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Remetente:

Mário de
Andrade
Destinatário:

Fernando
Sabino
Cartas
aum Jovem
Escrıtor
5
51
23
37 RECORD
1/90
9006
Cartas a um
Jovem
Escritor
Em 1941, Fernando Sabino jamais poderia
imaginar o que Ihe estaria reservado, com a
publicação do seu primeiro livro, uma seleção
dos contos que vinha escrevendo desde os
14 anos. A obra chamou a atenção da crítica
pela precocidade do autor, mas seu maior
mérito foi o de merecer uma carta de Máio de CARTAS A UM
Andrade.
No auge đo prestígio literáio, verdadeiro JOVEM ESCRITOR
monstro sagrado como o papa do modernismo,
o autor de Macunatma leu ao acaso de uma
noite insone aquele ivrinho que he viera
cair às mãos, enviado pelo desconhecido autor
e, como era hábito seu, resolveu escrever-Ihe
manifestando com franqueza a sua opinião.
Pode-se imaginar o verdadeiro impacto que
representaram para o jovem escritor mineiro
aquelas palavras, vindas de quem vieram: "Se
você está rodeando os vinte anos, de vinte a
vinte e cinco, como imagino, Ihe garanto que o
seu caso é bem intere ssante, você promete
muito." Respondeu-lhe emocionadamente, com
o entusiasmo dos seus 18 anos, nascendo daí
uma acalorada e intensa correspondên cia entre
o escritor consagrado e o principiante, que
durou até a morte do primeiro.
A importância destas cartas de Mário de
Andrade fazem de sua publicaçāo em livro um
verdadeiro acontecimento literáio. Elas valem
não somente como depoimento vivo sobre a
dimensão apostolar de um grande escritor, ou
sobre a iniciação de outro escritor antes de
tornar-se também consagrado, mas como pre-
cioso roteiro para quem pretende iniciar-se nos
mistérios da criação artística.

L2342906
$

23 De
34 Mário de
Andrade
a
Fernando
Sabino

CARTAS A UM
JOVEM ESCRITOR

MCACERAL
DAII
NCSMAD

OFERTA
COM3 RA
416351-A

RECORD

EDITORARECORD
IMPROVISO
DO AMIGO MORTO

Fernando Sabino

Nesta Rua Lopes Chaves


envelheço, e envergonhado
nem sei quem foi Lopes Chaves.
FICHA CATALOGRÁFICA
CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Mamãe! me dá essa lua,
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ. Ser desconhecido e ignorado
Como estes nomes da rua.
Andrade, Máio de, 1893-1945.
AS68c Cartas a um jovem escritor | de Mário de
Andrade aFernandoSabino. - Rio de Janei-
ro : Record, 1981.

1. Cartas brasileiras I. Sabino, Fernando,


1923- II. Título. A CASA número 546 da Rua Lopes Chaves, em São
Paulo, era famosa em todo o Brasil, De lá partiam
CDD – 869.96 numerosas cartas numa letra miúda e seguríssi-
81-0712 CDU -869.0(81)-6
ma (algumas datilografadas, quando o assunto
exigia que se tirasse cópia). Cartas dirigidas a es-
critores, artistas, ou simplesmente amigos de todo
o país.
Uma delas certo dia me chegou às mãos em
DISTRIBUIDORA RECORD DE SERVIÇOS DE IMPRENSA S.A. Belo Horizonte. Mãos pressurosas em rasgar avi-
Rua Argentina 17120921 Rio de Janeiro, RJ
Proibida reprodução integral ou parcial em livro de qualquer espécie
damente o envelope, na excitação dos 18 anos, tão
ou outra forma de publicação logo dei com o nome do remetente e o famoso en-
dereço. Passei a ser respeitado em casa. Era a pro-
Copyright by Fernando Sabino, Rio, 1981
pósito do meu primeiro livro, que eu lhe havia

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mandado e ele havia lido quase que por aca- A SUA penúltima carta, pauco mais de dois meses
so, numa noite qualquer de ócio. Nenhum estí- antes de morrer, encerrava-se com palavras que
mulo poderia ser maior para um estreante na li- me emocionaram, mas cujo sentido de dramática
teratura que aquelas palavras de aguda com- premonição só mais tarde pude apreender:
preensão, apontando qualidades e perdoando de-
feitos, que denunciava com precisão. "Não se arrependa e não me poupe nunca
Este foi o início de uma correspondência e de é o melhor jeito de me deixar leal pra
uma amizade (apesar dos trinta anos de diferen- comigo. Mas estou abatidíssimo, de fato,
ça entre nós) que durou até sua morte. estou destroçado. É um abatimento de
A última vez que o vi foi à saída de um bar mim; provocado pela sua carta, mas cau-
na Avenida São João, depois de uma rodada de sado por mim. Este esgotamento preven-
chopes com vários amigos comuns, por ocasião tivo que dão as fatalidades que a gente
do Congresso de Escritores. Ele se despediu de não pode mudar."
mim na calçada, e já se afastando voltou-se, er-
gueu a mão no ar num gesto larga muito seu, di- Eu Ihe con ava as minhas dúvidas e preo-
zendo: adeus. Adeus, por quê? protestei: você cupações literárias com o ardor dos que querem
não pretende morrer, e eu muito menos; vamos vencer a todo custo: o problema da sinceridade
nos ver breve, se Deus quiser, aqui ou no Rio. Ele do artista, a importância ou desimportância do
sorriu e se afastou sem dizer mais nada. sucesso, a necessidade de escrever e aa mesmo
Alguns dias depois eu recebia a notícia de sua tempo ganhar a vida, o aprimoramento do estilo,
morte. a opção entre a arte social e a arte-pela-arte, e
outros temas em moda na épOca. Com sua pa-
Quando eu morrer quero car, ciência apostolar, ele me respondia longa e mi-
Não contem aos meus inimigos, nuciosamente, procurando me orientar no cipoal
Sepultado em minha cidade, de minhas contradições:
Saudade.
"Não se esqueça por favor que você é um
ancião de quinhentos anos no vício de
As mãos atirem por aí, uma ideologia. Pra abrir caminho, pra se
Que desvivam como viveram justi car diante de si mesmo, diante da
As tripas atirem pro Diabo, vida e de Deus, você tem de abrir é estra-
Que o espírito será de Deus. da larga, franca. E no seu cas0, 0 seu
Adeus. maior perigo é ser si mesmo. A tal de

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"sinceridade" que você invoca é o seu independente que eu pretendia ser, que em con-
maior perigo. E que sinceridade se você trapartida ter um dos maiores adversários do di-
não é você! A sua sinceridade por enquan- tador como padrinho. O convite foi feito pessoal-
to é a sua espontaneidade. E a sua espon- mente num encontro nosso no Rio só para esse
taneidade são dez milhões de anos de cri- m. Ele aceitou, mas pouco depois alegava numa
mes humanos, dois mil anos de traição ao carta alguns motivos o seu tanto evasivos, para
Cristo, duzentos anos de burguesia capi- que eu o dispensasse de comparecer, sugerindo que
talista, vinte e um anos de lhinho de pa- alguém mais a representasse. Guardei comigo a de-
pai, quinze anos de aluno de escola e pro- cepção, mas me retraí. Até que uma queixa sua a
fessores que ensinaram de acordo com tu- um amigo, em termos ferinos, provocou o estouro:
do isso. Isso é a sua “sinceridade", E vo- despejei numa carta toda a minha mágoa ante o
cê sabe que ela não vale umn tostão. Por- que me parecera uma deserção. Ele respondeu se
que até agora escolheram por você. Ago- defendendo, fui a São Paulo para celebrarmos a
ra é que você vai escolher." paz. E voltamos a nos corresponder:

Aos poucos fui passando das questões artís- "Há mais, Fernando, há muito mais e o
ticas ou meramente estéticas para os problemas pior. Muito pior. Há uma convicção em
pessoais. Deveria ou não aceitar aquele emprego? luta com uma consciência da realidade.
Resistiria às tentações da facilidade, por mim con- Há nesta Rua Lopes Chaves um ridículo
fundida, segundo ele, com um falso conceito de fe- homem que chegou à convicção que nes-
licidade? Em outras palavras: o casamento em te momento culminante da vida, toda
perspectiva, sendo eu tão jovem, não seria fatal arte é pueril, todo indivíduo que não se
para a minha vocação de escritor? sacri car totalmente pela vida coletiva
Ah,mocidadeperversa,amorinsaciável! - humana é um canalha, é um vendido, é
como ele próprio me respondia, com condescen- um canalha,"
dente ternura: até versos de minha noiva andei
mandando para ele ajuizar. E de súbito me assus-
tei, quando me vi ante a perspectiva, não do com-
promisso a que a paixão juvenil me precipitava,
mas de ter, como padrinho da noiva que escolhe- FORAM cerca de trinta cartas, ao longo de três
ra, nada menos que o próprio Presidente da Re- anos - mais de uma porsemana,àsvezes. Re-
páblica, cuja ditadura já aprendera a repudiar. presentavam o que podia haver de mais preciosa
Não haveria melhor desagravo, para o homem para um jovem que pretendesse ser escritor.

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Teria adiantado? Relidas agora, diante dos A Toada do Pai do Mato era o pai do mato! O
problemas de hoje, parecem falar de um tempo Rito do Irmão Pequena, tão bonito com o pássaro
morto e de assuntos já sem memória, como se es- amarelo. E os Poemas da Amiga, os Poemas da
tivéssemos discutindo o sexo dos anjos. Que lugar
Negra.
ocuparia ele atualmente, na ordem das coisas? No Mas a verdade é que o nome dele é hoje o de
entanto a sua presença na vida cultural da Brasil uma rua do Jardim Botânico, ali no Largo dos
era a de um gigante, de corpo e alma, através
Leões, e ainda há pouco uma jovem amiga que
da sua obra e da in uência pessoal. Basta lem-
sabe as coisas me disse que não sabe quem foi Má-
brar suas cartas a Manuel Bandeira, Carlos Drum- rio de Andrade.
mond de Andrade, Prudente de Moraes, neto, Ro-
drigo M. F. de Andrade, Pedro Nava, Rachel de Mamãe! me dá essa lua
Queiroz, Portinari, Lúcio Rangel, Moacir Wer- Ser desconhecido e ignorado
neck de Castro, Murilo Miranda, Carlos Lacerda, Como esses nomnes da rua.
para mencionar apenas alguns poucos amigos. E
Os de Minas: Henriqueta Lisboa, Alphonsus de
Guimaraens Filho, Hélio Pellegrino, Otto Lara
Resende, Paulo Mendes Campos, Etienne Filho,
Murilo Rubião e tantos outros.
O papa do modernismo! Cada novo livro seu
era uma sensação na praça literária. Sei que con-
tinuam sendo editados, constituindo mesmo al-
gum sucesso de livraria. É possível que esteja
sendo redescoberto. A impressão que tenho é de
que as novas gerações talvez já ouviram falar em
Macunaima, mas não sabem da importância de
seu autor na história da cultura brasileira. E prin-
cipalmente da importância da sua poesia para os
que aprenderam a amar Os seus versos aquela
inesperada e grati cante sutileza poética entre
uma palavra e outra que só ele sabia ter. O Im-
proviso do Rapaz Morto que se esquece suavemen-
te entre as ores do caixão. O raio que matou o
cavalo de Antônio Jerônimo matou o cavalo.

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teuas Ara

NOTA

As cartas de Mário de Andrade foram


transeritas na tntegra, respeitadas a
pontuação e a gra a caracteristica
de certas palavras. Apenas a acen-
tuação foi atualieaãa.
fi
S. Paulo, 10-01-42

Fernando Tavares Sabino

Si você guiser continuar sendo escritor, antes


de mais nada tem que encurtaro nome. Tavares
Sabino, Fernando Tavares, Fernando Sabino. o
que é impossível é Fernando Tavares Sabino. Me
desculpe esta sinceridade e entremos pelas outras.
Muita ocupação, só nesta noite de sábado
pude ler os seus contos e lhe escrevo imediata-
mente, enquanto a impressão é nítida., Saio do seu
livro com a convicção de que você é um escritor,
é um artista. Não que o livro seja bom, mas é uma
estréia excelente, uma estréia promissora, denun-
ciando fartas possibilidades.
Antes de mais nada: eu achava que os es-
treiantes deviam pôr nos seus livros a idade que
têm, Que idade tem você? Isso importa extraordi-
nariamente nesse caso como o seu, por causa justa-
mente das possibilidades fartas. Si você está ro-
deando os vinte anos, de vinte a vinte e cinco como
imagino, Ihe garanto que o seu caso é bem interes-
sante, que você promete mnuito. E o livro, neste caso
é bom. Mas si você já tem trinta ou trintae cinco
anos, já estudou muito (você parece de fato se
preocupar com a expressão lingüística) e está
homem-feito, não lhe posso dar aplauso que valha.
Neste caso o livro ca medíocre, sem o menor inte-
resse. É apenas um dos muitos.

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Seu livro já está muito bem escrito. Não há técnica, interfere de nitivamente para impor e
dúvida nenhuma que você, como bom mineiro (?) justi car um criador. Si você não zer coisas ma-
tem o sentimento da líingua, como cultura e prin- ravilhosamente bem feitas como técnica, como
cipalmente como estilo, como expressão de pensa- estilo, como arte de escrever, como bom gosto es-
mento. E tem no que escreve um sabor brasileiro, piritual, você será apenas "mais" um.
muito rme, muito nítido e muito atilado. De ex- No gênero dos seus contos, você tem, a meu
tremo bom gosto, Quero dizer: você não cai em ver, descaídas lastimáveis, principalmente para o
nenhum exagero de brasileirismo falso. Com um lado anedótico. Apesar das observações, excelentes,
bocado mais de apuro estilística e de conhecimento no realismo humourístico com que você esterio-
técnico da linguagem, das linguagens populares do tipa gestos e expressões verbais, contos como As
Brasil, você chegará a ótimo, talvez grande escri- Rosas iam Murchar e o Padre Venâncio, são sim-
tor. De uma língua que já é indiscutivelmente, ples anedotas simplórias, de lastimável descontrole
nacional., e nenhuma autocrítica, Mesmo o caso do telefone
O problena, a meu ver, é tanto mais grave no que, não posso negar, é muito engraçado e me fez
caso de você que nele se intercalao da sua perso- rir bastante, é, em última análise grosseiro, trata-
nalidade de ccionista. Será você de fato um con- do sem tacto, sem delicadeza, bacalhoada de Por-
tista? Este problema é dos mais graves e dos que tugal com arrotos e todas as faltas de medida.
você precisa resolver pra si próprio. É incontestável Quando você tem, pra salvar seus contos na arte,
que você não tem nenhum conto verdadeiramente de abandonar qualquer colorido mediterrâneo e se
forte como assunto. Cujo assunto imponha o conto esquipar no senso de medida dos franceses, e na
por si mesmo, como Os Faroleiros, de Monteiro delicadeza espiritual de ingleses e nórdicos.
Lobato, como Pedro o Barqueiro, de Afonso Arinos. Mas ainda eu me pergunto si sua tendência é
Não nego que sejam "contos" os contos de você, realmente para o contoa e não para o romance...
mas não parece, pelo livro, que você tenha forte Pela faculdade de observação naturalista, pela ri-
imaginação criadora, grande imaginativa, excep- queza de tipos psicológicos, não sei, sinto em
cional faculdade de invenção. muitos dos nossos contistas, e emn você, romancis-
Seus contos são leves e delicadas transposi- tas verdadeiros, que por preguiça, por falta de
ções líricas da vida, como o admirável Verdes Anos, tomar fôlego, erram de espécie, se dispersamn no
ou irônicas transposições realísticas da vida. Estou conto, quando são romancistas legítimos.
pensando em Machado de Assis. Seus contos estão Não sei si você consegue perceber que no fun-
longe de ser impressionantes,. Longe de prenderem do seu livro me interessou muito. Mais você que o
a gente por uma idealidade humana de nitiva livro, aliás... Conforme a idade, lhe garanto que
qualquer. Aí é que a arte, como beleza de criação você pode ir longe. Mas não como um Jorge Ama-

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do, pouco trabalho, ignorância muita, criação de
sobra. Você tem que trabalhar dia por dia. Como
um Machado de Assis.
E não lhe seria possível botar um bocado mais
de responsabilidade humana coletiva nas suas S. Paulo, 25-1-42
obras?..
Fernando Sabino
R. Lopes Chaves, 546 –S. Paulo
Recebi sua carta e re eti sobre ela. A con-
Mário de Andrade
clusão mais séria pra mim é a seguinte: Vejo que
estamos os dois na iminência de iniciar unma cor-
respondência longa e nutrida. Pra você, moço, cheio
da vida e ainda não “consagrado'", ansioso de
saber, isso não vai ser difícil, Pra mim vai. Seria
estúpido eu não saber que sou “consagrado", Só
os esforços, os esperneios, os papelões que faço pra
não virar medalhão duma vez, você nem imagina.
Sucede pois, é natural, que tenho muitíssimo tra-
balho e também uma correspondência enorme. Não
hesito um só segundo em lhe garantir que, apesar
de tudo isto, não me pesará em nada lhe escrever
muito, auxiliar vocể no que eu possa. Apenas, pre-
liminarmente, eu desejo que você se examine bem,
num verdadeiro exame de consciência, antes de se
decidir a exigir esta correspondência.
Veja bem: você tem direito de exigir minhas
cartas e explicações. Você tem os direitos da idade,
de querer saber e de querer ser. Isso lhe basta, me
basta e, aliás, é tudo. Me escreva pois quanto e
quando quiser. E deve abolir do seu espírito e da
sua timidez natural a idéia de que está me cha-
teando, me fazendo perder tempo. Si posso ser útil,
meu tempo está ganho.

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fl
Mas antes exija que você pense muito seria- artistas menores, nos artistas frouUxos, que se satis-
mente sobre você. Tanto mais que, pelo que seu fazem com migalhas.
livro indica como tendências pessoais, o seu ca- Você é mnoço, "belo, forte, jovem" como disse
minho na arte é pesado, muito árduo e sem brilho. de si mesmo o Vinícius de Morais. No seu caso,
Você não irá estourar por aí, ganhando a batalha acha que nem você pode se dar p0r destino conse-
de um golpe só, como um Lins do Rego, uma Ra- guir um segundo lugar: você temn que pretender
quel de Queiroz. Sinto que você não foi feito pra ao primeiro. As vezes a gente se assusta um b0-
isso nem poderá nunca fazer isso. Seu destino cado, se acovarda, parece até cinismo de idiota
artístico é miúdo, feminino, de nhem-nhem-nhem. pretender ser o primeiro. Não é, Fernando. É sim-
O caso da "água mole em pedra dura"... Você irá plesmente o processo mais modesto de alcançar o
escrevendo, irá escrevendo, se aperfeiçoando, pro- terceiro lugar. Você deve querer ser tudo e o maior.
gredindo aos poucos: um belo dia (si você agüen- Só se dando uma empreitada dessas, você será ha-
tar o tranco) os outros percebem que existe um nesto, não se deixará levar pela vida, não se con-
grande escritor. tentará com migalhas, não se afrouxará.
Ora, Fernando, pra agüentar com um destino Você não precisa me responder sobre isto, a
desses, antes de mais nada, é preciso ter uma ambi- problema é exclusivamente seu e é sempre uma
ção enorme, uma paciência enraivecida, um dese- indelicadeza que nos abate a gente dizer que se
jo de se "vingar" da vida, e uma ensolarada saúde sente forte e se deu um grande destino. A resposta
mental. Você tem isso? Não seja tímido nem hu- será você continuar me sugando, tirando de mim
milde não, que então é fracasso na certa. Não tudo o que possa auxiliar você, fazer o mesmo com
tenha vergonha de se confessar a si mesmo (não os outros, com todos, porque a única coisa que
a mim) que você tem ótimas qualidades, é muito importaé você.
inteligente, é orgulhoso de si, tem desprezo pela E o que há de lindo, de maravilhoso mesmo,
neste "você" que importa, é que o que importa não
frouxidão alheia e quer chegar e há-de chegar.
é eratamente você mas a obra-de-arte. Isto é: uma
Eu sei o que é a descon ança de si mesmo: os
forma coletiva de vida humana, Quanto a você, no
maiores a têm. Mas esta pseudo-descon ança na
dia em que você tiver a maior consagração possí-
verdade é con ança, a gente sente que podia dar
vel, um banquete de cinco mil talheres, um con-
mais, é insatisfaçāo de si mesmo, é um sofrimento
gresso de intelectuais te sagrando o príncipe, o rei,
horrível causado justamente pela con ança que o deus das artes nacionais e internacionais, festa
temos em nós, pela ambição voluntariosa, pelo acabada, você terá só um sentimento dentro de si,
orgulho. Esse orgulho que é o despimento das vai-
decepção. A festa foi pouco, você sentirá vagamente
dadesminúsculas – essavaidade tão comum nos que a consagração foi pouco, Coisa danada o desti-

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no, a psicologia do artista... E em máxima parte você tem orgulho su ciente pra mandar o mundo
esse castigo de ser artista, essa decepção eterna- à puta-que-o-pariu, em bene cio desse mesmo
mente insatisfeita creio que vem desse desequilí- mundo imbecil. Si você tem coragem pra tanta,
brio insanável, dessa duplicidade irreconciliável: a sem falsa humildade, então vamos principiar.
gente dar tudo o que tem, todo o trabalho, todo
o pensamento, toda a dor em proveito... de
outrem, da abra-de-arte, um elemento intermediá-
rio. Você não age diretamente, "sexualmente" Bom: também não faça desse problema um
como um santo, um missionário, um soldado, umn caso de vida ou de morte. O que é preciso é você
chefe. Você cria um objeto que vai agir sozinho, ter coragem, na sua idade, pra se a rmar diante
por si mesmo, sem mais a interferência de você. de um espelho e com toda a seriedade que a arte
Mas, sem que isto seja uma compensação propria- é uma coisa muito séria. Porque na sua idade, que
mente, você visou, criou um elemento de eterni- diabo! é pau isso da gente ter apenas dezoito anos,
dade. Este é o mistério bravo do destino do artista: preferia que você tivesse vinte e um. Principal-
visar a obra-de-arte, visar uma transcendência mente nós, gente do sul, menos equatorializada, o
aleatória e problemática, que por mais que renda desenvolvimento é mais vagaroso, mais europeu.
(aplausos, riqueza) tem outra nalidade que o Mais garantido também. Dezoito anos é idade
rendimento, por mais desvirtuada e incompreen- muito sem signi cação pra mineiro, pra paulista
dida visa a permanência e busca a eternidade. ou paranaense. Não há-de ser nada. Não é verda-
Repare que só do artista já se disse, e quantas de que Os seus contos dos 14 anos sejam seus mi-
vezes! que ele é como um deus, tem o destino de lhores contos. Você progrediu. Não se amole de
Deus. Vem disso: vem do elemento de eternidade dizerem que os seus contos não são "contos", sãa
que está implícito na obra-de-arte, a única coisa crônicas etc. Isso tudo é latrinário, não tem a me-
que tem importância pro artista verdadeiro. nor importância em arte. Discutir "gêneros lite-
Meu Deus! inda não comecei esta carta!. rários" é tema de retoriquice besta. Todos os
Creio que vou deixar muito assunto pra outra vez. gêneros sempre e fatalmente se entrosaram, não
Resumindo o que falei: Você se analise, pense se- há limites entre eles. O que importa é a validade
riamente sobre você, sobre si você sente mesmo em do assunto na sua forma própria.
si a fatalidade pesada de ser artista, sobre si tem Você, eis que se acha de posse de um assunto.
coragem e força pra agüentar o tranco duro que A primeira coisa a fazer é analisar friamente o seu
vai ser o seu. É preciso pra você ter muita saúde assunto. Ele vale? Com ele você obtém qualquer
mental pra não se amolar com os outros, com as coisa de humano, de útil? Você expõe uma reali-
incompreensões alheias, com as humilhações. Si dade da vida? você castiga ou exalta uma classe,

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uma virtude, uma necessidade social? Bem, si o seu Mas não imagine que mesmo feito antes esse
assunto você acha que tem qualquer validade fun- trabalho esfrie a criação. Esfria pros frouxos e ista
cional, agora é ver o que ele rende como arte. Eé não pode ter interesse nenhum nestes problemas.
nesta procura de rendimento que o fundo (o as- O simples fato do artista estar sinceramente en-
sunto) acha naturalmente a sua forma. A lingua- tregue ao pensamento do seu assunto, a tomar
gem tem de ser esta, o tamanho tem de ser este. notas de frases, de traços psicológicos, de formas,
É muito mais o tamanho deduzido do conteúda do de idéias o vai predispondo psicologicamente para
assunto que determina o gênero do continente, e o ato de criação. E esta chega mesmo.
não decidir assim sem necessidade mas se pren- Aqui entra de novo essa fatal sinceridade na
dendo a um preconceito, que a coisa vai ser conto, argumentação: É certo que o artista não deve ter
crônica ou romance, ou poesia em prosa. pressa, é preciso saber esperar. Mas isso do sujeito
Estas preocupações preliminares como que que só se põe escrevendo "quando sente disposição"
esfriam a criação, o poder criador, a vontade de é estupidez mas da miúda. Principalmente para o
criar. Não esfriam nada, é bobagem. Você, por fa- prosador. De fato o poeta só deve criar quando em
vor, nunca venha me argumentando com as pala- "estado de poesia". Mas isso não é sentir disposi-
vras "espontaneidade" e "sinceridade", tenho ver- ção, já é estar fatalizado por uma impulsão inte-
dadeiro horror delas. É a vaidade e também
rior de que ele não tem a culpa. O prosador não.
a deshonestidade do artista que as inventou. É a
O prosador lida com a inteligência lógica, está no
eterna e repulsiva confusão entre o artista e a
plano do consciente, das relações de causa a efeito.
obra-de-arte que lhes dá uma aparência falsa de
O seu discurso tem cabeça, tronco e membros,
legitimidade. Pra obra-de-arte, a sinceridade, a es-
pontaneidade da artista não tem signi cação princípio-meio-e- m, embora pouco importe que
nenhuma. muitas vezes o assunto exija que o m esteja no
princípio, e a princípio no meio. Não tem disposi-
De rest0, quando falei que de posse de um
ção? Não se trata de ter disposição: você é um
assunto o artista tem que pesar os possíveis valo-
res funcionais dele (que podem ser também apenas operário como qualquer outro: se trata de ter horas
de beleza) e depois decidir do instrumento estético de trabalho. Então vá escrevendo, vá trabalhando
que vai realizar milhormente esse assunto, de sem disposição mesmo. A coisa principia difícil,
forma alguma ezigi que isto fosse feito antes da você hesita, escreve besteira, não faz mal, De re-
criação. Em grande parte é feito durante a criação pente você percebe que, correntenmente ou penosa-
e pode ser feito depois. O que é preciso é que haja mente ( isto depende da pessoa) você está dizenda
esse trabalho crítico, essa autocrítica também, é coisas acertadas, inventando belezas, forças, etc.
imprescindível. Depois, então, no trabalho de polimento, você cor-

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tará a que não presta, descobrirá coisas pra encher
os vazios, etc. etc.
Não há como a fatura de um lme pra exem-
pli car bem o trabalho de todo e qualquer artista.
São cortes e mais cortes, novos close-up a fazer, S. Paulo, 16-II-42
tanto preparo anterior, tanto trabalho posterior,
coisa lenta, difícil, penosa. Fernando Sabino,
Arre que chega por hoje! no princípio d
mês lhe mandarei as minhas Poesias. E mais uma Vou pegar esta segunda-feira de carnaval pra
vez: não se amole em me escrever, em me pergun- lhe responder mais longamente. Você já deve ter
tar coisas, discordar, discutir, etc. Estou sincera- recebido um cartāo meu a respeito do assunta que
mente às suas ordens desque você se predisponha você me propôs. É que a sua carta respirava um
a ser honesto. Sei que sou o animador mais.. tal desejo de saber logo o que eu imaginava sobre
desanimador que existe. Mas é que sempre tive a o problema que tocava imediatamente a prática
convicção (e exemplos) que os bons agüentam o de sua vida, que eu não quis deixar você numa
tranco, dão por paus e por pedras, mas vão pra espera mais longa. O assunto aliás é de uma com-
diante de qualquer maneira. Com um abraço do plexidade enorme. Em resumo o que você me per-
gunta é o seguinte: Sendo a arte um produto
Mário de Andrade direto da insatisfação humana, o artista, para se
preservar em sua integridade, tem que renegar
toda e qualquer facilidade que lhe aparecer na vida
prática? Não é isso mesmo que você quer saber?
O que imagino é isto: você está decidido com gran-
de honradez moral a ser artista, mas eis que, nos
seus dezoito anos, a vida agarrou você na esquina
e lhe ofereceu um ótimo presente vital, que você
julga ser a sua felicidade. E você está receioso de
aceitar, temendo que isso venha a prejudicaro seu
destino de artista. Só há uma resposta possível
imediata: Aceite o que a vida lhe oferece e experi-
mente. Você, na sua discreção de primeira hora,
não quis dizer logo com franqueza qual era o gêne-
ro de facilidade (repare que insisto em "facilida-

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fi
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de", evitando a palavra "felicidade" ), si amor, si tudo o que tinha. A sua obra se identi ca com você,
riqueza, deve ser uma destas duas. Podem ser pois que ela é tudo o que você é. Você há-de neces-
também as duas jntas: amor sinceríssimo que sariamente sentir a consciência tranqüla e com
acontece ser rico, noivado, casamento legal e vida İsso uma espécie de satisfação, derivada desse equi-
arranjada, sem mais inquietações nanceiras, Mes- líbrio relacional entre você e a sua obra. Mas desde
mo que seja assim, não hesito um segundo em o momento em que você tornar pública a sua obra
responder que aceite. e ela for viver independente de você, as insatisfa-
Não há dúvida nenhuma que a arte tem entre ções virão e os desgostos. As incompreensões serão
os elementos que a constituem a insatisfação. A fatais. Os desvios ainda mais fatais, e isso desgosta
arte é lha da dor, dizem e você repete na sua prodigiosamente o artista. Ele não pode mais man-
carta. Pre ro dizer insatisfação, que é mais din@- dar na sua obra, ela adquiriu sua maioridade e
mico; e da insatisfação, a arte não é só lha mas principia fazendo estrepolias incríveis. O que eu
esposa, companheira quotidiana e mãe. O artista tenho sofrido com o "Macunaíma", principalmente
verdadeiro jamais estará satisfeito consigo mesmo com ele, você nem pode imaginar... E no entanto,
nem com a obra-de-arte que produziu. Há satisfa- si escrito em pleno estado de possessão (a primei-
ções momentâneas, está claro. E há, meu Deus! os ra redação foi feita inteirinha em seis dias), em,
satisfeitos... Mas você há-de observar em toda a que eu não sofria nada no ímpeto sublime da cria-
sua vida que os "satisfeitos" com sua missão e com ção, mas também nem podia pôr consciência na
as obras que realizam, nunca serão artistas "ver- sublimidade em que estava pela extensão mesma
dadeiros": são medíocres, são francamente rúins. desta sublimidade que me obnubilava qualquer
Quanto às satisfações momentâneas, embora quase estado de conciência analítica, o que possa lhe
nunca elas sejamn completas, nada de mais psico- jurar é que Macunaíma foi detestavelmente dolo-
logicamente lógico. Você, como artista, cumpriu roso pra mim. Nos momentos mais anedóticos,
entusiasticamente, sem fadiga, a seu dever, isto é, mais engraçados do entrecho, eu nãa deixava de
deu tudo o que tinha. A obra-de-arte está realizada sofrer pelo meu herói, sofrer a falta de organização
com todas as forças de qualquer espécie que você moral dele, (do brasileiro, que ele satiriza), de re-
tem. É natural que você não veja. A obra-de-arte provar o que ele estava fazendo contra a minha
é você inteirinho, e todas as suas possibilidades vontade. E quando no m Macunaíma no ponto de
críticas a consideram excelente. Não use então se regenerar, fraqueja mais uma vez e prefere ir
modéstia falsa: se diga com lealdade que você con- viver o brilho inútil" das estrelas, meus olhos se
encheram de lágrimas. Se encheram e se encherão
sidera a sua obra excelente. Ela o é, enquanto a
você. E você sente então uma espécie natural de sempre. Mas isso ainda não é nada, com o que foi
satisfação. Como artista você foi “moral" dando depois, quando Macunaíma estava publicadoe não

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tinha mais nada comigo. Tenho ouvido os maiores pregado a palavra felicidade pro seu caso atual,
elogios ao meu livro e isso é sempre agradável Será tudo o que você quiser, um deslumbramento,
ao artista verdadeiro, porque não existe um só um delírio sublime que você está prestes a con-
artista verdadeiro que não artefaça com a intenção quistar, si nãa já conquistou. Mas felicidade não é
de ser amado. Mas os pouquíssimos que re etiram não. Si você chegar a uma conceituação verdadei-
sobre a livro: ou foram uns porque-me-ufano-do- ramente losó ca do que seja Felicidade, você per-
meu-país que recusaram a sátira e continuaram ceberá que o sentido popular em que você empregou
muito satisfeitos da vida, ou foramn os que só reti- a palavra é defeituoso e até imoral. Imoral porque
raram do livro um reforço conciente de seu amora- desvia o indivíduo da sua integridade, da sua des-
lismo... nacional. Mas agora veja bem: não ima- tinação coletiva e mesmo individual., Coisa muito
gine não que eu vou bancar o incompreendido e mais alta que uma facilidade momentânea ou
sustentar o valor crítico do meu livro! Eu tenho mesmo permanente.
bastante saúde mental pra reconhecer que a vida E aqui é que está a busilis: O difícil, o di cí-
é uma luta, e que nesse jogo do Macunaíma eu limo, o tremendamente difícil é você, no convívio
perdi de um a zero: eu errei. Macunaíma é uma de sua facilidade (principalmente si for a riqueza),
"obra-prima" que falhou. Toca pra frente! conservar a integridade moral do seu destino de
Você confundiu, como fazem todos, felicidade artista. É difícil, porém não é impossível. De uma
com facilidade. Eu descon o, ainda não sei, pelos coisa eu tenho certeza: por mais que seja a facili-
seus escritos, que você é católico, ou pelo menos, dade (felicidade) que você conquistar, seja você
certamente de formação católica. Está bem, isso artista, Hitler, Stalin, inventor, Getúlio ou ladrão,
não trará a menor sombra, enquanto a mim, em você jamnais cará satisfeito: há-de querer mais.
nossas relações pessoais, seja você o que for. Eu Nisto não há mal: é a marca divina do homem. O
também sou de formação católica, acredito voraz- mal é que, embora buscando sempre aumentar in-
mente em Deus, e por maiores que sejam os meus satisfeitamente a "felicidade' conquistada (isto é:
descaminhos, sei que morrerei (si morte conciente) um Ford nunca deixará de pretender o aumento de
em estado católico. Mas é estranho como não tenho sua riqueza, às vezes até "desviando" a pretensão
a menor "religião", nisso em que a religião é uma para a política, o amor, a esmola, o "altruísmo"
religação, uma organização coletivizada das nossas etc.) a mal é que você, embora pretenda se aumen-
relações e deveres pra com Deus. Respeito, não é tar, você principia agindo sorrateiramente como si
bem respeito, "acredito" por demais na conciência estivesse satisfeito: é o conformismo. Esta é a cila-
alheia, pra tentar desmanchar a convicção alheia. da que o homem encontra quotidianamente em
Mas o que eu queria dizer é que, por isso mesmo seu caminho, o conformismno. Ela principia já por
de você estar catolicizado, você nãa podia ter em-

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ser siológica: é a lei da estabilização, a lei que
eu chamno da "preguiça", nós vivemos morrendo. consertar essa tendência sorrateira: a xação de
Quando o princípio moral verdadeiro, é justo o uma data... comemorativa da sua grandeza de
contrário: nós devemos viver sempre nascendo: homem e de artista. Fixe uma data anual para o
tudo deve ser sempre objeto de aprimoramento seu retiro espiritual, eu faço isso n0 m do ano,
pessoal e a busca da perfeição. Não hesito em a r- que é mais fácil e inesquecível, O que z este ano
mar: toda facilidade, toda felicidade é desmorali- que passou? no que isso me acrescenta em minha
zante. Mas então como conciliar a minha até inti- obra ou a prejudica? o que preciso fazer este ano
mação de você aceitar a felicidade que a vida está próximo? no que devo me completar? A nal das
lhe oferecendo e esta convicção de que a felicidade contas estou lhe dizendo coisas banais, que, aos ba-
é desmoralizadora? nais, parece estar cheirando a confessionário. Não
É simples, meu irmãozinho, embora seja difí- será tão banal assim... a vida tem de ser, muito
cil, É vOcê não perder jamais de conciência que a mais que um viver-se, um continuado repensar-se.
sua erperiência de felicidade deve ser também um E só isSo lhe peço quase... paternalmente, meu
objeto de aprimoramento pessoal. A felicidade, o Deus! nossas idades são tão afastadas uma da ou-
prazer, a facilidade também é uma prova por que tra! Não se deixe desleixadamente viver como a
a gente passa. Nisso a simbólica da criação é admi-
maioria in nita dos nossOs artistas brasileiros.
Como eles são pobres de humanidade!... As vezes
rável. Deus não sujeitou Adão a sete provas de
sãa riquíssimos de atividade e variedade vital: tudo
infelicidade, matar dragões nem atravessar o mar
lhes aconteceu, as mais diversas mulheres, todas
a nado: sujeitou-o apenas a umna prova de felici-
dade, o jardim das delícias. Mas Adão, insatisfeito, as pobrezas, todas as riquezas, cem doenças difí-
rockfellerizou-se, quis também a maçā... E se ceis, cem saúdes, cem poderes. No entanto nada
"brincou". No seu caso particular de artista: o disso lhes serviu para se tornaremn um ser, um ser
operário, cada vez que principia trabalhando, não íntegro, completado em si mesmo e insolúvel. São
reveri ca os seus instrumentos de trabalho? não macunaimáticos, se dissolvem nos seus "atos", sem
a a a foice, não azeita a máquina? Você também realizarem uma ação", que é continuidade. Não
são homens, são água. Mas a gente tem vergonha
precisa estar sempre alerta, pra que seu trabalho
de se repensar. Fazer exame de conciência, isso é
seja legítimo. Você precisa reveri car constante-
mente os seus instrumentos de trabalho. É difícil, "desvio" (ah, a psicanálise!...) próprio de meni-
notes e das frágeis mulheres. "Eu sou um espírito
a facilidade tende a esquecer isso, a seqüestrar a
forte!", e são os mais inexistentes dos espíritos. ..
idéia da gente se repensar e se reveri car em seus
Não é justo a gente se recusar uma facilidade
trabalhos. Mas há um jeito muito humano da gente
que a vida nos ofereça, desque essa facilidade seja

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justa. A felicidade no amor nmem é apenas justa, é
a veleidade de decidir de todos os problemas hu-
uma espécie de dever. Nem mesmo a riqueza deixa
manos. Não tenho. Estou apenas lhe dando, como
de ser justa. O difícil é você, em seguida, cumprir
falei desde a primeira carta, creio, o auxílio que
com os deveres humanos que essa facilidade lhe
pode derivar da minha experiência e do meu pensa-
impõe. Mas si você estiver bem de nido, bem con- mento mais amadurecido. Não: a arte não é um
ceituadoe bem conciente dos seus deveres pra con- sofrimento, exatamente, nem é só o sofrimento que
sigo e pra com os homens, você apenas tirará de
a pode legitimamente proporcionar. O momento da
suas facilidades mais uma força de aperfeiçoamen- criação é um prazer sublime, e estou completa-
to. A nal das contas, Goethe não se perdeu, E Vitor
mente em desacordo com os que o consideram um
Hugo, nos dias de maior realização amorosa escre-
parto. Nem posso compreender mesmo, essa assimi-
veu a “Tristesse d'Olympio"... E ainda existeesse lação da criação artística com o parto. Deriva cer-
mistério de "infelicidade me persegue", como dizia tamente da semelhança objetiva, entre o lho e a
o samba. A verdade mais insolúvel é essa... Você obra-de-arte. O momento de criação é gostosíssimo,
já reparou num m de festa de que você participou verdadeiramente aquela sublimidade de integração
de corpo e alma, apaixonadamente. Festa acabou e de dadivosidade da ser, em que a gente ca na
e você sente um vazio inconsistente, que não chega ejaculação sexual, É tão sublime mnesmo, é tama-
a doer, não chega a ser desilusã0, não chega a ser nha a integração, que a gente não se pode ilhar
nada de nitidamente quali cável: você apenas num estado de conciência crítica e se analisar. O
atinge uma noção vaga de mesquinhez. Tudo o ser mais frágil do mundo, mais escravo, mais inde-
que houve e que foi bom, como que não foi bastan- feso é o homem no momento da ejaculação: ele
te! Não recuse a felicidade. O momento há-de vir ca por completo inerme. Esse o momento da cria-
em que você perceberá meia assustado que ela foi ção artística. O que sucede, é que esse momento é
imensa e que não foi bastante. rapidíssimo (como a ejaculação), dura alguns se-
Você na sua carta me pareceu que está um gundos. E logo a gente principia o trabalho mnais
pouco místico a respeito da necessidade do sofri- penoso e principa.lmente nuito mais inquieto de
mento pessoal para a realização artística. Pelo me- artefazer, corrigir, criticar, julgar, intencionalizar,
nos você a rma peremptoriamente: e essa reali- dirigir a obra-de-arte, polir, ete. etc., sacri car
zação, é inequívoco, que só o sofrimento é capaz coisas que gosta em proveito de uma signi cação
de proporcionar". Mas vejo assustado que estou no funcional da obra-de-arte, que é mais importante
caminho de mais cinco páginas de datilogra a! E que a gente, o diabo. Nisso é que vem muito sofri-
também co um bocado com medo das minhas mento, muita fadiga, muita indecisão. Mas é estra-
cartas se tornarem pretensiosas, como si eu tivesse nho como neste trabalho longo, você constante-

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mente se về atirado de novo à volúpia da criação, lho futuro. Ainda havia o que comentar na sua
é incrível como você "inventa". Parece que você carta, mas estou cansado. Eu aconselharia desde
está gélido, dirigindo friamente o trabalho de aper- logo a você nãa se prender a equações muito níti-
feiçoamento e no entanto, até no desistir volunta- das e simplórias, A nal das contas você, justamen-
riamente de uma coisa que você gosta, em proveita te por ser um intelectual, não pode se alimentar
de uma nalidade maior, que seja mesmo apenas o de provérbios; não se esqueça que os provérbios
equilíbrio formal da obra-de-arte, mesmo nesse sa- também são uma derivação da lei da preguiça, um
crifício, você retorna a um estado ativo de poesia, viver morrendo. Por exemplo: no m quase da sua
você pratica uma ejaculaçāo, você está em plena carta, você me pergunta si a arte paira acima e
volúpia criadora. É preciso ser mais humilde, ainda independente, dominando a vida e não sendo domi-
aqui, mais operário, e não misti car por demais nada por ela". Isso é provérbio, é simplório por
essa história da arte ser lha da dor. É dolorido, é demais. Que a arte, sob certo ponto, paire acima
penoso, é fatigante, é sobretudo inquieto, inquie- da vida, inda é possível aceitar, porque se servindo
tante e insatisfatório. Mas é gostoso também, é de elementos estéticos (a beleza, o material trans-
másculo, é, sobretudo, de uma grande dignidade. positor, a crítica da vida, etc.) ela nunca é a vida
A arte é "uma tortura", como você diz? Apenas eu mesma, e nos oferece uma síntese nova dessa mes-
lhe pergunto uma coisa: você conhece qualquer ma vida. A arte não há dúvida nenhuma que é uma
pro ssionalidade humana que, realizada com dig- espécie de mentira, mas no sentido em que você
nidade, não seja uma tortura também? É a vaidade diz ao enfermo que ele está milhor ou à criança
da artista individualistizado que o leva ao seu que si ela brincar com fogo, mija na cama. Você
"atendite et videte si est dolor sicut dolor meus". não mente com a intenção de enganar, mas justo
Isso é individualismo pretensioso. A tortura é de na intenção de atingir um bene ciamento maior.
todos e se confunde com o que de-fato seja viver Mas por tudo isto mesmo, a arte jamais é indepen-
humanamente. O que sucede é que a maioria dos dente da vida: há interdependência insolúvel e
seres (e também dos artistas) vegeta em vez de irrecorrível, que faz com que nem a vida domine a
humanamente viver. E não estaremos por acaso in- arte nem esta àquela. Não deslige assim proverbial-
sultando os vegetais?. mente duas coisas que são a mesma coisa. Até como
Será que estas digressões escritas ao léu do aspiraçāo elas são a mesma coisa: pois tudo não
pensamento e sem ordenação, lhe bastam? Si não aspira a uma vida milhor?.
bastarem continue discutindo, até você se xar Com um abraço do
num estado de conciência su ciente pra organizar
em você uma atitude coordenadora do seu traba- Mário de Andrade

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nariz no livro de reza mas a outra nem iss0. E aí
principiou o martírio delas, com a dama-de-com-
panhia que o advogado ajustara pra ler pra elas.
S. Paulo, 21-III-42 É que as meninas eram muito curiosas e gostavam
de sabero que se passava nesse mundo. E cada vez
Fernando que o advogado aparecia, toda quarta, era aquela
queixumeira, a mulher não gostava de ler os faleci-
Vou aproveitar este espacinho de sábado pra mentos, ou pulava as natícias do rei da Inglaterra,
ou os anúncios de futebol. Escusado dizer que as
lhe escrever logo. Ora quei chateado com essa his-
tória de você ter machucado os olhos, já milhorou meninas nada sabiam da Inglaterra e ainda menos
de futebol. E já não havia mais dama-de-compa-
bastante? Mas tome cuidado, heim: não se bote aí
nhia na cidade com mais de um milhão de habi-
lendo que mais lendo, como si a vida fosse acabar
tantes que não tivesse passado pelas meninas. Aí
amanhã. Aproveite a convalescença justo pra não
o advogado lembrou de comprar um rádio. Insta-
ler. É preciso saber aproveitar até os inconvenien-
lou-se o rádio e quando ele principiou funcionando
tes que surgem: deve ser estranho a gente pensar foi aquele deslumbramento. Isso as meninas bota-
que não pode ler... Eu sei uma história que o An- ram o rádio no mais forte da sua pujante gritaria
tonio Alcântara Machado me contava, não lembro e cavam ali rentinhas escutando que mais es-
si invenção dele. Eram duas velhinhas irmãs. cutando. Até quando uma delas carecia de ir lá
Vinham do tempo da guerra do Paraguai, muito dentro no quartinho, cava se contendo, se con-
pobres, morando numa casinha que o pai deixara tendo até não poder mais. E comentavam as dife-
pra elas, na rua da Imperatriz. Ora sucedeu que a rentes PR, e ligavam pro estrangeiro não enten-
rua da Imperatriz acabou se chamando Quinze de denda língua estrangeira. E foi justo quando
Novembro, as "nmeninas" envelheceram e a casa da chegou a Semana Eucarística e as meninas que
rua Quinze recebeu uma oferta de dois mil contos, eram completamente católicas puderam assistir in-
quando não custava oito, no tempo da guerra do teira a Semana Eucarística, que acabou num do-
Paraguai. As “meninas" venderam a casa, mas não mingo triunfal. Ora já na segunda o advogado
tinham no que gastar porque não sabiam gastar e recebeu o telefonema, que ele vinha mesmo na
estavan muito velhas. Não tỉnham herdeiros, não quarta, mas as meninas pediam a ele fazer o favor
tinham parentes, só uns conhecidos de longe em de vir nessa segunda mesmo, que era urgente. O
longe, e agora o advogado que tratava da fortuna advogado bem sabia que não era possível ter qual-
delas. E fosse por que fosse, as duas caram cegas. quer urgência nas meninas mas veio assim mesmo.
Uma inda enxergava um bocadinh0 esfregando o
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Chegou, foi dizer "bom-dia', quando as velhinhas muito milhor: você desenhou com deliciosa deli-
o abraçaram chorando, até quiseram beijar a mão cadeza de toques os dois meninos Custódio e Nici-
dele, tudo por causa do rádio. Bem, por isso é que nha, ambos de uma pureza, de um irregular psico-
o tinham chamado. Podiam morrer apesar da saúde lógico excelente. Não digo o mesmo do Ru nho,
imensa e queriam modi car o testamento já, será gura completamente protocolar e conhecida,
que o dinheiro delas dava? Mas além do dinheiro muito encontrável nos livros de leituras de grupo.
para as cinqüenta missas por alma delas, que esse Mas os outros dois estão ótimos, os casos estão bem
precisava car por causa do inferno, que o resto escolhidos e o Ru nho não chega a atrapalhar.
tudo fosse empregado em doar um rádio igualzi- Quando ia chegando no m me assustei muito.
nho àquele para cada instituto de cegos do Brasil. Assim que Nicinha vai correndo até a alicer por
Gostou? Bem, seus contos. Gostei muito da causa da pneumonia do companheiro, todos nós jå
"Companheiro" e pouco do Professor. Também este sabemos que ela vai topar com o sapo. A coisa ca
era de di cílima realizaçāo. Nãa tem dúvida que de um esperado desesperante e desapontante. Mas
você caracterizou psicologicamente o professor, surge o "nosso nal. Bla pega no sapo, apesar do
mas além de pôr demais psicologia anedótica (re- noja, e vai levá-lo ao Custódio, ora, que facilidade!
pare que o tipo é um pouco impossível, por exage- Felizmente você escapou disso e o nal, em vez de
ra), creio que você escolheu o processo mais pobre desapontar, cou muito no e sem concessão ao
pro caso: o monólogo interior. Numa psicologia es- sentimentalismo fácil, A pena é o esperado do sapo.
cassa como a do professor, repare como o monólogo Mas também não chega a atrapalhar, porque o n-
interior não rendeu. Você não poude escapar da zinho conserta tudo. A linguagem está muito gosto-
pobreza de memórias e sensações: e a pobreza, em- sa. Você já re etiu sobre a sintaxe: "as sionomias
bora caracterizante, cou literariamente pobre de se lhe embaralharam na memória'"? Repare como
verdade. A volta sucessiva dos mesmos fatos (e está cando desagradável, pernóstica, lusitana e só
fatos poucos) cou duma grande monotonia e de encontrável em linguagem pretensiosa. Tem muito
um já sabido que sómesnmo realizado numa lingua- jeito de dizer isso evitando o "se lhe" que não é da
gem, num estilo perfeitíssimo como arte, ainda po- índole brasileira normal, Até você pode cortar, se
deria interessar. Creio que pro seu assunto, em vez livrando da gramática, o "lhe" sem que o sentido
đo monólogo interior, teria sido preferível a descri- eo ritma expressivo se prejudiquem, Fica prejudi-
ção de autor. Você poria em evidência a pobreza cada apenas a gramática, mas não esqueça nunca
interior do tipo, mas enriqueceria essa pobreza com que a língua é que faz a gramática e não a gramá-
a sua observação pessoal de autor. Realmente acho tica que faz a língua. “Qual, não se lembrava, as
esse conto apenas regular. Já o Companheiro é sionomias se embaralhavam na memória". Ou

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"na memória dele" contentando até a gramática. conservava a pureza lá dele! Onde que vamos parar
Mas isto é uma nuga que até pode ser apenas com a sinceridade!... Mas, reconheço: tudo é por-
implicância minha. Você já está escrevendo com que não conceituam sinceridade nem expontanei-
muita naturalidade e clareza, embora numa lin- dade. Sinceridade pra com o quê? Expontaneidade
guagem um pouco falada. Será preciso atingir a imediata ou posterior? Você conhece coisa mais
linguagem escrita isto é o di cílimo. Mas nãa expontânea que uma fábula de La Fontaine? Pois
se preocupe muito com isto ainda não. Virá com tem algumas que foram refeitas dez vezes, Since-
o temp. ridade com o que a gente é, ou com o que a gente
O problema da sinceridade, da expontaneida- tem a convicção que deve ser? Se eu expontanea-
de: não me lembra o que lhe disse na carta ante- mente, em 1922, deixava escapar um "Parece-me
rior. Como escrevo carta sem guardar cópia e o que' ., levado por vinte anos dessa sinceridade do
mais... expontânea e sinceramente possível,desde meu ser, mas depois corrigia pra "Me parece que",
já exijo de você a complacência com os calos! En- levado pela convicção de uma sinceridade nova,
tendeu! Me explico: Exijo de você que aceite os ainda por atingir, onde que eu fui sincero? Seria a
meus exageros e até contradições, A nal não estou sinceridade fugir à minha convicção, à sinceridade
escrevendo um tratado mas apenas nos procurando do espírito, respeitando a sinceridade expontânea
viver milhor. Ora, sustento sempre que um quase manual? Esta não passava de uma memória quase
desastre de automóvel, quinze minutos antes, uma exclusivamente muscular, vinte anos de escrever
dorzinha nos calos ou de-corno, um submarino do "Parece-me". Engraçado: estou me lembranda que
Eixo como uma pena engasgante me fazem forçar depois de bem sistematizado o "pra" em mim, tor-
a nota ou até mudar de opinião, tanto como um nado expontâneo e subconciente, quando me suce-
raciocínio novo ou uma atitude social, Realmente o dia ter que ler algum escrito antigo, você não ima-
escolho grande que tenho encontrado na minha gina cada sobressalto que eu tinha! topava um
vida, da parte dos outros, é esse da sinceridade. "para" e a sensação imediata e muito desagradável
É a porta aberta pra todas as preguiçasmentais, que eu tinha era de me pegar num erro de lingua-
todas as ignorâncias técnicas e até todas as safa- gem! Sinceridade de quando você, piasate, nadava
dezas morais! Contam do Olegário Mariano que de cachorro ou de hoje que você se prolonga no
jamais lê um livro "pra não se in uenciar". Issa silvo elástico de umn crawl? A sinceridade, a expon-
não é nada: ainda não faz três dias um amigo meu taneidade são coisas que se modi cam constante-
aqui + ou - da sua idade, chegava ao repúdio de mente, dia por dia. Têm de ser repudiadas como
tudo quanto não fossem as tendências erpontâneas elementOs concienmtes da obra-de-arte que é arti -
do ser, porque assim ao menos ele era sincero e cial, artefazer, artefeitura. Sinceridade, exponta-

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neidade não pode ser elemento estético nem muito Em seguida há o caso da língua. (Me descul-
menos técnico! A sinceridade é, sem a gente querer.
pe, quero lembrar sempre o Rabelais, e o Ibsen do
Como elementos concientes da arte, sinceridade e
"Peer Gynt", junto com Cervantes). Você precisa
expontaneidade só podem ser academismos, passa-
ler certos clássicos portugueses, De preferência os
dismos, preguiça e ignorância. Exclusivamente. En-
antigos: uns poucos, A Vida do Arcebispo" acho
m: em arte não existe o problema da sinceridade.
indispensável. Fernão Mendes Pinta e as "Déca-
Você me pede que lhe aconselhe algumas lei
turas... Isso é difícil como o diabo, mé'irmão. Não das". Um pouco também (um pouco só) de Vieira.
Mas si se embalar, tome cuidado sempre de não
sei bem o que você já leu... Bem, você já leu Ca-
therine Mans eld? já leu Rilke? Como atualização ler demais.
do seu ser artístico você precisava ler bastante Ler os brasileiros... Meu Deus! aqui também
esses dois. E também Selma Lagerloef, que não me entra a noção da dignidade do indivíduo. Me pa-
lembro como se escreve. Que bom ter sua idade rece um pouco canalha a gente conhecer Anatole
pra ler. . France e não ter lido as "Cartas Chilenas"; falar
Você precisa de uma cultura literária geral, de Proust e não falar de Gregório de Matos ou Cruz
que não deve ser feita duma vez só, mas dentro de e Souza. É mais uma questão humana de proximi-
um programa que pode durar ponhamos seis anos. dade. E, já falei, creio, você precisa muito de ler
Há certas coisas que a gente carece conhecer e Machado de Assis, mas ler com reler, roubando ele,
gostar. Gostar de, faz parte da dignidade humana plagiando ele, não no estilo nem no espírito mas
do indivíduo. Você precisa ler Camões, nos Luzíadas na delicadeza de sentimento. Machado de Assis não
e nos Sonetos pelo menos. E com ordem de gostar. deve ser pra você um companheiro de vida, mas
Numa edição crítica boa. Você precisa ler, da mes- apenas um tesouro onde você vai roubar. Roube
ma forma, Dante na Divina Comédia inteirae na dele tudo quanto possa ser útil a você, jogando o
Vita Nuova. E Cervantes, o Goethe do Fausta e dos resto fora. Mas sempre não se esquecendo que você
romances (si souber alemão também as tragédias pode roubar errado. O problema é delicadíssimo.
e os lieder), está claro todo o Shakespeare, e assim Veja o problema do estilo: si você escrever, chegar
por diante. É impossível detalhar. Mas não são a escrever no estilo de Machado de Assis você se
muitos não. E a Bíblia, por favor, não se esqueça! esculhamba por completo, se perde. Mas você pre-
En m há uns dez homens essenciais, que a gente cisava chegar a um estilo que fosse em você e em
lễ, gostando de antemão, com ordem de gostar, 1952, o correspondente da que foi o estilo de Ma-
e gostando a posteriori. Faz parte da dignidade chado de Assis pro tempo dele. Disto ainda estes
do ser. dois contos novos me convencem inda mais, O Pro-

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fessor falhou porque você não tỉnha o estilo que o e contra todos. Os dois critérios principais, creio
salvaria. O Companheiro é muito bom, mas, com (nunca pensei muito no caso), devern ser esses:
perfeição de estilo a mais, dava obra-prima.
1.0 Leituras imprescindíveis para a digni-
Olha, Fernando, eu não quero desiludir você
dade do intelectual
com a minha severidade. Mas eu sou assim mes-
2,0 O critério da proximidade
mo, quê que hei-de fazer! Nos ns do ano passado
me falaram uma coisa de uma perversidade que a) proximidade do ser social (suas
hoje considero deveras maligna, de tanto que tem tendências políticas, religiosas e
me prejudicado: que eu era "o animador mais desa- outras)
nimador que existe'", Deve ser difícil agüentar o b) proximidade do ser individual (suas
tranco do meu gostar não-gostista. Outro dia ainda tendências e gestos e idéias de ar-
se deu um fato que achei assombroso, me falaram. tista)
Gilda Morais Rocha que publicou uns contos em c) proximidade do ser vital (em prin-
"Clima" é minha prima, vive aqui em casa, ponho cípio a arte atual deve interessar
mais que a do passada)
bastante esperança nela. É inteligentíssima, isso
d) proximidade do ser étnico (em prin-
não tem dúrida. Pois ela me deu uma crítica que
cípio a literatura brasileira deve
zera do "Out of the Night" pra ler e opinar. Fui
interessar mais que a portuguesa,
lendo, sugerindo coisas, lembrando outras dicções
esta mais que a espanhola, a latina
pra certas frases, etc. Gostei muito, disse a elae mais que a germânica, a européia
entreguei os originais. Felizmente que ela riu. Diz- mais que a chinesa).
que eu tinha gostado muito, mas nos originais não
tinha quase frase sem sugestões minhas de mu- As leituras imprescindíveis não podem ser devora-
dança!!! Vai ser dro de você agüentar o tranco, às đas. E fazendo uma mistura bem equilibrada de
tudo, acho que você consegue uma boa cultura
vezes me arrependo. Portanto o que eu peço mesmo
a você é car sempre alerta: não vá aceitando sem
literária.
E não é possível um intelectual sem loso a
mais sem menos tudo o que eu falar. Não co
nem orientação social. Mas sabre isto, só falando
zangado por isso e me evite essa coisa de car
outro dia; si quiser que eu fale, insista. Hoje estou
pesando com precisão cada frase e opinião minha: já cansado, com dor na mão.
tá feito? Com um abraço do
Pois o que eu acho, em principal, é que você
estabeleça um plano de leitura e o siga contra tudo Mário

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dias lendo um autor esquisito que nãa era meu
desconhecido, mas que eu não reconhecia bem
mais, porque já tinha mudado. E era aquela devas-
S. Paulo, 8-VI-42 tação. Quase tuda ia pra cesta, e bem rasgadinho,
rasgadinhíssimo pela preciosa vaidade de que nin-
Fernando guém, uma criada, o lixeiro pegasse aquilo pra ler,
rindo de mim. E principiava entulhando gaveta
Arre que sua última carta data de três de outra vez, livre! gratuito? no meu reino sem fadiga
maio e eu sem lhe responder! Mas as ocupações de criar! Era bom e foi tantas vezes sublime!
se acumulam e eu queria que você espiasse Só aqui Depois a vida passa, irmão pequeno. Você
sobre a cômoda de meu estúdio as coisas que adquire compromissos com o seu próprio passado,
amontoei pra fazer nesta semana, é uma coluna. E adquire um nome e como neste país nāo se vive
ainda me estoura casa a dentro a possibilidade de de escrever cção, vem dez mil ocupações disper-
ir no Rio por uns quatro dias! Resultado: as coisas sivas e você về com, mais que melancolia, vê mas é
carão pra semana que vem e aí é que a coluna com um desgosto amargo que você senta na escri-
vira Gaurisancar. Mas é de manhã, minha manhã, vaninha eo que vai escrever tem de ser publicado,
isto é, nove e meia e jurei principiar a semana lhe é muito amargo. Mas como não publicar! Só viran-
escrevendo. do jardineiro mesmo ou vendedor de vassouras
Aliás releio sua carta e vejo que desta vez automáticas que também são jeitos de ganhar di-
posso escrever pouco porque não há verdadeiro as- nheiro. Mas o que você não pode é não ganhar
sunto, mais que os da camaradagem. Mas como vai dinheiro. E você, seu jeito é esse, está presa e sem
o conto que virou romance? Mande contar mais de- seu rein0: senta na mesa e escreve o artigo pra
talhadamente o assunto e coma é que você o está ser publicado. É pau isso, muito pau.
desenvolvendo. Vá escrevendo, vá escrevendo, além O papel está acabando e você me perguntou
de ser mesmo uma delícia produzir pra quem tem sobre o artiga do Ấlvaro Lins sobre as Poesias".
mesmo a bossa, maior delícia é isso da gente ser Não sei, talvez seja humildade natural, mas gostei.
moço e ir escrevendo sem nenhum compromisso, Haveria por certo o que discutir, mas a dúvida não
pelo simples ato macho de produzir. Quando me prova que ele esteja enganado. E tenho a certeza
lembro os milhares de páginas que escrevi, versos, que foi honestíssimo.
meditações, contos, romances quase sempre cados Eé só por hoje. Mas não se esqueça de mim
pra acabar "mais tarde". As coisas iam se acumu- e mande contar coisas. Com o abraço do
lando, passavam dois anos, três, Um dia era pre- Mário
ciso desentulhar as gavetas e eu cava uns quinze
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mais escrever versos, ela escreverá, mostrará, pu-
blicará e será poeta.
Os versos de sua noiva, poucos assim, não pro-
vam nem negam poesia. Provam que se trata de
S. Paulo, 6-VIII-42
pessoa muito nova, e muito inteligente, ou pelo
menos, muito hábil. É certo que sua noiva lê e co-
Fernando
nhece bastante a poesia "nava" do Brasil. Os poe-
mas têm o mesmo ar sibilino de vários dos milha-
Juventude perversa, amor insaciável. Mas res de poetas e da corrente da poesia atual, nascida
você julgava siquer imaginável que diante dos ter- de Augusto Frederico Schmidt, Murilo Mendes e
mos da sua carta, que se esforçaram por demais outros. Não sei o que ela leu, si os epígonos ou os
por ser discretas, eu não imaginasse logo que os ecos. Aliás, com toda a rudeza, vocês dois me dei-
versos mandados eram de sua noiva! Bom: talvez xem que lhes diga que estes versos têm até ar de
pra não prejudicar, nem eu deva analisar o ridí- pastiche,de à la manière de".
culo sublime que vocês alcançaram: releia com sua Mas, veja a di culdade em que você me dei-
noiva, si tiver paciência, a terceira estância das xou: é que nem esse ranço de imitação prova nada!
"Bôdas Montevideanas". "Aceitam tudo porque já Nem siquer posso. dizer a ela que mude de rumo
não é mais hora de enxergar". porque quem sabe ela vai dar a um rumo feito, a
Está claro que a primeira coisa que z, foi sua coroação de nitiva! É fácil dizer diante do
virar a folha datilografada e ver de quem eram os gostoso incontestável destes versos: Continue. Mas
versos, só pra ter certeza da minha certeza. Depois eu não sou desses, Fernando. Quando lhe es-
me irritei, quei danado com você. "Esses pungas crevi expontaneamente e acreditei no seu valor que
de rapazelhos diz-que não têm a menor piedade só faltava você justi car e só você pode justi car,
pela gente!" etc., disse o diabo. Porque Fernando, eu me decidia diante de um volume inteiro. E assim
o que poderei dizer sobre vinte versos! E principal- mesmo com muita reserva e discreção. Eu juro que
mente sobre vinte versos gostosos! Não digo nada! você tem talento de escritor, mas nada mais juro.
Ou terei que dizer um tratado de psicologia cria- E si juro nem é tanto pelos seus contos milhores,
dora! mas pelos outros. Foi pelo ruim ou fraco que eu
Os versos de sua noiva não permitem dizer decidi, vendo neles um fraco ou ruim que não eram
nada. Prometem tudo e não prometem nada. Digo os da bestidade ou da desimportância.
isto semno menor receio de fazer vocês dois sofre- Diante dos vinte ou trinta versos da sua
rem, porque tenho a convicção de que si sua noiva noiva eu só posso dizer: Continue. Justo o que não
for de-fato poeta, mesmo que eu ordene ela a nunca
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interessa dizer. Porque não diz nada. Porque ou ela
continua mesmo, e isso independerá totalmente do o sentimento da morte? Mas na mocidade, talvez
que eu disse, ou de repente ou aos poucos ca outra nem isto seja possível e eu esteja sendo injusto.
coisa, mulher de sua casa, mãe de seus lhos, ou O que me consola nesta posição injusta em
tanto poderá por uma bomba no Palácio da Liber- que vocês me colocaram, é que, si sua noiva for-de-
dade como uma or nos cabelos. -fato poeta, não adianta nada eu desanimar. A
Não quero, não posso orientar. Toda essa fatalidade sobrepujará o desânimo. E que vocês
poesia profunda e sibilina, ansiosa por mistérios e nunca botem a culpa em mim. Eu digo: continue.
valores eternos, toda essa poesia desnmintidora de Si ela não continuar, a culpa será dela. Ou não
vidas reais, contraditória com as vidas reais, me será culpa: será simplesmente a verdade. Que os
assombra, me assusta, me deixa tímido. Talvez es- versos são gostosos, é inegável que são. E aliás são
teja certo. Mas será possível que a poesia escrita mais estados-de-poesia que poemas.
desminta desse jeito, o que a gente está vivendo, Não tinha ainda lhe escrito em parte pela di-
sofrendo, gosando na terra? Será possível "trans- culdade desta carta bamba, bruxoleante, sem sim
ferência" tamanha! nem não, em parte porque a vida me atira aos
Quando Vitor Hugo nos braços felizes do limites extremos da intensidade. Não tenho pra
amor, escrevia a "Tristesse D'Olympio", ele se utili- onde me mexer na alma e no corpo, tudo cheio.
zava sempre de experiências que todos temos. A Me vi de-repente de novo professorando História
transferência era admissível, era mínima. Mas da Música no Conservatório daqui e já estou com-
porque sua noiva não escreve uns versos dizendo pletamente perdido de paixão pelos alunos, que al-
que gosta de você, que quer casar,' que se irrita mas desempenadas! Mas perco um dia todo, como
com a espera e até que chora de raiva, de insatis- hoje, arranjando papéis pra me registrar professor
fação. Onde está a poesia? Toda poesia não será na Secretaria do Trabalho. Aliás, é por isto que
poema-de-circunstância? E porque nos poemas-
esta carta vai já. Fiquei numa irritação tamanha
de-circunstância (poemas de desejo) essa necessi- que me foi impossível ir dormir na hora legítima.
As contrariedades, as irritações, os protocolos do
dade de tomar o elevador, ir pro vigésima andar
dia, a perda do dia me arrazou. E quando saíram
dos arranhacéus da imaginação?.
daqui, às 24 horas, os amigos que vieram por cau-
Eu não digo mais sobre estes poemas, Fer-
sa do professor Herskovsitz que veio me visitar
nando. Será que sua noiva é capaz de escrever
também, estava tão excitado que ainda acabei um
duas quadrinhas sobre a violeta, sobre o amor, so-
conto difícil, um tal de "Frederico Paciência", estu-
bre um maltrapilho, uma dor-de-dente, Deus, ou
dando o que há de frágil e misturado nas grandes

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amizades da rapazice, e ainda excitação sobrando.
me lembrei de lhe escrever.
Agora sâo três horas da manhã e vou dormir.
Fiquei contente de saber que você acabou o seu ro-
mance. O que será? tenho curiosidade, esperança São Paulo, 9/X/42
e... medo é fatal.
Vocês não zanguem com esta carta. Os cul- Fernando
pados são vocês. Mais você que ela, muito moço
pra amar o amor pelo amor, querendo amar o uni- Você terminava sua carta dizendo que só a
verso, sublimidade, divindade total desta vida. E mandava pra eu saber que você recebera a minha
querendo, não sem razão, que ela seja tudo. Seja anterior. De-fato: nunca vi carta mais feia, mais
feliz, Fernando. Que ela lhe dễ, mais do que a glo- errada. Olha, Fernando, na sua idade isso é natu-
ri cação absoluta do estupefaciente, o completa- ral: preocupações de guerra, C.P.0.R., noiva, estu-
mento adequado de você. O ela escrever versos é dos que a gente não sabe si deve continuar no mo-
muito bom. Prova preocupaçāo pelas coisas do mento, mobilizações, o diabo tudo isso é natural
sentimento intelectual, é você. Que Deus os aben- que encha o peito de um moço sensível e inteli-
Çoe. gente e estoura em, a nal das contas, quinta-co-
Com o abraço do Mário de Andrade lunismos!!!
Puxa, como cou horrível você dizer que "não
épossível mais ter a mínima esperança"!... Está
claro que não é possível deixar de ter uma formi-
dável, uma quente e gostosa esperança nos ho-
mens, mas o que eu me pergunto é si se trata de
colocar o problema do ser num sentido de espe-
rança? Bom, não quero agora de palangque me
agarrar a uma palavra que você escreveu e a nal
das contas não será o seu sentimento-pensamento
completo, mas com efeito nos momentos íntimos
de covardia inde nida, de covardia que a gente re-
calca e não chegará jamais à conciência moral, é
tão comnumesse jeito de por tudo na esperança...
Não é você, milhões fazem essa "imoralidade".
Porque isso é des gurar por completo o problema

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do ser: você coloca o sentido da vida não como esse rendimento tem de se condicionar não apenas
ação, coma rendimento, mas como inação, como à humanidade do ser, mas à atualidade humana
recompensa! do mundo. Como ca difícil agora eu continuar
A nal das contas a esperança principalmente falando.... Porque é quase impossível eu conti-
no sentido de umna vida milhor que é o da sua car- nuar apenas na tese, sem que os meus pensamern-
ta, é uma espécie de egoísmo hediondo, pura más- tos e sentimentos inter ram mostrando um ca-
cara acovardada dessa coisa sublime que é a amor minho que eu sei certo, e tomando as formas
dos homens. O nosso problema moral, mais que perigosas do conselho. Eu não quero aconselhar
apenas moral, o nosso problema humano nãa con- você no que você tem a fazer, eu apenas a rmo
siste em esperar, em ter esperança numa vida mi- que você tem que fazer, Fernando.
lhor – consistemas em fazer, fazer imediatamen- Você tem medo da morte? Você terá pena de
te, essa vida milhor. Não é que essa vida milhor morrer na sua mocidade? Si tem pena, si tem
seja difícil ou mesmo "impossível" como você a r- medo, o que lhe garanto é que jamais você terá
ma em sua desistência de moço (?), ela há de vir, uma "mocidade". Estou sempre dentro do meu as-
tem de vir. Desque você nãa confunda pueril- sunto, sim. Porque số mesmo falando assim eu
mente "vida milhor" com felicidade total e perfei- persevero na tese do rendimento condicionado à
ção. A vida milhor vem. Tem vindo sempre e con- atualidade humana, digo vida. Nós estamos vi-
tinuará vindo. Mas eu não tenho nada, em minha vendo uma vida de morte. Por detrás de cada mor-
conciência do meu ser e em meu amor humano, ro a morte erguendo o rabo espia a cidade. Do
com essa recompensa coletiva que uns acham ga- meio da multidão espirra a morte violenta, "antes
rantida coma eu, outros improvável e outros im- que chegue a tempo da velhice". Mas isso é mil
possível. Como ser individual e como amante de vezes milhor do que adquirir no mn da vida a con-
humanidade, eu devo, eu tenho que mover o gesto ciência de não ter vivido. De não ter rendido, em-
do meu braço, a palavra da minha boca, eu tenha bora laureado de recompensas.
que render. Repito: é um problema de rendimento Minha conferência que tanto impressionau
e não de recompensa. Você fazendo o seu serviço você e impressionou vários. .. Minha conferência
militar é rendimento; escrevendo a seu romance é um dessescasOs amargos em que, na minha con-
com honestidade artística é rendimnento; amando ciência esportiva da vida, eu costumo dizer, perdi
a sua noiva é rendimento. a jogo. A contagem dos pontos desta vez, o "esco-
Bom, isto não basta, está claro. O rendimen- re", foi dois a um. Porque eu também z um gol,
to do ser não é só de dentro pra fora. O que 0 isto não há dúrida. Si eu publiquei aquela con-
torna angustioso em momnentos como o atual é que ssão tão dolorosa, não de fracasso, mas de des-

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caminho, de algo errado, foi na "esperança" de dar Luís, José de Campinas, Teofrasto do Nordeste. Os
a0s mais novos uma conciência mais determinan- "modernistas" do meu tempo aqui me advertiriam
te do momento. Infelizmente não rendi como que- discretos que issa é "messianismo". Mas eu não
ria. Percebi, assombrado em minha ingenuidade, tenho medo das palavras, E já te querO muito bem.
que os moços ainda estavam mais velhos que eu,
e só colho gols de desistência e de desânimo contra Mário de Andrade
mim. Uma lavada, meu caro.
Mas eu z um gol sim, Inesperadamente z
um gol... a meu favor, quando eu me colocava
em favor dos outros. Eu é que me decidi. Eu é
que tenho (não esqueça sempre do “na medida
das minhas possibilidades" ) reagido contra a mi-
nha recompensa" e ando agindo no sentido de
completar aquela vida de intelectual que, na con-
ferência, eu reconheci e julguei incompleta. E
agora já posso lhe dizer que me sinto mais nobre
e mais viril. Será que me completarei? Meus ges-
tos novos não estarão acaso errados?... Não me
interessam semelhantes “esperanças'". Sei que, de
conciência nítida e impiedosa, com toda a hones-
tidade, é que decidi dos meus atos atuais. E com
toda a paixão movo os meus gestos. Me sinto...
feliz? Feliz. Feliz naquela exatidão da infelicida-
de que não se conforma, não se consola, não se
contenta de milhoras transitórias, não cruza os
braços e nem por sombra lembra esse pior entre os
verbos, desistir.
Parece que lhe estou dando uma lição de mo-
ral... não pensei nisso. Não, apenas eu vivo você
apaixonadamente, sua carta me brutalizou, fez
mal. E a felicidade humana nisto tudo é que Fer-
nando de Belo Horizonte, pode ser Maria de Sãa

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com facilidade quando acho ruim o que faço. Mas
desta vez não pude me convencer de jogar fora
nada. Resolvi dormir milhor sobre a coisa e ainda
estou dormindo. Mas cada vez que lembro dela, e
S. Paulo, 6-XII-42 é constante, me dá um malestar danado, uma an-
gústia que chega a ser sica. Está muito pau isso.
Fernando Mas me botei trabalhando noutras coisas, ter-
minei a composição de dois livros, um de ensaios
Sua carta chegou aqui quando eu estava em e outro de crônicas leves, tudo já publicado em jor-
crise.Isto é, não é bem crise: aquele estado de nais e revistas. Mas terminei, creio que a oitava
abatimento geral, de desilusão, de desgosto de si ou nona redação de um conto que anda atraves-
mesmo, de quando a gente acaba uma coisa. En- sado na minha vida desde creio que 1924, perdi
m esse terrível "no dia seguinte". Imagino que a data exata. Também andei mexendo noutro, um
pra todos os artistas, aliás pra toda a gente, deve caso de poço bem fortezinho. Como caso. Mas
ser a mnesma coisa. Até enterro desilude. Não também é trabalho que já z duas redações dife-
posso esquecer do momento em que, enterrado meu rentes e ainda não me agrada su cientemente.
Pai, cheguei em casa de volta do cemitério. Foi a Acho que vou meter a mão noutro conto, este mês,
coisa mais... sim: mais desilusória desse mundo. si a vida der.
Já estava muito fatigado de sofrer pra que o sofri- Mas é mês de muita atividade obrigatória e
mento me empolgasse e me tirasse o sentido nor- tenho que ir no Rio, talvez que pra janeiro.
mal da vida. Na verdade o que eu sentia era que Gostei muito de você gostar do Otávio de Fa-
estava no dia seguinte de um fato extra-quotidia- ria. Eu tenho enorme admiração por ele e consi-
no e que tudo estava continuando no seu terra-à- dero o romance dele a coisa mais intensa e mais
-terra normal. Foi horrível a desilusão que senti. séria da nossa novelística.
Queria continuar na "festa" do sofrimento, nas Mande me contar como vai o seu romance.
lágrimas, no mexe-mexe do enterro, papéis, gen- Estou numa curiosidade vasta. Trabalhe muito,
tes, e não havia mais nada. Tenho sempre essa me'rmãozinho e dê duro pra ver o que sai. Si não
mesma sensação de abatimento quando acabo um prestar, comece outro. Dezenove anos. .. Que coi-
trabalho e principalmente publico um livro. sa fantástica se ter dezenove anos!
Pois estava assim, terminando o grande es- Com um abraço do
forço de composição do Café. Aliás poucas vezes
uma criação minha tem me desgostado tão desi- Mário
lusória e hesitantemente como esta. Sei jogar fora

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Eu gosto muito de certas qualidades de vocês,
a timidez, a falta de brilho exterior, o pudor, a
ironia, a esperteza. Esse caso de esperteza, por
exemplo, é muito subtil. Os nordestinos também
S. Paulo 23-I-43 são espertos e os paraenses. Paulista não: paulista
é pesadão. Mas quando os do norte fazem esper-
Fernanda teza e são espertos, tudo transparece franco, bru-
tal e toma, em referência à moral da civilização
Acabo de reler a sua carta e quei da mesma cristā, um ar de safadeza, de sem-vergonhice, é o
forma que da primeira vez: numa impossibilidade "exército do Pará". Muita gente detesta isso. Eu
muito grande de responder. O assunto quando se compreendo. É que há neles uma espécie de pri-
refere a V. se torna de tal forma grave e ao mesmo marismo (estou falando em geral, é claro) que os
tempo tão evasivo que tenho medo de qualquer pa- torna por assim dizer mais leais. Há uma certa
lavra minha e mesmo compreensão. Terei com- grandeza nisso, que eu amo. Talvez eu "ame" mais
preendido? Uma palavra errada poderá ferir mui- os nordestinos que os mineiros.
to a sua alma delicada. E eu não sei. E são todas essas qualidades delicadas que
Aliás é possível que V. tenha escrito a sua prejudicam bastante os mineiros, não é o provin-
última carta num desses momentos de angústia cianismo, acredite. São Paulo pode ser maior que
grande em que a gente precisa mesmo recorrer a Belo Horizonte, mas continua terrivelmente provin-
algum amigo sinão estoura. Imagino que agora ciana. Não há dúvida que pra mim vocês sejam,
V. já estará mais calmo embora sempre sofrendo sempre em geral, a inteligência mais completada do
muito as suas indecisões. Brasil, a que mais harmoniosamente reúne todas
Primeiro falemos dos mineiros, puxa como V. as qualidades e caracteres da Inteligência. No en-
é mineiro cemn por cento. Deixe que eu lhe diga tanto seria a maior das falsidades dizer que vocês
uma vez por todas, sem favor: eu adoro os minei- têm realizado uma criação intelectual maior que a
ros, a maneira de sensibilidade dos mineiros, a dos outros brasileiros em igualdade de situação
qualidade intelectual derivada disso. Não tem dú- produtiva. Vocês, sobretudo, e justo pela maneira
vida que os mineiros são as inteligências mais sen- intelectual mineira, nunca vêm à frente. Passado
síveis e também mais completadas do Brasil. Mas o momento da chamada "Escola Mineira", vocês se
disso tudo deriva uma conciência que não é mais limitam sempre a ir na cauda do cordão. Vocês
exatamente lógica mas excessiva, uma clarividên- descon am demais. Falta ingenuidade a vocês.
cia que não é mais dinâmica mas céptica e tenden- Não é ter conciência que prejudica a vocês, mas
do para a inatividade e o esconderijo.

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ter excesso de conciência. Talvez seja um pouco
bom con ar no acaso do futuro, mas vocês são de maríamos dignidade moral, na sua "prosápia",
todos os brasileiros, os únicos que eliminaram o an- pelas mil e uma exigências da sua economia inter-
jo-da-guarda. Em que até os plutocratas con am. na que re ete imediatamente sobre a do Brasil,
Veja um caso bastante divertido: é sabido que continua a menina-dos-olhos do governo. Povo
os mineiros, e devido não tem dúida à maneira da inerme, políticos sem-vergonhas, capitalistas infa-
inteligência deles, são uns “políticos" de primeira memente cínicos, uma coisa moralmente horrível
ordem, diz-que os mais hábeis políticos do Brasil. que me envergonha. Mas que sustos dá constan-
Durante o regime do P.R.P. foi assim e enquanto temente no governo! E preocupações! Minas? Mi-
os paulistas politiquentos imaginavam mandar e nas brilha com o crachá da presidência na peita-
mandavam, Minas se engrandecia internamente. ria, está conosco. E ogoverno não se amola com
É verdade que a riqueza do café foi tamanha que Minas. Minas duvida, sei que duvida até do seu
ainda permitiu que muita coisa casse aqui den- crachá lustroso, mas também prefere não se amo-
tro pra engrandecimento da terra, mas uma por- lar. É tão interrogativo o fazer! e então é um Ciro
centagem in nitamente maior se escoava na com- dos Anjos que não faz comno é um politicão que não
pra do gostinho de mandar. faz ambos são a mesma coisa.
Mas veio a inteligência diabólica de Getúlio Fernando, eu vejo o re exo disto tudo na sua
Vargas. O que fazer com esses mineiros incomo- carta. Mas comno você é moço e ainda não está
dativos? Era preciso um jeito de eliminá-los. Foi "acomodado" na vida, V. se exaspera e se desespe-
criado esse privilégio ridículo da "presidência", en- ra. E sofre muito. Um João Alphonsus sofre bem.
quanto os outros estados todos cavam sob o jugo Essa é a conversão acomnodatícia que o diferença
ditatorial das "interventorias". Minas que se go- a ele e aos mais, dos moços como você. Ele já sofre
verne! 0 quetambémé um jeito depensar por bem, internamente, numa espécie de volúpia bran-
dentro: Minas que se arranje! Enquantoo gover- da. Mas você e vários outros moços d'aí, vocês
no do país é obrigado a cuidar de e proteger todos olham isso e enxergam; e por isso sofrem muit0,
os outros estados, talvez nunca Minas tenha atra- naquele estado dinâmico do sofrimento que exige
vessado um período de tamanha pasmaceira de perpetrar um gesto. Você exige de si mesmo o ges-
engrandecimento interno como de 1930 pra cá. O to, mas ao mesmo tempo a qualidade mineira da
próprio São Paulo odiado do governo com razão e sua inteligência enche V. de perguntas e não sabe
sem razão, além do seu ritmo de engrandecimento o gesto, o ato que pode fazer. Você se lembra em
interno mais normal devido à sua riqueza, si con- "Fantasia", de Walt Disney, aquela passagem da
tinua ininterruptamente espesinhado no que cha- Fuga de Bach, em que se vê um túnel confuso e
aquele como que caixão de defunto se bota andan-
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do e se anula túnel a dentro? A inteligência de e que ele será sempre como uma região amaldiçoa-
vocês, mineiros moços (e aliás de vários moços da onde ninguém consegue penetrar. E minha
paulistas também) está muito assim. Não é con- obra será sacri cada com isso?". Tomei a paciên-
ciência: é excesso de conciência. Além da dvida, cia de copiar estas frases da carta de V. pra que
sempre nobre, sobre o valor pessoal, mas que quan- você as guarde consigo. Foram escritas aos deze-
do desprovida de ingenuidade nos imobiliza em nove anos! em 1943!!! Em 1843 os Álvares-de-
caixão de defunto, vocês exigem saber o que vão -Azevedo do tempo escreviam essas mesmas frases.
encontrar no fundo obscuro do túnel. E vocês não E você sabe com0 elas saíram vividas, verdadeiras
têm certeza que seja uma qualquer espécie de dia. de dentro de você. É você. Mas eu sei como elas
Assim, nem mesmno o caixão se bota andando. O saíram igualmente vividas e sofridas dos Álvares-
crachá da inteligência relumia na peitaria enga- -de-Azevedo maiores e menores de todos os tempos.
nada. Mas é a estagnação. De muitos moços mi- Mas você me interromperá com todíssima a
neiros e paulistas tenho ouvido ultimamente os razão: "Mas eu não tenho nada com Álvares de
julgamentos, as análises mais implacavelmente Azevedo e si coincido com ele, ele que se fornique!
clarividentes sobre o confusionismo do momento É a meu sofrimento, é o meu caso que eu tenho
que passa e as incertezas pessimistas sobre o futu- que resolver". E você tem razão, Fernando. O que
ro próximo. O que me assombra e me entristece eu quis foi apenas dar mais humanidade ao seu
muito, é que toda essa clarividência sádica é um egoísmo. Digo mesmo: dar mais egoísmo, dar mais
pretexto para não fazer. profundidade ao seu sofrimento e ao seu egoísmo.
Eé precisa antes de mais nada, fazer. Fer- Porque você ainda não é o "egoísta" no sentido
nando é preciso fazer. Eu creio que você vive justa- em que Milton, Goethe, Dante, Camões o foram,
mente num elemento estagnado em que o seu de- no sentida em que o artista, o homem tem de ser
ver é fazer. Você está arripiado de perguntas inú- egoísta. Pra se realizar. Você pensa "nos outros",
teis. "Coragem eu tenho, si for necessário. Mas é hesita em "sacri car os outros", e esta aparência
necessário?"; "Cheguei a um ponto em que sinto de humanidade é que me parece deshumana. Mes-
que é preciso tomar alguma decisão. Porque si eu quínhamente humana. Apoucadamente humana,
caso para depois resolver a questão, depois é que como si a sua humanidade de você se resumisse
não resolvo mesmo"; “Porque isso de sacri car às quatro ou cinco pessoas que você toca com a
amor, felicidade, tudo en m, eu top0 mesmo, estou mão!
disposto. Mas sacri car os outros?"; "Nada pior Eu não sei, Fernando, eu não estou aconse-
para um indivíduo do que o dia em que percebe Ihando nada, V. tem de resolver sozinho. Mas ha-
que não há compreensão possível, isso é quimera, verá mesmo o que resolver! Tudo não estará indo

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certo? E neste caso o seu sofrimento e as suas dú- com uma semana de antecedência, da sua vinda.
vidas não derivam nem das circunstâncias da sua Vivo sempre de horas marcadas e assim poderei
vida, nem da sua mocidade ávida de sofrer, mas das reservar muitas horas para a nossa convivência.
próprias realidades tão confusas da vida atual do Este mês já escrevi dois contos mas estão ape-
homem. Não será talvez preferível e mais profun- nas em primeira redaçāo, como sempre, muito fra-
damente egoísta você não sacri car nada, nem cos. Talvez possa tirar alguma coisa deles, mas
facilidades, nem amor, nem goso, nem inimigos, não sei, nem quis reler. Apenas sei que um deles,
nem incompreensões, mas viver tudo isso junto, e por certo o milhor, terá que ser totalmente mo-
em tudo procurando apurar o que é você e buscan- di cado, por enquanto não passa de um rosário
do se superar em você? Praque imaginar si do ou- de anedotas que, si caracterizam a psicologia de
tro lado do túnel faz dia ou faz noite? Só tem um uma professorinha velha que tem uma crise de
jeito de saber: é ir até lá. O perigo não é encon- sexo, ainda não chegam a aprofundá-la. O outro
trar noite lá, mas encontrar a noite e imaginar conto, é um puro efeito de contraste, não vale na-
que é o dia. Talvez o milhor segredo da dignidade da si não conseguir escrever em estilo muito bom,
de ser homem é ter a força de dizer: "perdi". Por- que o sustente. Crio um ambiente de mistério e
que, Fernando, nós perdemos. Nós perdemos sem- malestar que deve durar por todo o conto, mas que
pre... O indivíduo humano serásempreessa "re- no último parágrafo se resolve numa piada humno-
gião amaldiçoada" em que não é exatamente que rística, voluntariamente larvar. Um caso de vir-
ninguém consiga penetrar, mas em que toda ex- tuosidade pura. Mas eu careço de me desfatigar
ploraçāo é imperfeita, incompleta. E por isso de- às vezes, nestes virtuosismos gratuitos das coisas
formadora. Até para o indivíduo mesmo. Eo signo mais sérias que me abalam muito. É típico: com-
pletado o Café", me meti emn contos cômicos e
da maldição.
nada doloridos. É sensível que fui levado a isso
Dê mesmo um pulo até São Paulo, Fernando,
pela precisão de me desfatigar.
eu gostava muito de conversar mais com você, ler
Bem, chega por hoje e estou escrevendo este
suas coisas com você aqui, lhe mostrar as minhas.
nalzinho já de-tarde. A carta foi escrita de-ma-
Não mne animo a Ihe mandar o conto que durou
nhã. Até breve. Não conto ir no Rio tão cedo. Si
vinte anos quase se fazendo. Não desejo que ele
for, avisarei você pra nossas viagens não se desen-
seja lido em separado por causa da delicadeza do contrarem.
assunto. Aliás não tenho atualmente duplicatas
Com a abraço do
dos meus contos e tenho medo muito do nosso cor-
reio, embora não deva me queixar muito dele. S Mário
lhe peço uma coisa: me prevenir mais ou menos

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não... A mim me parece que fragiliza o globo
ocular sem adiantar muito como expressão pes-
soal. Mas é apenas um problema que eu queria
perguntar a ele, não tenho opinião formada sobre.
S. Paulo, 16-VI-43 Apenas, pre ro o globo ocular liso. De resto todo
o busto da Helena está de uma simplicidade muito
Meu querido Fernando, nobre, uma síntese bem escultórica. No Ciro dos
Anjos há talvez uma certa preocupação realista
Daqui a pouco chega a criada com o "A janta inguietando um bocado o silêncio do material, não
tá na mesa' mas vou principiar lhe escrevendo sei me exprimir direito, não pensei bem no caso
assim mesmo. No sábado parta pra chacra do Tio e agora não tenho tempo pra pensar.
Pio e desta vez quero ver si nem penso. 20 dias de Você me fala em nos encontrarmos no Rio na
descanso total. Andei ruim mesmo, irmão peque- exposiçāo Portinari. Estou na angústia com a ex-
no. Com Rio e coisas-de-Rio piorei muito, quei posição do Portinari. Recebi um convite dos alu-
palito e verde. Mas creio que as Mulheres, as mi- nos (aqueles que estiveram aqui) da E. de Belas
nhas Santas Mulheres hão-de me botar forte. Uma Artes, pra fazer uma conferência na exposição. Eu
amiga me fez jurar pôr em experiência dois meses tenho mesmo que escrever a monogra a "Portina-
de tratamento severo e dieta legítima. Outra pe- ri" pra Argentina, mas queria fazer isso só quan-
diu mais um mês pra ela e eu não pude recusar. do voltasse das férias. Antes de mais nada preciso
Outra, nalmente, me pediu só mais uma semana, me "desintoxicar" diz a médico. Tanto que até os
de choro, que concedi também. A coisa principiou rodapés musicais da Folha da Manhã já bati ma-
no 15 de maio e com um mês já estou muito mi- lemal uns cinco pra deixar aqui. Você não imagi-
Ihor outra vez, pelo menos do fígado. O resto vai na, Fernando, basta ler duas horas seguidas, es-
indo. crever duas horas, me vêm dores-de-cabeça tão
Mas falar nissa é chato. A cabeça de Helena horríveis que co desesperado. Sim, já vêm mais
está aqui, importante e bela e forte de verdade. raramente agora, mas eu sinto, eu sei pelas Santas
Estou seriamente preocupado com o Pedrosa, acho Mulheres que um descanso total agora vai me fa-
que pode ir longe. A cabeça não é promessa não, zer um bem prodigioso.
é coisa que já se sustenta por si, muito bem cons- De maneira que só na volta, lá por 15 de ju-
truída, rica de planos, de linhas. Ah! me esqueci Iho posso pensar portinarices e a exposição dele se
de falar a ele aqui: será que ele faz muita questão fecha a 19 seguinte. Vou recusar a conferência.
mesmo de acusar a menina dos olhos? Fez isso na Aliás sem muita dor de coração, porque embora
Helena e no amanuense Belmiro. Eu não sei

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amigo íntimo da Portinari e pessoalmente o pre. completa também, mas eu sei que ele seria um
ferindo de muito ao Segall, tem havido briguetas
completamento de mim só si eu morresse agora já,
e intrigas de rivalidade entre os dOis e não quero coisa que não parece muito provável. Mas.
me sujar nessas baixuras de interesseiros ou sim- agora? o que fazer? Me lembrei de um livro de
plesmente sentimentais, combate, que se chamaria "Vademecum para os
A janta tá namesa. Atélogo - Artistas de boa-intenção", uma espécie de divaga-
Só recomeço a carta ås 22 e 30, uns amigos ções sobre estética, arte, o artista, funcionalidade
estiveram aqui. da arte, do artista, da obra-de-arte. Guarde pra
Bem, mas o que eu ia falando é que bem mais você o que estou lhe contando. Se trata apenas de
interessante que a ida ao Rio, foi o convite que re- um projeto muito vago, de que nada está escrito,
cebi pra ir a Belo Horizonte, duas conferências na, só imaginado em desordem. E si você contar vai
Fac. de Direito, pra um Centro. Mas neste caso o ser esse sofrimento chato de todo dia a gente escu-
que me obrigou a recusar foi a impossibilidade de tar "E o Vademecum como vai?"", coisas assim.
falar o que, pra moços e estudantes, eu deveria, Seria um livro como o de Tolstoi, nada cientí co
falar. Ah, Fernando, como está difícil a minha yi- mas cheio da minha verdade pessoal, de grande
da, cada vez mais difícil... Não é questão de fazer violência moral, drástico: ou o artista é honesto ou
conferência que, aliás, estou disposto a não falar é lho da puta. Coisas assim, mas sem palavra-
mais em público na minha vida, a, não ser por obri- -feia. Em todo caso, nãa sei nada e nem a você
gação ou caso absolutamente excepcional. Mas é dou o direito de me perguntar nunca “Em que -
que não me agüento mais, cada vez mais me sinto cou o projeto do Vademecum", te mando naquela
na obrigação de ou falar o que devo ou me calar parte.
duma vez, não sei como vai ser. Você não me falou que impressão teve do Otá-
Você me falou que desejava ler outra vez o vio de Faria. Pergunto porque na sua carta ante-
"Café" pra ter opinião mais livre. Você tem razão, rior você me perguntava sobre ele e não preciso
mas antes de mais nada não se esqueça que o lhe responder porque já conversamos aqui sobre.
"Café" não me satisfaz. Não fala como realização E creio que é só. Ah, tem o Hélio. Insista
que isso ele não me satisfaça, nem ele nem nenhu- com ele pra que me mande os versos, mesmo que
ma obra minha, nunca. O "Café" não me satisfaz, esteja disposto a não gostar nem publicar. Fiquei
quero dizer: no sentido de que eu não posso car gostando muito dele e ele me inquieta com os seus
nele. Eu sinto é verdade que, no instante, ele foi problemas ferozes. Como deve ser difícil ser moço
um como que completamento de uma etapa. E neste tempo que vivemos! Aqui sim, reconheço:
apenas isso, Está claro que, nesse sentido, ele me deve ser muito mais difícil do que já ser da minha

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idade. Um futuro de que vocês serão responsá- darei de quando você gostar do que eu faço, carei
veis... Que vocês terão que fazer... A não ser menos completo quando você não gostar, e a mes-
que virem aquele palavrãa que cou atrás... mo se dará com você. Mas repare como tudo se
Achei vocês dois diabolicamente inteligentes, quotidianizou doutra forma. Agora você poderá
puxa! Na sua idade eu era nada. E probleminhas nem perguntar mais nada, nem eu perguntar mais
tão outros. Os que eu tinha vocês têm, mas têm nada. Nada impede uma carta falando de Helena,
os seus, os deste tempo a mais, que eu não tive. E nada impede uma carta contando que vou pra fa-
com a vitalidade intelectual de vocês dois, eu ima- zenda. A presença, o contacto teve essa magia. Fi-
gino que, sim, sobretudo que vulcão caótico vocês camos libertos e gratuitos. Agora somos dois es-
têm por dentro. E co tão inquieto, com tanta traçalhados humanos que sabem que se querem
medo por vocês, medo por todos os lados. bem, se estimam, se entrevivem sem interesses
Olha, Fernando, é certo que eu gostava muito imediatos mais que essa glória de entreviver por
de você, das suas cartas, da que você promete, do coincidência. E cou tudo tão natável! Estou sor-
seu sofrimento pessoal. Mas foi muito bom você rindo por causa da beleza perigosa que me nasceu
vir aqui, tudo se engrandeceu, cou tão despido do, đo que, meu Deus! não é só do meu sentimen-
de inquietações, de esperanças. Ficou verdade e to, nem só do meu pensamento, que nasceu de mim
cou simples. A literatura é uma coisa grande todo. É que eu sei que agora eu dava a vida por
mas a literatura é de passagem. E agora nós ca- você. Não pensa que estou falando palavras gran-
mos mais humanos. Havia como que uma neces- des, não, são das mais simples. Não é por senti-
sidade em nós, que era superior, dominadora, e no mento, nem por esperança, nem siquer pelo seu
meu modo de ver muito desencaminhadora do sen- futuro em que creio. É por, é para distinguir o
timento sublime da amizade. Você precisava de carácter da amizade que nos liga a mim com 50
mim, de perguntar coisas pra saber. E eu preci- anos e você com 20. Você não se lembra bem, de-
sava de você, pra responder, pra dar o resultado da certo, mas no 3.0 ato do Café", enquanta os corais
minha experiência, que é tão necessário como per- de guerra se amontoam por detrás do muro do cor-
guntar. E havia sempre e também aquele meu tiço, tem aquela cena muda em que chega o chefe
egoísmo de não querer perder tempo com gente revolucionário malferido e morre. Vemn trazido por
inaproveitável. A sua presença aqui veio apagar dois companheiros moços, dos quais um parte
essas necessidades e tudo cou muito mais nobre- assim que entrega o moribundo às mulheres, mas
mente humano. Está claro, nada mudou e tudo o outro ca. Nisto vem a visita-da-saúde e a m0-
mudou completamente. Você continuará pergun- ribundo repara no moço que cou parado ali. Faz
tando coisas, eu respondendo coisas, eu me agra- um gesto enérgico, não pode nmais falar, coitado,

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mandando que o rapaz siga o seu destino de lutar.
O moço vai pra partir, enxuga uma lágrima, se de-
tém, volta, quer dar um beija de adeus nos cabelos
do chefe. Este se irrita, recusa e cai morto. É assim,
Fernando, que eu digo, sem demagogia nem exa-
gero, que eu hoje dava a vida por você. Si você dis- S. Paulo, 21-VIII-43
sesse o mesmo, eu cava danado como o chefe
revolucionário. Recusava a seu adeus inútil, dizen- Meu querido Fernando
do: Besta! vá viver! Hoje o que eu desejo simples-
mente, além, acima do que você promete em arte é Estou em aula! mas dei uma tare nha aos
saber você, moço, vivendo. Bem entendido: como alunos só pra poder lhe escrever. Mas é pouco. É
o moço revolucionário que foi arriscar a vida de só pra acusar o recebimento, ontem, da novela, do
novo por alguma coisa maior que o indivíduo. conto e da carta. Assim pode car sossegado, 0
Mesmo porque si não houvesse a coincidência, não correio foi el. Não demoro muito não, pra ler.
seríamos amigos. Mas me dê uns 15 dias, serve?
Com o abraço mais perfeita do Fiquei muito assanhado com a possibilidade
de você vir agora a São Paulo, antes do seu estágio
Mário militar. Tambémn por isso lhe escrevo. Si puder
vir venha logo, pois dia 4 de setembro vou ao Rio.
Lembrança pra Helena, Hélio e Rubião. * E eu que Mas não tinha o menor gosto de encontrar você
quei deescrever a ele.. lá, porque as dispersões são tantas, tenho tanta
gente pra ver e negócio a tratar, que não sobrará
nenhuma hora bem nossa.
Quanto a outubro desista do "nosso" aniver-
sário. Resolvi que ele não vai existir. Também por
questão de gente muita. E o resultado sempre in-
satisfatória da festinha, muito riso e pouco sizo, e
a gente só não se é, como não é de ninguém. Passo.
Pretendo sair de S. Paulo e ir engulir a gota que
não sei que gosto tem, entre-só com as visagens.
Sua carta estava uma delícia. Me diverti
muito com a minha viagem de motocicleta. Bem,
• Helena Valladares, Hélio Pellegrino e Murilo Rubião. (N. da E.). mas as vontades de ir a Minas estão amargando

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demais e creio que não vou esperar a próxima Se.
mana Santa. Irei nas fêrias si Deus quiser. Voct
iá estará lá, ndo o estágio. E nada de conferen-
cia nem entrevista em cima do jornal.
A vida entre amigos só.
Te vos abraço, Helena, Hélio e você S. Paulo, 24-VIII-43

Mário Meu querido Fernando

Acabo de ler duma assentada o conto de As-


tolfo Malaquias e a novela. Desta eu saí completa-
mente estupefato e desnortiado. A sensação que
eu tenho, atravessada de sustos, de medos e até de
tristezas, é que você acaba de escrever uma coisa
muito grande, uma coisa de primeira ordem.
Olha, Fernando, eu preciso reler isso pra me
garantir mais numa opinião assentada. Opinião,
aliás, que por mais assentada, não modi cará mui-
to o sentimento de agora. Além disso, eu já falhei
as aulas da manhã de hoje pra poder ler o seu
livro e estou por aqui de trabalho, um milhão de
coisinhas pra fazer. Por isso hoje só quero 1he fa-
lar sintético. Só porque preciso mesmo lhe falar.
Neste momento sim, é o tipo do momento do "nãa
analisa não": como eu queria que você estivesse
aqui comigo, leríamos juntos a novela, abando-
nando a vida, e comentando e conversando. Mas
vamos falar:
I– Contos. "O galo" nãotenho tempo pra
comentar. Mas não publique já, antes de eu lhe
escrever. Creio que dá coisa de 1.4 ordem e quero
comentar antes, o que acho de hesitante nele. O
Malaquias não tem dúvida. Talvez psicologica-
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a primeira vez que é tratado. Já li isso. Mas não
mente um pouco exagerado, não consegui me in-
tem a mnenor espécie de importância, O seu entre-
teressar muito. Mas não prejudica ninguém. Des-
cho é novo, e isto é que importa) mão é novidade
ses contos que servem galhardamente pra que o
como base, mas que você trata com verdadeira
livro tenha 290 páginas e a revista se varie nos
maestria de discreção, de força de verdade, de tris-
assuntos.
teza impregnante, de mistério realista (um misté-
II-A Novela: Anovela,éassombrosocomo rio legítimo, vital, e não o mistério pelo mistério) e
você está escrevendo bem a prosa de cção. É uma de malestar.
coisa admirável a sua linguagem e o seu estilo. Forma e fundo formam um conjunto harmo-
Você está escrevendo tão bem como Machada de niosíssimo, e se tem a sensação de que tal fundo
Assis! só vazado em tal forma. Na realidade uma obra-de-
Não estou exagerando o meu sentimento, nem arte muito perfeita, magistral! Análise psicológica
sei bem, no estado atônito em que estou, si falar muito bem feita e intensa. Só uma descaída besta
issa é um elogio, Fernando. Porque o fato grave que você vai modi car imediatamente pra não
é que você está, com todas as suas liberdades, com rompermos relações: a piada do moto-contínuo.
todos os seus brasileirismos, você está escrevendo Isso é tolice da grossa. A psicologia de quem está
"clássico"! você está "ático". Confesso que isso é contando a novela é bastante abatida., bastante
assustador. Depois de Machado de Assis, já se es- amarga pra impedir essa piada. O lugaré, de-fato,
creveu adiante de Machado de Assis. Mal mais estupendo pra um estouro do herói, e o estouro
adiante, principalmente o Nordeste eo Rio. Você existe, nós logo percebemos. Porém a frase que ele
volia, mas é certo que não senti nenhum ranço de vai dizer ao farmacêutico jamais será uma piada
academismo, desta vez. "erudita", nem com “sense of humour". Isto, veja
De vez em quando você tem descaídas pueris bem, até pode ter sucedido mesmo, na vida da vida,
mas na vida da arte não tem realidade nenhuma.
de expressão lingüística, embates desagradáveis
Substitua a frase do estouro por outra mnenos
de sílabas, cacófatos, essa coisada toda que os mo-
piada, mais bem escolhida e bem amarga. "Seu
dernos afetam desprezar, mas é por ignorância. O
Fulano, o senhor pode me informar a que horas
bemfalar existe, e tanto mais um estilo de tamanha
de que dia de que semana! de que ano! o senhor
pureza e simplicidade comno o que você conseguiu.
acaba de matar vovô!", coisa assim, estrompante,
Na releitura, lá pela semana que vem, corrigirei o
in nitamente pobre de espírito no in nitamente
que imagino, pra lhe mandar. rico sofrimento.
Quanto ao assunto: mesmo caso de lingua-
E publique já. Só tem um jeito: publicar ime-
gem. Umna coisa que não é novidade (um elemento
diatamente já, pra você se libertar desse livro. E
meio inexplicável dissolvendo uma família, não é
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nunca mais não fazer outro do mesmo gênero, meu
irmãozinho. Olha Fernando, eu não posso desen-
volver este assunto nesta carta, não tenho mais
tempo, ela já ultrapassou o tamanho que imagi-
nava lhe dar. E preciso pensar mais no assunto,
que é gravíssimo. E não sei si tenho razão. Mas eu São Paulo, 22-1X-43
sinto que há qualquer coisa de dissolvente, de
inútil, inútil não posso dizer, mas de hedonístico, Fernando,
de arte pela arte na sua novela, que não me entris-
tece, mas me preocupa. A nal das contas você tem En m o Martins decidiu algumna coisa de posi-
20 anos, você está adquirindo o seu instrumento tivo sobre o seu livro. Edita sim, mas quer
de trabalho, você também vem “marcado" pelas
leituras, e muito principalmente por tradição, fa- (Foi aqui que o seu telefonema interrompeu
mília, situação. Mas como é difícil desenvolver este a carta. Bem, o caso editorial está resolvido
assunto! Não pense, por favor, que quero literatura e também não se afobe com a minha ida aí,
"social", no sentido em que a fazem por aí. Mas si nem espalhe muito. Só irei com você em Belo
Ihe vier alguma inspiração de novo tema de roman- Horizonte, está claro, nem posso imaginar
ce, analise ele mais pra ver si vale a pena desen- Belo Horizonte sem você com Hélio. E Helerna
volver. "A Marca" precisa ser publicada já, pra você heleníssima, Bem, principiemos outra carta)
se livrar duma talvez obra-prima que está escravi-
zando você. Vou falar com o Martins. Você me diz que está sentindo di culdades em
O abraço irmão do refazer o capítulo da novela, e eu compreendo isso.
Realmente quando a gente sai do espírito dum li-
Mário Vro, é muito difícil, sinão impossível a gente se
reconduzir a esse espírito. Tenho um caso quase
Não reli, quei com preguiça. Mas repare bem: a dramático na minha vida que são dois assuntos de
que lhe digo aqui não é opinião xa, pode variar, contos concebidos por Belazarte que, o tempo foi
não como julgamento de valor que apenas poderá passando, o espírito de Belazarte se acabou em
aumentar ou diminuir de intensidade, mas será mim e os contos caram por fazer. Pois V. sabe
sempre o mesmo. A argumentação pró ou contra é uma coisa estranha? Está claro que me seria in-
que de pró pode virar contra, e de contra=pró: possível hoje escrever como Belazarte em 1923 a
careço pensar mais,. Mas que você fez obra de bele- 26, mas os assuntos existem, são, imagino, exce-
za não tenho dúvida nenhuma. Ciao. lentes. Mas me é impossível os apresentar no meu
Mário espírito atual. Sãa contos, são assuntos que só a

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Belazarte era possível aproveitar! Da mesma forma
com que acho uma obra-prima o “Sardanapalo" do de superstição da parte dela, que isso de ir lendo
João Alphonsus, mas si eu possuísse esse assunto um livro de cção em letra de fôrma e de repente
(que pertence a João Alphonsus, tanto quanto ter de ler umas páginas datilografadas anexas, tem
"Meu Japonês" pertence a Belazarte) me seria de causar um certo desequilíbrio. Estou meio des-
impossível escrever o conto! gostoso com o livro, mas muito desanimado pra
Em prosa não, mas em poesia tem coisas ainda reescrever tudo à máquina. Vou passando bem mal,
curiosíssimas: é que às vezes fazendo uma poesia mé'rmãozinho.
você se percebe numa integridade que já foi sua Estou bem cansado do dia parte do qual passei
e já lhe ditou poemas. E no entanto a poesia que na cama e o resto chateada em aulas e ocupações
você está fazendo no momento é até às vezes muito que não adiantam. Não sei si tenho ânimo pra
diferente das que você fez, como estilo e como tratar do outro assunto da sua carta, é complexo
assunto, no antigo estado integral do ser que está por demais: essa história de participação ou não
se repetindo no momento. participação.
Essas coisas sao bem curiosas. Eu creio que Olha, Fernando, eu não quero in uir na sua
valerá a pena você insistir um b0cado, pegar um vida nem na orientação que você possa tomar: isso
bom dia de vadiagem em Juiz de Fora, ler a novela é responsabilidade demais, Deus me livre. A argu-
de jacto e tentar milhorar, pelo menos milhorar mentação que você me dá é detestávele fragílima.
esse capítulo. Mas si não conseguir, não creio que Veja que no m, V. chega a um argumento de
o desastre seja grave. O capítulo assim como está, natureza meramente saudosista e sentimental
se sustenta pra exigência normal dos bons, ima- quando, reconhecendo que "de nada vale ser artista
gino. Talvez seja exigência demasiada da nossa de arte pura, mas não achamos (vocês, aí), graça
parte. em sermos apenas concientemente bestas". Ora, eu
Aliás, tem mesmo esse perigo de não repegar grifei o vocês "não acharem graça" mas o "apenas"
mais o espírito. Agora na remodelação do "Amar foi você quem grifou.
Verbo Intransitivo", cortei muita coisa e talvez pu- Mas quem mandou ser apenas concientemen-
desse cortar mais. Mas não tenho tempo pra re e- te besta! Isso de-fata não tem graça nenhuma pro
tir nem ânimo. Carecia reescrever à máquina todo intelectual verdadeiro. De resto si na crônica eu
o livra e não tenho coragem pra. Mas além dos exagerei até a "besta"" o intelectual que busca par-
cortes e modi cações itinerantes acrescentei um ticipar do amilhoramento político-social da huma-
capítulo. A Gilda achou completamente diferente nidade, ainda foi por um caso sentimental de sau-
como estilo. Eu noto certa diferença está claro, mas dosismo. Porque positivamente não se trata de ser
não tamanha assim. Imagino que há um bocado besta, nem é besta um Carlos Drummond de An-

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drade escrevendo os poemas que está fazendo agora,
nem posso me quali car de besta nessa seriação de causa dela. Você pode não participar da vida, mas
páginas sofridas que estão em “Cultura Musical", a sua obra, si não for um elemento do seu combate
na "Elegia de Abril", no "Movimento Modernista". (o que é nobre), será elemento pro combate dos
na "Atualidade de Chopin", nas crônicas musicais outros, O que é pelo menos um aviltamento, uma
de agorae en m no prefácio do Otávio. No entanto avacalhação do seu destino de artista. Disto, meu
a isso eu chamei e como imagem ainda posso cha- Fernando, você não poderá fugir.
mar de ser "concientemente besta". Não quero lhe repisar nesta carta aquelas fra-
Não, Fernando, siga o caminho que quiser, ses bem nítidas, imagino, que lhe falei naquela
mas não procure se iludir em sua conciência com nossa conversa tão grave, no bar, na véspera da
argumentos falsos que deslocam os problemas, A sua partida. Eu compreendo que para os vinte anos
conciência se ilude com enorme facilidade. da sua mocidade, a “Marca" era uma necessidade.
Só um problema existe pra um momento hu- Necessidade pessoal. Era mais um exercício que
mano da vida como este que estamos: quem não é outra coisa e você estava adquirindo um instru-
por mim, é contra mim. mento de trabalho. Mas você envelheceu prema-
turamente e de sopetão e de surpresa você hoje
Nem você, nem nenhum artista, poderá nem
tem duas realidades diante de si: um ótimo instru-
que queira não participar. Existem duas forças
mento de trabalho e um ótimo livro. Que funciona.
mais uma vez enmpenhadas em luta de vida ou de
E que vai, como obra-de-arte, funcionar inteira-
morte, digamos mais ou menos eufemisticamente:
mente independente de vocêe lhe virando as costas.
a força da coletividade e a força da che a. Ou você
Ora, si pra minha amizade e pra condescendência
não-conformistamente se inclue na coletividade ou
de alguns e provavelmente de certa crítica, o seu
conformistamente se vende à che a. De forma que
livro funcionará em relação a você e será saudado,
si V. escreve a "Marca" e ainda por cima arreia a
nada impede, nada jamais não impedirá nunca que
sua obra-de-arte de tão grandes elementos de be-
como obra-de-arte o seu livro seja uma obra ven-
leza e encantação, queira ou não queira, você está
dida aos interesses da che a, uma obra de função
servindo a uma das duas forças que lutam. Uma odiosamente capitalista, escravocrata e, meu Deus,
delas repudia o seu livro, a sua criação, a sua con- até nazista. Porque, não se esqueça, si você não quis
cepção, a odeia e si puder a destruirá. E faz bem. A ser nada disso e se tudo isso lhe será em conciência
outra aceita a sua obra-de-arte, a aplaude, a expõe odioso, o seu livro é independente de você mesmo
como modelo a seguir e si puder obrigará a repeti- como sendo de você. Porque o seu livro é mais,
ção dela por você nos seus livros futuros e por todos muito mais que a sua conciência, ele é você todi-
os outros artistas. E, meu Deus! fará bem. Pra nho. E isso ele re ete deslumbrantemente. Porque

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o que você conta e canta é o homem que se reco-
precisa sair quanto antes. Pra depois você decidir
nhece e aceita na sua incapacidade de nitiva e
que caminha tomar, si o partido dos homens, si o
de nidora de razão e de luta. Mas será que V. não
partido dos chefes. E não se iluda: num desses
enxerga logo o que é isso, meu Fernando! Esse é a partidos você há-de estar.
princípio mesmo do nazismo, da sua mística e da
sua prática. Um passo a mais e o fracassado implo- Muito fraternalmente o
ra a descida dos céus de um Fuehrer! Porque o que
há de mais pavoroso na fragilidade humana é que
Mário
não tem só chefes escravocratas, 0 infamante é
que háescravosescravocratastambém. Eo herói
do seu livro, no reconhecimento estatelado ("de -
nidor" é bem o termo) da sua incapacidade, não
passa de um escravo escravocrata.
Por issa é que eu chamei a sua novela de
"espécie" de obra-prima. Infelizmente, meu Fer-
nando, quem lida com palavras, que são elementos
de conciência, não pode fazer naturezas-mortas
nem paisagens, nem sambas e sinfonias mais fá-
ceis de disfarçar (pros outros) a seu conformismo
e não-participação. Esi eu considero o seu livro
uma obra admirável de beleza como estilo e expres-
sividade humana, ele me é profundamente desa-
gradável pelas forças deshumanas e desmoralizan-
tes, de que nenhuma beleza liberta nem libertará
nada. E por isso, com você, eu acho que V. precisa
publicar quanto antes o livro. Não publicar é im-
possível, tanto pra você como pra mim. É impos-
sível. Mas você precisa se libertar dessa experiência
em que você tão prematuramente envelheceu. Aos
30 anos eu ainda era um meninão do espírito e
escrevia bobagem muita. Aos 20 você escreve a
"Marca"e chegou aos 30 anos do espírito. O livro

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S. Paulo, 28-IX-43
S. Paulo, 27-X-43
Fernando
Meu querido Fernando
Só hoje vai a carta que lhe escrevi naquela não posso escrever, estou proibido pelos mé-
noite do seu telefonema. Mas no dia seguinte não dicos, mas hoje rompendo a proibição. Já estou
tive força pra levantar da cama e nela estive até milhor com um tratamento brutal, cada injeção
ontem. Está o diabo esta história, não sei onde irei
que parece pra cavalo. Fizeram conferência, exi-
parar. Hoje vou mandar buscar a Marca no Mar- gida pelo médico novo que se assustou conm o meu
tins, Irá por estes dias. Ciaa com abraço
estado geral. A conclusão é que não há morte ron-
Mário dando nas vizinhanças, mas que estou totalmente
depauperado e o organismo não queria reagir mais.
Agora parece que já está principiando a reagir. Mas
me obrigaram a largar de tudo.
E você? como vai reagindo na solidāo do exér-
cito? Faça sonetos ou poemas em oitava rima e dez
contos épicos hípicos sobre Caxias e Tiradentes.
Fiquei feliz com o seu telefonema embora
quase não pudesse me sustentar de-pé. Meus olhos
já estavam se turvando e eu naquela perspectiva
pândega da vertigem. Imagine que reaprendi a
sensação da vertigem esquecida aos 16 anos em que
aos 14 a eles um rojão de crescimento me botara na
manguari de altura que ainda tenho. Era um pa-
lito, tinha vertigens por qualquer sustinho. Pois
agora, no dia seguinte dos meus anos, uns amigos
violaram minha imobilidade forçada e medicinal,
estiveram aqui parolando umas três horas. Quando

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saíram, só esperei eles saírem, plorúm! e tive ma
vertigem, coisa besta.
Não quero pensar, mas praquë você não tira
uns dezexxemplares da "Marca" em papel milhor
numerados, fora de mercado? Não deve car muito S. Paulo, 1-XII-43
caro. Te abraço emprestandoa força do Hélio.
Fernando
Mário
amanheci me sentindo tão bem hoje. Tam-
bém, foi a primeira noite em que consegui dormir
umas quatro horas seguidas, depois que reentrei
nesta cama odiosa, semana e meia faz. Entrei aliás
com coragem e sem nenhum espírito de tragédia.
Mandei fazer uma mesa pra cima de cama que é
um labirinto, toma todas asposições, serve pra tudo
e que como sucede sempre com a teoria da como-
didade, nem sempre corresponde à comodidade
verdadeira. Em todo caso... os outros acham que
é uma maravilhae nela estou lhe escrevendo.
Recebi sua carta mas hoje nãa vou lhe respon-
der ainda aos problemas que ela contém. Precisa-
mos esclarecer bem certos pontos complicados em
que estamos nos metendo a respeito do destino do
artista. Mas não estou em condições de me meter
em tais assuntos, você bem pode imaginar. O caso,
meu Fernando, é que esses médicos como não con-
seguem mesmo descobrir o que é que me dá dor
de cabeça e menos ainda o jeito de me livrar dela.,
freudianamente "substituíram". Agora o que eu
tenho é uma úlcera do duodeno (que a radiogra a
provou, não tem dúvida) e resolveram me divertir
com um mês de imobilidade na cama e uma ali-
mentação em que, basta dizer a l.# semana só bebi

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leite. Dei na fraqueza, está claro e virei homem-da- te porque as cartas não fumam e não empestam o
natureza, com estes já onze dias sem fazer a barba, quarto do enferminho.
Estou repugnante. Bela Horizonte cará pra quando pudermos
Mas comno eu andei inquieto por causa de você estar juntos lá e eu sem muitas restrições alimen-
aí, foi muito desagradável. Os boatos (ou não) que tares.
circularam aqui sobre Minas eram dos mais negros Quando escrever ao Hélio, dê lembranças mi-
e a nal chegou a notícia de que você estava ferido. nhas a ele. Aquele injusto não há meios de mandar
Vivi em brazas. Queria escrever, mas temia de vá- os versOs.
rios temores, tanto mais que as coisas aqui tam-
bém não andavam nada azuis. Resolvi esperar na Um grande abraço pra você
minha ansiedade e en m sua carta chegou es- Mário
clarecendo o seu ferimento. Cuide bem disso, me'
irmão. Agora vou interromper porque estão me
avisando que o banho está pronto.

Dia 3
A carta cou suspensa, não ando passando
muito bem não, é um tal de desânimo geral mas
não deve ser nada. E embora jurando não penetrar
nos assuntos mais graves sobre a funcionalidade
humana do artista, queria comentar um bocado o
caso dos "Dias Perdidos" do Lúcio Cardoso, você
leu? Leia que vale a pena sob certos pontos-de-
vista. Eu ainda não acabei, mas estou na parte
nal. Não quero, apenas por desânimo (queria, d'aí
a espera desta carta, mas desisto) Ihe dizer o que
penso do livro. Me mande você primeiro o seu juízo.
Fico esperando.
E vou escrever logo, Fernando, por favor, Es-
crever, não, mas receber carta é uma gostosura
quando a gente está assim imobilizado numa cama.
Vale mais que as visitas dos amigos, principalmen-

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.

feliz e de princípio de principiar lhe respondendo


a sua sucosa carta última. Os assuntos mais graves,
só mesmo lá pelos primeiros dias do ano posso
S. Paulo, 24-XII-43 cuidar deles. Mas quero desde já lhe dizer que
gostei muito do seu conto e muitíssimo da poesia
Meu querido Fernando, do Hélio. Eu não posso ter uma opinião sobre
o Hélio, você compreende, só conheço dele aquele
estou com uma dor de corpo danada, pudera! outro poema de Mensagem que achei bonzinho mas
me permitiram sair da cama, estou muito fraco um pouco perigosanmente fácil, difícil de decidir
mas muito milhor, bem disposto, colorido, sem dor- qualquer coisa, porque tanto pode ser um fácil da
de-cabeça, ôh! sem dor-de-cabeça, estes são os pri- essencialidade do indivídu0 como um fácil mime-
meiros dias deste ano em que sinto a cabeça levi- tismo puro, maneirismo de época. Já este poema de
nha, levinha, capaz de ler, capaz de escrever sem agora gostei mesmo muitíssimo, sobretudo a gra-
esforço imenso de vontade e sem sofrimento imen- duação rítmica, esse ritmo que vai aos poucos se
so de toda a alma, de maneira que estou indo com inquietando e se quebrando mais e mais comno calor
muita sede ao pote, leio, penso coisa séria, escrevo, do estado poético de desespero pra alcançar no m
e pois ontem até me sentei nesta máquina logo aquela série de versos ritmicamente destempera-
depois da janta, estava mesmo chovendo e não dos, ih, gosei e goso isso mas de rolar no chão, pe-
podia sair um bocado, dar um passeiozinho, e re- dindo bênção pra cachorro e chamando gato de tio.
solvi escrever um artigo, mas era de obrigação, Mas da mesma forma, meu Deus, não consigo ter a
questão de ganha-pão, perdão! andei escrevinhan- menor opinião xa, não é possível, os dados são
do, careci reler uns escritos longos meus sobre Pas- muito poucos, tudo ainda pode ser puro maneiris-
toris de Natal, de modo que quando tudo se acabou mo de época e o Hélio o homem pai-de-família que
e as quatro páginas e pico da artigo estavam aqui, no tempo de estudante publicou um livro de ver-
que horam eram? pois não vê que eram as, pra mim sinho pra sempre depois renegado; como pode ser
atualmente, altas deshoras das vinte-e-quatro ho- um poema ótimo de poeta bissexto; como en m
ras, seu Mano! Agora a frase acabou. O resultado, pode ser um poema ótimo de um poeta ótimo, que
está claro, pra quem viveu um mês deitado na será um dia grande poeta: tudo isso pode ser. E
caminha e imóvel ao possível, o resultado dessas
me dá uma angústia na barriga, não saber mais
horas nesta máquina foi uma bruta dor-de-corpo nada que isso dele, está cando pau. Eu poderia
que me deu. Mas quero, preciso escrever pra você mandar dizer tudo isto pra ele, mas praquê, si não
estas pequenas linhas de Natal, de amizade muito é nenhuma opinião!

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Quanto ao seu conto, seu Fernando, é o que nos ensinar e nos propor também os indivíduos, e
eu já falei pra você: palavra de honra que acho ele os casos. E isso você fez, não tem dúrida, neste
uma perfeição. Mas agora explicar os meandros conto menos aprofundando indivíduos que nos
disto me obrigava a uma monogra a que é impos- propondo, também menos um casa (não tem im-
sível. Mas eis os pontos principais, dois. Você está portância) que um estado coletivo provocado pelo
com um tal estilo, que tudo quanto você escreve choque de duas psicologias que si não foram apro-
com trabalho honesto, é muito bom esteticamente. fundadas foram no entanto vigorosamente esboça-
Veja bem, o material, o ótimo instrumento de tra- das e vivem como arte su cientemente. E conse-
balho, a técnica en m. E uma coisa imensa, está guiu uma delícia, que é aquele estado malestarento
claro. Mas não é tudo. Com o estilo que você adqui- nal em que ninguém, nem mesmo a leitor sabe
riu, em grande parte porque o tem naturalmente exatamente ao certo o que está sucedendo (psicolo-
por natureza (o que é um sintoma magní co) , com gicamente) e quem é dos dois seres chocados o que
o seu estilo você, desque trabalhe honestamente, tem razão. É tudo uma verdadeira delícia, muita
não desleixe deshonestamente a obra-de-arte, você namente observada e desenhada com muito no
faz coisas esteticamente excelentes, excelentes do senso artístico. Mas agora entra a malvadez em
ponto-de-vista da beleza, Mas, si as suas obras são cena. O conto de você é esteticamente ótimo, é
já agora esteticanente ótimas, isso não quer neces- artístico sem contestação, é uma perfeição. Mas
sariamente dizer que elas sejam todas artistica- não basta! Porque o estado que você nos propõe e
mente ótimas também. Quero dizer: sob o ponto- revela neste conto, si é sutil, si é delicado e difícil
de-vista da beleza suas obras honestamente traba- de observar e pegar bem o cônmico delicioso dele não
Ihadas já são sempre reussidas, mas arte não é é su cientemente forte pra ser artisticamente óti-
beleza só. Não confunda: o seu conto é também mo, como esteticamente já é ótimo. Agora veja que
artisticamente muito bom, não estou negando isto, malvadeza da vida: Si você, como um Machado de
Deus me livre! Quais os elementos de arte, então, Assis ou um Maupassant, publicar cinco, seis livros
que eu aplaudo no seu conto e gosto deles? Arte é de contos, todos iguais a este como valor estético
um fenômeno de relação, pelo menos entre dois e artístico, você será um grande contista, um for-
indivíduos, o artista e o espectador. Na arte da midável escritor, um Machado de Assis, umn Mau-
prosa que é a que mais se aproxima fatalmente do passant. É que a franqueza de intensidade drama-
pensamento lógico, essa relação consiste entre ticamente (ou satiricamente) humana do seu con-
outras coisas (não posso enumerar tudo aqui, está to pode ser substituída pela quantidade. Você está
claro!) no artista nos revelar psicologias e os dra- me entendendo? Eu acho o seu conto muito mais
mas, comicidades etc. etc. nascidos dessas psico- perfeito que o poema do Hélio, e no entanto eu
logias e do choque de psicologias diferentes, en m, gosto mais do poema do Hélio que do seu conto.

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GERA.
AG

Tem nele uma intensidade, uma necessidade, uma da da sua inquietudice de gestos, da fome lindae
fatalidade que o torna artisticamente mais empol- generosa com que você está querendo ser e atra- a
gante, uma “lição" (a arte é sempre uma proposi- palhar a vida de todo mundo com a sua arte. A
ção de verdade, por intermédio da beleza) mais vida podia ser tão boa, Fernando. Sinm, nós pode-
necessária, mais digna de ser guardada que a lição mos fazer bem boazinha a nossa vida particular.
do conto de você. Ai, mas que dor no corpo, puxa! Mas iss0 não basta.
Agora si você publicar alguns livros de contos do Mário
diapasão deste e o Hélio alguns livros de poesias
no diapasão desta poesia dele, você será um tão
grande contista como ele grande poeta, E então a
diferença de intensidade humana entre um e outro,
em vez de ser valor artistico, será caracterização
artistica, E os estudiosos e os leitores dirão: Hélio
era um temperamento violento, sarcástico, dramá-
tico, Fernando era um temperamento delicado, com
um no sense of humour, insuperável no revelar
as situações subtis da psicologia humana. É ou não
é verdade esta malvadeza da vida?
Bom agora vou parar, chega por hoje. Quero
porém desde já lhe a ançar que a minha opinião
sobre o livro do Lúcio Cardoso diverge mas diverge
abertamente da de você, mas guarde segredíssimo
disto. Lhe explicarei o que penso na carta de ja-
neiro, E agora viva a ternura! Estou lhe abraçando
com o milhor e mais puro carinho amigo. Fernan-
do, pensando palavra que com muita comoção que
um ano se foi, que outro está chegando e que a
gente vive, está discutindo, está divergindo, está
lutando, está concordando, está tudo o que é inten-
samente glorioso na vida do homem indivíduo,
viver no gosto imenso de conviver com os amigos
verdadeiros. É tão imenso isso, Fernando. Estou
vendo você, achando graça na sua cara, dando risa-

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caminho que não era mais aquele atalho. Se pode
dizer que Luz no Subsolo é um atalho que levou ao
caminho novo, de acordo, mas não impede que seja
um atalho muitO péssimo. Mas não importa o valor
8. Paulo, 2-I1-44
do livro, importa a signi cação. Não tem dúvida
que uma análise primeira prova um sintoma ótimo:
Fernando, Lúcio procurava aprofundar o romance nacional
em sua capacidade de análise do ser e em sua
tenho uma carta prometida a você sobre Dias
profundidade de signi cado, ponhamos, losó co.
Perdidos e o Lúcio, o quê que hei-de-fazer!... O
Livro pra dar que pensar. Tudo isso seria ótimo,
caso do Lúcio tem sido uma das tragédias do, não não tem dúrida. Mas uma coisa dessas, que pode
sei si diga do meu pensamento, ou si duma opinião ser honestidade e esforço de trabalho, pode tam-
apenas mais indecisa, mas na certa uma das tra- bém ser vaidade e mania de grandeza,.
gédias do meu pensamentear. De vez em quando Aqui o caso psicológico do Lúcio e da "entou-
penso nele e vou pensando até que a insolubilidade rage" do Otávio de Faria se complica prodigiosa-
e principalmente o malestar me faz aborrecer de mente, e não posso decidir por mim. É estranho,
tudo e meu pensamento muda de assunto. O que mas todos os escritores que o Otávio de Faria
éo Lúcio, meu Deus! Não tem dúvida nenhuma que "agarra" pra salientar, ele ameaça prejudicar. O
ele principiou muito bem, mas muito bem mesmo, Schmidt tinha muita saúde... nanceira e si nãa
com um livro, até dois (Salgueiro) nada geniais se perdeu, o antiestetismo do Otávio o prejudicou
mas excelentes, denunciando ótimas qualidades e em de nitivo, assim como o valor-eternismo do
o tipo da promessa em que a gente deposita con- Otávio o viciou. Vinícius só poude se salvar, se li-
ança. Eis que estoura Luz no Subsolo, a minha bertando totalmente do Otávio e vindo pro lado
tragédia principiou, o que era aquilo! Lio livro com anti-valoreternista da poesia, o Manuel Bandeira
atenção e principalmente com uma paciência enor- que ele por vezes rastreou até conseguir a sua ori-
me, pelo respeito que o Lúcio me merecia, não por ginalidade própria, o Carlos Drummond, eu. O Vi-
amizade, mas pelas credenciais dos livros anterio- nícius foi integralmente um caso do que, respeitan-
res. Você faz esforço na sua carta pra defender o do a gente de longe, “estimando" mas com frieza,
livro, pura perda. O livro é uma obra fracassada, um dia resolve "se chegar", toma uns trancos logo
não tem dúvida nenhuma. Nem Otávio de Faria, de entrada, mas agüenta a mão e ca da banda de
nem os que garantem o Lúcio puderam defender cá. Está claro: isto não implica rompimento de
nem sustentar o livro. Nem o próprio Lúcio que, si amizade e admiração pelo Otávio, nem este é
nãa voltou atrás (nem devia) buscou depois outro nenhum vil pra brigar por causa disso, mas é in-

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contestável: o Vinícius. traiu a missão, a "men-
quiano, "profundo", cheio de intenções miripiribi-
sagem" (oh! ) que o Otávio dera pra ele, é ou não é?
rimirí cas. O que o livro vem falando pra cima de
E en m, o terceiro e que eu saiba, último caso,
moá é assim: Eu cá sou de Dostoievisqui pra cima,
o Lúcio. Este não conseguiu se livrar de Otávio de
não deixO por menos. Eu e Proust, Eu e Goethe, Eu
Faria, e você mesmo fala na sua carta que o Otávio
e Aristóteles. Desculpe, Fernando, estar exageran-
insiste em que vocês, de Minas, não dão ao Lúcio
do, sei que estou, mas é de angústia raivOsa, pelo
o valor devido. Ora, e aqui é que está o âmago do
malestar que o caso me dá, pelo perigo de estar
problema: resta saber si o Lúcio tem mesmo esse
falsi cando a psicologia do Lúcio de maneira de-
valor que o Otávio atribue a ele, ou apenas está
preciativa. Não estou depreciando ele não, o Lúcio
seguindo e realizando a missão, a mensagem que o
me deixa inclassi cável, eu, inclassi cável. Mas
Otávio deu pra ele e por isto é que este o superva-
isso principalmente é que eu tenho medo que o
loriza. Você repare: a mudança de Luz no Subso- Lúcio represente: uma mania de grandeza, uma
lo" não representa nenhuma evolução nem de téc- reação abusiva contra o nosso complexozinho de
nica nem de orientação nem de pensamento. É
inferioridade que era prejudicial mas que en m
outra coisa. Nada denuncia em Salgueiro, mas tinha a simpatia de ser modesto. Agora não, surge,
absolutamente nada, a transformação que se deu surgia com o Otávio, gênio que pretendeu destruir
depois. Mas é que, talvez, não tenha se dado ne- Freud (Eu e freud), ainda no cueiro, e que o pa-
nhuma evolução (já nem falo em progresso, mas rente Tristão achava que destruiu Freud mesmo
apenas evolução que, a princípio, pode ser pra (não destruiu nada, estava ainda em caminho
pior), nenhum desenvolvimento normal de um errado, e quando acertou a mão, no romance, a
espírito que se cultiva ou duvida e de repente não mim me dá a impressão de genial, de um dos maio-
duvida mais, nada disso. Eu desejava muito saber res romancistas vivos), surgia a corrente da Mania
como e quando o Lúcio conheceu o Otávio. Porque de Grandeza, universalista, psico losó ca, profun-
si foi entre Salgueiro e Luz no Subsolo, então co dista, valoreternista, com o Otávio, com toda a ra-
com muito pouca dúvida sobre a in uência dele- zão, e o Lúcio. Falo só no romance. E então prin-
téria decisória do Otávio. Porque a diferença espi- cipiaram descobrindo um subsolo tão profundo que
ritual entre Salgueiro e a Luz no Subsolo é prin- com outro mineiro (mineiroé cuera na mineiração
cipalmente esta: Luz no Subsolo procura se afastar mesmo! ) Cornélio Pena se tornou tão profundo ou
do cafagestismo do romance nacional contemporâ- fundo que atravessou o globo terráqueo e foi parar
neo, do Modernismo pra cá (especialmente do ca- no mundo da Lua, bolas! Mas não era tudo (não
fagestisma nordestino, ruralista, que o Lúcio se- passe estas minhas opiniões pra diante) , pois agora
guira nos livros anteriores), e fazer obra (ah!) não me surge o cuja mulher fugiu de Sodoma com
"universalista", de caracter urbano, e dostoievis- um romance que também não ca por menos e ele

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mesmo, sem a menor delicadeza de inteligência,
meu pensamento: Si eu não posso ter nenhuma in-
garantiu que não deixa por menos que Huxley e
tenção possível antes, porque o que vai sair, o de que
Morgan! Mas onde é que essa gente vai parar como
eu vou ter a tal de inspiração não depende do meu
sensibilidade de delicadeza! tem muita gente aqui
conciente, si antes eu não posso ter intenção, depois
no Brasil que,coma maior modéstia, eu acho muito de criada a obra-de-arte e trabalhada esteticamen-
maior que Huxley e outros, mas eu digo isso dos
te, o que eu veri co, com saúde, uma boa dose de
outros, não vou dizer de mim! nem mesmo siquer, malinconia e outra boa dose de bom-humor, é que
como é o caso sensível do Lúcio, vou dar descara-
a minha obra, coitadinha, não passa de minhazi-
damente a pensar isto de mim! caso me imaginasse nha. Dostoievisqui continuou muito maior.
assim! Não tem dúrida nenhuma que quando eu E isso é o Lúcio, talvez seja. Um escritor ro-
estou criando, eu sou maior que Goethe, que Dante, mancista de bastante valor (engraçado, ele é o tipo
que todo o mundo, porque. .. estou fora de mim. do sujeito que a gente não pode chamar de "talen-
Não temn dúvida nenhuma também que quando toso", não tem nada de brilhante nem de fácil como
estou corrigindo alimpando estetizando uma obra inteligência pessoal) talvez mesmo de muito valor,
já criada, eu faço todo o esforço pra ser maior que mas que tem se prejudicado muito na aspiração vai-
Goethe, Beethoven e Shakespeare. Mas antes de dosa de ser excepcional. E então busca a excepcio-
criar, antes de inventar meu assunto, antes de ter nalidade do profundérrimo (Luz no Subsolo), do
a tal de inspiração eu não tenho a menor intenção estranhérrimo (0s livros seguintes), da poesia que
possível de ser maior ou menor que ninguém. Sim- dá o sentidérrimo de tudo. Da poesia valoreternér-
plesmente porque não se pode ter. E quem tem, rima. E en m atinge um mais modesto equi-
quem se predetermina igual a tanto ou superior a líbrio por ter feito um livro menos intencional,
tanto por fazer a invenção desta forma, quero di- nestes Dias Perdidos. O milhor dos livros dele, mas
zer, predetermina que tem de ser profundíssimo, ainda bastante irregular como fatura.
predetermina que só desta maneira a gente é pro- Não vou criticar o livro, não devo. Nem posso,
fundíssimo, predetermina que tal loso smo é seria leviandade minha porque só li o liVIo uma
profundíssimo, tal análise é profundíssima, e pré- vez, não consegui terminar a terceira parte, me
faz a obra que vai criar, si tem valor, se prejudica chateei de nitivo e fui deixando, fui deixando e
totalmente. Si tem muitíssimo valor não chega a acabei não pegando mais no livro e não sinto a
se prejudicar porque a genialidade está sempre menor necessidade de pegar nele mais. A sua crí-
acima do indivíduo que a carrega, ninguém não tica é, seu Fernando, simplesmente admirável de
tem culpa de ser gênio. Como éo caso, sem exagero inteligência, de esforço intelectual pra descobrir
de genialidade, do Otávio de Faria. 0 Otávio é motivos pra gostar e justi car um livro. Aliás acre-
muito superior a ele mesmo. Mas não completei dito que não tenha sido esforço só, você gostou

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mesmo, você ainda está muito puro em arte pra
não se deixar levar pela melodia dos Dias Perdidos, ao estilo, como sucede com os escritores "áticos",
você ainda pode perder dias. Mas a esperteza exce- claros, simples. É a pensamento inteiro que sÓ se
lente das suas observações, tendendo muitas vezes move porque temn umas ondas mecânicas mnovidas
a torcer pra elogio o que na verdade é pejorativo a gasogênio que fazem andar. Abra o livro em qual-
(Você fez issa sem malícia nem maldade, está quer página, Fernando, e vá riscando os lugares-
claro: puro ato de amor) não impede que seja você comuns fraseológicos, de expressão de pensamento
mesmo a denunciar defeitos fundamentais do Lú- e você verá que o Lúcio não pensa por si, mas
cio. É típico quando você a rma "um grande do- porra! por representações coletivas.
mínio da língua que nele não é muito rica, um Porra também! cheguei na sexta página e
tanto incolor, mas muitíssimo bem aproveitada". ainda não principiei! Não quero fazer crítica do
Você re ita um bocado mais sobre o problema, Fer- livro. Acho que en m o Lúcio está chegando a um
nando. Na verdade não existe nenhum domínio da certo equilíbrio entre as suas desmesuradas ambi-
língua, pois o Lúcio nem chega a ter estilo ruim Ções de escritor e as suas qualidades naturais de,
como dizem do Otávio de Faria, a verdade é que também escritor. Nesse sentido, Dias Perdidos é
ele não tem estilo nenhum, Às vezes temn frases uma obra que se pode ler e tem mesmo, reconheço,
ótimas como expressão integral do pensamento, um valor impregnante que quando a gente faz um
mas de vez em quando surge uma frase larvar de esforço e pega o livro, leva a gente até longe. O
menino de grupo, é absurdo. Está claro que não é difícil é fazer novo esforço pra depois pegar no livro
outra vez e continuar. Ao passo que o Otávio,
muito rica, mas ser rica jamais foi qualidade em
estilo, em língua, mas você sem querer disfarçou
também um m, tambémn um representante duma
com essa expressão que não é qualidade nem defei-
civilização, duma classe, duma coisa que se acaba,
o Otávio não, si você zer o primeiro esforço, isso
to, a veri cação, currente calamo, que vem enm se-
basta, ele agarra você, domina você, você detesta o
guida, e esta sim é defeito grave, o um tanto inco-
que ele representa e não pode largar mais dele, nem
lor". Não tem cor nenhuma! Não tem, simplesmen-
que seja pra detestar ainda mais e ser mais contra
te porque não é, não chega a ser estilo, é coisa
ele. E aqui cheganmos ao que você me pergunta e é
balbuciante, que como a criança balbuciante, tem
a única coisa que me importa neste caso do Lúcio,
coisas ótimas ao lado de mais freqüentes coisas
nesta minha carta e em você: “Até que ponto a
sem a menor integridade expressiva. Eo que é pior,
gente pode dizer que ele (Lúcio nos Dias Perdidos)
uma linguagem, um estilo, um pensamento que se
funciona, participa"? você me pede pra responder.
move integralmente mecanizado, por meio de lu-
Covardia, seu Fernando, covardia de amor, de amor
gares-comuns. Veja bem, Fernando, não é o lugar-
por seus amigos do Rio e por si mesmo, autor da
comum que traz simplicidade, modéstia e até vigor "Marca", você já é maior e tenente, já deve res-

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ponder às suas di culdades morais por si mesmo, e
meu caminho não, porque. .. porque o Lúcio "é
não me perguntar como é que é. Mas estou brin-
um bom sujeito coitado", e eu não vou atacar ele,
cando, respondo sim. porque até os que estão do lado oposto ao dele, ca-
Ponha a mão no coração, com a maior sinceri- rão indignados comigo! Você está vendo bem como
dade de sentimento de que você for capaz e respon- ele não participa? É que pra gregos e troianos ele
da a si mesmo, não a mim, não me interessa que não passa da "moça simpática" que nem zanga por
você me dê razão, o que me interessa é que você a gente não dançar com ela durante um baile intei-
se coloque o problema pra sua integridade de artis- rinho, ca com a mesma cara.
ta (não de "esteta", mas de “artista", do homem O Lúcio acaba de elevar o nível do romance
que participa da vida e funciona nela por inter- dele, que ele reprincipiara noutro lugar com Luz
médio da valor estético que é a beleza). Coloque a no Subsolo. Com Dias Perdidos ele chega en m a
mão no coração e responda: Não é verdade que uma solução inofensiva mas satisfatória. Praquê!
diante da arte e do homem Otávio de Faria você meu Deus! praquê!... É como no caso dos diez
ama, se irrita, tem raiva ou dedicação? não é ver- caballos com que o espanhol saiu de Salamanca:
dade que boa ou má, gostosa ou desagradável, a Para nada, por Dios! O livro do Lúcio não adianta
obra do Otávio é uma pedra no caminho de você um isto em coisíssima nenhuma, a não ser na per-
como de todos, obra que, obra e homem que a gente sonalidade de escritor dele. Mas esta "é um bom
ousegue ou combate?... Agora me fala uma coisa sujeito'". Vou parar, tenho que ir no médico e faz
dolorosa: não é verdade que o Lúcio e a obra dele hora e neia que estou te escrevendo. Depois acabo.
não são pedra nenhuma no meio do caminho de En m: Dias Perdidos são mesmo dias inteiramen-
ninguém? não é coisa que a gente ame ou deteste? te perdidos. A gente lê, pode ler por vício, semi-
não é coisa que a gente perca muito tempo em masturbação semi-erudita de semi-burguês. Você já
defender nem em combater? pior: não é verdade viu certos rapazes das classes inferiorizadas, sem
en m que... que toda a gente confere que o Lúcio dinheiro pra cumprir o chamado, e que saem nos
é um bom sujeito? Da mesma forma como das domingos a noite, de mão no bolso da calça acari-
moças feias a gente fala que "coitada é tão simpá- ciando o pau? Uma certa dignidade impede eles
tica", do Lúcio como de certos outros "anjos", a da masturbação total. Então cam nessa semi-
gente confere, meio enjoativamente que "coitado, masturbação dolorosa e indiscreta. Esse é o vício
é um bom sujeito'", é "um esforçado". Veja bem, que o Lúcio ainda representa pra nós, ao menos pra
não há contradição nenhuma no problema inte- mim. Eu, uma certa dignidade me impede a mas-
rior danado de malestar que o Lúcio me causa, Isto turbação total de burguesice que seria ler, por
é puro problema pessoal meu, da minha vontade exemplo, Anatole France, e porisso eu me semimas-
de ser honesto pra com o valor dele, não é pedra no turba no goso mais sutil, mais doloroso mas igual-

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separe o homem da artista, é outra safadeza que
mente infecundo dum escritor "bien", profundo, andam fazendo, outra cobertura, outro disfarce,
cheio de dignidade estética. Nesse gênero de arte mais covardia) indicar os seus caminhos de ho-
que também é uma venda de corpo para o prazer, mem isso é muita responsabilidade pra mim. Tanto
o gênero e o nível de Dias Perdidos já não é mais, mais que, você sabe, tudo me levaria a indicar, a
eu sei, uma puta de porta aberta, já é puta de aconselhar a você uma tomada de posição que iria
apartamento. pôr você imediatamente em oposição com tudo o
Não imagine nem de longe, Fernando, que a que perfaz você, em oposição e luta com seu pas-
aspereza das comparações e dos juízos, indique o sado, com sua família, com a família de sua noiva
menor menosprezo pelo Lúcio, não indica. Indica (não com ela, sei), e faria da sua vida uma coisa
apenas que tudo isto me chateia muito. O Lúcio, sempre, sempre insolúvel, amargamente e chocha-
Dias Perdidos e toda essa melodia passiva que se mente insolúvel, cor-de-cinza. A menos que não
esconde em todos os desvios, todos os so smas, to- que rubra duma vez o que si intelectualmente
das as esquinas da vida como do pensamento pra pode ser satisfatório, si espiritualmente pode ser
no fundo explicar, provar expor uma covardia, que, um descanso, vai tornar a vida um inferno de sofri-
eu tamnbém sei, é sobretudo uma enorme, uma deso- mentos. E martírios mesmo. Você deve ter lido
ladora incapacidade vital. A gente diz uma palavra minha entrevista nas Diretrizes. Você sabe muito
bruta: são frouxos. Mas como eu no funda sei que a bem que o meu pensamento, desde o "Movimento
palavra bruta é uma apenas larvaridade de síntese, Modernista" até o prefácio ao Otávio de Freitas
e que o caso é mesmo isso, é mesmo frouxidão, mas Junior não pode mais implicar condescendência,
é sobretudo outra coisa, é a incapacidade que os você deve sabero que ando escrevendo, fazendo o
fez artistas, é a mesma incapacidade vital que os possível pra envenenar, pra enfraquecer os donos
faz criadores que os faz não-participantes, mum- da vida", pra tornar bem apodrecida esta coisa que
bavas, gigolôs, desgraçados e desgarrados, criado- está por aí pra que estoure duma vez, en m, você
res da divina e paranóica Beleza, louca de vontade sabe o que eu sou, onde estou e o que penso, mas
de ser inútil. não penso apenas: faço. Então, me'irmãozinho
Eéo caso de você, meu Fernando. Vou falar querido, vamos parar com estas conversas sobre a
nisto aqui pela última vez com você. Não quero '"participação" do artista. Você sabe o meu pensa-
mais que conversemos sobre isto, é excessivamente mento qual é. É geral e não pra você em particular.
doloroso e responsabilizante pra mim. Que discuta- A não ser que você se tornasse odioso, um Cassiano
mos as estéticas da arte, está claro, lhe darei tudo Ricardo, um ministro, um Getúlio e coisas assim,
o que tenho, me esforçando pra ter mais do que eu já quero tanto bem você, você já está de tal
pra mim, mas lhe indicar diretamente só pra você, forma dentro da minha vida que eu acho impossí-
os seus caminhos possíveis de homem-artista (não
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vel a gente se detestare mesmo se separar. Você,
tome o caminho que tomar, até a dos inúteis “bons pra si, honra, dignidade, virtude, posição, glória,
riqueza, felicidade no amor e no jogo, tudo, até
sujeitos", eu creio que sempre hei-de querer bem
você e sentir prazer na sua presença pessoal. Mas saúde e amigos "do peito", mas quando é pra ceder
não sentirei talvez prazer na sua presença espiri- um milímetro de sacrifício, ainda querem querem
tual conforme o caminho que você tomar. De-fato querem! querem pra si o título de mártires e de
você é tão solicitado pelo ambiente altoburguês que heróis! decerto sou eu que não me conformo com
perfaz você, e por outro lado você é tão sensual no o ser humano. Mas entrei no terreno da con dên-
cia, não vale a pena.
goso da vida e ama tudo, conjuga o verbo
tudoamar", que não sei como você vai ajeitar isso Senti falta de você, foi nuito, quando o Muri-
lo Rubião esteve aqui. Si é de-verdade que você
tudo, a sua vida particular, a sua vida pública, o
homem, o artista, o estético que você... são e é. pretende vir a São Paulo mande dizer, ou prevenir
com alguma antecedência quando vem. Eu estou
Acho muito penoso e difícil você conseguir uma
com umna viagem ameaçada pro Rio, mas questãa
singularização do seu plural que te e me satisfaça.
Acho difícil. Você é muito solicitado pelo prazer e de semana por lá no máximo, decerto em princípio
de março, coisas do SPHAN e, si os exames forem
a facilidade da vida. E por seu lado émuito sensual.
satisfatórios: farra. Ando precisando car pálido e
Mas, meu Deus! só repetindo o que falei ao Alphon-
desmerecido, não tenho jeito pra rosto com sangue,
sus outro dia: eu compreendo, mas não perdôo.
como já andam percebendo, co com vergonha.
Poderei car calado, mas não será nunca por acei-
tação nem consentimento. Há-de ser por perplexi- Da seu
dade. Chega de falar.
Chega de falar mesmo, que estou fatigado, Mário
tantas dúvidas, tantas inquietações, a corpo vai
bem, a alma vai difícil. Não imagine não que eu Estou cumprindo a promessa
seja tão áspero como esta carta parece, Fernando, das fotos. Lhe dediquei a
deve ser talvez um engano da saúde que está vol- que pre ro.
tando. Mas como eu me inquieto por vocês! pelo Mária
Lúcio não, digo por vocês moços! Tem sido uma
coisa dolorosa, só dolorosa? mas não vale a pena
falar.. . Mas o que me assombra, o que me deixa
por completo incompetente é ver como tem pessoas
nesse mundo que acham que estão indo direitinho
e se satisfazem com pouca coisa de si. Querem tudo

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quente, relendo a frio o que escrevi, percebi logo
que era muito possível você imaginar que se trata-
va de você também. Si pensou, não pense mais, me
S. Paulo, 8-III-44 desculpe. Sou obrigado a confessar: a carta foi
principiada no dia dois mas não sei em que dia
Meu querido Fernando acabei, não pus nela como estou fazendo agora. E
eu estava sobretudo furioso com um dos defensores
Sou obrigado a lhe escrever, mas tenho só 15 da arte-pura que publicara então aqui no “Estado"
minutos. Lhe escrevi uma carta dia 2 do mês pas- um não-sei-o-que meio surrealista, intitulado "A
sado e faz dias que principiei cando inquieto por- criação de Chineses", assim como quem faz criação
que você não me respondia. Não recebeu ela e está de gado ou de galinha. Isso, neste momento em que
esperando? Recebeu e se feriu? Os chineses são um dos povos mais dignos, mais
Porque pensei agora em lhe telegrafar mas ilustres e mais martirizados. Nunca vi tamanha
como tinha um tempinho, fui procurar nas suas insensibilidade intelectual. E isso se faz em nome
ltimas cartas qual o seu hotel, aí, que não me da Arte Pura que não tem culpa dos coitados que
lembrava mais do nome. Não achei e mando esta a infamnam! Morri de ódio desesperado, palavra.
pra Belo Horizonte. Quem fez foi o Antônio Rangel Bandeira, de Per-
Mas o caso é que com o tempinho que tinha, nambuco. D'aí, em principal, o meu estouro.
reli minha última carta pra voc, a do dia 2 do mês Não zangue comigo não e me escreva logo
passado, e me assombrei com a aspereza dela. Prin- uma notícia falando que não está ferido. Eu não
cipalmente com as duas páginas nais, de estouro quis ofender você. Era incapaz dissa e não havia
"em geral", que como eu não tomei o cuidado de razão!
dizer que aquilo não se referia a você, parece que Com o abraço do
se refere a você também! Por favor, não imagine Mário
isso de mim! Nada daquilo, quando não dirigido
pessoalmente, se refere a você. Eu estourei mais foi Quanto ao livro do Lúcio não sinto razão pra
contra os "sujos", o que não é nem de longe o seu modi car minha opinião. Mas só a opinião, como
caso nem você. eu estava áspero, Santo Deus! como eu devia estar
Si você cou ferido, reconheço, a culpa foi "zangado" o dia, dias em que escrevi aquilo tudo!
minha, que não me expressei claro. No momento Ponha surdina.
reli a carta e não percebi isso, por causa da pureza
da minha intenção. Mas agora que a coisa não está

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nerfeita, numn caso puramente social como esse,.
se preservando mais intima e nossa. Você não
imagina com0 eu me senti feliz com o seu desejo
e como tudo se completou maravilhOsamente quan-
S. Paulo, 23-V-44 do conheci Helena. Eu tive dela uma sensação tão
grave de segurança, de naturalidade, de desarti -
Meu querido Fernando cialismo, e foi assim como si eu a conhecesse desde
o princípio do mundo. Hoje eu sei que dependerá
Estou despeitado mas vamos ser razoáveis, eu só de você preservar a felicidade da sua casa e a
tenho que desistir de ser testemunha no casamento companheira admirável que encontrou. Não pre-
de você. Acabo de receber, são onze horas, um ciso de mais. Ser testemunha da seu casamento,
telefonema da Panair, avisando que não há mais abusando da sociedade, me atirando num tren sa-
lugar de aviāo pra mim, nem via Rio. Desde cudido de trinta horas inteiramente desaconselhá-
quarta-feira passada, dia 17, que pedi passagem vel pra minha úlcera que exige repouso, seria ape-
pra Belo Horizonte, na Panair, pro dia 5 ou 9 de nas uma vaidade minha, e bem temerária. Vamos
junho que são os dias de aviao daqui pra lá. Meu evitar tudo. Poucas pessoas sabem, e só aí no Rio,
secretário é testemunha, pois foi ele quem pediu. do seu convite amigo. Procure entre os seus paren-
Só ontem, indo todos os dias lá, como não recebiam tes ou de Helena, alguém mais consentâneo com as
resposta de Poços, esperei na Companhia que exigências do mundo. Do mundo exterior. O nosso
telefonassem pra lá. E a resposta foi que já mundo, o seu desejo amigo, a minha felicidade
tinhamn mandado um aére0 comunicando que amiga, a carícia que Helena me fez aceitando, tudo
não havia mais passagem pro dia 5 nem pro dia isso o mundo exterior não poderá nunca destruir.
9. Só havia ainda a esperança de seguir via Rio, E guardaremos a nossa trindade, ardendo, ardente,
que agora acaba de ser negada. Estou na mão, como a trindade dos mistérios. Não acha mesmo?
Um abraço afetuoso pra Helena e pra você toda a
como você vê. Eo recurso de me servir duma das
passagens o ciais, sempre reservadas, não me felicidade deste amigo certo,
Mário
convém aceitar, você já sabe os porquês. Eu sinta
que não devemos insistir, Fernando, tanto mais
que essa minha paraninfagem não iria satisfazer
muita gente, e com razão. Praquê insistir num
malestar que, mesmo pra nós, só pode ter uma
satisfação o seu tanto obcessiva de não-m'impor-
tismo? Eu creio que a satisfação será muito mais
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S. Paulo, 2 de maio de 1944 (Sem data)

Sr. Fernando Sabino Até que en m, aqui, dois críticos perceberam que
a "Marca" era uma marca mesmo, arre!
Em nome de Mário de Andrade, acuSO o rece- Com um abraço pra vocês dois do
bimento de A Marca", e comunico-lhe que o mes-
Mário
tre segue para o Rio, no primeiro avião de sábado,
da VASP.
Pede-lhe o favor de ir esperá-lo no aeroporto.

Cordiais saudações

José Bento Faria Ferraz


Secretário – Part.

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to faz car doente no princípio como no meio de
setembro. No m já não posso mais, tenha outros
compromissos aqui.
Me escreva com urgência respondendo si vai
S. Paulo, 13-VIII-44 e quando prefere ir. Eu pre ro loga no princípio, si
possível partir dia um daqui. 1, primeiro de setem-
Fernando bro. Vou de trem, acho que agora agüento melhor,
estou forte e me acham gordo. Si não forem de
Primeiro um abraço prá esposinha, como vai aéreo, podíamos até combinar pra irmos juntos pra
Helena? Aquele dia do telefonema quei triste dela disfarçar o sofrimento miúdo da viagem na Cen-
não vir me dar uma palavra no telefone, quis pedir tral. E nesse caso eu ia daqui voando até o Rio e
mas hesitei, não pedi. Depois, é como acontece partiríamos d'aí mo mesmo dia. Precisa ser no mes-
mesmo, quei safado comigo porque não pedi. A mo dia pra evitar as di culdades de hotel aí. Não
obrigação era minha e esse seria o meu prazer, mas gosto de me hospedar na casa dos outros, pre ra
estes danados de complexOs que entorpecem a gen- hotel que é muito mais cômodo pra mim e livre
te, quando a coisa é inesperada e não dá tempo pra pra todos.
raciocinar e reagir. Sou uma besta, mas também Me responda o mais tardar até dia 20 próxi-
fui bastante castigado que quei sofrendo e com o mo. Só espero resposta até esse dia pelo correio da
desejo esperdiçado, sou uma besta. manhã, sou metódico. Si não vier resposta vou
Mas hoje não é pra carta não. É pra avisar nesse meidia tratar das minhas passagens.
você que vou mesmo em setembro pra Belo Hori- Um beijo pras mãos de Helena e guarde o
zonte e só não vou si suceder algum desastre. Mas abraço deste
eu pre ro acreditar em Deus a me pôr à disposição Mária
do acaso dos desastres. Não haverá desastre e vou
mesmo. Vai ser uma delícia de pelo menos uma
semana de noitadas com o pessoal. Não beberei mas
pretendo viver de-noite. Estou fazendo fosquinha
em você com Helena pra ver si vocês criam virtude
e vão também. Si não forem brigo por dois meses,
outubro e novembro.
Só falta marcar a data e isso pode depender
de você. Como tenho que pedir licença no Conser-
va, "pra tratamento da saudinha", mas é peta, tan-
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por sua própria conta e risco, e não pelo que o
outro é, e vinha demonstrando sempre que é. Eu
lhe dizia palavras, Fernando, e praticava gestos,
que nesta carta mesmo você prava ter interpretado,
S. Paulo, 3-XII-44 não apenas pelo que eles diziam, e muito menos
pelo que eu sempre fui pra com você. Tanto mais
Fernando gue nesta carta ainda você reconhece eu tantas
vezes ter lhe dito coisas duras. Duras pra você,
Acabo de receber a sua carta e lhe respondo duras pra mim. Mas as suas interpretações foram
já. Não quero falhar mais esta vez, mas tudo o que falsas. Foram exclusivamente suas. Mas você não
eu tenho a dizer é tão difícil, tão delicado e a sua foi o único culpado, eu também. E pra ser su cien-
carta me deixou tão cansado, Fernando. Será tal- temente modesto e deixar você horrorizado, e com
vez possível ao menos você imaginar que, lendo, eu razão, apenas lhe mostro mais este malentendido:
tive quase sempre os olhos úmidos. Não tem impor- Si nem bem chego a São Paulo, lhe escrevi desis-
tância e vamos a ver si é possível, sem ímpetos tindo de apadrinhar seu casamento em público, foi
porque eu chegara à convicção de que você prefe-
dispersivos, com muita grave calma, dizer alguma
coisa de útil. riria que eu recusasse! Hoje eu sei que não foi, por
suas palavras; mas no convite que você me fez foi
Eu creio que antes de mais nada, devemos
tamanha a insistência que você botou em que eu
deixar pra trás aquele nosso passado que princi- conservasse toda a minha liberdade" de aceitar ou
piou no dia em que você me convidou pra ser pa-
não, que não queria que eu tivesse a mínima cha-
drinho do seu casamento, até agora. É fácil pra nós
teação, que eu iria me encontrar com pessoas que
dois deixar essa nuvem de lado, porque nós nos
me desagradam, e foram tantas as vezes que você
queremos realmente bem e eu vejo que você tam- repetiu coisas desse jaez, que eu senti em você,
bém, como eu, mesmo afogado no mais escuro dessa pouco importa si inconcientemente ou não, a su-
nuvem, nem um momento siquer, cou indiferente. gestão da recusa. Então recusei. Veja bem: nunca
Mas, não é a primeira vez, mais uma vez eu cons- me passou pela cabeça e muito menos pelo coração,
tato que essas nuvens entre amigos verdadeiros, são que você não desejasse que eu fosse padrinho do
feitas de malentendidos, tanto mais abomináveis seu casamento. Desejou sim, desejou de coração
que são os mesmos dois amigos que se querem, os perfeito, eu sabia, mas eram tais os desencontros
únicos culpados desses malentendidos. Porque am- desse desejo com a realidade prática e pública do
bos, levados por não sei que esquecimento da ver- seu casamento, que eu senti você mesmo sentir pre-
dade, se julgam no direito de interpretar os gestos ferível que eu recusasse. Você está vendo? eu posso
e as palavras do outro, livremente, por si mesmos,
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agora lhe pedir perdão de um sentimento errado, mente, talvez sim, quem devia começar essa cor-
porque a sua carta permite. Mas eu nunca dese- respondência era eu. Pelo menos a mim era, no
jarei a você se ver na conjuntura abominável em caso, e intelectualmente, mais fácil. Fernando,
que eu me vi, diante da sua insistência, até como é que é? Isso de amor é muito bom, mas: e o
veemente, de invocar a minha liberdade em re- outro amor da sua bigamia? Mande contar a idéia
cusar. Malentendidos. Ambos fomos puerilmente do seu livro novo. Pra mim era mais fácil começar.
culpados. Mas porque culpados? Mas: e o outro amor da "minha" bigamia? E
Aqui, Fernando, a culpa das nossas culpas a reserva? Agora, Fernando, eu só posso me socor-
será minha, si culpa existe. Semnpre no meio das rer do seu espírito inventivo de escritor. Nada do
minhas mais destrambelhadas franquezas, haverá que eu possa dizer, prova. Só você, imaginando,
sempre uma reserva. Não vale a pena esmiuçar; pode me provar a si mesmo. Porém antes de con-
basta apenas você lembrar os nossos trinta anos tinuar, deixe eu lhe estadear minha vitória escan-
de diferença de idade e posição. Mas nisto eu ganho dalosa: apesar de toda a minha reserva, apesar de
de você numa vitória talvez escandalosa. Você se não ter disfarçado a humilhação da minha altivez
retraiu por "suas" razões. Eu me retrai por "mi- numa carta fácil, me lembrando jocosamente a
nhas" razões. Pouco importa si desrazões. Mas eu você; fui eu, sempre, que me . .. me rebaixei (a
nunca deixei de lhe responder a uma carta, quem sensação era essa, embora nãa a consciência de),
me deve carta é você. Não terá importância ainda. sem nenhum disfarce de jocosidade, mas seriamen-
Sempre de vez em quando lá vinha um telefonema te, gravemente, doloridamente fazendo chegar a
de camaradagem, mas que isso, eu juro, eu sempre você por algum amigo íntimo seu, que tinhao di-
sube interpretar como um sentimento mais profun- reito e o dever de fazer chegar isso a você, a minha
do que camaradagem da sua parte: onde sube ver queixa e a censura. De que resultou a sua carta.
a di culdade de retomar uma correspondência Mas tudo isso não tem importância, não tem
depois do trompaço vital de um casamento, a importância, meu Deus! Nem a minha reserva!
Mas pra acabar com o caso dela, não será então
felicidade justa de um amor realizado, a mudança
de cidade, de estilo de vida, a aquisição de um possível a você imaginar o difícil, o quase trágico
da minha situaçāo! Pois você não pode então ima-
ofício e a transformação de função. Tanto na vida
como na arte. Agora você não era mais o escritor-
ginar que, mesmo dentro de mim, qualquer "che-
gada" minha a um escritor moço, eu não consigo
zinho dos grilos, mas tinha uma Marca que na
justi car isso com um exclusivo interesse por ele,
minha opinião rme é uma obra-prima. Tínhamos,
desinteressado por mim? Você se esquece que são
não que continuar uma correspondência, o passado
vocês mesmos, moços, os primeiros a não me per-
não tinha sentido mais diante da realidade. Tínha-
doarem de mim, chovendo elogios que só servem
mos que começar uma correspondência. E, vaga-

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pra me martirizar ainda mais? Ontem mesmo eu
ainda estourava com um rapaz do Rio por causa mens, mas são seguidas por muitos moços e
disso. Mas mesmo que eu consiga me ultrapassar seguidas demais! E se vê de repente, numa reti-
(não me provar, mas apenas me ultrapassar): você rada nada “estratégica'", mas apavorada, de fuga,
se esquece que tem gente su cientemente vil, pra diante da sua convicção permanecida sempre ínte-
publicar e assinar que eu sou Drácula me alimen- gra e arraigada e vivíssima. Se mentindo a si mes-
tando com o sangue dos moços? E você se esquece mo! Pra poder mnoderar os outros...
que, mesmo sem semelhante baixeza, esse será mais Agora já não posso mais dizer que isso não
ou menos o vago pensamento censurado, de muitos tem importância... Mas agora, com semelhantes
dos meus contemporâneos de geração, Qu pouco dados, que você podia muito bem ter recolhido por
menos, só porque não tendo o mesmo estilo de vida, si, será possível à sua imaginação de escritor, e de
nem a mesma paixão exteriorizada pela vida, são artista verdadeiro, recriar a reserva?
incapazes de comprovar por sua própria psicologia, Apenas um exemplo, o mais violento, da mi-
a minha? E, deixe eu ter a coragem horrorosa de nha incongruência, do meu estado atual desarvo-
a rmar: Nada prova, nada prova que eu não seja rado? Eu tenho um a lhado, tenente de aviação
um Drácula! que está na guerra. Amo ele como um lho, au
Fernando: há mis, Fernando, há muito mais diferente: com a angústia exacerbada e insatisfeita,
eo pior. Muito pior. Há uma convicção em luta com e sem compensações, do solteirão que se bota aman-
uma conciência da realidade. Há nesta rua Lopes do uma criança com amores macaqueados de um
Chaves um ridículo homenm que chegou à convic- pai. É uma sofreguidão de lembrança que me per-
ção que neste momento culminante da vida., toda segue e atinge a obcessão. É horrível, Fernando, e
arte é pueril, todo indivíduo que não se sacri car por sinal que ele se chama Fernando, também.
totalmente pela vida coletiva humana é um cana- Fernando Morais Rocha, meu priminho. Outro dia,
Iha, é um vendido, é um canalha. Há um homem faz uns quinze dias, era de-tarde, eu estava lendo
que chegou à convicção de que só é possível lutar, aqui o Álvaro Lins, num artigo de crítica falando
e só é preciso matar ou morrer. Mas ao mesmo em romance. De repente larguei o livro, principiei
tempo a conciência desse mesmo homem repele a escrevendo assim numa espécie de estado mediúni-
estupidez dessa convicção apaixonada e diz: Não co (não acredito em espiritismo), era um verso. A
os moços. Não se trata de condescendência não, primeira estância ainda foi bem, era a saudade, a
nem de piedade. É uma conciência, A conciência é lembrança do outro Fernando. Mas a segunda es-
que é clarividente, a convicção é que é cega. Mas
tância já terminava com uma re exão muito amar-
ga. E de repente, mesmo ansiando de amor pelo
esse homem vê horrorizado que as suas palavras
a lhado bemquerido, eu percebi que estava escre-
são apenas aplaudidas prudencialmente pelos ho- vendo contra ele! Acabei o poema chorando.

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Chega. Há uma reserva, Fernando. Não com
você: com todos os que são você. Com você, havia E aqui, não é por covardia não, Fernando, é
um despeito, não há mais. Não há desilusão ne- por coragem: eu tenho que me retrair e não dizer
nhuma, mas há uma desesperança. Um enfraqueci- mais. Porque si eu dissesse, eu punha diante de
mento da esperança. Veja bem, por favor: nãa de você um problema que jamais você não deve ter.
você como homem. Mas como artista. Eu principiei, Que eu não tive. Que no momento que me puse-
com uma imparcialidade gélida, miúda, longínqua, ram ele pela frente, mataram uma obra minha.
a duvidar de você como escritor, Como artista. Você Que todos os poucos que eu sei que tiveram, se
tem direito de perguntar porquể. Isso nada tenm perderam. Se estragaram. Se suicidaram. Seria
que ver com a sua vida, absolutamente nada. Nada simplesmente uma infâmia, eu fazer uma experiên-
tem que ver com o seu casamento, isso foi um aper- cia de psicologia artística com você. Fazer você de
feiçoamento; nada tem que ver com Helena que te cobaia! Isso eu não faço.
engrandece; nada tem a ver com o seu lho que, Talvez fosse melhor que eu não tivesse tocado
pelo contrário, responsabiliza você muito. Isso nisso e posto na sua cabeça um mistério. Mas você
ainda nada, absolutamente nada tem que ver comn me obriga a issO com a sua carta, mais perversa
o seu cartório. A minha dúvida de você como artis- pra você do que pra mim, me impondo uma since-
ta, Fernando, vem da sua psicologia. Poderei dizer ridade total. O que nemsempre adianta... Vamos
pra diante, que o tranco dum mistéria até excita
da sua "ganância" estética?... Veja bem: não disse
mais. Você tem uma ganância estética que me faz
sua ganância de sucesso embora esta também tal-
duvidar da sua continuidade de evolução, como ar-
vez exista. Mas é fácil de refrear isso, a própria
tista. E si eu já sabia disso pelos elementos de que
vida muitas vezes se incumbe de refrear isso, na-
é feita A Marca", todo um pedaço grande e detes-
quela justa, digna, equilibrada e necessária vontade tável desta sua carta con rma isso escandalosa-
elevada de ser amado e aplaudido (aplauso é com- mente: a sua queda no "Cristo". Na sua idade e
preensão e aceitação da obra) sem a qual não existe na sua vida realizada, o Cristo não passa dum aca-
artista verdadeiro. Nunca percebi em você o menor demismo. E duma salvaguarda como todos os
laivo de "paraísmo", não existe. A sua possível academismos. O Cristo não salvará você da sua
ganância de sucesso se confunde, por enquanto, derrota como artista. Si Cristo quiser agir, Ele ma-
com o natural arroubo e o natural excesso de vita- tará você artista, botando na sua mão a pena dum
lidade do moço. Assim: eu falo exatamente da sua Coelho Neto qualquer. Não se "desculpe" em Cris-
ganância "estética", que levou você cedo demais, à to, Fernando, por amor de Deus! O seu caso não é
"Marca". E os elementos fundamentais de que é o do Hélio, por favor, perceba. Hélio se engrandece,
feita a "Marca", sejam os técnicos, sejam os de se digni ca em Cristo, mas você vai se perder. Eu
assunto, denunciam essa ganância estética. não estou tratando da salvação da sua alma, Fer-

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atuADba

nando, e já falei atrás que não é da sua vida que Mas você fez um esforço demasiado. Eo fan-
me cabe duvidar aqui; eu sei é da sua predestina- tasma do menino-prodígio que se gasta demais me
ção divina de artista, e é por ela e pelos elemnentos persegue. E depois disso, eu tenho seguido, mesmo
da sua arte, que eu duvido, não da sua predestina- sem você saber, a sua vida de artista. Você conti-
ção (ela é divina) mas do seu destino de artista. nua vivendo demais. E en m, o que é mais duro
Você agora se desculpa em Cristo, e apenas. Faça de dizer, que desde muito eu estou querendo dizer
um heroísmo ainda possível, Fernando, relembre os mas sem força pra dizer: você não foi mineiro na
Evangelhos; e você não encontrará apoio nenhum criação da "Marca", e não está sendo mineiro na
para os elementos "estéticos" da "Marca", nem da sua vida carioca, e nem na sua vida belorizontina
espécie de crime que você praticou contra você mes- de artista. Sempre: de artista. Você está vivendo
mo. E não diga que eu não disse: se lembre, e bas- artisticamente demais. Você está conquistando
ta apenas isso, tudo o que eu disse de duro naquela simpatias condescendentes mesmo nos grupos que
nossa conversa aqui no largo do Paissandu, no bar, deviam detestar você. Que era precisa que detes-
foi tanto o esforço que eu z que me lembro do tassem você. Você está escolhendo amigos que são
lugar, da mesa, da posição em que eu estava. É más companhias pro artista Fernando Sabino.
certo que não falei em Cristo, mas porque, só por- Você está abandonando os seus amigos de Minas,
que jamais você se desculpara Nele. E também abandonando em gravidade, readquirindo em gra-
não disse, antes de ler "A Marca". Mas eu não sa- tuidade, em camaradagem, o seu grupinho, o Hélio
bia! Não é o assunto que eu não sabia: o assunto (nem tanto) , o Oto, o Paulo, que são os únicos ami-
é estético, mas não prejudica nem trai: eu não sa- gos que podem salvar você. Você, de longe, no Rio,
com saudade, tarde da noite, se desmanda a escre-
bia,em meio dasnossasconversas de cartas -úni-
ver cartas gratuitas, fazendo espírito! Isso é trair,
ca correspondência que tenho aqui à mão, na se-
se trair, trair a amizade, trair o grupo, trair a sua
cretária, que jamais guardei, mesmo no tempo da
mineirice. E você, desprovido (por dentro) de Mi-
nuvem -0 que eu não sabia era do esforço pro- nas, é um artista acabado,
digioso que você estava fazendo pra se revestir dos
Chega. 0 quê que eu posso fazer! Por en-
35 anos da força de homem do artista. Sabia que
quanto, eu só desa o você, Fernando. Porque a
você estava trabalhando muito, e isso foi ótimo.
minha "dúvida", coisa que eu posso justi car como
Sabia que você tinha coragem de estadear uma
z, mas não posso provar: a minha dúvida é so-
pro ssão de escritor, diante de amigos “não ana-
bretudo um desa o. Não se preocupe, mas se pre-
lisa não" que queriam expontaneamente farrear vina desde já. O romance que você conta estar fa-
com você. Naquele tempo cheguei a considerar zendo, pode ser pior que 'A Marca". Não só não
você mais perfeito que eles. Hoje eu pre ro a farra tem importância, mas será sempre melhor que seja
deles. Estou exausto..
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pior. Já lhe disse mais duma vez: a "Marca" em
qualquer sentido é um impasse. Ou mesmo, um qualquer reforma da nossa casa. Eu lhe peço que
m de caminho. Você tem que principiar caminho me conte qual o assunto do seu romance, como o
novo. Não comparando, porque a meu ver não há arquitetou, quais as suas dúvidas sobre isso. E fale
comparação possível de valor, você tem que fazer o que quiser, fale de Helena, fale do lhinho por
o mesmo esforço heróico e louvável do Lúcio Car- vir, fale: que doença é essa que você tem, a nal?
Não é preciso falar muito, nem depressa, e se atur-
doso, quando abandonou tudo e reprincipiou com
dir de palavras. Entre nós isso não é preciso, Fer-
"A Luz no Subsolo".
nando, nada se perdeu, nada se acabou. E já neste
E agora chega, chega de aparente impossibi-
m de carta eu sinto que a amizade está se refa-
lidade, meu" Fernando. É possível que eu tenha
zendo fácil, depois que deixei de pensar, e princi-
perdido um pouco da amizade que tinha por você,
piei me deixando escrever. Porque me deu agora
mas nem um mínimo nada se perdeu do amor. O
de repente uma vontade danada de abraçar você,
que se perdeu foi apenas aquela necessidade de
mas de corpo presente e car junto, sem assunto,
presença, aquela exigência de convívio, aquela tal- deixando a vida passar. Eu quero muito bem você,
vez mais bonita gratuidade de freqüentação. Isso Fernando.
se perdeu bastante. A amizade ia se esgotando por Um beija nos cabelos de Helena, eu mereço.
falta de alimento e poderia se acabar. Mas nada se E que Deus abençoe o Trio novo.
perdeu do amor, de forma que tudo poderá voltar
um dia ao que já foi. Nunca deixei de querer bem Mário
você, com todo o egoísmo, a insatisfação, o direita
ea glória. Meu Deus! como eu leio incansavelmen- Fernando
te tudo quanto escrevem sobre você... Com que
verdade de prazer eu vejo chegar seu nome nas Torno a abrir esta carta, depois de sobrescri-
conversas... E como eu quero saber... E como a tada, pra lhe dizer que reli ela, achei exatamente
lembrança de você, embora dolorosa às vezes, é como eu queria, calma e grave, mas que me cou
uma instância normal da minha vida. Vamos ser dela a sensação de não estar tão ardente como de-
práticos. Não se trata de nenhum sacrifício não. via estar si re etisse o sentimento perfeito do meu
Volte com seus problemas. Talvez seja milhor de- coração. Não que esteja fria, mas não lhe con a
pois desta troca de cartas, não voltarmos imedia- O ardor com que a escrevi. Nem pus nela ao menos
tamente a tratar de tudo o que estas cartas dizem. um xingo que a colorisse um bocado. O que ela
Passado algum tempo, você vai ver que havemos re ete exato é a minha tristeza machucada e o
de sorrir de tudo isso. Vamos começar, porque na- abatimento em que estou. Mas esse abatimento, si
da se enfraqueceu do alicerce, e ele agüenta rme agora provocado pela carta de você, não é você que

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o causou. Não se arrependa e não me poupe nunca
-éa milhor jeito de me deixar leal pra comigo.
Mas estou abatidíssimo, de fato, estou destroçado.
É um abatimento de mim, provocado pela sua car-
ta, mas causado por mim. Este esgotamento pre- S. Paulo, 6-1-45
ventivo que dão as fatalidades que a gente não po-
de mudar. Isso é o que eu tenho e que causou o Fernando querido
timbre desta carta, não ausência đo ardor. Até
chego a achar bom que você não apareça aqui nes- Tenho duas horas e vamos conversar um b0-
te momento, porque o abraço dos meus braços não cado. Mas antes como vai Helena? e o pré- lho?
corresponderia ao que eu sinto por você. Mas acre- E que tenhamos todos um bom ano, direito e fe-
dite, mesmo comn o timbre desta carta: eu quero cundo.
um imenso bem a você. Não vou argumentar contra a sua carta não.
Mária Me lembro que naquela viagem de automóvel aqui,
o Décio na frente, nós dois atrás, um momento
você me perguntou (tínhamos conversado já o dia
inteiro. ..):–Bom, Mário, a carta já está escla-
recida. Ou qualquer coisa assim. E como eu fa-
lasse que completamente não, ainda faltava escla-
recer umas coisinhas, o que eu faria por carta: não
sei, tive uma sensação viva de que você se desgos-
tou, ou inquietou. Assim: não vou discutir nada.
A Marca não é insinceraeé arte. Que você tem de
ir além, não há dúvida: já lhe falei isso várias ve-
zes e você mesmo diz isto nesta sua última carta.
Que você tem de ir alémn da Marca dentra dos mes-
mos caminhos da Marca? Está claro que absolu-
tamente não. Também isto já lhe repeti várias ve-
zes e você sabe por si. Os seus próprios artigos,
como aquele principalmente sobre os mineiros,
provam isso bem. Eu imagino, meu Fernando, que
os seus, digamos, sofrimentos psicológicos são bem
grandes. Com seus artigos você tomou o alvitre de

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se comprometer consigo mesmo em público. Não ainda vou fazer"; "os grilos é o meu retrato"; "a
será isso mesmo? É um jeito leal esse. A gente,
crime (a Marca) que eu pratiquei contra mim mes-
sem que isso chegue à consciência, se reconhece mo"; "si toda a obra-prima é feita assim (como a
frágil, incapaz ou duvidoso de se vencer a si mes- Marca) merda para a literatura'"; "meus contos,
mo dentro consigo mesmo: e então a rma prema- honestos e sinceros, meus, que me levariam deva-
turamente... pra se comprometer e se rmar. Eu gar"; "fazer justamente aquilo que a gente não é,
não z o mesmo no "Movimento Modernista"? então pre ro mil vezes deixar de ser artista'"; "pre-
Hoje eu sei que z. E imagino que é o que você fez ro lutar contraa minha arte"; 'e artista euposso
também. deixar de ser'; "a minha realidade me interessa
Porque, Fernando, esta sua última carta pa- muito mais que a literatura, a beleza, a arte, to-
rece provar uma coisa que, si acaso existir mesmo, dos os valores eternos"; "me traí escrevendo a Mar-
como estou imaginando, eu desejaria fazer tudo ca'"; "vou começar a minha arte".
pra tirar isso de você. É que você se acovardou Não enrubesça, Fernando querido, não é pre-
diante da Marca. O sucesso foi grande demais en- ciso tanto. Mas você está atemorizado e acavarda-
tre os mais hábeis em compreender (o artigo do do. E tanto, a ponto de se prevenir sobre a possi-
Lauro Escorel é estupendo), você também está con- bilidade de abandonar a literatura! Você, que
vencido que escreveu uma "jóia", você cou horro- desde os treze anos vem impregnado por fora e por
rizado com as suas forças vivas que você reconhece, dentro de literatura e de literatice! Você, um téc-
com razão, inferiores atualmente às forças da Mar- nico, um virtuose e até um malabarista! Deixe,
ca, principiou tendo medo do seu livro, foi cando por um momento, Fernando, que eu maltrate você
convencido de que o seu próximo livro não conse- com essas palavras que lhe fedem a insulto. Não
guirá chegar siquer aos pés da Marca e se acovar- são insultuosas, Fernando, mas podem se tornar
dou. E se acovardou. insultuosas. Serão insultuosas no momento em
E veia d'aí essa necessidade dolorosa de auto- que você não puser a sua técnica, a sua virtuosi-
punição, com que você destrói agora a Marca e a dade e o seu malabarismo a serviço de alguma coi-
insulta, prevenindo-se em seu futuro. Antes de sa que seja pra todos digna e nobre. E não são in-
principiar esta, reli sua carta e tomei o cuidado de sultuosas em relação à Marca que você mesmo to-
grifar as frases autopunitivas que vem nela. Não mou o cuidado de defender decisoriamente na sua
vou enumerar todas. Mas veja si não é "prevenir" carta, ao reconhecer, numa contradição digna de
a futuro frases como: "quero ser el"; "o que exis- Ihe puxar as orelhas e duma dúzia de palmadas,
te de unicamente verdadeiro em mim"; "esse brin- que a Marca é uma traição, você foi insincero, etc.
quedo de copiar os outros" (na Marca); levar a e tal, mas “não no que ela representa ideologica-
sério a brincadeira"; "eu chamo de arte aquilo que mente"!

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Você está vendo? Não: Você não está errado,
você está acovardado. E a covardia é inútil. Não
Mas, pra não esquecer nada: Também o livro
sei... às vezes eu imagino que Deus deve ser mais
nova pode ser um descaminho.. . Nisto, a sua vi-
esportivo que nós e tomará as coisas e os homens
sita me deixou um bocado de inquietação que a sua
com mais sense of humour. Ou, com mais saúde carta con rma. Você aqui me falou muito, e in-
ainda: mais esportivamente. Os verdadeiros peca- sistiu mesmo em preocupações estéticas'" que me
dos mortais serão em muito menor número do que pareceram bastante genero tricô: escrever o livro
nós imaginamos. E serão outros. A Marca não é na primeira pessoa, e coisas assim. Ora, na carta,
nenhum pecado mortal e trate de não fazer dela pra... trair a Marca, você se tomou de amores “on
um trambolho na sua vida. Reconheça lealmente revient toujours" pelos grilos. Ora, carece você não
que, dentro da sua ideologia, a Marca é uma bela se intoxicar muito pelos grilos, por favor. "Ideolo-
coisa. Apenas, feita a Marca, você reconheceu que gicamente" eles são tão insu cientes e tão beco-
a ideologia dela era insu ciente enm face de Deus sem-saída quanto a Marca. Si você está de fato
e da vida. E resolveu fazer coisa milhor. Você não disposto a se abrir um caminho seguro para uma
errou, você vai pra frente. E vai por caminhos inu- vida literária mais utilmente viril: você tem que
sitados. cuidar muito, preliminarmente, e sobretudo, com
Suponhamos que você vá cair. Suponhamos o que o seu romance novo represente como funcio-
que o seu romance futuro seja inferior (estetica- nalidade. Como ideologia. Como assunto. Você
mente) à Marca. Primeiro: nunca o será ideologi- carece duma franqueza., duma lealdade, duma im-
camente, pra vocé, desde que você não traia, da parcialidade e duma ausência total de complacên-
mesma forma com que na Marca não traiu. Este- cia pra consigo mesmo, pra evitar todos os mil e
ticamente é muito provável que o romance futuro um descaminhos dos so smas. Não se esqueça por
seja inferior à Marca. Esta, meu caro, tem cem favor que você é um ancião de quinhentos anos no
anos por detrás dentro da língua e da estética do vício duma ideologia. Da ideologia da Marca. Pra
Brasil. O seu romance futuro suponho que não abrir caminho, pra se justi car diante de si mes-
tem dez, talvez nem cinco. Pois tome esportivamem- mo, diante da vida e de Deus, você tem de abrir é
te o seu caso. Sempre a sério, se esbofe, não eco- estrada larga, franca. Beethoven primeiro escre-
nomize nada, gaste tudo, jogue todas as suas car- veu A Heróica pra depois escrever a Pastoral. Num
tas na mesa e não blefe. Esi o liVIo não sair bom, caso como o de você, qualquer água-de-rosa é des-
diga: perdi. E comece outra partida. Porém no caminho. Simplesmente porque, por bons que se-
livro defeituoso ou fracassado você terá um cami- jam um Oswaldo Alves, um Emil Farhat e 365 ou-
nho. Na Marca você fechou um beco. Mas estou tros, você é milhor. E é misteriosa como o milhor
me repetindo, que muitas vezes já falei isso a você. pode errar mais. Há os que escorregam apenas.
Mas os milhores quebram a cabeça. E no caso de
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você, tudo o que seja acertar no alvo (ideologica- água-de-rosa. Pro casa de você, o único perfume
mente) ou quebrar a cabeça é nobre, é digno. Es- possível é o do sexo.
corregar apenas, é água-de-rosa. E no seu cas0, 0 Pra este m, reservei uma espécie de pedido.
seu maior perigo é ser si mesmo. A tal de "since- Você absolutamente não deixe de vir pro Congresso
ridade" que você invoca é o seu maior perigo. E dos Escritores. Parece que as coisas estão se apron-
que sinceridade se você não é você! A sua sinceri- tando de tal maneira que pros que têm alguma no-
dade por enquanto é a sua expontaneidade. E a ção de dignidade e alguma conciência da Inteligên-
sua expontaneidade são dez milhões de anos de cri- cia nacional, deixar de vir é uma deserção.
mes humanos, dois mil anos de traição ao Cristo, Com o mais afetuoso abraço pro Tria do
duzentos anos de burguesia capitalista, vinte e um
anos de lhinho de papai, quinze anos de aluno Mário
de escolas e professores que ensinaram de acordo
com tudo isso. Isso é a sua "sinceridade". E você
sabe que ela não vale um tostão. Agora é que vo-
cê vại construir a 'sua" sinceridade, e a exponta-
neidade de você. Porque agora é que você vai es-
colher. Até agora escolheram por você. Agora é
que você vai saber. Mas pra saber você precisa es-
tudar e re etir muito. Leve três anos pra escrever
o seu romance novo. Ou cinco. Não faz mal. Mas
adquira pelo sofrimento perfeito da análise da vi-
da e dos "seus" autores, uma coisa muito mais no-
bre que a expontaneidade e muito mais espiritual
que a sinceridade: a convicção. Uma convicção.
Que sejamos inimigos até pela convicão que você
conquistar. Que nos odiemos. Mas não se perderá
o que há de mais elevado na relação entre os ho-
mens, a estima. Não me obrigue mais a lhe dizer
tudo isto, é tão difícil de dizer. Mas quis cumprir
na íntegra o meu dever da imensa amizade que eu
tenho por você. Corrija os seus temores. Não te- GERAL
nha temor, tenha medo, susto inteiro, horror é da

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Obras de
Fernando Sabina:

O Encontro Marcado
O Homem Nu
A Mulher do Vizinho
A Companheira de Viagem
Composto e impresso nos
Estab. Grá cos Borsoi S.A. A Inglesa Deslumbrada
Indústria e Comércio, à
Rua Francisco Manuel, 55
ZC-15, Ben ca, Rio de
A Vida Real
Janeiro, R.J.
O Encontro das Águas
Deixa o Alfredo Falar!
ACidade Vazia
BRUOTEA
GERALDUYEROIONGE
Gente
O Grande Mentecapto
11 MAIO 2018
A Falta que Ela me Faz
COIMBRA
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Que coša lamátia seÜGTdheasnoNeamos!

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