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TRANSFERÊNCIA NA CLÍNICA

PSICANALÍTICA COM CRIANÇAS1

Silvia Maria Abu-Jamra Zornig*

RESUMO

O presente texto objetiva discutir a noção de transferência na clínica psicanalítica


com crianças, baseando-se em dois eixos de reflexão: o primeiro tendo como modelo
uma clínica das neuroses – na qual o Édipo e a Castração são os principais referenciais
– e o segundo a idéia de vazio e de uma clínica do negativo, como postula A. Green.
A partir do relato de um fragmento clínico, analisa-se o lugar a e importância destas
concepções teórico-clínicas.

Palavras-chave: Transferência. Isolamento. Não-integração. Psicanálise com crian-


ças.

A noção de transferência é tão fundamen-


tal quanto abrangente na clínica psicanalítica –
mas, apesar da diversidade de interpretações
sobre o conceito, mantém este, em seu caráter
essencial, a idéia de ser um modo de deslocamen-
to ou repetição de conteúdos recalcados que são
revividos na situação analítica. Ou seja, a transfe-
rência estaria ligada a protótipos e imagos infan-
1
Trabalho apresentado no evento
tis, em que o analista é inserido numa das séries
“Transferência e interpretação na clínica psíquicas que o paciente já formou.
psicanalítica com crianças”, realizado no Se aplicarmos esta idéia à clínica psicana-
Instituto Sedes Sapiens, em 8 de novem- lítica com crianças, podemos compreender me-
bro de 2008. lhor o motivo do célebre debate entre Anna Freud
*
Doutora em Psicologia Clínica pela
PUC-Rio. Professora e supervisora do e Melanie Klein sobre a possibilidade de uma
Departamento de Psicologia da PUC- criança transferir ao analista em função do víncu-
Rio. Coordenadora do curso de especia- lo afetivo a seus objetos fundamentais, já que
lização em Psicologia Clínica com Crian- subjacente a essa discussão encontrava-se uma
ças da PUC-Rio. Membro psicanalista
da Sociedade de Psicanálise Iracy Doyle.
determinada concepção sobre a estruturação do
Diretora-presidente da Associação Bra- psiquismo na infância e as relações objetais pre-
sileira de Estudos sobre o Bebê (Abebe). coces. Enquanto Anna Freud propunha uma aná-

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lise baseada na noção de um aparelho resgatar a idéia de uma clínica baseada na


psíquico em constituição, Melanie Klein forma, na intensidade, no ritmo e na tem-
postulava um psiquismo constituído desde poralidade como marcadores essenciais
os primórdios, privilegiando a atividade da constituição do psiquismo na infância,
fantasmática da criança. enfatizando a necessidade de refletirmos
Avançamos muito desde então, e sobre a dimensão do vazio, do negativo e
são poucos os analistas que colocam em da ausência de investimento afetivo na
questão a capacidade de uma criança construção do psiquismo infantil. Aqui, é
usufruir de uma análise nos mesmos mol- possível contrapor ou até propor dois
des de um paciente adulto. No entanto, é eixos de reflexão.
importante pensar como a clínica psica- O primeiro tem como modelo uma
nalítica direcionada à infância, principal- clínica das neuroses, em que a castração
mente à primeira infância, nos confronta e o Édipo são os principais referenciais, e
com uma mudança de paradigma: de uma a noção de conflito intrapsíquico e de uma
clínica baseada no significante e na lin- dialética entre desejo e defesa os princi-
guagem em sua dimensão verbal, para pais eixos do sintoma. Dentro dessa pers-
uma clínica voltada para a idéia de cons- pectiva, surge um aparelho psíquico que
trução e de contenção/continente. se estrutura defensivamente a partir do
Ferenczi é um dos precursores confronto entre o mundo adulto, marcado
dessa reflexão, ao criticar a técnica clás- por significantes enigmáticos, por serem
sica de interpretação como sendo insufi- recalcados (sexualidade infantil), e o uni-
ciente para se ter acesso a problemáticas verso de dependência da criança. Como
mais graves de pacientes limítrofes, com indica Laplanche (1992), o trauma decor-
dificuldades de verbalização e elabora- re dos significantes obscuros e enigmáti-
ção simbólica. Em Análise da criança cos propostos pelo adulto à criança e de
na análise de adultos (1931/1980), ele sua impossibilidade de responder a eles,
sugere que os analistas de adultos pode- gerando uma confusão de línguas e fa-
riam aprender muito com os analistas que zendo com que a criança procure respon-
atendem crianças, se abandonassem a der aos significantes que vêm do campo
neutralidade artificial e uma escuta so- do adulto através de suas próprias teorias,
mente do conteúdo verbal, privilegiando que trazem a marca da construção fan-
uma clínica em que o analista se envolve tasmática do sujeito. Assim, o trauma
ativamente na transferência, colocando a resultante desse confronto é estruturante,
situação traumática em ato para permitir na medida em que induz o trabalho psíqui-
sua integração à cadeia simbólica poste- co e a elaboração fantasmática.
riormente. O segundo eixo tem como base a
A clínica direcionada à primeira idéia de vazio e de uma clínica do negati-
infância também foi de grande valia para vo, como indica Green, através do com-

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Transferência na clínica psicanalítica com crianças

plexo da mãe morta (1983/1988), postu- em que a comunicação ativa com o que é
lando a idéia de uma perda ou depressão percebido objetivamente é repudiada para
que tem lugar na presença do objeto, preservar o núcleo verdadeiro do self.
produzindo buracos no psiquismo e se Assim, de acordo com o autor, é funda-
relacionando a falhas na constituição do mental no trabalho analítico, preservar o
sujeito. Esta noção está presente nos núcleo isolado do self do paciente, permi-
afetos de intensidade de D. Stern (1985/ tindo-lhe vivenciar o isolamento na pre-
1992) e na ênfase dada por Winnicott às sença do analista sem se sentir violado por
relações iniciais como sendo a base da interpretações que varam suas defesas.
estruturação do self e do desenvolvimen- Esta indicação de Winnicott é pre-
to do Eu (1963/1990). Ao pensarmos ciosa, pois resgata o valor positivo da não-
neste segundo modelo, poderíamos dizer comunicação na clínica, evidenciando a
que a angústia não se relaciona à castra- necessidade de o analista suportar o silên-
ção, mas à aniquilação, já que a disponibi- cio do paciente como uma técnica pessoal
lidade afetiva do objeto marca a constitui- para preservar o sentimento de se sentir
ção do sujeito. real. É a partir de sua indicação sobre o
Em nosso trabalho, muitas vezes isolamento como uma proteção contra a
encontramos analisandos que se aproxi- percepção prematura do estado de se-
mam mais de um modelo clínico relacio- paração entre self e objeto que gostaria de
nado a uma clínica do negativo e do vazio apresentar o fragmento de um caso clínico.
– a série em branco, proposta por Green Luiza, seis anos de idade, me foi
– do que de um modelo metapsicológi- indicada por uma colega da área de saú-
co, que tem como referencial o Édipo e a de, em razão de sua timidez, retraimento
castração. Nesse tipo de atendimento, o e, principalmente, de uma situação trági-
lugar do analista no campo transferencial ca vivida recentemente: o súbito desapa-
parece se relacionar a uma função empá- recimento do pai, dado por morto, sem
tica, na qual “sentir-com” o analisando que se produzissem evidências concretas
(Ferenczi, 1928/1992) é muito importante de sua morte. A mãe ocultara o fato da
para propiciar o surgimento de um espaço filha, dizendo que o pai precisara viajar
potencial que respeite e reconheça a ne- com urgência, mas, diante de sua longa
cessidade de um isolamento que propicie ausência, resolveu dizer à menina o que
a comunicação. acontecera, trazendo-a para a análise
“A comunicação se origina do si- logo depois dessa comunicação.
lêncio”, aponta Winnicott (1963/1990), Na entrevista inicial, a mãe relata o
ressaltando a importância da comunica- sofrimento da família diante dessa tragé-
ção silenciosa do infante com os objetos dia que não tem fim, de uma história em
subjetivos para o estabelecimento do sen- aberto, que os impede de sofrer, que os
timento de realidade, ao mesmo tempo impele a esperar, ora com esperança, ora

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com desespero, sem descanso possível. por muito tempo, parecendo desvitalizada
Diz, no entanto, que sua filha deveria e retraída. Ao longo deste primeiro tem-
estar em análise há muito tempo em po, passa a escolher minha poltrona como
função de seu retraimento, do “grude” o lugar privilegiado de sua encenação:
com ela ou com a babá, de chupar o dedo inicialmente, faz alguma atividade, mas
constantemente e não conseguir dormir logo, deita-se na minha poltrona em posi-
sozinha. Fala também que tem a impres- ção fetal, polegar à boca, e dorme! Geral-
são que Luiza só se relaciona com ela e, mente, sento-me a seu lado, em silêncio,
apesar de sofrer a perda do pai, nunca mas atenta a seus gestos e movimenta-
teve uma relação intensa e íntima com ção. Ela oscila entre entregar-se ao sono,
ele. ou ficar de olhos fechados, atenta à minha
Luiza permaneceu durante cinco movimentação. Em função da situação
anos em análise, marcados por uma lenta do desaparecimento súbito de seu pai e da
construção de um espaço potencial, atra- impossibilidade de vivenciar um luto, pen-
vés do qual emerge do isolamento e do so, inicialmente, nesta situação de regres-
silêncio em direção a uma comunicação são e isolamento como uma vivência de
que lhe permite começar a testar a exter- desamparo e abandono. No entanto, no
nalidade do objeto e sua sobrevivência. decorrer do tratamento, começo a vis-
lumbrar uma perda ainda mais precoce –
Primeiro tempo: a perda de uma vivência afetiva com a
isolamento e não-integração mãe, que tem muita dificuldade em reco-
nhecer o sofrimento da filha e sua própria
Minha primeira impressão de Lui- dor.
za é de uma menina bonita, séria e desvi- O comportamento regressivo de
talizada. Apesar de arrumada, parece Luiza – deitada na poltrona da analista –
não ligar para seu corpo, com os cabelos indica um isolamento que tem a marca da
caídos sobre seu rosto, como que se comunicação, já que ela só se deita em
escondendo do olhar do outro. Logo esta- minha poltrona, que funciona como um
belecemos uma forma de comunicação espaço de continência onde ela pode ex-
através de desenhos, até que um dia ela perimentar uma não-integração sem an-
me escreve um bilhete dizendo que, dali gústia de aniquilamento. O uso feito aqui
em diante, ela não falaria mais comigo, só da palavra “encenação” se refere à idéia
se comunicaria por meio da escrita. Co- de corporeidade na clínica (Zornig, 2008),
meçamos essa forma de trabalho: ela em que o paciente encena e figura em seu
escreve, eu falo. Falo às vezes por nós corpo aspectos dissociados que ficam
duas, descrevendo a atmosfera da sessão fora de seu discurso e de sua narrativa
e como ela me afeta. Luiza não consegue verbal. A encenação se refere a um
prender a atenção em nenhuma atividade corpo que expressa o sofrimento de uma

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forma “psicossomática”, demonstrando, psíquica como primordialmente corporal,


através de seu ato, a tentativa de metabo- seguindo a indicação freudiana de um ego
lizar psiquicamente seu sofrimento. que evolve como reflexo da superfície do
É interessante notar como autores corpo, mas ressaltando principalmente
como P. Aulagnier (1975/1979) e J. La- como o corpo é marcado e investido
planche (1992) utilizam vocábulos como pulsionalmente pelo outro, como demons-
metabolização e metábola para definir a trou minha pequena analisanda ao esco-
atividade de representação primordial do lher a poltrona da analista como cenário
aparelho psíquico do infante. Aulagnier de seu sono e não-integração.
indica que a primeira atividade de repre- A contribuição de Daniel Stern, ao
sentação se refere a um processo de introduzir a idéia de “afetos de vitalidade”
metabolização, no qual o elemento hete- é particularmente relevante para esta dis-
rogêneo (que vem do campo do outro) é cussão, pois ressalta a intensidade e mo-
metabolizado pelo aparelho psíquico do vimento do afeto e não só seu conteúdo
infante através da sensorialidade e das formal. Como indica Stern, o bebê inicia
representações pictográficas (imagéticas), seu percurso subjetivo através de moda-
se inscrevendo no corpo. Assim, o corpo lidades afetivas que se diferenciam dos
é desde o início um corpo relacional, que afetos categóricos (alegria, raiva, medo,
traz as marcas do investimento afetivo do tristeza) por pertencerem ao domínio da
adulto e que encena os efeitos das rela- experiência afetiva em uma perspectiva
ções iniciais. de ativação e intensidade.
Laplanche propõe o conceito de Os afetos de vitalidade permitem
metábola para designar como o inconsci- ao bebê sentir-com, antes de compreen-
ente da criança não é mera internalização der intelectualmente. Nesse sentido, a
do discurso do Outro. Segundo o autor, linguagem tem início através de trocas
entre o discurso/desejo significante da não-verbais entre a mãe e o bebê que lhe
mãe, que surge inteiramente carregado permitem figurar no corpo a história re-
de sexualidade, e o inconsciente em vias cente dessa relação. Para o autor, a
de constituição da criança, registra-se um realidade psíquica do bebê pode ser de-
processo de metabolismo que implica em composta em uma sucessão de unidades
decomposição e recomposição das men- temporais elementares, que são vivencia-
sagens enigmáticas que vêm do campo do das por ele de forma independente e com
Outro. O inconsciente se forma a partir uma dinâmica própria. A unificação des-
de uma desqualificação da mensagem em sas experiências separadas é realizada
energia, que vai funcionar como base através do “envelope protonarrativo”, uma
para futuras simbolizações. unidade de base que tem a função de
Estas duas noções sugerem uma integrar diversas vivências e possui uma
concepção dos primórdios da atividade estrutura próxima à narratividade.

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A constelação de elementos inva- mos a indicação de Stern sobre a dimen-


riantes – estados emocionais, percepção, são não-verbal dos afetos de vitalidade,
sensações, excitações, ações motoras – poderíamos tomar a recusa de Luiza de
constitue o envelope protonarrativo, que falar com a analista como uma indicação
representa o início da própria atividade de da necessidade de construir uma relação
pensar. Como toda experiência subjetiva transferencial que lhe permitisse passar
se desenvolve no tempo, os elementos da dissociação ao conflito, da encenação
invariantes que constituem um envelope à elaboração.
protonarrativo se desenrolam em uma Cabe aqui uma diferenciação en-
cadência temporal e aparecem em uma tre dissociação e conflito, pois enquanto
curva que cresce, decresce, explode, au- no conflito a pessoa sabe, inconsciente ou
menta e diminui de intensidade, demons- conscientemente, da existência de dois
trando seu movimento e plasticidade. lados da equação (Khan, 1971/1977), nos
Há no sentido de processo em estados dissociados ela fica totalmente
movimento (surgindo, desaparecendo, le- envolvida com cada aspecto, figurando-
vantando explosivamente da cadeira) e os no corpo.
não de categorias formais, algo que expri- “A encenação exige uma testemu-
me a potência de um afeto e não seu nha que a experimente e informe. A
conteúdo. Há também, implícita nesta atuação procura cúmplices para descar-
noção, uma idéia de tempo e espaço que ga e satisfação” (Khan, 1971/1977, p.
permite uma continuidade de existência 302).
ou confronta o bebê com descontinuida- A função de testemunha me pare-
des intensas que o colocam sempre em ce fundamental para marcar o lugar do
estado de alerta, incapaz de relaxar e se analista na relação transferencial, pois, a
deixar cuidar. partir das encenações de Luiza, começo
O sono de Luiza na sessão analíti- a vislumbrar a dimensão do vazio afetivo
ca pode ser interpretado não como uma vivenciado por ela em uma relação com
resistência, mas como uma encenação de uma mãe muito eficiente, mas pouco afe-
sua necessidade de se deixar cuidar pelo tiva, com enorme dificuldade em reco-
outro, de vivenciar um isolamento na pre- nhecer o sofrimento da filha e aceitar sua
sença da analista, sem medo de ser inva- própria dor e desamparo.
dida ou trespassada. Sua recusa em falar A identificação à sua vivência de
ressalta a importância da comunicação abandono e solidão me faz compreender
silenciosa entre sujeito e objeto, em que a a importância de sustentar a função de
função da analista se relaciona a valorizar testemunha, agora no sentido dado por
a possibilidade dos afetos surgirem em Ferenczi, de reconhecimento e de autori-
sua dimensão de potência antes de serem zação de uma dor que não pode ser
traduzidos em verbalizações. Se retomar- veiculada. Nesse sentido, seu isolamento

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não é interpretado como defesa contra a com a mãe, a perguntar sobre seu desa-
comunicação, mas como uma lenta cons- parecimento, a olhar álbuns familiares, de
trução em direção a uma forma de comu- viagens, a construir uma imagem do obje-
nicação que se expressa pelos afetos de to que, na ausência, começa a ter uma
vitalidade, pequenos gestos e movimen- consistência de lembrança e presença
tos que sugerem uma dimensão afetiva afetiva.
que passa pela forma, pela musicalidade
da língua, pela intensidade dos afetos, Segundo tempo:
sem codificá-los em uma linguagem recusa e comunicação
verbal.
Em uma sessão conjunta, Luiza O segundo tempo da análise é
senta-se perto da mãe no sofá e gradual- marcado por uma recusa a entrar na sala
mente vai caindo, até ficar em posição de atendimento sem a presença da babá,
fetal, ao seu lado. Esta fica muito incomo- que é então convidada a participar de
dada, mas incapaz de conter a filha, se suas sessões. Esta estratégia produz uma
queixando de sua postura. Começa a cena na qual a analista é colocada na
criticar essa forma regressiva de com- posição de observadora da relação afetu-
portamento, mas Luiza permanece imó- osa entre as duas, ficando no lugar de
vel, na mesma posição. Falo que Luiza terceiro excluído. Da observação de uma
parece estar precisando de um colo, de relação dual, passamos a uma brincadeira
um aconchego. A mãe então a abraça e a três, em que um dos participantes sem-
ela se encolhe e se acomoda em seu colo. pre morre no final. Luiza se diverte muito
Esse movimento emociona a mãe, que quando eu “morro” e ela e a babá sobre-
acaricia seus cabelos suavemente, me vivem, podendo, a partir dessa brincadei-
dizendo como é difícil para ela lidar com ra, incluir um novo objeto em sua vida sem
a dependência da filha, que sua mãe uma angústia de perda maciça, vivencia-
nunca foi muito carinhosa, sempre esti- da na situação traumática do desapareci-
mulou sua autonomia e ela procura fazer mento concreto do terceiro excluído
o mesmo para não reforçar a regressão fantasmaticamente (desaparecimento do
da filha. Ressalto a importância de pode- pai).
rem compartilhar o sofrimento e a situa- Neste segundo tempo, Luiza me
ção traumática que ambas vivenciam, diz que, de agora em diante, vai trazer os
sugerindo que falar sobre a ausência do deveres de casa para fazer na sessão,
pai, resgatar a lembrança de experiências pois assim tem o que fazer comigo. Não
passadas pode ajudá-las a elaborar a retruco e quando ela começa a trazer
experiência. seus deveres, me sento a seu lado, de
Essa sessão teve um grande efeito, novo, com uma postura atenta, me inte-
pois Luiza pode começar a falar do pai ressando pela atividade, sem entrar na

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posição de pedagoga. Interpreto essa in- traz comentários sobre suas relações afe-
clusão de sua vida escolar no tratamento tivas com as amigas e aos poucos ela me
como um indício da possibilidade de in- conta de sua dificuldade em dormir fora
vestir libidinalmente em suas relações de casa, de brincar na casa dos outros, do
com o mundo da aprendizagem e das medo de sentir saudades da mãe ou da
possibilidades e como o esboço de uma babá.
curiosidade em saber alguma coisa – de O segundo tempo parece marcar a
sua história, de sua vida. construção de um espaço transicional e
A experiência de realizar uma ta- da vivência de uma relação triangular
refa sem compartilhá-la com a analista sem a morte ou destruição do objeto.
produz uma vivência de isolamento que Poder sustentar, com calma e tranqüilida-
traz a marca da comunicação e demons- de, sem me sentir excluída, a relação
tra a lenta e gradual construção de um amorosa que ela tem com a babá; ser
self verdadeiro. Winnicott indica que a excluída pelas duas, sem me sentir
não-comunicação é fundamental para a destruída; abrir o espaço da sala de aten-
construção subjetiva da criança, pois lhe dimento para a inclusão de uma amiga
permite estabelecer uma comunicação que a submete, colocando limites nessa
silenciosa e criativa com os objetos subje- atuação: parece ter isso possibilitado a
tivos. Ou seja, a recusa é parte do proces- abertura de um canal de comunicação e
so de criação do objeto e sinaliza a distin- dado início a uma relação objetal, na qual
ção entre a comunicação onipotente com a dimensão de alteridade pode ser expe-
os objetos subjetivos e o mundo não-eu rimentada sem uma forte angústia de
dos objetos percebidos objetivamente. separação.
O lugar de Luiza diante das pesso-
as que ela julga importantes é um lugar de Considerações finais
passividade e de não-reinvidicação. Em
uma sessão, entra com uma amiga, anun- O final da análise de Luiza é mar-
ciando que as duas participariam. É inte- cado por uma vivência de ódio direciona-
ressante frisar que ela traz para sua ses- da à analista que é acolhida como um
são uma amiga autoritária, que quer ditar esboço de separação. Todas as sessões
as regras do jogo e comandar tudo de terminam com a frase – eu te odeio, e a
forma manipuladora. Comento com a minha resposta – te aguardo em tal dia e
amiga como ela é “mandona” e Luiza se tal hora “, indicando que ela pode expres-
diverte muito com a minha fala. Quando sar seu ódio sem me destruir, e que eu
retorna, num outro dia, diz que a amiga posso suportar essa vivência sem morrer.
achou bom vir ao meu consultório, mas Winnicott (1975) tem uma indica-
que não voltará mais, pois não gostou que ção preciosa sobre a função da agressivi-
eu a chamasse de mandona. Este assunto dade no reconhecimento da externalida-

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Transferência na clínica psicanalítica com crianças

de do objeto, sugerindo que somente a canalítico para ressaltar o trabalho de


vivência de ódio na análise modifica a construção de um espaço potencial como
posição do objeto, no sentido de passar de a base do sentimento de continuidade de
uma fantasia sobre o analista, enquanto existência e o eixo necessário para a
objeto interno que precisa ser protegido transposição da encenação ao conflito.
da tentativa de destruição, para o uso do Ou seja, os dois modelos clínicos propos-
analista, enquanto objeto, que é reconhe- tos não são modelos que se excluem, mas
cido em sua exterioridade e, por esse que podem e devem ser pensados em
motivo, consegue sobreviver ao ódio. uma relação dialética constante durante
Se retomarmos os dois eixos de um processo analítico.
reflexão propostos no início do texto, po- A análise de Luiza se encerra no
demos acompanhar o fragmento clínico momento em que sua demanda de não
relatado como um processo gradual de comparecer mais às sessões parece uma
constituição subjetiva, em que a noção de expressão genuína de um self verdadeiro,
transferência não se relaciona inicialmente que talvez necessite de um outro interlo-
à repetição de conteúdos recalcados, mas cutor mais tarde – mas que ora pode
a um processo de co-construção do sujei- começar a experimentar a vida de uma
to e do objeto, numa dialética entre estar- maneira mais criativa e autoral.
em-um e estar separado (Ogden, 1996).
Nessa perspectiva, a postura em- REFERÊNCIAS
pática do analista é fundamental para
reconhecer o aspecto positivo da experi- Aulagnier, P. (1979). A violência da
ência de não-integração e isolamento. Se interpretação: Do pictograma ao
a comunicação se origina do silêncio, enunciado. Rio de Janeiro: Imago.
como sugere Winnicott, a constituição do (Trabalho original publicado em 1975.)
psiquismo na infância surge a partir das
experiências sensoriais e afetivas que Ferenczi, S. (1980). Child analysis in the
transcorrem entre o bebê e seus objetos analysis of adults. In S. Ferenczi,
primordiais. Assim, a relação transferen- Final contributions in the problem
cial pode ser vivenciada em uma dimen- and method of psycho-analysis.
são pulsional de movimento e intensidade, New York: Brunner/Mazel, 1980.
na qual a comunicação se dá através da (Trabalho original publicado em 1931.)
sustentação, da musicalidade, dos afetos
de vitalidade. Ferenczi, S. (1992). Elasticidade da técni-
Não pretendemos desconsiderar o ca psicanalítica. In: S. Ferenczi: Obras
aspecto primordial da interpretação, mas Completas: Psicanálise IV (pp. 25-
propor uma ampliação da noção de trans- 36). São Paulo: Martins Fontes. (Tra-
ferência e interpretação no processo psi- balho original publicado em 1928.)

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Transferência na clínica psicanalítica com crianças

SUMMARY

Transference in the psychoanalytic with children

The paper intends to discuss the notion of transference in the clinical practice
with children in reference to two major clinical concepts: the first one base on a clinic
of the neuroses, where the Oedipus and the Castration Complex appear to be the most
important references; and the second one which is based on a clinic of the negative and
absence as postulated by A. Green. A clinical vignette is described in order to analyze
the two clinical concepts.

Keywords: Transference. Isolation. Non-integration. Psychoanalysis with children.

RESUMEN

Transferencia en la clínica psicoanalítica con niños

El objetivo de este artículo es discutir la transferencia en la clínica psicoanalítica


con niños a partir de dos concepciones teóricas diferentes: una que tiene como modelo
la clínica de las neurosis y de las representaciones y la otra que tiene como referencia
el trabajo de A. Green acerca del vacío y de la ausencia afectiva del objeto. Para ilustrar
estas reflexiones teóricas se presenta un fragmento de un caso clínico.

Palabras-clave: Transferencia. Aislamiento. No integración. Psicoanálisis de niños.

Silvia Maria Abu-Jamra Zornig


R. Sara Vilela, 100 – Jd. Botânico
22460-180 Rio de Janeiro, RJ
E-mail: silvia.zornig@terra.com.br

Recebido em: 20/11/2008


Aceito em: 23/12/2008

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