Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Este texto é parte do projeto “Poder e silêncio(s): a pós-colonialidade entre o discurso
oficial e a criação ficcional”, financiado pela FAPEMIG.
162 Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares
2
HUYSSEN, Andreas. Passados presentes: media, política, amnésia. Tradução: Ana Fabíola Maurício.
In: ALVES, Fernanda Mota Alves; SOARES, Luísa Afonso; RODRIGUES, Cristiana Vasconcelos.
Estudos da memória: teoria e análise cultural. Famalicão: Edições Húmus, 2016, p. 379-398.
3
ROSAS, Fernando. Salazar e o poder: a arte de saber dura. Lisboa: Tinta da China, 2018.
4
É inegável a necessidade de reflexão sobre os impactos dos processos migratórios, especialmente
aqueles relacionados às descolonizações, no que convencionalmente chamamos de sistemas literários,
a partir de uma noção de nacionalidade.
5
Não só em Portugal, como no Brasil, com a participação da escrita na Festa Literária Internacional
de Paraty, em 2018, por exemplo.
Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares 163
gares de memórias”, Caderno de memórias coloniais e A gorda configuram-
se também como elementos de uma “história pública”6 sobre a colonização
portuguesa em Moçambique, o seu fim, o processo migratório dos chamados
retornados, além de abrir caminho para um importante debate sobre questões
geracionais para o Portugal contemporâneo.
No caso das obras de Isabela Figueiredo, para além da “função” comuni-
cante como “lugares de memórias” e da relevância como elementos de “his-
tória pública” – ambas situações alcançadas pela circulação e aceitação
pelo público (não sem certa polêmica no caso do primeiro livro) –, a escrita
em si também atua como “medium de autocomunicação, da relação dialógica
consigo mesmo” (ASSMANN, 2011, p. 205), já que há um relevante cará-
ter testemunhal na produção da escritora. Neste texto, o interesse não será
abordar o cunho autobiográfico/autoficcional dos livros, mas analisar como
há um desdobramento, a partir das perspectivas das narradoras, de um “cor-
po-escrita” em Caderno de memórias coloniais – que dialoga de forma
mais direta com a vivência no espaço colonial moçambicano pensando a si
mesmo como parte do próprio sistema colonial – para um “corpo-casa” em
A gorda – que não só expande a experiência para o espaço português pós-
25 de abril, como também para outras questões que vão além da relação
como retornada, embora essa condição permaneça como crucial na forma
como a narradora vê a si mesma.
Christine Greiner, ao pensar as teorias que envolvem o estudo do “cor-
po”, reflete sobre os variados nomes que indicam os caminhos de descri-
ção do corpo. Desde a origem do latim corpus/corpuris, que remeteria ao
corpo morto, passando pelas definições gregas de soma (corpo morto) e
demas (corpo vivo). Greiner conclui que as diversas formas de nomear o
corpo demonstram a preocupação “de estabilizar algo em torno de um
objeto para que este represente o que resiste ao que poderia ser desfeito –
a solidez como espécie de solidariedade entre seus componentes, a coe-
rência, a coesão e a figurabilidade ou a face própria para cada entendi-
mento de corpo” (2005, p. 17. Grifo meu). Assim, a perspectiva por meio
de “pontes transdisciplinares” adotada para pensar o corpo não de forma
compartimentada, mas da anatomia às suas ações no mundo, é também
mote para analisar os romances de Isabela Figueiredo, metaforizados en-
6
ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; DE OLIVEIRA ROVAI, Marta Gouveia. Introdução à História
Pública. São Paulo: Letra e Voz, 2011.
164 Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares
7
Aqui utilizarei a 5ª. edição da obra, publicada pela Angelus Novus em 2011.
8
O livro apresenta duas epígrafes, uma de Inventar a solidão, de Paul Auster, e outra de Os que
sucumbem e os que se salvam, de Primo Levi. A primeira aborda a ausência do pai e o sentimento do
filho como invasor da sua intimidade ao mexer nas gavetas e armários, enquanto a segunda trata da
inconstância da memória, que pode alterar as recordações ao longo dos anos.
Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares 165
p. 11; 2015, p. 37) – a conclusão da brevíssima parte 1 será distinta nas
duas versões: “Quem é que não foi deixando os seus múltiplos corações
algures? Eu já há muitos anos que o substituí pela aorta” (2011, p. 11); já a
edição de 2015 não apresenta a afirmação após a pergunta, encerrando a
parte 1 com a questão: “Quem é que não foi deixando os seus múltiplos
corações algures?” (2015, p. 37).
Esses dois exemplos de modificação na edição revista e aumentada po-
deriam demonstrar um certo afastamento/amadurecimento diante do emba-
te estabelecido no primeiro momento de escrita com o que significa a me-
mória do pai. Na nova edição, publicada 6 anos após a primeira, a figura do
pai deixa de ser um elemento distante, permeado pela memória de um cor-
po morto, ao mesmo tempo que aquele coração que havia sido substituído
pela aorta desaparece, dando lugar apenas à pergunta retórica que reconhe-
ce que todos deixam seus corações por aí. Ou seja, as duas alterações, rea-
lizadas pela supressão, apontam para a permanência da existência, do pai e
do coração, no sentido sentimental e não meramente mecânico, no caso do
coração, representado pela referência à aorta.
No entanto, as supressões em nada alteram o teor geral da obra, que
permanece como um lugar (caderno) em que o corpo-escrita se manifesta,
ao mesmo tempo, como autoconhecimento e como purgação. Ambos os
movimentos operam no enfrentamento do passado – e com ele da figura
paterna – vivido no espaço colonizado de Lourenço Marques (atual Mapu-
to). Reconhecimento de que, mesmo ainda criança, era uma espécie de pro-
longamento do colonizador que era o pai, o que é perceptível em momen-
tos em que o “eu” da escrita se inclui em um “nós”: “Os criados eram
pretos e nós deixávamos-lhe gorjeta se tivessem mostrado os dentes, sido
rápidos no serviço e chamado patrão. Digo nós, por que eu estava lá” (2015,
p. 47-48, grifo meu), ou ainda “Em Moçambique era fácil um branco sentir
prazer de viver. Quase todos éramos patrões, e os que não, ambicionavam
sê-lo” (2015, p. 50, grifo meu).
O enfrentamento do passado também acompanha a narradora no seu
deslocamento para Portugal, como filha não só daquele pai colonizador,
mas como resultado de um projeto maior, como uma “portuguesa de segun-
da”, nascida em África e agora como “retornada”9. O corpo-escrita passa,
9
Denominação utilizada para referenciar o grupo de portugueses (e seus filhos nascidos nas colônias)
que retornam a Portugal a partir da Revolução dos Cravos, nos anos finais de guerra antes das
independências. Estima-se que o movimento migratório tenha atingido cerca de 500.000 pessoas.
166 Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares
gal. Exemplo evidente de como ser “retornada” era uma marca na socieda-
de portuguesa daquela época é a forma como os que chegavam de África
eram aproximados a partir da sua origem comum assim como do seu desti-
no “desterrado”, como é o caso de Maria Luísa e Tony:
Referências bibliográficas:
ASSMANN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memó-
ria cultural. Tradução: Paulo Soethe. Campinas: Editora da Unicamp, 2011.
BACHELARD, Gaston. A poética do espaço. Tradução: Antonio de Pádua Danesi.
São Paulo: Martins Fontes, 2003.
FIGUEIREDO, Isabela. Caderno de memórias coloniais. Coimbra: Angelus Novus,
2011.
174 Narrativas em tempos de crise: diálogos interdisciplinares