verdades escondidas
através do olhar:

Tenho medo da palavra verdade. É tão crua. Parece feita de faca. A


palavra verdade não permite o erro, daí não conhecer o perdão. A
verdade, se existe, deve ser exagerada demais. É maior que o mar. O
mar tem margens e a verdade não. A verdade não possui fronteiras. A
verdade não permite perguntas. A verdade não possui fronteiras. A
verdade não permite perguntas. A verdade é uma resposta quase falsa.
A verdade invade. Eu sempre acreditei mais no olho da mentira do que
no olho da verdade. Com o olho da mentira, meu avô só me via com
encantos (QUEIRÓS, 2004, p.9).

Nesse trecho, o narrador fala do seu íntimo, do que guarda reservado.


São as verdades que ninguém sabe, algo no infinito do olhar reserva um
momento de delírio da imaginação do inconsciente relatada pela verdade
expressa como a dureza representada pelo olhar fixo. A verdade é tida como
algo sem limites, sem fins, que não permite o erro. Ou seja, não perdoa, e o
contraditório dito por ele, a verdade tem suas fundamentações na mentira. Nem
sempre a transparência significa uma verdade absoluta, nesse contexto, o ser
humano pode passar uma imagem sem nitidez como no olho de vidro:

Eu também gostaria de possuir um olho assim, que ficasse longe de


mim, sobre o criado. Ter meu olho me espiando de longe. Quem sabe,
eu me conheceria melhor? Conheceria minha superfície sem precisar
de espelho. Um olho capaz de vigiar meu sono, me protegendo dos
fantasmas que nos visitam se descuidamos de nós. E dormir é
descuidar-se de si mesmo. Dormir é ficar desarmado, é não ser mais
proprietário do próprio corpo. Ah! Como o olho do meu avô me enchia
de dúvidas! (QUEIRÓS, 2004, p.13).
43

Nas incertezas lançadas pela infinita fixação do olho de vidro, este


apresentado como observado, ao mesmo tempo que vigilante, protetor, que vela
o sono, anulando a necessidade de um espelho, fazendo-se referência ao reflexo
deixado quando à transparência da água, tal olhar observador deixa uma
imprecisão em saber se realmente se reflete o que se é e como se vive. Há
dúvidas e seguindo a linha de pensamento deixada pelo narrador, a verdade é
uma faca de dois gumes, em tudo existe uma mão dupla, então o superficial não
é visto pelo o olho, o enxergar-se não depende de um campo de se vê, precisa-
se de uma profundeza em saber se reconhecer.

Quando existem incertezas no contexto da vida cotidiana, o campo da


visão no olho de vidro permeia o tipo de proteção que o mundo externo
representa, o perigo é representado pela distância do lar, a casa representa
segurança, lugar de aconchego; ''Nós éramos seis filhos felizes entre as alegrias
da pequena cidade'' (QUEIRÓS,2004, p.21); Existe um certo mistério não
revelado ''Jamais pedi ao meu avô que me levasse com ele em seus passeios
pela tarde'' (QUEIRÓS,2004, p.31), segredos escondidos sob o olhar fixo do avô,
onde a imaginação do menino não conseguia alcançar, mas podia traduzir e
fantasiar, saindo do contexto e da esfera do olhar que protege dos perigos, o
narrador passa a falar sobre o olhar investigativo.

O olhar é um campo um tanto quanto observador e avassalador. A busca


pela satisfação dos desejos mais íntimos está diretamente relacionada ao olho,
e existe a necessidade da viagem, enquanto que o lar é tido como lugar de
segurança, as viagens são lugares fascinantes. Porém, os perigos são
apresentados através do medo. Todas as distâncias exigem cautela. ''A profissão
mais bonita, naquele tempo, era ser chofer em estradas. Não ter medo de
distância e trocar de destino, sempre. Ter encruzilhadas é poder escolher''
(QUEIRÓS,2004, p. 27-28). Os medos e as incertezas de estradas e distâncias,
tendem a ter um certo ar de receio em ultrapassar os limites impostos. As
escolhas que são feitas ao longo da trajetória de vida são identificadas como
estradas, rotas, caminhos, tais distâncias e percursos geram medo e incertezas,
nem tudo que parece ser atrativo, de fato é.

Para o narrador existem dois caminhos que podem ser alicerçados pela
verdade e a dúvida, então a figura da imagem imaginada, refletida através da
44

água, gera um paradoxo na vida do avô, levantando questionamentos de


mudanças. Cada um carrega dentro de si, um lado bom e ruim, nem sempre
pode-se transparecer de fato a realidade, cria-se uma fase de transformar algo
que pode romper com as estruturas mais internas.

Quando Bartolomeu intensifica seu conjunto de imagens, define que


existe a necessidade de dar continuidade ao universo:

Meu pai dirigia um caminhão muito grande e bonito. Viajava para longe,
levando manteiga para as cidades que só produziam pão. Bom Destino
tinha pão e manteiga. Passava dias distantes e voltava trazendo uma
carroceira de notícias. Eu ficava impressionado como era grande o
mundo do meu pai. Ele colocava um travesseiro sobre os seus joelhos,
me assentava em cima e me entregava o volante para eu dirigir.
Naquele tempo eu não sabia nem frear meus pensamentos. Tinha só
duas pernas; imagina dirigir um caminhão com dez rodas
(QUEIRÓS,2004, p.28).

Há uma certa estabilidade quando ele retrata a cidade, porém, o fascínio


pelas descobertas, novas distâncias, permite a contradição entre a segurança
gerada pela mãe e o fascínio suscitado pelo pai. O campo da imaginação pode
viajar por muitos lugares, e ser acorrentado pelo medo das incertezas e dúvidas
que o próprio pensamento limita:

A verdadeira viagem da imaginação é a viagem ao país do imaginário,


no próprio domínio do imaginário. Não entendemos por tal uma dessa
utopias que nos dão de uma só vez um paraíso ou um inferno, uma
Atlântida ou uma Tebaida.É o trajeto que nos interessaria, e o que nos
descrevem é a estada (BACHELARD,2008, p.5).

A imaginação viaja, porém, limita. Depende de onde o inconsistente pode


chegar, levando a destinos sombrios. Então, a viagem é um lugar fascinante,
mas ao mesmo tempo perigoso. A estrada, que é a vida, tem suas mazelas, seu
porto seguro, seu destino, nem sempre requer momentos de felicidade, não
existe um destino futuro em o olho de vidro do meu avô, pois o destino já está
explícito na obra literária, quando o mesmo deixa claro o nome da cidade.

Embora suas andanças levassem para outros destinos, o retorno para


casa sempre era o melhor.
45

Aqui Bartolomeu harmoniza as imagens através do olho de vidro, do


repouso, do destino. A viagem é representada pelos desejos mais profundos.

5. CONCLUSÃO

Desde o início do presente trabalho, buscou-se transmitir as imagens


imaginadas diante da prosa poética de Bartolomeu Campos de Queirós, para
que se chegasse a um rol de projeções do imaginário do avô do menino. Foram
realizadas observações e leituras a respeito das teorias do Gaston Bachelard,
na busca das profundezas que embasam as contradições na obra literária.

A pesquisa envolveu uma comunicação dos teóricos com o narrador, para


comprovar a veracidade na questão do imaginário e do inconsciente criados
durante a narrativa, dentro da análise do pensamento e das percepções,
sensações dos sentidos e dos elementos que compõem sempre o oposto,
percebeu-se que mesmo diante aos recursos linguísticos, expressos através das
figuras de linguagem, o olho de vidro expressa a sutileza de um olhar imaginário
inconsciente, porém consistente nas indagações do menino.

Os métodos foram identificados como investigações de outras obras e


principalmente, da obra de Bartolomeu Campos de Queirós, para que
futuramente, novas pesquisas sejam alicerçadas no mesmo parâmetro científico.
Ou seja, compreender e descrever como as contradições da vida humana podem
transpor os limites da imaginação, chegando ao ponto da forma e da matéria que
a obra literária proporciona ao leitor.

Os processos que se alicerçaram na busca para a resolução de tal


problemática passaram pela identificação do olho de vidro como mero objeto de
observação. Entretanto, com profundidade quando viaja nas asas da
imaginação. O olho sintetiza um rol de sensações boas e ruins, que expressam
uma intimidade de desejos, anseios e limitações, tais construções das imagens
projetadas pelo o olho de vidro.

O desafio real encontra uma essencialidade, quando não se restringe aos


detalhes técnicos, buscando a unidade profunda, traz consigo a unidade da
46

técnica que envolve a dureza e os movimentos. As duas etapas seguem uma


linha de raciocínio de unidade central na obra de Bartolomeu Campos de
Queirós. Cada etapa do processo acelera a sequenciação do imaginário do
inconsciente.

Quando se analisou a obra do autor, várias figuras de linguagem se


relacionam com os cinco sentidos, e todas as percepções e sensações estão
alicerçadas na materialidade do mundo sensitivo do avô. Existe uma cronologia
dos fatos recuperados pelas memórias. Porém, na concepção literária, o olho de
vidro tenta construir a busca das sensações, dos sonhos, das expectativas de
vida, lançando fora medos e mergulhando no campo da busca pelo bem dentro
de nós, algo que corrobora com o nosso espírito excelente.

Há uma busca do seu interior imaginário, ancorado à sua estética. As


construções metafóricas são o aporte para a prosa poética, onde a âncora da
imaginação é refletida pelos sentidos, nesse processo de reconstrução da
realidade, descobre-se os impulsos sólidos da dureza da vida cotidiana.

Nas transformações em que as percepções da busca do formal e do


material são a base das experiências vivenciadas pelo menino, os sentidos são
reconstruídos pelo olho de vidro, conforme a imaginação recria memórias, a
investigação faz com que o passado não vire apenas um registro frio, mas uma
forma de se ver o universo no qual o avô vivia de maneira natural e sensível,
embora o mundo imaginário guie o ser humano por caminhos às vezes
tenebrosos, imaginar algo é viver um mundo que, embora tenha dois olhos, nem
sempre poderá ser alcançado.
47

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