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domingo, 10 de setembro de 2023 Translate

Mestre Eckhart, o vazio e a liberdade de Selecione o idioma Powered by Tradutor

Deus Descrição
Blog educativo sobre filosofia (ocidental e
oriental), religião comparada, simbolismo
tradicional, esoterismo e literatura. Há 17 anos
na internet.

Todos os textos são o resultado de estudos


pessoais do autor, e não representam adesão
a quaisquer movimentos ideológicos, políticos
ou religiosos.

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"Com efeito, Deus não busca Seu próprio bem. Em todas as Suas operações, Ele é vazio e
livre, e opera por verdadeiro amor."

MEISTER ECKHART, Sermão 1

No seu Sermão 1, o místico medieval renano Meister Eckhart, interpreta simbolicamente a Seguir
passagem evangélica (Mateus 21, 12) na qual Cristo expulsa os vendilhões do Templo. A
interpretação óbvia, à primeira vista, é a de que o Senhor simplesmente desaprova o comércio
dentro das dependências do espaço consagrado ao culto espiritual de Deus. Eckhart, sem
Páginas
negar o sentido literal do texto, transporta a dinâmica dos acontecimentos para a interioridade
da alma humana. Página inicial
Bibliografia básica sobre Hinduísmo e filosofia
A razão pela qual aqueles que vendiam e compravam dentro do Templo é que este simboliza
indiana
a alma humana cujo centro deve ser ocupado por Cristo, o próprio Deus. A alma do homem é
Sobre livros e armas
o que o diferencia de todos os outros entes da realidade criada por sua semelhança com o
próprio Princípio de todas as coisas, como explicitado pelo texto bíblico do Gênesis (1,26): Sobre “negacionismo” e ciência
"Façamos o homem à nossa imagem e semelhança". Essa similaridade entre a alma e Deus é Sobre o conceito de "epistemicídio"
o que fundamentará metafisicamente a possibilidade do total esvaziamento do cristão no
Vazio divino.
Arquivo do blog
Sendo a alma o Templo, os vendilhões só podem ser simbolicamente conteúdos ou atos da
própria alma. No caso, só podem ser obstáculos à entrada de Cristo. Os comerciantes não ▼ 2024 (7)
são exatamente más pessoas, diz Eckhart, mas representam aqueles cristãos que na vida se ▼ março (1)
abstém de todos os pecados grosseiros, e que realizam boas obras como jejuns, vigílias e Dionísio Areopagita e a teologia negativa
orações. O seu erro, o que constitui o seu comércio, sua venda e compra, é o fato de que em "Os N...

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todas essas boas ações serem ditadas pelo desejo de receber de Deus algum outro dom que ► fevereiro (3)
não Ele mesmo.
► janeiro (3)
Eckhart ultrapassa uma interpretação moralista óbvia a fim de enunciar verdades metafísicas
► 2023 (32)
fundamentais. Sim, de fato, o cristão peca quando só faz o bem motivado pelo interesse por
bens que não o próprio Senhor. Deus se torna um meio e não um fim em si mesmo. A ► 2022 (15)
questão, porém, tem dimensões mais profundas. O homem que faz esse comércio com Deus ► 2021 (29)
se esquece que qualquer bem que ele deseje é infinitamente menor que o próprio provedor
► 2020 (21)
desse bem. Não basta fazer o bem, embora seja um passo necessário. É preciso fazer o bem
com a correta disposição de espírito, por assim dizer. ► 2019 (21)

► 2018 (15)
Novamente, não se trata aqui de mero discurso moral. Eckhart está ensinando como o homem
pode ser verdadeiramente bom, no seu grau mais alto de perfeição que sua semelhança ► 2017 (16)
ontológica com Deus lhe concede. Em certo sentido, o que o místico renano quer expressar é
► 2016 (26)
que só se age bem quando se manifesta através de nós o Bem, e não as nossas
preferências. ► 2015 (25)

► 2014 (29)
Embora o próprio Eckhart não a cite, creio que a passagem evangélica seguinte fornece a
chave desse mistério: "Replicou-lhe Jesus: 'Por que me chamas bom? Ninguém é bom, a não ► 2013 (22)
ser um, que é Deus!'" Isto é, rigorosamente, o Bem reside somente em Deus, ou melhor, o ► 2012 (15)
Bem é Deus, e mais nenhum ente que não seja Ele pode reivindicar esse título. Comerciar
► 2011 (28)
com Deus em troca de qualquer bem é não compreender quem é Ele, in the first place.
► 2010 (26)
Tudo o que esses comerciantes são, eles recebem de Deus, e tudo o que possuem, também o
► 2009 (55)
recebem de Deus. Nada pertence a eles. Portanto, o Senhor nada deve a eles por seus
supostos atos de bondade. Se Ele concede bens aos homens, não é por recompensa ou por ► 2008 (26)
troca de favores. "Sem mim, nada podeis fazer" (Jo 15,5). O mestre renano chama a atenção
► 2007 (25)
aqui para um tema comum da metafísica neoplatônica medieval, a indigência ontológica.

O fato mais patente de nossa realidade humana é que a nossa existência foi precedida por
Marcadores
nossa inexistência e será sucedida novamente por nossa inexistência. Só existimos porque
fomos trazidos à existência por entes que já existiam, pai e mãe, nossas causas próximas, e, Agostinho de Hipona (3)
subindo a cadeia, todas as nossas causas remotas, como nossos ancestrais. Sequer o fato de Al Ghazzali (2)
existir é algo que nos pertença como uma propriedade intrínseca. Nós recebemos a
Alexandre Koyré (6)
existência, não a possuímos absolutamente, dado que ela cessará, em algum momento do
futuro, na morte, queiramos ou não. Alvin Plantinga (7)
anarco-capitalismo (1)
Metafisicamente, sequer nossa realidade pertence a nós. Toda posse se torna ilusória diante
Anselmo de Cantuária (3)
do fato de que os bens também são transitórios em si mesmos ou, pelo menos, só podem ser
fruídos transitoriamente, dado que nosso tempo de existência é limitado. Todo o bem que nos antroplogia filosófica (3)
atrai no mundo só é um bem participado, e não o Bem imparticipável. A condição das coisas Argumento ontológico (5)
deste mundo é tão fugidia e precária que alguns neoplatônicos medievais, como Ulrich de Aristóteles (36)
Strasburg, afirmavam sem peias que as criaturas são falsos entes.
Arte (17)
Agostinho de Hipona, outro neoplatônico (da antiguidade tardia), no início do Livro XI de sua artes marciais (3)
obra magna Confissões, já afirmava a relativa inexistência das coisas cambiantes deste
artigos publicados (3)
mundo:
astronomia (8)
"Portanto, Senhor, Tu as criastes, Tu que és belo, pois elas são belas; Tu que és bom, pois beleza (1)
elas são boas; Tu que existes, já que elas existem. No entanto, nem são tão belas, nem tão
bíblia (1)
boas, nem existem tal como existes, Tu que és o Criador delas. Comparadas contigo, nem são
budismo (23)
belas, nem boas, nem mesmo existem".
Budo (1)
O bispo africano expressa perfeitamente o circuito da realidade. Conhecemos o belo limitado
Carl G. Hempel (1)
nas coisas, subimos na direção de sua Fonte última, e ali, já fora de todas as limitações e
ceticismo (11)
particularidades, compreendemos que, comparadas com a Fonte última, nenhuma das coisas
belas é realmente bela. Do mesmo modo, a existência contingente das coisas deste mundo Chesterton (1)
eleva o intelecto na direção de uma existência necessária, ou seja, sem limites, de tal modo China (16)
que, quando atingimos esse ápice, compreendemos que nenhum dos entes daqui merece o
Chuang Tzu (6)
título de existente.
cinema (25)
Entendidos corretamente, os argumentos cosmológicos tradicionais de demonstração da citações (246)
existência de Deus buscam responder justamente à seguinte pergunta: de onde vem o poder
comunismo (2)
de existir que as coisas evidentemente exibem, mas que, ao mesmo tempo, evidentemente
Confúcio (2)
não reside em nenhuma delas como uma propriedade que lhes seja intrínseca? A
instabilidade ontológica dos entes, sua impermanência radical, nivela todos na mesma relativa cosmologia (4)
inexistência. É óbvio que as coisas existem, mas somente de forma derivativa e fugidia. cristianismo (35)

Mestre Eckhart prossegue o sermão afirmando que aqueles que tentam comprar e vender em Daisetz Suzuki (1)

suas relações com Deus não entendem a verdade. Quando Cristo entra no Templo, como a David Hume (7)
luz que expulsa as trevas, a ignorância é expulsa da alma e a Verdade se revela inteiramente. Dionísio Areopagita (6)
Deus não age por nenhum bem externo a Ele mesmo. Deus é vazio e livre, age por verdadeiro
Dogen (1)
amor. Assim também age o homem unido perfeitamente ao Senhor, não a partir de si mesmo,
Dostoievski (9)
vazio e livre, sem jamais buscar seus próprios interesses, tudo realizando pela glória de Deus.
Duns Scotus (1)
O que Eckhart afirma nessa curta, porém metafisicamente densa, passagem sobre a entrada

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de Cristo se segue do que foi dito sobre a indigência ontológica dos entes. O que significa a economia (6)
entrada de Deus na alma senão a completa desaparição de todo e qualquer ente? Deus não
Emanuel Swedenborg (1)
aparece na alma como algo em meio a outros algos. Enquanto Ele aparecer na alma como
epistemologia (57)
algo, Ele não estará plenamente na alma. Será um ídolo, uma imagem, um pensamento, um
conceito, ou um bem que compete com tantos outros bens o coração do homem. Eric Voegelin (4)
Esfericidade da Terra (3)
Note-se que Eckhart não está sugerindo que Deus deva ocupar a alma como um objeto de
estética (2)
obsessão pode ocupar a mente do obcecado. Um homem pode ser obcecado por dinheiro a
tal ponto que nada mais tem lugar em sua mente. Todavia, esse é o caso extremo oposto do estoicismo (3)
que Eckhart está tratando. A obsessão significa conceder a um ente determinado o estatuto ética (15)
de única realidade, expulsando simultaneamente toda a multiplicidade de bens que há no
ética iluminativa (1)
mundo. É o caso de um objeto inflado à condição de fundamento.
Étienne Gilson (2)
A despeito de fato de que todo e qualquer outro bem seja expulso da alma do obcecado, ficção científica (11)
ainda se trata de um ente, de algo determinado. Deus não aparece na alma como algo, repito.
filosofia (343)
Se é possível expressar dessa maneira imperfeita, o modo de aparição de Deus é o
filosofia analítica (18)
desaparecimento dos entes. Enquanto houver entes, não há Deus na Sua plenitude. Óbvio,
admito, Ele se manifesta (pradurbhava) nos entes, e os entes não se constituem filosofia antiga (45)
necessariamente em obstáculo para o homem santo contemplá-Lo. filosofia brasileira (12)

A questão aqui não é rejeitar os entes, desprezá-los, negá-los ou julgar a sua existência um filosofia chinesa (16)

mal. Isso seria absurdo. O ponto é que Eckhart se refere a um grau de perfeição espiritual filosofia contemporânea (26)
supremo no qual a alma não tem mais olhos para nada que não seja o próprio Deus, posto Filosofia da Ciência (42)
que compreende a verdade de que todas as coisas que há no mundo devem sua existência a
filosofia da linguagem (3)
Ele, sendo, portanto, sempre e necessariamente, bens de segunda ordem. Amar os bens
filosofia da religião (142)
acima do Criador dos bens seria como amar os frutos e desprezar a árvore que os gera.
Quem possui a árvore, possui os frutos, mas o contrário não é verdadeiro. Filosofia Islâmica (16)
filosofia japonesa (10)
Deus aparece na alma, como Cristo entra no Templo, esvaziando suas dependências de
qualquer outra coisa que não seja Ele mesmo. Se a luz penetra completamente, sem filosofia judaica (3)

limitações, não há como haver sombras. O Ser, para usar um termo caro à filosofia ocidental, Filosofia medieval (55)
só se revela na sua plenitude quando os entes desaparecem, e resta somente o vazio. Deus é filosofia moderna (8)
vazio, afirma Eckhart. Deus é Nada, mas não é o Nada no sentido da ausência completa,
filosofia oriental (60)
absoluta e total de qualquer realidade efetivamente existente ou meramente possível.
filosofia renascentista (7)
Deus é vazio justamente porque Ele não é nenhuma das coisas limitadas. Não sendo filosofia romana (4)
nenhuma das coisas, não aparece como uma coisa entre outras coisas, um ente entre outros
filósofos (217)
entes. A entrada de Cristo no Templo tem que necessariamente ser acompanhada da
expulsão dos vendilhões que ainda confundem Deus com algum ente, e que, por isso, têm o Francis Bacon (1)

coração dividido. Aquele que é o fundamento último e a fonte de todos os entes não pode Frédéric Bastiat (1)
sofrer das limitações dos entes que Ele fundamenta. Friedrich von Hayek (1)

Deus é vazio porque não cabe em nenhuma das categorias do pensamento humano e não Friedrich Waismann (1)
está sob o jugo de nenhuma limitação. Por isso, é vazio e livre. Se ser livre é não estar sob Galileu (1)
algum tipo de limitação ou constrangimento interno ou externo, então não há liberdade real a George Berkeley (4)
não ser em Deus. Nele estão ausentes todos os tipos de obrigação ou de constrangimento. O
Giordano Bruno (1)
que poderia ser a Realidade, no seu grau último e fundamental, senão absoluta liberdade e
vazio?*Nesse sentido, buscar a Realidade é buscar o Vazio. Górgias (5)
goth (1)
Perguntas sobre se Deus segue a lógica ou sobre se o certo moralmente é certo somente
guerra (1)
porque Deus assim o quis e não por ser certo em si mesmo, são questões próprias de quem
não compreendeu o que Deus é, e O confunde com algum ente, por mais poderoso que esse Hilary Putnam (1)
ente seja. Não há sentido em se perguntar à Realidade por qual razão ela é do jeito que ela é. Hinduísmo (21)
Se houvesse alguma razão anterior à Realidade, essa razão seria a Realidade. E a pergunta história (14)
poderia ser refeita sempre com o mesmo resultado ad infinitum.
História Antiga (4)
A absoluta liberdade divina não pode ser compreendida em termos de arbítrio humano. Não história da ciência (88)
há diferença entre as leis racionais e a liberdade na unicidade infinita de Deus. Ele não História Militar (1)
obedece a leis das quais Ele mesmo é o fundamento. Nem tem outro bem ao qual se inclinar.
homenagem (5)
Não age por interesse próprio, pois só possui interesse aquilo que sente a falta de algo. Age
por puro amor, por pura doação. Entretanto, a ação divina não deve ser entendida como a Homero (6)
ação humana, que é limitada e temporal. horror (2)
iaido (1)
Só pode receber Deus na alma, como Cristo entra no Templo, quem não possui nada ali além
do próprio Deus. O cristão unido plenamente ao Senhor, afirma Eckhart, deve ser como o Ibn Arabi (1)
Senhor, vazio e livre. Quem é vazio não possui interesses próprios e nem age movido pelo Ibn Rushid (1)
desejo de algum bem útil para si mesmo. O seu vazio não é o vazio de quem está morto para Ibn Sina (4)
a vida, daquele que não enxerga valor em nada. Não se trata de nihilismo, nem de uma
Idade Média (48)
impotência ou de uma incapacidade.
Ilíada (5)
Ao contrário, é o vazio de quem se encontra no âmago da coincidentia oppositorum**, lá Índia (9)
mesmo onde todas as coisas têm a sua origem "antes" de serem originadas. Poderíamos
Isaac Newton (11)
afirmar que só se conhece Deus não conhecendo mais nada. O Senhor entra no Templo,
necessariamente todo o resto é desaparece. Os entes desaparecem não porque são Islâ (14)
ofuscados por um outro ente muito maior que eles, mas sim porque são reabsorvidos na sua Japão (19)

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Fonte última. jidaigeki (6)

Solve et coagula. O que antes se solidificou agora se dissolve. O que foi expirado é inspirado. John Stuart Mill (1)

O interesse por qualquer ente desaparece quando se está no centro emanador de toda e judaísmo (3)
qualquer possibilidade. Nesse sentido, é correto afirmar que aquele não possui nada, possui Karl Marx (3)
tudo. O que é mais valioso, o produto de uma capacidade ou a capacidade que o produz? A
Karl Popper (25)
onipotência não é mais do que a liberdade e o vazio de Deus, ou seja, a capacidade
Keiji Nishitani (1)
inesgotável da Realidade de tornar real o que quer que ela determine que se torne real.
Kitaro Nishida (6)
A perfeição espiritual do cristão consiste em ser completamente vazio como Deus é vazio. A
Kurosawa (3)
alma não busca mais seu interesse quando age. Situada no mais íntimo do Princípio, a alma
não deseja mais nada, não age por interesse próprio, e nem em troca de algum bem. "Já não Larry Laudan (2)

sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim", diz o apóstolo (Gálatas 2:20). A alma deve Leibniz (6)
permanecer tão vazia como se ela ainda não existisse. A alma também desaparece quando Leonardo da Vinci (1)
Deus aparece.
Leszek Kolakowski (1)
Dito de outra forma, enquanto ainda há algo, ou, principalmente, enquanto ainda há alguém, a liberalismo (8)
presença do Senhor não é perfeita. O Absoluto não nega o relativo, mas o engloba libertarianismo (3)
precisamente porque o transcende. Tudo desaparece diante de Deus porque todas as coisas
literatura (38)
são reunidas sem antinomia em seu Princípio. É somente quando o cristão se esvazia de si
mesmo que ele pode agir exclusivamente por Deus e como Deus. Lovecraft (3)
Ludwig von Mises (2)
Retornando ao texto evangélico, Eckhart nota que Jesus, mansamente, exorta aqueles que
Maimônides (4)
ofereciam pombos no Templo que libertassem os pequenos animais. Simbolicamente, os
pombos são as boas obras dos bons cristãos que tudo realizam por amor a Deus, e não por Marcel Proust (2)
interesse próprio, mas que permanecem ligados à propriedade, ao tempo e ao número, ao Marco Aurélio (2)
antes e ao depois. Falta-lhes ultrapassar até mesmo essas boas ações realizadas por amor a Mário Ferreira dos Santos (13)
Deus no âmbito do tempo e da propriedade.
Marsilio Ficino (6)
Esses bons cristãos deveriam ser como Jesus, o Verbo, que tudo recebe eternamente no seio Meister Eckhart (2)
do Pai, sem nenhum obstáculo de propriedade, de antes ou depois, vazio e livre. Não é Mênon (3)
necessário entrar aqui em todas as sutilezas da teologia trinitária católica, embora alguns
mentalidade revolucionária (15)
comentários sejam oportunos. O Catolicismo afirma que Deus é uma trindade consubstancial,
isto é, há uma só e mesma natureza divina (monoteísmo), que preserva sua unicidade a metafísica (116)
despeito da presença de três Pessoas divinas, Pai, Filho e Espírito Santo. Michael Oakeshott (1)
Michael Polanyi (3)
"Deus de Deus, luz da luz, Deus verdadeiro de Deus verdadeiro", assim o Credo Niceno-
Constantinopolitano se refere a Cristo. O Filho é gerado, não criado, pelo Pai desde toda a Mircea Eliade (12)
eternidade, em um evento atemporal, onde não há antes ou depois, mas que, por assim dizer, mística (68)
ocorre sempre e desde sempre. O Filho tudo recebe do Pai e O reflete perfeitamente. É por mitologia (13)
isso que o mestre renano afirma que Cristo é vazio e livre. Ele não guarda nada para si
moral (1)
mesmo, não possui outra vontade que a do Pai desde toda a eternidade.
Murray Rothbard (1)
Gelassenheit, termo que Eckhart utiliza para descrever esse nível de perfeição a que o cristão música (2)
pode alcançar, admite várias traduções como desapego, serenidade, calma, repouso,
Nancy Cartwright (1)
equanimidade, declinação, entre outros. Em um de seus tratados, o mestre
define Gelassenheit como um estado de absoluta imperturbabilidade e imobilidade com nazismo (1)
relação a qualquer acontecimento, bom ou ruim, alegre ou triste. Mais profundamente, esse é neoplatonismo (27)
o modo de ser de Deus, pois nada O move em qualquer direção. No caso do ser humano, Nicolau de Cusa (3)
Eckhart explica que "estar vazio de todas as coisas criadas é estar cheio de Deus, e estar
Nietzsche (3)
cheio das coisas criadas é estar vazio de Deus."
Paul Feyerabend (3)
A alma desapegada, tendo abandonado a si mesma, mergulha na Luz eterna, incriada e sem Philip K. Dick (7)
mescla de Deus. Ali ela encontra o seu nada, e nesse nada ela está tão completamente
Pierre Duhem (10)
afastada de qualquer coisa criada que, por seu poder próprio, não pode retornar à nada
daquilo que é criado. A alma ousou se aniquilar, não possui mais nada de si mesma para Pierre Hadot (1)
retornar ela mesma a si mesma. Nesse estado de perfeição, quando só Deus aparece, todo o Platão (20)
resto necessariamente desaparece. Todos os entes são reduzidos a nada, dado que sempre Plotino (12)
foram nada.
poesia (8)
As coisas não são literalmente destruídas ou aniquiladas por Deus. Ocorre que a alma, política (25)
quando perfeitamente unida a seu Senhor, percebe com insofismável clareza a sua absoluta Porfírio de Tiro (1)
indigência ontológica (assim como a de todas as outras coisas). Nada há nela que lhe
Pré-socráticos (1)
pertença realmente, nada que se deva exclusivamente à ela. Não possuímos em nós mesmos
o poder de existir. No fundo, somos nadas provisoriamente interrompidos. A nossa Proclo (3)
inexistência foi interrompida durante um curtíssimo espaço de tempo. racionalidade (12)
Radhakrishnan (2)
A entrada de Cristo no Templo acompanhada da expulsão dos vendilhões corresponde à
compreensão do que realmente somos na escala da realidade. Nada é nosso, nada possui religião (82)
substancialidade. Do pecador mais grosseiro ao homem bom que ainda não se desapegou religião grega (8)
inclusive de suas boas obras, todos, em graus diversos, trocam Deus pelos entes. As almas Réné Descartes (14)
se apegam ao nada dos entes em vez de receber tudo no Nada divino.
René Guénon (5)
Em Cristo, a alma cresce incessantemente em todas as virtudes e potências, e se identifica retórica (5)
com o Senhor de tal modo que nenhuma das coisas criadas no tempo e no espaço podem ter
Robert Charles Zaehner (2)

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sobre ela qualquer efeito. Além disso, unida à Cristo, a alma se une à própria sabedoria divina, sabedoria (2)
o que faz desaparecer de si toda a dúvida, todo o erro e toda a obscuridade. "Eu e o Pai
Sabedoria da Unidade (2)
somos um". Só se conhece Deus em Deus, a luz na luz.
Sabedoria dos Princípios (8)
A alma retorna ao seu Primeiro Princípio, lá mesmo onde Cristo recebe e partilha com o Pai a samurai (6)
mesma essencialidade simples, isto é, a natureza divina comum à Trindade. Ekhart usa a
Sankaracarya (14)
expressão einweiltigen weselicheit, que o medievalista Alain de Libera traduz como
Sêneca (1)
l'essentialité ou étantité simple, referindo-se à unidade da essência de Deus. Eckhart não está
afirmando que exista uma causa essencial da Trindade, como se o Pai, o Filho e o Espírito Sérgio L.de C. Fernandes (3)
Santo fossem criaturas ou efeitos de uma causa externa à eles. simbolismo (27)

O que existe é uma única e indivisa natureza divina presente nas três Pessoas. Essa socialismo (1)

essencialidade simples é tanto a uniformitas, a consubstancialidade divina da Trindade, sociedade livre (1)
quanto o princípio primeiro criador de todas as criaturas. Poderíamos dizer, creio, que é a Sócrates (7)
divinitas de Deus, aquilo que propriamente torna Deus o que Ele é: Deus. Obviamente, na
Sófocles (2)
Trindade, essa divinitas é a essencialidade simples que há em comum nas três Pessoas
Star Wars (3)
desde toda a eternidade.
Stendhal (1)
No caso das criaturas (nós e todas as outras coisas), a mesma essencialidade divina é seu
Suarez (1)
princípio criador, ou seja, os entes são criados por Deus, trazidos à existência. Acontece que,
quando está unida à Cristo perfeitamente, a alma se encontra no fundo dessa essencialidade, Surendranath Dasgupta (3)

tendo retornado à fonte infinita de onde saiu. Eckhart assevera que a alma está nela mesma, Taisen Deshimaru (3)
fora dela mesma, acima dela mesma e acima de todas as coisas. Tantra (1)

A perfeição espiritual é o retorno ainda em vida ao vazio divino, lá onde todas as coisas estão taoísmo (12)
presentes antinomicamente como possibilidades eternas no seio da essencialidade simples de Tarkovsky (3)
Deus. Que não esqueçamos que quando falamos da natureza ou da essência divina não nos teatro (5)
utilizamos desses termos de modo unívoco. Sem dúvida Deus não possui uma essência no
teologia natural (40)
sentido de um conjunto limitado de características necessárias e suficientes para que um ente
pertença a uma certa classe ou espécie. teoria do conhecimento (147)
Thomas Kuhn (1)
Deus não é um ente, e nesse sentido Ele não possui uma essência que O distingue de outros
Tomás de Aquino (18)
entes. A essencialidade simples é um termo imperfeito (como são todos os termos) para
expressar a diferença absoluta de Deus. Na realidade, a divinitas, a essencialidade simples, é tragédia grega (5)
completamente indizível, inexprimível, incognoscível, incompreensível e inefável. Não é por transhumanismo (1)
capricho que Meister Eckhart fala de Vazio ou de Nada a fim de referir-se ao Senhor. Upanisads (8)

A alma, unida a Cristo no fundo insondável da essencialidade divina, realiza o grau máximo do utopia (1)
desapego, Gelassenheit, ainda nesta vida. Sem negar as criaturas, mas transcendendo-as em Werner Heisenberg (1)
seu Princípio, o cristão se instala imóvel e equânime no centro da Realidade. Nada o abala, e Wittgenstein (1)
nada o move ou o interessa a não ser o próprio Deus. Cristo entrou no Templo, os vendilhões
Xenofonte (3)
se foram e as pombas alçaram voo. Não há sequer eu e Tu. Só o Tu.
Yoga (3)
... Zen (17)

*Sunya, Sunyata, (vazio, vacuidade) na linguagem budista Mahayana

** O termo não é originalmente utilizado por Eckhart no texto.


Leituras atuais
"ECKHART, SUSO, TAULER" de Alain de
...
Libera
Leia mais: "ENÉADAS" de Plotino
"FORCES AND FIELDS" de Mary B. Hesse
Νεκρομαντεῖον: Meister Eckhart (oleniski.blogspot.com)
"MUHAMMAD" de Martin Lings
Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)
"TIMEU" de Platão

Postado por Rogério da Costa (Oleniski) às 16:35 Um comentário:


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Marcadores: citações, cristianismo, filosofia, filosofia da religião, Filosofia medieval, Idade Média,
Meister Eckhart, metafísica, mística, religião

quinta-feira, 31 de agosto de 2023

Huang Po, Buddha e o método da


Iluminação

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Meu livro "Introdução à


Epistemologia de Karl
"Doutrinas existem somente para apontar na direção do espírito. Tendo visto o espírito, por Popper" (2023)
que dar atenção a doutrinas?"

BODHIDHARMA, Sermão da Corrente Sanguínea

O método de iluminação espiritual é um dos temas principais dos ensinamentos e discursos


do mestre Ch'an (Zen, no Japão) Huang Po. O que causa certa estranheza a seus ouvintes é
a sua aparente negação da importância dos métodos espirituais transmitidos pela tradição. É
preciso, no entanto, entender que essas negações aparentes adquirem seu sentido pleno
quando compreendidas a partir de Sunyatta, a "vacuidade".

Na rica tradição budista Mahayana, não é raro encontrar ordens paradoxais como "se
encontrar o Buddha, mate o Buddha!" dadas por mestres aos seus discípulos. A mentalidade
ocidental só consegue enxergar contradição nessas declarações porque não compreende de
onde elas estão sendo proferidas. Assim como o ditado Zen que diz que o mestre aponta para
a Lua e o tolo olha para o dedo, o discípulo só vê o instrumento, o método, sem se atentar
para o fato de que o método ele mesmo faz parte do mundo fenomênico a que se quer
ultrapassar.

O grande mestre indiano Bodhidharma, considerado como o introdutor do budismo na China e


como mestre das artes marciais, dizia que "seu espírito é o Buddha. Não use o Buddha para
venerar o Buddha". A advertência é dirigida aos discípulos que absolutizam o método, ou
mesmo hipostaziam o Buddha, transformando a natureza búdica informe em um fenômeno
entre outros fenômenos. No fundo, o método e o Buddha são, tais como se apresentam a nós
nessa realidade fenomênica, são ainda fenomênicos.
Clique na imagem.
Não obstante, aquilo para o qual eles apontam, não é o fenomênico. Em certo sentido, o
Buddha é fenômeno na medida em que se mostra a nós como algo entre outras as coisas
deste mundo. Em outro sentido, o Buddha, na sua verdade última, é a realidade que
"A Teoria Física" de Pierre
ultrapassa tudo aquilo que é fenomênico. Analogamente, o método de iluminação é um Duhem (tradução minha)
fenômeno que aponta para o que ultrapassa todo fenômeno. Na sua verdade última, o método
é o espírito puro sem distinções do qual fala Huang Po. Não há outro método.

Huang Po ensina que se os discípulos querem uma fórmula essencial, basta a eles nada fixar
no espírito. O corpo absoluto do Buddha é comparado metaforicamente ao céu. Não significa
que o corpo do Buddha seja contido pelo céu, e sim que o corpo e o céu são uma e só
realidade. Não há diferença entre um e outro, como não há diferença entre Samsara e
Nirvana. O espírito do Buddha reside onde não há caracteres particulares. O mundo
fenomênico não se distingue do espírito búdico como algo separado.

O método não é mais do que esquecer os objetos e o espírito, diz Huang Po. Nesse caso, o
mestre chinês se refere ao espírito individual e aos objetos que nos cercam. Mas as pessoas
comuns têm receio de esquecer deles porque temem tombar no vazio sem ter onde se
agarrar. A nossa natureza búdica, porém, não é um simples vazio, ela não possui início e nem
fim, nem acima e nem abaixo, nem silenciosa e nem sonora, nem número e nem quantidade, ,
jamais se sujou ou se purificou, não possui voz, silhueta ou voz, não é antiga e nem nova, não
possui lugar e nem direção.

O Buddha é o espírito puro, e o Buddha é o método. O método, portanto, não é esta


sequência de práticas que supostamente conduz a alguma coisa. Mesmo o método e as
práticas espirituais ainda são fenômenos. O sentido profundo do método é a negação da
substancialidade do próprio método e de sua importância. Em outros termos, o método, visto a
partir do espírito absoluto do Buddha onde todas as distinções desaparecem, também ele é
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uma entidade distinta que desaparece e deve desaparecer. Seu valor não reside nele mesmo,
reside na sua negação na real Iluminação.
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Como já afirmamos em outros momentos, aqui estamos usando a linguagem para ultrapassar

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a linguagem a fim de falar daquilo que é o fundamento das coisas e da própria linguagem. Proclo, neoplatonismo e a
Não à toa, o budismo, e Huang Po, não preconizam o pensamento conceitual para eternidade do mundo (parte 1)
compreender a Iluminação. Não há compreensão conceitual daquilo que ultrapassa o "Uma vez que o mundo subsiste
conceito. O que dizemos, inclusive o que Huang Po ensina verbalmente a seus discípulos, é por causa da bondade da
divindade, é necessário que a
um vestígio, uma imitação imperfeitíssima dessa realidade búdica que só é "compreendida" divindade seja sempre boa, e
quando "experimentada". que o mundo sempre exi...

Quando os mestres falam do espelho claro, por exemplo, eles usam um símile para esclarecer Dionísio Areopagita, teologia
as pessoas de faculdades medianas e inferiores. O espírito puro é como o espelho catafática e teologia apofática
''E a vós, caro Timóteo, vos
completamente limpo que reflete tudo o que se lhe coloca à frente sem nada distorcer e sem
aconselho que, no fervoroso
nada acrescentar ou subtrair, mantendo sempre sua pureza original intocada. Aqueles que exercício da contemplação
desejam fazer a real experiência, por assim dizer, não devem mais pensar usando esses mística, deixeis os sentidos e as
símiles, dado que causam apego aos objetos. atividade...

"No ser se afunda a realidade. Então, não crer em ser ou não-ser é suficiente para enxergar", Notas curtas sobre a natureza
do símbolo
arremata Huang Po. Na primeira sentença, o mestre sintetiza uma verdade metafísica
"E se tu suprimes isso que está
profunda: nas coisas que são, isto é, nas coisas que existem ou podem existir, a realidade entre o Imparticipável e os
última que funda a existência de todas as coisas submerge ou é "escondida" por esses participantes – ó qual vazio! - tu
nos separas de Deus,
mesmos seres aos quais dá origem. O mundo fenomênico (ou o mundo dos entes, o mundo
destruindo o l...
da limitação e das oposições), "submerge" a realidade búdica por causa de nossos apegos ou
de nossas rejeições a este ou àquele ser em particular. Popper, a origem e a justificação
das teorias científicas
Toda a nossa percepção é dirigida para a distinção e separação dos entes como se eles "Generalidade, similaridade, e
fossem absolutamente independentes uns dos outros e como se algum deles ou alguns deles também repetição, sempre
pressupõem a adoção de um
tivessem o condão de, ainda que sendo limitados como são, satisfazer completamente os
ponto-de-vista: algumas
nossos desejos. Então, a realidade do Buddha, que sempre está lá onde estão as coisas (sem similaridades ou repetiç...
que nenhuma delas ou a sua totalidade se constitua em real obstáculo para a Iluminação),
desaparece como a Lua desaparece para o tolo que olha para o dedo que aponta. Sêneca, estoicismo e a
dignificação do sofrimento
A segunda sentença pode dar a impressão aos ouvidos ocidentais de que se trata de uma "Assim, tomemos o caminho da
vitória em todas as nossas lutas,
negação pura e simples da distinção entre ser e não-ser. Se fosse esse o caso, ser e não-ser
pois o prêmio não é uma coroa
seriam igualmente inexistentes, o que equivaleria a uma afirmação do nada puro. Huang Po ou uma palma ou um corneteiro
não afirma que a cadeira não é um ser, isto é, não é um ente existente, e nem nega a que pede...
existência de tudo aquilo que é não-cadeira, nem mesmo a simples inexistência de alguns
Philip K. Dick: "Null-O" ou a
entes. Mais uma vez, é mister ter em mente a partir "de onde" o mestre fala. redução eliminativa da realidade
" Lemuel indicou o apartamento
O seu objetivo é evitar o apego aos métodos como se fossem fins em si mesmos ou como se com um movimento de sua
conduzissem a algo a ser descoberto fora das coisas. Não crer em ser ou não-ser é enxergar mão.'Todos esses aparentes
a realidade na sua totalidade, na sua talidade (caráter de ser tal), como o enxerga o Buddha objetos - cada um tem um
nome. Livro, cadei...
Tataghata, aquele que conhece a realidade tal como ela é. Não há nada a excluir ou a
separar, nada que seja substancialmente separado de todo o resto, de modo que todas as Mircea Eliade: Platão,
oposições, como ser e não-ser, são reunidas e transcendidas no espírito puro do Buddha. anamnesis e mentalidade mítica
"Concorda-se hoje em ligar à
Aquilo que transcende, não nega. Só há negação onde há entes de uma mesma natureza a tradição pitagórica a doutrina
serem contrapostos. O espírito puro transcende e, portanto, reúne em si, as oposições e as platônica da anamnesis. Mas,
em Platão, não se trata mais de
negações. Ser e não-ser é a oposição mais básica do mundo fenomênico, isto é, do nosso memórias...
mundo limitado. Não crer em ser ou não-ser é não absolutizar as diferenças, é reuni-las
naquilo que as transcende e as fundamenta. No caso do mestre Huang Po, significa reunir e Dionísio Areopagita e a teologia
transcender as dualidades e oposições na sua fonte última, o espírito puro do Buddha. Nada é negativa em "Os Nomes
Divinos" (Livro IV, sobre o Bem)
perdido, tudo é remetido à sua realidade última.
"No primeiro princípio das
coisas a simples existência é ela
Essa é a simplicidade de que fala o mestre chinês. O método consiste em tão somente não mesma a bondade primordial e
absolutizar as oposições e dualidades. É não se afundar nos entes a ponto de tomá-los como absoluta em si. Assim como o Sol, luminoso
a única realidade. O método não conduz à nenhuma novidade, à nada fora daquilo mesmo em...
que as coisas sempre foram. Não é o método, mas a transcendência do método que é a
Paul Friedländer: Platão,
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Perseguir as coisas exteriores, confundir os objetos com o espírito puro, é como reconhecer inquiridor irônico: o próprio
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Na mecânica, as noções abstratas dos matemáticos são admitidas. Na filosofia primeira ou Há um ano

metafísica, estamos preocupados com os entes incorpóreos, com causas, verdade, e a


existência das coisas."
Regras para a reprodução do
GEORGE BERKELEY, De Motu, parágrafo 71 conteúdo do blog:
O filósofo e bispo anglicano George Berkeley publicou em 1710 o Treatise Concerning the
Principles of Humean Knowledge, sua obra mais importante na qual expunha os princípios
epistemológicos e metafísicos de sua filosofia imaterialista. O seu ponto de partida é o mesmo
de praticamente toda a filosofia moderna desde o argumento do sonho em René Descartes, a This work is licensed under a
saber, a tese segundo qual o espírito humano produz ou pode produzir, parcial ou totalmente, Creative Commons Attribution-
suas próprias ideias ou representações sem nenhum auxílio ou material do mundo externo. NonCommercial-NoDerivs 3.0
O que diferencia a metafísica de Berkeley é sua eliminação da matéria ou a redução Unported License.
ontológica da realidade ao imaterial. No título do Treatise, o bom bispo deixa claro seu intento Em português:
de combater os ateus, os céticos e os irreligiosos, e a sua estratégia é exatamente retirar dos http://creativecommons.org/
tradicionais inimigos da fé cristã a sua base comum: o materialismo. Evidentemente, Berkeley licenses/by-nc-nd/2.5/br/
não acha que todos os que creem na existência da matéria sejam necessariamente
materialistas (os que reduzem a realidade à matéria), não obstante o fato de seu alvo serem
os materialistas. Visualizações

As premissas sobre as quais toda a filosofia berkeleyana está assentada são simples. O que 6 5 3 4 9 5
temos em nossa mente são ideias, algumas das quais são impressões dos sentidos, paixões
ou operações do espírito, e outras são formadas pela memória ou por composições e
recomposições da imaginação. As ideias geralmente vêm em conjunto e de modo constante e
regular, de modo que atribuímos a esse feixe de sensações unificado um nome. Vejo a cor
vermelha, sinto o cheiro adocicado, provo o gosto doce, toco e sinto a textura da superfície, e
se todas essas sensações vêm sempre juntas, então o conjunto chamo de maçã.

Ora, tudo isso são ideias em nosso espírito e não a suposta maçã real e independente de
mim. Em outros termos, só tenho acesso às minhas percepções, e, como dito acima,
percepções sensoriais são ideias. Ninguém admite que ideias tenham existência fora da
mente ou do espírito que as concebe ou sente. Sendo assim, seria absurdo sugerir que haja

8 of 23 21/03/2024, 10:29
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algo que subsista na realidade fora da minha percepção ou da percepção de algum outro
espírito. Existir, propriamente dito, é ser objeto de uma consciência.

Esse est percipi. Ser é ser percebido. Isto é, não há o menor sentido em pensar que haja algo
que não seja percebido por alguma mente. Montanhas, rios, casas, animais, plantas existem
não de forma independente de nossa percepção, mas somente e tão somente na medida em
que são percebidos. O realista crê que permaneça na existência uma montanha mesmo que
não seja percebida por ninguém. Berkeley argumenta que isso não faz sentido, pois o que
seria uma montanha não percebida por ninguém? Um nada.

Só conhecemos o que percebemos, só percebemos nossas ideias, e nossas ideias só existem


em nossa mente ou espírito. A conclusão é a de que só há na realidade espíritos e ideias. A
existência do espírito ou da mente é indiscutível dado o fato inegável de que pensamos,
percebemos, sentimos, e temos outros muitos estados mentais. A existência das ideias é
igualmente evidente, afinal elas são o conteúdo sobre o qual a mente se debruça. Mas a
matéria, os seres corporais fora de mim, não são também reais?

Berkeley responde negativamente. Descartes defendera que havia dois tipos de qualidades,
as qualidades primárias e as qualidades secundárias. As primeiras seriam extensão,
comprimento, largura, altura, movimento, figura, etc. As secundárias seria cor, cheiro, sabor,
valor, etc. As características primárias constituiriam as propriedades da matéria e, por isso,
teriam existência substancial, real e independente de nossas percepções. Já as
características secundárias teriam valor meramente subjetivo, residindo na mente do sujeito.

O que Berkeley faz notar, com razão, é que as propriedades materiais como extensão,
comprimento, largura, figura, etc, só aparecem para nós pelos sentidos e, portanto, são ideias
tanto quanto as cores, sabores, etc. Esse é o argumento que coloca todo idealista em
vantagem quando confrontado com o materialista. Em outros termos, se o materialista quer
reduzir toda a realidade à matéria, qualquer que seja o seu conceito de matéria, ele tem que
admitir que só tem acesso a ela por meio do espírito ou da consciência.

O movimento de Berkeley é simples. Quando o leitor aceita a premissa de que só temos


acesso às nossas percepções, todo o resto se segue naturalmente. Sendo as percepções
ideias, então só conhecemos nossas ideias. Não havendo nada mais de evidente na realidade
a não ser as ideias e as mentes que as concebem, a conclusão é a de que somente existe um
tipo de substância no mundo: espíritos. Por sua vez, o espírito (ou a mente) não é material,
não tem aquelas características extensivas da matéria.

Realiza-se assim a redução imaterialista da realidade. Berkeley é geralmente encarado como


um empirista, embora seu empirismo não seja realista. O princípio do conhecimento está nos
sentidos, sem dúvida. Contudo, as percepções sensoriais não nos informam de uma suposta
realidade exterior e independente de nós. As percepções sensoriais são os únicos dados a
que temos acesso. Segue-se daí que o empirismo de Berkeley desemboca em um idealismo,
ou em um imaterialismo, ou ainda, de um modo jocoso, em um espiritismo.

A metafísica imaterialista de Berkeley terá interessantes consequências para a sua concepção


das Leis da Natureza e para a sua interpretação da ciência moderna, principalmente a física
de Isaac Newton. Quando inspecionamos as nossas ideias, percebemos que controlamos
algumas delas (nossos movimentos, alguns de nossos pensamentos, sentimentos, etc.), mas
que estamos totalmente a mercê de outras tantas, algumas até desagradáveis. Percebemos
também que essas ideias sobre as quais não exercemos nenhum controle são mais vivazes e
têm um curso regular, ordenado e coerente.

Essas cadeias regulares de ideias, tão sabiamente ordenadas, atestam a sabedoria e a


bondade de seu Autor. Nada sabemos sobre elas a priori, temos que aprender a reconhecer
seu sentido no curso da experiência. A elas damos o nome de Leis da Natureza. Tudo o que
percebemos que não seja fruto de nosso arbítrio ou do arbítrio de outro espírito, e que
apresente um curso uniforme no tempo é uma Lei da Natureza. O que faz o filósofo natural,
como Isaac Newton em seu Philosophiae Naturalis Principia Mathematica, de 1687, é
descrever acuradamente essas mesmas Leis.

Ora, Newton acreditava na existência do mundo externo, e, mais ainda, na existência da


matéria, tanto que na sua obra de 1704, Opticks, na Query 31, o sábio inglês especula uma
teoria corpuscular da luz. Não parece que Berkeley esteja tratando das mesmas Leis que
Newton. Em certo sentido, não está, e está aqui uma consequência da sua metafísica
imaterialista. As Leis da Natureza são cadeias ordenadas, constantes e regulares de ideias
que se apresentam ao nosso espírito de forma tão imperiosa que não as podemos controlar
ou as modificar segundo nosso arbítrio.

Sabemos, entretanto, que ideias não são entes independentes das mentes que as concebem.
Sabemos também que ideias são inertes, ou seja, nenhuma ideia tem o poder de mudar ou
causar uma outra ideia. O único agente causal real das ideias e nas ideias é o espírito, seja
ele humano ou divino. É o espírito que cria, modifica, une, compõe, recompõe, separa as suas
ideias. As Leis da Natureza são cadeias regulares de ideias impostas por Deus diretamente
aos espíritos humanos.

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A conclusão óbvia é a de que não há nas ideias nenhum poder causal real, de modo que o
que chamamos de Natureza não se refere a nenhuma dimensão da realidade que tenha em si
mesma a sua regra de desenvolvimento, que contenha poderes causais, e que opere de modo
independente. A Natureza não é mais do que um conjunto de sequências regulares e
ordenadas de ideias que não possuem nenhuma realidade independente dos espíritos que as
concebem mentalmente.

Natura sive Deus. A Natureza é a sequência de ideias ordenadas por Deus. Note-se que,
como as ideias são inertes, sem poder causal, nenhuma ideia implica naturalmente uma outra
ideia. A consequência é que as Leis da Natureza são fruto única e exclusivamente da vontade
de Deus. Nenhuma ideia gera ou causa outra ideia. Toda uniformidade que observamos na
Natureza é meramente uma hipótese, pois nada, absolutamente nada, obriga Deus a ordenar
as ideias sempre da mesma forma.

O "fundamento" da Natureza é o ocasionalismo divino. Toda e qualquer situação do mundo


natural é ocasião da ação direta de Deus. A pergunta é se Berkeley pode realmente ainda
falar de Natureza depois de a reduzir à vontade absolutamente livre de Deus.
Tradicionalmente, concebia-se que o mundo natural havia sido criado por Deus com uma série
de ordenações ou de naturezas intrínsecas às coisas que, por sua vez, se desenvolviam e
operavam a partir daí de modo relativamente independente de Deus.

O cachorro foi criado com uma determinada estrutura essencial que não varia no tempo.
Talvez o cachorro pudesse ter sido criado um tanto maior ou um tanto menor, pois Deus é
absolutamente livre. Ocorre que, uma vez criado, ou seja, possuindo uma natureza própria, o
cachorro não precisa de Deus para atuar e operar como um cachorro. A independência na
operação é um dos traços distintivos do que usamos chamar de natureza. Berkeley elimina
completamente a independência operativa dos entes naturais quando os identifica a ideias
inertes nos espíritos.

O bispo afirma ao final do Treatise que, para ele, a concepção da Natureza como algo distinto
de Deus e das coisas percebidas pelos sentidos não passa de um som vazio e sem qualquer
sentido inteligível. E acrescenta que Natureza nessa acepção é uma vã quimera introduzida
por aqueles pagãos que não possuíam noções justas da onipresença e da infinita perfeição de
Deus. Porém, é mais inexplicável que isso seja acolhido entre Cristãos professando fé nas
Sagradas Escrituras, as quais constantemente atribuem tais efeitos à imediata mão de Deus,
do que entre filósofos pagãos que costumam imputar à Natureza.

O filósofo natural, como Newton, pode identificar as Leis Naturais, usá-las para enquadrar
outros fenômenos ainda não incluídos, e pode mesmo deduzir novas Leis, desde que recorde
que se tratarão sempre de hipóteses sobre o comportamento costumeiro de Deus. No
Scholium Generale, ao final do Principia, Isaac Newton confessa que não sabe apontar a
causa da força gravitacional, e, prudente, prefere não criar hipóteses. Berkeley conhece a
causa da força gravitacional.

Au rigueur, as forças nem mesmo existem como entidades. São ideias insubstanciais
produzidas constantemente pela vontade sábia e bondosa do Espírito Supremo. O
imaterialismo afirma que só há na realidade um tipo de substância ou entes, o espírito ou a
mente, seguindo-se disso que a única causalidade real será o poder de concepção mental.
Resta explicar como a ciência moderna alcançou tantos êxitos teóricos e práticos utilizando
princípios exclusivamente mecânicos se a verdadeira causalidade não reside nas coisas
corporais.

No ano de 1721, Berkeley publicou o curto tratado De Motu: Sive, de Motus Principio &
Natura, et de Causa Communicationis Motuum. Seu objetivo, como indica o título, seria
determinar a natureza do movimento e explicar a causa de sua comunicação nos corpos. A
crítica de Berkeley se dirige imediatamente aos fundamentos das explicações mecânicas dos
fenômenos observáveis. O filósofo questiona o que significariam termos como esforço,
solicitação, força, gravidade na física moderna.

Quando sentimos o peso de um corpo em nosso corpo, sentimos nosso esforço para
sustentá-lo. Quando vemos um corpo caindo na direção do solo, percebemos uma
aceleração. That's all. Nada na experiência concreta nos permite inferir a existência, por
exemplo, de uma força gravitacional intrínseca aos corpos. Não se trata de uma qualidade
sensível e observável. É uma qualidade oculta, justamente aquilo contra o qual os filósofos
naturais se ergueram.

Isaac Newton defende explicitamente em seu método que o filósofo natural deveria utilizar
somente os dados que pudessem ser deduzidos dos fenômenos, denominando tudo aquilo
que não pudesse ser deduzido dos fenômenos como hipóteses. Por essa razão, ele se
recusava a especular no Principia sobre a causa da gravidade. Mais à frente, Newton é
cuidadoso em enfatizar que considera "essas forças matematicamente, e não fisicamente, e
que o leitor não deve imaginar que ele, por essas palavras, tome para si a tarefa de “definir o
tipo, ou a maneira de qualquer ação, as causas ou a razão física."

Segundo Berkeley, as forças não explicam nada, são meras abstrações, meros nomes, flatus

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voces. A razão disso é simples, e decorre dos princípios epistemológico-metafísicos de sua


filosofia. Só temos acesso a nossas percepções e estados de consciência. Portanto, qualquer
atribuição de existência independente fora desses dados é fruto de um uso abusivo de nossa
razão. Não vemos nada a não ser uma sequência regular de ideias na nossa consciência
quando presenciamos o fenômeno da queda dos corpos.

Aristóteles explicava a gravidade, o caráter de ser grave, por uma tendência intrínseca que os
corpos formados predominantemente de terra têm de se dirigir em linha reta para o solo, o seu
lugar natural. Os modernos chamaram essa tendência natural de qualidade oculta (termo que
tem ligações com a magia medieval), e a rejeitaram como fantasia. No entanto, Berkeley
aponta, o que são as forças se não qualidades ocultas intrínsecas aos corpos? Seis por meia
dúzia.

No parágrafo 17 do De Motu, o bispo explica como devem ser interpretados esses conceitos
científicos:

"Força, gravidade, atração, e termos desse tipo são úteis para raciocínios e cálculos sobre
corpos e corpos em movimento, não para compreender a simples natureza do movimento
enquanto tal ou para indicar tantas qualidades. Como no caso da atração, que foi claramente
introduzida por Newton não como uma qualidade física, verdadeira, mas somente como uma
hipótese matemática. De fato, Leibniz, quando distingue o esforço elementar ou solicitação do
ímpeto, admite que tais entidades não são realmente encontradas na natureza, mas têm que
ser formadas por abstração."

Em termos contemporâneos, Berkeley defende uma interpretação antirrealista da física


moderna. As forças não são reais, são meras hipóteses matemáticas, ficções úteis aos
cálculos e raciocínios e não afirmações ontológicas sobre o que há no mundo. O que importa
ao filósofo natural não é saber se a gravidade existe como um propriedade dos corpos, mas
tão somente identificar o comportamento constante e regular dos corpos, as leis mais gerais
do movimento, e utilizá-las para trazer cada vez mais fenômenos à regra.

"Na filosofia mecânica, a verdade e o uso dos teoremas sobre a atração mútua dos corpos se
mantêm firmes, fundados exclusivamente no movimento dos corpos, quer se suponha que
esse movimento seja causado pela ação dos corpos atraindo uns aos outros, quer pela ação
de algum agente diferente dos corpos, impelindo-os e controlando-os. De modo similar, as
tradicionais formulações de regras e leis do movimento, junto com os teoremas daí deduzidos,
permanecem inabaladas, desde que os efeitos sensíveis e os raciocínios fundados sobre eles
sejam garantidos, não importa se supomos que a ação em si ou a força que causa esses
efeitos estejam no corpo ou em um agente incorpóreo."

A passagem acima do De Motu, resume perfeitamente a concepção antirrealista em geral.


Não é necessário pensar que o mundo seja um mecanismo para empregar explicações
mecânicas nos fenômenos do movimento dos corpos. Basta que os princípios mecânicos
sejam encarados como hipóteses matemáticas, ou conceitos operativos, das quais se serve o
físico na qualidade de auxiliares para o cálculo e para o raciocínio. Tudo se passa como se o
mundo fosse mecânico.

O conceito de explicação também sofre mudanças, pois não é mais dever do filósofo natural,
do físico moderno, determinar as reais causas agentes dos fenômenos. A
explicação mecânica se limita a, identificadas pela experiência as leis do movimento,
solucionar com elas fenômenos particulares. Ou seja, demonstrar que o comportamento de
um determinado fenômeno pode ser deduzido das leis gerais do movimento obtidas pela
experiência.

"39. E tal qual os geômetras que, por conta de sua arte, fazem uso de muitos artifícios os
quais eles mesmos não podem descrever e nem encontrar na natureza das coisas, o
mecânico também faz uso de certos termos gerais e abstratos, imaginando nos corpos força,
ação, atração, solicitação, etc, os quais são de primeira utilidade para teorias e formulações,
assim como para computações sobre movimento, mesmo se na verdade das coisas, e nos
corpos realmente existentes, seriam buscados em vão, tal como as ficções dos geômetras
feitas por abstração matemática."

Conceitos como espaço absoluto e tempo absoluto não podem possuir um significado realista.
Um espaço sem nenhum corpo é um nada. Tempo sem as coisas que mudam é um nada.
Nenhum movimento absoluto é perceptível pelos sentidos, então não há utilidade alguma em
manter um referencial que pode ser substituído, for all practical purposes, pelo céu das
estrelas fixas. Tomando como referência somente o movimento relativo, que é observável,
todos os cálculos se mantém tão válidos quanto antes.

A primeira regra metodológica que o filósofo natural deve seguir é distinguir a hipótese
matemática da natureza das coisas. A segunda é cuidar-se contra as abstrações. A terceira é
considerar sempre o movimento como um fenômeno sensível, e, portanto, restringir-se ao
movimento relativo, que é a quarta regra. O ponto central é que a aceitação de uma hipótese
matemática não implica em compromissos ontológicos realistas. Utilizar o conceito força não
significa afirmar a existência real de alguma entidade ou propriedade entre as coisas que há

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no mundo. A hipótese matemática é um modelo simplificado da realidade, e não a própria


realidade.

Embora Berkeley não use a expressão clássica, a sua tese está em consonância com a
tradição astronômica grega segundo a qual os modelos matemáticos das órbitas
inobserváveis dos planetas tinham somente que salvar os fenômenos, σῴζειν τὰ φαινόμενα.
Isto é, a função do modelo era só e tão somente ser adequado empiricamente, estar de
acordo com o que era observável e acurado nas suas predições. Não havia nenhum
constrangimento no fato de dois modelos matemático-astronômicos incompatíveis um com o
outro serem ambos adequados empiricamente.

É exatamente o que Berkeley defende ao afirmar que "embora Newton e Torricelli pareçam
estar em desacordo um com o outro, eles defendem visões consistentes, e a coisa é
suficientemente explicada por ambos. Pois todas as forças atribuídas aos corpos são
hipóteses matemáticas, exatamente como eram as forças atrativas nos planetas e no Sol.
Entidades matemáticas, porém, não possuem uma essência estável na natureza das coisas, e
dependem da noção do definidor. Consequentemente, a mesma coisa pode ser explicada de
diferentes formas."

A física matemática só versa sobre aquilo que é quantitativo ou pode ser descrito em termos
quantitativos. Ela não tem condições de definir uma ontologia, ou seja, é incapaz de distinguir
qualitativamente um ente de um outro. Não há diferença quantitativa que distinga
essencialmente um ovo de um prego. As forças, a atração e a repulsão não são coisas na
realidade, mas somente quantidades mensuráveis de um je ne sais quoi que pode ser
diferentemente definido. É perfeitamente possível medir e quantificar aquilo cuja natureza
desconhecemos.

Resolvido o problema de como interpretar os princípios mecânicos utilizados na filosofia


natural, resta saber qual a natureza do movimento e da sua comunicação nos corpos. A
solução está dada desde o Treatise. Só há uma substância na realidade, o espírito ou a
mente, sendo todo o resto ideias inertes produzidas por Deus ou pelos espíritos finitos. A
filosofia natural encontra seu limite epistemológico naquilo que é observável, perceptível pelo
espírito. Logo, seu âmbito é o das ideias ordenadas e regulares produzidas por Deus.

A fonte do conhecimento das causas eficientes reais reside em uma ciência superior, a
filosofia primeira ou metafísica, cujo ofício é lidar com os entes incorpóreos, com as causas,
com a verdade e com a existência das coisas. A metafísica imaterialista de Berkeley elimina a
matéria enquanto um ente substancial e independente de nossas percepções, o que,
consequentemente, elimina na raiz o materialismo e o mecanicismo. A filosofia natural não
pode então ser o estudo da Natureza, considerada como um poder relativa ou completamente
independente de Deus.

O mecanicismo não pode ser nada além de uma hipótese matemática útil para os cálculos e
os raciocínios, jamais uma ontologia do mundo sensível. No fundo, o filósofo natural é um
estudioso do comportamento habitual do Autor da Natureza. O materialista, o mecanicista, o
ateu e o irreligioso são refutados de uma só vez pela eliminação da substancialidade da
matéria.

Cabe observar que a teoria antirrealista acerca da ciência moderna que Berkeley, embora se
siga logicamente de sua metafísica imaterialista, não depende em si mesma dessa metafísica.
Basta notar a sua origem na astronomia grega e a sua defesa historicamente por autores
muitos diferentes entre si em termos de (ou rejeição da) metafísica. Apenas para efeito de
ilustração, compare-se a posição de Berkeley sobre as hipóteses matemáticas com as teses
antirrealistas de Pierre Duhem e de Bas van Frassen.

Na sua obra La Théorie Physique, o físico, matemático, historiador e filósofo francês Pierre
Duhem defende que as teorias físicas são classificações naturais do comportamento
observável das magnitudes físicas sem qualquer pretensão de determinar as suas reais
naturezas. A física se limita a descrever matematicamente o que se observa, estando livre das
disputas da metafísica que, essa sim, almeja determinar a natureza das coisas. A pedra de
toque da aceitação de uma teoria física é a sua capacidade de salvar os fenômenos, a sua
adequação empírica.

Em seu livro The Scientific Image, o filósofo da ciência holandês Bas Van Fraassen define o
seu empiricismo construtivo como a tese segundo a qual o "objetivo da ciência é fornecer
teorias que são empiricamente adequadas, e que a aceitação de uma teoria envolve como
crença somente que ela é empiricamente adequada". Fraassen enfatiza que, embora ela deva
ser interpretada literalmente, não há nenhum compromisso de acreditar ipso facto nas
entidades postuladas pela teoria. E a adequação empírica significa apenas que o que a teoria
diz sobre as coisas e os eventos observáveis é verdadeiro, isto é, salva os fenômenos.

Tanto Pierre Duhem quanto Bas van Fraasen não esposam a metafísica imaterialista de
Berkeley. Na realidade, o antirrealismo científico em geral não implica quaisquer
comprometimentos metafísicos. No caso de Duhem, isso é ressaltado pelo próprio autor como
uma das vantagens de sua teoria. A física e a metafísica estariam tão bem distintas,

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separadas e independentes que os resultados de uma dessas disciplinas nunca poderiam ser
usados para refutar os resultados da outra.

...

Para uma versão mais detalhada:

Vista do O bispo contra o mago (opiniaofilosofica.org)

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: George Berkeley (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: Pierre Duhem (oleniski.blogspot.com)

Postado por Rogério da Costa (Oleniski) às 20:56 2 comentários:

Marcadores: artigos publicados, citações, epistemologia, filosofia, Filosofia da Ciência, filosofia


moderna, George Berkeley, história da ciência, Isaac Newton, metafísica, Pierre Duhem, teoria do
conhecimento

sexta-feira, 11 de agosto de 2023

Meister Eckhart, neoplatonismo e a


beatitude no Uno divino

"Toda mediação é estrangeira a Deus."

MEISTER ECKHART, Do Homem Nobre

O teólogo, filósofo e místico renano medieval (1260/1328) Meister Eckhart, em seu curto
tratado sobre o homem nobre, trata do tema da verdadeira beatitude humana. Fazendo uso de
uma passagem do Evangelho onde Cristo diz que "um homem nobre partiu para um país
distante a fim de ali ganhar um reino e retornar em seguida" (Lc 19,12), Eckhart desenvolve
sua concepção do destino último do ser humano no seio de Deus.

Há no homem duas naturezas, a exterior e a interior. A natureza exterior é o


velho homem sobre o qual falam as Escrituras, o homem carnal, voltado às coisas deste
mundo, escravo, terrestre, inimigo. A natureza interior é o homem novo das Escrituras, o
jovem, o amigo, o celestial, o homem nobre. Todos têm ao seu lado um anjo que inspira o
desejo pelas coisas belas, eternas e virtuosas, e um demônio que as tenta com as coisas
baixas, fugidias, passageiras e viciosas.

Tal como a serpente, por intermédio de Eva, conduz Adão à Queda, o demônio, por intermédio
do homem exterior, espezinha o homem interior. É justamente no homem interior, Adão, que
se encontra depositada a imagem e a semelhança de Deus, a semente da natureza divina, o
Filho de Deus. Ali se encontra a árvore boa que sempre dá bons frutos, ainda que seja
obscurecida pela árvore má do homem exterior. Mas a semente da natureza divina, o homem
interior, foi plantada por Deus e, portanto, não pode jamais ser destruída, por mais enterrada e
escondida que esteja.

Eckhart faz alusão obviamente à doutrina bíblica do Gênesis segundo a qual o homem foi
criado à imagem e semelhança de Deus. Porém, a tradição neoplatônica, em sua visão

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hierárquica da realidade, afirma também que a alma tem uma "parte voltada para cima", para
a realidade superior. Nas Enéadas de Plotino, por exemplo, a "descida" da alma não é a
habitação da alma no corpo material, mas sim a elevação do corpo ao inteligível efetuada pela
alma que permanece tal como era antes.

Isto é, a alma não está no corpo, ela permanece em sua própria natureza imaterial (sem lugar)
enquanto, ao mesmo tempo, o corpo participa, tem algo, da vida da alma. Poderíamos dizer
que o corpo é que se torna real e vivo pela participação na (ou imitação da) alma, que, por seu
turno, permanece em si mesma tal como era "antes" (não se trata de relação temporal)
voltada às realidades superiores à ela mesma. (Enéadas, VI, 4. 16, 10-15)

Na linguagem de Eckhart, há no ser humano o homem interior e o homem exterior, este


voltado às coisas deste mundo fugidio e aquele voltado às coisas celestes e eternas. Por mais
que o homem exterior obscureça, esconda, enterre o homem interior, jamais conseguirá
destruir sua imagem e semelhança com Deus. Isto é, há uma dimensão fundamental no ser
humano que é uma semente da natureza divina que não pode ser maculada ou destruída, que
é como a árvore que sempre dá bons frutos, e que brilha mesmo que esteja escondida ou
enterrada.

Note-se o quanto o tema evangélico do tesouro escondido está em consonância com o que
defende o mestre Eckhart: “O Reino dos Céus é como um tesouro escondido num campo.
Alguém o encontra, deixa-o lá bem escondido e, cheio de alegria, vai vender todos os seus
bens e compra aquele campo" (Mt 13, 44-52). Simbolicamente, o campo é o próprio homem
que descobre em si mesmo essa dimensão fundamental escondida sob a terra de suas
próprias ações mundanas e voltadas às coisas passageiras e viciosas.

Ele deixa o tesouro lá, bem escondido, ou seja, não o pode resgatar de imediato porque ainda
não pertence a ele, pertence ao homem exterior. O que ele faz é vender seus bens e comprar
o campo para desencavar o tesouro e dele tomar posse. Vender seus bens é abandonar o
homem exterior com seus vícios e desejos pelas coisas cambiantes e passageiras. Mais
profundamente, é retirar os obstáculos, desfazer-se daquilo que está escondendo o tesouro,
abrir passagem, limpar, tirar o acessório, desnudar-se, abandonar as adições feitas à sua real
natureza. Ser a parteira de si mesmo.

Ora, citando Agostinho, Eckhart prossegue seu tratado afirmando que no primeiro grau do
homem interior acontece quando se busca imitar os exemplos dos homens bons e santos. O
segundo grau é alcançado quando não mais são seguidos os bons e os santos e sim os
conselhos e a Sabedoria de Deus. No terceiro, a comunhão com o Senhor é tal que nem
sequer a possibilidade de fazer o mal sem punição é mais tentadora. Só Deus interessa e tudo
o que d'Ele afaste aborrece e desagrada.

Quando alcança o quarto grau, o homem está disposto a sofrer quaisquer adversidades,
provas, sofrimentos e contrariedades de bom grado. No quinto grau, vive somente em si
mesmo, absolutamente mergulhado na paz da Sabedoria de Deus. O grau mais avançado, o
sexto, para além do qual não há nenhum outro, é o da identificação com o Eterno, no qual o
homem é "despojado dele mesmo e transformado pela eternidade de Deus, quando alcança o
completo esquecimento da vida temporal com tudo isso que ela tem de perecível, dirigido e
transfigurado em uma imagem divina, se tornou uma criança de Deus."

O homem nobre, o homem interior, a semente da natureza divina plantada nos seres
humanos, diz Eckhart citando Orígenes, é comparável a um fonte d'água sobre a qual foi
jogada terra até que ficasse encoberta. Tão logo se retire essa cobertura, ela voltará a ser
usada como fonte. A comparação seguinte é ainda mais significativa. Ao contrário da tradição
que afirma que o artista impõe à matéria a ideia da estátua que tem em sua mente, Eckhart
diz que o artista remove as lascas que cobriam e escondiam a estátua.

Essa maravilhosa imagem contraria frontalmente a concepção aristotélico-tomista da


produção (ποίησις) dos artefatos. O produtor ou artista exerce sua arte (τέχνη) no curso
mesmo do processo em que imprime uma Forma que estava em seu intelecto em uma
matéria preexistente. Nesse caso, a arte é uma ação causal transitiva de sujeição da matéria
a um padrão abstrato. Eckhart transforma o artista em uma espécie de parteiro socrático,
eliminando com seus golpes, assim como Sócrates com suas perguntas, os obstáculos que
encobrem e escondem a estátua, ou o conhecimento, que já está lá esperando somente para
ser des-coberto.

O tema é platônico, evidentemente. Agostinho, no seu livro A Trindade, tratando do preceito


délfico conhece-te a ti mesmo, exorta o leitor que deseja conhecer a sua própria alma (mens,
no Latim) a abandonar os dados sensíveis e as imagens dos dados sensíveis, isto é,
abandonar aquilo que não é a alma, e que a ela foi acrescentado:

"E esta é a sua impureza, porque, ao tentar pensar em si sozinha, julga ser aquilo sem o qual
não se pode pensar a si mesma. Quando, pois, lhe é ordenado que se conheça a si mesma,
não se deve procurar como se fosse separada de si, mas deve separar de si aquilo que a si
acrescentou. (A Trindade, X, 8-11)

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Não é necessário sair de si mesmo, buscar algo exterior, mesmo que sejam as boas obras. O
que é preciso é retirar os obstáculos, não para enxergar corretamente a realidade externa,
mas para ser aquilo que sempre fomos. O homem nobre de quem Cristo fala é o homem que
se desfez das imagens e de si mesmo, que se fez estrangeiro a todas as coisas, ensina
Eckhart. A diferença repousa nas adições, afirmava Plotino nas Enéadas. O que resta quando
todas as adições, as diferenças, são removidas? O Uno.

Eckhart enuncia então o centro de sua doutrina da beatitude asseverando que toda mediação
é estrangeira a Deus. Tanto esta primeira afirmação quanto aquelas que serão apresentadas
em seguida estão em consonância com a tradição neoplatônica do Uno. A questão é saber de
que forma a henologia neoplatônica pode ser combinada com o trinitarismo cristão. Segundo o
dogma, Deus é uma Trindade consubstancial formada por três hipóstases, o Pai, o Filho e o
Espírito Santo.

As três Pessoas divinas possuem igualmente uma e a mesma natureza divina (ὁμοούσιος),
sem que as distinções entre Pai, Filho e Espírito Santo firam a absoluta homogeneidade e
unicidade de Deus. O neoplatonismo vê no Uno (Hen, Τὸ Ἕν) a realidade última e fonte de
todas as coisas. Se toda mediação é estrangeira a Deus, a Trindade, ela mesma, não se
constitui em uma mediação a ser ultrapassada? A resposta de Eckhart é neoplatônica e cristã
a um só tempo.

O homem nobre encontra a beatitude no Um, a natureza divina compartilhada pelas três
Pessoas. Nenhuma distinção existe na natureza de Deus e nem nas pessoas divinas segundo
a unidade de sua natureza. A natureza divina é Um, e cada pessoa é igualmente Um, esse
mesmo Um que é sua natureza, escreve Eckhart. Levando até as últimas consequências a
consubstancialidade da Trindade, isto é, a natureza divina igualmente presente nas três
Pessoas, Eckhart pode encontrar o Uno que é o fundo comum.

Em certo sentido, o místico renano quer penetrar na absoluta unicidade divina "anterior" às
Pessoas. Ele preserva o dogma trinitário intacto, pois ninguém na Cristandade negará que
Deus é uma Trindade consubstancial, ou seja, com a mesma substância, ou a mesma
essência, ou a mesma natureza. É precisamente nesse divino consubstancial, "anterior" a
tudo, o Um absoluto, que reside a beatitude. Formalmente, estão preservadas as Pessoas
divinas, assim como a unicidade consubstancial que impede a Trindade de se tornar um
triteísmo.

Eckhart prossegue dizendo que "a distinção entre ser e essência é reabsorvida no Um e não
faz mais do que Um. É somente quando o Um cessa de estar nele mesmo que ele recebe,
possui e fornece uma distinção. Eis a razão pela qual é no Um que se encontra Deus, e
também a razão pela qual aquele que quer encontrar Deus deve ele mesmo se tornar um."

No interior do Um, a distinção entre ser e essência se desfaz. Grosso modo, o ente, qualquer
que ele seja, tem seu ser, sua existência, idêntico a qualquer outro existente, mas se distingue
de todos os outros por sua essência, aquilo que ele é, seu modo de ser. A distinção primordial
da realidade se dá entre o ser como o caráter mais universal de tudo o que existe, existiu e
pode existir, e a essência, aquilo que determina à qual classe, tipo ou modo de ser o ente
pertence. Por exemplo, o gato e o livro existem igualmente, porém diferem no tipo de ser que
cada um é.

Eckhart, quando fala do Um, está se referindo à realidade anterior à essa distinção primordial
entre ser e essência, portanto, anterior a qualquer distinção. Toda multiplicidade se dá a partir
da distinção, e esta é fundada na unidade, se resolve em uma unidade subjacente. Em termos
neoplatônicos, Eckhart está afirmando que Deus se encontra lá no Uno, onde a Díada é
ultrapassada, e que, consequentemente, quem quer encontrar Deus deve se despojar de suas
próprias características distintivas.

"Antes da Díada está o Uno. A Díada é a segunda e, tendo vindo do Uno, o Uno impõe a ela
definição, enquanto ele mesmo é indefinido", ensina Plotino (Enéadas, V, 1, 5). Em sua
filosofia, Plotino identifica a Díada ao Ser ou Intelecto (νοῦς), onde as Ideias eternas existem
justamente porque cada uma recebeu sua definição. Ali se encontra o início do mundo da
Identidade e da Diferença, no qual ser X, implica necessariamente em não ser Y.

Eckhart declara sem peias que "na distinção não se encontra o Um, nem Ser, nem Deus, nem
repouso, nem beatitude, nem satisfação. Em verdade, se tu fosses verdadeiramente um, tu
permanecerias igualmente um na distinção, e a distinção se tornaria para ti o Um, não
podendo mais em nada te fazer algum obstáculo." A beatitude só se realiza no Um. Viver no
Um é possível mesmo no mundo da distinção, tal qual se mostrou acima no sexto grau do
homem interior.

"O Reino de Deus está dentro de vós", disse o Senhor. A vida beatífica começa aqui para
aquele que vive no mundo da distinção interiormente mergulhado no Um. O que Eckhart está
ensinando pode ser traduzido em termos metafísicos nas afirmações de que tudo aquilo que
procede do Princípio necessariamente possui uma existência derivativa, e, que, portanto,
nunca pode se constituir em obstáculo comparável ao Princípio. Se toda multiplicidade se
reduz à uma unidade subjacente, essa unidade que serve de fundamento não pode ela

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mesma ser comparável com a multiplicidade a que ela dá origem.

Há uma relação de anterioridade ontológica, não temporal, entre o Um e a distinção. O Um


fundamenta e dá origem à distinção não como se ela fosse algo completamente diferente dele
mesmo. Não há o Um e a distinção, como se estivessem ambos no mesmo nível de realidade,
só que em lados opostos. Na realidade, há o Um, e a distinção é o mesmo Um manifestado
como limitação, determinação, delimitação. A distinção é, portanto, derivativa, não tem
realidade em si mesma.

Por essa razão, Ulrich de Strasburg, outro renano como Eckhart, chamava os seres limitados
de falsos seres. Não porque eles não existam de nenhuma maneira, mas porque eles existem
de uma forma muito tênue, derivativa e dependente de Deus, o único que realmente pode ser
dito existente. Vê-se que a distinção e a multiplicidade não podem ser postas no mesmo nível
do Um como se fossem opostos igualmente existentes.

Ora, sendo assim, a beatitude começa aqui e agora para aquele que enxerga tudo no Um. O
homem nobre, segundo a descrição de Eckhart, é um com o Um, de tal modo que toda
distinção que o cerca, justamente por sua natureza derivativa, não se constitui em obstáculo à
beatitude já na vida terrestre. É assim que o homem deveria ser um, afirma Eckhart, pois
Cristo disse que "o homem partiu". O que significa essa partida?

Eckhart sugere primeiramente que o significado de homem seja o do ser que se inclina e se
submete inteiramente a Deus, com tudo o que ele é e possui, que eleva seus olhos a Deus e a
mais nada. Essa é a perfeita humildade. Homem também significa algo que está acima da
natureza, acima do tempo, e de tudo que está ao sabor do tempo. O mesmo vale para o
espaço e a corporeidade. De certa maneira, o homem nada tem de semelhante com qualquer
outra coisa, encontrando-se nele somente a vida, o ser, a verdade e a bondade puras. Quem
é assim feito, ele somente é o homem nobre.

"O homem partiu" porque é da natureza humana verdadeira partir, deixar de ser o que é para
habitar na indistinção do Um. O homem nobre é aquele cuja humildade é tão perfeita que ele
se despoja inclusive de seu próprio ser, de sua própria distinção, para ser um com o Um.
Imerso no Um, o homem nada tem de semelhante a qualquer outra coisa, está acima do
tempo, da corporeidade, do espaço e da natureza. Toda distinção e toda multiplicidade foram
suspensas. Para aquele que é um com o Um, só há o Um.

O mestre renano assevera que aqueles que conhecem Deus sem véus, conhecem também
todas as criaturas. Quando alguém conhece as criaturas elas mesmas, com todas as suas
distinções, denomina-se isso de conhecimento da noite. Por outro lado, quando alguém
conhece as criaturas em Deus, denomina-se conhecimento da manhã, pois as criaturas são
vistas sem a menor distinção, desprovidas de toda imagem, libertas de qualquer semelhança
com qualquer coisa, imersas no Um que é Deus.

O homem nobre é esse que vê tudo em Deus. Essa formulação ainda é inexata e algo
enganadora. O que Eckhart quer expressar é absolutamente indizível. Nossa linguagem não
foi feita para essas alturas divinas. O homem nobre é aquele que fez a renúncia de seu
próprio ser, o falso ser das criaturas, e somente reconhece o Um como realidade. A
profundidade metafísica do que Eckhart está defendendo passará desapercebida a um olhar
superficial.

Não se trata aqui de uma concepção costumeira de beatitude, de uma comunhão


paradisíaca com Deus aos moldes da piedade comum. Eckhart está dizendo que para o
homem nobre a beatitude consiste, se posso formular desse modo, no retorno ao momento
imediatamente anterior à sua própria criação. É óbvio que aqui as referências temporais não
têm sentido literal. A ideia é que a beatitude verdadeira consiste naquela realidade pré-
distinção, antes de cada coisa se tornar o que é, em que estavam todos os seres em Deus
indistintamente como possíveis.

Isso não significa que Eckhart esteja negando ou lamentando o fato da Criação. A distinção
não impede o homem nobre de estar imerso no Um. O que o mestre renano está dizendo é
que a verdadeira beatitude passa pelo abandono do próprio ser, pela humilde negação de sua
própria substancialidade, e, consequentemente, pelo reconhecimento de que só há realmente
um existente, Deus, o Um, para além de todas as distinções. Sob esse ângulo, é possível
compreender melhor o que Eckhart diz em seguida sobre o homem nobre.

Vários teólogos da época do mestre renano afirmavam que a beatitude consistia no


conhecimento de que se conhece Deus. Eles argumentavam que não faria nenhuma diferença
gozar do conhecimento de Deus sem a consciência de que se está conhecendo Deus. Contra
eles, Eckhart opunha a sua concepção de beatitude na qual a alma contempla a Deus sem
véus, e lá, "no próprio fundo de Deus, ela não sabe nada do saber e nem nada do amor, nem
absolutamente nada de nada. Ela repousa inteira e exclusivamente no ser de Deus, e não
conhece nada além do ser e de Deus."

Compare-se a concepção eckartiana com a seguinte passagem das Enéadas, VI, 9.7: "(...) a
alma deve ignorar tudo, especialmente as coisas da percepção sensível, mas também em

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formas, e então, na consideração do Uno, chegar a ignorar a si mesma. E quando a alma vier
a estar com o Uno, e, de certo modo, estiver comungada com ele em um grau suficiente,
então ela deverá contar aos outros sobre esse contato íntimo, se for capaz."

A alma entra em si mesma, saindo das percepções sensíveis e denão tudo o que possui
forma, portanto distinção, até alcançar o Uno, ignorando a si mesma. Comunhão com o Uno,
por assim dizer, implica o esquecimento de si mesmo, dado que no Uno nenhuma distinção
permanece. Entretanto, essa comunhão se acontece já nessa vida dentro da distinção, pois a
alma deve dar testemunho aos outros do contato íntimíssimo com o Uno. Se for capaz disso,
uma vez que nossa linguagem só comporta o que é distinto.

A rejeição de Eckhart da beatitude como conhecimento do conhecimento de Deus, ou o saber


que se está conhecendo Deus, também encontra paralelos na tradição neoplatônica antiga.
Note-se que o conhecimento implica, sutilmente no caso dos intelectos não ligados a um
corpo, uma certa dualidade entre o inteligente e o inteligido. Mesmo que o intelecto se torne
aquilo que ele intelige, ainda assim o intelecto não é absolutamente idêntico ao inteligido.

Em uma linguagem mais simples, e não totalmente correta, a questão é que o pensamento
implica sempre alguma distinção entre aquele que pensa e aquilo que é pensado. Da mesma
forma, o conhecimento é uma relação, como já dizia Aristóteles nas Categorias. O
conhecimento é sempre conhecimento de algo. Neoplatônicos como Plotino usaram esse
caráter dual da intelecção para negar ao Deus de Aristóteles, que "pensa a si mesmo", o posto
de primeiro princípio.

"Aquilo que pensa é duplo, mesmo se pensa a si mesmo, e é deficiente pelo fato de que tem
seu bem em seu pensamento e não em sua existência." (Enéadas, III, 9,7) Em outra
passagem, é dito que "Aristóteles disse depois que o primeiro princípio era 'separado' e
'inteligível', mas quando afirmou que ele 'pensa a si mesmo', ele não o fez mais o primeiro
princípio." (Enéadas, V, 1,9). Por conseguinte, e Plotino o declara explicitamente, o primeiro
princípio, o Uno, não intelige, não pensa.

Entende-se agora facilmente por qual motivo Eckhart defende que a beatitude não é
conhecimento. Se fosse conhecimento, a alma permaneceria no âmbito da distinção.
Compreende-se igualmente a razão pela qual o mestre renano afirma que no Um a alma não
sabe de nada sobre nada. Saber algo é "descer" ao nível da distinção, é sair do Um tal como
Deus é na Sua absoluta indistinção. Nada que implique ou sugira alguma mínima distância,
como o amor e o conhecimento, pode existir no Um.

Saber que conhecemos Deus é parte da beatitude, mas não seu cerne. Muito diferente é o
calor e o fogo que o calor produz. "Um homem nobre partiu para um lugar distante para
ganhar um reino e depois dali retornar". O homem deve entrar em si mesmo, ser um com o
Um, contemplar somente o Um, e depois "retornar", isto é, saber e conhecer que ele conhece
algo de Deus. Nessa bela interpretação da passagem evangélica, Eckhart não nega o
conhecimento, mas o encaixa na hierarquia ontológica da realidade.

Saber que conhecemos algo de Deus corresponde à descida ontológica do Um à distinção, do


Uno à Díada. Porém, conhecer Deus (ser um com o Um) é justamente não saber nada de
nada, nem de si mesmo, pois no Um não há distinção. Na linguagem de um místico
neoplatônico posterior a Eckhart, o cardeal alemão Nicolau de Cusa, temos de Deus somente
a Douta Ignorância, pois Ele é a Possibilidade Absoluta na qual estão contidas todas as coisas
na condição de coincidentia oppositorum.

Conhecer Deus consiste em nada saber. Se o homem soubesse algo ao conhecer Deus, ele
não conheceria Deus, e sim outra coisa qualquer. Conhecer Deus implica não ser mais aquilo
que se é, implica perder-se completamente no fundo indistinto da realidade incognoscível do
Um. "Mas você não poderá ver a minha face, porque nenhum homem poderá continuar vivo
depois de me ver" (Êxodo, 33, 20). Nada há na existência ao lado do Um sem segundo. Ver
Deus é deixar de existir.

O homem nobre, é preciso que se diga, não afirma sua identidade com Deus. Não se trata do
orgulho luciferiano ou da tentação da serpente que sussurra "sereis como deuses". Ao
contrário, o que Eckhart enfatiza é a pobreza ontológica das criaturas. Frente ao Deus
verdadeiro, não somos nada, desaparecemos, e só Ele resta na Sua glófia infinita. Imagine-se
a arrogância de quem ainda pretende afirmar sua existência mesmo diante do único
Existente!

É por isso que Meister Eckhart encerra seu opúsculo afirmando "o Um com o Um, o Um do
Um, o Um no Um, e, no Um, eternamente Um!"

...

Leia também:

Νεκρομαντεῖον: neoplatonismo (oleniski.blogspot.com)

Νεκρομαντεῖον: mística (oleniski.blogspot.com)

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Postado por Rogério da Costa (Oleniski) às 16:02 2 comentários:

Marcadores: antroplogia filosófica, citações, filosofia, filosofia da religião, Filosofia medieval, Idade
Média, Meister Eckhart, metafísica, mística, neoplatonismo, Plotino, religião

sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Ulrich de Strasburg, neoplatonismo


medieval e teologia mística

"É evidente, portanto, que o Ser divino é um ser verdadeiro, pois nada há n'Ele que não seja
Ele. Ao contrário, cada criatura, porque é necessariamente um ente especial diferente dos
outros, possui, além do ser comum a todos, outra coisa que penetra na natureza do ente
como a determinação no determinado e que o especifica e o distingue dos outros. Com efeito,
uma mesma coisa não pode ao mesmo tempo fundar uma conveniência e uma diferença. Eis
porque a criatura é um falso ser."

ULRICH DE STRASBURG, De Summo Bono, II, 2, 4.1

A tradição platônica (ou neoplatônica) esteve presente por toda a Idade Média principalmente
pelas obras de Agostinho de Hipona e de Dionísio Areopagita. Porém, as obras de Platão,
assim como as de Aristóteles e de outros pensadores gregos, em sua maioria não eram mais
acessíveis aos europeus após a queda do Império Romano do Ocidente no século V. Partes
do Órganon aristotélico e do Timeu platônico foram basicamente as únicas fontes da filosofia e
da ciência medievais até o influxo extraordinário das traduções ao Latim das obras de
Aristóteles no século XII em diante.

Junto a essas traduções de Aristóteles, e atribuídas a ele, vieram muitas obras de


procedência diversa, como o Liber de Causis, que na verdade se tratava de parte dos
Elementos de Teologia de Proclo, o filósofo neoplatônico do século V D.C.. Vê-se o quão
errônea é a tese segundo a qual Aristóteles reinou absoluto pelos mil anos da Idade Média.
Na realidade, antes de sua chegada, por assim dizer, havia uma tradição platônica muito bem
assentada, e da qual se pode traçar a continuidade até Nicolau de Cusa, Marsilio Ficino, Pico
Della Mirandolla, e mesmo, no caso do agostinianismo, René Descartes e outros modernos.

Em seu excelente livro La Mystique Rhénane, o filósofo e historiador da filosofia medieval


Alain de Libera estuda a tradição platônica que alemã da região do Reno que, sob a influência
de Alberto Magno, desenvolve uma metafísica que deságua na mística de Meister Eckhart e
seus discípulos. Nessa linha de desenvolvimento, há a tentativa de união e de síntese do
neoplatonismo latino de Agostinho, do neoplatonismo grego de Dionísio Areopagita, da
teologia henológica de Proclo e, logicamente, da fé cristã católica.

O frade dominicano alemão Ulrich de Strasburg (1220/1277) é um dos filósofos e teólogos


dessa corrente renana, e como seu contemporâneo Tomás de Aquino, um discípulo de Alberto
Magno. Apesar de compartilharem o mestre, Ulrich e Tomás seguem caminhos muito
diferentes na filosofia. O neoplatonismo renano de Ulrich possui bases bem diferentes das do
aristotelismo tomista.

A obra mais importante de Ulrich é De Summo Bono (Sobre o Bem Supremo), que, segundo
Alain de Libera, foi eclipsada pela Summa Theologica de Tomás de Aquino. A metafísica
exposta no livro parte do Bem supremo até o bem participado, os entes, e destes sobe ao
Bem supremo, como é típico do neoplatonismo.

Segundo Ulrich, o homem pode conhecer algo de Deus pela razão natural, isto é, somente

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pelo uso do raciocínio filosófico sem auxílio da fé. Entretanto, é mister distinguir entre
conhecer e compreender. Deus é a um só tempo cognoscível e incognoscível. Aqui Ulrich
introduz algumas distinções interessantes.

Deus é incognoscível porque o intelecto humano só apreende aquilo que é um ente ou um ser.
Isto é, o ser humano só pode conhecer aquilo que é limitado, o que é isto ou aquilo. Ulrich
chama os entes de primeiras emanações da divina Bondade. Essa afirmação não é estranha
a quem conhece as Enéadas de Plotino, onde a incognoscibilidade do Uno se deve
justamente à incapacidade do intelecto de captar aquilo que não seja delimitado.

Deus, portanto, não é um ente. É incognoscível por conta da incapacidade intelectual humana
de captar aquilo que não seja um ente. Por outro lado, Deus é cognoscível, pois sendo um
intelecto, alguma semelhança há entre Ele e os seres humanos, possibilitando que O
conheçamos pelos Seus efeitos. Mesmo assim, não conhecemos o que Deus é (quidditas) e
nem como Ele é em si mesmo.

Ulrich entende haver cinco vias de conhecimento de Deus, sendo a primeira um conhecimento
confuso que é ativado pela experiência da causalidade. Todos os homens possuem
naturalmente uma noção confusa, vaga, da existência de Deus. Esse instinto ou sentimento
não é uma prova da existência de Deus, mas uma predisposição para a prova. Quando o ser
humano tem a experiência empírica da causalidade, ele forma a noção clara de uma Causa
Primeira.

A segunda via é a da negação, onde, no âmbito da teologia simbólica, afirmamos e negamos,


ao mesmo tempo, um certo nome ou atributo. Por exemplo, se as Escrituras dizem que o
Senhor é como um leão, negamos que Ele seja literalmente um leão ao mesmo tempo em que
afirmamos que há no leão algo que recorda uma perfeição que está infinitamente em Deus.

A terceira via é a da causalidade, segundo a qual toda perfeição que está no efeito, está
também na causa. O que significa que, remontando dos efeitos às causas, chegamos ao
conhecimento de que a Causa Primeira possui em Si mesma todas as perfeições que estão
em todos os Seus efeitos.

A quarta via é a da eminência ou teologia mística. Tudo o que sabemos de Deus, sabemos
por meio das coisas que são Seus efeitos. Contudo, quando atribuímos perfeições a Deus,
nós as atribuímos segundo a medida das coisas que conhecemos, ou seja, de modo sempre
limitado. Por exemplo, se dizemos que Deus é bom, a bondade que a Ele atribuímos é só a
bondade limitada que conhecemos, e não a Bondade tal como é essencialmente em Deus.

Todos os termos e conceitos atribuídos a Deus, portanto, são sempre inadequados. A única
forma de designar Deus é a negação por superabundância, como defendia Dionísio
Areopagita. Se dissermos que Deus não é uma substância (um ente), não estamos dizendo
que Ele é menos que uma substância (menos que um passarinho, por exemplo), mas, ao
contrário, que Ele é suprassubstancial, acima de qualquer limitação de qualquer ente real ou
possível. O termo que Dionísio Areopagita utiliza frequentemente na Teologia Mística e no Os
Nomes Divinos é supraessencial (ὑπερούσιος, além do ser).

A quinta via é a perfectibilidade do intelecto. Na medida em que o intelecto humano pode


sempre se elevar a realidades cada vez mais altas, mais imateriais, ele alcança as
substâncias separadas, se assimila a elas, e, assim, conhece e se torna o intelecto divino. É
pelo fato de o homem ser um ente intelectual que ele pode ter como fim último a perfeição de
seu intelecto no conhecimento puro do intelecto divino. Não significa que haverá como
conhecer Deus tal como Ele é. O intelecto humano é finito, limitado, mas, por isso mesmo, é
perfectível.

Deus tem no Ser a Sua emanação primeira ou ainda a primeira forma em que todas as formas
se resolvem. O que Ulrich quer dizer é que o Ser é a única criação divina, isto é, tudo o que há
na realidade, tudo o que foi e tudo o que pode haver na realidade é, foi e será sempre ente,
um isto ou um aquilo. Em outros termos, Ulrich está afirmando que a criação primária de Deus
é a limitação, o ser isto ou o ser aquilo. E o filósofo alemão identifica o Ser com
o Intelecto divino.

Nisso ele está novamente de acordo com a tradição neoplatônica do Uno e da Díada
Indeterminada que é afirmada também nas Enéadas. O Uno é a origem do Nous (o Intelecto
ou o Ser), o cosmos noético onde residem as Ideias ou Formas, os modelos eternos de todas
as coisas deste mundo. É no Intelecto que nasce a multiplicidade e, portanto, a limitação, pois
uma Ideia não pode ser idêntica formalmente à outra Ideia. Na Enéada V, 4.2, o divino Plotino
afirma que:

"A intelecção vê o inteligível e se volta para ele, sendo dessa forma tornado perfeito. Ele é, de
si mesmo, indefinido como a visão, e tornado definido pelo inteligível. Por essa razão é dito
que 'da Díada Indeterminada e do Uno' vêm as Formas ou Números. Pois isso é o Intelecto."

Então, o Intelecto divino de Ulrich é o Ser indeterminado, o Ser enquanto Ser, que só se
determina e se manifesta nos seres, nisto e naquilo, da mesma forma em que são as Ideias
que manifestam de modo determinado o poder indeterminado do Intelecto de inteligir algo.

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Não será errôneo, creio, afirmar que o Intelecto ou o Ser de Ulrich, a primeira emanação,
possa ser entendido como o princípio de determinação dos seres, e, por isso mesmo, o
princípio da criação dos seres.

Todo ente, qualquer que seja, para entrar na realidade, deve já estar determinado, limitado,
definido dentro de certas categorias, espécies, gêneros, classes, etc. O Ser de Ulrich é o
princípio determinante que "coloca" cada ente na realidade por meio de sua determinação
dentro de algumas dessas categorias, espécies, gêneros, etc. O Ser é a determinação
primeira e fundamental de todo e qualquer ente.

Contudo, o frade dominicano alemão, enquanto católico, reconhece que o nome de Deus
proclamado nas Escrituras, Eu Sou Aquele que Sou (Êxodo 3,14), se refere à essência divina.
A questão é como conciliar essa afirmação com a distinção neoplatônica realizada acima
entre Deus e o Ser. Ulrich admite que biblicamente Deus é o Quid Est, Aquele que é, mas
uma distinção capital deve ser feita entre o que significa Ser em Deus e nas coisas.

Ora, obviamente, por tudo o que foi dito anteriormente, não há comparação entre Deus e os
entes finitos. Logo, ao afirmar que Ele é Aquele que é, as Escrituras se referiam não ao modo
de ser dos entes deste mundo, mas sim a um Ser Absoluto. O que equivale, segundo Ulrich, a
dizer que Deus é suprasser ou supraessencial. Em certo sentido, em analogia com os entes,
Deus não é um ente como um passarinho é um ente. Em outro, enquanto fonte eterna de
tudo, só Ele merece realmente o nome de Ser. Só Deus existe no sentido pleno da palavra, as
coisas existem somente em sentido análogo.

Ulrich repete aqui a distinção neoplatônica entre o Uno e o Ser ou Intelecto, aplicando-a ao
texto bíblico de modo a afirmar que, assim como o Uno, Deus não é o Ser considerado como
um princípio de delimitação e de multiplicidade que une todos os entes, mas, por outro lado,
Deus é o Ser quando este é considerado como uma afirmação da Sua absoluta existência
como fonte última de tudo aquilo que há e pode haver. É enquanto Causa Primeira dos entes
que pode se afirmar alguma analogia, alguma comparação, entre Deus e as criaturas.

Creio que é possível afirmar que distinção entre Deus e os entes (ou criaturas) reside
exatamente na distinção. Assim como o tempo só existe para os entes do mundo temporal, a
distinção só existe para os entes distintos. Apesar de não ser uma afirmação explícita de
Ulrich, o que vai acima parece se encaixar bem na tese do dominicano alemão segundo a
qual "o Ser divino é um ser verdadeiro, porque nada há n'Ele que não seja Ele."

Como disse anteriormente, todo ente para entrar na realidade já entra determinado, limitado,
definido por alguma espécie, classe, tipo, etc. Todos os entes possuem em comum a
característica de que eles só existem sendo algo, sendo instância ou exemplar de um tipo de
ser. Essa é a primeira e fundamental determinação a partir da qual todas as outras se
seguirão, como as potencialidades próprias do tipo de ser que o ente é, as possibilidades e
as impossibilidades daquele tipo de ente, etc.

Todavia, o que a coisa é distingue-se da sua existência. O livro existe tanto quanto o
computador no qual escrevo, mas ninguém diria que um livro é um computador. No simples
ato de existir, o livro e o computador não se distinguem. No ato de existir como um livro
ou como um computador eles se distinguem absolutamente. Isto é, o modo de ser de um livro
é diferente do modo de ser de um computador. A distinção nasce no modo de ser do ente.

Em Deus nada há de distinto, portanto nada há de limitado. Por essa razão Ele existe no
pleno sentido da palavra, simpliciter. Os entes só existem em um sentido análogo, não
possuem seu ser, mas o recebem de um outro. Cada um dos entes deste mundo,
individualmente, passou a existir, teve uma causa. Isso significa que receberam a existência
de outro. Não possuem a existência como algo que lhes seja próprio. Os entes, diz Ulrich de
Strasburg, possuem um falso ser (falsum ens).*

Os entes não possuem o ser por si mesmos, só existem porque uma causa já existente as
trouxe à existência. O ente é um nada em potência. Diz Ulrich sobre o ente que "...o ser não
se encontra nele absolutamente, não possui existência a não ser por conta de sua causa, é
um não-ser em potência; 'em potência', no sentido da potência condicionada, isto é, na
previsão do caso onde onde a influência de sua causa seria retirada. Essa potência a não-ser
é aquela de um nada."

O que o frade dominicano alemão quer dizer não é de difícil compreensão. Os entes deste
mundo só existem na medida em que são trazidos à existência por outros já existentes, e são
mantidos na existência por uma série de condições. Retiradas as causas e as condições, os
entes retornariam à não existência, ao nada. Por isso, aos entes não cabe plenamente os
termos ser e existir. Existindo, as coisas tendem ao nada, porque por si mesmas elas são
nada.

Não houvesse Deus, a Causa Primeira, o verdadeiro existente, não haveria nenhum ente na
realidade. A existência divina, no entanto, não é a de um ente, de um isto ou de um aquilo. O
Ser de Deus é a pura existência sem determinação. Ausentes as determinações, estarão
ausentes as limitações ontológicas que caracterizam os entes. O que é ilimitado não necessita

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de causa, é Ele mesmo a Causa de tudo.

Como assinala Alain de Libera, em Ulrich de Strasburg, acontece uma síntese do


neoplatonismo latino de Agostinho centrado na metafísica do Ser e do neoplatonismo grego
de Dionísio Areopagita centrado na henologia do Uno. Por conta do texto bíblico, o frade
alemão reinterpreta o Eu Sou Aquele que Sou do Gênesis em termos neoplatônicos. O Ser ou
Intelecto, que na teologia natural de Ulrich era a primeira emanação de Deus, correspondia
perfeitamente ao esquema neoplatônico do Uno e do Ser ou Intelecto.

Logicamente decorria daí o apofatismo da teologia mística, dado que tudo o que o ser humano
poderia captar com seu intelecto limitado estava contido de forma principial no Ser ou
Intelecto, para além do qual havia somente a realidade indizível e incognoscível de Deus
assimilado ao Uno livre de toda multiplicidade e de toda delimitação. O mundo do Ser, ou seja,
o mundo dos entes, era a emanação primordial de Deus, o supraessencial, o Uno indizível
para além do Ser.

A partir desse ponto de vista, não haveria nenhum problema em dizer que Deus não é um
ente, ou, mais ousadamente, que Deus é Não-Ser, ou pior, que Deus não existe. A negação
da teologia mística, da teologia apofática, não é uma simples privação, como dizer "João não
é rico". A negação é uma medida de preservação da absoluta transcendência do Princípio de
todas as coisas. Afirmar que Deus é bom é correto, mas somente na medida em que temos
em mente que a bondade é um termo limitado, relativo, e, portanto, inadequado para se referir
ao Princípio.

A distinção só existe para o distinto, então o que para nós aparece como perfeições distintas
ou separadas (bondade, razão, amor, etc.), em Deus são uma só e mesma coisa
infinitamente. A definição do discurso apofático que formulei e utilizo é a de que o apofatismo
afirma a perfeição para negar a imperfeição, e nega a perfeição para negar imperfeição. Isto
é, toda perfeição é justamente atribuída a Deus para que nenhuma imperfeição seja pensada
em relação a Ele, porém, ao mesmo tempo, é necessário negar até mesmo essas perfeições
que atribuímos a Deus, não porque Ele não as possua, mas porque elas são imperfeitas
quando comparadas à infinitude divina.

Afirmar apofaticamente que Deus é Não-Ser, ou mesmo que Ele é Nada, não significa privar
Deus da existência. Significa enfatizar o fato de que os termos e os conceitos humanos, ainda
que sejam os mais elevados possíveis, não podem definir o que Deus é. Quando um místico
afirma que Deus é Nada, não se refere à absoluta ausência de qualquer coisa, ou à simples
inexistência de algo. O místico se refere justamente àquele fundo sem determinações, o Uno,
ou Deus, que ultrapassa o Ser, o mundo dos seres determinados.

Se a nossa linguagem, os nossos conceitos e o nosso intelecto só podem lidar com o que é
delimitado, então que outro nome dar à essa realidade divina que está para além das
determinações senão Não-Ser ou, mais diretamente, Nada? Não à toa, na sequência da
mística renana, Meister Eckhart chamará Deus, entre outros termos, de Uno, de Fundo e,
finalmente, de Nada.

A linguagem bíblica, no entanto, denominava Deus como Aquele que É, uma afirmação da
perfeição do Ser divino. Ulrich de Strasburg efetua uma apofatização da metafísica do Ser na
medida em que considera que o ser dos entes, o ser das criaturas, é sempre derivativo,
proveniente de um outro, justamente porque cada ente têm, além de sua existência, uma
determinação essencial que o torna um isto ou um aquilo. Nenhuma determinação se
encontra em Deus. Ele não é um isto ou um aquilo.

Por isso mesmo, a existência divina não é limitada como a dos entes. Comparados a Deus, as
criaturas são falsos seres. Se retirarmos tudo o que é falso, permanecerá somente o que é
verdadeiro. Retirando os falsos seres, permanecerá o verdadeiro Ser. Os entes são
caracterizados por suas determinações. Eliminando as determinações, vão-se os falsos seres.
O que resta é o Ser puro, a existência sem determinação. O que o homem pode dizer do puro
Ser destituído de todas as determinações possíveis?

Que Deus é Nada.

...

* Alain de Libera, em uma nota, cita o comentário de Alberto Magno ao Os Nomes Divinos de
Dionísio Areopagita onde o mestre de Ulrich faz declarações semelhantes, embora não
idênticas, sobre o ser dos entes: "Creatura non habet verum esse, quia habet esse ab alio. (...)
Ens creatum non habet verum esse, quia in comparatione Dei, qui vere est, alia nihil sunt." A
criatura não tem ser verdadeiro por receber o ser de outro. O ente criado não possui
verdadeiro ser, pois em comparação com Deus, que verdadeiramente é, nenhuma das outras
coisas são.

Postado por Rogério da Costa (Oleniski) às 18:11 Um comentário:

Marcadores: cristianismo, filosofia, filosofia da religião, Filosofia medieval, filósofos, Idade Média,
metafísica, mística, neoplatonismo, religião, teologia natural, teoria do conhecimento

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