MIRANDA, Wander Melo. prática de devoração textual
que possui, no gesto da Corpos escritos: Graci/iano slntese, um poderoso instru- Ramos e Si/viana Santiago. mento contemporaneamente Belo Horizonte: Editora de leitura e de escrita, o romance-ensaio de SlIviano UFMGIEDUSP, 1992.174 p. Santiago, Em liberdade (1981) ocupa um lugar central e de o limiar do texto de Wander mediação entre Memórias do Melo Miranda já traz em si as Cárcere de Graciliano Ramos principais marcas n o só ã (1953) e a monografia de temáticas, mas também Wander Melo Miranda que sal eurfsticas que plasmarão o seu no centenário do nascimento ato critico: a referência direta, do autor. O critico e escritor tão 'foucaultiana' ,ã dimensão mineiro elabora o diário fictlclo do corpo e da escrita, onde que Graciliano Ramos teria flutua latente a noçêo da escrito quando saiu da prlsAo, memória como garantia do em 1937, configurando-se sujeito que reúne as duas assim como uma verdadeira dimensões, a menção dos dois continuação, onde tudo é autores que compõem o corpus verfdlco e ao mesmo tempo interpretativo do ensaio: tudo é ficcional, da narrativa Graciliano e Silviano. Corpos autobiográfica de Graclllano. escritos oferece em percurso Mas há também outras razões paradigmático dentro da mo- que tornam o texto de Sllviano dernidade e da pós-moderni- uma obra decisiva em termos dade da escrita brasileira e cognitivos para compreender o talvez seja asse o traço que contexto histórico-cu Itu ra I mais atinge (desnorteia?) um contemporâneo ã sua sarda e leitor. como no nosso caso, justificam a produtividade da europeu acostumado a sua leitura em comparação manusear outros padrões com um clássico qual é referenciais e estéticos acerca Graciliano. Como não passou da idéia de moderno e das suas desapercebido (Flora evoluções posteriores no SOssekind) de fato, Em universo da escrita. Liberdade representa uma Indubitavelmente. o tra- significativa epltome critica da balho critico desenvolvido no produção literária do finai da ensaio desvenda - mas, década de 70 e do começo dos observarlamos. ao mesmo anos 80 dominados por tempo pratica - um elemento experiências narrativas do peculiar da modernidade gênero polftlco-memorialls- . cultural brasileira: a autofagia tico, que. ao afastar-se das do corpo textual, a noção da estilizações/cárceres do "eu", cópia não como tautologia do historiciza o modelo literário original, mas como ato de que faz experiência; a esse (re)criador que se constrói a respeito observa Wander Melo partir da diferença. Nessa Miranda que as Mem6rias do
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Cárcere são lidas por Em emaranhamento desfigurador
Liberdade num jogo Intertex- do projeto literário. tual que descarta, dadas as O caminho leva progres- caracterlsticas de ambas as sivamente para o ponto de cru- obras, a ingenuidade e o zamento dos textos, represen- imediatismo que comprometem tado por Em Liberdade, que a plena realização artrstica e a absorve as Memórias de Graci- efetiva ressonãncia politica da Iiano no seu intertexto, dia- grande maioria de textos logando como ele num exerc- similares no êmbito da Icio con sta nte d e a p r ext- literatura brasileira (p.19). mação e afastamento. O siste- O que se questiona portanto ma de relações que se estabe- nessa reterritorialização do fa- lece entre as duas obras que zer narrativo é justamente a expressam outros tantos mo- própria existência de uma linha mentos trpicos da história fronteiriça detectável que de- lHas ii eira é modelizado por marque no plano narrativo me- Wander Melo Miranda nos seus mória e ficção e como pelo diferentes nlveis mediante o contrário, da conjugação das recurso à noção de tradução. A duas práticas de escrita, auto- operação tradutora que subjaz biográfica e romanesca, possa à textura da obra de Silviano derivar a verdadeira salvação decorre da idéia de que a lite- do passado e da experiência. ratura no seu conjunto, por Essa preocupação benjaminia- suas tensões intertextuais na com a autrofia da capacida- impllcitas, representa Um pro- de de transmitir experiência na cesso permanente de tradu- literatura atual é aprofundada ção, noção essa que deve ser em Corpos Escritos, aprovei- entendida numa acepção mais tando uma atenta análise filo- extensiva não como reprodu- lógica das formas com que o ção do Idêntico, mas como tecido memoriallstico reveste o repetição diferenciada que corpo textual até confundir-se questiona a natureza própria com ele. Para substanciar a da oposição formal entre cópia hipótese de trabalho, Wander e originai: ou mais precisa- Melo Miranda mobiliza todos mente, no dizer do autor do en- os recursos oferecidos pela saio, ao considerar a relação crItica autobiográfica, para de- de reciprocidade mantida por bruçar-se em seguida sobre a Memórias do Cárcere e Em reconstrução' da multiplicida- Liberdade, é cablvel consi- de de facetas assumidas pelo derar ambas as obras como "eu", tanto na obra de Gracilia- repetição diferenciada de um no, quanto na de Silviano, evi - projeto literário similar, em- denciando a relação absoluta- presa semelhante, embora não mente não pacIfica ou transpa- idêntica, à tentada por Menard, rente entre experiência emplri- de Borges (p.94). ca e sua realização formal Oentro dessa perspectiva, a enquanto produto textual, que própria rememoração do remete logo para o complexo vivido, ou melhor, seu próprio
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texto, operando de acordo com ficção e seus elementos estru-
o modelo definido de tradução turais, uma escrita da história diferenciada, se demonstra plural, onde auto-reconhe- assim particularmente produti- cer-se coletlvamente. Se va em representar os mecanis- incorpora assim no tempo mos recônditos do pacto auto- estético do texto literário o ato biográfico, onde a divergência "destrutivo-criativo" de salvar temporal entre vivência e o passado enquanto tempo narração, que inviabiliza qual- atual como Graciliano faz nas quer tentação de decalque, Memórias do Cárcere, movi- remete logo para a narratlviza- mento esse que Silvia no ampli- ção dos dados da experiência. fica no seu romance-ensaio A rearticulação do passado por que, problematizando não só o efeito da operação tradutora, a tema da própria forma da obra, reflexão que esse processo a transforma em matriz ativa e desencadeia acerca dele, aberta de novas experiências confere ao projeto literário uma para os outroslleitores (p.136). outra vantagem decisiva: a de Por esses caminhos, Wan- abri-lo para os outros como der Melo Miranda constrói um "lugar de reflexão" do próprio ensaio onde os textos literários passado, ao mesmo tempo que de Graclllano e Silvia no, meti- ele se manifesta como lugar de culosamente desmontados e reflexão do seu próprio fazer estudados, se tornam pre-tex- enquanto fazer textual (p.118). tos para uma pluralidade de O corte epistemológico do implicações e inquietações, ensaio de Wander Melo que apontam a critica, à Miranda, proporcionado pelo maneira da literatura que ela extraordinário manancial de própria analisa, como espaço temas teóricos, estéticos, privilegiado de reflexão e de politicas, que decorre da exegese do mundo. conjunção intertextual das obras de Gracillano e Silviano, Roberto Vecchi se aprofunda ainda mais questionando os mecanismos próprios de construção do LIMA, Délcio Monteiro de. discurso histórico, revisados .Os sobrinhos de Judas. Rio através dos elementos de des- de Janeiro: Francisco Alves, 1992. contrução do discurso literário. A simbolização da experiência 184 p, e do passado através do corpo como metáfora da história e do Trinta dinheiros. Por eles o todo social que os dois escrito- apóstolo Judas vendeu o Cristo res realizam, conferindo a aos fariseus. Arrependido da palavra viva e marcante, torna transação comerciai mais transitiva a experiência singu- repugnante que a cristandade lar do relato autobiográfico que conheceu, desesperado por ter possibilita, na aliança aparen- traldo o divino Mestre, o Isca- temente paradoxal com a riote enforcou-se. A imagem de