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CONHECIMENTO DE DEUS: RAZÃO OU FÉ?

Louis Berkhof afirma que “o ser humano tem sido descrito como
“incuravelmente religioso” e que esse fenômeno universal toca o homem de tal
forma que atinge “as fontes mais profundas da existência espiritual,
controlando-lhe os pensamentos, agindo-lhe as emoções, guiando-lhe as
ações”. Sendo um fenômeno universal, a religião é encontrada em diversas
culturas sempre com a necessidade de trazer algum entendimento acerca do
mundo, natural e espiritual. (BERKHOF, 2012, p. 19)
Entretanto, em uma sociedade que tem como herança a filosofia grega
racionalista, ou seja, que acredita que “todo conhecimento (verdadeiro) tem
origem racional”, acreditar que o mundo foi criado e é governado por um Deus
Todo Poderoso, Totalmente Transcendente e Imanente parece ser irracional.
(MORA, 2005, p. 1040. apud MADUREIRA, 2017, p. 24).
Esse problema de dar razoabilidade a fé cristã foi um desafio para a
igreja do primeiro século. O apóstolo Pedro em sua primeira epístola instrui aos
cristãos perseguidos para que não tivessem medo com as ameaças, mas que
“antes santificai a Cristo, como Senhor, em vosso coração, estando sempre
preparados para responder a todo aquele que vos pedir razão da esperança
que há em vós”1. Orientando os crentes para sempre estarem preparados para
apresentar a razão do cristianismo, deixando claro que não são motivados por
tolices ou fantasias, mas é um esquema racional revelado do céu. (HENRY,
2008, p. 875)
Os pais apostólicos também usaram o argumento da razão em função
da fé para defenderem o cristianismo de acusações dos pagãos e hereges,
“mostravam-se particularmente solícitos em tornar a religião cristã aceitável
diante das classes educadas frisando sua racionalidade” e isso originou a
teologia. (Berkhof, 1992, p. 53)
C.S. Lewis em seu livro Cristianismo Puro e Simples comenta que
“todos disseram que o “leitor comum não quer Teologia”... Teologia significa
“ciência de Deus”, e penso que qualquer pessoa que queira pensar sobre Deus
de alguma maneira gostaria de ter a noção mais clara e precisa possível sobre
ele”. C. S. Lewis compara a teologia com um mapa que quando observado
1
I Pedro 3.15 - ARA
pode levar ao conhecimento de Deus e a uma experiência com Ele. (LEWIS,
2017, p. 203 e 205)
Ou seja, a teologia se propõe a ser um conhecimento sobre a revelação
de Deus, ela inevitavelmente transita entre a fé e a razão. Daí a importância de
questionar se buscamos conhecer a Deus mais pela fé ou pela razão.
O conhecimento de algo através da razão é um pensamento filosófico
grego que foi sintetizado com a teologia cristã. Reale, quando trata do conceito
e objetivo da filosofia antiga, afirma que “o que vale em filosofia é o argumento
da razão, a motivação lógica, o Logos. Não basta à filosofia constatar,
determinar dados de fato ou reunir experiências: ela deve ir além do fato e
além das experiências, para encontrar a causa ou causas precisamente
através da razão”. (REALE, 1990, p. 22)
E foi período da escolástica que houve uma grande exploração do papel
da razão sobre a fé, pois havia uma preocupação em estabelecer uma teologia
cristã sobre um alicerce totalmente confiável. Segundo Alister MacGrath “à
medida que avançava o renascimento teológico do início da Idade Média, dois
temas passaram a dominar o debate teológico: a necessidade de
sistematização e expansão da teologia cristã e a necessidade de
demonstração da inerente racionalidade dessa teologia”. (MCGRATH, 2005, p.
84 e 85)
Giovanni Reale concorda com Alister MacGrath quando cita um trecho
de um dos escritos de João Escoto Erígena (Seculo IX), demonstrando sua
investigação lógico-filosófica em um contexto teológico: “Nenhuma autoridade
deve te afastar das coisas que são ensinadas pela reta razão. A verdadeira
autoridade, com efeito não se opõe a reta razão, nem esta à verdadeira
autoridade, porque ambas derivam de uma única fonte, isto é, da sabedoria
divina”. Chegando ao ponto que Erígena extingue toda a distinção entre a
filosofia e a religião: “A verdadeira filosofia outra coisa não é do que a religião e
inversamente, a verdadeira religião outra coisa não é do que verdadeira
filosofia”. (REALE, 1990, p. 492 e 493)
Escoto Erígena afirma que a religião cristã é racional, significando que
sua plausibilidade é verdadeira porque é racional. Ou seja, a fé é verdadeira
por causa da razão. Reale chega a afirmar que Erígena diz que “ninguém
chega ao céu a não ser passando pela filosofia”, ou seja, pela razão. (REALE,
1990, p. 493)
Essa ideia de se conhecer a Deus e/ou levar outros a conhece-Lo por
meio da razão se estende até os dias de hoje, pois ainda há aqueles que
buscam estabelecer uma plausibilidade entre a razão e a fé. A exemplo, temos
o Hugh Ross, fundador do ministério Reasons To Believe, que diz:
As pessoas obtém esperança confiante ao ver tanto a Bíblia quanto a
natureza testificam fielmente, sem contradição, os atributos de Deus,
seu cuidado providencial por suas criaturas e seu desejo de
relacionamento com a humanidade. Em uma era de ceticismo, a
integração construtiva2 desempenha um papel importante em
estabelecer tanto a plausibilidade quanto a relevância das Escrituras.
Quanto mais oportunidades Deus dá para mostrar como a ciência em
suas múltiplas disciplinas se integra com todos os 66 livros, mais
razões podemos oferecer às pessoas para confiar em Cristo.
(ROSS, 2019, p. 99)
O grande problema de se tentar dar razoabilidade ao conhecimento de
Deus é que após a queda a mente humana foi corrompida, que mesmo
cercado de evidencias da existência de Deus o homem a rejeita. Anselmo de
Aosta (Século XI) argumenta sobre como o homem quando ouve “que há um
ser acima do qual nada maior podemos pensar, ele entende o que ouve; o
pensamento está em sua inteligência”, mesmo que não acredite na existência
de Deus. Anselmo denomina tal como “insensato” uma clara referência ao
personagem citado por Davi no Salmo 53. (ANSELMO, 2016)
A existência de Deus é uma grande pressuposição da teologia. Não há
porque falar do conhecimento de Deus se não admitir que Ele existe e,
segundo Reale “todo pensamento de santo Anselmo é dominado pela ideia de
Deus”, sendo que Anselmo escreveu dois tratados a respeito disso. (REALE,
1990, p. 495)
O primeiro escrito foi o Monologium, um tratado no qual Anselmo
argumenta a existência de Deus usando argumentos axiológicos e
cosmológicos, mostrando provas a posteriori, ou seja, “como, a partir do
mundo, se chega a Deus”. Mas não satisfeito com o seu argumento no

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A integração construtiva presume uma integração direta e harmoniosa do livro das Escrituras com o
registro da natureza, em vez de uma sobreposição inexistente ou sobreposição mínima. (ROSSO, 2019,
p. 97)
Monologium, Anselmo escreveu Proslogion onde formulou o “argumento
ontológico”. Um único argumento que prova a existência de Deus. (REALE,
1990, p. 495 e 496)
J. P. Moreland e William L. Craig dizem que foi então que Anselmo “se
deparou com a concepção de Deus como o maior ser concebível”. O
argumento de Anselmo seria então que “assim que a pessoa verdadeiramente
entenda a noção do maior ser concebível, então perceberá que tal ser deve
existir, uma vez que se não existisse, não seria o maior ser concebível. A
existência de Deus, portanto, é verdadeiramente inconcebível para quem
entenda Deus da maneira correta”. (MORELAND; CRAIG, 2021, p. 777)
O argumento antológico é constantemente visto com uma forma de dar
razoabilidade lógica à existência de Deus, ou seja, demostra a uma razão,
causa, fato para se ter fé em Deus, por Anselmo. Porém com uma leitura mais
acurada do Proslogion pode se ver que Anselmo na verdade quer demonstrar
que através da fé que se ingressa a razão.
Anselmo deixa isso muito claro quando reconhece que Deus transmite
conhecimento de Si próprio ao homem por sua criação à imagem de Deus, e
que não é adquirido pelo laborioso processo de raciocínio e argumentação,
mas esse conhecimento vem pela fé.
Reconheço, Senhor, e dou-te graças por teres criado em mim esta
tua imagem, para que me lembre de ti, para que pense em ti, para
que te ame. Mas tão destruída está ela por obra dos vícios, tão
escurecida pelo fumo dos pecados, que não pode alcançar o fim a
que fora destinada, a não ser que a reformes e renoves. Não tento,
Senhor, penetrar tua profundidade, pois a ela de modo algum pode
comparar-se minha inteligência; mas desejo, na medida de minhas
forças, compreender tua verdade, em que crê e que ama meu
coração. Pois não busco entender para crer, mas creio para entender.
Creio, com efeito, pois, se não crer, não entenderei. (ANSELMO,
2016)
É bom ver esse argumento de Anselmo em que se tem que ter fé
primeiro para depois encontrar a razão. A teologia reformada se apropria muito
bem desse princípio. Jonas Madureira afirma muito bem o pensamento que
deveria ser de todos os cristãos ao afirmar que “o cristão não pressupõe a
morte da razão. O que ele pressupõe é a consciência de que a razão é
insuficiente. (MADUREIRA, p. 49)
Citando Herman Dooyeweerd,
“...o verdadeiro conhecimento de Deus e de nós mesmos (Deum et
animam scire) ultrapassa todo o pensamento teórico. Esse
conhecimento não pode ser objeto teórico, seja de uma teologia
dogmática, seja de uma filosofia cristã. Ele só pode ser adquirido pela
operação da Palavra de Deus e do Espírito Santo no coração, ou
seja, na raiz e centro religioso de nossa existência e experiência
humanas”. (DOOYEWEERD, 2018)
Assim podemos entender que devemos exigir menos da razão, sendo
que a fé é suficiente para chegar ao conhecimento da verdade, o conhecimento
de Deus, pois a razão depende de uma revelação transcende, que ultrapassa
seus limites.

Referência Bibliográfica

ANSELMO. Proslógio: Edição bilíngue [livro eletrônico]. Tradução de


Sérgio de Carvalho Pachá, edição de Renan Santos. Porto Alegre, RS:
Concreta, 2016.

BERKHOF, L. A história das doutrinas cristãs. Tradução de João Marques


Bentes e Gordon Chown. São Paulo: PES, 1992.

BERKHOF, L. Manual de doutrina cristã. Tradução de Joaquim Machado.


São Paulo: Cultura Cristã, 2012.

DOOYEWEERD, H. No crepúsculo do pensamento: estudos sobre a


pretensa autonomia do pensamento filosófico [livro eletrônico]. Tradução
de Guilherme de Carvalho e Rodolfo Amorim de Souza. Brasília, DF: Editora
Monergismo, 2018.

LEWIS, C. S. Cristianismo puro e simples. Tradução de Gabriele


Greggersen. 1ª ed. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2017.
HAN, K; ROSS, H; HAARSMA, D. B; STEPHEN, C. M. A origem: quatro
visões sobre criação, evolução e design inteligente. Tradução de Roberto
Covolan. Rio de Janeiro: Tomas Nelson, 2019.

HENRY, M. Comentário bíblico: Novo Testamento – Atos a Apocalipse.


Tradução de Degmar Ribas Júnior. Rio de Janeiro: CPAD, 2010.

MADUREIRA, J. Inteligência humilhada. São Paulo: Vida Nova, 2017.

MCGRATH, A. E. Teologia sistemática, histórica e filosófica: Uma


introdução à teologia cristã. Tradução de Marisa K. A. de Siqueira Lopes. Sã
Paulo: Editora Shedd Publicações, 1ª Edição, 2005, 3ª Reimpressão;

MORELAND, J. P; CRAIG, W. L. Filosofia e cosmovisão cristã. 2. ed. São


Paulo: Vida Nova, 2021.

REALE, G; ANTISERI, D. História da filosofia: antiguidade e idade média.


São Paulo: Paulus, 1990.

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