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A presente colecção gira sobre um eixo fundamental: o Homem no tempo 7
e na História. Assim se pretende estudar e dar a conhecer a um vasto
público as diferentes actividades e comportamentos que o Homem
desenvolveu em todos os campos (laboral, social, religioso, cultural), nas -d
O HOMEM DO ILUMINISMO
diversas épocas dos grandes períodos da História Universal. Este é um -J
trabalho fértil em descobertas e pleno de possibilidades de confronto
com o Homem de hoje. Uma colecção que conta com a colaboração de 0>
estudiosos das diferentes perspectivas que cada época nos oferece, e 'G Q
com a direcção de grandes especialistas de reputação internacional.
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Descrito como um sujeito Iluminado sobre um fundo de trevas povoado 0U
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pela tradição, pela ignorância e pela superstição, o Homem do Iluminismo
viria a protagonizar uma viragem decisiva no curso da }"listória, colocando- nE
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se no centro do Universo e contribuindo por isso para uma alteração pro-
funda da visão do mundo. Através do pensamento e da acção de Homens
tão diferentes como o soldado, o sacerdote, o artista, o explorador ou o
funcionário, todos eles dotados de uma forte capacidade crítica, assistlu-
se à passagemde um universoem que a intervençãodivina era indis- E
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pensável para um outro estruturado em torno da fé na razão e na ciência.

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Liberdade, humanidadee tolerância passaram a reger homens de
Negócios, de Ciência, de Letras e até as mulheres que em pleno Século
das Luzes começam a ter, pela primeira vez, acesso à cultura e à palavra.
Apesar de tudo, a época de Setecentos viria a revelar algumas contradi-
ções e retrocessos. também nesta obra retratados graças aos ensaios de E
cada um dos seus colaboradores, que sob a direcção de Michel Vovelle,
procuram oferecer ao leitor uma panorâmica globalizante e diversificada =
deste período histórico. i-J
0
O HOMEM E A HISTORIA n
t. O
2. O
HOMEM MEDIEVAL, Direcção de Jacques /e Go#
HOMEM RENASCENTISTA, Direcção de Eugen/o Garfo
E
3. O HOMEM ROMANO, Direcção de 4ndrea Glardfna
4. O HOMEM GREGO, Direcção de mean-PierreVernanf
E
0
5. O HOMEM EGÍPCIO, Direcção de Será/o Donadonf
6. O HOMEM BARROCO, Direcção de Rosado V///ad

H
7. O HOMEM DO ILUMINISMO, Direcção de À4iche/Vive//e

940.253
UP64

EDIL(JHIAL PRESENÇA J
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O HOMEM DO ILUMINISMO
D. ARASSE. L. BERGERON, J.-P. BERTAUD
M.-N. BOURGUET, C. CAPRA, R. CHARTIER
VFERRONE.D.GODINEAU.D.JULIA,
P.SERNA

O HOMEM DO ILUMINISMO
Direcção de Michel Vovelle

Tradução de
MARIA GEORGINA SEGURADO

DEDALUS - Acervo - FFLCH-HI


940.253 O Homem do Iluminismo /
UP64

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21200043117

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SBD-FFLCH-USP

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EI ALliÊÍIPnCSENCA
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INTRODIJCAO

O Homem do Iluminismo? A sua imagem impõe-se-nos sobremaneira no signi-


ficado mais literal do termo. William Blake representa-o, em 1780, na sua composi-
ção G/ad day, numa nudez tranquila e segura, de braços abertos, numa atmosfera
radiosa que parece dimanar da sua pessoa, sob um fundo de trevas. Encontra-se no
centro do Universo: ur]].homem de luz, sentir-nos-íamos tentados a afirmar. A impres-
são é quase idêntica quando, em plena Revolução Francesa, Regnault cria o quadro
,4 Z.íberdadeo l a A/or/e. Também nestecaso se trata de um homem nu, de braços
abertos, que vagueia nos céus. Anjo ou lcaro, já que o artista o dotou de asase ador
nou a sua fronte com uma chama celeste. Mas a simbologia é bem complexa, muito
embora procure tornar-se mais explícita. A sua direita, uma figura fascinante apoiada
numa nuvem: é a Liberdade, que ergue numa mão o barrete frígio e na outra a balança
da Igualdade. Do outro lado, quase em contraponto, encontra-se a morte, que mais
parece saída de um cenotáfio da época barroca, esqueleto medonho envolto nuh
FICHATÉCNICA manto negro e apoiado na sua foice. Homem livre, conquistador, verdadeiro dono do
Universo por haver e:glgjlado as forças da sombra e do passado.
Título original: 1,'Pomo Z)ell '/ZJumi/zi:mo /'
A [o e,s\ ]). Amasse, L. Bergeron, J.-P. Bertaud,
M.-N. Boürgüet, C. Capta, R. Chartier,
O homem visto através das Luzes
V. Ferrone, D. Godilteau. 1). bulia, P. perna
Direcção: ,ll/ic/ze/ Vovó//e
Copyright © 1992,Gius. Laterza & Fig1i Spa, Romã Bari Da maneira como surge no sugestivo esboço representado pela imagem, o homem
Tradução © Editorial Presença, Lisboa, 1997 do Iluminismo justifica, como se fosse necessário, o objectivo da presenteobra e a
Tradução: aderia Georgína Segurado escolha dos ensaios que a integram. '0 século XVlll perguntar-nos-emos quais osr
Revisão: A/aria rosé de Z,a Fzlenfe
limites cronológicos que Ihe convém atribuir colocou o homem no centro da suajl
Capa: Sector Grd$co de Editorial Presença
visão do mundo, do mecanismo em torno do qual organiza a sua reflexão. Encontramosf
Composição: Tex/ype Artes Gr({/ices, l,da.
Impressão e acabamento: Típogr(!/ia Feres aqui a rotura com a épocabarroca, com uma sensibilidade que dominou a épocapós
l .' edição, Lisboa, Setembro, 1997 .tridentina durante mais de um século e que, aliás, se encontra ainda disciplinada
Depósito legal n.' 113 467/97 pela ordem clássica.'Mas até quando? Se cada fronteira não se nos afigurasse tão ilu
séria, quase ousaríamos afirmar que até meados do século, a menos que nos estda-
Reservados todos os direitos mos a referir à obra dos finais do século xvH, à antecipação dos descobridores movi-
para a língua portuguesa à dos pela <<criseda consciência europeia>>,
ou então aos sinais de propagação,tão
EDITORIALPRESENÇA
variáveis e contrastantesde grupo social para grupo social e de país para país numa
Rua AugustoGil, 35-A 1000LISBOA
E-Mail: info@editpresenca.pt Europa em que, partindo da França e da Inglaterra e, posteriormente, da Alemanha
Internet: http://www.editpresenca.pt/ e da ltália, se parecem expandir em ondas concêntricas que, não obstante, se vão ate-

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nuando. Ao invés, será talvez mais fácil estabelecer o /erma/zui ad q em: o crepús-
sua ciência, quando o vemos atravessarmares, medir os céus e competir com o tro-
culo do Iluminismo -- metáfora cómoda-- que tudo indica situar-se no final do século,
vão no seu estrondo e efeitos devastadores...)>, só podemos ficar surpreendidos com
naquela sequência de acontecimentos cujo momento paroxístico é representado pela
<<abaixeza e a atrocidade>> a que <<desce muitas vezes este rei da natureza>>
Revolução Francesa, em que as certezas vacilam sem que, para tal, se ponha em causa
a reviravolta ocorrida na História da Humanidade em tudo aquilo que ela tem de irre Uma vez colocadoo problema sob a forma de paradoxo, evitam-sedesdelogo
com menor agressividade do que aquela que seria lícito esperar, as explicações meta-
versível. E aqui que o tema da nossa pergunta revela a sua ambiguidade. Poupemo-nos
físicas que radicam no pecado ou numa natureza malévola.
o debate, que tem tanto de importante como de insolúvel -- e a que todos os autores
desta investigação se mostraram sensíveis, da distinção necessária entre <(oHomem
do lluminismo>>, ideal-tipo, e <<oshomens do iluminismo)> na sua massa anónima e Alguns moralistas recorrem a um misto de bom e de mau, que necessita de ser expli-
cado. O orgulho, a superstição e o medo criaram sistemas e levantaram obstáculos ao
heterogénea. Obviamente, não os podemos inserir todos, e o quadro apresentado foi conhecimento do homem através de milhares de preconceitos que a observação deve
objecto de uma selecçãoque se impunha. Excepçãofeita, talvez, à introdução da destruir. A Religião tem a obrigação de nos conduzir pela estrada da felicidade que nos
mulher e do soldado para alguns, figuras marginais neste universo --, eles são os prepara para a época que há-de vir. A Filosofia deve debruçar-se sobre os motivos natu-
intervenientes directos que agora evocamos, elementos fascinantes, num ou noutro
rais das acçõesdo homem, a fim de o tornar melhor e mais feliz nestavida passageira.
sentido, desta aventura colectiva: nobres, sacerdotes,negociantes, letrados, cientis-
tas, artistas, exploradores.A primeira vista, sentir-nos-íamostentadosa coloca-los
O que afirma a filosofia? Que as acções do homem se regem pelas sensações,e
num campo ou noutro, comparticipando todos eles deste espírito da época. O cam-
os efeitos pelo desejo. O homem é sempre aquilo que as suas necessidades o levam
ponês, o homem do povo, não surge no quadro, mas perguntamo-nos também qual
a ser, ainda quc entre na sociedade<<frequentando
os outros>>.
O eu não é odioso.
a sua posição em relação ao modelo de <<honnêtehommo> que se vai delineando,
A amizade, o amor, a paixão, a ambição nascem em função do nível de utilidade que
uma vez que ele não se alheia do discurso que respeita a toda a humanidade.
esperamos, fruto do desejo de progredirmos. Se contrariadas, estas tendências podem
Partindo exactamente do novo discurso sobre o homem em geral, é possível apre-
conduzir a ideias contranaturais (veja-se <<Fatalismo»).E existem remédios para esta
ciar os comportamentos e representações de grupos individuais em toda a sua diver-
visão pessimistaque vê dissipar-sena mocidade a alegria do indivíduo e o equilí-
sidade. Folheemos como ponto de referência obrigatório -- as páginas da grande
brio dar lugar ao declínio da sociedade:«Todavia, a física experimentale o quadro
.\
E/zcic/opédla de Diderot e d'Alembert na entrada <<Homem)>. Ficamos liderados: qua-
renta e cinco colunas, das quais três dedicadas à anatomia, oito ao <<homemmoral>>.
meia ao «homem político>>.Uma introdução dá-nos uma ideia de todo o artigo:
da natureza apresentadoa homens de têmpera rara e forte poderão proporcionar à
mente humana um espectáculo que alargara as suas perspectivas e fará nascer uma
nova ordem das coisas.>>
Se, por um lado, é verdade que <<asociedade humana se apresenta como uma con-
E um ser pensante,sensível,capazde reflectir, que se deslocalivremente sobre a federação de gente má que apenas o interesse mantém unida», o enciclopedista admite
face da terra, que parece vir à cabeça de todos os animais que domina, que vive em que <<não
se pode ignorar um sentimento nobre no homem, que o leva a interessar-se
companhia,que inventou ciências e artes, que possui uma bondadee uma maldade que pelo destino dos seus semelhantes uma vez tranquilo em relação ao seu>>.
Ihe são próprias, que estabeleceupadrões para si próprio, que criou leis, etc
A sensibilidade dos homens pode ser a fonte de todas as virtudes e, porque não,
Pode ser considerado segundo diversos pontos de vista, os mais importantes dos
quais constam dos artigos que se seguem: também dc uma <<felicidadeconfiante» (veja-se <<Humanidade>>).Para tal, impõe-se o
O homem é constituído por duas substâncias,uma chamadaalma (veja-se <«Alma»), recurso a uma pedagogia que [glpçilg..!gmbém à infância: é necessário desenvolver
a outra conhecida pelo nome de corpo. no seio dos jovens o <«entimento viHuoso de pátria;; (é invocado o exemplo espar-
O corpo, ou a parte material do homem, foi muito estudado. tana), é necessárioinspirar preconceitos favoráveis ao bem comum e, em particular,
à sociedade, educar não só com preceitos mas também com exemplos. A máquina
humana, movida pelo prazer, coloca coadjuvantes naturais à disposição desta empresa,
Após uma breve consideração preliminar em que se admite a hipótese da multi-
a partir do momentoem que o egoísmoé corrigido com um comportamentoa imitar.
plicação até ao infinito dos ângulos pelos quais é possível observar o homem, dado
<<Oshomens desenvolvem entre si relações secretasque os unem>>e que se manifestam
que <<nada existe que não conduza até ele», inicia-se uma ampla descrição que nos através da vida em sociedade -- <<oshomens mudam-se uns aos outros>>.O lema
revela cada aspecto do homem físico, desde o feto à puberdade e à velhice, enume-
browniano dos seus interesses pessoais funde-se na massa geral dos costumes da sua
rando pormenorizadamente os ossos, os músculos e os órgãos, apresentando de igual
época. Podemos falar numa perspectiva histórica -- de um Homem das Luzes que
modo uma tabela de mortalidade. Na análise nitidamente orientada por um ponto de
reflecte o espírito de uma época: <<Fala-sedo século das artes e da filosofia; esperamos
vista inspirado no sensismo de Condillac, a descrição do homem moral (artigo de Le
que venha também um que possa ser chamado século da generosidade e da humanidade.»
Roi) é mais breve, mas nem por isso menos explícita. Reconhecendo a superioridade
Para se ter acesso a este ideal torna-se imperioso o recurso a uma instância ine
do Homem no âmbito da Natureza, é afirmado: <<Quando
admiramos as obras gigan-
rente ao voluntarismo. <<Umavez que são o exemplo e a opinião que determinam o
tescasdo homem, quando examinámos os pormenores da sua arte e o progresso da
amor pelo bem-estar,sucedeque os homensse mo/dam [o itá[ico é meu] e é possí-
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vel conferir-lhes a forma preferida.>>Não são poupadosos comentários sobre as con- Encíc/opédfa permite reunir um determinado número de termos genéricos onde é pos-l
dições políticas em que tal empresa se insere: <<lssosucede sobretudo na monarquia. cível identificar, para além das controvérsias, os elementos de um consenso mínimo
comum, nos quais se exprime uma nova visão do mundo através de uma visão dol
a partir do momento em que o trono é um pedestal onde a imitação vai buscar o seu Homem.
modelo. Nas repúblicas, a igualdade não tolera que um homem se eleve o suficiente
g A primeira vista, o facto que mais ressalta, muito embora o espírito da E/zclc/opédla
para permanecer sempre à vista.>>Seja como for, convém atentar nas condições gerais,
possa acentuaros tons, é provavelmente o repúdio da visão teocêntrica que até então
nas «situações?>.Quando reina a ordem num Estado e a abastançacorre o risco dc
cair na volúpia, os interesses individuais desaparecem;quando, ao invés,,.é,pertur- regeu a ordem do l.Jnivcrso. O Homem deixa de ser considerado no interior do peia
bado ou assolado pela guerra, encontra no ódio um cimento nocivo..]..=;P; samento de Deus, desapareceo além e remete-se o problema da alma para outro
Estreito caminho este o da formação de um homem novo,,que"realça a impor- artigo enciclopédico. A culpa e o pecado entram na esfera das especulaçõesmetafí-
tância de uma pedagogia educativa plena de maturidade, a começar na infância e sem sicas que poderiam ser nocivas (veja-se <sFanatismo»). ,'
Reinserido na ordem da natureza, qual animal dotado de propriedades específicas,
esquecer as mulheres. F
o Homem é consideradona sua consistênciafísica, na sua anatomia,na sua fisio-
fEnquanto no artigo sobreo homem moral é o filósofo sensistaque se exprime,
logia, nos métodosde analisaraquilo que constitui a unidadee, igualmente,a diver
no brevíssimo discurso sobre o homem político quem fala é um fisiocrata que se
/ limita a abordar apenas em termos técnicos o tema que não tardará a ser definido em sidaiie da espéciehumana.Pensemosno anãode Saturno em it//eram(idas, de Voltaire
e sabemos que se trata de Fontenelle -- que observando os pequenos seres do nosso
termos de cidadania. <<Nãoexistem outras riquezas a não ser o homem e a terra>>,por
globo terráqueo e acreditando que estalam a trabalhar na reprodução, exclama: <<apanhei
isso são necessários homens <aobustop>e <(laboriosos>>.
E não o poderão ser a menos
que exista liberdade pelo que se impõe liberalizar o comércio, diminuir o número a Natureza em flagrante>>,novo Leeuwenhoeck, descobridor intrépido e imprudente.
daqueles que trabalham para produzir artigos de luxo e domésticos, a fim de que a Encontraremos exemplos desta çutlosjdlde nos capítulos dedicados ao cientista e
também ao explorador, mas de igual modo nos capítulos que analisam o burocrata,
atençãopossa convergir sobre os agricultores: de que servem as fábricas enquanto
existirem terrenos por cultivar? . ou mesmo o sacerdote,debruçando-sesobre o estudo do comportamento, dos costu-
mes, das múltiplas variedades de uma humanidade que se vai descobrindo, seja fora
. Se os homens constituem, juntamente com a terra, a riqueza das nações, devem
de casa seja do outro lado dos mares. O teólogo oculta-se ou reitera as suas posi-
ser em grande número; vemo-nos mais uma vez confrontados com a preocupaçãode
uma pedagogia que recai sobre os pais... e as amas, tal como encontramos, de uma ções, o cientista substituiu-o.
Criatura natural, indivíduo movido pelo impulso do seuinteressepessoal,o Homem,/
forma menossistemática,a argumentaçãodo artigo precedenteassentena alavanca
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que faz mover os homens: <<nãose entra numa determinada condição se não houver tal como é evocado na E/zc/c/opédia, parece retirado das hierarquias das sociedadesl
baseadasna ordem e que vinham impondo até ali o seu âmbito restrito.
a esperançade uma vida agradável>>.Por isso, convém aplacar o desesperodo tra-
KI 'Se existe hierarquia c o artigo sobre o <<Homem político>> testemunha a sua exis-
balhador, cujo salário deve ser decente,procurando evitar uma divisão demasiado
\\tência é em função da utilidade social, do seu lugar na criação das riquezas. E certo
desigual do produto bruto...
que vive em sociedade,mas o contacto social, reduzido neste caso a <<umaconfede-
E um texto fundamentalna aventurado Iluminismo, quc justifica a importância
atribuída a este artigo, e a .Encic/opédía)nãoesgota a sua riqueza. Mesmo que esta ração de homens maus que apenas o interesse mantém unidos>>,expressãomínima
de um tema que Rousseauaborda com outra amplitude, baseia-seno postulado fun-
consideração não escape ao leitor, devemos acrescentar que ela está longe de reflec-
damental de uma liberdade de direito natural que pertence a todos os homens.'
tir um consenso universalmente aceite na filosofia da época. Conviria opor ao dis-
Dono do seu próprio destino, uma vez eliminadas as barreiras do preconceito, da
curso sensistaque inspira o desenvolvimento do homem moral o que não é fácil --,
a leitura da obra de Rousseausobre a bondade original do homem pervertida pela l religião e dos condicionalismosrespeitantesà própria Natureza, o Homem distin
gue-sedos outros animais como ser dotado de razão: criou as artes,as ciências, a
sociedade,e toda uma série de argumentaçõesque irá assumir nas últimas décadas
do século uma importância cada vez maior. O tema da virtude cívica que não se \ actividade produtora de riqueza, numa palavra, a civilização. Maleável e aperfei-
reduz exclusivamente à componente de interesses egocentristas assimilados e des êbável, a história dos homens é uma história de progresso,presa à terra: aos limites
frutados da melhor maneira impor se-á com veemência à reflexão sobre a cidada- da vida neste mundo, na medida em que o fim último que o Homem procura é a felj-
.cidade tenena: <<Ébom ou é mau?)> para plagiar Diderot. Está aberto o debate, pois
nia e à reivindicação dos direitos naturais, para encontrar durante a Revolução a sua
temos aqui ãdescrição que faz com que uns cheguem à bondadeoriginal do Homem
expressão teórica e prática. Os grandes painéis temáticos que, no âmbito de uma nova
que, por vezes, se perverte, outros a uma combinação muito vasta dos interesses indi-
história das ideias, vieram renovara consciênciado pensamentoiluminista durante
viduais associada àquela <<sensibilidadepreciosa que é a fonte de todas as virtudes>>.
algumas décadas,Felicidade (R. Mauzi), Natureza (J. Ehrard) e Inquietação (J. Deprun),
estabeleceram os termos do debate, não sendo nossa intenção retoma-los aqui. ÍSensibilidade versus razãol outro debate fundamental que não iremos aprofundar.
Subsiste o facto de esta perfeição do Homem, que leva a uma pergunta constantemente
Mas, sem evidenciarmos a ambição -- que seria despropositada de nos interro-
reiterada, a saber, como tornar'os homens mais felizes e mais úteis, vir desembocar,
garmos sobre a situação concreta do <(Homemdas Luzes>>,do mesmo modo que Kant
inevitavelmente, numa política voluntarista: harmonizar o fluxo dos interessesna
formulava então a pergunta «Was fsf Áz{/k/dr /zg?»,reconhecemosque o texto da
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contexto de uma cidade racional, alargar os limites da civilização através da difusão São os historiadores de hoje que convém interrogar, não para redigir em escas-
do Iluminismo. Isso explica o papel-chave da pedagogia neste movimento, pois na sas páginas um balanço impossível -- em que medida, e até que ponto, mudaram os
infância é que convém moldar o ser humano, a fim de o preparar para a sua função homens da época das Luzes as suas condições materiais e as suas representações
de Homem, desenvolvendo as suasboas tendências e os seusconhecimentos mediante colectivas -- mas para recordar algumas realidades que de espontâneo só têm o aspecto,
uma educaçãoadequada,preocupaçãoque o autor do artigo, testemunhandouma aspecto ilusório, aliás, já que nem todos estão de acordo. A vulgaridade do <<glorioso
abertura mental que, no entanto, não é universalmente compartilhada, toma exten- século xvlll», de um mundo de agitações e de progressoscolectivos, Pierre Chaunu
siva às mulheres. contrapõe, na síntese provocatória que dedicou à Civilização das Luzes, a leitura mais
Em semelhante esquema, não é possível contomar o problema do Estado -- ainda reservadade um historiador para quem o grande século, o das revoluções do pensa-
que aqui seja em parte omitido sem que se tente sequer caracteriza-lo totalmente mento, continua a ser a época clássica, da qual o século xvlil mais não foi do que o
como o resultado de uma prudência imposta de cima.' O sistema republicano é apenas prolongamento, em que se introduziram algumas modestas alterações.'
objecto de uma alusão, ao passo que o sistema monárquico surge como a referência ÚTodavia, impõem-se indiscutivelmente algumas concordâncias. Existem mais
natural e mais eficaz. O consenso é compartilhado na época do despotismo ilumi- homens na zona da Europa, a população aumenta significativamente, pondo termo
nado pela grande maioria dos representantesdo partido dos <<philosophes>>.
Do mesmo à longa estagnaçãodos séculos anteriores. É universalmente aceite o veredicto de
modo, será notória, mas também não surpreenderá,a ausênciade condenaçãodo sis- Ernest Labrousse, que se interroga sobre os benefícios concretos que este período
tema hierárquico de uma sociedadeassenteem várias ordens, quanto mais não seja trouxe à maioria da população urbana, e mais ainda à rural -- «Pelo menos têm com
pelas perífrases da argumentação fisiocrática; tal ausência é significativa, uma vez que que viver>>.rOaumentodemográfico,significativo tanto em Inglaterra como na
leva implicitamente à substituição do sistemade valores da velha ordem, assentena Franças'embue a população passa de 20 para 28 milhões de habitantes, manifesta-
estima e nas honras, pelo da utilidade e da produção de riquezas na cidade do futuro./ -se em toda a sua pujança na Europa Central e Oriental. Basta pensar na Hungria,
Assim se apresenta,a partir do exemplo que escolhemospara análise,não nos cuja população aumentou de modo espectacular. Não entraremos nos pormenores
sendo possível abarcar o tema em toda a sua amplitude, o Homem das Luzes na sua de uma divisão cronológica que privilegia, incontestavelmente, a segunda metade
formulação ideal. Resta ver -- tarefa difícil -- em que medida foi este discurso con- do século, a ritmos diversos de acordo com os vários países. Todavia, é muito impor-
duzido, transmitido e recebido. tante a análise das causas, até aqui circunscrita aos países da Europa Ocidental: mais
Comparar o homem ideal, assim definido em grandes linhas, com o homem con do que 'uma revolução dos métodos de combate às doenças e à morte, através da
preto, com um homem qualquer, antes mesmo de introduzir, como preâmbulo para os medicina e da ciência (não obstante a varíola), o verdadeiro protagonista é o regresso
nossosautores, os actoresprincipais, pressupõea eliminação de alguns preliminares da escassez e as consequentes epidemias. Cessam os dobres a finados que acompa-
que, de outro modo, não poderemosevitar: em que medida correspondeo sonhodas nhavam periodicamente a descida do excesso de natalidade que se acumulara nos
Luzes à realidade? Por outras palavras, estará o Homem do século xvm, por muito que anos anteriores... Talvez estáfacto redimensioneo mérito, que mesmoassim não
esta expressão possa ter um significado, à altura de semelhante programa voluntarista? deixa de ser real, do que poderia ser imputado à política voluntarista dos protago-
nistas do Iluminismo.
:::;:J' Todavia, na parte mais evoluída desta Europa, a atitude colectiva em relação à
O homem comum vida, ao nascimento, ao amor, ao casamento, à sexualidade e, por último, à morte,
começa a mudar. Philippe Ariês foi um dos primeiros a realçar estanova maneira de
ReleiamosVoltaire a fim de descobrirmosnele a diversidadedos conceitosfor- ver os filhos, mais preciosos,mastambém mais raros. A contracepção,que perma-
mulados em vários momentos, desde a poesia Z,eA/o/zdaín (<(Ah!, que época feliz necera relegada para os «segredos funestos>>que os confessores denunciam, é reco
esteséculo de ferro») aos contos Como Vaí o A/lindo, que ele termina com um vere nhecida em mais de uma localidade francesa a partir dos anos 70. A ilegitimidade
dicto sem apelo Sa/ve-se qzíempuder, às 4ve/zfuras da Razão, que evocam a viagem encontra terreno fértil tanto em Parascomo nas outras grandes cidades. Os homens
desta última, saída do poço onde se escondera com a sua filha, a Verdade, a fim de mudaram nos seus comportamentos mais íntimos, tal como as mulheres, e iremos ver
percorrer o mundo dito das Luzes. O balanço é bem modesto: existem, sem dúvida, dentro de que limites..
esperançasonde reinam os princípios iluminados, mas quantas guerras, quanta barbárie, Agora mais numerosos,serãoos homens tambémmais felizes? Outra pergunta,
por vezes quantos passos em retrocesso. No final, mãe e filha acabam por voltar ao falsamente ingénua, mas que, indirectamente, figura entre as preocupações da elite
poço, aguardandotempos melhores. Ao invés, Cândido propõe-nos grandesviagens do Iluminismo. A guerra-massacre
diminuiu, afirmação brutal, contestávele
de exploração de quejá iremos falar, outro modo de descobrir o mundo por meio da eventualmentecontaminada por um certo galocentrismo, uma vez que a França,
errança desordenada e febril através da Europa e da Terra, assolada por guerras que entre17]5 e a Revolução,foi totalmentepoupadaao flagelo da invasão...Mas
as fogueiras da Inquisição tornaram ainda mais selváticas. Mas, nesse caso, nada continua a combater-se muito desdea Flandres à Europa Central e Oriental, e nes-
mudou desdea época do universo picaresco de Simplicius Simplicissimus, a não ser tas guerras encontra o Voltaire de Cândida matéria-prima para as suas amargas
a consciencialização de um absurdo trágico? descrições.

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/i ( A condição material, tal como se manifesta no quotidiano, é analisada a partir de corrupção em todas as suas fonnas, coroada pelos vapores metílicos que exala, pútrida
um mundo rural que reúne ainda em França 85qo da população em 1789 e mais ainda até às suas profundezas. Subsiste o facto de a cidade, local de residência das elites
se formos ver uma Europa Central e Oriental com.fraca urbanização. Em suma, estes aristocráticas e burguesas de uma pequena e média burguesias que procuram impor-
camponeses vivem na prosperidade ou na miséria?JQuantos casos particulares, quan -se a todo o custo, assim que nos afastamos da Europa Ocidental e sobretudo do
tos discursos contraditórios. . : Talvez não devamos permitir que o lamento se instale, mundo vasto e heterogéneo <(doquiosque e da loja>>dos pequenosprodutores, ser,
como o faria ainda Michelet no século seguinte (<<Vejam-noestendido em cima do sem dúvida, o local de filtragem e troca por onde a novidade vai abrindo caminho
estrume, pobre Giobbe»), e mais ainda o idílio campestre que a pastoral coloca em Vêm à superfície novos hábitos, novas maneiras de ser e de se mostrar recentemente
voga e que encontramos nas cenascampestrespintadas por Goya para o Escorial ou valorizadas (D. Rocha, A. Farte). No interior de estruturas substancialmenteimutá-
na imagem da sociedade camponesa ideal, evocada por Restif de la Bretonne na obra veis, perpetuadaspelas guildas e pelas corporações -- a modernidade vai-se mos-
À l/ida de A/eu Paí.'Resumindo em excesso, e correndo o risco de caiar a caricatura. trando. #
verificamos, muito simplesmente, que a produção aumenta e que, na velha Europa '$-a /Mas os homens não estão cientes disso? Assim se resume o problema da cultura
de forte densidade populacional, a superfície cultivada atinge a sua extensão máxima, dag Luzes, da sua difusão e dos seus limitesJ Para encerrar o debate, não bastam
acrescida dos arroteamentos. Mas notamos igualmente que em determinadas zonas os apontamentos de um viajante que viu um cocheiro sentado a ler dentro da car-
se concretizam as premissasdo que se virá a chamar a Revolução Agrícola, da ruagem enquanto espera o cliente. Seria demasiado fácil apresentar as impressões
Inglatena à Flandres, de certas regiões da França à planície do PÓ. Entra também em contraditórias daqueles que, na época do Gra/zd 7'oar, franceses como o presidente
acção na Europa Oriental o trigo produzido pelos seus extensosterritórios e cujo de Brosses ou. ingleses como Arthur Young, descrevem pormenorizadamente nas
comércio se efectua através do Báltico ou do mar Negro. 8 suas aventuras provincianas as etapas de uma descida se não à selvajaria, pelo
r/ b De qualquerforma, a condição dos camponesesnão registaprogressosespecta menos ao exotismo, mal se abandona a rede codificada dos contactos tradicionais
culares. Em França, durante a segunda metade do século xvm, a jorna do assalariado e dos salões,onde se é aguardado... Contudo, não são muito gentis em relaçãoàs
rural estagnou,ao contrário do rendimento e do lucro, que subiram vertiginosamente elites de província quc os recebem. Deixemo», por um instante, de parte estas elites
numa sociedade em que as diferenças sociais se aprofundaram cada vez mais. Sobretudo, para melhor as observarmosmais adiantei/Em relação ao problema da fronteira
as quotas-partes do imposto senhorial não se alteraram, e talvez chegassem mesmo que separa o povo das Luzes do que se esquiva à sua difusão, alguns testemunhos,
a aumentar no período denominado <<reacção
scnhorial>>nas últimas décadas,con- na verdade pouco rigorosos transmitem-nos algumas informações. O critério de
ceito discutido e sujeito a controvérsias que não poderão ser abordadas aqui por razões alfabetização ou, pelo menos, da capacidade dc escrever o próprio nome, permite-
de espaço.Mas, se a Europa Ocidental se mostra recalcitrante em relação aos restos nos já proceder a uma avaliação global e a uma tentativa de dimensionamento do
de um sistemafeudal moribundo, do qual a Inglaterra já se libertou, a Europa Oriental çspaçoJ'
conhece na época da <<scgundaservidão>>um estreitamento dos laços de dependên- p Semelhante critério opõe uma Europa Norte-Ocidental na sua maioria alfabeti-
cia no âmbitodo sistemalatifundiário. , zada,que se estendeaté à Fiança Setentrional, delimitada pela linha que vai de Saint-
' A Revolução Industrial já em marcha nas Ilhas Britânicas e as formas de proto- Malo a Genebra,à Europa Meridional e ao resto do continente,espraiando-sede
.industrialização que se vão manifestando na Europa Ocidental introduzem, do ponto Oeste para Leste... Esta fronteira manteve-se, durante muito tempo, inalterada mas
de vista que mais nos interessa, novidades mais relevantes no campo do que na cidade. encontra-se agora em vias de deslocação pois a alfabetização vai progredindo no
Mas este ingresso num modernismo ainda limitado insere-se na.vida dos homens decurso do século e, por mais ténue que possa ser o indício, quer sempre dizer algo:
tanto em termos de novas dependências, de desestabilização e de crise da antiga sob se não a difusão do Iluminismo (quem ousaria cometer tamanha imprudência?), pelo
dariedade corporativa, como de progresso efectivamente registado. Somos da opinião menos a condição mínima para ter acesso,conquanto de forma marginal, à cultura
de Pierre Chaunu de que, para a esmagadoramaioria dos operários, nas cidades ou escrita, o que não significa, como poderão ser levados a pensar, que o outro mundo
nos campos, não houve ainda revolução.' .seja o da incultura.
úApogeu do instrumento de trabalho -- celebrado nas gravuras da E/zcíc/opédla--, q Também este outro mundo se move: no Medi francês e na Provcnça, quc possui
dc um instrumento aperfeiçoado, numa altura em que as máquinas entram no mundo dc há longa data uma rede de sociabilidade masculina cujo esteio eram as confrarias
industrial têxtil e metalúrgico, o Século das Luzes pertence ainda em grande parte a religiosas de penitentes, as estruturas mudam (M. Agulhon). Regista-se uma demo-
uma civilização de <<estiloantigos, segundo a expressãode Ernest Labrousse. Sem cratização do recrutamento, até porque as elites encontram nas lojas maçónicas um
dúvida, levantar-se-á uma objecção, citando a cena do mundo urbano, de capitais âmbito de sociabilidade mais adequado à sua sensibilidade. De igual modo se nota,
como Londres ou Paris, dos grandes portos de comércio transatlântico. Será talvez pelos comentários, uma evolução intema: trata-sc de uma secularização, de uma evo-
nestes lugares que pode surgir um homem novo. A sua imagem apresenta-se ambí- lução profana, mais do que de uma descristianização?Para falar com franqueza,o
gua aos olhos dos contemporâneose predomina uma visão negativa não só através termo não tem grande importância, subsiste a tendência.\
da crítica rousseauniana:
de Restif dc la Bretonneao Tab/eaude Parasde Louis- Passemosao âmbito religioso, ponto nevrálgico e campo de batalha para os
.SébastienMercier, impõe-se a imagem da cidade de perdição, de devassidão e de homens das Luzes. Será possível afirmar que este século representa uma tentativa
b

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dc destaque em relação às religiões positivas, ou mesmo de uma <<descristianiza Actores e protagonistas
ção>>?E difícil sondar as almas e os corações, tanto mais que faltam os instrumen- ,/
tos estatísticos da sociologia religiosa com que contamos na época contemporânea. pCom base na redefinição restritiva do Homem do iluminismo entendidocomo
Precisamos de agir com astúcia se quisermos sair do âmbito dos testemunhos eli- participante numa nova visão do mundo, o campo de acção do estudo fica substan-
tistas para chegarmos às massas.Foi o que procurei fazer, no que se refere à Provença cialmente reduzido. Em vez da tripartição das ordens, legado do período medieval
do século xvnl, examinando o imenso testemunho fornecido pelas cláusulas espiri- visível nas estruturas oficiais da sociedade, delineia-se uma população binária que
tuais de milhares de testamentos, como, por exemplo, o lugar escolhido para a sepul- opõe elite e massa,agentesactivos ou passivosda recomposição do mundo. A época
tura. Foram efectuadosestudosde cariz semelhantepara Pauis(P. Chaunu),para a clássica criara o ideal de <(honnêtehomme>>:ainda Ihe é feita referência, enquanto
província francesa, para a ltália e para a Península Ibérica. O balanço é significa- se manifesta uma verdadeira continuidade como a que nos é descrita pelo <<Filósofo
tivo no que se refere a resultadosconvergentes,pelo menos em grande parte da inglês», porta-voz do abade Prévost, que não encontrou em França <<senão um con-
França, em menor escala noutros locais. Enquanto a Provença investia maciçamente, junto de pessoasrudesque não falam a mesmalíngua e que se assemelhampela falta
no final do século xvlll, na profusão de gestos de pompa barroca a todos os níveis de gosto no modo-de se vestir e de se mostrar... a ponto de não serem verdadeira-
da escala social, registou-se uma viragem decisiva e genérica, entre 175(] e 1770, mente Franceses,excepção feita ao reduzido número daqueles que estão acima dos
mas por vezes surge anteriormente, por volta de 1730, e ainda antes em Paria, onde outros e que se distinguem do dito povo>>.Todavia, a imagem do <(honnêtehommo>
tem lugar no início do século. A percentagem de cláusulas espirituais é reduzida a mudou no seuconteúdo, muito emborapor vezes haja relutância em falar dele em
metade, sendo a descida mais significativa nos homens do que nas mulheres, nas termos de «boa companhia>>,à margem da elite. Como sabemos, o conceito foi objecto
cidades do que no mundo rural. Nos dois extremos da hierarquia social, os nobres de,debate, também na sua aplicação à sociedade do século xvin. '
e as pessoasde condição humilde são os mais poupados, em especial no campo, o lr'+;(A elite traz de novo a lume as divisões históricas da sociedadeestruturadaem
que afecta ainda a burguesia e as profissões liberais, e também -- poder-se-ia dizer ordens e insere a contraponto divisões de classe, nessa mesma sociedade onde uma
por arrastamento-- o mundo das lojas e dos quiosques.Uma maior amplitude geo nova burguesia ganha força e consistência, assentecomo está num sistema de valo
gráfica permite a relativização dos ensinamentos do modelo francês: em Espanha, res partilhados, cujo cimento é representadopelo espírito do lluminismoyRealidade
em Portugal e na maior parte da ltália, não se registou ainda essa viragem, que só ou ilusão? Esta elite existe mesmo? O retrato do nobre, tal como nos é'apresentado,
se virá a concretizar em meados do,século seguinte; apenas alguns indícios teste- mostrar-se-nos-á,mais adiante, pleno de comportamentos simultaneamentede casta
munhando as primeiras fermentaçõesLEm face do declínio da devoção barroca, pode e de classe, profundamente aneigados, de conhecimento de uma diferença própria,
remos concluir que se passou ao prelúdio de uma descristianização ou, muito sim- mesmo quando harmonizado numa visão comum. E a diversidade de contextos sociais
plesmente, a um retorno ao tribunal da consciência, a uma religião interiorizada, de referência, de um lado ao outro da Europa, parece desafiar a elaboraçãode um
simultaneamente mais sensível e mais racional, como pensavaPhilippe Ariês? modelo comum.'
Evitaremos interromper aqui o discurso sobre aquilo que é talvez ainda mais impor- '%Todavia,ao fazer parte do pequenogrupo daquelesque são os porta-vozesdo
tante, conscientes de havermos captado para além dos debates verbais uma mudança novo discurso, este século destaca-sepelo cosmopolitismo, mudançase acréscimo
fundamental na sensibilidade colectiva.J' ' da circulação de homens e ideias) Tem-se falado muito, e não será agora que vamos
t l Por força de aspectosavulsos e limitativos, os elementos a partir dos quais pio- deixar de o fazer, da contínua agitação de certos homens tanto no campo das letras
ctü'amos delinear o perfil do Homem do Iluminismo, ao nível da massa anónima. /,L" como no das ciências, mas também de administradores ou militares, que ora se colo-
apontam para um balanço contraditório: estabilidade das estruturas profundas, rela- cam ao serviço de um ora de outro na Europa dos príncipes iluminados, para não
tiva rigidez dos contextosexistenciais. Mas, num mundo mais povoado,em que a falar daqueles desregrados,aventureiros de toda a espécie, de que Casanovaconsti-
modernidade vai abrindo caminho através de novos modo.s de produzir, de estar e de tui o exemplo mais famoso, se não mesmo o mais representativo.
se mostra\, reflecte-se uma mobilidade nos comportamentos e nas representações Esta agitação incessante contribui para a idçjg.dLunihaçãa çu]hii=a],facilitada
colectivasJ Este universo é fragmentado (era-o antes?), segundo contrastes como a provavelmente pela hegemonia do francês na <(Europafrancesa>>
do Século das
posição social, a relação cidade-campo, a situação geográfica. Vão-se delineando, no Luzes, se bem que esta proeminência comece a ser posta em causa pela persegui-
âmbito cultural, e bem assim no económicoZe social, alguns pólos de difusão das ção de uma anglomania=queé muito mais do que uma simples moda,ou através
novidades, mas também zonas de penumbra.l\Éuma cidade nova a criar, a unificar da contestação que se começa a delinear no universo germânico. As redesde soda
segundo normas inéditas que se apresentam à iniciativa voluntarista dos novos agen- bilidade que se criam ou reforçam, desde as academias -- para as quais o século xvííi
tes da transformação -- ousar-qe-á falar de <<regeneração>>
durante a revolução -- do é o gra/zd slêc/e ao fenómeno maçónico nascido nas Ilhas Britânicas e que, ao
Homem no espírito das Luzes.l 't passarpela França, teceu uma teia de cumplicidade universal extensiva à Europa
Passando
a uma definiçãorestritiva do Homemdo Iluminismo,é sobreestes Central, vêm facilitar a criação de uma visão comum no âmbito da República das
<<happy
few>>que importa concentrar a nossa atenção, aproveitando a tipologia pro Letras.iA circulação das ideias é favorecida pela multiplicação da correspondên-
posta pelos nossos autores. cia, mundanaou erudita, pela difusão do livro, dos canais da literatura oficial aos
),
16 17
q

da literatura clandestina, das gazetas,revistas que pululam numa Alemanha eru- atenção mais intensa e simultaneamente inquieta que a mantém, geralmente numa
dita, sendoestesos principais esteiosque contribuíram paraa unificação daselites. ' situaçãode dependência,faltando ainda muito tempo para dela se emancipar.
p Tudo modifica, com o passardos anos, os próprios contornosdo grupo, agora Não lamentamos a ausência dos príncipes da época do Iluminismo nesta galeria
de retratos: foi visitada tantas vezes... Certamente, mais do que o novo estatuto do
engrandecido por aqueles que deram o seu contributo. Tradicionalmente, insiste-se
na mobilidade social, talvez mais espectacular do que real, de uma época em que as príncipe (terá mudado mesmo?), convém recordar a imagem nova que ele quer dar
barreiras da condição parecem diminuir. Diante do prestígio ou do mérito, a hierar de si próprio. Relembrando a personagem um pouco posterior de Renuncio Ernesto
quia da estima vê-se abalada, abrem-se as portas a alguns plebeus, quer porque obti- em Á Carruxa de Pízrma, Jean Pomeau, na sua Europa da.çZ,zlzes,vem buscar a
veram nas academias e nas escolas um tributo de ]-econhecimcnto oficial, quer por- Stendhal a expressão de <<umamigo que fala caiu amigos>>,c/íc/zé que muitos exem-
que os franco-atiradores e aventureiros se infiltraram sub-repticiamente (na verdade, plos reforçam, confirmam: Frederico JI que reúne em Sans Soucis a elite filosófica ..l...
com escandalosadesenvoltura),atingindo o primeiro plano da cena,como Mesmer da época -- Voltaire, Maupertuis, La Mettrie ou o Marquês de Argens; Catarina 11,a (-2/-'t
ou Cagliostro. Poderemoslamentar o facto de não termos reservado um lugar espe- Semíramis do Norte, protectora de Diderot; op principais viajantes, preocupados com
cial a estacategoria,caIU um novo papel, o dos homensà margemdo iluminismo, a sua instrução, como José ll ou Gustavo 111.Trata-se de algo mais do que uma sim-
papel que talvez tivesse sido demasiado fácil interpretar. ples aparência: transformado no servidor do bem público e artífice de uma reestru-
Tudo isto aconteceuporque se delineia atrás desta super'fíciede grande clamor, turação profunda do Estado, o príncipe, que se encarna, entre outros, em pel'sana
que enche as crónicas do século e contribui para a retenção da imagem, uma nova gens lão diversas como Frederico ll ou José 11,sente-se investido de uma nova missão
subdivisão dc funções, uma recomposição do espaço social, onde nos cabe destrin- que exerce directamente ou que delega em ministros iluminados -- Tanucci, Pombal
çar qual o quinhão atribuídoà realidadee qual o da ficção ou da ilusão;Num século através dos quais se estabelece a ligação com a opinião esclarecida. São igualmente
em que a pintura nos apresentaa moda do retrato, quc repudia o género majestoso evidentesos limites destanova leitura do Príncipe,que visam fazer dele o Á/zrí-
para ser mais directa, espontânea e fiel à verdade dos seres humanos, uma <<galeria À/aq líave/, para retomar o título da obra de Frederico 11.A célebre frase de Catarina ll
de retratos>>torna-se algo mais do que um mero exercício académico. a Diderot, que contrapõe à facilidade da tarefa do filósofo, o qual trabalha sobre o
Como qualquer empresadeste género, o quadro que apresentamosnão pode dei- papel, as obrigaçõesdo soberanoque trabalha sobre a pele do seu povo, chamaa
xar de provocar pesar ou insatisfação nos seus próprios criadores pois, como não atenção para a realidade. A Rea/po/Irfk dos monarcas instruídos, que desmembram
podia deixar de ser, está incompleto. Folheando o registo das ausências,lamentar a Polónia enquanto estabelecemcontacto com os <<philosophes>>,confere ao seu retrato
se-á a do príncipe, que nas épocas de despotismo iluminado figura no centro do sis- idealizado uma aura de hipocrisia, talvez injusta para alguns destes soberanos.
tema. Recriminar-nos-emospór não termos reservado um ]ugar à parte para o <(fi]ó- O facto que mais pesa sobreo príncipe não será manter-se,num mundo que se
sofo>>?Encontraremos a sua imagem se desdobrarmos o retrato do homem de letras, move, a pedra angular de um sistema social do qual é, ao mesmo tempo, escravo e
do cientista, do artista e, por último, do explorador. Teríamos preferido, no perfil do senhor, caracterizadopelo primado de uma aristocracia nobiliárquica que ocupaonde
burguês, uma reevocação do homem de negócios, onde se afirmam os aspectosde quer que seja uma posição elevada na hierarquia das honras e do poder? Esta nobreza
destaquede uma nova burguesia portadora de modernidade. Quanto àqueles que se encontra-sedomesticadade modo muito diverso se vista numa perspectiva europeia,
inserem à margem, àqueles aventureiros na acepção mais lata do termo que citámos enobrecida pela vida da corte, que brilha em todo o seu esplendor.'Mas a palavra
antes,encontra-los-ermos
um pouco por todo o lado, a propósito de todas,ou quase neste caso a palavra requintada é provavelmente pronunciada por Luís XVI, malo-
todas as figuras, dentro de um sistema para cuja discussão contribuíram. grado monarca iluminado, que declarara no início da Revolução: <<Não me separarem
Isto sucedede tal modo que o quadrose vai compondosemdemasiados
artifí- do meti clero nem da mi/zãanobrezn>, confessandoa solidariedade fundamental que
cios em redor de algumas figuras de vulto: os actores, elementos fundamentais da o Uga ao velho mundo.
sociedadede estilo antigo, o nobre, o soldado, ou recém-chegados à cena social, como ' l Por conseguinte,será,anobreza a maior força de resistência ao espírito das Luzes,
o~homem de negócios.'Seguem-se os porra-vozes, que vivem momentos de glória a encarnação do passado? Trata-se de uma acusação levada avante pela Revolução
enquantoveículo do novo discurso do Iluminismo, ainda que mantenhammuitos laços Francesano âmbito de uma guerra sem quartel contra a ordem aristocrática, que não
de dependência -- em relação ao velho mundo: o homem de letras, o cientista, o artista tolerava nem as meias-medidas nem os juízos moderados. Denunciada pelo seus!!g:.
e, por fim, o explorador, que vai alargandocada vez mais os limites do mundo conhe- pelos seus privilégios usurpados,pela sua decadênciamoral, ! .pobrezatornou-se,
cido. Surgem na empresavoluntarista da transformação da sociedadeos agentesde para toda uma tradição histórica, a encarnação do anui-Iluminismo/ O estudo de Pierre
propagação,os ín/ermedíár/oscu/rurais, sobre os quais recai hoje a atenção:irá o Semavem realçar as raízesdo debate,tal como foi iniciado pelo a15adeGryer e outros,
sacerdote interpretar o seu novo papel? De qualquer forma, entra também eln cena antes mesmo da Revolução. O c//cAé agora confirmado nem todos os clfc/zés são
o funcionário, elemento essencial no quadro das monarquias absolutistas iluminadas falsos foi objecto, nas últimas décadas, de sérias revisões cujas argumentaçõeso
que sonhamracionalizar o Estado.'A mulher ocupa neste sistema geral a posição autor recorda.O debate não é de hoje:"há muito tempo que se evidenciou o paradoxo
ambígua que o século Ihe confere: dá, sem dúvida, um passo em frente, que a trans de uma nobreza erudita, receptiva a todos os movimentos do pensamentomodems.
formará na rainha dos salões frequentados por <<philosophes>>,
sendo objecto de uma Nas bibliotecas, nos salões, nas escolas, esta aristocracia não vira as costas ao espi'

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rito das Luzes. Estudos recentes sobre as academias de província e sobre as socie do general Wolfe nas colinas de Montréal, enquanto a França chora Montcalm. Mas
dadesde intelectuais testemunhama posição ainda importante, preponderantemesmo, os valores guerreiros já não se encontram no centro do sistema iluminista, perten-
que ela ocupa nas estruturas onde a cultura se manifesta.-' cem ao mundo antigo, ao mundo de uma aristocracia que alude ao seu código de
p Esta nobreza foi seguidamenteinterpretada na base do seu poder social. Foi des- honra mas que deixou, em toda uma parte da Europa, de fazer da carreira das armas
crita (G. Taylor, G. Chaussinand-Nogaret)
no seu dinamismo,como agrónomana a sua vocação essencial, ainda que combata com determinação como sucede em
épocado fisiocratismo,manufactureiranos sectoresde pontada metalurgia,mer- trança no fim do a/zcíenrégíme parareforçar os seuspróprios privilégios. E signi-
cantil nas cidades portuárias, especuladora na gestão dos imóveis urbanos: numa pala- ficativo o facto de, no ensaio de J.-P. Bertaud sobre o militar do século XVm, o cen
vra, progressista, idónea, graças ao seu dinamismo e à sua abertura às novas ideias, tro de interesse ter passado do herói para o soldado profissional, para aquele soldado
inserindo-se numa posição mais do que honrosa entre as novas elites em vias de for- de que o exército prussiano dá o exemplo -- imitado de diversas maneiras nos vários
mação. O ponto de referência continua a ser a ge/zr/y inglesa, renovada e integrada países europeus --, que cada vez se toma mais um profissional que dá resposta às exi-
nos processosde produçãode uma economia em plena expansão.A Inglaterra é a gênciasde uma preparaçãointensa, com frequência mercenário, maltratado em todo
excepção que confirma a regra? Em Fiança, na lista de reivindicações colectivas apre- o lado, socialmente desprezado. E um modela que não desaparecefacilmente e vamos
sentadas no discurso global dos ca/zíers de do/éalzces de 1789, as da ordem aristo- reencontra-lo nas primeiras décadasdo século seguinte, na imagem trágica de Woyzeck,
crática vinham em primeiro lugar no que se refere à reivindicação das liberdades, de Büchner. Mas sabemos também que a Revolução Francesa, ao criar o exército dos
enquanto em último lugar figuram as relativas à abolição do regime senhorial... não voluntários nacionais, o aniquilou, substituindo-o por um mito, o do soldado-cida-
é curioso?
+ dão que combate pela liberdade.
Com um fundo contraditório que dependeda sua própria posição, o nobre da ,# 'E enorme a agitação no topo da aristocracia cosmopolita das Luzes, que um modo
época das Luzes encontrou-se perante várias opções: ou uma batalha pela defesa dos comum de pensar e de se comportar parecia tornar unida. Representativo do grupo
valores antigos e dos direitos de nascimento, travada com base na argumentação mui- de nobres de elevada estirpe que passaramde uma função a outra, integrando-se por
tas vezes elaborada no final do século precedente (pense-se na posteridade dc vezesem padrõesdiversos,o príncipe de Longe,que o Jozzr/za/
está semprea redes-
Boulainvilliers. . .), geradora daquelas componentes da reacção nobiliárquica que recor- cobrir, seráagoraum generalou um diplomata,um homeminteligenteou um fre-
dámos, ou então uma integração, que não se livra de equívocos e mal-entendidos, quentador mundano das cortes? E simultaneamente tudo isso. Gaba-se de possuir
nas novas elites.
«seis ou sete pátrias: Império, Flandres, Fiança, Austria, Polónia,'Rússia e quase tam-
' Muitos não se limitam a este compromisso burguês; a degradação do nobre reveste bém a Hungria>>;é fiel ao imperador, é recebido pela czarina. Gaba-se igualmente
uma forma explosiva em alguns porta-vozes. Pense-se em certos provençais do final de pertencer ao último grupo de <<honnêtesgens>>:será, na verdade, um homem do
do século, como jade, Mirabeau, Boyer d'Argens, Antonelle ou Barras, os quais Iluminismo, um iluminado como o consideram os <<philosophes>>?
Claro que não.
(cada um do seu modo) repudiam violentamente a casta de origem, ou melhor, a pró- . Prefere as cortesãs aos virtuosos.
pria ordem do mundo que lhes foi conferida pelo berço.O.êyiltamento dos nobres, « Entre os principais protagonistas, seria de esperar o burguês, por oposição a estes
#
que em Espanharevestea forma de <(majismo>>, é a expressãodé uma pãiõi( gia de representantesdo velho mundo, mas este esconde-se.O burguês é provavelmente
grupo que testemunhaeste ma]-estar co]ectivo. Do ])on Giovanni de Moliêre ao uma invenção sucessiva, uma criatura imaginária fadada no século xíx? Jaurês esta-
de Mozart, sem esquecer Tirso de Molha, a imagem emblemática do grande senhor ria talvez a sonharquando opunhaao fingimento comoventede Michelet, centrado
libertino mudou. Haverá algo mais revelador do que a cena das máscarasem Don na miséria dos camponeses, o glorioso século xviii com a ascensão e a afirmação da
Giovanni? E na festa aristocrática, onde se afirma o apetite pelo desfrute de um pri- burguesia?Dá vontade de rir esta burguesia que não pára de subir, desde as comu-
vilégio subtraído pela sua condição às obrigações comuns, que Don Giovanni ofusca nas medievais ao Renascimento... Sonimos, mas depois contestamos: a dificuldade
os seusconvidados, mas a troca termina com tons quase revolucionários de V/va a de caracterizaçãodo burguês segundo os moldes em que Marx o havia concebido,
/lberdade. Sob a máscara,que é também aquela da festa veneziana, o nobre vê-se foi censuradanas últimas décadasaos historiadores da economia e da sociedade,
obrigado a pronunciar palavras que trazem consigo os germes da sua morte. ' como Emest Labrousse, que, na tradição de Jaurês, haviam realçado a ascensãosecular
Em semelhantecontexto, percebe-sepor que motivo o retrato inteiro do soldado, do lucro burguês (proporcional ao rendimento). A contestação desta tese, como sucede
que parecia inserir-se de um modo perfeitamente natural na continuidade dos estu com alguns autores (Taylor, Chaussinand-Nogaret), dá-se mediante uma revaloriza
dos anteriores -- do homem medieval ao da época barroca --, é confrontado com o ção do papel da aristocracia e põe em questão a nova personagem que se queria opor
ideal do Iluminismo. A primeira vista, poderemos ficar surpreendidos,visto que esse ao nobre' É uma burguesia re/zfiêre, de estilo antigo, o grupo de burgueses <auto-
retrato encontra a sua expressão no século xvm em Hlguras simbólicas como Frederico ll, definidos>>que se encontram nas grandes e nas pequenas cidades, copiados do modelo
guerreiro e <(philosophe>>,
e talvez ainda mais no marechal.da Saxónia, cujo túmulo de ócio nobiliário, que vivem dos rendimentos. fundiários e anseiam penetrar no cír-
em Estrasburgoapresentauma das expressõesmais nobres, segundoo espírito do culo dos privilegiados através do cargo nobilitante de conselheiro-secretário do rei.
século,do ingressodo herói na imortalidade que Ihe é devida pelos seusméritos e Denuncia-se a traição destes grandes comerciantes ou homens de negócios que, em
pela sua glória. E a Inglaterra curva-se respeitosamentediante da evocação da morte França, só sonham comprar para os filhos um cargo de conselheiro do Parlamento.

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Se observarmos a classe média dos advogados, dos procuradores, dos profissionais são que se encontra em plena expansão, as funções vão-se definindo e Roger Chartier
livres, poderemos afirmar que se trata de uma burguesia na acepção moderna do analisa, de forma abalizada, os princípios que presidiram a esta redistribuição das
termo? Uns dirão que o burguês não existe; é uma burguesia «mista>>,<<detransi- funções, tal como surgetn nos dicionários e textos críticos. Todavia, todos estes acto-
ção>>,responderãooutros (R. Robin).P res sociais têm em comum o facto de beneficiarem da ascensão a intelectuais do
, O burguês existe, mas ainda não se revelou: é este o paradoxo da sua situação. J' Século das Luzes. Não se trata propriamente de uma inovação, e podemos até admi-
Com base em fontes literárias, Jean Ehrard mostrou de que forma o burguês, homem tir o contributo de uma evolução contínua desde o humanismo ao classicismo. Mas
útil, constrói o modelo do novo herói positivo e das virtudes domésticas: é aquele a evolução dos conhecimentos,bem como a do mundo intelectual, confere a estes
que reflecte o aparecimento do <(dramaburguês>>em Sedaine e alguns outros. Monsieur homens um magistério de opinião própria, numa altura em que o discurso religioso,
Vanderk, o herói de PAI/osop/zesalas/e savoír, é sem dúvida um nobre antigo trans- há muito de cariz marcadamentehegemónico, começa a perder importância e toma
formado em comerciante, mas nem por isso representa o ideal de uma reconversão uma atitude defensiva, c também em que a liberalização limitada mas real contribui,
desejada, não só nas suas actividades mas também na sua cultura.
por sua vez, para a liberdade de expressãonas monarquias absolutas.
Nem sempre a afirmação de um modelo novo é apresentada pelos protagonistas Estão definidos os contornos e deixam pouca margem: o patrocínio real, tão fun-
com o próprio exemplo; os estudos de Daniel Rocha sobre as academias de província damental no século anterior durante a criação das estruturas, mantém-se em vigor na
vieram demonstrar quão discreta e modesta foi a participação dos comerciantes e empre maior parte da Europa governada pelos príncipes esclarecidos, sc bem quc revista
vários nestas estruturas. Encontra-se reforçada, de forma significativa, nas lojas maçó- uma nova característica -- poderemos dizer que mais flexível? -- no momento em que
nicas, onde os comerciantes de Bordéus ou Marselba, mas também os burgueses talen o partido dos <(philosophes>>parece autonomizar-se e opor'se à opinião corrente,
tesos, têm com frequência uma posição de destaque.Na dicotomia que se vai delineando reclamandoo direito a uma crítica que só é tolerada se não atacar frontalmente o
entre os representantesdo mundo antigo e do novo, a qual deles pertence a burguesia? poder instituído.
Possivelmente,a ambiguidade não será inferior à que encontramosem relação à nobreza: Sob a égide directa ou indirecta do príncipe, este mundo conserva a sua hierar-
inseridos no sistema de produção antigo, os representantes do capitalismo comercial,
quia e reflecte as estruturasda sociedadeexistente, muito embora se verifiquem gran-
mercadores, banqueiros e homens de negócios, não fazem parte integrante dele. Seria des diferenças -- o modelo inglês, o modelo francês, e também o modelo alemão, que
talvez artificial opor-lhes -- dado que as fronteiras não estão bem definidas o grupo não se fez tardar, a academiacontinua a ser o ponto de referência que associaum
dos empresários e artesãos como uma mudança virtual, que propõe uma alternativa ao grupo de personagensde vulto que integram a sua comissão de honra, como dize-
lucro industrial e à manufactura,cuja imagem irá predominar no século xix. +
mos hoje, o grupo ainda restrito dos membros efectivos, e não apenasos membros
0 Estamosde igual modo gratosa Louis Bergeronpor ter feito convergir as aten- associadose os correspondentes.Esta situação poderia redundar numa esclerose,
ções sobre o grupo dos comerciantes mas também dos tais empresários. O estudioso como sucede na verdade algumas vezes, e ocorre-nos aquela frase cruel de Voltaire
apresenta-nos,através das etapas da sua ascensão social, herdeiros de famílias de sobre a Academia de Marselha, <<uma excelente rapariga que nunca fez mal a ninguém>>
negociantes ou de artesãosque conheceram o sucesso pessoal após um início modesto. De salientar as restrições no seio destas condições, sob a pressão das exigências
Vai-se delineando uma outra cultura que, na verdade, não tem nada a ver com os colectivas e com o dinamismo do conhecimento. O fenómeno académicodifunde-se
estudos clássicos, mas sim com a aprendizagem, as viagens de formação, a curiosi-
por toda a Europa: em França, tal como em Itália, as academias,mas também as
dade autodidacta de alguns, que anuncia o aparecimento de novas dinastias e que se sociedadescientíficas, constituem uma rede estreita e activa. Contribuem com a prá-
mantém por intermédio de um paternalismo que visa sobretudo o contacto com os tica dos concursos e das correspondências, para a elaboração do mercado comum dos
assalariados ou o mundo dos pequenos produtores. Franceses, Alemães ou Suíços, conhecimentos c do intercâmbio das ideias.
estes exemplos iriam encontrar em Inglaterra ecos ainda mais significativos. Poderá A personagemdo letrado, bem como a do estudioso, modifica-se, sobretudo na
contestar-se nestes representantes de um mundo novo cm gestação a qualidade de sua sociologia. Muito embora não perca a sua importância, a função dos eclesiásti-
homens do Iluminismo? Mostram-nos as componentes características: abertura para cos tende, tal como a dos nobres, a diminuir. Os plebeus não são propriamente, no
o exterior, curiosidade, pragmatismo, vontade de utilidade social, se bem que alguns início do século, pessoas inactivas. Poucos são os que vivem da sua condição, do seu
elementos de conservadorismo façam ainda deles os representantesdiscretos do mundo património, de um ofício ou de uma pensão.A personagemdo autor constitui ainda
em mudança. Encarregam outros de serem seus porta-vozes. ' uma novidade no final do século, enquanto a do amador abrange tudo: diletante, culto,
vai acumulandocuriosidades no seu laboratório. Mesmo que seja filho do seu século,
procura a todo o custo melhorar a qualidade da sua competência, sobretudo ao nível
Os porta-vozes das actividades científicas, que o progressodo conhecimento exige. Em vão Madame
Du Chatelet, numa gravura da época, estende os óculos a Voltaire a fim de que possa
Estes homens encontram-se na primeira fila, muito embora possamos ser acusa- ler Newton, mas aquele nunca será um físico. O percurso do estudioso -- por exem-
dos de simplificação arbitrária quando os associamos às figuras do homem de letras, plo, o de Lagrange, descrito no ensaio de V. Ferrone -- vai-se tornando cada vcz mais
do cientista ou do artista. Mas, em face de uma área do conhecimento e da expres- rigoroso. Laboratórios, observatórios, locais de experimentação que se multiplicam,
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problemas da comunicação e da difusão das ideias, a estes actores às vezes modes-
que reflectem os novos passosem frente, mesmo que, durante muito tempo, no decurso
do século filosófico, seja bom demonstrar <<curiosidadeem relação a diversos campos>>. tos mas, mesmoassim, essenciaisdevido ao papel que desempenham.A política
voluntarista dos príncipes iluminados, por um lado, e a propagaçãoespontâneadas
Aquilo que é válido para o topo, para o grupo restrito dos intelectuais mais famo-
novas ideias, por outro, não podem ser analisadas sem recorrer a estes intermediá-
sos, por maioria de razão será também válido para a opinião pública esclarecida, cuja
extensão é provavelmente uma das características mais notórias do século. Paris pos rios, a partir dos quais se coloca a questãoda difusão popular das Luzes. Perfila-se
o teatro com mil personagensonde surgemo magistrado,o notário, o mestre-escola
sui os seus salões, espaços femininos unicamente na aparência porque presididos por
senhorasnobres: Madame Geoffrin, Madame Du Deffand, Mademoiselle de e, porque não também, o taberneiro..
Limitemo-nos aos dois exemplos propostos. O funcionário é uma personagem
Lespinasse..., mas na verdade frequentados por homens, onde tem lugar o inter-
câmbio de ideias num clima de liberdade que, todavia, não exclui a observância de nova? O termo propriamente dito apareceuem França, recorda-nos CarãoCapra, no
um certo ritual. Mas nas reuniões masculinas, como, por exemplo, as que têm lugar fim do a/zcien re'game,parecendo estar associado às novas necessidades do Estado
moderno, desejosode uma gestão mais racional e mais orientada. Mas, sobretudo a
na casa do Barão d'Holbach, onde se reúne o <<conventículode d'Holbach>>,erguem-se
as barricadas. Não passade um elemento o mais elitista de toda aquela rede de partir do início da era modema, as monarquias tradicionais haviam delegado os seus
novos contactos, demasiado notória para se deter, que assenta na difusão do livro, poderes em matéria de administração, finanças e justiça, de acordo com diversas
modalidades. Em França, o sistema de penalidade dos ofícios dera origem ao corpo
da imprensa iluminada, das revistas, daquelas relações mais informais mas múltiplas
dos oficiais régios, detentoresde um cargo transmissível,que podia dar origem à
que se desenvolvem através das viagens e da correspondência.
atribuição de um título nobiliárquico. Mas o mecanismo não era exclusivo. A estou
Muito haveria que explicar nesta panorâmica com vista à valorização dos con-
trastes locais, e que viriam realçar a importância das sociedadescientíficas e de inte- lura de cobrança dos impostos dispunha de pessoal próprio e, em particular, ao ser-
lectuais, em Inglaterra como em ltália, fruto de diversos legados, como, por exemplo, viço directo do rei, o sistema da <<comissão>>
revogável fora-se desenvolvendoaté
aos finais do século anterior. Noutros países a situação era diferente: em Inglaterra,
o da universidade durante o império, o das lojas maçónicas nas propriedades dos
Habsburgos,mas não é esseo nosso propósito. No entanto, pelo menos,convém o <<civilservant>>apareceao serviço da Companhia das Índias; na Rússia, para citar
recordar sumariamenteos frutos destaactividade multiforme: a preocupaçãopeda- um exemplo, vigorava o <'cin>>, um sistema de graus e dignidades civis e militares
gógica, inseparável da vontade de conhecer, a preocupaçãoutilitarista de um com- ao serviço do Estado, criado por Pedra, o Grande, como estrutura rígida e hierar-
portamento que, repudiando toda e qualquer metafísica, procura manter-se em estreito quizada. O que interessa realçar em bases tão diferenciadas é a evolução genérica
contacto com as realidades de um mundo por descobrir, a fim de o transformar. que envolveu toda a Europa: quantitativamente, um aumento dos efectivos, que se
E nestaperspectivaque se insereo novo papel do exploradorno início do século, verifica em todo o lado, mesmo que o cálculo enferme de imprecisão, e que corres
ainda semelhanteao observador que integra o corpo de exploradores, que no fim se ponde às novas necessidadesdo Estado; qualitativamente, a expansãodos serviços
ao nível central da administração estatal, a multiplicação do número de empregados,
transforma no batedor da civilização, no agente de uma curiosidade desinteressada
que, não obstante,contribui para o domínio de um mundo que revela os seuspró a especialização das tarefas. A França mune-se, por exemplo, através do <«Corpodes
prios segredos.Voltamos a encontrar os audazesdescobridoresa que se referia ponta et des chaussées>>
e com os inspectoresfabris, de técnicos de incontestável
Fontenelle, e que haviam <<apanhado a Natureza em flagrante>>. competência. Os Estados alemães, grandes e pequenos, dão vida a uma burocracia
Robespierre,no seu relatório de 18 Floreal do ano 11,fez um juízo bastantesevero, implantada de forma metódica. E neste novo viveiro que as Luzes irão encontrar par-
ceiros bastante motivados, detentores de um espírito não só de racionalização e de
mas não isolado, dos <<philosopheP> do Iluminismo, evocados na pessoados enciclope-
distas, que foi, aliás, partilhado por Marat. Evoca ali estes paladinos da Liberdade, assí- controlo, mas igualmente de inovação ao serviço da monarquia e do bem público.
duos frequentadoresdas antecâmarasdos príncipes, criados do ande/z r(fgfme, que Uma figura como Roland de la Platiêre, o futuro ministro girondino que, durante
o ancíen rég/me, seguiu a carreira de inspector fabril, constitui excelente exemplo.
enquanto servem vão minando. Este juízo retrospectivo será mais bem compreendido à
luz das circunstâncias em que foi formulado. Recorda a fábula de La Fontaine O Cão Neste percurso,a Revolução irá representarem Fiança uma viragem decisiva,tra-
e o Z bo: {(pelaestradavai o pescoçopeludo do cão.. .)>.Mas os porta-vozesdo Iluminismo, zendo uma inovação com a nomeação de responsáveis eleitos pelos seus concidadãos
e, simultaneamente, através de uma burocracia nova que o regime imperial fará desa-
na medida em que se inserem no sistema, a ponto de se tomarem agentesbem conho
lidos, não são, na verdade,os cãesde guarda.Mais tarde virá o tempo dos lobos. brochar. Mas talvez seja arriscado atribuir ao Iluminismo proezasque se limitou a
preparar e que se irão concretizar no século seguinte com a colaboração daqueles
burocratasdescritos por Balzac, Gogol... e tantos outros.'0 tipo social vai-se deli-
Os intermediários culturais neando, mesmo que não tenha assumido ainda as suasconotações definitivas: o nepo-
tismo, que chega ao espírito dinástico quer nos cargos elevados, quer nos modestos,
e o absentismosão testemunhode um espírito de corpo que pode ser considerado
Circunscrevendoo tema geral dos intermediários culturais aos dois exemplos
tanto em termos de arcaísmo como de antecipação. A meritocracia não venceu ainda
representativos - o funcionário e o sacerdote não ternos a pretensão de esgotar toda
a sua riqueza. Não tardaremos a voltar, dado o seu interesse sempre renovado, aos a partida.

24 25
Talvez se tenham registado alguns abusos no recrutamento, ao serviço do Estado cultura e também à palavra. A misoginia muitas vezes brutal de Jean-JacquesRousseau
das Luzes, dos batalhõesnegros do clero paroquial: a Igreja pós-tridentinaé, por si desapareceface à imagem da mulher forte, a Julie de couve//e Hé/o/se.Mas são só
só, uma potência que não se bate por estas coisas. O universo clerical do século xvllt pequenasetapasde um longo caminho que falta ainda percorrer. A Revolução Francesa,
é um dos mais homogéneose, ao mesmo tempo, um dos mais contrastantes: Dominique que conferirá os direitos civis às mulher-es,irá recusar-lheso acessoaos direitos
Juba recorda, numa análise precisa, os diferentes estatutos com que se constituiu na CÍVICos
Europa e a multiplicidade de estados sociais que alcançou. Todavia, a reforma pós- O Século das Luzes surge-nosaqui muito limitado, tão cheio daquilo que pode-
tridentina parece concretizar neste século uma parte dos objectivos que se propu- mos ainda chamar as suas contradições ou as suas antecipações.
sera. Em França, existiam poucas irregularidades nos costumes e de igual modo no
serviço divino, tendo-se conseguido atingir um nível de formação doutrinária, se não
espiritual, pelo menosdigno. Os seminários,ao invés de apresentaremuma densi- Quando tudo se ofusca
dade uniforme, multiplicaram-se e atingiram o scu objectivo. Poderíamosafirmar que
a formação dispensada no seu seio prepara os sacerdotes para a entrada num século 'Apresentámos uma imagem simplista do Homem do Iluminismo, como se não se
em movimento, constitui o objectivo da Contra-Reforma, endurecido pela chama da tivessem registado mudançasnas condições materiais da vida dos homens, na sua
luta antijansenista que ainda constitui o scu ponto central. Mas o sacerdote francês mentalidade e nas suas paixões; como se as instituições das várias monarquias ape-
do século xvlll evolui com os tempos: a imagem conhecida de todos do <<bompas sar de também iluminadas e da sociedade estruturada segundo as ordens pudessem
tor>>,próximo das suasovelhas, que as ampara na desgraça,que desfruta com maior sair intactas do gigantesco apelo a uma mudança do mundo através do Homem, como
frequência do que se possa pensar de uma modesta riqueza, é bastante realista, con- descrevemos nesta introdução. Verificamos em quase todos os capítulos que se vão
forme nos é dada a conhecer,a propósito do irmão de Restif de La Bretonne, em seguir que há uma altura em que o autor substitui a descrição pela consciencializa-
Vida de 4/eu Paí. Nem todos correspondem ao ideal do Vigário de Sabóia, melhor ção das tensões e do movimento.
dizendo, são poucos os que, no seu presbitério, meditam nas ideias sulfúreas que, . O edifício range no final do século. Por detrás das máscarasda festa aristocrática
desdeo início do século,o pároco Meslier confiara no seucélebre testamento,naquela transpareceo rosto alterado da velha nobreza. Também as instituições mais mode-
profissão de fé de ateísmo divulgada por Voltaire a título póstumo. Possuem geral- radas não levam a sua tarefa até ao fim; as academias são contestadas, apresentando
mente livros religiosos, mas por vezes com abertura para outra cultura. Por isso, não -se como o refúgio de uma ordem que se tornou indesejada.
devemos transforma-los em agentes propagadores do Iluminismo, questão que pode Surge uma nova geração na República das Letras, bem como no mundo das ciên-
ria ser abordada no que se refere aos pastores da Alemanha luterana, directamente cias e da criação artística, que se esforça por abrir uma passagem neste mundo. Chega
dependentes do Estado. Mas uma parte considerável destes eclesiásticos encontra-se o tempo dos <(Rousseaudos riachos>>,segundo a expressão adoptada por Robert
já preparadapara o papel de professores de moral e de civismo que a Revolução, na Darnton, de uma plebe de autores que contestam o é's/ab/fs/zme/z/
satisfeito. Através
sua ambição, lhes quererá confiar um dia. Este quadro ir-se-á, sem dúvida, esfumando da literatura nascida sob a capa da contestação política, através da pornografia, estes
no interior da própria França, introduzindo-lhe as diferenças entre cidade e campo, autores rompem os compromissos estabelecidos.No mundo científico, é posto em
entre uma região e outra. Há um forte contraste entre as zonas de relações tranqui- causa o fio das descobertas concatenadas, devido à intromissão de novos sábios -- ver-
las entre sacerdotes e fiéis, onde se insere já a queda das vocações, como na bacia dadeiros ou falsos: Cagliostro, Mesmer... Marat? --, que suscitam de novo a discus-
parisiense, e aquelas -- no Ocidente que testemunham uma simbiose perfeita, uma são do universo ordenado do newtonianismo, vencedor recente das batalhas do século.
aculturaçãoreal mediantea vitalidade do seu clero. O que sucederiase arriscássc- Seria o mundo menos racional do que se supunha? '
mos falar da diferente fisionomia da Itália, de Norte a Sul, ou então do aparente O tempo das refutações chega a todas as frentes de uma sensibilidade despertada
monolitismo do clero ibérico? Como afirma Jean Starobinski, <<Arazão, ciente dos seus poderes, segura das suas
Na sequência destas sondagens na sociedade das Luzes, deixámos de fora as prerrogativas, acolhe as forças do sentimento e da paixão que Ihe exigem um suple
mulheres. Esta exclusão não premeditada não é, por isso, menos significativa. Onde mento de energia>>.Mas esta viragem, de que o rousseaunianismode fim do século
colocar esta <<metadcmais beln> da humanidade, como se dirá durante a Revolução? é expressão, não está isenta de riscos: abrindo esta porta, as forças da sombra e do
Em todo o lado, em nenhum? De qualquer forma, não em todo o lado: excluídas das sonho vêem-se confrontadas.
instâncias do poder, participantes aos níveis mais modestos da produção, elas estão E bastante revelador o facto de o contributo dedicado ao artista das Luzes se abrir
bem longe de haver vencido a maldição antiga. A mulher tentadora e pecadora,dizia sobre Filssli e se fechar sobre o universo de Goya, passando, em abono da verdade,
o antigo discurso religioso; <<totamulher in utero>>,sentenciará o médico do Iluminismo. por David. De Füssli, contemplaram os contemporâneosO /acabo, evocação das for-
Tudo isto será afirmado com maior elegância, até mesmo de forma lisonjeira, nos ças da sombra e da noite. O Goya dos Caprlc/zos e depois dos E)esai/res da Glzerra
elogios das qualidades femininas e maternais, em que o século foi pródigo. Poder-se-á revelou-lhes o universo dos fantasmase da crueldade. Mas são, na verdade, artistas
notar um progresso sensível? Houve quem dissesse ter visto no século xvm o <<século do Iluminismo, e Goya explica o seu projecto pedagógico, a acção do exorcismo a
da mulher>>,animadora dos salões, que conquista nas classes elevadas o direito à que se entrega. As trevas, cujo aspecto a época iluminista quisera negar ou destruir,

26 27
rodeiam o Homem, fazem parte da sua própria natureza. jade, no seu teatro da cruel-
dade,revela ao ser humano do Iluminismo outro homem no qual se reconhece.Numa
épocaem que a poesia redescobreos cemitérios, em que o romancenegro prove-
niente de Inglaterra cncontra um pouco por toda a parte o seu público, a morte, que
não se ignorava mas que sejulgava dominar, faz a sua reaparição.
A apoteosefinal da F'/au/a4/agirá, em que os raios do Sol inundam o Universo,
é a expressão derradeira mas ilusória do sonho do Iluminismo. Não tardará que Goethe,
através da voz de Mefistófeles, disserte sobre a positividade da sombra sem a qual
as Luzes não poderiam existir. A Revolução Francesa,misto de violência e de liber
ração prometeica, confronta o homem com as exigências de uma liberdade que se
conquista. Uma nova humanidade que anda à procura de si mesma, mais consciente, CAPITULOI
mas também mais inquieta.

pichel Vovette
ONOBRE
por PierreSerra

28
Mas uma coisa me surpreendeu: a ordem na
desordem.
ABADE COYER,
Voyagesd'ltatie et de Hottaltde

Jacques, o f;'aía/is/cz:<< . . . Nem sempre um para


doxo é uma falsidade.>>
DENISDIDEROT.
Jacqtles te Fatatiste

O comentário do abade Coyer presta-se a uma interpretação dupla: ou bem que


existe uma desordemorganizada de modo racional, ou então uma ordem que perdeu
toda a sua organicidadelógica. Aplicada à nobreza-- e o abadeCoyer dedicou-lhe
uma parte da sua obra esta observação adquire um outro relevo. Indicaria, de modo
subtil e sugestivo, a diversidade extrema, quiçá a confusão encontrada no seio da
SegundaOrdem, ou talvez uma unidade real no âmbito de uma heterogeneidade social
não menosreal. Depende.'A primeira vista, assim se apresentaa nobrezana época
do Iluminismo,rica ou pobre,enaltecidaou menosprezada,
conservadora
ou escla
regida, nova ou antiga.'Contudo, Jacques,o Para/ísra, grande viajante e observador
dos seus contemporâneos, não hesita em confidenciar ao próprio mestre: <<Umpara-
doxo não é uma falsidade.>>
Impõe-se, desde já, esclarecer os termos do paradoxo e analisar bem a personagem
do nobre,paraque melhor a possamosver sob a suamáscarade Arlequim. O método /
do retrato implica a representação de alguém correctamente identificado, nitidamente m( fad
definido. Ora, coloca-se nesta investigação um problema de natureza semântica, no JO i;
sentido de a profusão de termos e sinónimos de <<nobre>>
acabar por obscurecer aquele
que é indistintamente gentil-homem, bem-nascido,cavaleiro, aristocrata, quando não
pertence, por extensão, à elite. Todas estas qualificações remetem, sem sombra de
dúvida, para a realidade nobiliárquica. Mas cada uma, tomada na sua acepção,evi-
dencia diferentes cambiantesno retrato do nobre e convém que as usemoscom rigor.
Semelhante confusão de vocábulos suscita uma outra dificuldade: traçar o retrato 7lüí,'?/
do nobre do século xvnl em diante.
Com efeito, a história das relações entre a nobreza e o movimento intelectual do
Iluminismo foi sendo, com frequência, gradualmenteescrita através do prisma defor-
mado dos acontecimentos revolucionários iniciados no ano de 1789. Começam já,

31
nesta fase conclusiva do século, a entrever-se os primeiros contornos do nobre que de hereditariedade>>:.Trata-se de uma fachada teórica, remetida na prática, de acordo
nos interessam sobremaneira.' Para os contemporâneos dos finais do século xvlll, a com os países, para uma SegundaOrdem em cujo seio se acentuam bastanteas
queda do a/zc/e/zrégimé' foi provocada pela decadência a que a ordem chegara. hierarquias e as proeminências. , 3.a
í'\( e{'
Esta concepçãodo nobre decadentefoi, de resto, compartilhada tanto pelos revo- Por exemplo, em França, os duques e os pares aparentados com as famílias mais o.. .}

lucionários como pelos partidários da Restauração, quando pensaramnuma nobreza antigas ocupam os cargos de maior prestígio e participam na vida da corte. Seguem-se
regeneradae fortalecida através da provação. São idênticas as perspectivas no iní- então as grandes famílias togadas, as estirpes dos ministros e dos secretários de Estado.
cio do século XX. H. Carré e P. de Vayssiêres traçaram, respectivamente,o retrato Mais abaixo, três grupos paralelos primam pela originalidade: a nobreza de toga, que !
de um nobre ou visto na sua decadência moral, ou então na miséria assumida con- se dedica às questõesjudiciais, a nobreza militar e a nobreza de origem financeira. '
dignamente, sendo ambos unânimes na transmissão de uma imagem negativa do Na base, os fidalgos rurais que, <<semaparecerem nas cidades, residem continuamente
grupo nas suas terras, adoram a vida do campo e se refugiam das reuniões mundanas. Apesar R
Mais tarde, nos anos 30, Lucien Febvre insistiu numa personagem em divergên dos seus rendimentos limitados, podem viver desafogadamente no campo e desfrutam
cia com a própria época,lutando pela salvaguardados seuspróprios direitos ances- de uma consideração que não conseguiriam encontrar em mais lado nenhum>>3.
Trata-se
trais.' Preso a uma lógica de classe, o nobre recusava os contributos do movimento de uma primeira classificação, pois convém não esquecerque <6Q.çpadentre.de cada
ideológico iluminista e reivindicava privilégios adormecidos e contando já com várias grupo uma hierarquia interna segundo a antiguidade e a fama>>'.'Dequalquer forma, u'
centenas de anos.' .f nõ'decürsã do'séciülo XVlíl;'üm'ieréeiró factor de valorização, a riqueza;'coinéçzí'ã., . t
Até então, os retratos não nos apresentavam uma personagemà primeira vista adquirir uma importância significativa nesta sábia estratificação. Semelhante afirma
simpática, nem tão-pouco nos davam a ideia de um grupo que tivesse encontrado o ção é válida para toda a Europa, tanto na Espanha como na Polónia.
seu lugar na elite do Iluminismo, mas chegaram-nosdo outro lado do Atlântico algu- Em Espanha, existiam, em 1780, 119 Grandes de Espanta, 553 titulares de Castelã
mas perspectivascom vista a uma abordagemdiferente. Em finais dos anos 50, os e mais de 500000 fidalgos subdivididos em cavaleiros (capa//eroi) e nobres por
estudosde Robert Forster conseguiram reabilitar parcialmente a função do nobre na decreto (/lida/gos de caíra), nomeados pelo rei (de previ/egío), nobres de 500 soldos
sociedadedo arzcíenréígfme.Foram diversos os historiadores que prosseguiram em que haviam servido os antigos reis de Castelã <<dedevangar quinientos sueldos>>,
tal direcção, chegandopor vezesa descortinarnestaaristocraciaa vanguardaescla- nobres de goteira (de goíeras), cujos privilégios apenas são reconhecidos no âmbito
recida, tolerante e filantrópica do Século das Luzes. da própria aldeia, e, por último, os nobres de braguilha rde bragueraJ,ou seja, os
Dá-se uma viragem completa na perspectiva. . . <<Porconseguinte, tudo corria bem pais que tiveram sete filhos varões todos de seguida, sem a interrupção de uma filha
no melhor dos mundos. Mas como explicar, então, a grande revolta da nobreza con- pelo meio.s Aqui, independentemente
das subtilezasdas distinçõesjurídicas, são a
tra a Revolução na décadade 1790; e vice-versa,o ódio tão forte dos revoluciona riqueza e sobretudo a renda de bens de raiz que desempenhamum papel decisivo na
rios pelos cl-devanfs?>>',pergunta-se Emmanuel Le Roy Ladurie. Na verdade, afi- classificação.
gura-sepouco plausível uma descrição lacónica e mesmo objectiva do nobre no meio Idêntica consideração se pode fazer a respeito da nobreza polaca, com a sua ans
de um debate político que não escapaa nenhum historiador. Importa, talvez, reco- tocracia poderosa, com estatuto jurídico igual ao da <<nobrezapopular>>,muito pró-
nhecer que ele é uma personagem-chave para que possamos captar o significado do xima das massas camponesasó, mas, na realidade, bem distanciada graças à própria
Iluminismo em toda a sua capacidadede inovação teórica, e também nos seus aspec- riqueza, às propriedades,ao modo de vida. ..
tos conservadores, nas suas ambiguidades, nas suas esperanças, nos seus bloqueios, , Por conseguinte,o nobre evolui no seio de um grupo legítimo, hierarquizadoA
no seu alcance, nos seus limites. segundo dois princípios concretos: a antiguidade, que é avaliada com base em alguns
Por isso, para se analisar um nobre da época iluminista, é necessárioestabelecer níveis simbolicamenteassociados,como a nobrezamais antiga, a alta nobreza,atri-
a relação dialéctica que um grupo no topo da pirâmide social conseguiu manter com buto dos fidalgos com quatro graus de nobreza, e depois, a capacidade de manter a '''
um pensamentomoderno e sedutor nas suasabstracções,e todavia arriscadoe, por sua própria condição devido à riqueza. Esta consciencialização da identidade nobi-
fim, perigoso na sua aplicação prática. liárquica e em que distinguimos uma primeira influência de um espírito novo, ávido
P....,
n+c bO nobre desfruta de um sólido estatuto jurídico, que se manifesta através de pode- de conhecimentos e de um raciocínio lógico que logo se impôs no século faz-se
res intangíveis. Arreigado à história que Ihe confere arrogância (a nobí/Iras), detém
na sociedade uma função de prestígio, de cunho militar, associada aos seus valores J. P. Labatut: l,ei r ob/essese rropeén/zesde Ja.Êiz dií xy' síêcle, PIJF, Paria, 1978, p. 7
morais (a yir/u.y), possuindo uma infinidade de propriedades (a tal bablfafío). O seu 3 H. Carré, Z,a /20b/esse de F/-a/7ce e/ /'oplnío/z /21íb/íqz,reatl xv7/7' sí.êc/e, Slatkine reprints, Genebra,
<(mundoé o da consrarz/fa,do apego a elementos duradouros, da tradição, votando 1977, P. 107
4 Labatut, op. cí/., p. 66
desprezo às mudanças e inovações, com uma insistência que se repete no conceito 5 Assim escreveG. Desdevises du Dézert in <<Lasocietê espagnole au xvn' siêcle», extraído da Rewfe
/ífsroriqire (Nova lorque-Pauis),LXIV (1925), pp. 192-195
E. Le Roy Ladurie, Prefácio de l,a Nob/esseall xl'///' siêc/e. De/aJZoda/íré aux l,lríniêres, Complexo, 6 J. Meyer, .Nob/esses
e/ po ívoirs dons /'E&fro/)ed' Á/zcle/zRéíg/me,HachetteLittérature, Paras,1973,
Bruxelas,1984,p. v. P. 154

32 33
acompanharde uma vontade de descrever a orlgíPze,o início, e também de se inter- Em França, entre 1710 e 1790, foi concedido o estatuto de nobre a cerca de 50 000
rogar a respeito dos valores que sustentama condição aristocrática. Este desejo de
pessoas, um número considerável. Quantos milhares terão passado discretamente, na
identificação traz também consigo uma vontade de justificar a própria proeminência. sombra, da Segunda Ordem ao Terceiro Estado? Poderão estas mudanças sociais
Logo, torna-se imperioso separar uns dos outros, conta-los.
explicar, em grande parte, os desvios tão notórios nas avaliações e os interrogatórios
É igualmenteconvenienteum consensocom vista à definição de quemé nobre e Lão apertados sobre as origens básicas da nobreza?
ke'cÂ.x'o. {$c} de quem não o é, de quem está inscrito nos registos nobiliários, de quem fica de fora. A pesquisa de identidade, o desmembramento, surgem já como primeiras expres-
a] o+ ' ? Z-CI.., Eis o objectivo da reforma da nobreza que se registou entre 1668 e 1672. Jean Meyer, sões desta inquietação quanto à natureza da Segunda Ordem. O retomar do debate
através do exemplo bretão, salienta que <<cadaracionalização das estruturas sociais histórico no século xvlll sobre a origem da nobreza constitui a segunda manifestação.
não poderia deixar de suscitar um descontentamentotanto maior se considerarmos De onde vem a nobreza? Como surgiu em França? De onde deriva a própria legi-
í:l:i. (,.l. {.( l. I'r\ c~ que, no fundo, a reforma da nobreza acentua a passagem,sem dúvida incompleta timidade? O conde de Montlosier resume deste modo a questão: <<Ossucessivos his-
mas real, de um estado de nobreza pela notoriedade pública e reconhecimento tácito toriadores de diversas cores escreveram a nossa história, consoante estivessem liga-
dos grupos sociais de uma determinada região a um estado nobiliário garantido por dos a uma ou a outra tendência, uns à luz das leis romanas, outros no sentido das leis
provas concretas. . .)>7.Por certo, nem sempre a experiência foi levada a bom termo mas, francas, outros ainda segundo a visão do clero, vindo deste modo trazer mais confu-
de qualquer forma, é possível verificar que o estado de nobreza variava de região para são a um campo já cheio de confusões. O conde de Boulainvilliers e o abade Duelos,
Ur.L cta/. região: na Bretanha, por exemplo, apenas 17quda nobreza remonta a um período pos- um no sentido mobiliário, o outro no do povo, delinearam um quadro escandalosoque
terior a 1550. Em Lille, no Franco Condado, em Leão, no Maine,<<o núcleo da nobreza. .
.l c:q '=\:(cl J'' o historiógrafo Moreau veio depois agravar no sentido de um poder absoluto.»
possui origens mais recentes>>8.
E é de igual modo necessário sublinhar que estas ope- Dizem que é muito o que está em jogo e encontramo-lo com frequência nas memó- 5.
rações (pesquisa de canas ou de documentos testemunhando a antiguidade dos quartos rias e na correspondência:<<Ofeudalismo e, com ele, a primeira nobreza,eram ins-.
de nobreza) não poderiam ser levadas a cabo sem entrar em pesadas despesas. Por exem
tituições bárbaras? A justiça dos suseranos, uma usurpação da autoridade régia? Os
plo, a família do jovem conde de Tilly, para fazer prova da sua própria nobreza perante tributos do censo, uma usurpação sobre o povo?)>':, interroga-se Montlosier, que prof- h
Cherin, teve de despender uma vultuosa quantia a fim de enviar um tal abade Guérin, segue:<'Eraopinião correnteque os povos germânicos,ao entraremna Gália, se ,.
encarregadodesta recuperação,à Torre de Londres, à Dinamarcae a Vaneville, na haviam apoderadode todos os bens e reduzido todos os habitantes à servidão... por
Nomlandia.o FÍçg assim confirmada a impressão de que só um bom património poderia isso, não duvido que os senhoresdo Castelo mais não fossem na origem do que sal-
sustentar.a antiguidade e, de igual modo, a legitimidade nobiliárquica. teadores.>>Tais <<descobertap>
históricas embaraçavam certos nobres que haviam jul-
Seja como for, o trabalho de levantamento esteve longe de ser exaustivo e Jean gado encontrar uma fonte de legitimidade na sua origem autêntica.
Meyer procura fazer num outro estudo o inventário dos desvios nas avaliações: em Restavam-lhes, portanto, os valores nobiliários, sagrados e profanos, constitutivos
1755,o abadeCoyer calculou em cerca de 360 000 o número de nobres em trança, de um código moral com o qual poderiam alcançar pontos de referência exemplares.
enquanto o intendente Moheau indica 80 000 na sua obra Consídérafío/zs s r /a pop!z- Assim, a honra, «o reconhecimento glorioso conferido à Virtude e à coragem)>,eram U
.c

/afia/z de /a Fra/zce. Quanto ao abade Sieyês, em Qa 'esf-ce que Je Tíers Efaf?, estima
o que de melhor o nobre europeu podia alcançar, sobretudo iidinanejo das armas. Ü
que a Segunda Ordem seja constituída por 100 a 110 000 pessoas.i' Da honra provinha o sentimento de pertencer à nobreza, manifestado através de uma ''
Estas diferenças denotam a insuficiência dos instrumentos estatísticos utilizados dupla ostentação:sentir-se nobre implicava uma atitude, uma compostura, uma lin-
na época revelando, de .igual modo, uma manifesta manipulação dos números seja guagem,um modo de ser muito particular; ser visto como um nobre conduziaa
por parte do abadeCoyer, que denuncia a imensidão dos nobres empobrecidos, seja por um sistema de representaçãoindividual e aceite por todos, que permitia identificar dü k:

parte do abade Sieyês, que critica a Minoria que atravessou a totalidade do século xvm, sem hesitações o <<bem-nascido>>.
Esta busca de identidade, esta demonstração da
a propósito do estatuto de certos nobres: os enobrecidas e os degradados.Eram os ordem, contestada na sua coerência, oferecia-se como uma distinção social, como um
primeiros realmente nobres? Era oportuno recenseá-los? Quantos eram? Como ava- princípio de legitimidade reafirmado nos usos quotidianos.
liar o alcance da sua usurpação? la-se difundindo uma inquietação surda: quem dei- O vestuário, por exemplo, assumeaquela função distintiva que permite a unidade
xara de ser nobre? Os nobres podiam perder a sua própria condição? Como? Em que da ordem, atravésde um estilo de vida compartilhado por todos, comum. <<Nasocie- u
critérios se iria basear esta nova codificação? Que legitimidade nobiliárquica nasce dade não igualitária, a hierarquia das aparênciasdeve coincidir com a hierarquia L
ria desta classificação? social; é a própria representaçãoque Ihe confere a estrutura... Se o nobre é sobre-
tudo aquele que representae o burguês aquele que produz, o primeiro deve antesde
7 J. Meyer, Z,a7Vob/e.çse
b/"e/o/z/ze,
SciencesFlammarion, Paria, 1972,p. 53. mais parecere o segundo essencialmenteser.>>'3Com efeito, Daniel Rocha pode des- ç
8/bídem,p. 58
9 Alexandre de Tilly, A4émo//"es,Le Normand fils, 1828, p. 320.
ii Montlosier, 7Vémoires, Dufey, Paras, 1830, t. VI, p. 126.
o J. Meyer, <<Lanoblessefrançaise au xvlll' siêcle: aperçu des problêmes», Ácra Po/o/zfaeHisroríca
iz/bode/71,
P. 80.
(Varsóvia), XXXVI ( 1977), pp. 9-45. il D. Roche, Z.aci//í'&lredes ampare/Ices,Fayard, Paris, 1989, p. 92

34 35
q

crever <<oluxo do vestuário dos ricos... e a função de alguns patrimónios bastante ricamente num plano de igualdade com todos os seus pares, e ao abandonaro sen-
consideráveissugerindo, se não aumentando mesmo, o papel do fausto e do luxo. a tido de unidade, deveria ligar todos os membros da Segunda Ordem. Contudo, damo-
aceleração dos gastos de pura ostentação, própria dos ambientes de corte»i4 Neste -nos conta de que não é possível fazer o retrato do aristocrata, para não nos limitarmos
jogo das percepções sociais, o facto de se sentir nobre torna-se então tão importante a um esboço caleidoscópico revelador, mais do que de simples tonalidades, de cli-
como ser entendido como tal. Todavia, o vestuário é apenaso paradigma de um con- vagensque por vezes se apresentamcomo abismos intransponíveisentre todos os
junto mais vasto,que leva de volta à arte de viver do nobre nobres
Se já é famoso em Paria, surge com ainda maior força na província. Num estudo À primeira vista, o nobre não se encontra, isto é, ele apresenta-nos, um pouco por
p''
5 ' sobre a cidade de Aix-en-Provence no século xvlll, M. Cubells salienta o grande toda a parte, uma imagem diversa. Para começar, os contrastes são tão geográficos
+' mero de criados, a riqueza do mobiliário, o valor das colecções, a importância das como históricos. O que têm em comum <<os/lida/gos que vêem sempreo ócio no
bibliotecas tudo nítidos indicadores do ambiente e do padrão de vida luxuosos pró- campo como inseparável da nobreza e consideram qualquer actividade incompatível
prio dos it/eiiíeurs do Parlamento. Esta arte dç:yiyç!, que se manifesta de imediato com o esplendor dos seus títulos»'ó e os membros da gene/y em Tnglaterra <'cuja carac-
na aperênciaEomo sinal de distinção=.podejer entendida con!!).uçplE$»Õgçlo poder, terística essencial é a faculdade de se adaptarem à realidade económica e de acolher
mas taníbéh"como Um self ábpiõ'Aiiiül se por vezes os factos se afiguram contra- os novos membros?». Esta nobreza inglesa, <<constituídapor homens de negócios e
ditórios, e D. Roclié"áêoilÉéiha a não se cair <<noshabituais exageros apontados aos comerciantes,não surge, por conseguinte, como uma pequenanobreza pobre; é ver-
pregadores,aos moralistase aos historiadoresque fazem seusos excessosde uma dade que o triunfo c os privilégios de facto desta ge/z//y são explicáveis em virtude
t,
pequenaminoria>>'s,a nobreza, ao mostrar-se colho era, oferecia a possibilidade de de ser praticamente nula a possibilidade de perda do título nobiliárquico devido ao
/ se fazer um retrato algo caricatural, mas todavia autêntico, de cada elemento rede. exercício de uma actividade incompatível>>i'. E importante a separaçãoentre as diver-
\
rido. E a impressão que se retira da descrição do dia do nobre, segundo Henri Carré. sascondições, que não se fica a dever exclusivamente à distância geográfica.
Ó Antes do meio-dia não faz nada, ao que parece, excepto preparar-separa se vestir; Em França, coloca-se o problema da unidade e, por conseguinte, da coesão da
f depois, almoça, seguindo-se conversas na sala de estar, leituras, canto, visitas à biblio- nobreza. Surgem múltiplas divergências durante as discussões. Estas polémicas indi-
..'%"' teca, passeios, partidas de caça, jogos (péla, bola, volante, bilhar, gamão, damas, cam o grau de confusão existente e deixam antever que a ordem se possa vir a des-
dominó); à noites após o jantar, as festas de gala, as representaçõesteatrais e os bai- membrar. Vamos encontrar, no âmbito de uma hierarquização estreita, a nobreza da
les encerramo dia. De acordo com estamaneirade ocupar o tempo, ficamos com a corte e a parisiense,nobres que dispõem de uma residência em Parase a nobreza de Í)l G, 'y t f

impressãode ligeireza, de ócio e, sobretudo, de superficialidade que estudos recen- província. O nível de vida é incomparavelmente mais faustoso em Paris, onde a par
K F tes vieram desmentir. Todavia, é inegável que os elementos recolhidos por Henri ticipaçãona vida mundanaexige um certo nível patrimonial e contrastade modo
€ Carré são tambémmomentosnecessáriosà elaboraçãode um estilo de vida aristo- notório com a modéstia, se não mesmo com a austeridade, das condições de vida de
r crático e de uma associaçãonobiliárquica. Neste sentido, pode afigurar-se distorcida uma grande parte dos nobres. Enquanto em Versalhes o jovem conde de Tilly se dá
a imagem da nobrezaque os contemporâneose depois os historiadoresnos deram. conta da dificuldade de ser apresentadoao rei, começando por um cargo qualquer,
Este efeito de perspectiva não obstava a que uma imensa maioria de plebeus interio- chegando mesmo a prestar provas para acompanhante nos passeios de carruagem, na
rizasse uma sensação de diferença social e de inferioridade, desejada e cultivada pela província do Maine, junto do seu tio, pensa-seem algo bem diferente. As mulheres
nobreza, e a que os não nobres vivessem com a sensação objectiva de exclusão do são ajuizadas, as pessoasrecolhem-se cedo. O proprietário preso ao cultivo das suas
grupo dos privilegiados.
terras, <<morreriade medo só de pensar que a vida no Castelo e a monotonia do campo
Falta-nos compreender melhor a forma como aspectosdistintivos, inicialmente pudessem entediar um ser maravilhoso como eu, Tilly>>'*
valorizantes, acabaramdepois por encerrar os nobres, no final do século, no âmbito Mais importante ainda é a diferença cultural. Este século de grande transfomiação
de sistemasde representaçãocom conotações cada vez mais negativas. Mas o nosso intelectual parece dividir realmente a nobreza ao revelar ou uma capacidade de adap-
objectivo. não é a percepção da nobreza como um conjunto de personalidades ndi- tação a um pensamentooriginal, ou então, se não uma hostilidade, pelo menos um
viduais nitidamente mais virtuosas do que à partida seria possível supor, mas como desprezo em relação às novidades apresentadas pela filosofia e também pela política.
um grupo unitário, solidário, disposto a elaborar e a submeter-sea um código de Estamosem presençade um importante elemento de impasse na ordem nobiliár-
vida, uma colectividade nobiliárquica que, em face de uma nova concepçãode exis- quica, no sentido de o acesso à cultura, a aquisição, a adesão a uma nova concepção,
tir e de tornar-se social, acabou por vir a ser posta em causa.
sobretudo das hierarquias sociais, revelarem -- se não com carácter exclusivo níveis
Esta lógica de grupo implica, de forma explícita, a unidade da nobreza.susci- de riqueza diferentes e, a curto ou longo prazos, um divórcio ideológico no seio da
tando alguns problemas em pleno século xvrll. Representantede uma linhagem de nobreza
que e a expressão viva, receptáculo dos valores do seu grupo, o nobre coloca-se teo-

ió Camponanes, Cartas po/úíco-eco/ló/z/ca.s, citado por Desdevises du Dézert, op. c;r., p. 194
i4/b/dem, p. 98.
i5/b/dem, p. 99. i7 Meyer, /Vob/esse.çe/ potívofr, cit., pp. 221-235.
1*Tilly, A/émoire.s,cit., pp. 155, 214-215

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Ç

tinadas a impor-se junto da opinião pública às virtudes da nobreza: guerra, honra,


Já em criança, o jovem conde de Montlosier lia Pluche e Z,esen/refiens self /a
P/ura/ífé des it/o/ides.de Fontenelle... depoisGil Blas, Dom Quixote, Gulliver, acção, coragem, força. Para se alcançar o topo das honras, era necessário adoptar os
valores do inimigo. Não havia outra solução a não ser fingir ser-se o que não se era,
Robinson Crusoe... Jovenzinho, de espada à cinta (entrou para a milícia) e de bis-
um 'homemanfíbio', envergara toga do homemde leis de manhãe vestir-sede
turi na mão, frequenta um curso de anatomia e depois de química. <<Mas isso não me
bastavn>, confessa, <<umbom frade capucho irlandês, confessor da minha família, fidalgo à noite.>>"
Século e meio mais tarde, o conflito parecesanado.F. Bluche,J. Meyer,
propôs-me ir para o convento dele e tirar um curso de Direito Público, e eu fui. De M. Cubells demonstraram, através do estudo dos diversos Parlamentos (Paria, Rennes,
um lado, com o meu Burlamaqui, o meu Grozio e o meu Pufendorf; do outro, com
Aix), que não existem mais desigualdadesentre os nobres; não existem mais pre-
as minhas noções de química de Macquer e de Beaumé, com as minhas dissecações
conceitos negativos em relação à nobreza de toga, a partir de agora julgada com alti-
anatómicas,os meus princípios de cirurgia de La Faye e a minha anatomiade vez. <<Observemospor agir»>, sugere M. Cubells, <<quepoucos são os que, de entre
Winslow.)>'oAs suas incógnitas incidem sobre a religião. Lê Voltaire, Rousseau,
as famílias dos parlamentares provençais do século xvlll, se mostram voluntariamente
Diderot... <<Deste
modo, tornei-me aquilo que então se chamavaum filósofo.
infiéis à toga e é ainda menor o número daqueles que a abandonampara passarem
Considerava a independência o primeiro direito da natureza, a igualdade o direito
directamente à Espada... A Espada não parececontrapor-se à Toga, como um bloco
natural das sociedades.>>".
<<Sea Revoluçãome tivessecolhido de surpresanaquela
compacto: nem abaixo, por certo, nem acima, mas antes em paralelo.)>z'Esta ima-
épocada minha vida>>,confessacom ironia, <<creioque teria dito ou feito belas coi-
sas.>>:'São reflexões esclarecidas a propósito da vastidão da cultura deste jovem gem de coesão é corroborada pelas uniões matrimoniais celebradas entre famílias da
nobreza de espadae de toga, por uma comunhão social em que, finalmente, as prer-
conde tão ecléctico e sobre a influência que ela tivera na formação das opiniões polí-
ticas da sua mocidade. rogativas de cada uma não estão dependentesdo facto de se pertencer a um tipo de
nobreza ou ao outro. Disso são exemplo as lojas maçónicas. «A presença, nestas asso-
São bem diferentes os discípulos de Vaublanc no Colégio de La Flêche. <<Oque
ciações privilegiadas, das mais ilustres estirpes nobiliárquicas da Corte, da elite da
consegui após sete anos de educação monástica, contando os dois anos de pensio-
nato em Paria? Dois cantos da Epzeída, as Café/í/párias, a primeira acusação contra magistratura e de uma parte da alta finança deve ser interpretada como uma forma
de predomínio. Se a igualdade se vai instalando, certamente não entre um par do
Varrão, alguns passos dos Comentários de César, eis ao que se resume a minha parca
reino e um chapeleiro, entre um intendente das finanças e um fabricante de azeite,
educação; além disso, apenas conseguia compreender sem dificuldade os trechos mais
entre um alcaide e um músico da guarda, mas entre as três categorias de nobres que,
belos, os versos dedicados da paixão. Porque são tão claros que se entendem como
ao reunirem-se, conferem, por si próprias, a certas lojas esse prestígio.)>::
se estivessem escritos na nossa língua.>>22Não tem uma brilhante passagem pela
Portanto, reflexo arcaico ou sinal do aparecimento de uma nova divisão ainda
Escola Militar de Paris. Volta-se de novo e o texto autobiográfico prova-o -- para
por definir, transparece das correspondências e das memórias um considerável des-
os livros, para a cultura em sentido lato; mas são muitos os que acabampor encher
as cidades, mal sabendo escrever, que nunca lêem, orgulhosos dos seus preconcei- prezo pela <<togocracia>>.
O jovem marquês de Argens insurge-se contra o seu pró
prio futuro de parlamentar: <<Acondição que eu teria de assumir parecia-me horrí-
tos, imbuídos das suasconvicções políticas, insensíveisa qualquer ideia inspirada
vel; via-a como a tumba de todos os prazeres. A vida voluptuosa de um oficial tinha
pelo espírito do século.
para mim atractivos muito mais interessantes do que o penoso dever de instruir e jul-
Diversidade de cultura, diversidade de concepçõespolíticas: a filosofia do Iluminismo
gar os processos do povo.»:' Alguns anos mais tarde, as críticas de outros dois nobres
repartida de modo desigual parece servir de factor de desordem; e sem dúvida tam-
provençais serão ainda mais mordazes. Mirabeau fulmina as <<100000 famílias saí-
bém porque se vem sobrepor a um outro germe de divisão já existente no século xvin,
das da nação, que compartilham dos nossos direitos>>e descreve <o delírio e a inso-
o da função da nobreza.
O saber, a cultura apresentam este problema específico porque o século xvlll ofe lência da plebe, que se esforça por sair da massae que julga tornar-se nobre graças
a cartas do príncipe obtidas a troco de dinheiro>:'
rece múltiplas possibilidades de os exercer e de obter prestígio.
Sade, enclausurado na Bastilha, imagina as palavras que o seu acusador deve ter
G. Huppert demonstrou que, nos finais do século xvl, se constituíra em França
proferido: <<Estepequeno aborto, que não é nem presidente nem revisor de contas,
uma genfry ciente do seu próprio saber e da qualidade da sua própria pena, mas de
teve a pretensão de fruir como um conselheiro da Câmara Altar. . . Este nobrezeco de
igual modo <<afastadada burguesia de que descendia; não tendo encontrado um esteio
na nação, vira-se obrigada a capitular perante o 'tinir dos sabres'». O historiador
!3G. Huppert, .Bourgeo/sef ge/zrf/s-A0/7z/zzes.
Z,a/éussí/e soc/a/e e/zr'rcznceaz/xvz' siêc/e, Flammarion
americano conclui então: <<Asvirtudes deste Quarto Estado efémero, como as enu-
Paris, 1983,p. 274.
merava Montaigne paz, lucro, saber, justiça, razão não estavam, em suma, des- 24M. Cubells, Z,a Provelzce des .Lu/?zíê'res.Z,es par/emenrczíres d' .Alx aU Xy7/7es/êc/e, Maloine, Paris
1984, PP. 58-59.
25F. Bluche, Z,a vfe quer/dfe/z/zede /a .Nób/e.çseFra/zçaise az{ xv'/// sl.êc/e, Hachette, Paria, 1973
9 Montlosier, op. c'i/., p. 35.
P. 73
zo/bidé/n, p. 36.
zóD'Argens, .4/én20/rei,Frederic Buisson, Paras, 1807, p. 133.
l /pide/zt, p. 80.
!7 Mirabeau, Z)e.ç/e//res de cac/zef e/ desprísonniers d' .orar, Lecomte et Pougin, Paria, 1835, p. 227
Conde de Vaublanc, ,A/émoíres,Firmin Didot, Paris, 1857, p. 20.

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província quis misturar-se connosco, pensando que Ihe fosse permitido equiparar-se- f Era esta a questão, exceptuando a capacidade de resistência que a chamada ans
nos; mas como, sem arminho e sem a garra?>>:*
Também se afigura interessanteo tocracia pobre poderia oferecer, afastada dos cargos de prestígio e de comando, mar
facciosismo destes testemunhos de homens encarcerados, pelo facto de deixar bem finalizada e muitas vezes humilhada. Do outro lado, ainda que sem dinheiro, não
patentes os dois factores de desunião no seio da nobreza: a importância do enobre- deixa de existir uma plebe nobiliárquica <<que
possui o sentido da singularidade e do
cimento através das carreiras administrativa e jurídica, e o poder cada vez mais sig- próprio distanciamentoe que não conseguemisturar o seu próprio sanguecom o da
nificativo do dinheiro no âmbito de hierarquias também cada vcz mais selectivas. nobreza endinheirada>>;4.G. Chaussinand-Nogaret calcula que, no mínimo, umas mil
E impossível uma coesão total, perfeita e manifesta da nobreza. famílias possuíssemum rendimentoinferior a mil libras. <<Osmais afortunadossão
E já bem evidentee notório aos olhos dos contemporâneosque se verifica uma os camponeses, os mais desgraçados alguns vergonhosamente pobres.>>'s
unidade entre a nobreza mais rica, um dinamismo económico da parte de diversos Sem dúvida, J. Meyer minorou o sentido do termo pobreza. <<Seexceptuarmos
bem-nascidos>> mais empreendedores,uma maior abertura da mente, participando uma nobreza realmente na miséria, na acepção mais literal da palavra, existe uma
na elaboração de uma nova concepção do Estado e das relações sociais. Segundo esta aristocracia que se sente pobre, em face das suas próprias exigências, sem aquilo que
perspectiva, Sade apresenta,não sem alguma dose de cinismo, os protagonistasdos o Terceiro Estado e sobretudoo povo das regiões rurais considera o tal nível de
120 dias: <<Seriaerrado pensar que somente a plebe se ocupasse desta /na/róre29;con- riqueza' típico da pobreza. Miséria real e miséria relativa...)>3ó,Dequalquer modo,
tava com grandessenhoresda primeira fila. O Duque de Blangis e o seu irmão, o subsiste o facto de esta nobreza menos pobre do que aquilo que se possa pensar se
Bispo de... que dispunham cada um (durante a regência) de um enorme património, ter dado conta da forte ameaçaque pairava sobre a sua condição e preparasseum
constituem prova incontestável de que a nobreza por certo não descurava, mais do discurso contra aquelesque eram mais abastados,mas com uma origem aristocrática
que os outros, estes meios de se enriquecer também por semelhante via. Estas duas dúbia ou recente. Não se exclui quc esta percepção tenha, a pouco e pouco, come-
ilustres personagensestavam intimamente ligadas, tanto no prazer como nos nego çado a ser partilhadapof outras pessoasque viviam, quotidianamente,lado' a lado
cites, ao famoso Durcet e ao Presidente de Curval.>>30 com estes nobres nas pequenas cidades, burgos e aldeias.
rAfigura-se perfeitamente lógico que esta reacção da nobreza dinâmica tenha aceite Terão coabitado duas formas de pensamento na mesma ordem, uma iluminada,
um novo código de valores e reconhecidofinalmente«a elevada dignidade do mérito, aristocrática. desenvolvendo-sea outra no âmbito desta nobreza desguarnecida,cuja
a sua validade para definir o ser excepcional, colocando-o fora do grupo, justificando o identidade social se arreigava ao passado, à dignidade e à reputação. Até que ponto
seu enobrecimento>3i, e acabando por formar uma elite juntamente com os membros não seria um discurso deste tipo partilhado pela esmagadoramaioria da população?
mais ricos do Terceiro Estado. Esta fusão é particularmente evidente em Inglaterra. Por Os aldeãos de Montlosier <mdmitiam no seu seio uma espécie de nobreza, a qual
exemplo, <<ummercador adquire um bem de raiz importante, instala-se nas suas terras, reivindicava, como em todo o lado, a antiguidade,a probidade e o talento, quando
assume determinados modos dc gemi/amam,prima pela qualidade da sua conversa e da estes elementos, há muito transmitidos de pais para filhos, surgiam na família como
hospitalidade. Recebe os vizinhos com muita classe e dá-lhes a perceber que possui hereditários. A riqueza vinha em segundo lugar; refiro-me à riqueza recente; pior
antepassados de um nível muito honroso. .. O bem-nascido e o burguês podem encon- ainda, então, quando era alcançada por meios obscuros.)>''
trar-se entre eles em número significativo>>32,e começa a delinear-se uma nova aústocracia. Luta da nobreza...no fim, chega-seà implosãoda SegundaOrdem,destruída
# Conscientemente ou não, a grande aristocracia europeia outrora tão conforme pelas próprias disputas. Qual poderia ser a parte da ilusão, do ideal, da esperança
com as estruturas monárquicas alia-se aos potentados financeiros, tendendo cada comum entre, por um lado, as 6500 famílias admitidas na nobreza durante o século XVm,
vez mais a confundir o fenómeno nobiliário com a riqueza. Explica Quesnay: <<Uma graças à obtenção de cargos enobrecedores, graças a patentes de nobilitação e, em
nobreza de origem e de vida obscuras atribui cada vez menor importância à consi- menor escala, através da usurpação38e, por outro, aqueles nobres pobres a quem
deração pelos outros, enquanto a riqueza e a fama constituem a base da nobreza, dos apenasrestava a recordação daquilo que julgavam ter sido no esplendor de tempos
nossos grandes proprietários, dos nossos magnatas.)>33A consequência política desta remotos?
situação foi efectivamente a tentativa de marginalização de todos os nobres que não Negligenciada durante muito tempo, descrita durante muito tempo mediante o
tivessem condições económicas de manter a sua posição. ' recurso a alguns exemplos escandalososou miseráveis, esta nobreza empobrecida
constitui um grupo importante, de região para região, um grupo que contribui por
!8jade, <<Correspondance»,
in Oei/v/'esc0/7zp/ê/es
du ./t/arq&ílsde Sede,t. 12,Cercle du livre précieux, certo para a imagem global da ordem. <<Opulular da nobreza bretã explica-se em
Paras,1964,p. 268
!' Imposto extraordinário cobrado em Fiança, no séc. xvlll, sobre todas as mercadorias.(.N.T) 14Chaussinand-Nogaret,op. ci/., p. 65.
jade, <<Les120 journées de Sodome», in Dali\,res co/ zp/ê/esdzr.A/arquisde Sede, t.l, Pauvert, Paria, 15/bidé/n, p. 88.
1986,P. 19. ló J. Meyer, <<Unproblême mal posé: la noblessepauvre. L'exemplo breton au xvin' siêcle», Recue
31G. Chaussinand-Nogaret, l,a /zob/esseau xvl//' síàc/e. l)e la .fZodallré aux /zz/7zlêres,
ed. Complexe, d'Hísfolre JI/oderne ef Corzremparailze (Abr.-Jun. 1971), pp. 161-188
Bruxelas, 1981, p. 59. 37Montlosier, op. ci/., p. 68
3zLabatut, op. cír., p. 149. s8Cfr. Cubells, <<Apropos des usurpations de noblesseen Provence sous I'Ancien Régime>>,Provence
3 Meter, Noblesses et pottvoirs watts !'Ettrope, cit., p. 162. /íísforfgue (Aix-en-Provence,Jul.-Set. 1970), fasc. 8 1, pp. 239-300.

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e aqueles que foram os promotores de novas formas de poder, regidos por uma ética
parte pela abundânciade aristocracia pobre que forma propriamente uma verdadeira
mais filantrópica, uma consciencialização de pertença a este grupo?
plebe nobiliárquica. Um terço da nobreza de Saint-Brigue vê-se reduzida à mendici-
Nobres de dia, nobres de noite... poderia surgir aqui a dicotomia entre uma frac-
dade.)>Em Plouha, apenas duas famílias pagam 30 /1vres de capitação, uma 22 /ívres,
uma outra 15 /ívres, onze, ao invés, 9 /ívrei, 4 /feres e 10 soldos, e 24 famílias dc ção da aristocracia iluminada e uma franja da nobreza mais obscura, cujo mal-estar
um total de 46 não estãoem condiçõesde pagarnadamA esteprimeiro terço, no exprime uma ausênciaconcreta de classe? Dois grupos que manifestam diferenças
de cariz social no âmbito da própria ordem.
limiar da miséria,vêm-sejuntar os que pagam menosde IO /ívres: 40% do total da
Destacam-setrês figuras entre as dos nobres mais empreendedores:o industrial,
diocese inteira. Deste modo se compreenderá que os 7qü que pagam de 10 a 20 /ívres,
esta nobreza miserável e que, muitas vezes, não se distingue do resto da população o proprietário de terras, o militar.
Graças aos esforços de G. Richard, é possível estudar quase mil famílias de nobres:
camponesa como o fazem notar os provérbios ]ocais: ]Vob/azp/oaãa, /zob/aznefla
todas se mostram empenhadas na transformação económica do século Xvlll que
ascendema um total astronómicode 77qn30.
Estamosem presençade um fenómeno
extremo, ainda que atenuado pela possibilidade de a nobreza bretã entrar <<no sono>>,
abrangeo domínio do comércio colonial e as reformas nos sectoresindustriais com-
pletamenterenovados, como o metalúrgico, o têxtil, o químico e o mineiro.
permitindo-lhe assim, em contravenção das normas, dedicar-se a algumas activida
O desenvolvimento de uma estrutura legal que abarca quase um século e visa
des, quando as dificuldades económicas são demasiado grandes.
Noutras regiões, os efeitos deste empobrecimento repercutem-sede forma mais eliminar o óbice da perda do título nobiliárquico no caso de exercício de um ofí-
cio incompatível, vem permitir que os nobres se possam dedicar ao comércio marí-
significativa ao nível político. Na Provença,a desordemeconómicaem que vivem
alguns senhores do Lubéron desobriga a comunidade da aldeia de qualquer preo- timo a partir dc 1699, ao armamento e à construção naval a partir de 1681, aos
segurosmarítimos a partir de 1686, ao comércio grossistaem 1701 e, por último,
cupação de mostrar deferência ou respeito exagerado pelo próprio patrão em ruína
à manufacturae à bancaem 176742.
No decursodo séculoxvlll, vai-se formar
económica. O caso do marquêsde jade, estudadopor M. Vovelle, é bem esclarece-
uma verdadeira aristocracia dos negócios, burguesa pelas suas próprias incum
dor. <<SeLacoste não desacreditou o Marquês, talvez isso sc fique a dever muito sim-
plesmente ao facto de, sem estrépito, e aproveitando a ausência do senhor, esta aldeia bências, feudal pelas suas motivações de fundo. <<Convertendo-seao capitalismo
industrial, a aristocracia fundiária garantia a sua perenidade e assumia na socie-
ter já feito a sua pré-revolução.>>'oA multiplicação dos processos entre camponeses
e senhores, os inúmeros protestos contra o funcionamento da justiça senhorial ates dade em gestaçãoaqueleprimeiro lugar que Ihe pertenciano quadrodo a/zcíen
tam esta rotura, proveniente da falência dos nobres no seio das estruturas tradicio- régtme»"
Os Dietrich na Alsácia constituem um exemplo significativo. Jean Dietrich lll
nais. Claro que se poderiam apresentar de igual modo numerosos exemplos contra
(1715-1795) recebeu por herança as ferradas e as minas de Jaegerthal. Aliado ao
rios, casosde prosperidade económica, de simbioses perfeitas entre ordens nobiliárquicas
banqueiro Herman, conseguiu reunir o milhão e cem mil /ívres que Ihe faltavam
e populações de aldeias.
Não nos interessaestar a avaliar e a contar o número dos nobres pobres, con- para a compra dos terrenos, o financiamento das reformas, a realização das cons-
truções. A consagração social dá-se em 1761, quando Ihe são conferidas as patentes
frontando-o com o dos ricos, para depois chegarmos a conclusões sistemáticas, nem
descobrir personagensarruinadas a fim de proclamarmos a decadência da Segunda de nobreza. É então que Jean lIT rompe com tudo o que Ihe recorda as suas origens
burguesas e se dedica exclusivamente às suas propriedades fundiárias e industriais.
Ordem. Nesta perspectiva, seria perfeitamente inútil traçar um perfil do declínio da
nobreza, bem como, ao invés, de uma ascensão da ordem durante o Século das Luzes. Logo, aqueleque virá a ser chamadoo rei do ferro, possuicinco dosoito altos-
-fornos existentesem toda a região, enquanto tem sob as suasordens 1500opera
A verificação de qualquer das teses, baseada na apresentaçãode exemplos, não é
rios e 300 mineiros. O filho, Philippe Frederic, inspector das minas, das ferradas e
necessariamentecomprovativa. . . ou talvez o seja, no sentido de revelar que a nobreza
deixou de funcionar como grupo social homogéneo e que o século, com as novida- oficinas de França, membro da Academia das Ciências, estava pronto para assumir
a sucessão"
des apresentadas, fragmentou a Segunda Ordem noutros tantos destinos individuais,
por vezes opostos.
No outro extremoda França,nestecaso,na gestãoda propriedadefundiária,a
Ter se-á a nobreza sabido adaptar a efta nova concepção, que parte do indivíduo, nobreza constitui um exemplo dos mais sublimes. A sudoestede Tolosa, em Vieillevigne,
da suafunção económica, do seu valor monetário, da sua cultura, para lançar as bases uma aldeia com algumas centenas de habitantes, o marquês d'Escouloubres dispõe
de uma nova classificação social? Reconheceu-sena globalidade destas diferenças de um considerável património. Para além da sua propriedade, o marquêspossui três
extremas?Verificou-se mesmo entre aqueles cujas <carreiras irregulares exprimem parcerias agrícolas e quatro fábricas, que Ihe rendem anualmente 6000 /ívres. Juntem-
.se ainda todos os direitos de senhorio, o censo, as banalidades,o imposto feudal, os
a instabilidade da situação material, social e política das aristocracias europeias>>''
direitos sobreas sentençasjudiciais e as vendas,a dízima, a corveia e o direito de

39Meyer, Z,a /zob/esse brejo/ze, cit., pp. 35-36.


4zG. Richard, Noblesse d'a#2zíres aií XI//17'síàcle, A. Colin, Paria, 1974, p. 18
40M. Vovelle, <(jade, Seigneurde village», in Sede (Colóquio organizadopela Faculdadede Aix,
41/bode/n,pp. 18-19.
1966),Colin, Paris, 1968,pp. 23-40. « Cfr. ibidem, Z,esDíefrfcA d' ÁZsace(/ó84-/ 789), pp. 154-162
4i Meyer, .Nób/essesez'pouvoírs, cit., p. 21

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A reacção a esta confusão atinge o seu auge em 1781. Nesse ano, o novo regu- estéreis. <<acasa em ruínas e aberta a todos, a carpintaria arrancada em vários sítios,
lamento militar determina que o grau de oficial apenaspode ser conferido aos gen tal como as portas, as estruturas, as impostas, as fechaduras, e mesmo a cobertura,
tis-homens que comprovem quatro quartos de nobreza do lado paterno. David Bien para além do palheiro e dos estábulos e todas as árvores dc fruto cortadas>>,
escreve
demonstrou que esta reforma não visava directamente os plebeus: <<AComissão do um ex-militar. em 1766, ao intendente-chefe encarregado da verificação dos danos.
Exército que discutiu e adoptou o regulamento Ségur sabia perfeitamente que há mui- As reparações, os arroteamentos, as sementeiras obrigam-no a contrair dívidas.
tos anos o corpo de oficiais era recrutado quasena íntegl-aapenasna nobreza.>>s'
Na A situação agravou-se em 1771. Um usurário venceu um processo contra ele e
verdade, o desejo de melhorar o futuro dos oficiais, garantindo-lhes um estatuto indis- perseguiu-o. Entretanto, o estábulo e metade do palheiro ruíram. O que pensariam os
cutível, passavapela constituição de um grupo homogéneo,motivado, qualificado assalariados.rurais, a gente da aldeia, os rendeiros de semelhante espectáculo de
profissionalmente, recrutado com base nos seus quatro graus de nobreza. Quem seria pobreza que, ainda que mantido com dignidade, não conseguiria esconder uma notó-
então afectado? Os novos nobres, os enobrecidos. ria condição de degradação?Por que base de legitimidade se poderia reger esta
nobreza? Entre a comiseração do assalariado rural e a obstinação do usurário, o que
O que o exército via era um grupo de civis que parecia unido enquanto tal e de
sobrava em matéria de respeito ou então de reconhecimento social inerente ao estado
um modo abastado:todos os seusmembroshaviam conseguidocomprar cargosdis-
nobiliário? E, pelo menos,Parigny souberasalvar a sua própria honra: nuncaninguém
pendiosos e todos, ou quase todos, tinham filhos que se podiam dar ao luxo de supor-
tar os custos do serviço militar que recaíam sobre um oficial. Certas famílias tinham conseguira pâr em causa a sua honestidade.
abandonado recentemente o seu próprio ofício, outras tinham-se mantido no exercício O que pensar então de todos aqueles que, comportando-se como farás-de-lei, iam
da profissão forense e de outras funções judiciárias.. . Se o exército pretendeu elimi- criando a imagem de uma delinquência tipicamente nobiliárquica? Existem inúme-
nar do corpo dos Oficiais, não tanto os plebeus, mas os nobres que se haviam tornado ras descrições,algumasdas quais exageradas.Mesmo assim existem, e constituem
tal por via da riqueza e sem uma tradição militar, o Regulamento Ségur era eficaz.s' um conjunto de indícios reveladores daquilo que J. Meyer definiu como <<omal-estar
da nobreza do século xvm)>. Evidentemente que estes actos de delito são obra de
Sob este aspecto, o objectivo da reforma, expresso em 178] e imposto à nobreza, uma minoria; evidentemente,também,constituem, da parte daquelesque os prati-
revelava-se inútil porque se reportava a um conceito da filosofia iluminista: a impor cam, uma rotura com a SegundaOrdem, ou então um sinal de incapacidadede con-
tância da educação,da formação, do ambiente para uma maior qualificação do exer- servar a sua posição. Nestas condições não se estranhará que os factos escandalosos
cício das armas, cada vez mais considerado uma profissão. Todavia como sucede soam acrescentados,por vezesaté deformados,na medidaem que são obra daque-
com os senhores nobres de Tolosa -- a aristocracia militar adequava-se às ideias do les de quem se espera um comportamento que reproduza virtuosamente um modelo
século, mas insistia num conceito inevitável e logicamente visto como retrógrado: a social que, ao invés, eles acabarampor recusar. O seu modo de agir torna mais real
exigência dos quatro quartos de nobreza para se tornar oficial. uma possível queda da nobreza.
Três nobres possíveis, três aristocratas típicos: o industrial, o gentil-homem de E notório o caso do duelo. Seríamos levados a pensar numa prática maioritana
província e o oficial de formação recente, todos expressãode uma elite iluminada. mente abandonada a partir de finais do século xvlT. Ao contrário, são raras as memó-
Mas a galeria de retratos não os esgota, muito pelo contrário. rias em que não se fale de duelo. <d)iscute-sea propósitode tudo e de nada,por fim
No outro extremo da ordem, bem à margem, descortinamos uma imagem de desor- os chicaneiros puxam da espada,algumas vezes também com êxito, contra os mili-
dem, não menos real, de contestação e de rebelião surda, que se impõe como uma tares.»ssO conde de Montlosier, que nada tem de espadachim, viu-se obrigado a tra-
realidade nobiliárquica tão autêntica como as vitórias do passado. Se, por um lado, var dois duelos. O seu irmão, ao matar um rapaz de boas famílias durante uma rixa,
convém evitar termos como decaimento ou decadência porque se ]'eportam a con- causa diversos problemas à família. Tilly confirma esta impressão: <<aFrança é a
ceitos morais, o de degradaçãoparece mais apropriado à descrição de uma realidade pátria dos duelos. . . Em nenhuma outra parte encontrei semelhante susceptibilidade
social que se foi acentuando na segunda metade do século xvlll. Para os mais pobres, funesta, esta triste propensão para o sentir-se insultado e querer vingar uma ofensa. .
esta degradação é vista como uma fatalidade, <<anobreza, misturada na massa comum Não estou a afirmar que esta categoria [os due]istas] fosse numerosa, mas existia e
dos plebeus,continua a extinguir-se». Na verdade, muitos são os que se agarram constituía mais uma prova da mania dos duelos difundida na nação e daquele pre-
ainda ao próprio título, último esteio da sua dignidade, último recurso antesda misé conceito que quase estabelecera tacitamente que não havia nada mais nobre nem
ria completa. maior do que uma tal demonstraçãode coragem.>>Outros observadoresdescreveram
Em 1765, dos quatro irmãos Parigny que participaram na guerra da Alemanha, bem a carga simbólica de autodestruição contida no duelo, tão perigosa para um grupo
só um consegue escapar e regressar à sua propriedade de Sainte Maure, na Turena. já fortemente minoritário.
Mas esperam-nodificuldades:vinte e cinco anosde abandonodeixaramas terras Outros comportamentos, mais perigosos, desqualificam a ordem no seu todo e de
forma quase irremediável. Em 1737, é aberto o caso Beaulieu de Montigny. Este
5sD. Bien, Z,aréacfiolz arísfocraflq e civaPzf
/ 789. J'exe/ 2p/ede J'armée, Annales E.S.C. (1974), n.' l jovem oficial mata um marido intransigente... Apesar das constantesintervenções
pp. 23-49; n.' 2, pp. 505-534.
54/lidem, p. 515. 55Bluche, op. ci/., p. 27

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P' r'

da família, o Tribunal condena-o à decapitação. Em 1768, o jovem duque de Fronsac, A prisão é um outro estigma da degradação.Os dois rebeldes sofrem a humilha-
filho do marechal dc Richelieu, manda raptar uma rapariga em plena rue Saint-Honoré: ção da prisão na Bastilha, em Vincennes, Pontarlier, Château d'lf, juntamente com
a polícia encontra-a então no apartamentode um proxeneta.Existem fortes pressões o ostracismo do seu grupo. Poderíamosficar por aqui na descrição desta votação ao
para o caso ser abafado, a ponto de <<nãose poder deixar de lamentar em segredo abandono dos partidários da desonra. Todavia, a noção de degradação sai enrique
como refere o livreiro Hardy -- que, por se tratar de uma personagemde destaque, lida, graças ao facto de os dois libertinos terem elaborado um sistema de pensamento
fique impune um crime horrível que qualquer outro cidadão comum teria pago com que fazia da sua exclusão um instrumento de crítica social. <(Libertino não é apenas
penas do máximo rigor>>. aquele que é excluído, mas também aquele que se pode excluir.>>ó'
Nesta escaladade violência, o caso de Victor Ysoré, marquês de Pleumartin, surge Como consequência, as posições assumidas por Sade em relação à religião, ou
como um dos mais significativos. <<Gostavade brincadeiras um pouco cruéis. . . uma mesmoas de Mirabeau peranteo absolutismo monárquico, podem ser entendidas
das suas distracções preferidas consiste em pendurar um camponês no alto de uma como manifestaçõessucessivasde uma vontade de transformar a própria tendência
torre ameaçandodeixa-lo cair no vazio. Seja como for, em 9 de Março de 1753, para a desestabilização da ordem constituída.
chega-seà rotura com a moral e a ordem pública, quando quatro oficiais de justiça Na verdade, a desordem sexual transforma-se num comportamento político. Para
são torturados pelo marquês. Em 10 de Junho desse ano, o comissário de polícia de estes dois nobres, o boudoír constitui um campo de experimentação onde os impul-
Chattelerault conseguedeitar a mão ao delinquente; este último mata dois homens e sos sexuais imitam situações originadas por um conflito com o poder. Os papéis amo
fere gravementeum outro; finalmente detido em Janeiro de 1755, morre na sua cela rosos são atribuídos em função de um estado de desigualdade social expressa de uma
antes de ser julgado.>>s' forma muito clara: patrão/escravo,opressor/oprimido,carrasco/vítima,e o sadismo
Dois casosde degradaçãonobiliárquica muito espectaculares,
que exemplificam de sentir prazer na queda, na humilhação, na perda da dignidade da própria vítima;
bcm o mal-estar de uma certa aristocracia. O marquês de jade e o conde de Mirabeau e o masoquismode sentir prazer na dor, na submissão, na aceitação do próprio avil-
apresentamum testemunhoinstrutivo atravésdo seu comportamentoimpróprio: na tamento. Mirabeau e jade comprovaram esta lógica do poder tanto fisicamente como
verdade, ou se dão ares de reaccionários, agarrando-se aos próprios privilégios e também nos seus textos. As perversões imaginadas e descritas pelos dois nobres são
negandocom essaatitude a sua própria marginalização, ou entãoinvocam e prevêem as imagens daquelas sexualidades atormentadas, exuberantes, <<periféricas>>,
segundo
o fim de um regime que não lhes garante mais uma posição privilegiada. a definição de Foucault; são o reflexo de uma degradação humilhante que denuncia
Quando o marquês escreve à mulher: <<Acrediteque demos espectáculo suficiente a verdadeira substância da sua relação com o mundo: a dificuldade das relações fami-
no Delfinado e na Provença. Quando Valente me registou nos seusarquivos ao lado liares (Mirabeau, na sequência da fúria do pai, que conseguiu diversos mandatos de
de Mandrin>>s7,apercebemo-nos de que a desonra se abatera sobre toda uma família. prisão contra ele e se recusa a ajuda-lo nas suas dificuldades financeiras; jade sis-
A degradaçãoé tornada pública como um escândalosocial: de qualquer modo, é tematicamente perseguido pelos familiares chicaneiros da mulher) são a expressão
vivida como uma forma de banditismo. do azedume das relações sociais entre estes grupos restritos. <<Porexemplo, é nítido
O trajecto desta decadência apresentaparalelismos quc M. Vovelle sublinha com que a insistência obsessivano incesto em Z,esProspérífésd vice e em Z,eRfdeízu
eficácia. Para estes dois nobres, o seu estado começa por ser afectado pela catástrofe revê não pode ter outro significado nem outras funções senão exprimir a impossibi-
económica. Sade não consegue administrar correctamente as suas terras: enquanto lidade de uma integração serena.>>"
em 1769 o scu rendimento é de 13 329 /ívres, passados vinte anos não ultrapassa as Ao descrever a crueldade e a serenidade do libertino, o marquês leva-nos a pen-
14 425. <(Estaestagnação, num período em que os rendimentos vão aumentando pro- sar naquilo a que recorrem todos os que ocupam um cargo, sobretudo um cargo
gressivamenteum pouco por todo o lado, é já um prenúncio de dcclínio>>s'.Para político. Isolado, caído na degradaçãosexual, o libertino (a justiça teve de intervir
Mirabeau, a falência é ainda mais notória. Com um rendimento anual de 27 000 por diversas vezesdevido às violências cometidas sobre mulheres ou jovens, em
/ivres, entre 1772 e 1774 o conde consegue acumular dívidas no montante de 161 116 1768, 1774, 1775) pode enveredarpela descrição das motivações do carrascos'. Não
/lyres59.A desordem na propriedade fundiária é algo de exemplar: os crimes flores- atingirá a <<doença
social>>o seu auge naquelamanhã de 27 de Junho de 1772
tais multiplicam-se, bem como os processos entre a comunidade da aldeia e o senhor. quando jade, fustigado por prostitutas e sodomizado pelo seu criado, escarnecendo
<<Estanobreza perdulária, espoliadora e fútil dá uma imagem das mais mesquinhas do seu próprio disfarce, se volta para Latour -- seu criado chamando-lhe <<Senhor
da sua própria classe, sacrificando todos os seus haveres com os prazeres mundanos. Marques>>64?
São as obrigações da do/ce vf/a. ..>>óo
6i M. Delon, «De Thérése philosophe à la philosophie dana le boudoir: la plane de la philosophie>>
Romanistiche Zeitschrift Jür Literaturgeschichte, Cahiers d'histoire des iittéralures rornanes (\983)
5óCasosjudiciais de Carré, op. ci/., pp. 170-71, 298-308. 1-2, PP.76-88.
57Sade, <<Correspondance», in Oeuvres com/P/ares,cit., pp. 84-85. sz ]. R.ustin, La vice à la made. Ettide sur [e Tomar jrariçais dons !a premiàre ntoitié dt{ xvlll' siêcle
58Vovelle, Sede,Self/zeurde ví//age, cit. p. 36. Ophrys, Paris, 1979, pp. 239-240
w Mémoire à consultor et consultatiorts tour Madame !a Colntessede Mirabeau, ed. 11.B. Monnet, A.ix, 1783. ó3Cfr. G. Lely, Vle du .IVarquísde Sede,J. J. Pauvert aux ed. Garniers, Paris, 1984, pp. 170-175
õoVovelle, Sac/e,Seignear de ví//age, cit., p. 36. M Ibidem.

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l

Ora, quando a vida da corte no século xvlll se torna menos faustosa, as relações
Nesta medida, a literatura <<sádicn>
é uma forma de negação:ao descreveras
entre o Estado e a nobreza pendem para a deterioração. Cada vez mais criticados e
engrenagens do poder, oferece a possibilidade de as bloquear. Para Mirabeau, a degra-
contestados, os bem-nascidos não dispõem de instrumentos oficiais para a sua pró-
dação, seguida do divórcio da nobreza, vingadas na sua rebelião contra a ordem, assu
pria defesa,a suacoesão,o seupoder enquantogrupo solidário e unido, e têm de se
mem um aspecto mais político, mas não menos violento. A partir de 1776, passaa
sujeitar à benevolência protectora do rei que não pode ocultar as diferenças vigen-
atacar o regime da monarquia absoluta e intitula-o <<despotismoque não é uma forma
tes no âmbito do grupo. E Tocqueville observa entãoa divisão crescente<<entre
os
de governo. .. se o fosse, seria um latrocínio criminoso contra o qual todos os homens
enobrecidos e os nobres de longa data, entre os aristocratas ricos e os bem-nascidos,
se deveriam unir>>ós.
cada vez mais numerosos, que um pouco por toda a parte iam ficando mais pobres
Em face destes retratos, ficamos com a impressão de uma cisão vivida pela nobreza
na proporção exacta da sua perda de poder>>ó7, sem que uma só instituição pudesse
e a ela imposta. No entanto,todos são nobres, reivindicam o seu próprio estadoe reivindicar a possibilidade de uma estrutura para a nobreza, a fim de Ihe assegurar
por isso mesmo nos impedem de apresentar um quadro verdadeiro: o retrato do nobre
uma coerência política em face das críticas, cada vez mais violentas a partir de 1720.
torna-se irrealizável. Ora, nesta realidade incontestável, todos se consideram <<bem-
É possível distinguir uma unidade da ordem nestas personagenscom tempel'a-
.nascidos>>
porque são também o produto de um discurso ideológico que os une, os
mentos tão opostos, destinos tão diversos, em situações sociais e sobretudo econó-
identifica, garantindo-lhesum nível de superioridade,justificando-lhes o passado,o micas tão diferentes?
presente e os tempos que hão-de vir.
Efectivamente, o nobre torna-se perceptível, compreensível, se inserido de novo
Mas basta que os defensores de semelhante discurso mudem ou que as verdades
num contexto de relaçõesinteractivasentre o real e o imaginário, a teoria e a prá-
já consideradasinabaláveise incontestáveissejam postasem causa,e eis entãoque tica. Por exemplo, se é verdade que existe um estilo de vida aristocrático, unificante,
a heterogeneidade desmascarada da Segunda Ordem revela as profundas clivagens
reconhecido, os percursos biográficos são bastante heterogéneos. De igual modo, se
desta classe e projecta uma nova luz sobre os destinos opostos da nobreza.
existe um pensamento que procura atribuir finalmente à ordem a sua homogeneidade,
Talvez seja possível sustentar que este <<esmiuçarnão se encontra necessariamente
os nobres estão muito longe de chegar a um consenso sobre os valores que os devem
ligado ao século xvm,,. É já indiscutível a multiplicidade das condições nobiliárqui-
unir. Em síntese,não é possível chegar por uma via a uma descriçãoobjectiva dos
cas no século xvl e depois no século xvn. Uma crise de identidade e de legitimidade
da nobreza não é certamente um fenómeno novo. Entre 1560 e 1650, <<anobreza duvida usos quotidianos em contraste com a realidade subjectiva de um discurso ideológico.
Pelo contrário, o nobre toma-se compreensível através de uma interacção contras
de si própria, procura-se, define-se para se garantir, encerra-se numa pureza ilusória,
cante entre as suas relações sociais, que possuem um código próprio e se integram
atém-sea símbolos antiquados... sendo simultaneamenteincapaz de criar uma dou-
num sistema de valores e de ideias que.ele aplica, adopta ou utiliza. O período de
trina e uma organizaçãopolítica. EnquantoIhe vai escapandoa competênciaadmi
grande reflexão, que surge por alturas de 1720, impõe-se desde logo aos bem-nasci-
nistrativa. Enquanto também, o seu prestígio se mantém imerso nas comparações com
dos no âmbito de uma profunda mudançaintelectual e, mais concretamente,como
o resto da sociedade. Enquanto detém sempre e em todo o lado grossas fatias do poder.
um período de importantes alterações ao nível das percepções culturais dos fenóme-
Enquanto a sua força material conserva a solidez, se não se reforça mesmo>>"
nos sociais, levando a uma transformação radical dos valores de identificação e de
Tudo isto se explica em grande parte com a fragmentação da nobreza no fim das
diferenciação no topo da sociedade e redundando numa nova concepção de identi
guerras civis e da fronda. Afastada do poder, transforma-se no grupo mais mimado
dade nobiliárquica.
e protegido nos seus estatutos; afastada dos negócios, reaproxima-se da pessoa do
Por isso importa reflectir sobre a forma e a substânciado discurso que tende a
rei; mantida à distância das decisões, impõe um estilo de vida que parte do conjunto
descrever, a dar um nome, a definir, a reconhecer o nobre. Importa também saber
do reino. Os múltiplos destinos dos nobres eram sublimados por este ponto de refe-
quem escreve a respeito do nobre - ele próprio ou os plebeus? quem tem interesse
rência comum: a corte, de onde provinham as modas a seguir, os comportamentos a
na homogeneizaçãoda SegundaOrdem no âmbito de um discurso que visa a cons-
adoptar, a copiar, a imitar. Todavia, a nobreza não tinha representaçãopolítica. A corte
trução de um sistema de valores comuns, quem está interessado em mover uma série
não podia ser o local adequadoà elaboração de um discurso ideológico de modo a
unificar a nobrezano âmbito de um sistemade reivindicaçõescoerentes.De facto, de críticas que apresentamo nobre como uma personagemcom características (psi-
cológicas, físicas, morais e culturais) de conotações negativas.
nenhuma instituição da monarquia apresenta oficialmente o programa político da
Por ouu'as palavras, é oportuno interrogarmo-nos sobre os objectivos prossegui-
Segunda Ordem. Mesmo que os Parlamentos sejam constituídos sobretudo por nobres,
dos por aquelesa quem se deve a produçãodos critérios de qualificação, por força
eles nunca falam em nome do grupo enquanto tal. Não encontramos em França uma
da posiçãoque detêm na sociedadee que se exprimem através do subterfúgio da lite-
Câmara dos Lordes como em Inglaterra, nem uma aristocracia organizadacomo em
ratura, do teatro, da imprensa,dos salõese dos textos políticos e filosóficos entre
Veneza, capaz de se eleger porta-voz dos interesses de todo o grupo 1720 e 1770

õsMirabeau, Essas szír /e despofísme, Lecomte et Pougin, Paria, 1835 (reed.), p. 72.
õ7 A. de Tocqueville, l,' arlcíen réglme ef ]a Révo/ /íopz, ]dées Ga]]imard, Paras, ]967, p. 155 (trad
6F. Billacois, <(Lacrise de la noblesse européenne.1560-1650. Une mise au point>>,Rev e d'Hls/olhe
it. Z.'a/lfíco regime e la rival zíone, Rizzoli, Melão, 1981)
A/oderíle ef Conremporí7íne,XXlll (Abr.-Jun. 1976), pp. 258-277.

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Durante estes cinquenta anos, o nobre ocupa o centro de uma vasta reflexão que Esta comparação permite, de igual modo, compreender melhor a subtileza de uma
renova, em parte, o pensamento político e os fundamentos sociais na Europa. Aquele construção intelectual que consiste, por um lado, na elaboração do J-etratodo homem
vento de reforma intelectual que sopra agora no continente reveste também, em nome iluminado, um homem novo, uma personagemde referência, nascido dos modelos
dos novos valores,o papel e a função tradicional da aristocracia. existentes,nobrese plebeus,exemplosvivos dc um espírito novo; e, por outro, no
Os homens do Iluminismo deixaram de ver o nobre como um ser biologicamente esboçodc um contra-retrato,o do nobre sobrecarregadode dívidas, figura desacre-
superior, socialmente privilegiado pelo berço, publicamente protegido pelo simples ditada de uma realidade social a esquecer, o oposto exacto do primeiro
facto de pertencera uma estirpede ascendentes
mais ou menosprestigiosos.De Vai-se então corporizando, no discurso crítico do Iluminismo, a imagem de um
Lisboa a Moscovo, vai-se preparandouma nova linguagem política que tenta redefinir nobre ocioso, inútil para a economia do país, libertino nos seus costumes, desdenhoso
e reordenar uma hierarquia social assentenoutros valores, diversos dos do sistema e altivo quando é rico, um parasita para todos quando é demasiado pobre, ignorante
nobiliárquico. porque teme a audácia dos filósofos, cobarde porque a Guerra dos Sete Anos reve-
Ao berço antepõe-seo mérito, qualidade adquirida através de uma longa apren lou a existência dc uma nobreza com frequência mal preparada para o combate. Claro
dizagem, simbolizado por uma subida profissional, recompensado pela obtenção de que não existe este nobre demasiadorico ou demasiado pobre, inculto ou então mer-
uma certa abastança. Em vez da coragem, da ousadia, dos feitos militares, dá-se prio- gulhado na luxúria. .. Todavia, a sua descrição funciona como uma das engrenagens
ridade à virtude do homem equilibrado, fusão de cultura variada, sabedoria tempe- do mecanismo ideológico manobrado pelos homens do Iluminismo a fim de poder
rada e razão, que ele utiliza conscientemente nas actividades do seu espírito. Ao ]-es- eliminar um sistemasocial no seu todo. Este tnecanismoserá tanto mais eficaz na
pcito da tradição e da ordem estabelecida na continuidade histórica são preferidas a medida em que remete para uma realidade social visível por todos, em que os exces-
vontade reformadora e a obtenção de uma igualdade natural entre todos os homens. sos, os defeitos, as cóleras, a miséria ou a delinquência dc uma parte da nobreza não
Defendendo-sedeste modo, o Homem do Iluminismo surge como um modelo são apenas reais e abundantes, um pouco por todas as regiões, mas sobretudo con-
oposto ao retrato do nobre típico. isso não impede, evidentemente, que os nobres tados. aumentados,ou mesmo inventados em diversos textos polémicos, acabando
participem,a título individual, nestadinâmica esclarecida,que estejampor vezesna por ser consideradospela opinião pública como um facto tipicamentenobiliário.
própria origem da edificação deste homem novo. Quanto aos nobres que possuem qualidades que a nova corrente filosófica tende
Daniel Roche comparou diversos níveis de participação na elaboração desta nova a exaltar, o seu destino pessoalsó confirma que os novos valores atraem os mais
figura. Há os que podem ser considerados como consumidores: os leitores nobres, sem capazes de todas as classese, se possível, que sejam bem-nascidos; em nenhum caso,
partilharem necessariamentedos ideais dos filósofos, conhecem-nos e reúnem-nos com tal destino indica que a nobreza e o sistema de valores estejam na origem do seu
frequência nas suasbibliotecas sob a forma de textos históricos ou literâ'ios. Dc um êxito, que, ao invés, em tudo se aproxima da prudência sábia e da respeitabilidade
lado, <<passa
para o primeiro plano toda uma reflexão nova sobre a sociedade e os seus virtuosa próprias da burguesia estabelecida.
modos de govemo, atravésda reforma insidiosa do pensamentohistórico próprio do O nobre vê-se deste modo confrontado com um desafio ideológico cuja impor
Iluminismo, um pensamento
ambíguonas suasfinalidadessociaise nos seusobjecti tância surge com maior clareza:ou ele, eln respostaa estecontra-retrato,apresenta
vos reformadores»; do outro, <<aleitura dos contos de Voltaire ou dos romances de uma nova imagem de si mesmo, retoma a procura das anteriores qualidades que Ihe
Rousseau, que. se saiba, bastante fiéis a um ideal de comportamento aristocrático, é conferem esplendor, opondo-se com sagacidade à paixão pela novidade, ao risco de
reveladora do triunfo das novas preferências e das transformações do gosto colectivo>>ó8. mudança; ou então elabora um sistema de valores radicalmente inovadores. Tanto
Muito mais empenhadose comprometidosnesta obra de revisão crítica do sis- num casocomo no outro, colocando-sea favor ou contra o discurso iluminado, ele
tema estão aqueles que escrevem,c]andestinamenteou não, ou então que fa]am de aceita submeter-sea uma nova visão política que confere legitimidade a um novo
modo mais ou menos provocatório nos salões. Encontramoso arquétipo no conven- grupo social assente em valores como a virtude, a razão, o mérito e os direitos natu-
tículo de d'Holbach. O <<grande
barão>>
constitui um exemplode integraçãonobiliár rais e que seopõe à legitimidade da entidade nobiliárquica baseadana raça, na ordem
quina. Rico, consegue que o filho mais velho entre para o Parlamento como conse absolutista, na estirpe, na aparência.
Iheiro, casa a filha com um aristocrata,capitão dos dragões,e obtém para o filho Este desafio cultural constitui uma das formas de tensão reveladoras da luta pela
mais novo o comando de uma companhia no regimento de Schonberg. Socialmente, posse dos meios de legitimação social e pelo controlo dos bens de produção simbó-
assume um papel de destaqueno seio da mais alta sociedadeda época. Intelectualmente, lica. destinados a tornar comuns e incontestáveis os sinais de diferenciação na Europa
é manifesta a diferença: <<Asobras do mestre são pródigas em protestos contra a auto- do século xvlll. Se virmos bem, esta luta entre duas elites não é menos renhida do
ridade iégia, a tirania, a supremaciada aristocracia, o fanatismo da Igreja... Esta que a que se trava paralelamente,no plano económico, com vista à apropriação dos
comparação entre as atitudes na prática e a ideologia permite-nos questionar o alcance meios de produção dos bens materiais.
social das ideias radicais e a posição dos intelectuais em face da mudança.>>ó9 O movimento iluminista, ao monopolizar os novos valores promovidos a sistema
positivo e a índices simbólicos de predomínio social, obrigava a nobreza a uma rede-
ó8D. Roche,Z,esre'pzló/Irai/zsdes/er//-es.Ge/l.çde c&{///'e czl/xvzz/' .çí.àc/e,
Fayard,Paris, 1988,p. 99. finição, a uma rejustificação, e por último provocava um confronto de classe de onde
õ9/bidé/7t, p. 130. o nobre saía praticamente vencido, e em parte também desacreditado

52 53
r

Não sabendoou não podendoeliminar o aparecimentode um retrato-tipo, por sem trabalhar>>71.


E o abade conclui: <(Tomei o desprezo e ficamna indigêncial Quereis
certo fiel nos seus defeitos por vezes ainda mais cruel porque pintado por algum ser considerados e serdes nulidadesl Vítimas eternas do preconceito que vos matal>>':
nobre --, sem conseguir impor a imagem de um novo aristocrata seguro e fortalecido A crítica é subtil, dado consistir em denunciar, através da indigência de uma certa
pela sua própria legitimidade confirmada ou consolidada, a nobreza vacilava nos seus nobreza,a base do código moral e político da SegundaOrdem, único responsável
próprios alicerces. pelo seudepauperamento.
De resto,o próprio frontispício da obra do abadeCoyer
Resta-nosexplicar como e por que motivo foi a nobreza dominada no plano cul- mostra um gentil-homem de perfil, com um pergaminho onde se enumeram todos os
tural e assim desacreditada no ideológicoXResta-nos descobrir o destino da legiti- títulos que não Ihe trouxeram qualquer vantagem.
mação que a nobreza, que já não ficava indiferente em face das críticas que Ihe eram Em ltália, o abade Coyer ataca uma situação em que <<tudonão passa de um pro
levantadas, apresentou em sintonia e em contraste com o pensamento do Iluminismo, liferar de barões,condes,marquesese príncipes... São tantos que não ser nada é
julgando com frequência que, ao adaptar-se formalmente a um discurso novo, pudesse quase um sinal de distinção>73. Metodicamente, o abade Coyer denuncia e desmonta
mascarar o conservadorismo de valores ancestrais. A polémica que se gera no âmago o sistema nobiliário com os seus símbolos, os seus preconceitos, o seu hermetismo,
do pel'iodo iluminista, entre o abade Coyer e o cavaleiro d'Arcq, define claramente os seus arcaísmos que, a longo prazo, paralisam o dinamismo da sociedade. Lembra,
os termos desta luta pela classificação. em tom irónico, <<osprivilégios, a hereditariedade dos antepassados, a primeira sílaba
Por força de se citar Z,a /VoZ)/esseCommerçanre e Z,a JVoó/es.çeA/í/frafre, as duas servida como entrada para estender o nome, o absurdo da dispensa de pagamento da
obras que, entre 1756 e 1760, alimentaram uma das mais célebres polémicas do faí//e74... os exames e as humilhações infligidos aos burgueses e à gente trabalha-
século, acabaram por perder de vista as vidas do abade Coyer e do cavaleiro d'Arcq, dora, a possibilidadede adquirir mais conhecimentosnas universidadesem pouco
bem como as suasobras integrais. Contudo, elas lançam uma nova luz sobre o debate tempo»''
do papel do nobre no pensamentodo Iluminismo. O abade Coyer narra a história de Chinki, um camponês esperto, que assiste à
Perfilam-se por detrás do certame intelectual duas biografias que esclarecem bem criação, pela mão do soberano,dos nobres que <<começaram
a imaginar que o seu
as divergências, as contradições e as surpresasque esta época nos traz. Um, Coyer, sangue era mais puro, estava mais próximo das grandes virtudes do que o dos outros
é um plebeu, preceptor do príncipe da Turena, desfrutando de uma existência con- homens... e que transmitia o próprio privilégio a cada geração>>. Indo à cidade pro-
fortável que Ihe é garantidaa título vitalício. Capelão-morda Cavalariaa partir de curar trabalho para os seus dois filhos, apercebe-sede que o seu rapaz não pode ser
1743, é recebido na Academia Real de Londres em 1768, na Academia da Arcádia
padeiro, alfaiate, sapateiro, vendedor de azeite, ferreiro e tudo o mais, muito sim-
em Romã e, por último, na Academia de Nancy. Acarinhado e protegido pelos gran- plesmenteporque Chinki é um agricultor e porque um operário não é avaliado pelo
des, a sua obra, durante muito tempo subvalorizada,apresentacom invulgar vigor que sabe fazer mas pelo seu nascimento. <<Ofilho do patrão pode herdar a capaci-
uma crítica muito viva à SegundaOrdem.. . O outro é nobre, filho natural do conde dade do pai?», pergunta Chinki. Na opinião do abade Coyer, o preconceito do nas-
de Tolosa, protegido da duquesa de Orleães. Obtém o comando de uma companhia cimento, típico dos nobres, ao misturar-se com o modo de funcionamento das cor-
dc cavalaria e tem um comportamento brilhante em combate, onde conquista a Cruz porações de ofícios, bloqueia o mecanismo e o sistema de recrutamento das profissões
de São Luís. Todavia, em 1748, abandona a carreira militar e envereda pela das letras. bem como a renovação frutuosa dos artesãos.A polémica em relação a semelhante
Casacom uma <<rapariga>>, mas a sua tendência para o esbanjamento acaba por envolvê- sistemade recrutamento no seio das profissões permite ao abade Coyer denunciar a
lo num desvio de dinheiro e uma carta réguaimpõe-lhc o exílio em Tulle. Por decreto transmissão difusa do modelo aristocrático ao mundo do trabalho, a repetição colectiva
de 6 de Maio de 1785 vê, por fim, ser-lhe proibido o uso do nome d'Arcq. Uma outra de práticas estéreis que se propagam perigosamente da nobreza às outras classes.
carta régia fixa-lhe a residência em Montauban, onde parece de momento tornar-se Mas não basta criticar a nobreza, é preciso coligir tudo aquilo que foi contami
ajuizado... O paladino da causanobiliárquica, defensorda honra e da virtude dos nado na sociedade,dos preconceitos aos costumes. impõe-se reformar todo o con-
aristocratas,vê-se sem dinheiro, como nunca na vida, malcasado, e também sem o
junto das corporações,viciadas no preconceito do berço e cercadaspela regra dos
direito de usar os seus títulos, exilado, degradado.
privilégios, em nome de uma nova filosofia, em nome dos novos valores. Na sua
O conhecimento das obras destas duas personagens é muito rico em ensinamentos. obra Bagaíe//es A/ora/es, o abade Coyer confirma, em nome da virtude, dos talentos
A leitura da Z,a /Vob/esse Commerça/zre leva-nos a pensar que o abade Coyer gosta e da natureza, o seu esforço de contestação do sistema nobiliário: <<Esteadolescente
de se mostrar reservado apenas em relação à natureza ociosa e pobre. As palavras e vegetou vinte anos; o jogo, os espectáculos, as roupas, os cães, uma amante preen
as expressõesnão parecem, na verdade, duras ao retratar esta classe miserável que
<<espalhaa indigência e a esterilidade sobre tudo o que a rodein>70.São desacredita-
dos <<todosaquelesque se preocupamcom o custo dos alimentos nas cidades,os 7i Abade Coyer, Trai.s plêces sur ce/fe qtíesríozz,/es nob/es doíve/7r-í/s co/n/7zercer?Pauis,1758, p. 18.
abastados obtusos quc não fazem nada nem por si nem pelo Estado, os gentis-homens 72Abade Coyer, Zn Aros/esseCo/amarga/zre,cit., p. 214
71Abade Coyer, Voyage d'/ra/íe er de .17o//a/zde, Pauis, 1755, p. 253
que passam o tempo a contar os seus antepassados, os ociosos que querem singrar
74Trata-se da /a///e royaZe, um imposto directo que entrava para os cofres do rei, e pago sobretudo
pelos plebeus. (N.r.)
70Abade Coyer, Z,a .Nób/esseCo/zzmerçcz/zre,
Londres, 1756, p. 82. 75Abade Coyer, C/zi/zki, .r/isfoire coc/zinc/zinoíse, Londres, 1768, p. 19.

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cheramtodo o seutempo.O pai morre,todosse retiram:o filho torna-seo único O que poderia respondero cavaleiro d'Arcq ao que é de considerar, apropriada-
juiz...>>7óNão estamosperante um caso em que, no fim das peripécias de Chinki, a mente, um ultimato? A sua argumentaçãode defesa do nobre gira em torno de um
eliminação da nobreza nas regiões rurais e a redistribuição das terras pelos agricul- conceito revelador da inquietação de um nobre em face do próprio estatuto e da sua
tores sigam a par e passo o desaparecimentodas ordens e das corporações. vontade de o justificar, de Ihe conferir uma representaçãocoerente,positiva. Nem
Este esboço é tanto mais plausível a partir do momento em que o abade indica obtuso, nem agarradode modo ridículo a um passadomais ou menos glorioso, o
uma solução coerente: a substituição da nobreza pelo novo grupo dos comerciantes. cavaleiro d'Arcq não deixa de compreender as bases de algumas críticas do abade
Sc existe nobreza, ela encontra-se, sem dúvida, nos negócios. <<Masuma coisa gos- Coyer; contudo, transforma-as noutras tantas qualidades nobres. Mesmo assim, cai
taria de confessar: enquanto os jogos, os prazeres, as despesas absurdas, o fausto, a nulba armadilha: ao dissertar sobre o valor de uma nobreza pobre, sobre o perigo de
inuti[idade mantiverem um ar de nobreza,não haverá lugar parao comércio. Se joga, uma confusão entre as ordens e sobre os excessos do pensamento filosófico, aceita
é somente após o compromisso; se se abandona ao prazer, depois virá a fadiga; se na essência, se não ]he confere mesmo maior consistência, todo o raciocínio do abade
gasta, fá-lo com sabedoria; se dá, é porque já pagou o que devia.>>77
Lendo a obra na Coyer, não contestanto a veracidade das suas observações, mas limitando-se a criei
sua totalidade, ressalta um conceito: a vocação do comerciante é o único título de car as soluções propostas para fazer sair a nobreza das suas dificuldades.
nobreza digno de ser reconhecido, enquanto a velha aristocracia estáem perigo e tem Com efeito, em vez de contradizer o abade Coyer sobre o estado de pobreza da
a obrigação de adoptar o mais depressa possível uma nova deontologia se não qui- Segunda Ordem, o cavaleiro d'Arcq vê nela um título de glória. <<Julgo-atanto mais
ser ser marginalizada. honrosn>, confessa o herói do Rama/z d# Jollr, <<porquenesse caso aquele que se
E com maior clareza, <<ocomércio poderia não dignificar a nobreza, mas a nobreza deixa chegar a semelhanteestado não deve envergonhar-se dele... também a pros'
necessita muito dele>>. peridade que se alcançava com o comércio não parece fazer sair da obscuridade aque-
Não nos surpreenderáque o abadeCoyer, na sua procura de um modelo de les que a adquirem unicamente para se entregarem à mais absoluta ociosidade. Entre
sociedade, tenha ido estudar para Jnglaterra. Descobre em Londres o valor da <<bur- dois partidos, não é melhor seguir aquele que conduz à glória, à verdade sem opu-
guesia honesta, este quinhão tão precioso das nações que é preciso restabelecer>>'8. lência, mas também sem riscos, com vista à probidade e seguindo o caminho de uma
Também a nobreza é digna de louvor porque se sabe manter em termos financei- liberdade honesta e natural, do que seguir aquele que retira esta liberdade tão ino-
ros: são a riqueza e a sua capacidadede integração económicaque Ihe conferem cente, que raramente leva à riqueza sem embotar a delicadeza, e em que nem sem
valor... <<Sca nobreza inglesa possui muitos meios para se multiplicar e perpetuar, pre é possível desfrutar desta riqueza sem perturbações e sem amargura? Entre ser-
possui também muitos outros para não cair na pobreza ou sair dela. O comércio vir a própria pátria ou ignora-la, um homem com cabeça não hesitará.>>;'
abre-se-lhe em cada época, em todos os seus ramos, e nem um só deles consegue Sucede, pois, que nobre e militar são sinónimos. O cavaleiro d'Arcq defende o
ferir a sua susceptibilidade. Enquanto um Lorde pode gerir os negócios públicos depauperamentoda nobreza porque, na sua opinião, dele garante um compromisso
da Câmara dos Lordes, um seu irmão encarrega-se de uma operação comercial sem militar único e o verdadeiro destino de cada aristocrata. Ê preciso sentir um desprezo
se deixar intimidar pela palavra dérogea/zce7W,porque isso não existe.» Neste sen- constantepela riqueza, e tambémpela vida, e não desejarsenãoa glória. E preciso
tido, o abade Coyer viu a aristocracia inglesa como um ponto de chegada de uma que, para além das muitas virtudes guerreiras, a modéstia, a doçura, a humanidade,
ascensãosocial que considera possível para todos <<oshomens capazes,sejam eles a candura, a moderação se Ihe venham também juntar>>s2
quem forem>>,médicos, jurisconsultos, professoresda universidade, pessoasem O cavaleiro d'Arcq capta bem a subtileza do ataque do abadeCoyer: o que a
condições de reunir honras e riqueza devido aos seus dotes que não passarãodes- filosofia do Iluminismo introduz no debatepolítico é a importância do trabalho,
percebidos ao rei. e não da ordem, na classificação social. Ora, a actividade profissional vista como
Aquilo que o abadeCoyer imagina é, na essência,a substituiçãopura e simples critério de diferenciaçãoretira prestígio à nobreza.<<Encontramos então uma
da nobreza antiga por uma nova aristocracia do talento, do mérito. <<Oreinado de Nobreza Militar. uma Nobreza Comerciante, uma Nobreza Agrícola... resta criar
Luís, o Grande, foi o século do génio e das conquistas. Que o reinado de Luís, uma Nobreza manufactureira. e será tudo Nobreza; é o mesmo que dizer que ela
o Bem-Amado, seja o da filosofia, do comércio e da felicidade.>>8' Ou a antiga nobreza deixará de existir...>>O cavaleiro atinge perfeitamenteo objectivo da crítica do
abandona as suas quimeras e adopta os valores plebeus do grupo dos comerciantes, abade Coyer e a sua carga desestabilizadora. Se nobre e militar são uma e a mesma
ou então, marginalizada, atirada para a via do empobrecimento, perigosa para os cos- coisa, então é uma questão de combater todos aqueles que querem suscitar a con-
tumes, deixa de ter razão de existir. fusão dos papéis. A conservação dos estatutos honorários, das funções simbólicas
e dos sinais de privilégio são os meios de prevenção contra as ideias novas que
se anunciam no século. O princípio deve ser a superioridade da condição do nobre
7óAbade Coyer, .Baga/e//es7Woríz/es,
Londres, 1754, p. 85. em relação à dos outros, pois esta desigualdade protege-o e valoriza-o: <<OEstado
77Abade Coyer, Z,aÀXob/e.sse
C0/7zmerça/zre,
cit., pp. 119-120.
78 Abade Coyer, Obsewa//0/7.ç .sur /'Áng/e/erre pczr am voyageur, Paria, 1779, p. 17.
7pPerdado título nobiliário pelo exercíciode profissãoincompatível com ele. (N.T) 81Cavaleiro d'Arcq, Z,e/'o/;ia/l du ./oilr, tour ser ir à /'/z/sz'ocredu slêc//e, Londres, 1754, pp. 63-65
BO
Abade Coyer, Z,aÀXob/esse
com/terça/z/e, cit., p. 214. B2//9íde/zt,p. 98.

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começa a desagregar-sea partir do momento em que os papéis deixam de se distin nesta ou naquela família, nesta ou naquela obra, nesta ou naquela píêce não remetem
guir uns dos outros, quando se misturam, se confundem e absorvem mutuamente.>> para uma realidade palpável, acabandopor distorcer a imagem do nobre parasita.
A mobilidade social, apenaspossível através do ofício exercido e do acréscimo Em compensação, se esta personagem do nobre ridicularizado não é totalmente
do património ou, nessecaso, o inelutável empobrecimento, é outro perigo denunciado verdadeira, subsistea pergunta: por que não consegue a nobreza reagir a estes ata-
pelo Cavaleiro. Não basta manter esta desigualdade das origens, <(éigualmente peri- ques por vezes tão grosseiros? Possui, apesar de tudo, os meios financeiros para pro-
goso.. . os cidadãos inferiores ascenderem ao nível superior... ou que a classe supe- duzir e divulgar em torno de si uma imagem negativa através da sua literatura, do
rior se avilte, descendo até à inferior>>, <<senãocair-se-á igualmente numa confusão seu teatro. Por que não o quer ou não o pode fazer? Não estará, apesarde tudo, tão
de funções e o Estado irá também parar à beira do abismo>83. hipnotizada por esteespírito novo que sopraem toda a Europa a ponto de renegar
Apesar de as condenar, o cavaleiro d'Arcq capta com subtileza as transformações tudo aquilo que o transforma numa classe privilegiada... Ou então, mais simples-
sociais que acabarãopor levar a uma reclassificação total das elites, através da antro mente, não se terá dado conta do perigo? Ou talvez não o visse como um perigo?
dução de um novo código de respeitabilidade, já não baseado no nascimento mas no A Espanha proporciona um laboratório de observações pouco estudadas e, toda-
êxito profissional. via. ricas em ensinamentos.O movimento iluminista na Península, tal como no resto
Em última instância, e tudo levando a crer que se deixou convencer pelos argu- da Europa, procura exprimir esta necessidadede reforma e de renovação da nobreza.
mentosdo abade,não ataca nem a substâncianem a forma, mas atribui as culpas O debate intelectual cedo define as condições para essa mudança. Paralelamente a
àquelesque suscitam estas críticas antinobreza porque frustrados, como se qualquer estas reflexões de alto nível, nasceum discurso satírico divulgado em narrativas, na
contestaçãode uma ordem estabelecidafosse, quem sabe, obra de gente que se vê imprensa, que procura desacreditar totalmente, através do ridículo e da crítica sar-
excluída de todo e qualquer privilégio: <'Um homem qualquer, de origens obscuras, cástica, os bem-nascidos de Espanta.
com uma ambição secreta,um carácter reprimido... de repente, levanta a voz com Aos olhos de alguns pensadores,a natureza está enferma. A excessiva libertina-
altivez e exclama: sou filósofo. Mas, logo de seguida, outorga-se o direito de des gem, a irreligiosidade e o ateísmo, as despesas desmesuradas, o aviltamento são sin-
prezar a grandeza,de insultar os grandes... julga encobrir a sua imensa inutilidade tomas múltiplos que não enganam a respeito da incurabilidade do mal. Pior ainda, o
sob o ar pensativo do reformador...)>84Na realidade, <o verdadeiro espírito filosó- vírus é contagioso e propaga-se de alto a baixo na escala social, durante todo o século,
fico não pretende reduzir todas as diversas condições a uma espécie de escravatura, gangrenando e paralisando a sociedade espanhola. Os expoentes da Espanta ilumi-
nem inseri-las naquele grau de igualdade como desejam alguns imprudentes e que a nada. às vezes nobres. são os únicos imunizados contra este mal nacional e não dei-
todos seria prejudicial; quer apenasconsolidar a ordem através de uma subordinação xam de pâr os próprios contemporâneosde sobreaviso contra a infecção.
oportuna>>. Jovellanos, magistrado em Sevilha, perto de Olavide, fundador do Instituto Asturiano
Com três argumentos,primeiro a defesa da honra do nobre pobre, segundoa de Gijón, depois Ministro da Justiça no reinado de Carlos IV, também nos deixou a
denúncia da confusão entre a ordem e o ofício, a função social e a riqueza, e terceiro sua sátira:
a desqualificação de todos os filósofos que se mostrem cépticos em relação ao papel
da nobreza naquele século, o cavaleiro d'Arcq procura reconstituir uma identidade Que rica vida!
cultural e política para o nobre. Apresenta um retrato ideal: os nobres <<nãoquerem, digna de ttm nobre! Queresqtle resuma?
na verdade, riquezas, se o preço for a sua honra; não querem, de facto, bens materiais, Gozou a vida, jogotl, perdeu a saúde e os betts
se não forem fruto da glória>>8s,são as palavras com que termina Za /VbZ)/esseÀ/i/l/abre. e, sem ter feito sequer as quarenta Primaveras,
No entanto, a sua atitude indica mais uma forma de defesa do que uma vontade de ci anãodo prazer atirou-o pctradentro do sepulcro'"
refutação construtiva da visão do abade Coyer, uma qualquer defesa de uma desor-
dem económica em conclusão penosa, conduzida apenas em nome dos princípios her- A sátira ataca um grupo social que, antes de mais, adopta uma aparência prós
dados do passado, apenas imutáveis e criticáveis, ao que parece, por seres exacerbados pera no modo de vestir ou no aspecto assumido pelo próprio corpo. Escrivães, ensaís-
e excluídosdos privilégios. Trata-sede um modo de argumentaçãoigualmentepos- tas, filósofos, cronistas e pintores procuram deste modo desmascarara fragilidade
sível, mas não de modo a fazer frente ao pensamentoaustero do abade. social de alguns nobres através do espectáculo ridículo que eles mesmos oferecem,
De qualquer modo, a sátira e a caricatura literária do nobre são talvez aquelasque da moda ridícula que seguem ou da sua figura estranha.
trazem maior descrédito à Segunda Ordem, incapaz por si própria de as rebater, virando Para além do exagero, do excesso da sátira, da deformação dos factos, cede-se o
a sátira ideológica e a truculência contra um detractor que resolveu levar o conflito à lugar à crítica motivada que expõe todos os defeitos denunciados.
cena pública da literatura, do teatro ou da imprensa. Também aqui os retratos do nobre Em primeiro lugar, os actuais nobres são comparadoscom os antigos. Trata-se
de um argumento repetido e que vamos encontrar até ao fim do século. <(OsEspanhóis
81Cavaleirod'Arcq, Z,aA/ob/e.çse
.4/////abreou /e Parrlore F'/a/zçais,Paris, 1757, pp. 35-36
B4Cavaleiro d'Arcq, A/e.s/o/sins, Paria, 1756, pp. 286-287. BÓJovellanos, Safira s-ob/"e/a nza/a educacló/z de /a /lob/"eza, publicada e anotada por A. Morei Fatio
B5Cavaleirod'Arcq, Z,a7Vob/es.se
.4/1//cafre,
cit., p. 210. Bibliothêque des Universités du Medi, Pauis, 1899.

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antigos de velha tradição e também os que até aos nossostempos gloriosos se mos- Logicamente, surge aqui um outro tema para os polemistas, tema esse que se
traram durante os passeios, os serões, as campanhas, as batalhas e outras empresas repete e está sempre presenteno seio dos reformadores do século XVlll: a doença,a
difíceis, eram homens vulgares na pujança da sua virilidade... Mas hoje, os nossos sua transmissão, o contágio. Para os autores satíricos espanhóis, o nobre não é somente
jovens senhoresde bigodes finos ou c rrruracos, pequenosbailarinos, são delicados, efeminado ou disforme, é o corruptor que mina o corpo social. Os seusvícios são
afectuosos, persuasivos, inimigos de qualquer forma de ocupação.>>8' contagiosos e estendem-se ao resto dos espanhóis. Também as mulheres contribuem
Este confronto, pouco vantajoso para a nobreza do século xviii, acentua outra ideia para o contágio. Não fala Moratin, em Z,aÁr/e de /ax Ptlfas, daquelas damasde nome
da sátira: o requinte, o narcisismo, a delicadeza tiram virilidade a estes senhoritos. ilustre, <<defraquezas tão mal dissimuladap>, que se entregam ao amor venal? Todos
A degeneração começa pela perda de identidade do sexo: <<Oshomens não se aqueles que estiveram em contacto com esta nobreza são afectados pelos sintomas
reconhecem mais porque se confundem com as mulheres, fazendo do vestuário um do mal que os mergulha na depravação, na inércia, na indecência e na ruína. Segundo
ídolo, do penteado uma ocupação séria, do espelho um conselheiro, da imitação esta percepção imaginativa, quase assume naturalidade o facto de este contágio reves-
um estudo, do bom gosto uma regra, da invenção um mérito, da extravagância um tir o aspecto de <(doençavergonhosn>. A praga da sífilis desempenhao papel sim-
ornamento, e do brasão de 'Peralvilho' um quarto de nobreza.>>88 bólico do núcleo de contágio que se dissemina, destruindo tudo aquilo em que toca
Daí a afirmar-se que a nobreza não passa de um disfarce, que a sua própria legi- Esta libertinagem, este gosto pelas despesasinúteis que a nobreza transmite aos
timidadeé uma mascarada,vai apenasum passoe vários autoresnão hesitamsequer Espanhóis, são com frequência preferidos, de forma exasperante, pela canalha madri-
em dá-lo. Clavijo y Fajardo apercebe-se bem do perigo e ataca aquela parte da nobreza lena, extasiada pelo desejo de imitar a linguagem, as atitudes, os usos, o vestuário
que a opinião pública se apressaraa identificar com toda a ordem. Num grupo que da plebe. Os homens do Iluminismo vilipendiam no /Ma/o nobre aquele aspecto de
se baseia na aparência,todos <(devemescolher o vestuário de acordo com as quali- manchar o próprio nome através da vulgaridade de uma vida de pequenosfurtos,
dadesda própria pessoaou o carácterda própria função,por mais clara que seja a de rixas esquálidas, no limite da delinquência. A arena é o local desta extrema deca-
distinção entre os sujeitos e se evite a confusão adveniente>>89. dência, desta promiscuidade odiosa dos autores satíricos e dos defensores de um pen-
Definição ou confusão... Os dois marcos miliários do repto cultural e social lan samentoiluminadoem Espanha.Um panfletode 1791 denuncia,com um misto de
çado à nobreza do Iluminismo, julgado no seu esforço de classificação com os outros ironia e de violência, a p/aza de foros: <<Quemnão se alheará de ideias sublimes ao
grupos da sociedade, são enunciados com clareza, a partir de 1762, por Clavijo, publi- observar os nossos nobres, mais interessados em apresentar espectáculos bárbaros,
cista e redactor do Pe/txador, grande jornal satírico espanhol. em homenagear os toureiros, em premiar o desespero e a loucura e em proteger o
Mas se o vestuário é o primeiro passo para a degradação, a nudez segue-o e melhor do melhor dos homens mais miseráveis da República?>>'"
acentua também a ideia de uma degeneração da nobreza. O fato não esconde mais O exemplo da Espanha não é único. Em França, em Ttália, uma literatura, uma
o corpo, disfarçando-o; torna-se, ao invés, a exibição de um corpo atingido pela imprensa, um teatro satírico arreliam, classificam, fustigam, ridicularizam o nobre,
<<ausência
de masculinidade>>.
Desacreditaro corpo do nobre,assexuá-lo,signi- acabando por impor a imagem de um ser inútil à sociedade, prejudicial às concep-
fica também recusar-lhe aquele valor que está na origem da SegundaOrdem: a ções do Iluminismo, óbice das reformas necessárias.
transmissão do próprio valor e da própria posição por via da hereditariedade. Mas os nobres estavam dispostos a deixar correr sem reagirem, não eram capa-
Ramírez y Góngora, num romance satírico, descreve apenas a periferia do corpo zes de enfrentar esta batalha dos símbolos e moldar por sua vez o arquétipo de um
do nobre... os seus pés, as orelhas, a estatura, a mão, o coração. Todos atributos aristocrata, garante das virtudes da ordem no seu conjunto? Não podiam dispor, no
corporais que, noutras circunstâncias, se adaptariam melhor à representaçãodo campo da difusão cultural, de redes suficientemente sólidas para o estabelecimento
fascínio feminino. Ridicularizado, atirado para os seus<<extremos>>,
o corpo do nobre do equilíbrio e apresentarao público do século xviil uma imagem mais lisonjeira da
não controla mais a comparaçãocom o do Espanhol são, robusto, forte, alheio a sua essência?Não dispunham de inventividade e criatividade suficientes para atin
semelhante decadência. Este tipo de sátira origina uma inversão dos valores polí- girem, através da reelaboraçãodo nobre-tipo, o topo de uma hierarquia social reor-
ticos; a naturezaregeneraos corpos,conferindo-lhesvigor e virilidade, únicas ganizada e vindoura? Pelo menos, ter-se-ão apercebido de que estavam, a pouco e
patentes verdadeiras de nobreza, enquanto o sangue aristocrático faz murchar e pouco, a ser empurrados para a periferia daquele espaço ideológico onde se definem
desaparecertoda a linfa vital dos corpos descarnadose viciados daquelesnobres os modelos sociais, onde os factores de legitimação construídos de modo subjec-
degenerados. tivo e objectivo são, no final do século xvili, armas políticas apontadas contra eles?
Em face destas críticas, havia três hipotéticos modos de reacção.
Em primeiro lugar, encontramosaquelesque comungam, no todo, dos ataques
BI Don Prece.se,
Etetnelltosde !a Ciellcia contradattzaria, pat'a que !os ct,{ll'ltícicos,pira'ficas,y Madalnitas contra a nobreza. Mesmo que fossem uma minoria, alguns nobres contribuíram não
det NuevoCuro puedaltapi'ettderpor prin.ciciosa bailar tas cotltradallz,cts
por si soi,oso con tas saltas só para o descrédito da sua ordem, mas, por vezes, também o provocaram, pensaram
de sr casa. 1796.
R8Don José Gabriel Clavtjo y Fajardo, P/'czg/7zár/ca
de/ Ze/o y de.sag/-aviode /czsDa/7ia.s,en la imprenta
de los herederosde D. Agustin de Jodevela,Madrid, 1755. 'x' Pan y raras y o/ros pape/es sedícíosasde/hei de/ slg/o xv///, recolhidos e apresentadospor Antonio
B9/bode/7z,pp. 26-27. Elorza, Editorial Ayuso, Madrid, 1971, p. 27.

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mina completamentetodos os sarcasmose que prova, de modo irrefutável, a neces
e manifestaram9'.A sua atitude,e o divórcio que pressupõeem relaçãoà sua ordem,
cidade dos seus privilégios e da sua posição indiscutível no topo da sociedade
merece uma reflexão. Nem todos são propriamente como Sade e Mirabeau, que se
Nem passiva, nem imóvel, nem antiquada, a nobreza pronuncia, por sua vez, um
vêem excluídos ou marginalizados. Alguns abandonamo seu modo antigo de pensar
discurso que confere um novo brilho ao seu brasão neste século de enorme reflexão
com plena consciência, enquanto desfrutam de uma reputaçãoe de rendimentos que sobre o scu estatuto.
lhes asseguram,em ambos os casos, uma posição invejável. Não recorrem forçosa-
Durante todo o século xvnl, uma corrente do pensamentonobiliário dedica-se à
mente ao jogo duplo da ousadia cultural e do respeito pelas convenções sociais. São
conservaçãodaquilo que considera ser o essencial de uma hereditariedadeancestral,
raros aquelesque, por outros motivos, se tomam menosinfluentes no momento oportuno.
adaptando-o a uma retórica moderna. Assim sendo, a elaboração de uma grelha con
O marquêsd'Antonelle é um deles. Rico proprietário fundiário de Arles, oficial
ceptual sem dúvida mais eficaz do que se tenha sido levado a pensardurante o
na reserva, redige vários projectos de reforma atacandoa nobreza, em seu entender
século xlx e parte do século xx fez com que a quase totalidade dos nobres acre-
culpada de uma forma de banditismo medieval. Reflecte, lê, escreve. A partir de
ditasse numa regeneraçãoda ordem e Ihe tenha atribuído pontos de referência sóli
1789, assumeintegralmente as consequênciasdas agitações políticas e sociais, tor-
dos e antigos, reactivados através de uma linguagem inovadora.
nando-se um dos instigadores da revolução na Provença.
André Denyver demonstra que, entre 1560 e 1720, a nobreza imaginou e <<acabou
Mais numerosossão aquelesque, reconhecendoa justeza do discurso teórico do
Iluminismo, ironizam os filósofos e os homens de letras sobre as adversidadesda por acreditar que constituía um grupo à parte, historicamente privilegiado, biológica
mente superior>>93. Atribuindo uma importância desmesurada à hereditariedade e à
própria ordem, se mostram favoráveis a um compromisso social que permitisse a
transmissão genética das características de onde descendiam as diferenças físicas e
criação de um grupo em que os plebeus mais abastados e mais cultos seriam os pares
psicológicas que faziam prova da sua superioridade de <<raçanobre>>de sangue puri
dos nobres mais perspicazes e mais empenhados no processo de modernização eco
ficado, a Segunda Ordem conservou e cultivou uma espécie de racismo. Esta pretensa
nómica do país. Neste caso, estamos perante uma vontade manifestada abertamente
superioridade ia-se firmando cada vez mais à medida que se tomava útil para os nobres
e, por vezes, realizada localmente. Nos salões e nas Academias, há uma elite que se
maioritariamente representativose surgiam entre essa maioria casos de pessoascujo
vai transformando,privilegiando valores como a virtude, o talento e o mérito. Esta
estatuto social estava ameaçado. <(A crença na excelência do sangue das linhagens
associação apresenta-nos a imagem de uma <<Françapossível)>, a das elites influen-
antigas permite efectivamente que uma massade pessoasempobrecidas, desfasadas
ciadas e inspiradas no modelo inglês. Foi possível chegar a um acordo no respeitante
em relação à evolução económica da sua época, conserve um prestígio inesperado.)>04
a algumas regras da vida social, a uma concessão comum iluminada. Todavia, deter-
Boulainvilliers foi, semdúvida, o teórico máximo destaforma de racismo. A misé
minados elementos levam-nos a pensar em algumas divergências, se não mesmo em
ria e os casamentoscom pessoasde condição inferior por parte de inúmeros gentis-
divisões. As práticas religiosas, por exemplo, que variam de acordo com os grupos,
-homens terão provavelmente sido as razões da tentativa de criação, na SegundaOrdem,
parecem indicar concepções do mundo às vezes opostas, mas de qualquer modo muito
de <<umaideologia de combate>>,que serviu para explicar a decadência de algumas
diferentesç:.Além do mais,os factosirão provar a fragilidadedo compromisso,ou
linhagens por causa de casamentosinferiores, preparada para indicar soluções polí-
melhor, esclarecer um mal-entendido: os nobres aceitam um pensamento novo, mas
ticas, visando reerguer estas famílias antigas em dificuldades. A sua convicção da
não parecem tão dispostos a abandonar um sistema hierárquico que lhes garante o
superioridade do sangue nobre assentavana certeza de que a nobreza, raça viril e
privilégio. Acolher no seio do próprio grupo os plebeus mais eminentes, transformar
guerreira, era constituída por descendentesdirectos dos Francos que haviam servido
a nobreza em aristocracia, que se sacrifique até o nobre economicamente arruinados
os Galo-Romanosaquandoda Conquista Germânica. Todavia, quando a obra de
Mas daí a aceitar uma sociedadenova, onde os privilégios devidos pelo berço dei-
Boulainvilliers, Essassur /a noó/essede France, co/zfenalzf /zedis.íerfafíons r soH
xam de ser reconhecidos,já é diferente. A violência anta-revolucionáriade alguns
origine ef son abafssemenr, surge em 1732, é demasiado tarde... Segundo Denyver,
nobres iluminados, ainda antes do final do ano de 1789, constitui prova sobeja de
como, em França, a mistura das elites não caminha de mãos dadascom a comunhão o apogeu desta teoria racista aparecemais no final do século xvll, princípio do
do mesmo ideal político.
séculoXVlll, por ocasiãodas inúmerasreediçõesdo Traífé de /VoZ)/esse,
de De La
Rocque. O século xvlll viria depois a eliminar os frágeis argumentos <(genéticos>>.
Mais numerosossão aquelesque tentaramrepensar,redefinir a própria legitimi-
<<Oracismo nobiliário... não tardou a cair em desuso, se não foi mesmo esquecido,
dade, seguramenteporque, na sua grande maioria, não se reconhecemnuma crítica
pelo menos como alvo do escárnio: combatido eficazmente pela ideologia do mérito,
que consideram grosseira, porque não desejam um alargamento da ordem em nome
conserva, também junto de diversos nobres, apenas um valor ultrapassado.>>95
Pior
de uma nova distribuição de funções no sentido económico e intelectual.
Para estes últimos, trata-se de valorizar, de acordo com os argumentos em voga
naquele período, a nobreza enquanto ordem homogénea, traçando um retrato que eli- ql P.. Denyvex.Le scin8épuré. La }tíiissclncedu sentimen{et de t'idée de Facedons ía Kobtesse
frcilt-
çalse. /5ó0-/720, tese dactilografada, Bruxelas, 1973, p. 2.
4 Ibidem
91G. Chaussinand-Nogaret,<<Unaspect de la penséenobiliaire au xvlll' siêcle: I'anta-nobilisme> 95A. de Baecque, <<Lediscours anta-noble, 1787-1792, aux origines d'un slogan: 'Le peuple contre
Rewre d'Hísfolre A/oderíle er Co/zfe/7z/?orczflze
( 1982), pp. 442-452.
les gros'>>,Recued'Hísfoíre it/rlderlzeef Cora/e/zzporízine,
XXXVI (Jan.-Mar. 1989), pp. 3-28
uzM. Vovelle, «L'Elite ou le mensonge des mots>>,.4nfza/es E.S.C. (Jan.-Fev. 1974), p. 49.

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ainda, esta ideologia vira-se contra aqueles que visava proteger no final do século: mado do chamado sangue puro.»9' <<O pedigree serviu de esteio ao méüto individual.»
os polemistas e os patriotas <<reiteraram toda a força irónica dos ataques que se podem Este entusiasmo que, para os mais exacerbados, levou à identificação do animal com
desencadearcontra os chamados 'sapatos vermelhos', ou seja, os últimos defensores a nobreza, implica um modo de vida aristocrático; além disso, a paixão pela comida
do discurso nobiliário racista e não hesitaram em pêr na boca daquelas personagens leva muito naturalmente à aceitação de uma hierarquização dos animais nobres em
de nobre por eles inventadas, as intenções mais do que repisadas do padre Menestrier, função das suasqualidadese das suaspe/ybrmaPzces.
E sobretudoa partir de 1770
de De La Rocque ou de Boulainvilliers>>96. que os nobres se dedicam a esta nova moda, como se lhes fosse necessárioum certo
Claro que depois os nobres absorveram a noção de mérito, aceitaram-na e adap- tempo para criar um modo de ser consentâneocom um novo sistema de legitimação
taram-se-lhe, mas tudo indica que nunca renunciaram completamente à defesa do da sua superioridadebiológica. Esta defesaé tanto mais válida na medidaem que
sangue. Talvez tenha revestido formas mais subtis, recorrendo a eufemismos, que ao joga com uma ambiguidade, a da palavra <<raça»,realçada em 1778 pelo conde de
fim e ao cabo explicam como foi que os nobres pensaram que se tinham tornado mais Lauraguais na sua obra À/émoire ínz4fl/esur u/z sz4/erimporfanr. Esta palavra possui
merecedores pelo facto de o seu sangue o justificar, porque isso constituía um mérito dois significadosdiferentesem inglês e em francês, mas o uso que se faz nas corri
natural próprio. das é o mesmo. . . <<Apresentaa chave de um comportamento cuja perenidade nos leva
O regresso à observação dos fenómenos naturais, a aceitação dos princípios cien- a reflectir: face /zorse é o cavalo de corrida e o puro-sangue, o cavalo de raça...)>98
tíficos, o debate sobre o género humano e as espécies estavam na ordem do dia em Esta nova ética nobiliárquica é paradoxal, pressupondoa aceitaçãodas críticas do
1749, com a publicação da Hís/oiro Mz/are//e de Buffon. O debatecontinuava, inci- Iluminismo à <<ideologiado sanguo>,reconhecidae divulgada até ao início do sé-
dindo sobre a existência do género, da espécie, da família, da raça. culo vln, mas também a distorção do discurso racional, natural, filosófico, através da
Conquanto Buffon anunciasseabertamentea existência de uma raça humana afirmação da selecção de uma elite de sangue puro e forte, exactamente por ser nobre.
unida, revivificada e regeneradade forma a misturar no seu seio os homens, não Repitamos a nossa tese: a nobreza deixa de ser dominada se não pender para o
se duvidará que os nobres se tenham mostrado particularmente sensíveis a esta teo- reaccionarismo, o saudosismoou a degeneraçãode outro modo, mantém um diálogo
ria das <<espécies>>
animais. Buffon sustenta, através da hipótese da reprodução, que com o Iluminismo, compreendeo novo pensamentoe as suas críticas severas.Mas
as características principais e as qualidades de cada grupo se transmitem de gera- vai mais longe, transforma os argumentos do Iluminismo em sistema, não a partir do
ção em geração, segundo uma série de indivíduos colocados em famílias fixas, sangue antigo, mas do pedigree nobiliário, o que significa a defesa de um sangue
umas próximas de um modelo de origem, <<ostroncos principais>>,<<aespécie domi- novo, de qualidade, «em relação)>aos outros, porque garantido pelo valor dos ele-
nante>>,as outras, <<espéciessubordinadas>>,<<ramoscolaterais que haviam sofrido mentos que constituem as árvores genealógicas.
uma degeneração>>.E fácil imaginar-se a possibilidade que se apresentava aos nobres E também errado supor que a aplicação das provas de nobreza, a conservação das
de se valerem desta hipótese. Muito embora se tratasse de uma leitura parcial, que árvores genealógicas, a insistência no valor do sangue, sejam atitudes que vêm do
menosprezavaa profundidade inovadora do texto de Buffon e a evolução do pen passado. São, isso sim, bem mais actuais no século xvlll, segundo Ellery Schalk, por
samento científico, como o demonstrou J. Roger, pelo menos, era uma leitura idó- quanto o sangue é agora o único elemento que os pode enobrecer. No século xvl, a
nea na sua vontade de recuperar um pensamento iluminado. O debate científico, nobreza era vista como um ofício ou uma função militar, mais do que como um valor
defendidopor Lineu, Buffon, Maupertuis,baseava-sena procura de uma clarifi- transmitido por via hereditária. A nobreza identificava-se com a carreira das armas.
cação das espéciesvivas, dos homens,segundo uma hierarquia própria... desdeo Passados duzentos anos, em pleno século xvm, a percepção modificou-se completa-
selvagem ao homem mais civilizado... o nobre, como é óbvio, na mente dos bem- mente. A nobrezajá não tem uma actividade fixa. Pode, sem propriamente se exceder,
nascidos. Ora, para estes últimos, era a Ciência, a Ciência Natural, que justificava escolher a sua própria profissão, dedicar-se a actividades muito diversas. Resta-lhe
o seu privilégio. Por exemplo, no artigo sobre o <<cavalo>> na Hísfoíre /Vafure//e de o berço, que determina a partir de agora uma diferença que <<ninguémpensacontes-
Buffon, em vez de se ficar pela descriçãoda utilidade do mesmo,instrumento de tar, no seio da nobreza, desdeque a tolerância do exercício de actividades económi
trabalho do mundo rural, é muito mais interessanteapresentaruma imagem bri- cas não sqa posta em causa pelos plebeus de forma aguerrida; desdeque os nobres
lhante do animal aristocrático. não impeçam o exercício de certas profissões aos não nobres>>99. Para todos, o san-
Dc facto, nãoserãoa anglomaniae a paixãodascorridassenãooutrossinais gue é que faz a nobreza. Esta perdeu a sua função estritamente militar. Não será uma
daquela fé no sangue sustentada pelos princípios modernos do século? Para Nicole eficaz respostaideológica aos ataquessofridos durante todo o século? Certamente
de Blomac, os jovens anglómanos franceses são nobres, ricos e proprietários; todos
são cavaleiros amadoresque montam em tempo de guerra, para caçar, ao serviço do
97Nicole de Blomac, «Elites et généalogie au xvm' siêcle: le cheval de course, cheval de sang, la nais-
rei. <(Podeafirmar-se que [os nobres] encontraram nesta paixão uma concretização,
sanced'un nouveauconcepten France»,Reveled'Hísfoíre i14oderpze
ef Conremporaí/ze,XXXVI(Jun.-Set
se não mesmo a glorificação de algumas ideias-chave do seu século: a liberdade 1989), PP.497-507.
fecunda,o mérito individual; mastambémuma forte justificação do sanguee do pri- 98/bídem, p. 506.
» E. Schâlk, From Velar to Pedigree. Ideal ofNobiiily in France in the sixteenth artd seventeenth
uó/bfdem, p. 19. ce/zfzzríes,Princeton University Press, Princeton (New Jersey), 1986, pp. 219-220.

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que esta reacção viva da nobreza consegue ocultar a sua função de rrompe-J'oei/ que dissociadas do facto de se pertencer a uma ou outra classe de pais; e a fé na função
chegou a iludir os próprios nobres,em relaçãoao aparecimentodaquilo que julga- da educação,a única em condições de fazer desabrochara inteligência, de a desen
vam ser um discurso novo e que, muito pelo contrário, não passavade um artifício, volver no sentido do mérito e da afirmação dos talentos individuais, não necessaria-
por certo muito habilidoso, aplicado a crenças antigas. Somenteuma paz social sólida mente hereditários.
poderia garantir este paradoxo que fazia com que os nobres aceitassemuma filoso- Esta negaçãodo pensamentoiluminado baseia-setambém numa dicotomia que
fia ousada,tanto mais que parecia confirmar, de forma um tanto álacre, o esplendor reúne as qualidades físicas e psicológicas segundo a sua <mobrez»> ou a sua <<igno-
da sua linhagem antiga. mínia>>.As tendências morais são <<nobresse amáveis, doces, belas, isto é, perfeitas;
E se o fim do Iluminismo coincidiu, para algumas pessoas de condição duvidosa, são baixas se exprimem o desejo, a sensualidade ou a inquietação>>.A fisiognomo
com a possibilidadede descobrira força e o poder do irracional, e se encontramos nia é a revelaçãocientífica destesaspectosdo carácter. Conduz forçosamente <(àpre-
futuros reaccionários entre os adeptos do mesmerismo, para outros os nobres os ferência do que é nobre e belo, e suscita uma repugnância insuperável por tudo aquilo
últimos fulgores da épocacorrespondem ao encantamentopela fisiognomonia -- cuja que é baixo e ignóbil>> '03.Lavater aplica à linguagem e à extensão laudatória da pala
história está ainda por escrever e à consolidação de preceitos conservadores. O dis- vra <<nobro>o mesmo determinismo que distinguia na hereditariedade do sangue: o
curso de Lavater chegou, efectivamente, no momento oportuno, a fim de tranquilizar belo, o bom, o bem são-no porque nobres e vice-versa. Os bem-nascidos podiam ficar
um grupo em busca não da sua própria identidade, mas da confirmação do próprio tranquilos, o pastor suíço oferecia-lhes «as razões científicau> da sua diferença.
pedigree . Eis aqui, em tudo isto sangue,pedigree, fisiognomonia -- a essência,o próprio
Lavater reconcilia neste esboço do século a sociedade da aparência com a sua âmagode um mal-entendido entre a maior parte da nobreza e o Iluminismo, um mal-
essência:<<AFisiognomonia séria a ciência que dá a conhecer a relação do exterior -entendido grave, porque a esmagadora maioria dos nobres pôde, graças a este pedigree,
com o interior, da superfície visível com aquilo que ela encerra de invisível, da maté- repensar-secom dignidade e sem o menor embaraço,como um grupo unido, coe
ria animada e perceptível com o princípio não perceptível que Ihe imprime a sua vita- rente, solidário em face das críticas. Todos, ricos ou pobres, famosos ou desconhe-
lidade, do efeito manifesto com a força oculta que o produz.)>'oo cidos, estavam unidos pelo sangue transmitido de geração em geração. Uns estavam
Deste modo, a essência de cada ser é captada no rosto, na atitude do corpo, na persuadidos de que a sua ascendência comprovava a pureza do próprio sangue, outros
maneira de andar em geral. Lavater vai mais longe: todos os aspectosque remetem convencidos de que apenas o sangue lhes permitia enfrentar de cabeça erguida as
invariavelmente para qualidadesou para taras morais são herdadosdirectamente dos provações da vida.
progenitores. Um ser humano não poderia ser senão o reflexo de duas heranças, A nobreza encontrava no Iluminismo, e através dele, uma unidade ideológica,
enquanto a sua personalidade de fundo apresenta por norma o reflexo daquele que uma coerência de pensamento que a reconciliava consigo mesma, com a sua própria
pertence ao mesmo sexo. Deste modo, <<encontramosno filho, ponto por ponto, o épocae com a sua filosofia. Ou, pelo menos,convenceu-sedisso e acaboupor acre-
carácter, o temperamento e a maior parte das qualidades morais do pai>>''' ditar. Donde se conclui que não foram as polémicasque enfraquecerama nobreza,
Não era esta a resposta que os nobres esperavam e em que se pudessem basear e mas, na realidade, a integração da linguagem do Iluminismo numa lógica tipicamente
alimentar novas esperanças?Mas Lavater não lhes permite unicamente reivindicar a nobiliárquica com a consequente transformação de conceitos perigosos e audaciosos,
própria superioridade -- mesmo quando entraram em decadência: <<assim se explica na verdade aparentes e tranquilizadores. Recusando-se a enfrentar o debate sobre o
o facto de tantas pessoas,que a natureza datava de um aspecto agradável e que depois valor hierárquico do sangue,convencendo-sede que o discurso do Iluminismo podia
se deformaram, não se tornarem feias como as outra9>l02;e vai mais longe, incutin ser visto como uma nova exigência de selecçãonatural, a nobreza recusava, contor
do-lhes a ideia de que são os melhores, criticando duramente o conceito de que a nava a corrente de pensamentoque levava logicamente a uma abolição dos privilé-
inteligência possa ser o resultado de uma coincidência natural, de um acaso. De igual gios, ocultava o movimento intelectual que se traduzia na ânsia de reconhecimento
modo, ridiculariza Helvétius e o seu «entusiasmoamável>>,dado o filósofo presumir da igualdade de todos os homens precisamente através do sangue.
que a reforma do género humano deve passar por uma transformação da educação e Este equívoco entre o que a nobrezajulgou ler no discurso iluminista e aquilo
da cultura... que, pelo contrário, ele realmente implicava, não comporta necessariamente uma espé-
Tudo isto implicava a discussãode dois dados adquiridos fundamentaisdo cie de cegueira colectiva, de inconsciência do grupo ou de fuga. Seria demasiado
Iluminismo: a defesa da inteligência enquanto qualidade distribuída a todos de modo fácil. Não se deverá antes entrever uma estratégia que consistisse em renunciar à crí-
mais ou menosperceptível e segundo razõesainda inexplicáveis, mas completamente tica iluminada, reconhecendoo mérito e o valor como sinais de distinção dos melho-
res? Sob uma perspectiva social, os nobres podiam sentir-se reconfortados: não seria
mesmo verdade que os melhores de entre os burgueses estavam a tentar ter acesso à
tn 1. G. taxa\er, Essas sur !a Physiogttomie, deslinée à paire connaítre I'homtne et à !e paire aimer,
nobreza? Não era esta última o símbolo, para diversos plebeus enriquecidos, da con-
Raia, s.d. p. 22 (ed. oí. Physiogttomische Fragtltettfe zur Befõrdertlng der Menschenkerttftissllrtd
A/e/zscAen/bebe,
Leipzig/Wintherthur 1775-1778). cretização da ascensãosocial? Todavia, semelhante estratégia, por sinal bastante arüs-
iol /bídem, pp. 144-145.
ioz/bode/n,P. 147. 03 ibidem, p. 'l''}

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cada, assentavanum equilíbrio delicado: de um lado, o quadro institucional estável, debate do Iluminismo uma razão para se definir de uma nova maneira, reagrupando
representadopor uma monarquia reconhecida por todos e garante dos privilégios de se por detrás de um esquemaoriginário de uma <<ideologiado pedlgree>>e que per-
cada um; do outro, um círculo ideológico bem definido, com as suasregras,o seu mite a cada um realçar a qualidadee, assim,o valor dos próprios ascendentes?
Um
código de honra, os seusescritores, as suas constantespolémicas, os seus certames grupo que se julga bastante forte para fazer uma reentrada no campo político e espe
rituais, os seus conhecidos combatentes, nobres ou plebeus iluminados. Basta que rar reconquista-lo a partir de 1775? Um grupo que, afinal de contas, escondeu as suas
um destesdois elementostenha menor peso ou seja ameaçado... e a nobreza vacila. próprias contradições internas, beneficiando de um equívoco habilmente cultivado e
Pois bem, este pedfgré?e,valor e mérito da nobreza, estava a atirar a luta para fora que se substituía ao discurso político? Um grupo que não entendeu a transformação
dos limites clássicos, reconhecidos e admitidos entre 1740 e 1770. radical do debatepolítico a partir de 1780e que teria sido eliminado na última década?
Com efeito, a nobreza suscitava uma reacção dupla: antes de mais, a radicaliza- É um pouco de tudo: os nobres sentem a sua <<diferença>> em relação aos plebeus
ção de uma temática antinobiliárquica, caricatural mas eficaz, sobre o pretenso valor e as próprias diferenças recíprocas, muito fortes. Todos compreendem que o século
do sangue'o'; depois, o aprofundamento e mesmo a afirmação do conceito de igual- evoluiu. Ninguém renunciaa um passadode que é a definição
dade dos homens e a consequente redução dos privilégios trazidos pelo berço. Em face destasperguntas,a Revolução,por mais paradoxalque pareça,vai tra-
A partir de 1762, com o Co/zfrafo Sacia/, assiste-se a uma mudança no núcleo do zer algumas certezas à Segunda Ordem. Na adversidade, no exílio, na hostilidade, os
debate iluminista: a expressãopolítica deste discurso deixa de ser a procura de um nobres irão redescobrir uma coesãoque a monarquia não lhes soubera oferecer.
compromisso no seio de um grupo plebeu e nobre, mas a vontade de individualizar Regeneradada prova, amadurecidapelo sofrimento, dignificada no meio de dificul-
um grupo capaz de governar, em cujo seio não podem pesar mais os privilégios tra- dades de toda a espécie, a nobreza encontra neste início do século xix uma posição
zidos pelo nascimento. Os nobres ignoram estes temas, condenam-nos, desprezam- social que vira constantementeenfraquecida no seu interior. Durante o século xlx,
nos, talvez não os recebemou pensem muito simplesmente que podem ter um alcance vai voltar a ocupar maciçamente,nas finanças, no exército, na diplomacia, os cargos
político e imediato. Sem dúvida porque, seguros de si mesmos, estão empenhados que Ihe eramdevidos (e que ela, em certos casos,não chegoua abandonardurante
num outro combate. a Revoluçãoe o império). Reencontrao seu património fundiário.
Se os nobres são melhores, podem e devem fazer ouvir a sua voz junto da monar- Deste modo, teria a nobreza vencido o Iluminismo, os seus homens e a sua expres-
quia que há muito os velou. Os Parlamentos,
com os seusnobresorgulhososdos são máxima: a Revolução?
seus próprios privilégios e iluminados pelo espírito do século, transformam-se nos E o que vamos ver. Se o nobre regressa às suas propriedades, deve ceder tam-
vectores desta reconquista do poder efectivo. O conflito quase permanente a partir bém a um jogo político que se consolidarádurantetodo o séculoe que o transforma
de 1775 entre o rei e os Parlamentos exprime a desconfiança política de uma nobreza primeiro num notável e depois num eleito. Nobre quiçá no seu íntimo, ainda à cabeça
verdadeiramente de assalto, segura do seu próprio valor, coerente na sua luta contra da comunidade rural, mas gentil-homem burguês, patrão, alcaide na sua vida de
um poder que há muito a mantém afastada das capacidades concretas de decisão. homem público, vai-se socializando a pouco e pouco, integrado num novo quadro
Porque os nobres dos Parlamentos agem em nome do Iluminismo, do seu Iluminismo. político que consagrao seu valor ou entãoexprime a influência de uma tradição numa
Trata-se de um risco real: atacandode forma violenta a monarquia,e opondo-seà França largamenterural. De qualquermodo, irá ser <aepublicanizado>>
nos finais do
radicalização do projecto político do Terceiro Estado, os aristocratasiluminados des- século xix.
troem o equilíbrio frágil que lhes permitiu julgarem-se os melhores. ' Mas o pensamentodo Iluminismo foi tambémimpulsionado.Atribuindo uma
Se, em 1789, a nobreza reage com a violência que sabemos,não é tanto porque importância essencial à luta de classificação, à luta pela aquisição de bens de pro-
seja fraca e reaccionária, mas porque se considerava bastante forte antes da Revolução dução culturais e intelectuais, desenvolvendo de modo sistemático o processo de
para se impor ao absolutismo como a força mais viva da sociedade, regenerada pelo reflexão crítica, definindo a percepçãomental que um grupo poderia ter de si mesmo
pensamento do Iluminismo. Ora, a crise económica, a convocação segundo os crité ou poderia deixar transparecer, a partir de um discurso unitário e homogeneizada,
rios antigos dos Estados Gerais, a atitude da Segunda Ordem durante os debatese demonstrandoa importância política e as consequênciassociais muito concretasda
os primeiros dias revolucionários, faziam sobressair a inconsistência do repto polí- elaboração de semelhante discurso, em que as manifestações psicológicas tinham uma
tico lançadopela nobreza:substituir o arbítrio real por um governo de aristocratas. importância igual à realidade material dos factos, o iluminismo procurou desacredi-
Entretanto,o Terceiro Estado tornara-seuma força política representativade uma tar para sempre o pensamentonobiliário
nação de Franceses todos iguais entre si, e ia-se impondo. Entre estas duas ideolo- - As temáticas do iluminismo (antigo/novo, liberdade/opressão, natureza/história,
gias políticas, inspiradas, nascidas do pensamento do Iluminismo ou contra ele, deci- razão/despotismo, virtude/libertinagem, mérito/ócio) só podem empurrar o nobre para
diu-se o divórcio. o campo negativo de um retrato-tipo, que faz dele uma personagem desprezível a
O que é então o nobre em 1789? Como definir a nobreza?Um grupo muito hete- que se atribuem todos os defeitos, ilustrando pela negativa as qualidades exaltadas
rogéneo, muito diversificado, agitado por oposições internas, mas que encontra no pelos filósofos. Os homensdo ]]uminismo acabarampor mudar o seupróprio perfil
com a realezamas, de uma forma mais paradoxal,a nobreza,e residetambém aqui
o+Clfr, de Baecque, op. ci/. a força desta luta entre <<símbolos>>,
acabandoigualmente por aceitar para si própria

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aquela imagem nada lisonjeira, que talvez a <«marginalizasse>>durante bastante tempo
e a impedisse de encontrar e instituir um regime político estável, enquanto por outro
lado controlava as campanhas,os cargos principais do Estado e das suasinstituições
e assumia um papel de destaque nas Finanças a partir de 1815.'
De que outro modo se explicaria aquela imagem constante do nobre degenerado,
fraco, abastardado,impotente, estéril, degradado,que inunda a literatura francesa do
século xlx, de Balzac a Huymans, sem esquecer Maupassant, imagem divulgada tanto
pelos seusdefensorescomo pelos seus difamadores. Ninguém duvida que Monsieur
de Morsauf, consumido pela doença que o arrasta a pouco e pouco para a loucura,
que des Esseintes, este dando de fim de século, de raça fina, que os d'Hubiêres, este
casal estéril obrigado a comprar o filho de dois camponesespobres mas fecundos, CAPITULOll
sejam a seu modo filhos do Iluminismo, no sentido de uma sua expressãoliterária,
mas vivida concretamente segundo o modelo de uma realidade comum a todos, de
uma desqualificação da nobreza enquanto força capaz de regenerar, de sustentar a
OSOLDADO
modernidade de uma França nova, imaginada pelos filósofos, vislumbrada durante
por Jean-Paul Bertaud
a Revolução e criada ao longo de todo o século XIX.

70
O filósofo que, no século xvlll, cria o ideal de uma nova cidade assentena razão
manifesta um profundo horror pela violência e pela guerra. O abade de Saint-Pierre
afirma que esta paz perpétua é possível. Que necessidadeexiste então do homem de
armas? Há quem diga que a guerra e o guerreiro trazem em si mesmos a desordem
das coisas, a imoralidade dos homens. A guerra, escreve Jaucourt na Encyc/opéd/e,
sufoca a voz da natureza, da justiça, da religião e da humanidade: banditismo, devas-
tação, terror e desolação são a herança desta doença convulsa do corpo político. Todos
os homens acabam por ser afectados por ela.
Mas elevam-se algumas vozes discordantes para denunciar a paz perpétua como
um sonho. Montesquieu, ao recusar o ponto dc vista de Hobbes, segundo o qual a
guerra faz parte da naturezahumana, defende que ela é o produto da sociedade.
A guerraé uma doençadas sociedades,dificilmente curável. Mas, por outro lado, é
sempre um mal? As guerras são injustas quando visam a conquista, são, ao invés,
justas quando têm por finalidade a autodefesa, a ajuda a um aliado que foi atacado,
a revisãode um tratadoiníquo, a preparaçãopara um eventual ataque.
Para Vauvenargues, <<ocontemplador que, languidamente instalado num quarto
atapetado, invectiva contra a guerra>>é um néscio. A guerra é uma das leis do Universo,
não é necessariamentea escola do vício ncm o guerreiro o portador de todas as tor-
turas. A paz <<deixaapagar todos os grandes talentos e amolece os povos A virtude
combate e o amor pela glória, forte e nobre, é a nascente fecunda das virtudes huma
nas que fez com que o mundo saísseda barbárie».
Rousseau menciona as considerações de Montesquieu sobre as causas da guena
e sobre a distinção entre guerras justas e injustas. Convida os povos e os Estados que
os rep.rebentam
a resistirem, a defenderema sua pátria. Rousseauinsurge-secontra
cosmopolitas como Voltaire, que afirmam que não existem mais Franceses,Alemães,
Espanhóis ou Ingleses, a partir do momento em que todos os homens adquirem os
mesmos costumes. Segundo Rousseau, trata-se de um internacionalismo aviltante
para os povos. <<Oamor pela pátria constitui toda a existência do homem,ele não
vive sem a pátria, não vive senão para ela, e mal fica sozinho deixa de ser alguém.>>
Mas de que vale a pátria se não for terra de liberdade, se não for o refúgio de uma
nação de cidadãos iguais entre si e soberanos graças ao pacto social? Não será o sol-
dado-cidadão melhor defensor da pátria em comparação com o mercenário ou o soldado
dos déspotas?Não deve cada cidadão ser soldado e cada soldado cidadão, como
escreveDiderot?
Com a Revolução, a França adopta este princípio e Saint-Just afirma que a vitória
só se alcançará através dos progressos do espírito republicano no seio do exército.

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Mas pode o entusiasmopatriótico, por si só, levar a melhor numa ocasiãoem que jipes instrumentos de guerra prontos a ser usados, rapidamente se tornam rivais das
a guerra se tornou uma arte complexa que requer profissionais? Alguns anos mais
autoridades.Colleoni divide um principado,os Sforza assumemo podercom..um
tarde, Napoleão admite que o amor pela pátria e pela glória nacional podem inspi- golpe de mão. Os intervenientes estrangeiros em ltália destroem esta rede(No
rar as tropas jovens, mas um bom general, bons quadros, uma boa organização, uma século xvll, os empresários de guerra encontram um campo de actividade na Alemànha.
boa disciplina dão origem a boas tropas, independentementeda causa pela qual se Trazem-lhe a desolação, o saque ou o estupro.J
batem X Nos Estadosfortes, como a França ou a Inglaterra, o empresáriode guerra é o
soberano. Solicita directamente os serviços de capitães ou coronéis donos das suas
Exército nacional ou exército profissional? Soldados de milícia ou soldados pro
fissionais? Soldados-missionários quc praticam uma guerra subversiva da ordem polí- tropas. O combatente coloca-se também aqui à disposição por um período mais ou
tica estabelecida pelo adversário ou soldados tradicionais que apenas manejam a menos breve. Como sucede com o mercenário, são a miséria, o gosto de aventura, o
espadae a espingarda?Para lá das ideias desenvolvidas a respeito da figura do sol- desejo de fugir ao desdém do pai da rapariga seduzida ou, na maior parte das vezes,
dado, qual é a realidade da sua existência, da sua aprendizagem, dos usos e da sua às consequênciasjudiciais de um furto, que impelem o homem para o alistamento.
mentalidade? Não se verificará em todos os países, durante a época modema, desde O exército do rei é, tal como a Igreja, um local de asilo. Existem motivos mais nobres
o séculoxvln à Revoluçãoe ao Império, a formação de uma sociedademilitar que que surgem no início do século xviii: sucede por vezes, com frequência, que o alis-
tado é súbdito do rei, colocando-se ao seu serviço a fim de defender a pátria amea-
anteriormente não existia e que, destinada a perdurar, alimenta a sociedade civil com
os seus valores? çada. A obrigatoriedade do serviço militar é logo decretada por lei, quando não seja
tacitamente aceite por todos. Alguns são sensíveis a este dever. Sobretudo, o que dis-
tingue o soldado do mercenário é o facto de o primeiro pertencer a um exército regu-
Do mercenário ao soldado lar, cada vez mais disciplinado, e de onde é difícil escaparquando apetece. O mer
cenário, se visse que o contrato estipulado com o empresário de guerra não era
O comia/erre, oZt/erro de comércio. Tomas é espanhol. Procura um patrão a quem respeitado na íntegra por este último, amotinar-se-ia: no exército espanhol, que assen-
servir. Ao sair da cidade de Málaga encontra um gentil-homem. E capitão e procede tou praça nos PaísesBaixos entre 1598 e 1607, registaram-se vinte e uma amotina-
à recruta de homens para a sua companhia. Gaba a Tomas, que o interroga, a vida ções. O soldado do rei, apanhado pela rede do exército regular, rebela:ge menos do
dos seus homens que se preparam para partir para Itália. A beleza das paisagens, o que deserta: dificilmente a fuga é coroada de êxito num Estado civil.
/
esplendor da Lombardia, comida com fartura e o ouro que tilinta na bolsa, nadafalta
LÁ criação dos exércitos rega/atei. No século xvlli, o exército regular mais bem
no discurso para aliciar Tomas. O capitão passapor cima do frio, do risco do assalto,
do terror das batalhas e da fome, companhia habitual do guerreiro. Tomas não se organizado é o da Prússia. País de segundaordem pela superfície e pelo número de
deixa tentar por um recrutamento que, deduzindomuitos outros, dá vida à figura do
habitantes, a Prússiadispõe de um dos exércitos mais poderososda Europa
mercenário' O Kkz/z/Ofzsysrenz
transforma este reino num Estado militar, colocado sob a alçada de
Nos séculos xvl e xvn, o combatente é como uma mercadoria que se vende ou Frederico 11.0 Kanro/zé a célula fundamental do Estado e a população é prisioneira
dele. Cada habitante encontra-se inscrito num Ka/zio/zcomandado por um capitão.
aluga dentro de um país ou entre as cidades e os principados da Europa. Este comér-
cio tem a sua Bolsa que oscila consoante as estações e o estado de paz ou de guerra. Sem a sua autorização, é impossível o destacamento no interior do país. Os jovens
inscritos com 10 anos de idade, os Ob/iga/s, usam uma gravata vermelha que os dis
No século xvll, quando os exércitos europeus passam de 100 000 a um milhão de
homens, os momentos de alta cotação são mais frequentes do que os de baixa. O guer- tingue. Vão periodicamente a reuniões militares. O capitão escolhe os homens mais
reiro tem um preço que depende das suasqualidades físicas, da sua experiência e dos altos de entre os Ob/íga/s que deixaram a adolescência.O Ka/zfolzísfé então subme-
seushábitos: o francês é procurado pela sua impetuosidade no combate, mas falam tido a uma formação completa de soldado, que se estendepor um ano e meio a dois
também da sua natureza instável, difícil de controlar, sempre a amotinar-se. O aus- anos. O Kanlolzis/ tem depois de se submeter anualmente a treinos que duram entre
tríaco tem menosvalor do que o italiano ou o espanhol. dois a três meses.Obrigado a transportar sempre consigo uma parte do equipamento
Nos Estadosfracos, como o império ou a ltália, quem se alista estabeleceum quando assiste fardado à função dominical, é objecto de revisão anual. Forçado a
contrato com um capitão que detém a sua própria unidade e por sua vez a vende a uma aprendizagem minuciosa do manejo das armas e a uma disciplina rigorosa assi-
um coronel, também ele ligado a um empresário de guerra. Este último é um homem nalada por pesados castigos corporais, nem sequer a vida privado\do X.a/zronísfescapa
de negócios,rodeado por uma multidão de homens do mundo financeiro, desdeo ao oficial, que interfere ao nível do casamento e das sucessões.J
modesto administrador até ao banqueiro, como Witte em relação a Wallenstein. A administração do país é, em grande medida, confiada aÓsveteranos. Em todo
l Os empresáriosgerais de guerra possuem terras e domínios senhoriais e cobram o lado o militar tem precedênciae o X.an/o/zísf
estáciente da importânciade um papel
impostos aos países ocupados pelos seus exércitos. Alugando às cidades ou aos prín que, por vezes, Ihe permite libertar-se do regime feudal. J
Em trança, o exército regular constitui-se através do alistamento voluntário.
Cewant,es,Novelle esempiari, E! licenciado Vidriera. Otapitão que possui uma companhia aproveita a licença que o leva à sua província

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natal e <<procedeao recrutamento>>.Se não o pode fazer pessoalmente, envia um sar- r Exceptuandoos voluntários do exército regular, o rei de Fiança tem acesso
gento, acompanhado de soldados. É habitual verem-se nas cidades e aldeias os mili- ib viveiro dos seus súbditos que, através da milícia, se habituam ao dever de ser-
vir. Em 1688. Luís XIV e Louvois criam a milícia real. Os solteiros e os amoti-
tares percorrerem a estrada, reunindo à sua volta os vagabundos, que procuram aliciar,
juntamente com o prémio do alistamento, mencionando os esplendoresde uma vida nados sem descendência são obrigados a ir às sortes. Aqueles a quem sai um
fácil. Por vezes,o alistamentoé forçado:o recrutador afasta o homematé à taberna, número <<mau>> são milicianos. Recebendo preparação militar no seu país em
obriga-o a beber até o embriagar e leva-o; outras vezes, mantém-no prisioneiro a fim tempo de paz, são chamadosem tempo de guerra a integrar as tropas regulares.
dc evitar as buscas dos familiares. Com cada vez maior frequência, o capitão recruta Contrariamenteao que sucedeno X'anjo/zsysrem,
o miliciano francês não é um
homens que trabalham nas suas propriedades, nas da sua família ou nas de um aliado. soldado permanentemente às ordens de um oficial. esta milícia acaba por se apoiar
Ontem camponêsde um feudatário, hoje soldado, o recruta passaa ser, sob a farda lii.;=':;'1,;;iil;lt. .« :.«'« -« «giõ'; «.,i;.»; "#í.« a. a.I'-"', ""
militar, <<ocliente>>do próprio indivíduo ou da sua família. Quandoo rei de França vésperas da Revolução, exigem a sua supressão nd"momento exacto em que ela
elimina progressivamentea venalidade dos cargos de capitão e coronel, mantém-se tcm um papel muito menor de reforço num exército regular com mais de 150 000
ainda o hábito desse método de recrutamento. Encontramos exemplos disso até 1791 homens.
Nesta data, o coronel Tourville, do 18.' regimento de infantaria, envia um dos seus /' A milícia existe também em Inglaterra. Serve para garantir a ordem pública interna
oficiais, Poucet, à suaterra natal, o Franco Condado, recomendando-lheque procure, b-defender o país. Durante a Revolução Inglesa, esta milícia servia como tropa de
para o rei, homenscom pelo menos5 pés de altura, e se possível,5 pés e 6 polega- base do Parlamento. Reorganizada em 1757, a milícia inglesa possui poucos efecti-
das (1,80m). Poucet manda examinar os recrutas por um médico idóneo, a fim de vos, cujos membros, tal como em França, são sorteados. Esta New J14f/fria,que tem
descobrir deficiências físicas: má dentição que o impede de rasgar os cartuchos, mãos carácter pq'manente,irá prestar muitos serviços na defesa do país até finais do
século xix.
aduncas que dificultam o manejo das armas, as costas demasiado curvas que preju-
dicam a posição do soldado e a formação das tropas.J ' A partir do século XVn, são criadas algumas milícias nas colónias. Existem tam-
Uma vez integrado no corpo do exército, o recr(ita é examinado da cabeça aos bém nas Antilhas francesas, onde desempenham uma função política até aos fins do
século xvlll, e no Canadáfrancês, onde seguemo modelo de organizaçãoda pátria-
pés, a sua identidade, o seu aspecto físico e os seus sinais particulares são anotados
no registo do regimento. A administração,que passapelo controlo dos militares, pode mãe. Já no que se refere às colónias inglesas da América do Norte, aparece uma pri-
conhecer, assim, melhor o estado das tropas, dar caça aos <<vagabundos>>
que andam meira milícia em 1611 na Virgínia, imitaçãoda milícia inglesa.Em 1755,as milí-
cias americanasreúnem 500 000 inscritos, que não tardarão a participar na guerra da
de regimento em regimento, aos passe-vo/alzrsz, soldados emprestados por um capi-
tão de outra unidade para provar, no momento do controlo, que a sua companhia independência.
optava completa e, enfim, aos desertores. Os exércitos regulares dos soberanoseuropeus tendem a nacionalizar-se, e o
No começo do século, o exército é integrado por nobres <<deraça>>,membros das recurso aos regimentos estrangeiros continua até ao final do século. Na época de
famílias brasonadasmais antigas, pelos recém-enobrecidos, filhos de comerciantes que Luís XIV, um oitavo dos efectivos em tempo de paz é estrangeiro: suíços, húngaros,
alemães. irlandeses e escoceses.Em tempo de guerra, a proporção sobe para um
compraram uma companhia ou um regimento, e por fim por soldados da fortuna, ple-
beusque alcançaramos postos por mérito próprio ou, pelo menos,pelo seu talento. quarto. Nas vésperasda Revolução, ao lado de setenta e nove regimentos franceses,
A partir da segunda metade do século, os oficiais das famílias antigas insurgiram-se con há ainda onze regimentos suíços, oito alemães, três irlandeses e um de Liêge. E é
tra os nobres comprados, muitas vezes inadaptados às funções de comando. O rei supriu preciso considerar ainda que, em determinados regimentos, se caíra no hábito de
o desaparecimento da venalidade dos cargos, criando graus intermédios e uma ordem recrutar súbditos do rei: assim sucedeu em alguns regimentos alemães, onde se encon-
tram alsacianos e morenos.
de progressão.Os nobres de raça não ficaram satisfeitos, reclamaram e conseguiram pâr
progressivamentetermo a estecomércio. Simultaneamente, exigiram que o recrutamento De entre as tropas estrangeiras a solda'dos Estados, as que se encontram com
dos oficiais deixassede se basearapenasno critério do nascimento.O.facto de se ser maior frequência são os regimentos suíçosÍA partir do século xvi, a miséria da popu-
<<denascimento nobre>>predispõe para o comando, mas depois é necessário receber uma lação levou as autoridades a organizar uni"recrutamento e uma formação dc solda-
boa educação militar, dar mostras de talento. O monarca abre algumas escolas milita- dos que vêm oferecer-se aos príncipes europeus. A transferência faz-se acompanhar
res onde os oficiais nobres como é o caso de Bonaparte -- se formam e aperfeiçoam. de uma capitulação ou tratado que prevê, para além do dinheiro a pagar, a aplica-
Os plebeus não são totalmente afastados dos postos de oficial, mas apenas uma mino- ção de um código e o exercício de uma justiça militar particular. Este recrutamento
ria pode esperar obter as dragonas na infantaria ou na cavalaria. A carreira é mais aberta processado nos cantões e, por conseguinte, legal prosseguirá até ao século XIX
nas armas <(doutas>>,como a artilharia ou a engenharia. Todavia, também ali o plebeu, nos Estados italianos, na Prússia, na Saxónia e em Inglaterra.,/
como Camot, sabe que os postos superiores são apanágio dos nobres. A capacidade técnica e o respeito pela palavra dada conferem enorme valor aos
soldados suíços.Existe, todavia, uma condição para a manutençãoda sua disciplina:
nunca os fazer lutar contra compatriotas. A lealdade dos Suíços no que respeita ao
2Soldados que figuravam nas fileiras de uma companhia, sem estaremintegrados na sua força, e reco
biam indevidamenteo pré em proveito do capitão.(N. T.) rei de Françaé impecávelaté 1790.Em Agostodesseano, um regimento,o de
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T

Châteauvieux, participa na revolta dos soldados franceses da guarnição de Nancy. k\t} processo de aprendizagem é longo, porque não basta endireitar o corpo O recruta
Morrem diversos suíços em 10 de Agosto de 1792, durante a ocupação das Tulherias, deve também acalmar os seus nervos. Os oficiais sabem perfeitamente que, ao faze-
aquando defendiam a família real. rem o baptismo de fogo, o recruta se entregaa uma orgia de tiros com a arma de
fogo, a fim de acalmar o seu próprio medo.
A aprendízage/n do (Z/}'c/odas armas. No século xvln, com a sofisticação das A partir da invenção da baioneta de cartl#ho que se adapta ao cano da espingarda
armas e das técnicas de combate, o recruta reunido no campo é <<polido>>
durante um sem impedir o disparo, é mais frequente o ataque com a baioneta, carecendo de uma
período que dura alguns meses. O seu corpo deve ser transformado, os seus sentidos aprendizagem específica para que o soldado se transforme num duelista de primeira.
refreados. Na Europa, muitos oficiais superiores ou oficiais subalternos preferem, A espingardaé como a amante do soldado. Requer, na verdade, múltiplos cuida-
para o treino dos homens, a escola da Prússia: aqui, o soldado é transformado numa dos: esfregar o cano com água com a pinça das balaspresaà vareta até a água sair
máquina, que reage por reflexo condicionado às ordens recebidas.Para se criar este limpa, enxuga-la, impregna-la de uma matéria gordurosa (o pó de arenito misturado
autómato, o soldado é submetido a uma formação intensiva, contínua, e o mínimo com azeite preserva da ferrugem), tapar depois o fuzil com um trapo que o protege
erro é objecto de punições ou sevícias corporais. Em França, alguns oficiais acham das intempéries.
que o método é contrário à <<naLureza>> do Francês. O instrutor deve apelar ao inte- O manco do canhãopelos artilheiros é ainda mais difícil. Em França, até ao
lecto do recruta, à sua razão, com um pouco de sensibilidade a fim de o tornar Império, os canhões de Gribeauval são de uma qualidade insuperável. Os canhões
confiante e de obter o melhor da <<fúriafrancesa>>.Nem todos os comandantespos- são de bronze, as carretas de madeira reforçada com metal, os eixos das rodas de
suem esta mentalidade. Até 1790, os soldados culpados eram obrigados a passar cm ferro. O jogo dianteiro é uma ligação munida de duas rodas sobre as quais é colo-
tronco nu por entre filas dos seuscompanheiros que lhes batiam com a coronha das cada a extremidade da carreta. A boca de fogo e a caixa formam uma espécie de veí-
espingardas:. culo bem equilibrado. E bastante árduo o trabalho do canhoneiro para desmontar e
.O recruta, frequentemente de origem rural, apresenta os ombros descaídos e as montar o canhãoe o jogo dianteiro. A invençãoda prolonga de 8 metrosveio faci-
costas curvadas. O instrutor ensina-o a manter-se direito. O regimento em batalha é litar o manejo, o que não obsta a que os canhoneiros tenham de conjugar a força com
como um corpo de baile que abre ou cerra as suas fileiras, vira para a direita ou para a habilidade a fim de montarem peçasde artilharia que pesam mais de uma tonelada,
a esquerda, avança e depois retrocede. O recruta, qual bailarino, aprende a apoiar os carrega-las com granadas ou latas de metralha, apontar com o auxílio da alça e dis-
pés, a esticar os joelhos sem os retesar, a suportar o peso do corpo sobre os pés que, parar. A cadênciade tiro é, consoanteos manejadores, de 2 a 7 disparos por minuto
no início, assenta na terra. A marcha consiste pelo menos em dois passos essenciais: quando se aponta directamente.
um passonormal,com 67 centímetrosde comprimentoe a uma velocidadede 76 O alcance dos canhõesde 12 /ívres e de 8 //ares é de 900 metros. O tiro é eficaz
passos por minuto, e o passo de ataque, quexé de 120 passos por minuto. a uma distância de 400 metros. Uma bala de 12 libras atravessa 2 metros de terra de
Inicia-se depois o manejo da espingarda.bestaveio substituir, na segundametade um lado ao outro, uma parede de tijolo com 40 centímetros de espessura, 0,5 metros
do século xvn, o mosquete, arma de fogo dé 2 metros, pesando 7 kg. A espingarda de madeira. a uma distância de 400 metros. Bem assestadanuma coluna de ataque,
francesa, utilizada em 1777, é uma arma de 1,52 metros, pesando mais de 4 kg. Ensinar a bala pode matar dezenasde homens, ricocheteando e fazendo saltar pedras.
os soldados, com uma altura média inferior à dos homens dos nossos dias, a servir- A arma nobre por excelência continua a ser a cavalaria. Para Ihe pertencer são
.se desta espingarda sem ferir os seus companheiros é uma tarefa delicada. O carro precisas qualidades que só se adquirem após meses, ou mesmo anos, de prática. Para
gamentoda arma é complicado: com uma espingardana horizontal, o soldado coloca disparar é preciso saber primeiro aguentar o cavalo a passo, manter-se perfeitamente
<<ocão cm repouso». Depois rasga o cartucho com os dentes e enche a caçoleta com alinhado com o do lado, de seguida esporeá-lo a fim de mudar do passo para o galope
uma parte da pólvora contida no cartucho. Agarrando esta última entre o polegar e o junto às linhas inimigas, e por fim saber encontraruma depressãodo terreno para
indicador, fecha com os outros dedos a bateria e coloca a arma na posição vertical. parar o animal ou fazê-lo retroceder, manejando simultaneamente o sabre, a pistola
Introduz então no cano de quase 17 milímetros o resto da pólvora, a bala de 16 milí- ou a espingarda.
metros e o invólucro do cartucho que empurra até ao fundo com o auxílio de uma
vareta de feno retirada de uma bainha colocada sob o cano. Removida a vareta e O ca/zzbafe.Em 1717, os generais dispõem a sua infantaria no campo de batalha
levantado o cão, o soldado apoia a espingarda no ombro e dispara. Um soldado bem em longas linhas paralelasviradas para o inimigo, com o objectivo de criar, através
treinado dispara pelo menosdois tiros por minuto, se a sílica fizer a faísca que inflama de uma descarga, uma saraivada de balas que detém o inimigo e permite avançar. Os
a pólvora. Uma vez em cada quinze, a sílica não funciona. Na posição horizontal, com homens são colocados a 4 ou 5 passos de intervalo e de distância entre si e com uma
toda a carga, o alcance da espingarda é de 200 metros, a bala perde-se a 400 metros. profundidade de 6 filas. O exército alinha-se para o combate longe do inimigo, com
Os disparos só são eficazes pelo menos a 100 metros. A arma não obriga a usar uma extrema lentidão, caminha sem grande velocidade para não dispersar as fileiras, mano-
alça, e o soldado, disparando a olho, conige o tiro com o dedo. Apesar de tudo, dis bra com dificuldade e sem rapidez em presençado adversário.. . desdeque esteesteja
para demasiado alto, e o oficial subalterno deve estar sempre preparado para rectifi- mobilizado, à espera.O exército prussiano de Frederico Guilherme 1, o Reí Sargo/zro
car a posiçãodo cano, baixando-ocom o bastãoou com a espada. (1713-1740), altera a disposição clássica. Adopta a ordem dispersa e a ordem com-

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pacta. Os soldados são dispostos em 3 filas, a primeira ajoelhada, a segunda de pé e observam entre si uma distância de alguns passos,o que impede os atropelamentos
curvada,a terceira direita, disparandosucessivamente.
Com um númeroinferior de e permite as manobras.A coluna de ataque é utilizada sobretudo para objectivos de
homens, a frente fica suficientemente alargada, evitando-se assim os apertos. A infan- frente limitada. Avançando com rapidez, faz-se preceder por fuzileiros dispersos que
taria avança pelo campo de batalha em colunas, estando já cada companhia disposta sondam o dispositivo do inimigo, enervam-no, desorganizam-no antes do ataque da
em filas. Quando a coluna pára, cada companhia, através de um movimento dc con- coluna. E utilizado o fogo indiscriminado durante o movimento das napas, mais mor-
versão em que uma ala gira enquanto a extremidade da outra se mantém imóvel, fica tífero do que a descargade salvas, porque permite a cada soldado ver melhor. A coluna
virada para o inimigo. Uma vez traçadaa linha da frente de batalha,cada coronel dispõe-se finalmente em linha, enfrentando o inimigo através de um simples <<esquerda
manda avançar as suas tropas até um ponto previamente fixado. Avançando, o sol- volver!)>ou <<direitavolverl>>de cada homem. A passagemda coluna à linha da frente,
dado abre fogo, disparando com a espingarda apoiada na anca. A 20 passos do adver- da linha à coluna processa-se com rapidez. Esta táctica foi utilizada durante a Guerra
sário, a tropa lança uma última descarga, depois rompe a frente inimiga com a baio dos SeteAnos por Broglie e Guibert. O procedimentoé ainda melhoradopela cria-
neta. A descarga das espingardas faz-se acompanhar da de canhões ligeiros, empurrados ção da divisão, que reúne homensda infantaria, da artilharia e da cavalaria; deste
à mão e introduzidos nos espaços entre os batalhões. As batalhas vencem-se, como modo, cada divisão é uma fracção completa do exército. A divisão, criada de começo
dirá Frederico ll (1740-1780), <'coma superioridadedo fogo>>.O sucessorde Frederico parafacilitar os desdobramentos,
seráutilizada durantea Revoluçãoe sobo império
Guilherme l inventa a ordem oblíqua, que substitui a anterior ordem paralela. Faz para novas manobras nos flancos e na retaguarda do inimigo. A infantaria torna-se,
marchar os regimentos <em gavet»>.3Se pretende atacar o flanco esquerdo do adver- assim. <<arainha das batalhas>>.
sário disposto em linha, Frederico ll manda avançar o primeiro regimento sobre o «Guerra de simplórios>>onde todo o génio do estratega consiste em colocar um
flanco esquerdodo inimigo um poucoantes do segundo,o segundodo terceiro e inimigo numa posição tão difícil que ele se vê obrigado a recuar para as suas pra'
assim sucessivamente. De longe, o inimigo não consegue calcular a diferença de pro- ças-fortes a fim de se refugiar e render-se pouco depois? Na realidade, a guerra é já
fundidade prussiana,julgando-a paralela à sua. Bruscamente, o exército prussiano verdadeiramente mortífera. Mortífera devido ao fogo dos canhões, das espingardas
pára e dispõe-se num alinhamento oblíquo em relação ao do adversário. Frederico, e das baionetas.Mortífera, não tanto pelo número de mortos nos campos de batalha,
que colocou todas as reservas por detrás da ala mais avançada, contorna o flanco mas mais pelo dos feridos que morrem nos hospitais, antecâmaras da morte.
esquerdo do inimigo, surpreende-o pela retaguarda e vence-o. São desenvolvidos alguns esforços no sentido de <<humanizar>>
a guerra e, antes
Os tácticos franceses da época pensam que lhes será difícil adoptar esta ordem de mais, evitar o massacredos prisioneiros. Sai caro preparar um homem para a
dispersa, estas fileiras cerradas e estas descargas mortíferas. O soldado francês, guerra, fazer prisioneiros significa permitir a possibilidade de trocar combatentes
segundo dizem, não é capaz de aceitar uma disciplina de autonomia e alcançar a per- entre as partes adversárias.Celebram-setratados entre os inimigos que permitem
feição do tiro. essastrocas ou, pelo menos, garantem condições de vida suportáveis para os prisio-
Multiplicando as observações durante a Guerra de Sucessão austríaca (1740-1748), neiros. Quanto às populações, vêem-se os generais preocupados em evitar os saques,
a Guerra dos Sete Anos (1756-1763), os tácticos franceses,como o marechal da os estupros e <<aterra queimada>>.
A guerra, escreve o marechal de Belle-lsle, deve
Saxónia, vencedor de Fontenoy, o marechal de Broglie e o conde de Guibert, trazem fazer-se <<honestamente»,promessa que fica demasiadas vezes sem efeito. Conhecem-
diversos ensinamentos. Aplicam as suas teorias, efectuando manobras com as tropas se ainda devastações que, embora sendo menos cruéis do que as perpetradas pelas
de infantaria nos campos de Vaussieux (1778), as de artilharia em Estrasburgo ( 1764) tropas francesas no Palatinado em 1689, deixam territórios inteiros sem grandes
e no campo de Mauberge (1766), as de cavalaria em Metz (1788). recursos.
O cava]eiro Fo]ard na sua obra ]VouveJ/esdécoz4verfessur / 'arf de /a güerre (1724)
aconselhavaa substituição da ordem dispersa pela ordem compacta. As tropas dis À/IJilares e civis. O soldado é um fardo para as populações do reino que serve.
postas em colunas, em que os homens aglomerados se repartiam por 30 ou 180 filas, A ausênciade quartéis obriga os regimentos a deslocarem-sepelo reino de França
atacavam a fim de romper as barreiras do inimigo através de um impulso cujo ímpeto São 150 000 ou 200 000 homens, às vezes 300 000 que circulam deste modo e para
cra acrescido pela velocidade. Primeiro em 1755 e depois em 1777, Mesnil-Durand os quais é necessárioencontrar alojamento. O súbdito do rei fornece <<outensílio»
retomou as ideias de Folard sem se dar conta de que as colunas ofereciam uma melhor previsto pela lei: a panela,o fogo, a candeia,a cama ou o palheiro, mas o soldado
hipótese de destruir os canhões e as espingardas do adversário abrindo fogo. Guibert, exige víveres e bebidasem quantidadescada vez maiores. O hospedeiropode ficar
no seuExsafgé/zéra/de racfíq e (1772)-- um dos livros preferidosdo jovem semos seusmantimentos,a suaroupa... e a virtude das suasfilhas. Valendo-sedos
Bonaparte --, criticou este tipo de ataque em colunas. seus próprios <<privilégios>>,muitos súbditos fogem ao dever de dar abrigo aos sol-
A coluna é então alterada e passaa ser constituída por um número não superior dados, e o fardo recai sobre pessoas mais modestas. Quando chega um regimento
a 3 ou 4 homens à frente, que oferecem menor alvo ao adversário; as companhias para hospedar, algumas aldeias ficam desertas, os habitantes preferem deixar o cami-
nho livre e levar consigo o que podem esconder nos bosques, nas grutas ou nos con-
3 R. Mousnier (com a colaboração de E. Labrousse), Z,exvl/r' siêcle, PUF, Paras, 1984, p. 98 (1 .' ed. ventos. Pouco importa se o soldado é recrutado com maior frequência do que antes
1953) entre os habitantesdo reino, ele considera-sequaseem terra inimiga. A língua, os

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usos, os costumes e as práticas variam de província para província e muitas vezes o IA honra, para os menos dotados de espírito cavalheiresco, é estar integrado numa
soldado, longe do seu local de origem, não entende o modo de viver e de pensar dos comunidade que se venera e nos protege. Essacomunidade é, antes de mais, o bata-
outros francesesque o acolhem. lhão ou o regimento onde se presta serviço e que se distingue dos outros por um uni-
Nómadas, mais acostumados do que os civis à violência, que assim praticam com forme diferente de unidade para unidade e, sobretudo, por uma bandeira. Esta última
abundância,<<libertinos>>,
o mesmoserádizer que habituadosa viver uma vida que, é um instrumentode guerra, que faz com que os soldadosmantenhamas linhas e as
em grande medida, os coloca à margem das leis comuns, com frequência embriaga- colunas, se encontrem nos momentos em que a mistura desfez as fileiras. A bandeira
dos e por vezes protectores das jovens que pululam em redor dos acampamentos, os é sobretudo um símbolo; é, como afirmará mais tarde um soldado a Napoleão, <<ocam-
soldados infundem medo por muito tempo. panário da aldcia>>do militar. Abandonar a bandeira é a pior das traições, abandoná-
Com o alojamento em quartel, com o destacamentoprolongado em certas zonas, -la às mãos do inimigo significa dissolver, fazer morrer a comunidade.Cada regi-
como as de fronteira, com a melhor disciplina que se instaura nas tropas, o temor mento tem o seu grito de guerra lançado contra o inimigo, é a voz dos mortos que
desapareceum pouco. As cidades de guarnição vivem com o exército e através dele. se faz ainda ouvir e conta aos vivos as glórias passadas.A honra ordena aos solda-
A vida quotidiana é marcadapelo sino da igreja, mas tambémpelo rufar dos tam- dos que mantenham o autocontrolo no campo de batalha, impele-os a actos heróicos,
bores, o render da guarda, os exercícios, as paradas. O soldado compra e vende tam- à abnegação em relação aos outros, incita-os a conservar intacta a memória da epo-
bém a sua força de trabalho, não obstante os regulamentos: é esporadicamentejar peia antiga, a recordação de uma família militar com a qual compartilham alegrias e
dineiro, ceifeiro, segador,artesão.Convivendo, o soldadoe o habitanteaprendema tristezas. Cada regimento é como uma <<pequeqanação>>que tem o seu modo de viver,
conhecer-se melhor, às vezes a apreciar-se. O cidadão acaba até por considerar a pro osrseus ritos de iniciação, os seus costumes. ,/
fissão das armascomo um ofício digno de respeito, capaz de permitir uma certa A honra alimentao espírito de corpo de tÍm regimento,cria a suacoesãoem face
ascensãosocial, e o burguês passaa ver com melhores olhos o alistamento dos seus db inimigo e também em face dos outros regimentos. Travam-se rixas, duelos entre
filhos. O civil sabetambémque o rei organizaum sistemade pensõesque permite as várias unidades mas verifica-se, sem dúvida, o orgulho de pertencer a um exér-
a alguns militares escapar,no momento em que abandonamo exército, à pobreza e cito engrandecido pelos seus feitos.
à mendicidade. O Hotel des Invalidez oferece por vezesao veterano doente um refú- Contudo, esta sociedade militar'deixou de estar virada para si mesma. Nas vés-
gio e, tanto quanto se pode avaliar, a reinserção do soldado na vida civil torna-se peras da Revolução, os regimentos enriquecem-se com novos recrutamentos prove-
cada vez mais simples à medida que o século vai progredindo. Todavia, não é pre nientes das cidades c aldeias agitadas. A crise da sociedade civil afecta também a
liso generalizar e estender a todo o reino este processo de reaproximação entre civis sociedademilitar: queixas de alguns oficiais contra certos oficiais de corte mais arro-
e militares. Nas regiões que só muito esporadicamente conhecem a passagem das tro gantes e que nunca estão presentes na unidade, protestos dos oficiais subalternos que
pas, subsiste a antiga aversão e a deslocação das tropas gera o pânico. Em 1789, no vêem se(-lhes negadas as dragonas, protestos dos soldados contra as suas condições
momento do <(grandemedo>>de Julho e Agosto, os camponesesfrancesesconven- de vida.l
cem-se de que os regimentos em marcha em redor de Versalhes prenunciam a che
cada iminente dos salteadores, talvez até de exércitos estrangeiros que vinham aju-
dar uma conspiração aristocrática para submeter o povo. De soldado a soldado-cidadão
/ b

T' Á /armação de /na xocfedade mf/Içar. Em 1755, Jean-Charles Calais é soldado. 1 0 e.rércilo /zaciona/. O que fazer quando começa a faltar ao poder a força das
Cansado da profissão das armas, disfarça-se de artesão e deserta. É preso às portas bílk)netas?E este o dilema do poder real ein 1789. A 27 de Abril, tem lugar em Paria
da cidade por um tenente da polícia que reconheceu sob as vestes de artesão o corpo o primeiro dia de insurreição,e o exército composto pela guardafrancesa-- dis-
de um soldado. Calais, tal como os seus companheiros, possui uma marca indelével para sobre a multidão. No dia seguinte, começam as deserções. A população desen-
com que o exército o assinalou. Tem uma posição do corpo, um porte da cabeça, um volveu muitos laços com a tropa para que esta se mostrasseinsensível ao destino do
modo de caminhar e uma linguagem que o denunciam. Pertenceà sociedademilitar Terceiro Estado. Na vésperado dia 14 de Julho, a corte manda vir alguns regimen-
e f;ontinua, mesmo quando Ihe escapa, a participar na sua mentalidade, na sua cultura. tos das cidades com guarnição. As portas dos acampamentos encontram-se soldados
t Estes guerreiros, que os civis durante muito tempo e com frequência censuraram esfalfados, mal alojados, mal alimentados; os patriotas aglomeram-se e interrogam
po» se afastarem da comunidade, por possuírem modos grosseiros e o vício arraigado os militares: <<Não
sois também,como nós, do Terceiro Estado?Fuzilaríeis os vos-
nos corações,reclamampertencera um grupo social diferente dos outros. A partir sos 'irmãos'?>>Alguns soldados fogem das suasunidades enquanto as tropas da guarda
do momento em que o burguês do século xvnl proclama a sua própria <<utilidade real alemã ferem os revoltosos a 13 de Julho. Durante a noite, homens fardados mis-
social», o guerreiro contrapõe-lheo espírito de sacrifício e a aceitaçãoda morte. turam-se com os parisiensesna busca de armas. Na manhã do dia 14, a alguns pas-
Os mais propensos a elevarem a própria condição sustentam que semelhante força sos das tropas que estão acampadas no Champ de Maré, alguns patriotas avançam e
de ânimo se encontra sob a égide do rei, ao serviço de toda 4comunidade, da pátria, tentam forçar os portões do Hotel des Invalidez. Entre eles, há soldados. Os vetera-
terra avoenga, refúgio das tradições. E isto chama-se Honra. l nos do Hotel entregam, sem oferecer resistência, canhões e espingardas. As três cai

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a Bastilha. Entre os conquistadores da cidadela estão também soldados quc foram tude, exacerbando por vezes o patriotismo. São estes soldados, misturados com os
extremamente úteis no momento de preparar e apontar os canhões. De Julho a Outubro, outros, que, no dia após a queda da monarquia, suspendem por algumas horas, em
algunsoficiais afirmam por escrito que, se metadedos regimentos de infantaria e Valmy, os tiros de canhão do exército austro-prussiano. Ao grito de <(Viva a nação!>>
cavalaria estãogarantidos,.p resto do exército encontra-se efervescentee recusar-se- anunciam uma vitória (20 de Setembrode q792) que permite fundar, no dia seguinte,
á p dispararsobreo povo. a l\epública proclamada pela Convenção.
Em Agosto de 1790 estoira a revolta na guarnição de Nancy. Alguns soldados Estesvoluntários, convencidosdo sdíl êxito, regressama casa. Haviam prome-
insurgem-se contra as condições materiais cm que sc processa a sua existência, acusam tido ajudar as tropas de Ligne e, cumprida a missão, resolvem partir, não obstante
os oficiais nobres de subtrair dinheiro, realizam assembleiasdemocráticas em des- as ordens dos generais e dos ]-epresentantesdo poder. As autoridades ordenam uma
respeito pela disciplina e a hierarquia. A revolta é sanadapelas tropas que se man- nova leva em Fevereiro de 1793; esta leva de 300 000 homens é mal recebida pelas
tiveram fiéis aos seuscomandantes.Entre 1790 e 1792,verificam-se violências, rixas, populações rurais, que lamentam o facto de lhes ser sempre cobrado o imposto do
amotinamentos numa boa metade dos regimentos: os soldados, por vezes instigador sangue:os pobres não podem,como sucedecom os ricos, pagar a quem os substi-
por oficiais subalternosde origem plebeia ou por oficiais nobres<(patriotas>>
como tua. lgualdadel Que partam todos, senãorecusar-se-ãotodos a prestar o serviço mili-
Davout, alinham com os revolucionários das cidades, obrigando os oficiais a passa tar. Na parte ocidental do país, esta leva faz detonar os rancores acumulados contra
reW ao exílio forçado ou a emigrarem. ) a Revolução; é ela a causa da revolta e não tardará a formar-se um exército católico
A Assembleia Nacional constituinte teme que estas revoltas se virem contra ela e monárquico,primeiro enquadradopor plebeuse depois por nobres.Começaentão.
e que apareçaum ditador pronto a tomar o poder pelaforça. A fim de o evitar, actua a guerra civil, guerra atroz para ambos os lados, que só terminará com o Consulado.
no sentido de aproximar a situação dos militares da dos cidadãos. A assembleia pro- r''Em Junho, os jacobinos, colocados no poder a partir da insurreição dos revoluy
clama o dever de prestar serviço militar; mantém, no entanto, o voluntariado, mas ciànários, têm pela frente a primeira coligação que congrega Austríacos, Prussianos,
sob controlo apertado.Aplica ao exército os princípios da Declaraçãodos Direitos Ingleses, Espanhóis, Portugueses, Sardos e Napolitanos. E preciso <wencerou morrer>>.
do Homem: o recrutamentode quadros realiza-se através da aplicação do princípio Os revolucionários instalam o Terror no exército: expulsão dos comandantes aristocrá-
da igualdade de oportunidades, segundo o talento e o mérito. A disciplina abranda. ticos, com a sua substituição por patriotas, recrutamento em massa de todos os cida-
O militar que dispuser dos meios necessários para ser <<cidadãoactivo>>vota, aquele dãos, guena de massase guerra patriótica que deve substituir a guerra sábia dos par-
que tiver servido bem receberá esse direito de cidadania no momento da aposenta- tidários do rei. uin dia c uma noite de confrontos em que todos os Francesesse verão
ção. A fim de quebrar o espírito de corpo, são colocadasfitas tricolores nas bandei- envolvidos na eliminação dos mercenáriosdos príncipes. Em face da realidade,os
ras, diferentes para cada regimento. Deixam de se usar nomes nos regimentos, sendo jacobinos transformam o recrutamento numa incorporação (decreto de 23 de Agosto
substituídos por números. As próprias companhias deixam igualmente de ser desig- de 1793): todos os jovens solteiros ou viúvos sem descendência, dos 18 aos 25 anos,
nadas pelo nome do seu comandante, mas antes por números. Por último, no momento são integrados no serviço militar até à paz. Incorporação de soldados, incorporação
da fuga do rei(20 de Junho de 1791), alguns comissários da Assembleia são envia-: de todos os cidadãos: aqueles que não partirem terão de trabalhar no aprovisiona-
dg»junto do exércitoa fim de receberem
o juramentode fidelidadedastropas. mento e no armamento das tropas; também as mulheres e as crianças são chamadas
Paralelamenteao exército real, nasceum novo exército: a Guarda Nacional, milí' a participar no esforçobélico, os velhos devemdifundir o,ódio pelo rei. Nem frente
cia burguesa constituída por cidadãos «activos>>,que pagam impostos. Vestida de nem retaguarda,mas um povo unido contra os tiranosl É a palavra de (?!demdos
azul e vermelho segundo o modelo dos guardas franceses, a Guarda Nacional, com jacobinos escrita nas bandeiras, ostentando agora todas as cores nacionais
os seus calções brancos (cu/errei), é tricolor como a bandeira nacional e opõe o seu Unidade da Nação, Unidade do Exército: a lei da amálgama,votada ern'Fevereiro
próprio uniforme ao dos soldadosreais, em que predomina o branco. Por ocasiãoda }e 1793, prevê que os soldados usem todos o mesmo uniforme, o dos voluntários,
fuga do rei e no dia seguinte ao regressodo soberano de Varennes, os voluntários com o intuito de suster os particularismosdos ex-regimentosreais e põr termo ãs
nacionais abandonam a Guarda Nacional dos departamentos. Mais de 100 000 homens rixas que por vezesopõem os <<calças brancas>> os soldadosregulares-- aos <(por-
empenham-se na defesa da pátria em caso de conflito e deslocam-se para os postos celanasazuis>>,termo usadocom desprezopara designar os voluntários. Mesmo uni-
fronteiriços. Têm um tipo de alistamentoe uma disciplina diferentesdos das tropas forme, pré e disciplina idênticos, recrutamento semelhante para os comandantes: um
reais. Os voluntários elegem os seusyhefes, por norma entre os enobrecidos, os filhos terço convocado por antiguidade no serviço, os outros dois terços eleitos pelos subor-
dps burgueses e os nobres liberais,.,/ dinados imediatos e escolhidos entre os quadros que possuem o posto para o qual se
t Este novo exército de homens que, apesar da farda, não deixam de ser cidadãos, processaa escolha. A lei recomenda também vivamente a formação de meias briga-
vê-se ainda reforçado no Verão de 1792 com novos voluntários no momento em que, das, juntando um batalhão do exército antigo com dois batalhões de voluntários: o
declarada a guerra em Abril, a pátria se encontra em perigo. Os voluntários de 1792 patriotismo destesúltimos deve ser transmitido ao primeiro, enquanto os soldados
formam diversos batalhões. São com ü-equênciapobres, enquadrados por gente modesta veteranos se encarregamda instrução dos voluntários na arte da guerra. Esta amál-
e sem experiência militar. Uns ingressam pelo espírito democrático, outros por neces- gama vai-se concretizando progressivamente apenas a pai\r do Verão de 1793 e só
sidade. Alguns deles são integrados nos regimentos regulares; mudam então de ati- ficará concluídaentrefinais de 1794 e princípios de 179q

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l Agora, os militares criados pelo exército do ancíen régfme, os voluntários de O jacobino quer transformar estes soldados em cidadãos-modelo. Apregoam-se
]791, de 1792 ou de 1793, c os recrutados em 1793 e 1794 vivem juntos, comparti- os'seus méritos, o espírito de sacrifício pela causa nacional, a solidariedade no seu
lham as mesmas tendas, comem na marmita à volta da mesma panela. Louis Glence, seio e para com os civis. No Recuo?í/des ac/fo/!s /zérolques que a Convenção elabo-
nascido em 1756, na Bretanha, numa família de fabricantes de cabeleiras postiças, rou, são realçadas as acções valorosas dos guerreiros da nação, após o que a colheita
oficial subalterno do exército de Luís XVI, encontra-se ao lado de Henri Grimal. de é distribuída às municipalidadese às crianças nas escolas. O guerreiro morto não
56 anos, originário da Lorena,voluntário dc 1791,de Jean Tardif, de 23 anos,nas desaparece:o jacobino luta no exército, tal como na sociedade, contra a cristianiza-
cêdona Borgonha, camponêsde profissão, voluntário de 1792, de Pierre Lassia, pro- ção (algunssoldadosforam os vectoresdesta luta contra o catolicismo). A conven-
fessor de Matemática, ou de Bessa, negociante, todos incorporados em Pauis.Cadinho ção montanhesa,ao instituir o culto do Ser Supremoe reconhecera imortalidadeda
militar, o novo exército reflecte a mistura da nova nação:nele se encontramtodas alma, transfere este culto para o exército. Associado ao da Pátria, de que os solda-
as profissões e todos os tipos de fortuna, desde o filho do agricultor ao do comer- dos são apresentados como ardentes defensores, o culto do Ser Supremo advoga que
ciante ou dos representantes das profissões liberais. O alsaciano aprende a viver com as Mãos dos soldados velam pelos seus companheiros de luta. A Convenção associa
o provençal, um descobre a língua de pronúncia áspera do Nordeste da França, o num Panteão ideal os soldados adolescentes que se sacrificaram, como Vialq e Bara,
outro o dialecto de inflexões melodiosasdos paísesdo Mediterrâneo,um a cozinha inspirando os primeiros monumentos aos mortos da guerra revolucionária.
com manteiga, o outro a cozinha com azeite. Trocam na sua vida quotidiana os cos- O soldado é assim convidado a substituir a honra antiga do guerreiro pela virtude
tumes, os cantos das suas regiões de origem e identificam-se como Franceses pondo cívica. Esta implica o esquecimentode si próprio pela defesa de toda a comunidade.
deHado as diferenças culturais. \ Tal virtude encontra também a sua aplicação na obediência às leis e aos representantes
l.Todos Franceses?Ao lado dêles, há ainda patriotas estrangeiros, Belgas, Batávios, da nação soberana,no respeito da propriedade, particularmente em país estrangeiro:
Alemães, Italianos ou Polacos, que formam legiões estrangeiras a fim.de assegura- <<guerraaos castelos, paz às cabanas>>é a palavra de ordem comunicada às tropas
rem ao próprio país o fim do governo dos príncipes e dos aristocratasÕ
Sulkowski, republicanas.
por exemplo, é um polaco que passaráa ajudante de campo de BonapaÊteem ltália. São diveiâas as consequências deste jacobinismo que invade o exército: ao lado
dàs militares convictos, encontram-se os moderados e indiferentes. Ao lado dos des-
Um exércí/o repab/lca/zo.lO jacobino do ano ii zela pela educaçãocívica deste cristianizadores, está o católico que continua a professar a sua fé: encontram-se ainda
novo exército. Por intermédia'xlo representante em missão, deputado da Convenção, capelães, dissimulados em alguns batalhões, até ao ano ii. Ao lado do soldado <<vir-
dotado de plenos poderes, e através de inúmeros agentesdo governo, desde comis- tuoso>>
que divide <<opão negro da liberdade>>com os habitantes dos paísescon-
sários de guerra até juízes militares, magistradosjacobinos, os montanheses'ensi- quistados, surge o ladrão que zomba de uma justiça que Ihe traz a condenação à
nam aos soldados as razões da sua luta: a abolição total do <<feudalismo>>, a liber- morte. O soldado que respeita o prisioneiro de guerra é o companheiro daquele que
dade da terra e dos homens, a igualdade e a unidade de uma nação em guerra contra massacra o adversário. Não terá a própria Convenção recomendado este acto em res-
a aristocracia francesa e europeia. Os discursos dos representantes em missão, as fes posta às atrocidades cometidas por algumas tropas inimigas? Com efeito, é frequente
tas cívicas em que soldados e cidadãos se misturam, os clubes e as sociedades popu- existir uma fractura entrea lei e a praxe,e o governo revolucionário entende,como
lares onde eles se reúnem, as canções patrióticas como a À/asse//tesa-- ou outras sucedia, aliás, com o a/zcíen régíme, a necessidade dlg<lnantervivos alguns comba-
ainda criadas ao estilo deste hinoÀas obras teatrais são outros tantos meios utiliza- tentes, para depois os usar como mercadoria de troca.
dos pelos pedagogos da República. l.Todos estes soldados, que se queria transformar eín missionários da liberdade,
Encontram-se no exército militalntes revolucionários de todos os credos: ultra- acabam,ainda que noutra medida, por participar na exaltação de uma grande Nação
revolucionários instruídos por Herbert, que envia às tropas o seujornal, Z,ePare niveladora e conquistadora e cair no chauvinismo. Ao lado do soldado que ainda quer
Z)ac/zesne,jacobinos que lêem Z,'A/zffZdéra/lsfe ou o Bu//efín dei Z,oís,cis- ser cidadão, está o antigo ou o novo profissional da guerra e é a ele que Carnot dedica,
-revolucionários próximos de Danton ou de Camille Desmoulins. Os montanheses na véspera do 9 Termidor, o seu jornal Z.a soirée des campa que, contrastando com
reduzem as <<facções>>presentesno corpo civil, lutando simultaneamentecontra elas o espírito jacobino, tenciona fazer do anterior cidadão armado um militar, membro
no exército, que submetem a uma disciplina rígida.X.Cidadãosdiminuídos? Os sol- de uma sociedadeparticular. O jacobino adopta, por exemplo, no âmbito social, uma
dados votam, mas a prática deste acto cívico apresenta-secom frequência viciada política de assistênciae de beneficência, tanto para o militar como para o civil. Para
pelo conformismo. Contudo, eles conservam o direito -- na verdade limitado -- de Carnot, o militar tem mais direito do que o civil a essaassistência,porque é o téc-
eleger os seus comandantes, os conselhos de administração, uma espécie de peque nico mais útil a todo o corpo social.
nas municipalidades das meias brigadas que orientam a sua vida e os júris dos juí-
zosmilitares.l « Z)o sa/dado-pczrriora ao féc/zícõ'ãa guerra. Em 1794, o exército francês torna-se
um exército de massas.Era constituído por um contingente até então nunca visto
4 Membros esquerdistasda Convenção Nacional da primeira Revolução Francesa,habitualmente sen- - quase 800 000 homens --, sendo o milhão de combatentes anunciado pela tribuna
tados na Montanha (bancos do a]to da sa]a das sessões).(N.T) da Convenção um mito destinado a intimidar o adversário e a confortar a nação

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O exército da Revolução não se compara sequer ao exército do rei. Durante a Guerra Para alguns revolucionários, o fogo é menos importante do que a arma branca:
dos Sete Anos (1756-1762), o rei de trança recruta 270 000 homens, dos quais 70 000 a baioneta,o sabree às vezes mesmoa lança. Para o patriota, a arma brancaé uma
são estrangeiros. Em 62 anos, de 170] a 1763, a monarquia faz alistar 460 000 homens espéciede mito: a arma por excelência das insurreições, é considerada a mais eficaz
e prepara 1 545000 para ter um exército de 160000 homens em pé de guerra. Em no combate de assalto, que deve ser a forma de combate dos soldados-cidadãos.
pouco menos de um ano, a República organiza um exército equivalente a quase metade O meio mais simples de suprir a arte tradicional da guerra é utilizar a massahumana.
dos <<nacionais>>
recrutados pela monarquia em mais de um século. Convém reunir o maior número de tropas possível no ponto de ataque previamente
Um númeroconsiderávelque, em grande parte, tem ainda muito que aprender escolhido e, com o auxílio deste reagrupamento, passar ao ataque de baioneta em
sobreo ofício dasarmas.No início, o soldadoaprendea guerramarchando.A guerra riste, de canto patriótico nos lábios, atacar,empurrar, aniquilar o inimigo. Abaixo a
de posição torna-se uma guerra de movimento que é, segundo a fórmula jacobina, táctica antiga, grita o revolucionário, que é a táctica dos mercenários do rei, a guerra
revolucionária deve ter um novo estilo. <(Atacai,atacai sempre sem trégua, em colu-
rápida como <<afaísca eléctrica>>.O soldado é mais do que nunca um <<péempoei-
rado>>.
De mochila às costas,a espingardaa tiracolo, deve ignorar a fadiga, sobo sol nas compactas, a baioneta calada>>,recomenda o representante em missão. Esta guerra
escaldantedo Verão e ao percorrer os caminhos com neve ou gelo do Inverno. Não de massasfaz-se acompanharinicialmente de uma <(guerrapsicológicu>,de uma
existem estaçõespara a guerra. Os diários de viagem destes soldadoscontam-nos o guerra subversiva. Seguindo a recomendação de Rousseau de <(desta-uira convenção
tempo breve da paragem, o alerta constante, o conteúdo da marmita devorado rapi- pública do Estado adverso>>,os militares enviam prospectos aos soldados inimigos,
damente,o papelão despejadopara apagar a fogueira do acampamento,a marcha incitando-osa abandonara causado rei para sejuntarem à do povo.
incessantemente retomada. Aymez, voluntário parisiense de 1792, atravessa em sete O resultado desta guerra é, após algumas derrotas, a obtenção de uma vitória muito
anos de guerra a região parisiense,o Norte da França,a Bélgica, a parteocidental cara em termos de vidas humanas. A sangria é tão grande nas várias unidades que estas,
da Alemanha, a Suíça e o Norte da Itália. Em 1796, percorre em seis meses 1432 apesar de dominarem o campo de batalha, não podem perseguir o adversário e ani-
quilómetros. As etapas nunca são iguais: no dia 7 de Setembro, apenas 8 quilóme- quila-lo, como impõe a Convenção. Houchard, vencedor de Hondschoote (8 de Setembro
tros, no dia 25 são, ao invés, 48, e sempre a combater. de 1793), será guilhotinado por não haver perseguido e aniquilado o exército inimigo.
Aylnez confessa que, pol' vezes, ele e os companheiros marcham enquanto dor- O governo revolucionário retira ensinamentos destas hecatombes. Suspendeos
mem. O efeito deste desgaste físico encontra-se ainda patente nos registos de con- saneamentosde que eram objecto os quadros nobres; cerca de um milhar destesúlti-
mos ficam. ou são enviados em auxílio de Carnot nos gabinetes de guerra, onde feto
trolo das tropas ou nos dos inválidos. Há aqueles soldados que ensurdeceram de tanto
\
ouvir os canhões, há homens que sofreram o prolapso de um órgão em virtude dos mam planos ou projectos elaboradosdurante a monarquia. O oficial do Estado-Maior
esforços violentos que, a longo prazo, provocam hérnias protuberantes.As péssimas Barthélémy cria o agrupamento das unidades de combatentes em divisões e, tal como
antes.constitui divisões com 5000 ou 10 000 homens, unindo duas meias brigadas de
condições de vida associadas aos esforços excessivos e irregulares originam nume-
rosos reumáticos e soldados afectados por dores de rins crónicas. A alimentação, a infantaria, pesadaou ligeira, com a cavalaria e com a artilharia. As <<massas>>
tornam-
vida austeranas regiõesfrias e insalubres,a que vêm aindajuntar-se os esforçosda se operacionais, <<activap>,e é assim que os quadros adquirem mais conhecimentos.
marcha, conduzem a depressões ou à tuberculose. Estas doenças, que existiam já nos O governodo ano ii lança-sena procurade talentos.As unidadessãopassadas
em
revista a fim de descobrirem no seu seio homens que saibam ler, escrever, contar, tra
exércitos do século xvlll, aumentam com as guerras da Revolução e do Império.
Outras se lhes vêm juntar. A paragem é com demasiada frequência consagrada a Baço çar e interpretar mapas. Estes últimos, promovidos, são por vezes enviados aos acam-
ou a Vénus. O alcoolismo é um mal típico do exército; as doençasvenéreascon- pamentos instalados na retaguarda das tropas que combatem; juntamente com solda-
traídas através de milhares de raparigas que seguem as tropas, não obstante as ordens dos e oficiais subalternos, aprendem, num curto espaço de tempo, o essencial sobre a
do governo, tornam-se, juntamente com a sarna, um verdadeiro flagelo. As condi- táctica. Regressando depois aos seus batalhões, transformam-se então em pedagogos
ções de vida transformam, ao cabo de alguns anos, um soldado de 20 anos num velho. Os jovens generais aprendem na escola dos seus adversários, trazem ensmamen-
Quando Jacquin regressa da guerra, os seus parentes, e até sua mãe, recusam-se a tos das batalhas, habituam-se a pouco e pouco ao combate interarmas, impulsionam
acreditar que ele seja um seu familiar. a instrução dos homens, utilizam o ataque em colunas bem como em filas ou em qua-
Marchar, combater e fazer, assim, as primeiras experiências com as armas. Na drados de defesa. O instrumento de guerra legado pela República a Bonaparte é muito
estradaou no acampamento,
o jovem recrutaaprendeos rudimentosdo ofício que melhor do que afirmam alguns historiadores. Bonaparte sabetirar daí o máximo pro-
Ihe são transmitidos pelo veterano. Quer isto dizer que inicialmente as batalhas são veito. Eis, a título de exemplo, e pela pena de Vago-Roussillon, combatente da cam-
travadas por aprendizes inexperientes, a quem o fogo amedronta, debandando com panha do Egipto, um episódio da batalha das Pirâmides:
facilidade. Apesar do esforço de guerra desenvolvido pelo governo revolucionário,
por vezes faltam as armas ou são de má qualidade. São aproveitadas armas que per- O general Bon ordenou à metade do primeiro lado do seu quadrado que tomasse a
tenceram ao ancíe/z régíme, fabricam-se algumas, e outras ainda são requisitadas aos dianteira e atacasseo acampamentoinimigo. Todos os pelotões pares deste lado, inte-
particulares. As espingardasnem sempre estão isentas de perigo para aquele que as grados por carabineiros da 4.' ligeira, marcharam em direcção às trincheiras inimigas
Encontrávamo-nosa 200 passosdelas quando fomos atacados,com extrema coragem,
utiliza. Explodem na cara dos combatentesque, por vezes,não as sabemmanejar.
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por uma multidão de cavaleiros. Os nossos pelotões marchavam separadamente,em vir rebeldes desertam, e das centenas de milhares de homens previstas no final do
tude do erro cometido pelo general Bon, que destacaraapenasos pelotõespares, sem os Directório não resta senão um contingente, sem dúvida bastante compacto, mas insu
mandar avançar unidos. Felizmente, estes pelotões estavam dispostos em seis filas e, ficiente para anular a constituição do exército. Trata-se, portanto, de um exército onde
muito embora cercados e separadosuns dos outros, formavam pequenasmassas,uma predominam homens que combateram por vezes continuamente durante sete anos.
espécie de quadrados cheios, a partir do momento em que as três últimas filas haviam De soldados-cidadãos,os militares transformaram-se em profissionais da guerra.
avançado até à frente... Abrimos fogo a dez passose enchemos a terra de homens e
Longe do próprio país durante anos, fogem em grande parte à autoridade civil, para
cavalos. Entretanto, continuávamos a avançar sobre as linhas de defesa que insistiam na
sua manobra de viragem. Subitamente, o comandante do batalhão, Duranteau, manda- caírem nojogo dos seusgenerais.Estesúltimos distribuem a prata e o ouro dos paí-
nos avançar em comida, sobre a aldeia de Embabeth, que servia de apoio na parte esquerda sesconquistados, organizam o recrutamento dos quadros e a justiça militar. Transferem
do acampamento.Chegámos lá num instante e conseguimos, deste modo, controlar a o culto da pátria para a sua pessoa, fazem nascer um espírito de corpo hasteando ban-
única saídado campo inimigo. Os mamelucos tentaram sair de lá, mas não tardou que deiras onde estão escritos os nomes das batalhas em que participou cada unidade e
a entrada da aldeia ficasse bloqueada com os corpos de homens, cavalos e camelos, caí- distribuindo sabresde honra, a primeira condecoraçãomilitar do regime republicano.
dos sob o nosso fogo, e que formavam uma barricada alta. Era horrível a camificina. Antes de se ser soldado da República, é-se soldado da meia brigada onde se presta
serviço; antes de se estar ao serviço da Pátria, está-seao serviço <<doexército de
Os furores dos combates custaram mais de 480 000 baixas aos exércitos da Bonaparte>>ou do <exército de Bernadotto>. Os componentes do primeiro, ainda mar-
Revolução. Os mortos no campo de batalha eram ainda menos numerososdo que os cados por um certo espírito jacobino, vêem os componentes do segundo como <aris-
que morriam no hospital como consequênciadas epidemias. Os cirurgiões, sobre tocráticop>. chamam-lhe <(Senhores>> e batem-se com eles em duelos individuais ou
carregados de trabalho, cortam a carne, despedaçamos ossos com um movimento colectivos. Cada general tem assim a sua própria <<clientela>>,
que Ihe permite fomiar
rápido da mão, enquanto o soldado aperta com força o cachimbo nos dentes, e se o e dissolver os governos dos paísesocupados, afastar as autoridades civis para assi-
cachimbo cai e se parte, é porque o soldado morreu. nar os tratados de paz. Fazendo de procânsules, os comandantes tomam o gosto ao
A violência da guerra torna-se extensiva às populações: enquanto os generais, poder civil e pensam intervir também nas lutas políticas internas em França. A classe
como Bonaparte, procuram impedir o saque, o soldado mal alimentado percorre os política, ameaçadapelos realistas em 1797, aceita-os. Bonaparte, tal como coche,
campos, roubando e semeando a violência. No final da Revolução vêem-se os oficiais manda para França os oficiais e os soldadosque participaram num golpe de Estado.
retomar as cidades que expurgaram, cobrar impostos aos habitantes, enriquecendo o Simultaneamente, Bonaparte industria os seus soldados, retoma o culto dos mortos
seu espólio de guerra. Basta que chegue a ordem de retirada, e o exército em deban- destinado apenasà sociedade militar, enaltece o heroísmo dos combatentes e com-
dada não poupa mais ninguém. Em 1796, o capitão Humblot descreve a retirada do para-o aos costumes dos homens políticos, que vê como dissolutos. Manda os seus
exército de Lambre-et-Meuse: soldados redigir petições ameaçadoras dirigidas aos poderes constituídos: <<queestes
mantenham viva a República ou o exército intervirál>>
Vi os habitantes reduzidos à mendicidade porque lhes haviam levado o gado, a Nas vésperasdo golpe de Estadodo 18 Brumário (1799), os generais,sem que
comida e todo o tipo de provisões; apenaslhes restava um pedaço de pão que banha- Bonaparte tenha regressado do Egipto, imiscuem-se na política. Uns tomarão o par-
vam de lágrimas e que qualquer soldado bárbaro lhes vinha arrancar. Mas a brutali- tido dos neojacobinos, outros o dos revisionistas, como o abade Sieyês, que preten-
dade não havia alcançado ainda o seu auge; os soldados queriam também, e com os deu mudar as instituições.Por sua vez, Bonapartealicia ambasas partes, consegue
tratamentos mais cruéis, que estas pobres vítimas do seu furor lhes entregassem quan- manipular as assembleias por intermédio do seu irmão Luciano e fazer propaganda
tias de dinheiro, muito embora não possuíssemsequerum vintém, tendo já, com os a seu favor através da imprensa. É escolhido pelos revisionistas e pelos nobres empo-
últimos sacrifícios, pago vinte vezes a sua própria existência. brecidos da segunda coligação e do renascer do movimento dos jacobinos. O plano
arquitectado para levar as assembleias políticas a transformar a Constituição decorre
O regresso dai pro/ixslolzaís da gzlerra. O exército esgota-se. Em 1798, amea- sem obstáculos no 18 Brumário, data em que os deputados aceitam transferir-se para
çada por uma segunda coligação, a França promulga a lei Jourdan sobre a conscri- Saint Cloud, mas no dia seguinte a questão toma-se, de novo, dramática. Alguns ape'
ção, que substitui a requisição. Agora, os jovens de 20 anos solteiros ou viúvos sem lidam Bonaparte de ditador e ameaçam manda-lo prender. O general fica muito aba-
filhos são inscritos anualmente em registos onde fica anotada a sua identidade e cons- lado e só consegueser salvo graçasao espírito de iniciativa do irmão. O exército
tituição física. Os que tiverem entre 21 e 25 anos, formam outras quatro classes.São reunido para defender os deputados transforma-se em exército de golpe de Estado.
sorteados de entre estas classes os constituintes de um contingente para o exército. Murat invade a sala de sessões e ordena aos seus homens que <<expulsem estas pes-
A conscrição,que estabeleceo serviço militar obrigatório com carácter regular, man soas>>.
O Consulado nasce à sombra das baionetas. Caminha-se para uma ditadura
ter-se-á em vigor até ao século xlx. Mas a lei é logo viciada pela possibilidade que militar? Alguns soldados desejam-no, afirmando que uma nação em guerra deve ser
se oferece aos conscritos de pagar a um substituto. Cria-se deste modo o comércio militarizada. Os burguesestemem cair «sob o chicote de uma ditadura>>,brandido
de homensque permite aos mais ricos a fuga ao serviço militar. Napoleão Bonaparte por uma soldadesca que os despreza. Bonaparte é suficientemente inteligente para se
irá restaurar o sistema de constrição. No entanto, este sistema está malvisto; muitos mostrar mais como Chefe de Estado civil do que como general. Reconcilia os <<par-

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tidos>>,reaproxima o republicano notável do nobre regressadodo exílio, dedica-se na abre também aos filhos dos estrangeiros notáveis a porta das escolas militares. Deste
manutenção da paz no interior e no exterior. Em 1802, para muitos Francesesele é modo, alguns habitantes das Províncias llíricas receberam bolsas de estudo para ins-
o <<Salvador>>.
Todavia, o primeiro cônsul deve ter em atençãoos militares e a clien- trução em Saint-Cyr ou no Politécnico. Segundo as intenções do imperador, o exér-
tela dos generais que tramam contra si. Precisará de tempo para se tornar, em 1804, cito deve ser também um cadinho onde se forja a unidade das diversas populações
o dono absoluto do exército. que constituem o seu império.

O se/dado e o «pékln». Napoleão procura reatar os laços entre a sociedademili-


O soldadonapoleónico tar e a sociedade civil, mas fica a meio do caminho. Subsistirá sempre uma certa des-
confiança da parte do burguês em relação ao militar e uma arrogância deste último
Exért/ro /bacio/za/o l e.rércífode (Óz'cío?O recrutamentodo exército no regime em relação ao civil, que define com o termo depreciativo de <<pékin>>.
imperial processa-se através do voluntariado, mas sobretudo por via da conscrição. No início, o imperador procura atrair os filhos dos notáveis -- burgueses ou nobres
Esta não é igualitária e varia segundo as classes sociais e as regiões, possuindo, inclu- instruídos -- às suasescolas para oficiais. Estas devem formar bons técnicos e são,
sivamente, modalidades diversas nas cidades ou nos campos. É frequente os campo ao mesmo tempo, portas abertas para o mundo civil, acabandopor unir as elites a
nesespobres integraremo exército. O contributo de homenssolicitado à França é que durante muito tempo a Revolução se opôs- São tais as necessidadesda guerra
relativamente brando no decurso do Consulado e do Império, mas o efectivo das que Napoleão não consegue sequer aumentar em mais de Ioga o número de oficias
incorporações não cessa de aumentar, passandode 113 000 homens em 1805 para formadosnasescolas.Vamos encontrarao lado destesoficiais vindos de fora de
165 000 homens em 1806, e para mais de um milhão de conscritos entre 1812 e 1813. Saint-Cyr ou do Politécnico, outros que vieram da tarimba, entre eles, inúmeros filhos
No total, são integrados no exército 2 milhões de homens, ou seja, 37% dos homens da pequenaburguesia,atraídospelo esplendore pela glória do ofício das armas.
que podem ser mobilizados e 7qü da população total. Muitos conscritossão insu- Os dados estatísticos que se podem apurar com base nos processos de inspecção dos
bordinados ou desertores, mas em 1810 as autoridades conseguem estancar a hemor- oficiais demonstram que os quadros do exército napoleónico pertenciam às classes
ragia: naqueleano, o número de renitentes passade 68 000 para 9000. médias. Nem todos os soldados, contrariamente ao que se diz, traziam na mochila o
O exército nacional conserva um forte núcleo de veteranos de guerra e de revo- bastão de marechal.
lucionários; em 1803, são mantidos ao serviço 174 000 homens das classes etárias Napoleão deseja também formar oficiais, notáveis assimilados àqueles em que
de 1792 a 1799. Os conscritos que se lhes unem só deixam de ser militares com a firma o seu poder sobre a sociedade civil. Se é verdade que o pré dos oficiais subal-
hospitalizaçãoou a morte. Assim, sob a fachadade um exército nacional,oculta-se ternos dificilmente lhes permite conservar o posto, também é verdade que o imperador
um exército profissional que se perpetua e inculca nos recém-chegados as regras e asseguramuitas vantagens: títulos de nobreza ou condecorações que valem uma renda,
os costumes da sociedade militar. estatuto jurídico que transforma o oficial num homem que de certo modo escapa ao
destino mais comum, bolsas de estudo concedidas aos filhos para que entrem nas
Exérclfo Ráfia/za/ ou exércffo das nações? Este exército nacional é, tal como na escolasmilitares,vagasdistribuídasàs filhas na Maison de la Légion d'Honneur.
épocada Revolução, o cadinho do país. De qualquer forma, os Francesesaprendem Mas sobretudo o que conta nesta França que se pretende igualitária é a <<etiqueta>>
o caminho dos acampamentospara se misturarem uns com os outros. A conscrição, o reconhecimento das honras e das precedências nas manifestações públicas. Nesta
dirá Napoleãoem SantaHelena, era uma instituição que entrou nos hábitos sociais matéria, o código de 1804 reserva aos militares um lugar melhor do que o concedido
e só as mães tentavam dissuadir os filhos do dever de servir. Mas isso significa esque aos civis.
cer que até 1815 haverá sempre renitentes, que aumentarão após a campanha da Enobrecidos, os marechais e os generais do Império devem-no ao património.
Rússia, formando diversos bandos. Para além das remunerações elevadas e por vezes acumuladas, os recursos dos ofi-
Exército nacional? Com a ajuda do tempo, o Grande Exército napoleónico trans ciais superiores provêm também das doações anuais concedidas pelo Imperador.
forma-se no exército das nações submetidas ou satélites. Até 1814, a República Assim, Berthier ultrapassao milhão de renda anual, Massena e Davout possuem
Cisalpina,que se tornou o Reino de Itália, contribui com 218 000 homens,o Reino rendimentos que se aproximam desta quantia. No entanto, o dinheiro não apaga as
de Nápoles com 60 000, a Espanhacom 15 000, a Confederação do Reno com 120 000, origens nem a falta de educação. Para um Davout que, nobre do a/zcíerzrégíme, é
a Suíçacom 10 000, a Holanda com 36 000. A estescontingentesvêm tambémjun- reconhecido pela alta sociedade, quantos generais há como Lefebvre, filho de um
tar-se os Portugueses e os Polacos. guarda das portas de uma cidade alsaciana, velho sargento do exército real e marido
Bonaparteaplica a este exército das naçõeso princípio da igualdadedos cons- da lavadeira Hübschcr, <(Madamesans-Gêne>>? Este casal é objecto de mofa não só
critos dos paísesanexados.Todos podem ser promovidos a oficiais. Eis o exemplo por parte dos notáveis, mas também dos generais nobres do íz/zcíelzregime, numero-
do jovem conscrito Traversa. E um italiano nascidoem Alexandria, capital do depar- sos nos exércitosde Napo]eão(em ]814 havia ]66 num total de 277 generais).
tamento de Marengo. Alista-se aos 20 anos. A sua coragem e o seu talento militar Em suma, Napoleão pretende, através dos militares, dar um impulso moral à socie-
valem-lhe a promoção a alferes num regimento de infantaria ligeira, em 1813. Napoleão dadeque procuracriar. Entre os civis que privilegiam o individualismo e a procura

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do dinheiro, o guerreiro deve ser um pedagogo da honra. O imperador retoma e con decisivo. Este princípio é posto em prática com manobras na retaguarda do inimigo
centra em si a honra dos oficiais do -anc/e/zr(ígíme e a virtude republicana. Herdeiro ou com manobrasna posiçãocentral. O primeiro modo de agir é usadoquando
da antiga cavalaria, o militar recebe como gesto simbólico as primeiras Legiões de Napoleão detém superioridade total em relação ao adversário. Lança as suas tropas
Honra colocadas no elmo de Bayard. Legatário da virtude republicana, o militar deve sobre a retaguarda do inimigo, para o prender como numa rede. A manobra na posi-
esquecer tudo, amor, família, interesse pessoal, a fim de enfrentar o sacrifício supremo ção central é usadana ausênciade superioridadenuméricado seu exército. Com
por uma pátria agora encarnadana pessoa de Napoleão. Nos discursos que prepara alguns movimentos, Napoleão divide o inimigo para tomar uma posição central entre
ou manda preparar para o público das escolas militares, Napoleão insiste constante- as diferentes fracções. Manobra então desta posição para aniquilar, sucessivamente,
mente em que o militar deve impregnar a sociedade civil da honra dos campos de cada uma das unidades que Ihe fazem frente.
batalha. Entre os militares, poucos são aqueles que se mostram preocupados com tal A velocidade que permite concentrar nuíú' determinado ponto o máximo de for-
missão. ças e surpreender o exército inimigo é uma necessidade absoluta. Napoleão vence
Se,com as paradase os desfiles militares e com a leitura do <(Bulletinde la Grande grande parte destas batalhas com as pernas dos soldados aos quais impõe caminha
Armée>>,de difusão generalizada, a sociedade militar comunica os seus valores à das longas, rápidas e extenuantes.
sociedadecivil tanto Vigny como Musset são disso testemunho e referem-no nas Adopta dispositivos diversos no campo de batalha: a infantaria pode ser disposta
suas obras --, o militar continua separado do burguês por uma barreira. A sociedade em duas linhas, a segundaindependenteda primeira. Esta última encontra-sepor
militar observa os seus próprios ritos de iniciação, os seus próprios costumes, a sua vezescompletamente enfileirada ou então apresentauma sucessãode batalhõesdes-
própria cultura, diferente da da sociedade civil. O guerreiro não passade um nómada, dobrados ou de batalhõesem coluna destinadosa servir de apoio aos primeiros. No
que só constitui família numa idade já avançada.Nómada glorioso, tem o orgulho início da época imperial, as colunas comportam intervalos de desdobramento. A falta
e às vezes também a vaidade de se impor, através da espada e das vitórias alcan de instrução das tropas obriga depois a manobrar em colunas compactas onde é fácil
çadas,como a elite da Grande Nação. O militar pode frequentar os civis na socie- manter o alinhamento, mas em que a tropa menos móvel fica mais exposta ao fogo
dade, nos salões que de vez em quando se Ihe abrem, nos bailes da corte ou do Hotel do adversário. Os fogos de linha constituem uma excepção. São mais usados os fogos
dos atiradores:os soldadostêm mais iniciativa, enervandoe matandomais elemen-
de Ville, mas nunca se «compromete>>inteiramente com homens que considera com
condescendência, se não mesmo com desprezo. O que podem ter em comum homens tos do exército que combatem.A cavalaria, na retaguardada infantaria, tem duas
encerrados nas suas lojas ou nos seus negócios, que vivem uma vida medíocre em linhas: a segunda,que serve de reserva,é independenteda primeira. Esta atacaem
buscade riqueza-- dizem os militares e guerreirosque gastamo dinheiro sem o ondas sucessivas,acabandopor romper as linhas, perseguindo e desferindo saibra-
contar e atiram o ouro sobreas mesascomo fazem com a vida nos combates?Os das sobreos militares em debandada.A artilharia é repartida à frente em pequenos
franco-maçõesentrincheirar-se-ãonaslojas militares. Com frequência,ateuse anti- grupos formados por dois a oito elementoscolocadosnos intervalos dos batalhões
clericais zombarão da falsa beatice do burguês. O regimento a que pertence constitui ou por detrás da primeira linha quando se consegue ter uma posição dominante. Esta
o quadro da suavida, e todavia o seuhorizonte não é limitado como o do burguês; artilharia arrastada, que ganhou maior mobilidade em relação à época da Revolução,
é o horizonte da Europa inteira percorrida e mantida sob o seu próprio jugo. Aquilo pode então concentrar-se rapidamente em pontos escolhidos e desafiar, com um dilú-
que o liga definitivamente à nação é a pessoa de Napoleão. Podem <<grunhir>> contra vio de disparos, a disposiçãoda frente inimiga. Esta técnica passoua ser sempre
ele, mas Napoleão continua a ser o <<pequenocareca>>,<o pequeno cabo>>,o arreba- usada a partir de 1807. A Guarda Imperial, constituída por soldados de infantaria,
tador de homens que adula ou maltrata, mas alcança a glória. Napoleão, tal como os cavaleiros e artilheiros, num total de 9798 homens em 1804 e de 56 169 em 1812,
seus soldados, é um <<jogador>>capaz de empenhar o seu próprio destino numa única forma uma massade manobra que só é utilizada nos momentos mais críticos. As outras
batalha. tropas troçam destes guardas, arrogantes, mas nem sempre úteis, chamando-lhes <<os
imortais>>.Quando a Guarda Imperial actua, fá-lo quase sempre com alegria: em Eylau,
O /arar da guerra. Servindo-sedo instrumento de guerra que Ihe foi entregue em Samosierra ou no decurso da campanha da Rússia. Sacrificar-se-á em Waterloo
formando à volta de Cambronne os últimos quadrados <<devalorosop>. O imperador
pela Revolução, Napoleão Bonaparte aplica, com uma mestria nunca antes conseguida,
a arte da guerra tal como fora preparada antes de 1789. A estratégia napoleónica espera dos soldados disciplina, organização, instrução e obediência cega. Disciplina:
baseia-se numa procura sistemática da batalha e, através dela, da destruição total do desdeque não sqa estabelecidoo contactocom o inimigo, Napoleãofecha os olhos
adversário. aos soldados que vivem como nómadas e efectuam saques, assaltam o galinheiro ou a
Esta técnica é, exclusivamente, de reflexão e meditação, como ele próprio afirma: despensado camponês.Mas, na véspera do combate, têm de estar presentesou serão
<.Nãoé um génio que me revela subitamente,em segredo,aquilo que devo dizer ou detidos, proferida a sentençae condenadosà morte. Instrução: no início, o Imperador
fazer em circunstâncias inesperadaspara os outros.>>Napoleão elabora para cada cam- vigia atentamente as manobras que obriga incessantemente a repetir, como no campo
panha uma ideia condutora, mas não descura nenhuma solução, preparando-se para de Boulogne. Depois, o ritmo imposto pelas operações que se multiplicam obsta a
alterar os seusplanos no último momento. O princípio geral é o da economia ou ges- uma boa instrução e, no fim, os <(Made-Louiso>, os jovens soldados, aprendem a arte
tão das forças: ser o mais forte naqueleponto em que foi decidido aplicar o golpe de combater caminhando com os veteranos, como sucedia antes. Organização: existem

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defeitos <macouraça>>deste exército; é frequente faltarem os serviços de intendên cortante com a qual o soldado abre o cartucho sem ser obrigado a recorrer aos den-
cia encarregadosdo aprovisionamento das tropas, obrigando-as, deste modo, a viver tes, o que acelera a cadência dos disparos. Napoleão não adopta esta técnica, assim
como se recusaa usar o balão aerostática,a substituiçãodo salitre pelo clorato de
com o que encontram, e o que trazem serve para os homense também para os cava-
los, mal alimentados e acometidos de doenças que como sucede na Rússia -- arra- potássio ou do fuzil de sílica pelo fuzil de Forsyth, equipado com detonador fulmi-
sam um grande número. A mobilidade e a velocidade das tropas são consequente- nante quando em contacto com a carga. Os canhões de artilharia são sempre os de
mente reduzidas. Os serviços sanitários, não obstante algumas diligências no sentido Gribeauval. Esta ausência de <<revoluçãotécnica>>não se fica exclusivamente a dever
de organizar ambulâncias e corpos especializados de maqueiros, não conseguem dar ao estado da siderurgia francesa; as transformações propostas são, na verdade, rejei-
vazão ao ritmo de mortes que ocorrem no campo de batalha. O exército napoleónico tadas pelos generais mais conservadores.
A táctica muda pouco no aspecto. Os generais aplicam os planos elaborados na
sofrerá perdasestimadas em mais de 900 000 homens e o hospital mata em número
ainda maior que o fogo do combate. vésperada Revolução.Francesesou estrangeiros,fazem-nocom maior brio do que
Obediência cega: é erradicado o costume de discutir as ordens, adquirido durante antes, e são obrigados a ceder à <<guerra-relâmpago>>
imposta por Napoleão. E cada
o período da Revolução. O soldado segueo seu capitão, este o general e, por vezes, vez mais difícil actuar nestaguerra-relâmpago:a rapidez do movimento e o efeito
estes não devem tomar iniciativas, recebendo ordens que têm de acatar sem protes de surpresa têm menos hipóteses de êxito quando se movimentam grandes massas.
tos. Napoleão esperadestesjovens generais - cuja idade média é de 4] anos que O prussiano Clausewitz, que introduzirá na guerra napoleónica os ensinamentos des-
critos no seu livro Z)a Guerra, compreendejá que <<cada
ofensiva é enfraquecidapelo
sejam bons executantes, capazes de persuadir os homens. E esses são os que sabem
arriscar a vida à frente das suas tropas. Oudinot, por exemplo, apresenta 23 cicatrizes próprio facto da sua progressão>. <(Meio milhão de homens atravessaram o Neman,
120000 combateram em Borodino, e cada vez menos chegaram a Moscovo>>,afirma
no seu corpo. Mas existe ainda uma falha no sistema napoleónico, de que os adver-
sários educados por velhos generais franceses que se passaram para o inimigo, saberão Clausewitz, que conclui: <<Aforma defensiva da batalha é mais forte do que a forma
ofensiva.>>E isso é tanto mais verdade quanto Napoleão pode sempre recusar-seao
aproveitar, como é o caso de Bernadotte: quando os generais dispõem de exércitos
consideráveis, como durante a campanha napoleónica da Rússia ou a da Alemanha, combate, recuar e deixar sem fôlego uma tropa com poucos aprovisionamentos.
A táctica napoleónica é também consideradaprecária pelo inglês Wellington que,
os estrategassão bastantemedíocres.Há, todavia, excepções:Launes ou Davout.
ao trazer ensinamentos das batalhas travadas na Península Ibérica, tira o melhor par-
A obediência cega não significa que o exército napoleónico seja composto por
autómatos. Napoleão sabe que os seus homens herdaram da época revolucionária, se tido do terreno,dotando-ode linhasde defesasucessivas
e paralelas,que primeiro
não mesmo da época dos reis, a vontade de saber para onde vão. Durante muito sustêm e depois reprimem os ataques das tropas francesas. Por fim, um último ele-
tempo, o imperador mantém o hábito de fazer um discurso aos soldados nas véspe mento, mas não por isso menos importante: a guerra, ao generalizar-se, provoca o
ras dos combates. Justifica esta atitude com o objectivo de dissipar as insinuações, sobressalto dos povos, no seio dos quais nasce o nacionalismo. Das sierras espa'
nholas onde actuam os g erra//eras, aos montes do Tirol onde se sublevam os parti-
para abafar os boatos que circulam no acampamento e para manter uma boa reputação,
mas visa também responder à expectativa dos guerreiros a quem, nas suas ordens do dários de Andreas Hofer, às planícies russas onde se movimentam enxames de cam-
dia, o imperador descreve em linhas gerais o modo como se irá desenvolver no dia ponesesexaltados pelos popes,so exército francês encontra um pouco por todo o
seguinte a acção de guerra. lado oposiçãoa um estilo de guerraa que só sabedar respostacom uma violência
A obediência deixa de ser absoluta, inclusivamente no campo de batalha. Em redobrada e portadora de horrores que Goya ilustrou.
recontrosisolados,como no tempodo a/zcfenrégímeou na épocada revolução,o A mudança dá-setambém no uso mais intensivo da artilharia. A infantaria man-
exército escolhe os seus paladinos, que se envolvem em duelos individuais com alguns tém-se <a rainha das batalhas>>, mas a potência do fogo vê-se multiplicada graças ao
número dos canhõese à sua mobilidade. Em Leipzig, de 16 a 19 de Outubro de 1813,
adversários. O guerreiro cobiça sempre ao inimigo a sua bela montada e o rico porta-
manto e ataca-o para o capturar e despojar. Na retaguarda, apesar das proibições de a batalha que opõe dez nações e 500000 homens reúne mais de 3000 peças de arti-
lharia. A artilharia francesa dispara mais de 220000 tiros de canhão.
Napoleão, os guerreiros reencontram a individualidade perdida nas colunas de ata-
A guerra transforma-se assim numa carnificina e alimenta o grande cemitério
que ou nas fileiras, batendo-seem duelo uns contra os outros. Trata-se, por outro
lado, de um rito de iniciação do guerreiro: o novo recruta ou o jovem oficial não militar dos povos da Europa. Esta violência, levada ao paroxismo, encontra as suas
deve <<encher só o panelão>> e pagar a bebida, mas enfrentar também os <<coralosos>>
raízes na mentalidade do guerreiro e na sua atitude em relação a todos os civis, sejam
e temíveis soldados duelistas, que não cessamde provocar o jovem guerreiro. Bater compatriotas, sejam estrangeiros. Nas vésperas da desmobilização, em 1815, veri-
se em duelo significa mostrar desprezo pela vida, saber salvai- a honra da bandeira fica-se um temor generalizado ao ver-se caminhar sobre o empedrado das estudas
e ser um companheirocom o qual todos poderãocontar no combate. centenas de milhares de homens que a única coisa que sabem fazer é matar. A Revolução
Francesa desenvolveu uma política de auxílio social aos veteranos de guerra, o Império
Co/zfínuldade e rofurai. Os vinte anos de guerra quase ininterrupta trouxeram manteve-a eliminando, porém, o carácter igualitário desta beneficência nacional
poucas alterações ao armamento. O guerreiro combate sempre com as mesmasarmas.
5 Sacerdotesdo rito grego entre os Russos, os Sérvios e os Búlgaros. rN.T)
A espingarda prussa melhorou apenas no carregamento, dispondo agora de uma lâmina
97
96
Les Invalides ou os acampamentosde veteranos não têm capacidade suficiente para
acolher dezenasde milhares de homens. A Restauraçãotraz consigo o meio pré dos
militares que, da estrada ao café, do local para fumadores à praça pública, arrastam
a sua miséria, o seu rancor e transmitem às gentes a recordação da epopeia. Mas mui-
tos infundem ainda o medo durante os primeiros anos: a brutalidade súbita e treinada
Contemploualguns com fortes desequilíbrios psíquicos e, por vezes, com a loucura.
O Século das Luzes havia sonhadocom a paz universal ou a regulamentaçãode
uÜa guerra que nunca deveria ser <<ocomércio do rei>>,como escreveu Thomas Paine,
mas antes humanizada e respeitadora do direito dos povos. Ao invés, a Europa de
1815 vê-se envolvida numa carnificina. Em todos os países, os homens estavam de
olhos postos na França, esperando a libertação do despotismo; estes homens «ilumi- CAPITULOlll
nados>>, como Goya, encontram-sedilacerados. A guerra de libertação transformara- .P

se, conforme previra Robespierre, numa guerra de escravidão, capaz de suscitar


apenas,tanto nos vencedorescomo nos vencidos, ódio e morte. Ainda levará algum
O HOMEM DE NEGOCIOS
tempo antes de a Europa encontrar o caminho de uma democracia que o guerreiro
<<congelou>>e de uma igualdade esquecida nos turbilhões da guerra.
por Louis Bergeron
O lugar do militar na sociedadeencontra-sebem definido. Num 'Í)eríodo de vinte
anos, foi apresentadoprimeiro como um modelo para os revolucionários e depois,
sob o Império, objecto de verdadeira adulação. Em França, tal como na Prússia, onde
as reformas vedam os postos e os cargos aos plebeus, o povo chegara a acreditar na
ascensão - através do Rozlge, a farda militar. As promoções aos postos subalternos
permitem uma certa ascensãosocial: o burguês tira mais proveito dela do que o cam-
ponêsou o artesão, o nobre do a/zcíe/zréglme mais do que o burguês. Mas verifica-
se com frequência um abismo entre os oficiais que vibram de baixo e os que saíram
das escolas, que conheceram carreiras mais rápidas{ Toda uma geração <ardente,
pálida e nervosa>>conhece o fascínio exclusivo da glória das armas. Concebidos entre
batalhas, educados nos colégios ao rufar dos tambores, milhões de crianças entreo-
lhavam-se, escreve Musset em Za co/t$essio/zd'zzn ert/2z/zrdzzsíêc/e. <<.. . exercitavam (

os seus músculos delicados. De vez em quando, apareciam os pais ensanguentados,


estreitavam-nos nos peitos decorados a ouro, depois punham-nos no chão e voltavam
a montar no cavalo... E se houvessechegado o momento de morrer, que importân-
cia tinha? A morte era tão bela então, tão grande, tão magnífica na sua púrpura fume- l
gqntel»
Vem a paz e «uma juventude preocupada senta-se num mundo em ruínas>>.Esperara
participar da exaltação gerada pela epopeia. A sua época não lhes oferece mais do
que uma vida medíocre de vendedor ou de comerciante. Na origem deste mal do
século que oprime toda uma geração estáo fim do mito do guerreiro. O romantismo
ocupa o lugar do romanesco de uma guerra idealizada. l

98
E possível traçar um retrato-robe rigoroso do homem de negócios da época do
Iluminismo? E inegável que a produção e a troca de bens, assim como dos seus pro
tagonistas, estiveram com frequência no centro de alguns grandes debates sobre o
século xvln, especialmenteos respeitantesà liberdade de comércio e de trabalho, à
posição do «comerciante>>(termo genérico e conglobante) na hierarquia social, à nobi-
litação mediante o comércio ou a reapreciação dos valores do trabalho e do enriqueci-
mento. Por outro lado, não apresentava,há uns dez anos, uma célebre biografia de
Christophe-Philippe Oberkampf, sob a direcção de Surge Chassagnei,como subtítulo
e de uma forma aparentemente acertada, <<Umempresário na época das Luzes>>?Seja
como for, o Iluminismo não parece ter tido influência directa na estrutura ou na cultura
deste grupo socioprofissional, em que, por um lado, se procuram os verdadeiros fac
tomesde transformação nos novos métodos de organização do trabalho c na evolução
técnica e económica e, por outro, nas novas condições criadas pela Revolução Francesa.
'0 negociante ou comerciante, que orientava a compra e venda de diversas mer-
cadorias, de títulos de crédito, de metais para cunhagem e cunhados e que só muito
esporadicamenteacabavapor se tornar banqueiro (utilizando no crédito e nos diver-
sos investimentos os recursos que não haviam sido utilizados nas trocas), não apre-
sentava qualquer alteração substancial desde o final da idade Média, enquanto a
expansão do comércio mundial permanecia associada às viagens de exploração e aos
primeiros sistemas económicos coloniais. Certamente, o século xvllr afigurar-se-á a
época áurea para este <<tipo>>
social em particular, devido quer ao notável impulso
dado às trocas intercontinentais que caracterizaram o século, quer ao apogeu das bur-
guesias portuárias descritas em inúmeras monografias, desde Marselha a Bordéus e
Nantes, de Bristol a Londres, de Amsterdão a Hamburgo. De qualquer forma, o
século xvlll foi também uma época em que se concluiu a codificação da cultura do
comerciante. Temos o exemplo de Basileia, antiga região nodal de intercâmbios inter
nacionais do continente europeu que se tornaria também um dos centros mais dinâ-
micos da sua primeira industrialização. '
PDe acordo com os autores da época, o que era necessário para se ser bem suco
dadono ofício de mercador numa grande praça comercial?2 É extremamente impor-

S. Chassagne,OberkampÍ. Un enlrepreneilr capilaEiste ali Siêcle des Lumiêres, Aubier, Paria, 1980.
Veia-se taxtbem, Une jen\me d' a#aires au xvi!!' siêcte. La cnrrespondatlce de Madame de Maraise, cot-
/abafa/alced'OberkízmÉ Privat, Tolosa, 1981
Ctv. sobreo \ema, N. RiS\h\in,Die Basier Hatldelspoiitik uttd derett Trà8er in der zweilen Hãl»e
de.s /7. iínd im /8. /a/zr/zz,í/zderr, Helbing & Lichtenhahn, Basileia-Francoforte-Sobre-o-Meno, 1986

101
tanto que nos detenhamosneste aspecto,uma vez que a cultura do comerciante nos ças a algumas amizades influentes, conseguiam assistir ao almoço real. Um deles
finais do séculoXVlll foi praticamentea basecomum onde vieram firmar-se outras chegou mesmo a ver Luís XIV em 1701: <<Ummonstro que, mais do que o Ocidente,
características próprias dos empresários das gerações seguintes. Trata-se de uma cul- lembra a Mongólia.)> O vinho escorria-lhe pelo queixo, quase já não tinha dentes,
tura muito vasta, muito aberta, simultaneamente enciclopédica e prática, geral e téc- devorava uma enorme quantidade de comida que agarrava com os dedos, sem se ser-
nica, fruto da experiência e do saber, adquirida ao longo de muitos anos. Para alguns,3 Ç vir dos talheres de ouro que tinha diante de si. Um outro jovem de Basileia foi expulso
o comerciante devia conhecer as mercadorias, a escrituração comercial, o cálculo dos sem qualquer cerimónia por ter danificado sem querer, durante uma visita aos apo-
câmbios, a arbitragem, a linguagem comercial e os seus termos técnicos, as línguas sentos do Delfim, uma grande tela que representavauma paisagem,quadro que o
estrangeiras, as moedas, os pesos, as medidas e as suas equivalências, as marcas, as príncipe estava a copiar
grandes fábricas, a geografia, os hábitos comerciais dos lugares onde se pretendia Depois de tanto viajarem, era por vezes necessárioque os jovens não viessem
desenvolver a actividade, a navegação, o correio; o direito terrestre, marítimo e comer- logo estabelecer-seem Basileia e completassema sua instrução com alguns anos a
cial. Além disso, o comerciante devia escrever correctamente, cultivar boas relações, trabalhar como empregados noutra praça comercial, ao que parece, hábito legado pela
frequentar regularmente as feiras mais importantes, estar ao corrente das novidades deontologia do ambiente de Basileia, que proibia, a fim de preservar o segredo dos
veiculadas pela imprensa, pela correspondência, pelas viagens de negócios, devia negócios,a passagemdirecta ao serviço de outra firma uma vez terminado o está-
estar em condições de verificar a solvabilidade dos clientes.' gio; por via das dúvidas, trabalhava-se três ou quatro anos noutra cidade. A duração
'Para outros4, era necessário dominar o alemão, ter uma bela caligrafia (critério destesWa/zdedd/zreconduzia,por norma, a um casamentotardio, mais próximo da
que, durante muito tempo, foi factor decisivo para a admissão de um empregado casa dos trinta do que da dos vinte anos. Trabalhando agora por conta própria, o
numa empresa), ter bons conhecimentos de francês e italiano, saber um pouco de comerciante, segundo os dados fornecidos pela mesma amostragem, mantinha-se ao
latim por razõesjurídicas, cultivar o estilo epistolar, possuir noçõesde estatística, corrente das novidades através da correspondência e dos jornais que, de resto, eram
história, direito, ciências naturais e agricultura, fazer balanços e inventários. Outra impressos sobretudo nas cidades comerciais.
recomendação,com o seu quê de original, era que o comerciante praticasse exercí- 'Em nossa opinião, a mudança mais evidente a partir da segunda metade do
cio físico e não fosse indiferente às letras e às artes. século XVlll na cultura do empresário, na acepção mais lata do termo e no que res-
A reconstituição de dezenasde carreiras pem)ite-nos, por outro lado, ficar com peita ao seu carácter <«genérico)>,
cujo processo de formação apresentámosem traços
uma ideia concreta do modo como o futuro comerciante encarava esta formação. largos, resulta do primeiro desenvolvimento da empresa industrial modema. Podemos
Começavapor volta dos quinze anos,com o estágio comercial, que se regia por um indicar como sinais característicosdo seu aparecimento,por um lado, as primeiras
contrato celebrado entre os pais do rapaz e um comerciante. Este período, que tinha fomtas de concentração de mão-de-obra por unidade de produção, concentração directa
a duração mínima de três anos, a maior parte das vezes quatro ou cinco, atingia oca- no seio das protofábricas ou através do controlo de um exército de trabalhadoresque
sionalmente uma permanência voluntária de sete ou oito anos. Os locais preferidos vivia cada um por sua própria conta; por outro, a tecnicidade cada vez mais avan-
para o estágio, para além da própria Basileia, eram Genebra, Leão, mais raramente çada dos processosde fabricação e dos instrumentos utilizados que obrigava o pro
Estrasburgo, Francoforte, Paras. prietário-empresário, muito antes do advento do engenheiro, a munir-se de formas
Por volta dos vinte anos, a segundaetapa da formaçãoera constituída pela complementares de cultura, se não queria ficar na dependência de especialistas impor-
BIZdürzgsrelse.A viagem cultural levava o jovem a percorrer as diversas praças comer- tados a peso de ouro. Vinha também juntar-se a tudo isto a necessidadede um novo
ciais situadas na área delimitada pelas principais cidades e regiões que possuíam rela- tipo de previsão sobre o mercado e sobre o consumo, que não obedeciam, no caso
ções de trabalho com Basileia: Francoforte,Ulm, Augusta, a Alsácia, a Lorena, a dos artigos novos, aos mesmos mecanismos que regiam a comercialização dos pro-
Borgonha, o Franco Condado, Genebra. No entanto, esta viagem era extensiva aos dutos clássicos. O comerciante tornado fabricante devia, por isso, possuir o sentido
principais paíseseuropeus: de uma amostragem de 62 casos, registaram-se49 esta- de uma nova organização do trabalho e do comando, uma cultura técnica diferente,
das em França, 29 na Holanda e nos PaísesBaixos sob os Habsburgos, 28 na Alemanha, um farte e uma resolução em matéria de produtos e de clientela baseados seja no
]7 em Inglaterra, apenas 10 em Itália. Eram raras as viagens pela Europa Oriental e gosto pela inovação seja na previsão e na psicologia. '
os limites da exploração coincidiam com Viena, a Hungria, Leipzig, Berlim, Dantzig, -0 manufactureiro em evolução no século xvni não era um ser mítico vindo
Kõnigsberg, às vezes a Rússia. Qual a utilidade destas viagens?Conhecer a vida sabe-selá de onde, era frequente tratar-se de um negociante que soubera diversifi-
comercial, visitar os correspondentes do pai, estabelecer novas relações para o futuro, car as suasactividades,de um camponêsrico que passaraao comércio dos produ-
ver os pontos mais importantes: palácios, jardins, castelos, igrejas. Os jovens comer- tos agrícolas ou à suatransformaçãoindustrial, de um artesãorico em ideiase afor-
ciantes de Basileia que vinham a Parasapressavam-sea visitar Versalhes onde, gra- tunado. Não obstante, este novo tipo de homem de negócios era também responsável
pela migraçãode operáriosqualificados,de técnicos,de capitais provenientesda
Inglaterra, da Valónia, da Alemanha Meridional, da Suíça Setentrional. Foi frequente
3 R. bA.eyer,Theoretische Einteitung itt die praktische Wechse! ulld Warenhandlüttg, Hanau, 1'782.
o fabricante de tela indiana, o industrial do algodão, o químico, o industrial meta-
+ Jakob Sarasin (1742- 1802) possuía em Basileia uma das bibliotecas mais ricas sobre a formação do
comerciante. lúrgico abraçaremuma carreira brilhante como empresários fora do seu próprio país.

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Noutros casos, o espírito de iniciativa é fecundada e estimulado por influências cul- bém uma estreita relação com o trabalho manual. Todavia, aos treze anos, teve a
turais em paísesde encruzilhada. Foi o caso, no Leste da França, da região que se sorte de compartilhar as lições dadasa alguns <<filhosde boas famílias>>por um viga
estendeda Alsácia Meridional ao Jura Setentrional, de Mulhouse a Montbéliard, rio pouco conhecido, <<cxcelentemestre>>,que se tornou seu amigo para o resto da
região aberta para a Suíça, a Alemanha e a França, todas muito próximas, zona de vida e que exerceusobreele uma imensa influência espiritual. Ao mesmotempo, o
contacto entre as línguas, confissões, culturas complementares levadas através da jovem Zuber comprou com dinheiro que poupou uma espineta e depois um pequeno
Renânia. Por sorte, surgiram-nos textos e estudos, graças aos quais nos foi possível órgão que ele próprio reparou, pagandoas lições de música a copiar partituras para
reencontrar, nestasterras, o nascimento do industrial moderno. Mas tal género pode- um professor: os longos excertos dedicados ao assunto demonstram a importância de
ria ser também observado na aldeia de Caux, na região plana de Lille, em Gand, uma tal auto-'educaçãoartística para o equilíbrio pessoal do futuro industrial e homem
Verviers. Paris. . ' de negócios.-
Pode ler-se, antesde mais, a biografia breve mas sugestivaescrita por JeanZuber Os seusestudosterminaram aqui. Aos quinze anos, entrou para um estágio de
pai, nascido em 1772, que exerceu actividade entre 1791 e 1835, fundador da céle quatro anos na Heilmann, Blech & C., uma das mais antigas fábricas de tela indiana
bre fábrica de papéis de parede pintados de Rixheim, na periferia de Mulhouses. (1764)
Trata-se de um texto escrito na velhice, destinado à instrução dos seusfilhos:
Um jovem estagiáriodevia ser o primeiro a chegarde manhã;varria o chão, tra-
A felicidade e a consideração dos homens devem basear-se,para além da bênção tava de todas as incumbências na cidade, levava as cartas e as encomendas,copiava
de Deus, no trabalho assíduo e consciencioso. Que os meus descendentesobservem tudo o que se escrevia no escritório... Um empregado antigo... cheio de boas inten
sempre esta regra preciosa. ções, ajudava-me a fazer cada uma dessascoisas

p Este texto é, de qualquer modo, muito rico, a ponto de convencer Serge Chassagne Um primo Schlumberger,filho de um dos titulares da sociedade,iniciou-o <lnos
de que «sem dúvida não se podem improvisar empresárioP> e de captar no seu âmago mistérios da contabilidade em partidas dobradas e do câmbio>>.Uma vez concluído
a transição $ullural dQ comçEçLante..dás$içg.paro.g moderno !mnresário industrial, o estágio, propuseram-lhe ficar mais um ano como empregado, recebendo 600 /feres,
transição que, aliás, teve lugar num período de instabilidade, francesa e europeia. Os enquanto não arranjasse <<umaboa colocação>>.A Revolução Francesa prestou-lhe
esquemas antigos de instrução e de aprendizagem não vingaram; as qualidades essen- um enorme favor: uma das suas tarefas era exactamente ir a cavalo às cidades vizi-
ciais requeridascontinuarama ser a firmeza, o rigor moral, a rapideze a imparcia nhas a fim de trocar por dinheiro as notas e recibos de pagamento,dinheiro neces
lidado em matéria de avaliação de uma determinada conjuntura comercial e política. safio para pagar aos operários. Foi durante uma viagem a Guebwiller, <mumdomingo. .
Mas eram também necessáriasagora outras competências específicas: o conhecimento numa belíssima manhã de Vcrão>>,que conheceu Nicolas Dollfus, que administrava
dos processosde fabrico, de uma determinada aparelhagem mecânica, ou então outras em Dornach, desde 1790, uma fábrica de papel de parede pintado, onde estava a tra-
atitudes gestionárias, especialmente as que se referem ao comando, como se o empre balhar Joseph-Laurent Malaine, cm tempos pintor de flores nos Gobelins, pela inte-
sário fosse um oficial que tem às suas ordens um exército de civis'mean.Zpbçr era ressanteretribuição anual de 4000 /ívres mais logo dos lucros. Assim foi Jean Zuber
filho de um fabricante de tecidos, que se ligou por via do casamento aos Schumacher admitido por quatro anos, virando de vez as costas ao ofício de tecelão que perten
- uma das famílias fundadoras, a partir de 1750, do tipo de fabrico de tela indiana cera ao pai; entrou no rumo da indústria e, para além do mais, uma indústria de ponta,
denominado de Mulhouse --, por isso mesmo inserido numa sólida rede de familia- um mercado em plena expansão.
res e de solidariedade no seio do microcosmo dos artesãos e comerciantes da pequena Com efeito, foi para ele a ocasiãode realizar a viagem educativa que faltava à sua
república. A escola comunal fornece-lhe apenas uma instrução muito precária, escrita formação dc comerciante. Na realidade, tratava-se, aos dezoito anos, da sua primeira
e aritmética. Felizmente, dois tios - suprindo a negligência de um pai indigno paga- viagem de trabalho e, ao contrário dos jovens de Basileia, de uma viagem com um
ram-lhe os estudos numa escola particular, na impossibilidade de um preceptor ou programa estreitamente relacionado com as necessidadescomerciais da empresa manu-
da permanência numa escola fora de Mulhouse: factureira: havia que avaliar as possibilidades de venda de papel pintado em toda a
península italiana, com a qual Mulhouse quase não tinha quaisquer relações, visto que
Um velhote simpático.. . fundador de um famoso método de caligrafia deu-me Jean Zuber teve de suar bastante antes de encontrar alguém que Ihe pudesse ensinar
as primeiras lições de francês. Esforcei-me por imitar a sua mão ditosa. os primeiros rudimentos da língua italiana. O relato da viagem (Novembro de 1791
.Junho de 1792) abarca dois temas: por um lado, a obsessão do jovem Zuber em reco-
' Jean Zuber tinha então onze anos e, para ajudar a mãe, aprendeu, depois das aulas, lher encomendas,quando, ao invés, a ltália se revela um mercado medíocre, pouco
<<afazer cordões de linho que são usados nas lavandarias para fixar os panos de algo- sensível à penetraçãode um produto como o papel pintado; por outro, a enorme sen-
dão nos pradop>, uma boa ocasião não só para saber o que custava a vida, mas tam- sibilidade de ordem estética e social. Aprendendo a língua com imensa rapidez e bas-
tante habilidoso no estreitamento de relações com famílias que Ihe poderiam ser úteis,
) J. Zuber (pai), Rérzzi/zísce/lce.ç
ef Soiive/]rs, Mu]house, ] 895 Zuber estava sempre pronto a apreciar com entusiasmo todas as coisas esplêndidas de

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cujo fascínio não desconfiavasequer,quer se tratasseda biblioteca do bispado de A partir de 1804, deu livre curso à sua audácia de empresário-inovador. Decidiu
S. Gallo, da travessiados Alpes pelo Splügen ou da descidaao lago de Como, da criar um novo produto, destinado a garantir-lhe a abertura do mercado francês e inter-
Catedral de Milão, da vida da corte em Parma e Modena, da Toscana, de Romã ou nacional: o papel pintado panorâmico, que revestia com uma só paisagem as quatro
de Nápoles, onde, na sua opinião, o que havia de mais belo eram o teatro de São paredesda mesma divisão. Este produto ainda hoje é vendido como artigo de luxo,
Carlos e a cratera do Vesúvio. Regressoupassandopor Trieste, Veneza, Génova, passadosquase dois séculos. Zuber admitiu um novo pintor parisiense, encomendou-
Turim. Uma segunda viagem (Novembro de 1792-Maio de 1794) deu-lhe a conhecer, -lhe paisagens suíças, seguindo-se uma paisagem do Indostão; obtém também, em
em plena guerrada ltália, a Córsegae as costasda PenínsulaIbérica, cujo périplo o 1806, uma medalha de prata na Exposição de produtos da indústria nacional de Paras.
levou a Bilbau antesde voltar a Barcelonapor terra e a ltália por mar. Parao jovem Aqui admitiu também um químico, que levou para Rixheim a fim de lá instalar um
comerciante, foi a ocasiãode enfrentar todos os perigos: climatéricos, militares, polí- laboratório de pesquisa das cores, dado que eram necessárias cerca de duzentas e cin-
ticos. Compreender-se-ámelhor por que razão mais tarde, entre Agosto e Outubro de quenta para os papéis panorâmicas. Este tipo de artigo, que o pintor paisagista Mongin,
1796, não receassepercorrer a Alemanha quando o Sul do país era palco de guerra. do atelier de Doyen, inaugurara algum tempo antes para um fabricante parisiense de
De Francoforte a Colónia, Kassel, Hanâver, Hamburgo, Lübeck, Leipzig, conciliou a papéis pintados, toma-se, assim, o cavalo-de-batalha do jovem proprietário de Mulhouse.
viagem de negócios com a viagem de núpcias, por economia e dever profissional. Todos os acontecimentos biográficos que recordámos contribuem para uma imagem
No intervalo entreuma viageme outra, a partir do momentoem que se estabele- de JeanZuber como uma espéciede arquétipo do empresário moderno: atençãodedi-
ceu como sócio na firma de produção de tela indiana Dollfus em 1797, Jean Zuber tra- cada à investigação do mercado, para a qual a sua anterior formação o preparara bem;
balhou nos laboratórios e foi então que se registou a transição de empregado e comer- desejo de reunir a gestão do capital e a da actividade sob uma única administração;
ciante para entusiástico empresário da indústria e do fabrico. Quando era ainda assalariado, preocupação constante com a perfeição do artigo através de um sucessivo melhora-
os que Ihe deram emprego tomaram a decisão que viria de seguida a trazer bons fru- mento das técnicas de produção; intuição do gosto do público e faro na escolha
tos a Zuber: a transferência da fábrica para Rixheim, a alguns quilómetros de Mulhouse, daquilo que hoje se chamaria um novo <<sector>>
no mercado do papel pintado. Tudo
em território francês, na esplêndida comenda antiga vendida como bem do Estado. isto sob o efeito catalisadorde um temperamentode trabalhadorinsanoe de um
Assim, antes mesmo da junção de Mulhouse à França (1798), poderiam ser superados grande amor ao ofício. Acresce ainda uma mentalidade muito perspicaz no que se
os inconvenientes para o desenvolvimento económico causados pelo bloqueio alfan refere à parte económica, a prova-lo a sua decisão (1 805) de integrar no laboratório
degário de que a pequena República era objecto. A instalação em Rixheim, em mea- de desenho, incisão e impressão, uma fábrica de papel comprada a uma família de
dos de 1797, deu a Zuber a ocasião de demonstrar todo o seu talento de director de comerciantes de Basileia.
fábrica: organizou os espaçosdestinados à laboração e aos alojamentos, instalou maqui-
naria (especialmente as 48 mesas de impressão e as folhas) e a <cozinha das cores>>,
Pudemosfinalmente realizar o nosso velho desejo de fabricarmos o papel por nós
utilizado. Até aqui, o papel que adquiríamos a diversos fornecedores apresentavacom
isto é, o laboratório químico onde reinaria um colorista recrutado em Bema.
frequência defeitos.

Este colorista sabia retirar melhor do que ninguém o verde e o azul do precipitado
Durante o século xix, o espírito de inovação do fundador deveria determinar o
de cobre. Graças a ele, conseguimosproduzir o magnífico verde-prado que acabou por
ser um dos nossos principais artigos e que nos trouxe grandes lucros. êxito da produção, para o que se procuravam novos <efeitos>>:em termos técnicos,
a produçãode Zuber ocupavao primeiro lugar na categoria,obrigandoParia e Leão
a compartilharemo seu antigo primado com Rixheim. Moralmente, por fim, Zuber
Tomado naquelemesmo período sócio com 30% dos lucros, Zuber, agora benefi-
realizara o retrato do director de empresaque transmitia, com a sua influência, dina-
ciário de <<direitosde propriedade comunp>, sentia o chamamento da vocação para além
mismo a todos os membros da família, em que técnicos e operários -- quasetodos
do impulso da ambição pessoal. <<ldentificava-mede tal modo com aquela indústria,
qualificados --, eram na verdade muito unidos e formavam com a família aquilo a
que não me conseguia separar dela>>,escreveu. Assim, só pensava agora tornar-se o
que o próprio dono chamava <<anossa colónia>>.Uma autoridade de tipo paternalista,
único proprietário de uma empresa em relação à qual alimentava grandes ambições, no
sem dúvida, mas que se reforçava com o êxito e com a incontestável competência
momento exacto em que as vendas davam um novo passoem frente. Não tardou a sur-
profissional.
gir-lhe a ocasião, em virtude de erros dos seus sócios, que por pouco não levaram a
A história de um homem quasecontemporâneode Jean Zuber, o cervejeiro pari
sociedade à falência após a desastrosagestão de um depósito aberto em Paras.No iní-
siense Antoine-Joseph Santerre', confirma a impressão de ascensão-- até aos limites
cio de 1802, obrigou-os a aceitar a liquidação da sociedade, que se dissolveu em 1803,
cronológicos do Iluminismo e das mudançasrevolucionárias de uma nova geração
com dignidade. Neste ponto, ecoa na sua autobiografia como que um grito de vitória:

Agora único proprietário da indústria a que consagraratodasas minhas forças desde ú R. Monnier, <<Antoine-JosephSanterre, brasseur et spéculateur foncier>>,in G. Gayot-J.-P. Hirsch
os onze anos e onde esperava encontrar tranquilamente um lucro garantido, pude final- (direcção de), la Révollttion française et e dévetiopenlerlfdu capitatisme, Revtte dü Nora, 5 (\989),
mente respirar de alívio. n.' extra,pp. 333-346.

107
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de homens de negócios que se distinguia agora pela procura do sucessoeconómico 'A época das Luzes e da Revolução surge, deste modo, como um período de diver-
através de uma tecnologia avançada. Se Santerre pertencia, tal como Jean Zuber, a sificação e de crescente complexidade da cultura dos empresários, na medida em que
uma linhagem de mestrese ao mundo artesanal, também é verdade que havia alcan o negociante,o comercianteou o comerciante-banqueiroacrescempor vezesàs suas
çado o topo de uma ascensãoprofissional e social que levara a sua família da região funções a de empresário industrial, mas igualmente na medida em que tende a reve-
de Cambrai e de Thiérache a Parase à região parisiense, onde diversos membros da lar-se uma identidade autónoma,a do fabricante, se bem que em França suceda com
família controlaram sucessivamenteuma série de estabelecimentosimportantes: cle frequência a tentativa de camuflagem da sua verdadeira identidade por detrás da do
mesmo pertenceu, na década de 1780, à elite dos empresários dojaubourg Saint- <<comerciante>>
ou do <(proprietários, tida como mais prestigiosa. -
AnLoine, e não podemos deixar de citar o seu contemporâneo Réveillon, fabricante , Semelhantediversificação não é apenaso resultado da aquisição forçosa de com
de papéis de parede pintados. Não teve uma formação tão completa como a de Jcan potências suplementares, está também relacionada com contextos socioculturais locais,
Zuber: Santerrelimitou-se a complementara instrução escolarcom um estágio na mais ou menos favoráveis à transição de um tipo de capitalismo para outro, ou que
cervejaria do pai. No entanto, ambos se distinguiram pela mesma curiosidade pelos dão lugar a culturas manufactureirasde naturezadiversa. Neste caso, seguir-se-ia
desafios das novas técnicas e na mesma procura de um novo produto de qualidade, uma história plurissecular do mundo dos negócios, em que, especialmente ao nível
destinado a amadores influenciados pelas ideias iluministas. O fabrico de cerveja e do comércio internacional, cabe realçar uma extraordinária unidade das técnicas, das
o de tintas delicadas para a impressão do papel de parede não haviam alcançado ainda práticas, da mentalidade, unidade acentuada pela mistura étnica (pensemos nas <coló-
o nível da cooperação entre a investigação científica e as suas aplicações industriais. nias>>presentes em todos os grandes portos europeus), uma época de culturas indus
Tanto Santerrecomo Zuber têm acessoao mundo do conhecimentoempírico, das triais mais difusas, mais regionalizadas. Trata-se de uma hipótese sugestiva que con
receitas ditadas pela experiência e pela observação, e a <<cozinha>>
do cervejeiro não tribuiria em grande parte para a percepção de cada tipo de contrastes entre aquelas
era muito diferente da do colorista, deixando espaço para o gosto, a intuição, em regiões que apresentamuma continuidade entre o sistema prato-industrial da orga-
suma, um savoírjalre pelo menos parcialmente subjectivo. Mas de qualquer forma, nização do trabalho e da industrialização moderna e aquelas que, ao contrário, apre-
ambos gostavam das novidades: para Santerre tratava-se de copiar a cerveja <<à sentam uma rotura entre regiões ou nações de industrialização mais ou menos dinâ-
inglês»>, tal como Zuber fora buscar os seus artistas ao ambiente parisiense e os mica, mais ou menosprecoce,etc. Vamos encontrarnos finais do séculoXVllT, em
melhores materiais ao ambiente lionês. Não estamos longe da espionagemindustrial que coexistem já novas formas de produção ao lado das antigas, óptimos exemplos
praticadano campoda mecanização do algodãoou do aperfeiçoamento da siderur dessas diversidades culturais no âmbito da região em apreço, na fronteira franco-ger-
gia. A observaçãotinha a ver com a atitude do patrãona avaliaçãodas proporções, mano-helvética.
o aspecto dos grãos e a forma, a consistência das infusões, e sobretudo o andamento Foi publicado recentemente um estudo sobre a dinastia industrial dos Japy7, em
e os sinais de uma fermentaçãoperfeita. Notam-se, por exemplo, a experiência e os Montbéliard, interessantepelo facto de fazer convergir a atenção,a pequenadistân-
esforçosde melhoramento desenvolvidos no uso do termómetro para controlar a tem cia de Mulhouse, para um ambiente diferente que surgia, ainda não caracterizado por
peratura da maltagem e no emprego do aerómetro para pesar a água do poço- Tal uma forte cultura industrial.
como Zuber, Santerre praticava a integração sob a forma dc controlo, desde o apro- O fundador, Frédéric Japy (1749-1812), nascera na aldeia de Beaucourt, numa
visionamento de matérias-primas os laços familiares no Norte permitiam-lhe obter família antiga de camponeses-criadoresde gado relativamente abastados;seu pai era
boas provisões de lúpulo e cevada à venda da cerveja. A empresa do /aubourg ferrador. A situaçãofinanceira da família permitiu-lhe enviar o rapaz para estudar
Saint-Antoine e a de Rixheim empregavam um quadro de algumas dezenasde pes- por alguns anos em Montbéliard, principado sob o controlo do Württenberg e da
soas, suficientemente numeroso, em ambos os casos, para criar problemas de disci- França, onde se podiam encontrar boas escolas protestantes. O trabalho industrial
plina ao nível do trabalho e da produção: <<épreciso inspeccionar constantemente começavaa difundir-se no ambientede origem rural: o têxtil, o do metal desdea
tudo, se queremos ter êxito>>,escrevia Santerre. Também é verdade que o ambiente forja à pequenamecânica,como a de componentespara relógios --, e tudo se pro'
dos assalariados parisienses era, sem dúvida, bastante mais indisciplinado do que o cessava sob o controlo directo dos comerciantes-fabricantes de Montbéliard. A segunda
da Alsácia Meridional, quer se tratasseda regularidade do trabalho quer da estabili- etapa importante da formação de Frédéric Japy foi a sua permanência no outro lado
dade de um emprego, do respeito pela pessoa ou pela propriedade da entidade patro- do Jura, por alturas de 1770, em Le Lide, com Perrelet e depois Jeanneret-Gris,este
nal. Ambos os empresários se interessaram pelas fábricas e pela sua sistematização último pertencente a uma família de inventores especializados em mecânica de pre-
racional; por fim, tanto um como o outro foram movidos pelo mesmo desejode trans cisão e na introdução de técnicas aperfeiçoadas de fabrico de relógios. Quando regres
mitir o património constituído -- para além da fortuna e dos bens pela própria expe- sou, Japy começou a integrar-se no sistema de produção artesanal, abrindo uma
riência técnica e de gestão, através dc um texto compilado na velhice segundo uma pequena oficina de relojoaria e vendendo os seus protótipos a La Chaux-de-Fonds,
perspectiva (que se lhes afigurava normal) de hereditariedadee continuidade da
empresa industrial familiar. Para Santerre, morto em 1809, trata-se da Árf dzzBrasseur 7 P. tâmara, Histoire d't+tt capita]fntnilia] a!{ XiX': ]e capital Japy (]777-19i0}, SociétÉ be\tortaine
(1807), dedicada aos filhos, obra verdadeiramente completa que analisa todos os d'émulation, 1988. Ver também, <<Japyet sesouvriers au XIX' siêcle», in Soclélé d'.Emz{/a/í0/2de .A/o/lrbé/íczrd,
aspectos da empresa. LXXXI (1985 [1986]), 108, PP. 103-133.

109
108
entrando para a c/zo/We (corporação) de Santo Elói, <<sociedadeque bate com o mar- trabalho industrial. Não só esta não se encontravano local e era, assim,recrutada
telo na bigornn>, e casou em 1773 com a filha de um rendeiro anabaptista. Esta união a uma certa distância, como se via arrancadaao trabalho cm casa e ao artesanal.
pâ-lo em contactocom um ambientede fortes tradições comunitárias., Japy entendeu que, para evitar que estes novos assalariados se revelassem e aban-
f Em 1776-1777, altura em que não completara ainda trinta anos, Frédéric Japy donassem o lugar, seria preciso criar uma organização não só do trabalho mas de toda
tomou uma decisão drástica. Na Jeanneret-Gris, <<abatidopela inércia do mundo arte a vida, de modo a que o trabalhador possuísse uma sensação de bem-estar e de segu-
sanal)>,conta Pierre Lamard, Japy comprou as máquinas e os inventos por seiscen- rança. Todavia, não devemos ver em tudo isto a prefiguração de uma ideia destinada
tos luíses de ouro, e encomendou dez máquinas para a construção das 83 peças pre a tornar-se clássicano século xlx, isto é, uma sedentarizaçãocom vista à garantia
vistas no seu projecto. Munido destas máquinas-ferramentas,Japy podia pensar do melhor rendimento dos operários. A idealização e a prática do <<sistema
Japy)>,
realmente em passar a uma fabricação em série, empregando -- graças à simplicidade que se instituiu ao ritmo do desenvolvimentoda empresa,parecemter tido como
do uso da maquinaria uma mão-de-obra de mulheres e idosos, reduzindo convide modelo o estilo de vida das famílias anabaptistasque viviam no campo, ou a orga-
ravelmente os custos. A construção de um novo local, em 1777, assinala a entrada nização da assistência que Japy pudera observar nas c/zo/Wes(Zür!#e) de Montbéliard
numa nova dimensão. Tendo comprado numa colina de Beaucourt um terreno rochoso ou nos vales suíços do Jura, nos arredores de Le Locle, organizações imbuídas de
estéril mas barato, extraiu dele a pedra que serviu para construir um edifício capaz um espírito de solidariedademuito forte, assenteem costumese regras colectivos.
de acolher cinquenta operários especializados, fazendo também os artesãos traba- Em suma, Japy soube adaptar as receitas antigas a uma situação inédita e conseguiu
lharem em casa. A criação dos modelos seguiu-se a montagem e o acabamento com modifica-las em função de desenvolvimentos ulteriores.
plenodos relógios, trabalho desenvolvidoaté ali pelos relojoeiros e montadoresde Mais do que um projecto utópico de prefiguração dolamílísrêre', a primeira forma
Montbéliard. Surge, deste modo, <<umaconcorrência devastadora>>à margem do sis- do sistema Japy recorda antes as estruturas tradicionais de uma vida moldada pela
tema corporativo, ou melhor, em concorrência com ele. « religião. O fundador mandouconstruir um edifício que apresentasseum corpo cen-
O impulso de Frédéric Japy, empresário-inovador, situa-se nos anos da Revolução tral e duas alas. O primeiro tinha três andares,mais um, a mansarda,destinadaàs
e da República: a nova ordem só Ihe trouxe vantagens, desdea abolição dos limites salas de trabalho. As alas acolhiam no rés-do-chão a cozinha e o refeitório, no piso
da liberdade de trabalho à aquisição de bens confiscados, após 1792, ao príncipe superior quartos e dormitórios. O aproveitamento do tempo estava regulado para todo
Frédéric-Eugêne,que permitiram a Japy a conclusãode novos edifícios, prevendo o dia e não apenaspara as horasde trabalho, sob o controlo constantedo chefe da
um aumentodo número de trabalhadoresou como garantia de obtenção de financia- empresa, que era também o chefe de família. <.Queroque os meus operários formem
mentos.Por essemotivo, não hesitou em chamar à última filha, nascida em 1793, comigo e com os meus uma única família>>,afirmava Frédéric Japy. <<Osmeus ope-
Jacobine-Angélique; alguns anos mais tarde, encontrava-seentre os primeiros cava- rários devem ser, ao mesmo tempo, meus filhos e meus colaboradores.>>
O trabalho
leiros da Legião de Honra nomeados no Urro/zdíssemenfde Belfort. A biblioteca de começava ao nascer do dia, precedido do pequeno-almoço, à uma interrompia-se por
Japy compreendia, aliás, para além de dicionários científicos e técnicos, a Encyc/opédie uma hora e depois retomava-se até às oito da noite. Frédéric Japy, <«)Pai>>,presidia
e as obras de Montesquieu, Voltaire e Rousseau.Durante os anos do bloqueio con ao jantar, enquanto a sua mulher, Suzanne-Catherine Armstoutz, <<aMãe>>,se ocupava
tinental, viu surgir a ocasião de uma diversificação oportuna dos produtos: em vir- da outra mesa onde estavam as operárias; ela e as filhas asseguravam os trabalhos
tude da concorrência dos utensílios ingleses, Japy começou a fabricar parafusos para domésticos. O alimento provinha dos terrenos adquiridos por Japy, e um espaço inte-
madeira, que acabaram por se tornar a produção mais importante da casa e que eram rior da fábrica fornecia os artigos de primeira necessidade.A instrução elementar e
vendidos em toda a França e na Alemanha, juntamente com uma gama de outros pro- a religiosa eram asseguradaspelo casal de proprietários; assim, ao domingo, após o
dutos cavilhas, ganchos, argolas, pregos, alfinetes, correntes, fivelas. A diversifi jantar, Frédéric Japy lia um capítulo da Bíblia e depois pregava;claro que o com-
cação iria manter-se durante dezenasde anos como o expoente máximo da prospe- portamentoe a moralidade estavamsob controlo. A doença,a velhice, a viuvez, o
ridade da firma. Foi precisamente nos primeiros anos do século xlx que Japy, funeral estavam acautelados. De cinquenta que eram em 1777, os efectivos passaram
sentindo-se envelhecer, elaborou um mecanismo de sucessãona direcção da empresa, para 500 em 1802 (a aldeia de Beaucourt tinha em 1791 uma populaçãototal de
beneficiando exclusivamente os três filhos mais velhos e manifestando assim um vivo 263 habitantes); estava-se,sem dúvida (considerando eventualmente a inclusão nes-
desejo de garantir o futuro de uma empresa que, de certa forma, se destacava da sua tes números de uma parte dos que trabalhavam em casa), muito próximo da vivên-
pessoa para se tornar uma entidade moral através das gerações. cia de um sistema bastante centralizado e personalizado. O sistema começou a desa-
' Todavia, a originalidade da cultura manufactureira numa pessoa como Japy reside gregar-sea partir de 1806, quando teve início a direcçãocolectiva dos três filhos.
noutro aspecto: é necessárioprocura-la, ao que parece, no esforço específico e bas- De resto, a diversidadedos produtos fabricados levou à progressiva diversificação
tante precoce que ele desenvolveu a fim de criar um sistema de relações laborais dos locais de produção: era, assim, possível limitar os riscos de uma concentração
capaz dc garantir a eficácia e a regularidade do funcionamento da empresa, primeira excessiva de operários num mesmo lugar. Registe-se aqui que a história da empresa
obsessão de todo o empresário. '
Com efeito, em Beaucourt,ao contrário do que sucediaem Rixheim, colocava- 8 Espécie de cooperativa de consumo, onde eram vendidos os produtos a preços inferiores, em algu
se o difícil problemade adaptaçãode uma força laboral camponesaao ritmo do mas regiões da França. (N.T.)

110 lll
dc Japy ilustra bem o estabelecimento,a partir do século xvnl, de um sistemade Por princípio, a liberdade reclama-se,na época das Luzes, como a alma do
produção capitalista (violentamente denunciado como tal pelo artesanatotradicional,' comércio e da indústria. Recordemos algumas frentes onde tanto se lutou no século
conforme o demonstram as revoltas de 1801 contra Japy), que iria conhecer um xvlll pela liberalização das leis: os comerciantes e armadores dos portos franceses
enorme êxito na França do século XIX: um sistema em que a empresa vai buscar as pela abolição do monopólio das companhias privilegiadas, as colónias <<america-
reservas à mão-de-obra rural, instalando a indústria no campo, em unidades que se nas>>
das Antilhas contra o sistema de exclusividade que truncava todas as possi-
podem considerar grandes relativamente à dimensão da unidade artesanal, mas que, bilidades de intercâmbio directo entre o arquipélago e os seus parceiros dos impé-
na realidade, conservam até tarde dimensões mais limitadas: Um sistema que man- rios inglês e espanhol, os operadores comerciais no interior contra a sobrevivência
tinha a união do mundo rural com o mundo industrial limitava o desarreigamentoe das portagens, não esquecendoa luta pela liberdade de circulação e de exportação
o urbanismo. dos cereais, a que vieram juntar-se comerciantes, proprietários e agricultores: Mas
No plano ético e humano,o sistemaJapy dos primeiros trinta anos é verdadeira- se era abordada a questão extremamente delicada das tarifas aduaneiras, logo trans-
mente paternalista, digamos mesmo, correndo o risco de uma ligeira tautologia, que parecia que, em França, a loja e a fábrica só podiam acolher com algum receio e
se trata de um paternalismopatriarcal. A historiografia tem por hábito tornar o sig- reticências um eventual triunfo do liberalismo absoluto. O famoso tratado de 1786
nificado do termo <(paternalismosextensivo a todo um conjunto de políticas, práti- com a Inglaterra desencadeou um coro de protestos sobre a crise dos sectores inter
cas, instituições de iniciativa patronal, que acompanharam posteriormente, nos locais nos do trabalho têxtil proto-industrial no Noroeste da França, cujo eco se repercutiu
e nos sectores mais diversos, o crescimento das empresas industriais, e que integram nos cíz/ziersde do/dances, e que foi uma das componentes da crise económica do
autênticas estratégias de empresa mesmo quando essas empresas se esforçam por con- final do ancielz réglme. Sem dúvida, Pierre-Samuel Dupont de Nemours, encarre-
servar algo do espírito familiar daquilo que era já visto como uma época áurea da gado por Vergennesde um inquérito sobre os efeitos do tratado comercial, ousou
empresa industrial. Todavia, num caso como o de Japy, o paternalismo é ainda muito defendê-lo na sua Z,eríre à /a C/zamórede Commercede ]Vorma/zdíe(1788). Por
incipiente, como produto dos finais do século xvln, voltado em grande parte mais sua vez, alguns fabricantes de Elbeuf pensavam tirar daí partido: como especialis-
para o passadodo que para o futuro, investido da missão de garantir uma transição tas em tecidos de óptima qualidade, contavam vender, para além-Mancha, maiores
<<indolop>. Como realça Pierre Lamard, <<opaternalismo de Beaucourt.. . constitui. quantidades de artigos, num mercado que a indústria inglesa não abastecia de mer-
um dos raros laços entre o mundo artesanal do século Xvlll e a sociedade mais indus- cadorias de qualidade equivalente.'A Normandia, orientada para o baixo Sana e
trializada do xlX. A continuação das práticas sociais garante, por certo, uma transi- virada para Londres, conhecia de longa data as vantagens de uma livre circulação
ção delicada>>
em prol do prosseguimento
de um sistemade protecçãomateriale de homens e técnicas, dado que, com o desenvolvimento industrial precoce, havia
moral cujo funcionamento resultaria talvez com eficácia na região de Montbéliard já beneficiado do progressograças aos técnicos ingleses que vieram a fazer for-
onde <wm compag/zo/zagede tipo germânico [evidenciava] um sentido nítido do espí- tuna como industriais. Apesar disso, aqueles que adivinhavam o efeito estimulante
rito de solidariedade>>.Partindo destas hipóteses, é possível falar de uma continui que a livre concorrência teria a médio prazo eram uma minoria cm relação aos que,
dado em vez de uma rotura e de uma heterogeneidade entre duas grandes etapas da nada entusiasmados, consideravam um dogma o direito de o comércio ou a indús-
industrialização; contudo, convém não esquecer que, na nova cultura social indus- tria contarem com a protecçãodo Estado e inclusivamente com benefícios fiscais.
trial, as relações entre patrão e operário se limitavam aos muros da fábrica, enquanto As pesquisasde Jean-Pierre Hirsch9 deixam bem patente esta oscilação do comér-
na estrutura corporativa continuavam mergulhadas numa sociedade urbana cada vez cio entre a ousadiae o conservadorismo,entre a vontade de liberdade e a procura
mais aberta e transparente. de uma tutela indulgente. Estas aspirações profundas mas antagónicas encontram-
se no espírito dos homens de negócios de Lille, que constituíam outro núcleo de
'l Temos vindo até agora a insistir bastante na bifurcação que se registou na segunda uma revolução industrial precoce. Rapidamente, as assembleias revolucionárias
metade ou nos últimos anos do século xvlll nas duas categorias profissionais e cul- seguiriam na esteira da continuidade com a monarquia, opondo-se aos princípios
turais do pequeno mundo dos homens de negócios: a figura clássica do comerciante teóricos e conservandouma política tarifária defensiva.
e a nova do empresário que encama, acima de tudo, a capacidade de inovação. Deste . A música é a mesmano que se refere ao dilema liberdade ou regulamentaçãodo
modo, a atenção recai sobre tudo aquilo que o século xlx, cada vez mais industria- trabalho: enquadramento da mão-de-obra, controlo dos produtos, limitação do número
lizado. deve ao século anterior. dc empresas.Registava-se,por exemplo, uma enorme expectativaem relação à
, Comerciante ou empresário, o homem de negócios do Século das Luzes e da liberdade de imprensa. Tal expectativa era evidente nos comerciantes que, ao tornarem
Revolução de 89 tem de enfrentar de igual modo os grandesdebatesideológicos nas se fabricantes. se afastavam das zonas do trabalho regulamentado (predominante-
suasrepercussõessobre as condições de trabalho e sobre o estatuto social do grupo mente urbanas), mediante o recurso ao trabalho desenvolvido na propriedade agrícola.
a que pertence. Estes debates giram em torno das duas noções de liberdade e igual- Aquela não era menos forte em todos os que se viam excluídos do acessoao patro-
dade, cuja definição e, mais ainda, realização penetram nas instituições, e os usos
evidenciam ambiguidades e contradições no campo das elites que estão à frente da J.-P. Hiísch, Les dettx rêdes dtt commerce. Entreprise et institutiorl darás la région !illoise (1780
economia. f ./8ó0), Editions de I'Eçole des Hautes Etudes en Sciences Sociales, Paria, 1991

112 113
nato: a aspiração à emancipação da condição de assalariado, passandoà de peque <.umadas mais antigas e poderosasfamílias burguesasd'Annonay>>,em cujo seio
nos patrõesindependentes,constitui, a partir do século xvlll e até aos nossosdias, se contavam nove tabeliães de 1551 em diante. Curador da Companhia das índias
um motor de acção revolucionária, antes mesmo de se tornar um simples mecanismo durante vinte anos, deu a sua colaboração junto das tropas francesas na Alemanha,
de promoção social, ou de se transformar numa miragem ou num revés. Mas a liber- encarregando-sedo armamento durante a campanha. Papion (1782), empresário da
dade do trabalho significava também aumento da concorrência, incerteza da quali- manufactura real de damascoimplantada em Tours em 1760, único membro não
dade do fabrico, maior mobilidade e indisciplina da mão-de-obra, já condenada nos nobreda suafamília ligado a <(famíliasmuito distintas na magistratur»>,<<dá
sus-
tempos das corporações de ofícios. Era suportável o fraccionamento da sociedade tento a oitocentas famílias e impede esbanjamentosde dinheiro>>.Delauney (1785),
económica? Os mais audaciosos, e não apenas os velhos patrões desapossadosdo seu comerciantede Laval, era dono de uma fábrica de telas para a Marinha. Denis
monopólio, reclamavamdesde a fase descendenteda Revolução uma nova injecção Montcssuy e os irmãos Leleu (1782), comerciantes de Paris, eram fornecedores da
de corporativismo e de controlo, e também o restabelecimento de instituições espe- Marinha. fornecedores do cereal da cidade de Paria, administradores dos moinhos
cíficas representativas dos interesses económicos. Os usos, as regras de um novo de Corbeil. Gamba (1786), mercador de Dunquerque, pertencentea uma família
direito eram invocados para autorizar uma regulamentaçãotanto das falências como piemontesa enobrecida sucessivamente pelo imperador José l e pelo rei da Sardinha,
do contrato de trabalho. <<exerceunobremente a sua profissão>>(sic). Houve sem dúvida algumas excepções
como, em 1762,quandoo dono dasforjas de Ruffec foi enobrecidopor ter con
p Para os homens de negócios do século xvlll, a autoridade, a disciplina e a tribuído com melhoramentostécnicos para o fabrico da gusa e do ferro, e quando,
observânciadas regras do jogo entre os concorrentes não eram por isso menos em 1787, o próprio Oberkampf enobreceu a excelente qualidade dos seus produ-
indispensáveis à prosperidade da paz ou da liberdade de iniciativa dos detendo tos. Mas, em geral, estamosperantecasosmuito especiaisde fortuna concomitan-
res de capitais. O tema da igualdade, para o comerciante ou o fabricante, era con- tes com uma proximidade daqueles privilegiados que condicionam a promoção.
sequentementetão descoroçoantecomo o da liberdade. Como aceitar a emanci- Não se cnobrecia pelo simples facto de haver concluído bons negócios e ganho
pação dos negros que trabalhavam nas plantações coloniais? Como imaginar a muito dinheiro: fazer dinheiro não é um título de nobreza,e Napoleão1, na selec-
igualdade entre a oferta e a procura de trabalho, entre o patrão e o operário nos ção dos grandes notáveis ou dos seus nobres, comportou-se exactamente como
locais de trabalho? Terá de decorrer todo o século Xlx (e também uma parte do xx) Luís XV ou Luís XVI
antes de os patrões aceitarem a instituição de relações contratuais de tipo demo- Assim se compreendeque os comerciantesprocurassemeliminar o obstáculo,
crático e reconhecerem, por exemplo, a validade e a utilidade da organização sin limpando o seu dinheiro mediante a aquisição de cargos como, por exemplo, o de
dical ou do processodasnegociações.
Antes destasmudanças,
irão aceitar,por secretário do rei. De 1427 cargos desta natureza, vendidos apenaspela Grande
vezes, o conflito aberto ou a adaptação de estratégias diversas com vista ao res- Chanccllerie parisienseentre 1702 e 1789,357, isto é, um quarto, foram para comer-
tabelecimento, nos locais de trabalho, de uma relação desigualitária de submissão, ciantes. Outra via indirecta de promoção consistia no aumento da compra de bens
compensada,na melhor das hipóteses, com a observância de uma certa deonto- de raiz, a fim de se processaruma reaproximaçãode facto da aristocraciafundiá-
logia patronal ria. A importância atribuída a este tipo de aquisições por parte de comerciantes fran-
Em abono da verdade, a situação do homem de negócios ou do empresário na cesesé com frequência ainda interpretada como uma vontade de abandonar a pro'
passagemdo Iluminismo à Revoluçãopareceter sido sobremaneiradifícil. Tudo fissão; provavelmente, o mais correcto seria ver a procura de um rççg!!bççlmento
isto porque, movido por um lado pelo crescimento de uma insubordinação popular social que os homensde negócios não conseguiam obter exclusivamente po!!Xia das
que, numa cidade como Paria, era muito anterior à explosão revolucionária, encon virtudes profissionais. Neste âmbito, vemos uma extrema continuidade do meca-
/ trava, por outro, inúmeras dificuldades no topo da escala social na obtenção nismo social antes e depois de 1789: seria surpreendentese os comerciantes se qui-
do reconhecimento dos seus méritos. Em França, o pensamento sansimoniano é sessemapropriar de uma grossa fatia das vendas de bens do Estado, visto que a
formulado cinquenta anos antes de os seus seguidores conseguirem ter acesso à Constituinte abria as portas a um regime político baseadona propriedade e num sis-
sa/a dos barõese, ailyes.deSalnt-Simon, um certo discurso prolçrido pelos ilymi- tema electivo alargado a um número elevado de funcionários? Com o aumento da
nistas sobre a honradez e a utilidade social daqueles que, através do seu trabalho, base fundiária surgia, com efeito, a dupla oportunidade de consolidar o prestígio
mostram as suas capacidades,o seu savoírlaíre, os seus capitais, não era, na ver- social e de ter acesso,pelo menosa nível local e departamental,a diversos cargos
dade, representativo da opinião mais difundida entre os estratos iluminados da socie- de responsabilidade. '
dade que precisavam ainda de se converter. É bastante esclarecedor o modo como Assim, a Revolução abria uma grossa brecha nas defesas que até então haviam
funcionou o mecanismo da nobilitação através de cartas régias nas últimas déca limitado e retardado a promoção das elites económicas. Quase ousaríamos afirmar
das da monarquia absoluta; o comerciante digno de ser equiparado à aristocracia que o lucro político foi mais imediato para os comerciantes em relação às vantagens
era sempreaquele que, de um modo ou de outro, servira os interessese os dose a longo prazo prometidas pela liberalização económica. De qualquer forma, a Revolução
jos do poder.'Eis alguns exemplos apenasda décadade 1780-1789. Louis Tourton, permitiu que o comerciantesaboreasseo triunfo que consistia paraele em se tornar
banqueiro (cartas de 1783), era administrador da Caixa de Descontos, pertencia a um notável de primeira categoria. Convém referir de igual modo que Ihe irá custar

114 115
uma mudança de identidade através da qual o comerciante pretende ser admitido
antesde mais como proprietário, mas também as perdas por vezespesadasque as
circunstâncias políticas e militares infligem aos patrimónios móveis e às empresas
de todo o tipo. A Revolução, no seu todo, não alterava completamentea ordem dos
valoresio

CAPITULOIV

O HOMEM DE LETRAS
por Roger Chartier

l L. Bergeron,Banqtliers. négociartíset lnantifacluriers dü Direcloire à I'Einpire, Mou\on, Polis


Raia-Nova lorque, 1978.

116
Na E/zcfc/opédía, o artigo <<Letrados>>é um <(Artigo do senhor de Voçtaire>>'
A definição do homem de letras é construída ali a partir de uma contraposição dupla.
Voltaire especifica, antes de mais nada, que <<nãomerece semelhante título aquele
que, com escassadoutrina, cultiva apenas um género de estudos>>:<<Aciência uni-
versal deixou de estar ao alcance do homem: mas os verdadeiros /errados encon-
r
tram-se na situação de deslocar os seus passos pelos diversos campos, apesar de não
os poderem cultivar todos.>>Neste aspecto, o homem !+çLJetms.!apresenta a figura
moderna do gramática antigo que <'eranão só um homem versado na gramática pro-
priamente dita, que é a base de todos os conhecimentos, mas um homem a quem a
)
geometria, a filosofia, a história geral c particular não eram estranhas;que fazia
sobretudo da poesia e da eloquência o seu estudo>>.A definição do homem de letras
apresentada na Enclc/opédía é, então, a de um enciclopedista: não é um erudito que
adquiriu saberprofundo sobre uma determinada disciplina, mas um homem que pos-
sui conhecimentos em todas as áreas do sabe!: Para Voltairé:ãg'kletragrnão são
sinónimo de <<litêrãtufã;''A'iiíã"ãéfihição aproxima-se mais da que é apresentada
no dicionário de Furetiêre em 1690 (<(Z,erres,também se diz das ciências [. . .] Chama-
-se /eiras & manas, e indevidamente be/as-erres, ao conhecimento dos poetas e dos
oradores, enquanto as verdadeiras be/as-Jeiras são a filosofia, a geometria e as
ciências sólidaP>)do que da do dicionário de Richelet, que saíra dez anos antes:
<<Asbe/as-/erres são o conhecimento dos oradores, dos poetas e dos historiadores.)>
Reparar-se-áque o artigo <<Letrap>da Encíc/opédia prefere Richelet a Furetiêre, dis-
tinguindo entre <<asbelas-letras e a literatura>> e as <<ciências propriamente ditas>>,
entre os <detrados»,que cultivam somentea <<erudição ligeira e plena de amenida
des>>e <aquelesque se dedicam às ciências abstractase às de utilidade mais evi-
\
\

dente>>.Se bem que o artigo refira que as ciências e as letras apresentamentre si j


<<ligação,laços e relações mais estreitos>>,se bem que se reconheça que <<aquele
que
se dedica às ciências e o homem de /e/ras possuem laços profundos que ultrapas-
sam os interesses comuns e as necessidadesnaturais>>,também não deixa de esta-
beleceruma divisão em que Voltaire refuta o próprio princípio. No seuentender,e
em conformidade com as definições tradicionais, o hg!!!çp de letras é também um
homem de ciência.
Distinto do erudito, o homem de letras voltairiano é também um homem de Z)e/o
espíríra: <<obelo espírita) pressupõe menos cultura, menos estudo e não requer

Ellciclopedia o dizioltario t'agionato deite sciettze,deite arte e dei mestieri, txad.e no\as de Pao\o
Casino,Laterza, Bati, 1968, art.' «Letrados».

119
nenhuma filosofia; conlj$te substancialmentena imaginação brilhante.noEprazeres A segunda mudançaindicada por Voltaire reveste, para um observador do século XX,
dR conversa, sustentados pelas leituras correntes.>>Se os homens de letras se torna- a forma de um paradoxo, na medida em que associa a necessária independência dos
ram <<nasua maioria idóneos seja para a boa sociedadeseja para o estudo>>,isso não letrados à tutela que o mecenatodos soberanosimplica:
significa propriamenteum desconhecimentoda sua competênciaespecífica.Muito
pelo contrário. Tal como os homens do mundo, têm espírito, trazem prazer ao fascí- Possuemgeralmente mais liberdade de espírito do que os outros homens: e aque
]es que nasceram sem meios encontram facilmente, nas fundações de Luís XIV, o modo
nio da conversa e dos jogos de soç®dade. Mas são, antes de mais, liõmens de letras,
o'iné:fito será dizer homens de estudo e de leitura. E a partir desta diferença, con
) de poder manter viva em si esta liberdade; hoje não se vêem mais, como outrora, aque-
las epístolas dedicatórias que o interesse e a baixeza ofereciam à vaidade
servada mas suavizada pelo <<espíritodo séculos, que a participação dos homens de
letras na sociedadearistocrática pode ser tida (e louvada) como superior à dos seus €P
Para todos aqueles que não puderam viver das suas propriedades, dos seus cargos ,P. .
antecessores: <<Elesmantiveram-se à margem da sociedade até à época de Balzac e ou das suas rendas, apenas as pensões e as gratificações atribuí(}glJFlp p!!!jipe con g'
Voiture, depois, tornaram-se seus elementos indispensáveis.>>
seguemevitar a dependênciahuníiittiaíítê'ãÕvínculo de cli!!!te a Em vez de destruir
a liberdade crítica ãiii'í ãFánagiã tbs letrados, ã generosidade .do soberano toma-a
possível já que ela subtrai os menos afortunados às prepotências dos protectores únicos.
Espírito HilosóHico e mecenato monárquico Nela se baseia, na obra O Soca/o de Z,üú Xy/, publicada em 1751, a celebração
J
da magnanimidade do grande soberano, que ultrapassou as fronteiras do Estado:
Segundo Voltaire, houve duas i1114çlg!!çgs.
principais que transformaram profun- J
damenteo papel e a condição dos homensde letras. O primeiro converteua crítica O que Ihe conferiu maior esplendor na Europa foi uma liberdade como nunca se vira
filológica em espírito filosófico: exemplo igual. A ideia nasceu de um discurso do duque de Saint-Aignau, onde referiu
que o Cardeal Richelieu enviara donativos a alguns eruditos estrangeiros que Ihe haviam
Sucede que, no século xvl, princípios do século xvn, os letrados deram muita .}

tecido louvores. O rei não esperaque o elogiem; mas, certo de o merecer, recomendou
importância à crítica gramatical dos autores gregos e latinos; devemos ao seu trabalho aos seus ministros Lyonne e Colbert que escolhessem alguns franceses e estrangeiros que
os dicionários, as edições correctas, os comentários das obras-primas da antiguidade; se haviam distinguido na ]iteratum, aos quais teria dado sinais palpáveis da sua generosidade'.
hoje, esta crítica não é tão necessária,e sucedeu-lhe o espírito filosófico. E o próprio
espírito filosófico parececaracterizarhoje os /e/fados; quandose alia ao bom gosto,
Daí a crítica ao ridículo e à opressãodo mecenatoprivado, no Diria/zárío F'//os(i/ico
forma um letrado completo.
de Bo/se (editado em Amsterdão, em 1765): <(Escrevem odes em louvor de monse-
nhor Superbus Fadus, madrigais em honra da sua amante, dedicamao seu guarda-
Durante muito tempo reservadaà sistematizaçãodos textos antigos, a actividade
portão um livro de geografia; sereis bem tratados. Mas, se procurais iluminar os
crítica apropriou-se das crenças e das doutrinas. Logo,
homens, sereis espezinhados.'>>
'Ãs exigências do mecenato dos particulares não constituem a: única ameaça que
destruiu todos os preconceitos de que a sociedade estava infectada; previsões de astró
logos, adivinhações de magos,sortilégios de todo o tipo, falsos prodígios, falsas mara- pesa sobre os letrados' Existe outra que oprime todos'aqueles que consideram as
vilhas, costumes supersticiosos; baniu das escolas mil disputas pueris, que chegaram letras como uma «profissão>>,
como um estado que deve garantir a existência. Ver-se
a ser perigosas e que, graças a e]es [os homens de letras], são agora desprezadas:e reduzido a viver da própria pena,a tomar:$Qgnr«autor>>,signific?:expor-sea inlj:
com isso revelaram-se verdadeiramenteúteis ao Estado. merascontrariedades:
à ganânciados livreiros,.à inveja dos colegas,ao juízo do!
nÉ$çios.Contrária à profissionalização do ofício de escritor, que implica umalepen:
J O carácter soberano da crítica, que é o da <(filosofia sã>>,
subjugou, deste modo, dência insustentável em relação às regras do mercado literário, Voltaire exalta a liber-
não só as superstiçõesvulgares mas também, como o texto o deixa antever através datle é'a ifanquilidadé trazidas poi uma total dependência financeira:
(v''
de palavrasveladas,os dogmasda religião. A definição voltairiana antecipa, desta
feita, pelo menos em parte, a afirmação de Kant no prefácio da primeira edição de Muitos /errados não são autores, e provavelmente por isso se sentem mais felizes;
estão livres das amarguras que, por vezes, a profissão de autor acarreta consigo, das
Crúfca da J?anãoPura, de 1781:
disputas fruto da rivalidade, das animosidadesde partido e dos juízos falsos; existe
maior união entre eles: aproveitam melhor a sociedade;essessão juízes e os outros réus
A nova época é mesmo a época da crítica, a que tudo se deve submeter. Geralmente:
queremretirar-lhe a religião pela sua sa/zfídade,e a /egos/anão,pela sua grandiosidade
mas, deste modo, dão azo a desconfianças, e não podem fugir àquela estima mal simu- Voltaire, // seco/o d/ Z,&íigíXy7, Einaudi, Turim, 1971
lada que a razão concede somente àquilo que soube resistir ao seu exame livre e público. ' Vo\catre,DiZiotiario Jiloso$co comprelldente.oltre ai 118 articoli apparsi nelle varie edizioni di
quest'opera pLlbblicale dLtrarite la pita di Voltaire, i toro süpplenlertti edita nelle «Qliesliopts suí
Os letrados são os primeiros juízes deste <'exame livre e público>> /'Encyc/opédie», Rizzoli, Milão, 1979, art.' <<Lettere,Gente di Lettere e Letterati»

121
120
Ao invés de Duelos nas Considerações sobre os costumes des/e sécu/o (1750) e de Letrados, académicose panfletistas
d' N\emheü no Ensaio sobre a sociedade dos Letrados e dos Grandes, sobre a repu-
tação, sob/e os mecenase sobre ax recompensas/í/etárias (1752), o artigo escrito Estará a realidade do mundo social em conformidade com esta figura ideal do
por Voltaire para a Erzcic/opédía recusa a identificação da actividade dos homens de homem de letras independentee protegido? Consideremos três situações nacionais e. CX

letras com uma <<profissão>>.


Como a procura de protecção aristocrática leva os letra- onde foi possível tentar uma avaliação e uma sociologia dos letrados. Acompanhemos
dos a submeter-se aos caprichos ridículos do seu protector, a condição de autor deixa-o antes de mais Robert Damton no seu i!!yçDlárjQ da população literáljg: Raücesacon- \
à mercê dos pedidos fúteis dos livreiros e do público e, entretanto, arrasta-o para os forme consta das listas de autores apresentadas no r'rancFZÍ/réraire, um aiiiiãnaque
conflitos que são os de cada comunidade de ofício. publicadosob estetítulo a partir de 1755 e que se propõe dar a conhecer<<todos
os
Em inúmeros artigos redigidos para o Dicionário FÍ/asóHico, Voltaire arrasa homens de letras que viveram em Fiança desde o começo do século até hoje>>s.Baseados
aqueles que considera como <<aespécie desgraçada que escreve para viver»;:al fim numa definição exaustiva do homem de letras, na medida em que pode figurar na
de conseguirem sobreviver..;estes multiplicam os escritos inúteis= <Kem'autores publicação qualquer pessoa que tenha publicado uma só obra (e não necessariamente
compõem para ganhar o pão, e vinte escrivães fazem o resumo, a crítica, a apo- um livro), os inventários do Fra/zce /írréraíre atestam, antes de mais, o crescimento
logia e a sátira destas composições, com o fim de também eles terem o necessá- do.número deãutlores:são citadoíí1 87 na edição de 1757, 2367 na de 1769 e é $õF
rio, pois não possuem qualquer ofício.>>Para arranjarem trabalho devoram-se uns cível contar 2819 activos em 1784, data da última edição do almanaque, que se tor-
aos outros: nou verdadeiramente um anuário. Tendo em atenção algumas prováveis omissões,
Robert Darnton salienta: <(Creio ser possível concluir com alguma certeza que em
Estes miseráveis dividem-se em dois ou três grupos e vão ao peditório como os 1789 existiam em França pelo menos 300 escritores, mais do dobro que em 1750.>>'
monges mendicantes mas, não tendo feito qualquer voto, a sua sociedade dura apenas Em relaçãoa 53qndos homensde letras em 1784 (1493 de um total de 2819), o
alguns dias; atraiçoam-se como padres que vão atrás do mesmo benefício, se bem que France Zífféraíre indica um estado ou profissão. São apresentados três modelos. O pri
não estejam à esperade nenhum. E são chamadosauforesl moiro baseiaa actividade do escritor de acordo com as receitasfixas provenientes
de um título, um benefício,um cargoou um ofício. É estaa situaçãodos clérigos
As letras não podem ser um ofício e teria sido preferível que estes desafortuna- (20qü e 21qu, se lhes acrescentarmos os pastores protestantes), dos nobres de espada
dos houvessem abraçado uma boa profissão: e de toga (14qo), dos oficiais, administradores e engenheiros de origem plebeia (6qü).
O segundo associa a actividade intelectual a profissões que requerem saber e talento:
A desgraça destas pessoas provém do facto de os seus pais não Ihe terem permi- temos o caso dos advogados (llqu), dos médicos e farmacêuticos (17%), dos pro- ..!e
tido aprender uma profissão; é um grande erro no sistema moderno. Cada homem do fessores(11%a).Por último, o terceiro é preenchidocom todas as ocupações(secre-
povo pode ensinar ao filho uma arte útil e se se abstémde o fazer merece um castigo.
tário, bibliotecário, intérprete, preceptor,etc.) que beneficiam directamenteda pro
O filho de um montador]o que equiva]ea dizer de um lenhador] torna-sejesuíta aos
dezasseteanos. E expulso da Companhia aos vinte e quatro devido ao manifesto des- secçãode um poderoso ou do rei: reúnem 8qudos autores de 1784.
respeito pelos seuscostumes. Fica sem o necessário: torna-se escrivão; infecta a cite A sociologia que o France /Irréraíre nos transmite encontra-se, por conseguinte,
ra!.urabaixa g É objecto do desprezoe do horror da própria canalha.E sãã'chamados dividida entre duas realidades. A primeira, tradicional, poder-se-ia dizer que voltairiana,
aiz/ore.sl4 faz coexistir em partes desiguais aqueles que beneficiam de posições e gratificações
asseguradas pelo serviço junto dos iiõaêtõioS'lA segunda;'que regista a evolução do
O ideal do homem de letras delineado, em negativo, pela sátira da <<canalhada século, manifesta a afirmação de uma burguesia datada de talento que insere a sua
literatura>>,associa, sem qualquer contradição, a protecção do.soberano.ao çspí: actividade literária no exercício de uma profissão intelectual:
rito filosófico. Uma vez que isenta das obrigações do clientelismo..protege.das Duas comparaçõespodem ajudar a esclareceresta imagem dupla. Nos relatórios
perversões do mercado, reconhece os verdadeiros estudiosos, o mecenato monár: elaborados entre 1748 e 175 1 por Joseph d'Hémery, f/zspécre&lrda /fbraíríe, sobre os
quilo, tal como foi concebido por Luís XIV, é a condição através da qual os letra- autores que vivem em Paras,o equilíbrio não é o mesmos. Os critérios são mais rigo-
dõsjuê merecem assim ser chamados podem, livremente, sem condiCi'onalisM(ií rosos do que os que irá adoptar o F'rarzc-e/ífféralre: considera unicamente os escri-
nem censura, exercer a liberdade de espírito: <(Ohomem de letras não conta com
ajuda, assemelha-se aos peixes-voadores: se se eleva um pouco, as aves devoram- s R. Darnton, «The Facasof Literary Life in Eighteenth-Century France>>,in K. M. Baker (direcção
no; se imerge, é comido pelos peixep>, anota Voltaire no Díclolzárío FI/os({/lco de), The Po/ífíca/ Cu/f re of f/ze O/d Regime, Pergamon, Oxford, 1987, pp. 261-29 1 (trad. fr« Lífférafirre
ef Révol fía/z,in Id. Gemide /errres,gelosdu /fure, Editions Odile Jacob,Paras,1922,pp. 99-138)
(edição de 1765). A.sua única saída é, portanto, a magnanimidade de um príncipe ' lbident,'p.'26R
iluminado. 7 R. Darnton, «A Police InspectorSons His Files: The Anatomy of the Republic of Letters»,in id.,
The arca/ Car .A/assai/"e a/zd Or/zer .Zpísodes í/z F're/zc/zCzz/fura/ H/.s/ory, Basic Books, Nova lorque, 1984:
pp. 144-189(trad. it. // gra/zde17zassacro
dei garfoe íi//rí episodfdel/a sforfa ctrl/ ra/e/nzncese,Adelphi,
+ Voltaire, l)iziolzarío FÍ/ascÚco,Einaudi, Turim, 1977, art. «Autori». Milho, 1988)

122 123
T

toros que redigiram uma obra autêntica, com particular atenção,como seria de espe- vezesa mesmaobra, vendida com alguns retoquese acréscimosa diferenteslivrei-
rar, para aqueles que considera <(perigosos>>.
Vejamos, para os 333 autores social- ros em França e no estrangeiro. Cede, na verdade, três vezes a /Volve//e Hé/olhe:
mente identificados e registados por d'Hémery, os três modelos provenientes do Mare-Michel Rey adquireo manuscritooriginal por 2610 /it,res, Robin e Grangé
f'ra/zce /í//éraire. O primeiro -- que reúne-alétigos,nobres,oficiais e administrado pagam 1000 /ívres por uma versão expurgada, destinada a obter a autorização de
res de origem plebeia -- possui exactamente o mesmo peso, com 40qn do total. As impressão das autoridades francesas, e Duchesne garante por 1200 livres o texto enri-
diferenças dependem de uma menor presença do clero (12% contra 20qu) e do maior quecido de Pr({Áazío/zede Glu/la o /nfewfs/a suí Rama/zzi, apresentadonos seguin-
peso dos elementos de origem plebeia ao serviço da justiça e da administração régia tes termos: <<Julgueipoder esperarque o livro tivesse atingido o seu propósito, antes
(12qucontra 6qo). Mas, nos registos do /nspécfeur d'Hémery, as posições que depen- de discutir os. seus inconvenientes e as suas vantagens, não pretendendo nem prelu
dem de patrocínio são muito superiores às profissões liberais. 33qü dos autores por dicar o livreiro, nem mendigar a indulgência do público.)>'
ele descritos exercem uma actividade ao serviço de um protector (vinte e cinco são Tanto nos relatórios do inspector d'Hémery como nas listas do France /ífféraíre,
secretários, trinta e cinco preceptores) enquanto apenas 13qnsão advogados, profes- não é indicado em relação a um certo número de autores nem o estado nem a pro-
sores ou médicos. Em meados do século, e para os letrados mais empeiEbêdQs-naacti- fissão. Vai crescendo de uma fonte para outra a percentagem daqueles homens de
vidade literária, é preciso concluir com Robert.Darnton que .<'a-protecçãofuncionava letras sem emprego caracterizado ou individualizado: é o caso de 101 dos 434 escri-
Copa. principia"basilar da -üdaliterária>>8. tores considerados por d'Hémery entre 1748 e 1753 (isto é, 23qo do total), mas é
O mundo social do /'rarzce /frféraíre aproxima-semais da sociedadede académicos também o de 1326 dos 2819 que é possível enumerar a partir do f'ra/zce /ífféralre de
de província, reconstituídapor Daniel Roche9do que da república das letras de Paras 1784 (isto é, 47qo). Na edição de 1757 representavam 27qü dos autores recenseados,
vigiada pela polícia? A sociologia dos letrados e dos académicos atribui às elites tradi- na de 1769, 33qo.Seria sem dúvida uma conclusão arriscada afirmar quc estesletra-
cionais mais do que a sua conta, mas se o peso do clero é quase idêntico (22qo dos dos sem qualidade nem ofício, cujo peso acresce, sejam todos escritores de profissão.
académicos ordinários, membros das academias instituídas em trinta e duas cidades da todavia, será razoável supor que muitos deles, sem emprego nem cargos, procurem
província francesa, são eclesiásticos, bem como 20qn dos autores), o da nobreza difere viver da sua escrita. Mas nem todos são como Rousseau. O seu recurso principal é
muito: 40qn dos académicos pertencem ao Segundo Estado, contra apenas 14qo dos auto- constituído pelas grandes empresas literárias que requerem inúmeros colaboradores:
res. No seio do Terceiro Estado, são inúmeras as afinidades, com percentagens quase entre elas, as enciclopédias, os dicionários, as colectâneas, os compêndios, as tradu-
idênticas para os médicos (28qü dos académicos de origem plebeia, 28% dos autores de ções, etc. Como observa Louis-Sébastien Mercier, são exactamente estas últimas que
origem plebeia) e para os mercadores e os artesãos (8qo dos académicos, 7%üdos auto- permitem o sustento dos que ele apelida com desprezo <<semiletrados>> ou <<escrivães>>.
res). Um único desvio, mas significativo: o mundo da toga (funcionários, advogados, Sucede o mesmo em relação aos dicionários: <<Panckouckee Vincent atribuem-nos
administradores), que fomece 5 1% dos membros ordinários de origem plebeia das aca- a cada compilador munido de escrivães; constroem-se volumes alfabéticos como quem
demias, conta apenas entre os letrados com 25qo. Ao invés, as profissões intelectuais, constrói um edifício no períodode alguns meses.Com os pedreiros,a obra chega
fortemente minoritáíías no recrutamento de elementos plebeusjunto das academias,com por certo ao fim. Nada fica de fora dos dicionários.>>
apenas 13qu dos académicos, reúnem 32qü dos autores reconhecidos pelos redactores do É das suas fileiras que os diversos partidos recrutam os libelistas que alimentam
France /ifféraíre. O mundo dos autores na sua definição mais exaustiva - a que foi tida com panfletos as guerras que conduzem uns contra os outros, ou que escolhem como
em consideração pelo F'/a/zce /i//éraíre -- assemelha-se, por conseguinte, um pouco à alvo os ministros, a corte ou a rainha. Estas campanhaspartem sempre das divisões
sociedade de letrados de província que constitui a rede académica. das elites, quando cada partido quer por sua vez atrair a opinião pública: como escreve
Quem pertence então à <<espécie desgraçada que escreve para viver>>,como diz Jeremy Popkin, <<aconivência de membros autorizados da corte, da elite ministerial
Voltaire, isto é, aquelesque querem prover ao seu próprio sustento atravésdo <<valor ou de financeiros ricos era necessáriaà publicaçãoe à circulação de quasetoda a
comercial>>das suas obras, da cedência da sua produção aos livreiros? São muitos os literatura panfletista do período até à crise de 1788>>i3.Daí que surja um novo tipo
que sonhamfazer face às despesasessenciaiscom os proventos derivados da venda de patrocínio instituído pelo recrutamento de homens de letras mais desfavorecidos
dos seus manuscritos? Diderot apresenta uma justificação, enquanto a Car/a sopre o de meios ao serviço dos interesses dos seus protectores. Nem todos os panfletistas
comércio da /fv/aria, ao afirmar a imprescindibilidade do privilégio do livreiro, evi- são «Rousseau du ruisseau>>i4:Pidansat de Mairobert é secretário do rei, secretário
dencia a plena propriedade do autor em relação à sua obra, cedida a troco de uma
remuneração apropriada'o. Rousseau apresenta um exemplo, negociando por diversas R. Birn. Roa.çseaiíe/ se.çédí/el//"s,conferência realizada na Ecole des Hautes Etudes en Sciences
Sociales, 14 de Maio de 1992.
8 /bjdem, p. 168. L.-S. Mercier, Tab/ecz&í
de Paras,7Vout,e//eédiz'ionrev e e/ aiígme/l/ée. Amsterdão, 1782-1783, t. VI,
} D. coche, Le siêcte des Lulttiêres en province. Académies et académicietts provinciattx, 1680-1789, art.' «Dictionnaires»,pp. 294 e seg
Mouton, Paria-Haja1978,t. 1, pp. 185-255,e t. 2, quadro 16, p. 385 e quadro30, pp. 406 e seg. il J. Popkin, «Pamphlet Journalism at the End of the Old Regime», É'ig/z/ee/z//z-Cen/tí/yS/udfes, 22
io Diderot, Su//a /íberrà dí s/a/ zpa, in AA.VV., Po/ere po/i/ico e //ber/à dí s/cz/22pa,Editora Riuniti, (Primavera de 1989), 3, pp. 351-367 (citação da p. 361).
Romã, 1966.Sobreestetexto, cfr. R. Chartier, l,es Or/genesclr/fure//ei de/a Réva/ ffon/nznçalse, Seuil, i4Em francês, o termo <<ruisseau>>
quer dizer riacho; para tal, recorre-se a um trocadilho que não pode
Paria, 1990, pp. 69-80 (trad. it. Le orlgíní cir/erra/í de//a Ripa/ zia/ze/ríz/zc'ese,
Laterza, Romã-Bari, 1991). ser entendido em português. (N. T.)

124 125
dos comandos do duque de Chartres, censor real e accionista da Companhia das vilegiada ou ao exercício de uma profissão tornam possível: No primeiro caso, a
condiçãdde homeih dê letras insere-se numa existência aristocrática e senhorial que
)

Índias, e Tréveneau de Morande é incumbido pelo governo francês de publicar um


periódico financiado por Versalhes, Z,eCozírríer de /'xarope. Todavia, uma boa parte confere segurançafinanceira e tempo livre. Sucede com frequência em Ttália, dado
destesvem do mundo dos escritores sem ofício nem fortuna, passandoa pertencer a que 27% dos autores nascidos entre 1720 e 1780 são nobres laicos (contra 14qono
uma clientela. E o caso de Brissot que, depois de ter estado na Bastilha e falido, )
Fra/zce /i/féraire em 1784). No segundo caso, a produção literária aproveita o tempo
redige para o banqueiro genebrês Claviêre uma série de libelos (nem sempre assina livre deixado pela ocupaçãoprincipal, seja uma actividade docente, um trabalho inte-
dos com o seu nome, mas com frequência com o de Mirabeau), que visavam mani- lectual (secretário,bibliotecário, etc.), um cargo administrativo ou uma profissão libe-
pular o mercado bolsista. Constitui, no entanto, um exemplo acabadode um tipo de ral. Estas diversas actividades exercidas por eclesiásticos, nobres e laicos, têm res-
«escrivão típico, que entra em compromissos e escreve por dinheiro>>'s. pectivamente um peso de 25%o,17qu e 18qu do universo de 219 autores considerado
O conjunto dos homensde letras <'profissionaisȎ, deste modo, pouco numeroso:
<<Ocaso dos escritores 'profissionais', isto é, de escritores que não o sejam apenas
Comparações como segunda profissão, é manifestamente raro: alguns poetas da corte e alguns poe-
tas de teatro (às vezes um e o mesmo autor).>>';Se se juntarem alguns publicistas,
E possível generalizar para toda a Europa os aspectosque caracterizam a condi- não chegarão sequer a representar mais de 13qü da amostragem.
ção do homemde letras em França?Tomemosdois termosde comparação.Nos Não obstante a afirmação da noção de propriedade literária'9 e o seu reconheci-
Estados alemães, o número de autores parece conhecer uma progressão significativa mento sob diversas formas, por parte dos ordenamentos estatais, (2ghomens de letras
J cuja existência material não depende nem de um Estado, nem de uma profissão, nem
ná último terço do século xvm. O anuário publicado por Johann Georg Meusels, com
Q \Ãlula Das gelehrte Teutschland odes Lexicon der letzt lebenden teutschen Schrifstetler do mecenato,nem do patrocínio,permanecem
em nítida minorias<<Não
acreditava
conta 3000 em 1766, 4300 em ]776, 6200 em 1788, cerca de 8000 em 1795 e pouco poder viver do ofício de homem de letrap>, escreve o abade Morellet nas suas À/emórfas,
menosde ll 000 em 1806 isto é, quasequadruplicaramem quarentaanosn- Na o que o leva a manter-sena Igreja, a tomar-se preceptor do filho do marquêsde La
década que se inicia em 1780, a população de letrados seria, portanto, duas vezes
)

Galaiziêre e, pondo a sua pena ao serviço dos Trudaine, Maynon d'lnvault e de Turgot,
superior nos países alemães à da França. a acumular pensões, rendas e benefícios. Robert Damton, que acompanhou a sua ascen-
Na ltália, a comparaçãoé de outra ordem, na medida em que se baseia numa sãoirresistível, calculaem 28 275 /ívres os rendimentosanuais de Morellet nasvés
amostragem de 219 autores nascidos entre 1720 e 1780. A definição de homem de perasda Revolução, subdivididos do seguinte modo: 16 000 /feres provenientes das
letras é mais restrita nesseaspecto, uma vez que não considera filósofos, teólogos, rendas e dos direitos relativos ao benefício que recebeu (neste caso, o priorado de
economistas, homens de ciência e eruditos, para abranger exclusivamente os autores Thimert, próximo de Chartres), 11 275 /ívres oriundas de gratificações e correspon-
de obras de ficção, os críticos e historiadores da literatura e os responsáveispelas dentes pensões,na sua maioria da Caixa do Comércio e do Ministério das Finanças,
edições de textos antigos''. Circunscrito deste modo, o ambiente dos letrados italianos J e apenas 1000 /ívres recompensam directamente um trabalho literário, a preparação
atesta, antes de mais, o regresso do peso dos eclesiásticos: constituem 51qu dos auto- do Z)feio/zárío do Comércio (que, aliás, nunca chegará a ser publicado):'.
res nascidos entre 1720 e 1740, 37qu dos nascidos entre 1741 e 1760, e 35%odos nas-
cidos entre 1761 e 1780. O regressoé espectacularmas de notar também que a per
i8 /lidem, p. 363.
centagem de eclesiásticos se mantém muito acima da registada no F'ra/zce /ífférízlre
i9 Sobre a afirmação do conceito de propriedade literária, cfr. os estudos recentes de M. Woodmansee,
(20% em 1784). Com a geraçãonascidaentre 1781 e 1800, a percentagemé redu- <<TheGenius and the Copyright: Economia and Legal Conditions in the Emergente of the 'Author'»:
zida de forma significativa, atingindo 15% dos autores. Elg#reenf/zCenfaO SI díei, 17 (Verão de 1984), 4, pp. 425-448 (para a Alemanha), M. de Rosé,<'The
Segundaverificação: nos.estados.italianos, tal como em França,a actividadede Author as Proprietor: Donaldson v. Becket and the Genealogy of Modem Authorship», Represa/z/aria/l.s,
escritor é quase sempre uma segunda actividade, que o facto de pertencer à elite pri: 23 (1988), pp. 51-85 (para a Inglaterra) e de C. Hesse,<<Enlightenment
Epistemology and the Laws of
Authorship in Revolutionary France, 1777-1793», Represenfafíons, 30 ( 1990), pp. 109-137 (para a França)
CXlr.tantbém R. Chaítiet, L'ordre des !ivres. Lecteürs, atltettrs, bibÍiothêqües en Europe entre xrv' et xvnl'
5 R. Damton, <<ldeology on the Bourse>>, in M. Vovelle(direcção de), l,' íinzage de /a Rapo/z{/fon Frcz/zçaíse, síêc/e, Alinéa, Aix-en-Provence, 1992, pp. 35-67
comunicações apresentadasdurante o congresso mundial do bicentenário da Revolução, Sorbonne, Pauis, 6-12 :o Mémoires de I'abbé Moreliet de !'Acadélnie jrarlçaise sur [e xvul' siêcle et sur ta RévoÍution, direc-
de Julho de 1989, dirigido por M. Vovelle, Pergamon, Paras-Oxford, 1989, t. 1, pp. 124-139 (trad. ft. l,'idéo- ção de J.-P. Guicciardi, Le Mercure de France, Paris, 1988 (citação da p. 54). Para uma edição completa
lagie à/a Bourse, in Id. Gepzsde !erfres, cit., pp. 85-98). SobreBrissot, ver a comparaçãoentreF. A. de Luna da correspondênciade More]]et, cfr. Z,e//resd'.A/zdré]l/ore//ez', direcção de D. Medlin, J.-C. David e
e R. Damton, «French Historical Studies>>,17 (Primavera de 1981), 1, pp. 159-208 (citação da p. 199). P. Leclerc. 1. /759-/785. Voltaire Foundation. Oxford. 1991. Sobre a ascensãode Morellet, ver o estudo
ló R. Wittmann, Gesc/zícà/e des deufsc/zen Bife/zandels, Beck, Munique, 1991 , pp. 143-70 (em parti- de R. Darnton, <<Une
carriêre littéraire exemplaire»,in id., Gins de /errre.s,cit., pp. 47-67. Sobreo pro-
cular p. 147). Cfr. também A. Ward, Book produz'fíopz, Flcfia/z a/zd f/ze Gerrzzafi Reclding Pub/ic', / 740- jecto de dicionário do comércio de Morellet, ver J.-C. Perrot, «Les dictionnaires de commerce au xvill'
/800, Clarendon Press, Oxford, 1974, p. 88. siêcle>>,Recue d'Hísfolre A/oderfze el Conte/nporailze ( 1981), pp. 36-67 (incluído in id., Une /zlsioire Infe/-
17C. Colaiacomo, «Crisi dela''ancien régime': dali'uomo di lettere al letterato borghese»,in Z,erre/"a/l/ra /ec/ue//e de /'éóonomfe po//r/qae,.xt///'-xy7/7' siêc/e, Editions de I'Ecole des Hautes Etudes en Sciences
ífa/ia/za, vol. 11,Produzia/7ee co/zsumo,Einaudi, Turim, 1983, pp. 363-412. Sociales, Paria, 1992, pp. 97-126).

126 127
De igual modo, Marmontel refere nas suasA/emórlas haver subordinadoo seu o barão de Gleichen. Depois de dez anos passados em Paria a desempenhar as fun-
ingresso na carreira literária à obtenção de uma renda fixa e suficiente. Tendo-se ções de secretário da embaixada do Reino de Nápoles, Galiani vê-se obrigado a
tornado colaborador da E/zcíclopédía, no momento em que, no papel de sécré/abre abandonar a cidade e a regressara Nápoles, a fim de ocupar o cargo de conselheiro
des bófímerzfsdu roí, se encontra em Versalhes ao serviço do senhor Marigny na SupremaMagistraturado Comércio.Este regressotorna-se,paraGaliani, um
(irmão de Madame de Pompadour), Marmontel sente-se atraído pela <<sociedade verdadeiro exílio que o exclui da sociedade literária. Escreve ao barão d'Holbach
dos letrados>> em 7 de Abril de 1770:

Aqueles de quem eu gostava, e que muito honrava, tinham a bondadede me dizer Quanto à minha pessoa,aborreço-me tremendamente.Não encontro senão dois ou
que fôramos feitos para viver juntos, e apresentavam-mea Academia de França como três franceses.Sou como Gulliver que regressaao país dos Houyhnhnm e que convive
uma perspectiva que deveria atrair e prender a minha atenção. Sentia assim que não apenascom dois cavalos. Vou fazer visitas às mulheres dos ministros de Estado e das
tardaria a despertar em mim o desejo de enveredar pela carreira literária. Mas, antes Finanças.E durante o resto do dia durmo ou sonho. Que vidas Que nadatem de diver-
de mais, queria ver garantida uma existência livre e segura. tida. [. . .] A vida é uma monotonia mortal. Não se discute nada, nem sequerreligião
Ahl Minha querida Paria. Ahl Quantas saudadestenho dela
A protecção de Madame de Pompadour, uma pensão de 1200 /ípres como garan-
tia dos proventosdo 4/ercure de F'rafzce,depois o próprio privilégio do periódico, Galiani procura encontrar no seu <<deserto>>
alguns dos prazeres perdidos. A 22
que trazia, disse, 25 000 /ívres de rendimento ao seu titular, garantiam-lhe a liber- de Dezembro de 1770,declara a Madame d'Epinay, fiel correspondenteque prome
dade a que aspirava. Mas, infelizmente para ele, não a segurança desejada. Depois teu escrever-lhe uma carta por semana:
de recitar em casa de Madame Geoffrin uns cinquenta versos de uma sátira dirigida
ao duque de Aumont, é também acusado de a ter composto. Apesar de o negar, Reproduzi aqui uma amostra de Paria. Gleichen, o general Kochloficial e agente
Marmontel conhecedurante alguns dias a Bastilha, onde é tratado com grande res- austríaco], um emigrado de Veneza, o secretário da embaixada de França almoçámos
peito (<<aBastilha dispunha de uma biblioteca; o governador enviou-me o catálogo, juntos; reunimo-nose recitámosParia,como Nicolet recita Moliêre na feira. Fiz as
dando-mea escolherde entre os livros que ela possuía>>)
e, facto bem mais grave, delícias deste almoço com a epístola de Voltaire e a sua ode em prosa que tivestes a
gentileza de me enviar. Agradeço-vos do fundo do coração e peço-vos, em nome do
é-lhe revogada a concessãoexclusiva do A/ercure. Mantido sumariamente pela sua
conventículo e de mim próprio, que me envieis o que for publicado de notório e diver-
protectora, Marmontel não consegue recuperar o seu privilégio, <atribuído a um tido em Paras
certo Lagarde, bibliotecário de Madame de Pompadour e convenientemente prote-
gido por Colin, seu homem de negócios>>;consegue quando muito salvar uma pen-
O simulacro revela-seenganador.Falta-lhe aquilo que constitui o fascínio dos l
são do periódico que ascende a 1000 escudos, isto é, 3000 /ivres. Virá mais tarde
salões e dos almoços parisiensesi o governo intelectual das mulheres e um grupo de \l;l
a desforra, com a eleição para a Academia em 1763 e, dc seguida, em 1772, com
gente de espírito. <(Nãoé possível assemelhar Nápoles a Paria, se não encontrarmos J
a obtenção, graças à protecção do duque d'Aiguillon, do cargo de historiógrafo da
Francas uma mulher que nos guie, nos domine, que nos geo/7FÍ/zlxe>>,
escreve a Madame
anç
Geoffrin. E a 5 de Setembro de 1772 responde do seguinte modo a Diderot:

Perguntais-me se li o abade Raynal? Não. Mas porquê? Porque não tenho nem (
A aristocracia dos letrados: salõese recepçõesparisienses tempo nem gosto pela leitura. E impossível ler sozinho, sem ter com quem conversar,
com quem discutir ou fazer boafigura, ou escutar,ou ser escutado.A Europa morreu
O elemento caracterizador do homem de letras no século xvm é, muito mais para mim. Meteram-me na Bastilha.2z --'
do que a qualidade de autor que tive da sua Pena,'a participação, como escreve
Marmontel, na <<sociedade dos letrados>>.
Esta última-concretiza-se, substancial- A condição de homem de letras é incompatível com o retiro, a solidão, o afasta
mente, nas companhiãi-escolhidas'qüê"Eõmpartilham os prazeres do encontro: da mentddã capitaj=.da.[epúbliça d4s letras: Pressupõe, pelo Contrário, a conivência em
conversa, do salão e da mesa. Nada ilustra melhor o elo necessário entre a activi que assentam as pequenas sociedades onde os letrados adoram conversar e discutir..
dade intelectual e a sociedade mundana do que a correspondência do abade Galiani O salão é a expansão fundamental destas sociedades que a Europa inteira inveja a
após a sua partida forçada de Paria em 1769 e o chamamento a Nápoles a pedido Paria. Segundo Dena Goodman e Galiani, o salão distingue-se de todas as outras fomlas
do duque de Choiseul, contrariado com as relações que aquele estabelecera,con-
tra os interessesfranceses e espanhóis, com o embaixador da Dinamarca em Nápoles,
Abade F. Galiani, Cor/"esmo/zdalzce, compilada por A. Perry e G. Maugras, Calmann-Lévy, Paris,
1890 (citação do t. 1, pp. 93 e seg. 328, 380 e t. 11,p. 110). Para uma edição completa da correspondência
l Marmontel,7Vémolre.ç,
edição crítica elaboradapor J. Renwick e G. de Bussac,Clermont-Ferrand, com Madame d'Epinay, cfr. F. Galiani-L. d'Epinay, (:orrespo/lda/zce, Z. /7ó9-/770, apresentaçãode G. Dulac,
1972 (citações do t. 1, pp. 143, 179 e 188). texto compilado por D. Maggetti, Les Editions Desjonquêres, Paras, 1992 (previstos mais três volumes)

128 129
de encontro intelectual pela posição dominante, directiva, que as mulheres.ocupamz3. Esse papel pressupõe iniciação e imitação. O resultado é a continuidade, trans-
formada em concorrênciaferoz, que une os diferentes salões. Madame Geoffrin é
Se, por um lado, ocupam um lugar modesto nos recenseamentosde autores (tanto nas
listas do F'ra/zce/í//éralre como nas relações de d'Hémery, correspondem apenasa 3%), uma frequentadora de longa data do salão de Madame Tencin, que comenta a seu
respeito:<(Sabeiso que vem fazer aqui a Geoffrin? Vem ver aquilo que poderáreli
o seu papel é decisivo na sociedade literária que reúne letrados e gente mundana. inúmeros
rar do meu inventário.>>:s A sua rival, Madame du Deffand, conheceu a <<corte>>
de
frequentadores dos salões parisienses recordam, nas memórias que escreveram após a
Sceaux reunida em torno da duquesa do Maine, antes de participar no salão da mar-
Revolução, como era exercido essepredomínio feminino. Deste modo, Marmontel evoca
sobretudo, não sem alguma condescendência para a dona da casa, as duas sociedades quesade Lambert. Mademoiselle de Lespinasse foi durante doze anos companheira
de Madame du Deffand antes de fundar a sua sociedade. Madame Necker frequen-
que se reuniam junto de Madame GeoffHn:
tou o salão de Madame Geoffrin. Assim se transmite de salão em salão a arte tipi-
Suficientemente rica para fazer da sua casa o local de encontro das letras e das camente.femininade domínio dos espíritos:'qlíe requer uma autoridadeinvisível e
artes, e dado que isso constituía para ela um meio de desfrutar na velhice de uma discreta. Como escreveDona Goodman, <<Ossalões iluministas eram locais onde as
companhiadivertida e de uma existência honrosa,Madame Geoffrin criara em sua personalidades masculinas se harmonizavam por obra do altruísmo feminino>>:'
casa dois salões: um (à segunda-feira), para os artistas; o outro (à quarta-feira), para Segundo as memórias de Marmontel ou de Morellet, o controlo feminino das con
os letrados; e de realçar que, sem a menor preparação nem de artes, nem de letras, versas não sufoca o desejo de uma sociedade exclusivamente masculina, apresentada
esta mulher, que durante a sua vida não lera nem aprendera nada senão muito suma- (talvez com o seu quê de ilusão retrospectiva e um certo desejo de justificação) como
riamente, encontrando-se no centro de uma ou de outra sociedade, não lhes era na mais livre e mais audaz.Marmontel recorda assimos almoços apenaspara homens
verdade estranha; evidenciava até bastante à-vontade; mas possuía o bom senso de que se realizavam em casa de Pellettier:
nunca falar senão do que conhecia bem, e de dar, em tudo o resto, a palavra a pes
smasinstruídas, sempre sentada com cortesia, sem sequer dar mostras de enfado em Faltava na sociedadede Madame Geoffrin um dos prazeresque muito prezo, a
relação àquilo que não entendia; mas mais habilidosa ainda a presidir, a vigiar, a segu liberdade de pensamento.Com o seu doce agora, está fado bem, mantinha constante-
rar nas mãos aquelas sociedades naturalmente livres, a delimitar esta liberdade e a menteos nossosespíritoscomo que à margem; e eu participava em alguns almoços
restabelecê-la através de uma palavra, um gesto, como um fio invisível, quando ela em que se estava bastante à vontade. O mais livre, ou melhor, o mais licencioso de
queria fugir: <(Vamos,agora está tudo bem>>,era geralmente o sábio sinal que dava todos, era aquele que oferecia todas as semanasum empreiteiro geral dos impostos
aos seus convidados.
chamadoPellettier a oito ou dez jovens, todos amigosda paródia.

A comparação muda de tom mas não de significado ao recordarmos o círculo reu- Recorda também aqueles em casa de d'Holbach
nido em torno de Mademoisellede Lespinasse:
Por mais interessante que fosse para mim a sociedade daquelas mulheres no seu per-
era constituído por pessoas que não tinham nada a ver umas com as outras. Conhecera- fil espiritual, isso não me impedia de ir fortalecer o ânimo, elevar, estender,acrescero
as nesta ou naquela parte do mundo, mas tão diversas que, quando se reuniam, veri- meu pensamento e fecunda-lo numa sociedade de homens cujo espírito enchia o meu de
ficava-se uma harmonia como as cordas de um instrumento montado por mão hábil. calor e de luz. A casa do barão d'Holbach e, algum tempo depois, a de Helvétius, eram
Mantendo o mesmo paralelismo, poderei dizer que tocava este instrumento com uma os locais de reunião destasociedade,constituída em parte pela fina flor dos convidados
arte que tinha o seu quê de genial; parecia adivinhar o som da corda que iria ser tan de Madame Geo#hn e em parte por algumas cabeçasque Madame GeoffHn achara dema-
gida; diga-se, aliás, que conhecia bem os nossos espíritos e os nossos caracteres,que siado audazese demasiadotemeráriaspara serem admitidas nos seusalmoços:'
Ihe bastava uma palavra para os ironizar. Em mais lado nenhum era a conversa tão
viva, tão brilhante, nem tão directa como em sua c&sâ.24
Morellet estabelece o mesmo contraste entre os almoços de Madame Geoffhn e as se
ciedadesmasculinas,mais frondistas e mais ousadas.As reuniões ao ar livre nasTulherias
SÓa destreza e a habilidade femininas se afiguram capazesde manter nos limi
tes da boa educação o <<equilíbriodas tensões>> (para citar Elias) inerentes às dis- após os almoços em sua casa, íamos com frequência às Tulherias, d'Alembert, Raynal
cussões literárias. Helvétius, Galiani, Marmontel, Thomas, etc., para nos reunirmos com outros amigos

3 O estudo dos salões parisienses foi profundamente renovado pela série de artigos de D. Goodman,
<<Enlightenment Salons: The Convergente of Female and Philosophic Ambitions», Elig/zree/z//z Ce/z/z{/.y !5 /bídem, p. 160.
Sfudiei, 22 (Primaverade 1989),3, pp. 329-350; Id., <<Governing
the Republicof Letters: The Politics of zóGoodman, Gaverrzílzg//ze Republic of l.e/fera cit. p. 187
Culturein the FrenchEnlightenment>>,Hísfa/y afEuropearz/aras, 13( 1991), 3, pp. 183-199,e Id. «Public 27Marmontel, .A/émoire.çcit., t. 1, pp. 170 e sega. e 224. Sobre os almoços do Barão d'Holbach, cfr.
Sphereand Private Life: Toward a Synthesis of Current Historiographical Approaches to the Old Regime», A. C. Kors, d'Ho/bac/z'.s Co/Crie,an .En/í8/irem/ne/7/
fn Paras,PrincetonUP, Princeton, 1977,e D. Rocha,
Hlsfory a/zdThea/y, 31 (1992), 1, pp. 1-20. <<Lumiêreset engagement politique: la coterie d'Holbach dévoilée», in, Z,es .Rl+ub//caí/zs dei Z,e//res. Ge/zs
!4Marmontel, .A4émolres,cit., t. 1, pp. 160e 220. de c {/r re e/ Z,um/êlesaa xv7/7' .ç/êcZe,Fayard, Paras, 1988, pp. 242-253

130 131

L
saber das novidades, criticar o governo e filosofar a nosso bel-prazer. Sentávamo-nos A organização da semana para a aristocracia dos letrados é, de igual modo, assi
em círculo aos pés de uma árvore na grande alameda, entregando-nosa uma conversa nalada pela complementaridade das sociedades. Quando Madame Necker decide fun
animada e livre como o ar que respirávamos. dar o seu próprio salão, precisa de escolher um dia:

O barão d'Holbach Madame Necker dirige-se a nós os três [isto é, Marmontel, Rayna] e More]]et] para
estabelecer as bases da sua sociedade literária. Escolheu-se um dia que não fizesse con-
oferecia regularmentedois almoços por semana,ao domingo e à quinta-feira: ali se conência à segunda-feira e à quarta-feira de Madame Geoffrin, à terça-feira de Helvétius,
reuniam, sem os preconceitos dos outros dias, dez, doze e às vezes quinze ou vinte à quinta-feira e ao domingo do barão d'Holbach. Sexta-feira foi o dia de Madame
homens de letras e gente mundana ou estrangeiros, que apreciavam e cultivavam as Necket'30
1'

mesmas artes do espírito. Comida com abundância, mas boa, vinho excelente, um exce
lente café, inúmeras disputas, nunca altercações; a simplicidade dos modos, como con- <<Aquiloque os frequentadores de salão do século xviil fizeram foi transformar
vém aos homens racionais e instruídos, mas sem nunca redundar na vulgaridade; uma uma forma nobre e, portanto, agradável de encontro social num local de trabalho
alegria sincera sem ser louca: em suma, uma companhia verdadeiramenteagradável, sério>>,escreve Dena Goodmanai. São consideráveis as diferenças entre os salões
comprovada pelo facto de, tendo chegado às duas, segundo o uso da época, ser fre- do séculoxvll32 e as reuniõesdo século XVlll (que os contemporâneosraramente
quente ainda lá nos encontrarmos às sete ou oito da noite.
designam pelo termo de <aalão>>mas antes por <<casa>>,
<«ociedade>>, <<companhin>,
<<almoços»).A uma sociedade em grande medida feminina sucedem-se as compa-
Os almoçosem casa de Helvétius são um pouco afectadospela conduta intem- nhias de homens dirigidos por tina mulher, dona da casa e da conversa; ao pri-
pestiva da dona da casa que não sabe nem manter-se à parte, nem orientar a conversa:
mado dosjogos literários, do intercâmbio de informações, o confronto das ideias,
o exercício da crítica, a elaboraçãode projectos filosóficos; a uma forte prepon-
a casa de Helvétius reunia mais ou menos as mesmas pessoas que a do barão d'Holbach,
em dias diferentes; mas a conversa era menos agradável e encadeada.A dona da casa, derância nobiliárquica, uma sociedade em que se encontram lado a lado nobres e
chamando para perto de si as pessoas que mais Ihe agradavam, e não escolhendo as plebeus e em que as diferenças de condição e de estado devem ser eliminadas diante
piores, diluía um pouco a sociedade. Não gostava de filosofia, tal como Madame da igualdade que o debateintelectual requer. Enquantoos salõesdas preciosas
d'Holbach; mas esta última, mantendo-se no seu lugar sem proferir palavra, ou con fazem parte da sociedadede corte, portanto, do âmbito da autoridade pública na
versando em voz baixa com alguns dos seus mais íntimos, não impedia ninguém, ao sua forma absolutista, os almoços das Luzes são os primeiros daqueles espaços pri-
passo que Madame Helvétius, bela, de espírito original e arguta por natureza, perturbava vados que estejam o aparecimento de uma esfera pública, distinta e crítica no seio
demasiado as discussões filosóficas.zs da monarquia.

Bem marcada nas memórias, a diferença entre o domínio feminino e as sociedades


masculinas é, com efeito, vivida como uma sucessãode encontros cujas vantagense A arte de conversar
prazeres se completam quer ao nível quotidiano, quer ao semanal. Por exemplo, todas
as quartas-feiras, Marmontel participa primeiro no almoço <<presidido>>
por Madame O que os salões do século xvili e as companhias do século seguinte têm em comum
Geoffrin, em que a frequência, à excepção de Mademoiselle de Lespinasse,é intei- é a diferença das práticas literárias (imbuídas, conforme je referiu já, de fins bem
ramente masculina (cita como habituais frequentadores:d'Alembert, Dortous de diferentes). A mais importante destaspráticas é arêonversa.lO.yçrdadeiro homem de
Mairan, Marivaux, Chastellux, o abade Morellet, Saint-Lambert, Helvétius, Thomas letras do século xvlll, pelo menos segundo os cânonesdo esfab/fs/zme/zlliterário,.é
e, entre os estrangeiros, o abade Galiani, o marquês Caracciolo e o conde de Creutz), antes de mais um padrão de conversa em sociedade.Garat dá-nos disso testemunho
depois dirige-se com alguns dos seus amigos às Tulherias antes de regressara casa nas suasMemórias Históricas sobre o Sécltlo XVlll e sobre o Senhor Suard, pub\lcadas
de Madame Geoffrin a fim de se reunir com uma companhia mais elevada e feminina: em 1821. Na sua perspectiva,o mérito literário e filosófico de Suard (que acumula
protecções, pensões e posições e que tem a consagração suprema com a eleição para
Depois de ter almoçado em casa de Madame Geoffrin com os letrados ou com os a Academia de França) reside inteiramente na sua eloquência:
artistas, voltava novamente a sua casa à noite para um grupo mais íntimo, pois tivera
a gentileza de me admitir nos seusjantarzinhos. [. ..] A companhia era pouco nume- O senhor Suard falou mais do que escreveu.Dispersou muito espírito e talento em
rosa, ao todo cinco ou seis dos seus amigos íntimos ou dois casais de homens e mulhe fragmentos avu]sos e mais ainda nas sociedadese nas conversas. [...] Ainda muito
res do grande mundo, escolhidos a seu prazer, e reciprocamente felizes de se encon
trarem reunidos.ZP
seMorellet, .IVélno/rescit., pp. 143 e segs
3i Goodman, .En//g/zfen/ne/l/ Sa/o/z, cit., p. 338
:8Morellet, .A/émoirescit., pp. 96 e sega. 129 e seg.e 135. s! C. LouBgee, Le Paradas des Fetnlnes. Walnen, Satoíts and Sacia! Stratificcition in Seventeenth
29Marmontel,7Wémoires
cit., t. 1,p. 169. Ce/l/u/y F/alzce,PrincetonUP, Princeton, 1976.

132 133
r'
próximas do senhor Suard, e por isso mesmo impregnadas dele, permitiu que algumas rente>>,nem pedante, nem !jilíylo!!pune vozes diferentes. O salão é um concerto em que
coisas que ele prodigalizava enquanto estavam vivas em si sem que o soubesse, na sua um hábil <<mesirida música>>sabe harmonizar as partes defendidas por cada um;4
memória, escapassemao esquecimentoe à usurpação. Mas é nos círculos, nos gabi-
netes, nas conversas que ele as faz brotar.
Críticas aos salões
Teórico da sua prática, Suard projectara escreve! (ou melhor, como disse Garat,
<<aflorarnum pequeníssimo volume>>)uma <(históriada conversa em França a partir O governo feminino da república dos letrados, tal com(Lse apresenta na sociedade
do século x>>:
dos salões parisienses, não é do agrado de todos. Rousseau, ha sua carta a d'Alembert
Sobro õ seu.artigo«Genebra» no Vll Volume da Enciclopédia e em particular sobre
Julgava, coisa controversa mas muito evidente, que os séculos seriam mais bem o projecto de estabelecimerltode um teatro de comédia nesta Cidade, pub\toadaem
descritos=através ã dai suas conversas do que-da-sua literatüíãÍ iíã'Mãrdade,
1758, rejeita-o em nome da separação necessária entre os sexos (<<sigamosas indica-
poucos são os que escrevem e muitos os que conversam e se, por um lado, nos
ções da Natureza, zelemos pelo bêriíãa sociedade; veremos que os dois sexos se devem
habituámos a que os escritores se imitem e copiem, ainda que um longo número de
reunir de vez em quando, e viver por norma separadop>)e do respeito dos deveres
anos os separe, felizmente é bem frequente serem obrigados a exprimir o que sentem
e o que pensam
inerentesa cadaum. Inversãoabominávelde Esparsae da sociedadefeliz dos
/Wonrag/zo/zs,os salões parisienses transformam a impudicícia em mérito:
Aplicando esta perspectiva ao século xvm, Garat atribui à força da palavra viva
as agitações que o coroaram: Entre nós [...] a mulher mais estimada é a que faz mais barulho; de quem se fala
mais; que se vê mais em sociedade;em cuja casa se almoça com maior frequência; que
dá mais imperiosamente o tom; que julga, sentencia, decide, pronuncia, atribui aos enge-
Esta influência [ou seja, a do «espírito fi]osófico>>], se não se tivesse manifes
nhos, ao mérito, às virtudes os seus graus e as suas posições; e a quem os homens sábios
lado apenas através dos livros e das leituras, não teria originado com semelhante
mendigam mais vilmente os favores.
rapidez efeitos tão importantes e amplos. Foi através das conversas que ganhou
aquela força sempre crescente, que nada podia vencer, e que tudo devia fazer mudar.
Esta força era exercida e fortalecia-se principalmente nas sociedades frequentadas '' Facto de ainda maior gravidade, os salões corrompem as mulheres e enfraque-
pelo senhor Suard, cujo gosto pelas artes e pelas letras reunia os homens que mais cem os homens, destruindo deste modo com um só gesto as virtudes que devem ser
influenciavam as opiniões graças ao seu esclarecimento, à sua posição e à sua con- as de fada sexo:
a
dição."
Covardemente consagrados às vontades do sexo que devemos proteger e não ser-
A importância decisiva aüibuída à conversa, entendida como um verdadeiro género, vir, aprendemos a despreza-lo obedecendo-lhe, a ultrajá-lo com as nossas atenções tro-
cistas; e cada mulher de Paria reúne no seu apartamento um harém de homens mais efe-
com as suas regras e as suas convenções, resulta bem evidente em dois artigos de
More1let no it4ercure de /'range em 1778, o Ensaio sobre a Conversa(que é uma tra- minados do que elas, que sabem render-lhe toda a espécie de homenagens,excepto a
duçãodo textode Swift, HÍ/zfi foward an Essason Conversaffon)
e Z)o espú'írode do coração de que ela é merecedora.
co/zrradíção. O abade filósofo irá retoma-los e transforma-los em dois tratados, publi-
cadoscom os mesmostítulos em 1821,.num volume colectivo intitulado Panegú'íco Aprisionados, enfraquecidos, enlanguescidos por esta <widasedentáriae doméstic»>
de A4adame Ge(Wrfn. Morellet define nestes textos a conversa como um género entre os homens de letras, dedicados a escritos fHvolos e efémeros, perdem toda a genialidade
os maiores da prática das letras pois ao restringir o confronto, ou seja, a oposição das
ideias e das opiniões às obrigações da cortesia mundana permite estabelecer a verdade Tentai imaginar qual a têmpera espiritual de um homem que se ocupa unicamente
sem para tal destruir com tensões demasiadofortes os laços de sociedade.A seme daquele assuntoimportante que é divertir as mulheres e que passa toda a vida a fazer
por elas o que elas deveriam fazer por nós, extenuados com os trabalhos que elas são
Ihança do <<estilodialogado>>na música, que se tomou moda em Paraspor alturas de
incapazesde efectuar, os nossosespíritos necessitamde desanuviamento."
1760, a conversa bem conduzida «nem rigorosamente metódica nem totalmente incoe-
14Sobre estestextos de Morellet, cfr D. Gordon, <<'Publicopinion' and the Civilizing Processin
France: The Example of Morellet)}, Eig#fee/zr/z-Ce/zfizW
Srudíes, 22 (Primavera de 1989), 3, pp. 302-328,
3aD.-J. Garat, .A/émoíres/zís/oríqaes sur /e xv'//7' .çlêc/ee/ sar .A/.Suard, A. Belin, 1821, t. 1, pp. 173. e B. R. Hanning, <<Conversation
and Musical Style in the Late Eighteenth-Century Parisian Salon»
172 e 170. Sobre a carreira de Suard, cfr. R. Darnton, r/ze Hfg# Enlíg/zre/Tmenr
a/zd fAe Z.r9w-leme
nf ElgAree/zrA-Cela/ÜW Sf dlei, 22 (Verão de 1989), 4, pp. 512-528 (citação da p. 518). Sobre a conversa
[,íffera/ure flz fAe Prereva/ ríonary France, «Past and Present)>, 5] (1971), pp. 81-1 15 (trad. fr. <<Dans como género, ver M. Fumaroli, lz genro' des ge/ares /frréralrei/rançaís. /a conversafian, Clarendon Press,
la France prérevolutionnaire: des philosophes de Lumiêres aux 'Rousseau des ruisseaux'», in id., Oxford. 1992
Bo/zéme //rrérczire ef .Révo/lzfío/z. Z,e monde des /ívre.s aa xv7//' s/êc/e, Gallimard/Seuil, Paras, 1983, 15J.-J. Rousseau, Z,e///e à .A/. d'Á/emberf sur se/z arfíc/e Genêve, Flammarion, Paria, 1967, pp. 115 e
PP. 7-41) 197 e segs.

134 135
r'
Em 28 de Janeiro e 9 de Maio de 1763, por ocasião da sua estada em Paris, Edward príos se pintam nas suas obras, humanos e tolerantes, pois falavam sem trégua de tolo
Gibbon pôde tornar-se, graças a cartas de recomendação que obteve em Londres, fre- rangia e de humanidade. Quando os vi descer dos seuspedestais e os pudejulgar mais
quentador habitual dos almoços literários: <«Quatrovezes por semana, era-me reser- de perto, a minha ilusão dissipou-se. Passei a adorar ainda mais a filosofia, mas pres-
vado um talher na mesa hospitaleira de Madame Geoffrin e de Madame du Bocage, tei bem pouca atenção a certos filósofos.
do famoso Helvétius e do barão d'Holbach.>>A sua impressão, tal como é referida
nas suas memórias, i-edigidas entre 1789 e 1790, é marcada pela moderação. De um Idêntico tratamento está reservado aos académicos imbuídos dos seus preconcei-
lado, a sociedadeque frequentaestáem conformidadecom a ideia que se fazia da tos e ciosos das suas prerrogativas (facto que induziu Brissot a defender Marat con-
<(genteeducada e amável>>:<<Nodecurso destes Symposía, uma conversa animada e tra Laplace,pois, segundoafirma, <<era-me
insuportávelque tratassecom insolência
liberal valorizava os prazeresda mesa; a companhiaera seleccionada,conquanto um físico só porquenão tinha assentocomo ele»):'. As memóriasde Brissot, apesar
mista e voluntária.>>Do outro lado, o despotismodo governo feminino e a intole- de revelarem também uma ilusão retrospectiva e a reconstituição czpos/eríorí, indi-
rância dos homensde letras alimentam"b ódio: cam claramenteo muro de rancor que separatodos os autores desafortunados,em
busca de legitimidade e de remunerações,dos homens de letras que monopolizam
Aliás, era-me muitas vezes insuportável a tirania caprichosa de Madame Geoffrin, protecções, pensões e posições.
nem tão-poucopodia aprovar o zelo intolerante dos filósofos e dos Enciclopedistas, os
amigosde d'Holbach e de Helvétius: estestroçavam do cepticismo de Hume, prega-
vam os artigos do ateísmo com uma beatice dogmática e condenavam todos os que As viagensda Razão.Berlim
acreditavam no inferno com o seu desprezoe as suas mofas;
Ser admitido nos almoços e nas companhias que em Paria (e unicamente em Paris)
Gibbon prefere as visitas particulares aos homens de letras, efectuadasantes do consagravam o verdadeiro homem de letras, simultaneamente homem de letras e filó-
almoço, a esta companhia animada (<<nodecurso das minhas visitas matutinas, quando sofo:'{ a ambição de todos aqueles que, na província e fora da França, pensam e
os encontrava a sós, os autores e os belos espíritos parisienses afiguravam-se-me com escrevem:Todavia, os salões parisienses constituem apenas uma expressão, por certo
frequência menos fúteis e mais razoáveis do que quando estão no meio dos seus pares a mais notória e a mais invejada, de um conjunto de locais de socializaçãointelec-
com os quais se misturam nas casas faustosas>>),as conversas entre eruditos («as con- tual que qualificam aqueles que neles participam como cidadãos de uma república
versas vespertinas do senhor de Foncemagne eram mantidas no bom senso e na dou-
que não conhece nem uma única capital nem fronteiras inacessíveis. A lógica que
trina dos membros mais importantesda Academia das inscrições»),o teatro, sem presidea estarede tem um carácterduplo e é extensiva a toda a Europa: primeiro
omitir a companhia de Madame Bontems, a propósito da qual comenta que <<naesta- geográfica, com maior ou menor penetração do espírito filosófico; depois institu-
ção intermédia da vida, a sua beleza era ainda objecto de desejo>>.A recordação deste cional, como o contraste que opõe as instâncias de legitimação dependentesdirecta
encontro feliz não irá abandonar Gibbon (<eatorze semanas se passaram sem que eu mente do poder soberano e as sociedades livres e voluntárias em que o exercício da
dessepor isso; mas, se fosse rico e independente, teria prolongado a minha estada e crítica se explica com maior à-vontade.
talvez me tivesse fixado em Parip>). Mas, passados vinte anos sobre as semanas em O senhor André do Homem dos Q are/z/a Escudos traça ironicamente a cano
Paras,quando deixa Londres para se retirar para Lausana, Gibbon sente efectivamente grafia daquela Europa que se abre de forma desigual ao <(progressodo espírito
necessidade de voltar novamente à capital e chega à Suíça pelo caminho mais curtosó. humano>>,
uma vez que acolhe também de modo desigual aqueles que o tornam
O último testemunhocontra a sociedadedos salõesapresentamotivaçõesdife- possível
rentes.Exprimindo nassuasmemórias,redigidas duranteo encarceramento,a aver-
são pelas.<<mulheres letradas>>,pelos <<conventículos pedantescos que pululam em Parece-me, dizia a mim mesmo na passada terça-feira, que a Razão viaja em
Paris>>,
já que as <<mulheres do académicoe do procurador,do burguêse do grande pequenasetapasdo Norte para o Sul, com as suasduas amigas íntimas, a Experiência
penhor,do revisor das finançase do simplesfinanceiro, quereriamtodas ter um cír- e a Tolerância.Acompanham-na
a Agriculturae o Comércio.Apresentou-se
em
culo para presidir>>,Jean-Pierre Brissot deixa transparecer as frustrações de um jovem ltália, mas a Congregaçãodo Index" rejeitou-a. Tudo o que pede fazer foi enviar
que o mundo das letras se recusaa reconhecercomo seu par. Envolve no mesmo secretamentealguns dos seus agentes, que não deixam de praticar o bem. Mais
desprezoos <'círculosdo belo espírito>>governadospela frivolidade, os homens de alguns anos, e o país dos Cipiões deixará de ser o dos Arlequins disfarçados de
letras egoístase indiferentes,a começarpor d'Alembert: monges. De onde em onde possui cruéis inimigos em França, mas tem também aqui
tantos amigos que no fim será necessárioque primeiro se torne ministro. Quando
Eu, jovem neófito, desconhecedorde tudo e que vim admirar os grandes homens
ou escutar os filósofos, esperava encontra-los afáveis e indulgentes, como eles pró- s7J.-P. Brissot, /Vémolres(/754-/793), Picard, Paria, 1912(citações do t. 1, pp. 126 e segs« 122 e
se e 199)
38Referência ao catálogo dos livros proibidos pela autoridade religiosa católica. Esta censura, criada
3õE. Gibbon, Mê/nade de//a mla v/ía e deg/; scH#l, Stabilimento tipograâco Aw. F. Giorgetti, Macerata, 19 15. no séc. xvl, com a impressão, foi abolida por Paulo VI em 1965. (N. da T. porfzlgzíesa.)

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se apresentouna Baviera e na Áustria, encontrou dois ou três reaccionários que a dicas entre 170] e 1730,767 entre 1731e 1760,2353 entre 1761 e 1790(dos quais
miraram com olhos de espanto e maravilhados e Ihe disseram: <<Minhasenhora, 1225 só no último decénio). Os jornais cultos, que predominam na primeira metade
nunca ouvimos falar de si; não a conhecemos. Meus senhores, respondeu-lhes, do século, desaparecempara dar lugar a periódicos que alimentam e organizam uma
com o tempo ireis conhecer-me e amar-me. Sou muito bem recebida em Berlim, em discussão pública e crítica: de uma amostragemde 160 periódicos publicados entre
Moscovo, em Copenhagae em Estocolmo. Há muito tempo que, através da con- 1750 e 1800, os artigos respeitantesaos problemas contemporâneos (sociais, eco-
fiança de Locke, de Gordon, de Trenchard, de milord Shaftesbury e de tantos outros, nómicos, jurídicos, políticos e pedagógicos) representam4 1,5% do total dos artigos
recebi as minhas cartas de naturalização em Inglaterra. Também vós um dia me
publicados''. Fica assim nitidamente expresso o segundo aspecto inerente aos letra-
haveis de as conceder. Sou filha da época e espero tudo de meu pai.>>Quando pas-
dos nos Estados alemães: a sua proximidade dos detentores de cargos e de ofícios
sou as fronteiras da Espanhae de Portugal, deu graçasa Deuspor ver que as foguei-
ao'servjgo.da.Estado,ou mesmo a sua participação directa na burocracia constituída
ras da Inquisição já não se acendiam com tanta frequência; alimentou muitas espe-
ranças de ver expulsar os jesuítas, mas receou que, ao libertar o país das raposas, por princípios absolutos(e, por vezes, iluminados). E então possível aplicar-lhes
o deixasse à mercê dos lobos.s9 com particular pertinênciaa afirmaçãode Anthony La Vopa sobre a sociedadedas
T.uses
IJ

Retomemos esta geografia voltairiana, traçada em 1768. {<Sou muito bem rece
boda em Bçrlim>>, declara a Razão. Na capital da IEIÚssia:os letrados encontram-se Era precisamente [a] e]ite de serviço estratificada, mais ou menos directamente
implicada nas actividades do <absolutismo>>,que formava o centro de gravidade das
distribuídos pelas diversas sedesde dependência.A mais oficial é a Academia Re41
novas formas de socialização do Iluminismo. No todo, os novos espaços sociais, em
das:Ciências:fundada em 1700, reformada por Frederico, a Grande, em 1740, domi primeiro lugar as lobasmaçónicas, eram ocupados por grupos que constituíam o «Estado>>
nada durante algum tempo pelos filósofos franceses: mas pouco aberta ao!.ilumiD!!- Se,por um lado, eram refúgios privados do absolutismo, eram também suas extensões
tas prussianos até à morte do rei em 1786'Estes últimos frequentam antes as socie- informais.
dades iluminadas onde estabelecemcontacto com funcionários, administradores c
professores: como o Montagsclub, fundado em 1749, a Fesslersche Lesegesellschaft Por isso, designadamentena Alemanha, mas não com carácter exclusivo, a ambi-
e a Mittwochgesellschaft, sociedade de vinte e quatro membros que mantinha uma valência dos homensde letras cm relação ao Estado absolutista, objecto de crítica e
existência secreta e destinada a contrabalançar as tendências hostis às Luzes de outra de identificação4z
sociedadesecreta,a Bruderschaft der Gold-und Rosenkreuzer.No último decénio do
século, a nova geração literária afasta-se das sociedades iluminadas e dá preferência
aos salões românticos: contam-se na cidade catorze anteriormente a 1806. Secreta
Parase a província: instituições de consagração e locais de socialização
nás suas deliberações:a Mittwochgesellschaft pode reunir o público graças a um
periódico que Ihe está directamente ligado, o Ber/f/zísc/zeit/onarssc/zre#. O jornal Segundoo senhorAndré, grassavaem Françaa luta entre os inimigos e os ami-
publica algumas conferências proferidas pelos seus membros (por exemplo, Johann gos da Razão.O controlo das instituições de maior prestígio é o esteio decisivo desta
Friedrich Zõllner, Meses Mendelssohn, Christian Gottlieb Se1leou Cara Gottlieb contenda. O partido filosófico, após a eleição de d'Alembert para a Academia Francesa
Svarez) e organiza debatesparalelos aos que são conduzidos na sociedade-- por exem eH 1754,lançou-se no ataqueao bastião da legitimidade intelectual. A luta é renhida
plo, sobre a pergunta famosa <<Oque é o Iluminismo?>>, colocada em 1783 no jol-nal e lenta a conquista. Em 1763, quando Marmontel aspira ao lugar deixado vago pela
por Zóller e na sociedadepor Karl Wilhelm Mõhsen,ou sobrea reforma da legisla- morte de Marivaux, o progressoé ainda incerto: <<Haviana Academia quatro homens
ção e a elaboração do Allgemeines Landrecht für die Preussischen Staaten (Código designados pelo nome de filósofos, rótulo odioso naquela altura. Os académicos eram
Geral Prussianos'. Duclos, d'Alembert, Saurin e Watelet. Ciente do seu apoio (mesmo que na época
O caso berlinense,reproduzido em diferentes escalasnas inúmeras pequenas d'Alembert e Duelos se guerreassem sem misericórdia), Marmontel efectua as habi-
capitais, ilustra assim dois aspectosfundamentais da situação dos homens de letras tuais visitas mas depara-se-lhea oposição feroz de um dos ministros, o conde de
nl.Alemanha. O primeiro dependedo pape! essencialdesempenhado pglglJornais, Praslin. A única maneira de contornar uma hostilidade tão encamiçada é alcançar o
cuja circulação cria um espaçocomum de publicação e de discussão,apesar da
ausênciade capital intelectual equiparável ao de Paris e não obstante a multiplici-
dade dos Estados nacionais. O número dos novos cabeçalhos, de duração mais ou 4i H. E. Bõdeker, <<Journals
and Public Opinion. The Politicization of the GermanEnlightenmentin
menos longa, conhece uma progressão considerável: são publicados 3 16 novos perió- [he Second Half of the Eighteenth Century)>,in Hellmuth (direcção de), op. clf. , pp. 423-445 (quadros das
pp.428 e 436)
42A. La Vopa, <<Conceivinga Public: Ideal and Society in Eighteenth-CenturyEurope>>,
Jo r/zaJof
39Voltaire, Z,' o/?lodai qaaran/a scadi, Rizzoli, Milão, 1958. Mover/z HisíoW, 64 (Mar. 1992), pp. 79-116 (citação da p. 89). Cfr. também F. Kopitzsch, <<Esquisse
40H. Mõller, «Enlightened Societies in the Metropolis. The Case of Berlin>>,in E. Hellmuth (direc- d'une histoire sociale de I'Aufklârung en Allemagne>>,in H. Berding-E. François-H.-P. Ullman (direcção
ção de), Tule Tratlsformatiol! of Politicas Cullure, Englaitd and Germana in the Late Eighfeenfh CerifLíry de), La Révolution, [a France el !'A]]emagne. deus modàles opposés dü changemenr social?, Edil\ons de
Londres/OxfordUP, Oxford, 1990, pp. 219-233. la Maison de Sciences de I'Homme, Paria, 1989, pp. 348-365

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favor do rei. Paratal, o candidatodos filósofos, apoiadopela suaprotectora,encon- presençafeminina mas acolhe uma sociedade exclusivamente masculina. Segundo
tra o gglto mais tradicional de submissão do homem de letras: a oferta ao soberano modelo: o da sociedade literária definida, a dada altura, pela própria oposição à forma
de um exemplar ricamente encademadolEÜma das suas QbraF académica e por uma sua imitação. Os jovens letrados da província, que se agitam
às portas das academias constituídas de acordo com o modelo parisiense, encontram
Finalmente, estando terminada a impressão da minha Poéríca, solicitei a Madame nestas associações mais livres, sem cartas de apresentação nem reconhecimento ofi-
de Pompadour que conseguisseque fosse apresentadaao rei uma obra que faltava na cial, uma maneira de acalmar a sua impaciência. Por último, a multiplicação dos
nossa literatura. E, disse-lhe, um favor que não custará nadanem ao rei nem ao Estado
museuse dos liceus, com finalidadesmenosutilitaristas e mais pedagógicasdo que
e que provara que sou estimado e aceite pelo rei. Devo tal testemunho à memória desta
as das academias, oferece uma saída para os letrados excluídos das instâncias de con-
mulher bondosa cujo belo rosto ficou radiante de alegria perante um modo fácil e sim-
sagração mais legítimas4ó.
ples de influenciar publicamente o rei a meu favor. <.Debom grado, retorquiu-me, pedi-
Esta nova forma de socialização intelectual reveste por vezes um valor subver-
por.vós estefavor e obtê-lo-ei.>>Obteve-o sem dificuldade e, ao anunciar-mo, <<Epre-
ciso, disse-me,dar a esta apresentaçãoa maior solenidade possível e nesse mesmo dia siva: E o que sucedecom Brissot que, com o embelezamento retrospectivo e justifi
toda a família real e os ministros deverão receber a obra das suas mãos.,, Confiei o cativo próprio das memórias,recorda a sua tentativa de fundar o Liceu de Londres
meu segredo apenasaos amigos mais chegados; e, sendo os meus exemplares magni- em 1782-1783. O projecto é ambicioso:
ficamente encadernados(pois não olhara a gastos), dirigi-me um sábado à noite a
Versalhes com as minhas ofertas. [. . .] No dia seguinte, fui apresentadopelo duque de Propus-me construir aí [em Londres] um Liceu, um Museu, onde se encontrassem
Duras. O rei tinha despertado.Nunca o vira tão belo. Recebeua minha oferta com uma alguns dias da semanaos homens de ciência, os filósofos de todo o universo, e onde
expressãoque encantava.Teria transbordado de alegria se me dirigisse duas palavras, se reunissem todas as produções artísticas; pensei também num jornal destinado à
mas os olhos falaram por ele. [...] Quando saí da casa de Madame de Pompadour, a difusão dos resultadosdestesencontros científicos e que serviria de livre-trânsito às
quem apresentarajá a minha obra, <<lde,disse-me, a casa do senhor de Choiseul ofe- verdadesfilosóficas e políticas que era necessáriointroduzir em todos os espíritos
recer-lhe o seu exemplar, receber-vos-á de bom grado; e deixai-me o do senhor de franceses.
Praslin; dar-lho-ei eu mesma.>>Após a minha expedição, fui logo anunciar a d'Alembert
e a Duelos o êxito que acabo de descrever e no dia seguinte ofereci o meu livro à Reunir os <<amigos intrépidos e iluminados da liberdade>>em Londres, mandar
Academia. Distribuí alguns exemplares àqueles académicos que sabia serem favorá- publicar as suasobras nesta cidade <<emque a liberdade individual atingia o mais
veis à minha pessoa
alto grau>>,manda-las reeditar na Suíça, na Alemanha e na Holanda, depois intro-
duzi-las em França, eis o esquemaconcebido por Brissot. O Liceu de Londres devia
A distribuição da Poéfíca surtiu o seu efeito pois, malograda uma última maqui- ter uma dupla realidade. Por um lado, <<eraformalmente uma instituição semelhante
nação (a tentativa do conde de Praslin de obrigar Thomas, que era então seu secre- à dos Liceus e Museusexistentesem França>>,
e a ideia retomava um projecto de
tário particular, a apresentar-se),Marmontel foi finalmente eleito para a Academia'3 Mamãs-Claude Pahlin de La Blancherie, que visava de igual modo reunir uma assem-
A história exemplifica a dependênciaque a nova definição de homemde letras bleia de homensde ciência de todos os países, uma correspondência epistolar e um
(<(letradocompleto>>e perito dã'kêipíãtÕlilõÉóficóS;'êomõ' pretende Vbttairej con- periódico. Por outro,
serva nas formas mais clássicas do patrocínio principesco, dispensadorsupremo çle
favores e árbitro-derradeiro das rivalidades literárias este Liceu não se devia restringir àqueles limites severos impostos pela tirania do
Para-todos aqueléi que não têm acesso às instituições e às posições mais presti- Ministério aos de Paria. Não seriam nem os espectáculos,nem o divertimento, nem o
giosas do apare]ho cu]tura] monárquico, é necessário enfrentar ou 'caiar outras+or- ensino, nem as novidades, nem a música, nem os quadros que iriam atrair as pessoas
mas de sociedade que atentem, também elas, mas de modo diferente, a qualidade do ao meu Liceu; era apenasa utilidade que os amigos das letras podiam retirar da com-
homem de letras. Na França das últimas décadas do a/zcie/zrl?'game,elas revestem panhia recíproca,utilidade que era tanto maior num país em que nada se opunha à
diversas formas. O primeiro é inglês, com a multiplicação dos~qfé;bque copiam as liberdade, utilidade que se transformava em necessidadequando se pensavano carác-
c(Wee-Aoasesde Londres, já em número de 3000 no início do século XVHl44Como ter dos doutos ingleses e na ausência absoluta de comunicações.47
escreve Robert Darnton, «o café funcionava como antítese do salão>>4s:
na verdade.
não reúne uma companhia selecta mas está aberto a todos, não é govemado por uma A realização não está à altura das ambições pois só foram publicados doze núme-
ros do Jottrtmt du LOcée de l-ondres, ou Tabteau de I'Etat présent des Sciences et des
4r/s en Á/zg/ererre, em 1784 e 1785, enquanto Brissot conhece diversas adversidades:
41Marmontel, JVémo//"es
cit., t. 1, pp. 212 e segs.

ú S SlliiH%lll:l::.$ni
das ccWee-#ouses
IH XKK 4óRoche, Z,esíêc/e des Z,llmíê/"esen pro i/zce cit., t. 1, pp. 63-68
47Brissot, it/émaíres cit, 1, pp. 238 e segs. e 338 e seg. (citação das pp. 239 e 329). Sobre o /otrrna/
dK Z,ycéede l.ondres, ver J. Sgard(direcção de), Dlcfíonrzaire deslour/zaux /ÓOO-/789, Universitas, Pauis,
4s Darnton, Tbe Hfg/z En/lg/zrenmenr cit. p. 100 (trad. fr. p. 23). 1991, t. 11,pp. 659 e seg

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a prisão por dívidas em Londres, a interdição do seu periódico por parte de Vergennes, Um modelo moral: afastamento e desinteresse
dois mesesde encarceramento na Bastilha e a impossibilidade de regressara Inglaterra.
A condição de homem de letras é definida pelo facto de pertencer às diferen-
tesVngtitüiêõêS'e formas'dé socialização dasjlgóéiêdadesde letrados, mas também
Visitas e correspondências epistolares pelos discursos múltiplos icontraditórios que a objectivam. Estesúltimos desen-
volvem-se conjuntamente em diversos planos. O mais tradicional rege-se por uma
Sem que tenha o fim manifestamente subversivo que Brissot Ihe atribui, a ideia de intenção moral e pêdagógiilãhEncontra as suas raízes na primeira obra especial-
uma organizaçãoúnica e de um govemo central na república dos letrados é objecto menteconsagradaao homemde letras, o livro do jesuíta Daniello Bartoli, publi-
de vários projectos durante todo o século xvln, desde o ProÜec/opara a consííf leão de cado cm Romã em 1645, e reeditado oito Vezes naquele mesmo ano, Z)e/J'/7uomo
m gaba/feregera/ da Repúó/!ccidas Z.erres,anónimo, publicado em 1747 na<<Bibliothêque df /efrere de$eioe eÜe/zdafopar/i dize.Traduzido para e!!neê!..em1654 pelo padre
raisonnée des ouvrages des savanasde I'Europe>>,um periódico de Amsterdão, ao P/ano Le Élanc, também ele jesuíta, com o título Z,eGzílde des grau-r-Esprí/s (Pont-à-
de associação geral entre os homensde ciência, os letrados e os artistas, a Pm de ace- -Mousson), a obra conheceenorme êxito.com dezanove edições italianas entre 1645
/Crer o progresso dos boízscostumese das Z,uses,proposto pelo abade Grégoire no início e ]689 e com traduções em inglês(1660), cm al.emão(1677), em castelhano(1678)
da Revolução e que sugere a realização em 1817, em Francoforte-no-Mente, do primeiro e em latim (1693). É traduzido uma segundavelha França do século xvili, tam
congresso mundial dos letrados ou dos homens de ciência(os dois termos são usados bém por um jesuíta, o padre Delivoy, com o título Z,'Honzmede /effres (3 volt.,
como sinónimos). Na falta desta unidade impossível, as viagens e as correspondências Paria, 1769). Sublinhando a dignidade da carreira das letras contra os juízos que a
epistolares vêm animar, ultrapassandoas fronteiras, a comunidade dos homens de letras. menosprezam,o livro associaem grande parte a actividade intelectual ao desinte-
Tomemos um exemplo, escolhido porque não se refere a uma das figuras de relevo do resse absoluto e propõe aos homensde letras o modelo do ensaio antigo e aos pode
mundo intelectual". Jean-François Séguier é membro da Academia de Nomes (toma-se I'tesos o do mecenato''
também seu director e secretário vitalício). Companheiro de viagem do marquêsMaffei, Cipãõ anui'anta; da traduçãodo padreDelivroy, Jea!-JacquesGarnier: pro-
percorreu a Europa das bibliotecas e dos gabinetes de curiosidades antes de regressarà fessor régio de hebraico e membro da Academia das Inscrições e Belas-Artes,
sua terra natal, onde fundou um jardim botânico e uma colecção de achados arqueoló- publicara uma outra obra também intitulada 4JWommede /er/re!, que perpetua o
gicos. Mantém regularmente, a partir de Nomes, significativos intercâmbios epistolares mesmo conjunto de representações.<<Definoo Homem de Letras como aquele que
com 338 correspondentes: aristocratas do Languedoc, eruditos da França Meridional tem por principal interesse cultivar o seu espírito através do estudo para se engran-
mas, de igual modo, para um terço dos correspondentes,letrados estrangeiros,residindo decer e tornar mais útil à sociedade>>:
a partir desta definição, distinta, segundo
mais de metade deles em Itália e Espanha, facto que explica a originalidade da rede de diz, da do <<povo>>,
que <(identificao Homem de Letras com o autor>>,
e da das
Séguier, muito mais mediterrânica do que a dos grandes escritores das Luzes (por exem <<pessoas na moda>>, que <<vêem exclusivamente no Homem de Letras o homem
plo, Voltaire e Diderot), centradas na Europa Setentrional e protestante'9.Correspondente divertido e o declamador>>,Garnier elabora um modelo de letrado que se contra-
zeloso, Séguier é também um hospedeiro acolhedor: são 1383 os viajantes que o visitam põe ponto por ponto às práticase ao ideal dos habituais frequentadoresdos salões
entre 1773 e 1783, alguns dos quais voltaram por diversas vezes. Sessentae cinco por endoscolaboradores da Encülopédía. No seu entender, a «ocuoação» dos homens
cento dos visitantes são franceses: homens da corte, da administração e da ciência. Trinta de'letras pressupõe o afastamento do mundo, longe das paixões e dos entreteni-
e cinco por cento provêm do estrangeiro,designadamenteda Europa Setentrional,que mentos: <(Perdendoo gosto pelo afastamento:logo abandona a preocupação dítül-
ocupaum lugar maior do que na geografia dos conespondentes. tivar o seu espírito e, forçosamente, deixa de ser verdadeiramente homem de letras
A correspondênciae os visitantes de Séguier não constituem exemplos do inter- para se tornar homem de sociedade.» Defende, além do mais: a superioridade da
câmbio epistolar e da convivência dos letrados, visto reunirem sobretudo membros «composição>>
(isto é, da escrita) em relação à conversa: <<Encontram-se
todos os
das aristocracias do Governo e eruditos. Testemunham, além do mais, à escala pro- dias pessoas cuja conversa encanta e que não conseguem juntar duas ideias de pena
vincial, a constituição de uma sociedade que não reúne apenasaqueles que vivem na mão.>>Ela implica a aceitação de uma pobreza honesta que não mendiga g1lêlb
nas imediações. Como escreve Galiani a Suard do seu exílio napolitano: <<Asminhas fixações nem peBlges. Estas.devem ser banidas porqu%para as obter, é necessá.-
cartas são como as de São Paulo, Ecc/esíae qual Parísffs. Por isso, lide-as aos meus i'io procurar protecçõese patrocínio e porque, uma vez obtidas, convidamà moleza
amigos.>>so A leitura em voz alta da carta recebida manterá a presença, mal-grado a e à iiidoMêtiêiã.'As únicas ilççQmpensai literárias>> legítimas são <as condecora-
separação, e será testemunho de que pertence à mesma companhia. çoes, os cargos os empregos, o$ postos, a consideração e tudo aquilo que pode
estimular a emulação e lisonjear o amor-próprio>>,que o Estado concede com dis-
cernimentãüiiiõamente àqueles que são dignos delas:Garnier julga poder demonÉ-
48D. Roche, «Correspondanceet voyage au xvm' siêcle: le réseaudes sociabilités d'un académicien
provincial, Séguier de Nomes»,in id. Z,esRiíplzb//cczí/z.ç
de.ç/e/ires, cit., pp. 263-280.
5i Sobre este texto cfr. C. Cristin, Au.xOrígínes de /'AI.ç/pira ////éraíre, PressesUniversitaires de
49Rocha, Z,e.s/êc/edes Z,umíêrese/zprol,'ínce cit., t. 1, pp. 319 e segs. e t. 11,pp. 509 e seis.
50Galiani, Co/"resto/?da/zcecit., t. 1, p. 188 Grenoble, Grenoble, 1973

142 143
traí a vantagem dos cargos em relação às pensões,provando, contra Voltaire, a da obtenção dos copyríg/zr e a duração perpétua destes últimos, facto que deixa livre
superioridade literária do reinado de Francisco l em comparação com o de Luís XIV. o caminho aos seus colegas da província, escoceses e irlandeses, para reimprimirem
O homem de levas é como um clérigo laico, votado ao celibato (<<Aspreocupações livrementeos títulos cujo privilégio acaba.
e os pensamentosinevitáveis do matrimónio combinam-se mal com aquela indiferença Para reafirmarem os direitos tradicionais, os livreiros da Stationer's Company só
tão necessáriaao exercício do espíritos), desinteressadoda prática das ciências e das têm uma escolha: mandar reconhecer a propriedade perpétua do autor sobre a sua
artes (aqueles que fazem delas a <<suaprincipal ocupação> merecem o título de homem obra e, consequentemente, a propriedade perpétua de quem adquiriu essa obra. Assim,
de letras <<contantoque procurem não um proveito vil mas conhecimentos úteis, e sejam em certa medida,inventou-se o homem de letras como autor-proprietário. Através de
mais ciosos dos progressos da sua arte do que dos da sua fortunm>). Se não reconhece uma série de processos levantados aos livreiros que reeditam títulos sobre os quais
uma autoridade superior à da razão, evita, contudo, a actividade crítica que, segundo a pretendemter um privilégio imprescritível, os livreiros londrinos desenvolvemuma
definição voltairiana, constitui a sua identidade e a sua missão específica. Garnier, argumentação dupla. A primeira baseia-se na teoria da propriedade derivada dc Locke,
opondo-se à evolução que faz do homem de letras um filósofo, recorda que a sua que defende que o homem, sendo dono de si próprio, também o é de todos os pro:
duros do seu trabalho, literários ou não: <<Otrabalho confere ao homem um direito
independência total nada possui em contravenção com as leis estabelecidas,a menos natural de propriedade sobre aquilo que produz: as obras literárias são o fruto do tra-
que estasúltimas sejam iníquas: a verdade é que o Homem de Letras não se lhes sub- balho; os autores têm por isso um direito natural de propriedade sobre as suas obras.>>s'
mete por receio do castigo, como um escravo vil, mas por amor à ordem; na verdade
A segunda assenta numa teoria estética da originalidade própria das criações literá
conhece melhor do que qualquer outro as suas vantagens ia sua necessidade em toda
a sociedade definida. Será o seu defensor mais ferrenho.s2 rias, que as torna incomparáveisàs invenções mecânicas,sujeitas como estão ao
regime das <<patentes>>
que limita a duração do monopólio a catorze anos.

Medindo as distâncias das novas definições, por exemplo, das elaboradaspor O estilo e o sentimento são os elementos essenciais de uma composição literária
Duclos e d'Alembert e das práticas sociais do mundo parisiense,os livros de Jean- SÓeles constituem a sua identidade. O papel e a impressão não passamde acidentes
Jacques Garnier, o sábio, e de Delavoy, o jesuíta, perpetuam através do século um que servem de veículo de transmissão à distância daquele estilo e daquele sentimento.
modelo de identificação tradicional, ainda aceite por aqueles,e são bastantes,que, Assim, cada exemplar de uma obra, sejam dez ou dez mil, se transmite o mesmo estilo,
possuidoresde uma condiçãobem definida e de um emprego,se voltam para uma o mesmo sentimento, é exactamente a mesma obra que foi produzida
erudição sábia, respeitosa e tranquila.
William Blackstone justifica assim a identificação da propriedade literária como
um «commorz/aw rlg/zr» imprescritível, cuja duração perpétua se transmite do autor
O autor-proprietário da sua obra ao livreiross
Jurídicase judiciais, as discussõesque tiveram lugar em Inglaterra após a lei de
Em face destediscursoclássico, surge um outro, editorial e jurídico, sustentado
1709 decorrem sem a intervenção directa dos próprios autores. $ão os livreiros, os
pelos livreiros preocupados com a defesa dos seus privilégios. E particularmente vivo
advogadoscosjuízes que estabelecemuma nova definição do homem de letras, pro:
e precoce em Inglaterra. Como escreve Mark Rosé, <<poder-se-iaafirmar que os livrei-
prietário da sua obra, por isso remunerávelpor um trabalho diferente de qualquer
ros londrinos inventaram o autor-proprietário, construindo-o à semelhança de uma
outro. Contrapõe-sedeste modo, ponto por ponto, à antiga figura aristocrática do gen-
arma na sua luta contra os livreiros das províncias>>s3.Em 1709, uma lei votada pelo
i2ãüan-wrlrerou gerar/ema/z-amarrar,
um novo modelo de actividadeliterária que
Parlamento, denominada Á/z acf Jor f/ze Encoarageme/zr of Z,ear/zí/zg,by yei/fng
desdenhado comércio livreiro e dos seus proventossÓ.Defendendo esta concepção
=heCopiei ofPrinted Bookin the Aüthorsor Purchasersofsuch Cortes,during the tradicional, Lorde Camden declara em 1774:
limes //zeref/zmenrforzed,veio revogar o antigo processo de publ icação extremamente
vantajoso para os livreiros da capital. Nesta regulamentação respeitante à comuni-
A glória é a recompensa do Saber, e aqueles que a merecem desdenham das
dade, a enrpyde um título no Reglsrer da Company garantia ao livreiro que obtinha
mesquinhezas:não falo dos escrivães, que trabalham para comer e atormentama
a propriedade plena e inviolável (portanto, transmissível, divisível e cedível) da obra
registada. A lei de 1709 desmantela duplamente este sistema, limitando a duração do
copyrlg/zr a catorze anos (mais catorze anos se o autor ainda for vivo) ou a vinte e 54W. Enfield, Observaria/zson Llrerary PraperQ, Londres, 1774(cit. ibidem, p. 59)
55W. Blackstone, 7o/zso/zv. Co//fns, .E/zg//s/z
Reporrs, Fu// .Reprí/z/s,Edimburgo-Londres, 1900-1930,
um anos para os títulos já publicados e autorizando os autores a pedirem para si pró-
t. 96, p. 189 (cit.ibid., p. 63)
prios um copyrfg/zr.Os livreiros londrinos perdem, simultaneamente,o monopólio 5óSobre a condição do homem de letras em Inglaterra no século xvm, ver os estudos clássicos de
P..S. Ca\\\ns, Authorship in the Dais oliohnson, Being a Study ofthe Relatinn beteweenAuthor, Patroa.
sl J.-J. Gamier, L T/onz/nede Z,err/ei, Panckouke, Paria, 1764 (citações respectivamentedas pp. 7, 45, Pi/b]isAer. afzdP b]]c'. ] 72ó-/ 780, R. Holden and Co., Londres, 1927, e The PrctÓessían
oÍZ,effers.'Á Sfud)
118, 121, 192, 8 e segs.e 198). '' oeRelalfa/i of.4urAar ro PafraPZ,P ólísAerand P bife, /780-/832, Rout]edge,Londres, ]928, e também
51Rose, arr. cfr., p. 42. o livro de A. Kerman, Prínrí/zg, 7ec/z/zo/ogy,Z,e/reis and Sa/nue//o/z/zson, Princeton UP, Princeton, 1987

4 144 145
imprensa com os frutos miseráveis dos seus engenhos.[...] Não foi por dinheiro Para resistir a esta servidão, em que o trabalho não é mais garantia de proprie
que Bacon, Newton, Milton, Locke instruíram e deliciaram o mundo; seria desca- dado e em que o autor deixou de ser dono de si mesmo, James Ralph exorta à asso-
bido, para homenscomo eles, regatearcom um sórdido livreiro por causade uma ciação e à greve das penas:
folha impressas7.
Se fossem interrompidos ao mesmo tempo todos os jornais, crónicas, revistas e
Criada pelos livreiros e pelos juristas como uma arma polémica,a nova repre- outros periódicos, bem como as publicações esporádicas (que actualmente contribuem
sentação do homem de letras dificilmente se insere na realidade. Até aos últimos anos tanto para o divertimento e os mexericos jornalísticos), como se arrastaria penosamente
do século, são raros os autores que podem viver das suas obras literárias. A prática cada hora, duplamente oprimida por todos os horrores da consciência? Associam-vosl
da iiõíiãefinitiia do manuscrito ao livreiro, sem compartilhar'dãí'vantagens E talvez não tenhais necessidadenem de patrões nem de classes dirigentes! Associai-
advenientesde um eventualêxito da obra, e o preconceito aristocráticoque leva a -vos e podereis acabar mesmo com a frente dos livreiros.''
desprezar aqueles que escrevem por dinheiro fazem com que o autor-proprietário nas- Por isso se verifica um grande desnível entre a construção do homem de letras
cido da discussão seja com frequência, um proprietário sem receitasse
como dono soberano c perpétuo da sua obra, tal como nos é apresentada pela argu-
As únicas excepçõesa ta] situação dependem da particularidade ou do êxito de
mentação a favor'ãõílivreiros, preocupados com a defesa dos seus privilégios, e a
alguns géneros: o teatro, que soma as receitas provenientes da publicação às trazi- realidade de uma condição que só autoriza a profissionalização da actividade literá-
das pelas representações,as traduções (são elas que fazem a fortuna de Pape) e, no
ria em regime de submissão e precariedade.
final do século, os livros de história de grande difusão cujos autores Hume, Gibbon,
Por essa Europa fora, a proliferação dos periódicos não assentanecessariamente
Robertlig!.:je encontram entre os primeiros a receber direitos proporcionais às ven
na formação de um proprietário intelectual semelhante aos desafortunados escrivães
dag: Mas, na Inglaterra do século xviii, a única verdadeira profissionalizaçãonitêtã de <<GrubStreet>>.Em França, predominam na actividade jornalística autores dota-
{iaestá, por paradõxarqué pareça:ligada'a uma actl'vídade que quase nã(i'reconhece
dos de um s/a/us bem definido ou de uma profissão. De uma amostra de 274 jorna-
o autor como proprietário e raramente Ihdtonfere a qualinlcação de homem de letras, listas activos entre 1725 e 1789, os eclesiásticos representam 15%, os funcionários
oü sqa,(o jornalismoS9.Se,a partir de 1695,e com o Z,íce/zsiPzg Ác/ que elimina a e os administradores 12qo, os refzrfers 6qn, os médicos e os cirurgiões 8%, e os advo-
censuraprévia, a multiplicação dos periódicos de todo o tipo cria novas funções e gados 4qo. Os representantes das profissões intelectuais (professores: preceptores,
empregos para os homens da pena (a recolha de notícias, as traduções, a redacção bibliotecários, secretários)são 23qodo total; os livreiros e editores, 6qo. Portanto,
de crónicas regulares,a direcção editorial, etc.) e garante rendimentos significativos menos de um quarto dos jornalistas franceses (exactamente 22qu) pertence ao mundo
a alguns deles (pensemos em Samuel Johnson), isso vai criar uma situação de depen-
dos homens de letras que vivem essencialmente das suas diversas actividades literárias".
dência e miserável para a maior parte daqueles que, habitantes de <(Grub Street>>
Nos Estados italianos, o crescimento do número dos cabeçalhos (contam-se 358
escrevem por conta de livreiros proprietários de periódicosóo. Em 1758, James Ralph, entre meados do século xvii e finais do xvin) e a diversificação dos géneros perió-
num panfleto intitulado The Case of,4lrr/zors by Prcdessío/zor TríadeSra/ed, faz ouvir
a voz deles: dicos oferecidos ao público'; permitem uma primeira profissionalização do jornalista.
Giuseppe Ricupeiati situa-a na segunda metade do século: então,
Aqui não existe diferença entre o escritor nas suas águas-furtadas e o escravo nas começam a surgir profissionais laicos que exercem como actividade principal a pro-
minas, apenaso primeiro é colocado no Ar, o segundo nas entranhasda Terra. Quer fissão de jomalista nas suas formas diversas e agora complexas. É o caso de Gasparo
um, quer outro têm de igual modo tarefas que lhes são atribuídas, ambos devem tra Gozzi[...], dos Caminer pai e filha, de Giuseppe Compagnoni, de Giovanni Ristori,
balhar sem descansoe morrer de fome; nem tão-pouco podem esperar a libertação de Saverio Catana e muitos outros. Claro que o jornalista não conseguiria viver com
O compilador deve compilar, o escritor deve continuar a escrever, doente ou de boa os proventos que Ihe poderiam advir da colaboração ou da coordenação de um único
saúde, bem-humorado ou deprimido, provido de assuntos ou não, até esgotar, devido riódico, sobretudo se de tipo literário. Reunia quase sempre diversas actividades da
à pressão conjunta do trabalho, da pobreza e da aflição, o seu físico e toda a pequena mesmo campo: gazeteiro, historiador contemporâneo, curador de edições, tradutora'
dose de reputação que conseguisse adquirir na profissão.

r l J. Ralph, 7'he caseoÍA fAors by Prct$essfo/ior Frade Sraled, Londres, 1758 (citado por barris, ízrf.
l Lorde Camden. XnThe Cases ofthe Appelants and Respoltdents in the Cause ojLiterciry Propert)
B(core f/ze Ho se oÍI,aras, Londres, 1774, p. 54 (citado por Rose, arf. cff., p 54) ' pp- 37 e seg.).urnaleund Joumalistenim Zeiulter der Aufklãrung)>,in H. U. Gumbrecht-R. Reichardt-T
5KT. Belanger, «Publishers and Writers in Eighteenlh-Century England», in 1. Rivers (direcção de), Schleich (direcçãode). SoziaZegescAfc/zre
der Áu@/dr fzg fn Frarzkreich,Oldenbourg, Munique-Viena,
BODA:sa/zdr/zeir leaders f/t É'/g/z/ee/7//z-Cenru/y
.Eng/and,St, Martin's Press, Nova porque, 1982, pp. 5-25. 1981. t. ll,pp. 3-33(quadrodap. 28) . , ,.,'
59M. Harris, <<Journalismasa Profession or Trade in the Eighteenth-Century», in R. Meyers--M. Harris ó] G. Recuperati,
<(Giornalie socielànell'ltalia dell''Ancien Regime», (/ooõ-//õv/, e ivi- \-udz,
(direcção de), Atizltor Pttbíislter Reiatiatts during fhe Eighteenlh and Nineteettth-Ceritüries,Oxtord .Elenco della lestate)>,in C. Capra-V. Castronovo-G. Ricuperati(direcção de), la trampa [fa/lc/na de/
Polythecnic Press, Oxford, 1983, pp. 37-62. CI/lquecenfo cz//'Orfoce/2/0,Laterza, Romã-Bari, 1986, pp. 67-370 e 371-386.
«)Sobre o proprietário literário inglês, cft. os estudos de P. Rogers, G/ab Sr/ee/.: S/tldíes ín íz Szzbx/rl/c/u/"e, a G. Ricuperati. <(Periodicieruditi, aviste e giomali di varia umanità dalle origini a metà Ottocento>, in
Methuen, Londres, 1982, e //acks a/zd .D&ínces,Londres, 1980 l,efferafuraíra/fará, vol. l, /l lefferafoe le lsflfuzioPzl,
Einaudi,Turim, 1982, pp. 921-943(citaçãodap. 928)-

146 147
Mas, paralelamente a esta afirmação do jornalismo como ofício particular, con Tissot acrescentaoutros aspectosa estequadro clínico, já por si inquietante. Os males
firma-se o elo entre a publicação de um periódico e a existência de um determinado específicos que afectam os homens de letras podem ser atribuídos a diferentes cau-
ambiente intelectual, diferente na sua constituição mas unido pelos laços da socie- sas: os seus hábitos (a posição incorrecta do corpo, causa de hemorróidas; os serões
dade literária. // CaWê é disso um exemplo. O jornal, baseado no modelo do Specraror, excessivos que perturbam o sono; a leitura durante as refeições, que impede uma boa
nasce dos encontros e das conversas de um grupo de amigos reunidos em Milão: digestão), o seu desleixo (esquecem-sede renovar todos os dias o ar do quarto, des-
Pietro Verri, o irmão Alessandro,Cesare Beccaria, Gian Rinaldo Caril, Giuseppe curam os cuidados do corpo, cometem a imprudência de <«eterem muito tempo as uri-
Visconti, Luigi Lambertenghi. E desaparececom a dissolução do grupo, apesar da nas e de atrasarema evacuaçãodo intestino>>)e o seu afastamentodo mundo. A vida
boa aceitação dos leitores: recatada, enaltecida pelo discurso moral, é considerada perigosa pelo médico:

A pequena sociedade de amigos que escreveu estas folhas dissolveu-se; alguns partiram Não receio considerar a renúncia à sociedade como a nona causa das doençasdos
em viagem, outros dedicaram-seaos negócios; é necessárioque se temline um trabalho homens de [etras [...]. Os homens foram criados pe]os homens; o seu comércio recí-
que, tal como o projecto, não deveria acabartão cedo e isso sucedeno momento em que proco possui vantagens a que não se renuncia impunemente e foi dada razão a que a
o acolhimento favorável do público mais do que nunca convidava a prossegui-loó5. solidão [ança na ]anguidez [.. .] origina aque]a misantropia, aquele espírito melancó-
lico, aquele descontentamento, aquela aversão a tudo, que podem ser considerados
como os piores dos males, pois não permitem que se desfrute de todos os bens
A patologia do homem de letras
A fim de restabelecer ou, se possível, preservar uma saúde tão perigosamente
A terceira argumentação que objectiva do exterior a condição de homem de letras ameaçada, Tissot propõe diversas <<medidaspreventivas>>que visam corrigir os des
será um pouco mais inesperada, na medida em que é definida em termos médicos. regramentos do estudo. Para combater a concentração mental impõe-se a concessão
Em 1766, para a inauguração -dqcátedra que acaba de Ihe ser confiada no Colégio de repouso à mente e tomar consciência de que nem sempre o estudo é útil:
de Medicina dc Lausana, miss(»*profere um discurso sobre o tema de va/ef zd//ze
/í//eraforzzm. Passados dois anos, em resposta a uma tradução incorrecta e truncada A maior parte desperdiça em vão tempo e saúde; um compila as coisas mais comuns,
da sua dissertação, publica uma versão francesa corrigida e aumentada com o título outro critica o que já foi dito um cento de vezes, um terço ocupa-sedas pesquisasmais
inúteis, este mata-se de tanto se dedicar às composições mais fHvolas, aquele com-
Z)c'.Jasa/z/édes gefzsde /effres. Tissot relembra no prefácio que o tema foi já objecto
pondo as obras mais fastidiosas, sem que nenhum deles pense no mal que está a cau
de debate em diversas dissertações (de Ramazzini e Platner) e num livro, Z)e//a pre
sar a si próprio e nos poucos frutos que trará ao público.
semaf/o/zede//a sa/ fe de' Z,ef/era/í,publicado em Veneza em ]762 e da autoria de
um professor de Pádua, Pujati. Mas o seu.propósito é outro: para ele, trata-se deJ<reco- E preciso fazer exercício para combater a inacção do corpo
Iher todas as circunstâncias particulares relativas à saúde, que distinguem o estado dos
homens de ciência do das outras ordens da sociedade>>,ou sqa, mostrar como o modo Os exercícios que tenho em maior conta e que mais convêm-aos !etrados são os
de tida dos homens de letras se encontra o mais distanciado possível do modelo ideal que trabalham todas as partes do corpo, como a péla, o volante, o bilhar:) palamalho,
de uma vida natural, livre, activa e equilibrada."E pela bitola de um rousseaunianismo a caça, os pauzitos, a bola e a malha.
convicto que Tissot mede as irregularidadesque afectam a saúdedos letrados.
Tissot distingue nove causas para as suas doenças. As duas primeiras, a concentra- Para combater os perigos do ar viciado, é preciso preocupar-se com a escolha da
ção mental e a inacção do corpo, são as mais importantes. Por um lado, o trabalho'exces- posição da própria residência: n!.ausência de uma casa de campo, «que é o local
siva da mente que Tissot designa por <o esgotamentoliterárío>> faz afluir o sangue onde se pensamelhor e onde se respira o ar mail puro;>,é necessárioencontrar uma
e os humores ao cérebro: daí derivam as doençasespecíficas do cérebro (tumores, aneu- casa na cidade <<quese situe num alto, bem iluminada, exposta ao vento no Verão,
rishai:delírios:'êontulsões, insónia, etc.), o distúrbio dos nervos que partem dali, a per- ao sol no Inverno e que fique longe dos bairros onde existem exalaçõesinsalubres>>"
turbação da digestão (<<ohomem que pensa em demasia é o que pior digere»): Por outro, Segundo o discurso médico de Tissot, os homens de letras são, por conseguinte, con-
a vida sedentáriadestrói os músculos, impede a circulação do sangue e dos fluidos, obs- sideradoscomo uma população particular cuJOmodo de vida, cuja actividade e cujos
trói o estômago e o intestino: daí deriva a tendência para a hidropsia, as doenças da hábitos (no conjunto, maus) o distinguem para pior - do resto da sociedade.A ima-
vesícula e, sobretudo, a hipocondria. Em virtude da sua dupla etiologia (pode, de facto, gem heróica do filósofo-guia da humanidade, contrapõe-se a imagem, lastimável, do
derivar tanto do <enfraquecimentoda naturezanervosa>>
como da <<congestão
das vís- homem de letras combalido.
ceras do baixo ventre>>),a hipocondria é a doença por excelência dos letrados: <(éraro
não se encontrarem em diveigõi Êfaüibs seus'defeitógt édifícil êurá-los completamente>>.
óóS. Tissot, Z)e /a scz/7/é
des ge/z.çde /e/ires, reimpressão da edição de Lausana de 1768, apresenta
ção de François Azouvi, Slatkine, Genebra-Paras,1981 (citações respectivamente das pp Xll e sega. 23
ósSobre <<llCaffê>>çfr. Ricuperati, Gíor/za/i e sacíefà cit« pp. 208-215 (citação do jornal da p. 215) 25, 69, 93, 95 e seg. 125, 136 e 200)

148 149
Das glórias do Parnaso ao cidadão da república das letras Instalado numa praça parisiense ou no pátio do Louvre, o monumento deveria ser
constituído por figuras <(pelomenos de tamanho natural», assentarnum pedestal de
O último conjunto de representaçõesa ter em atençãoé constituído por aquelas mármore branco, ter na base <um monte de seixos e de pedras colocadas ao acasos
que os.letrados pretendem apresentar de si mesmos. Inserem-se numa enorme diver- e ser ornamentado com cascatasque caem num lago de mármore precioso. O pro-
sidade de géneros literários -- elogios, colectâneas de anedotas, antologias, miscelâ- jecto não chegou a ser executado mas o monumento pretendido por Titon du Tillet
neas, etc. -- que visam perpetuar a recordação de um determinado autor (reunindo os não deixa por isso de testemunharuma representaçãoque, em linguagem alegórica
seus escritos, os ditos espirituosos e a narrativa das acções) e, para além do retrato ou analógica, constrói um panteão dos letrados cujo engenho pede florir graças à
individual, .traçar a imagem ideal do homem de letras?7.Revestem também, em algu- protecção do príncipe que os governava.
mas ocasiões excepcionais, a forma de um monumento. Assim sucede em 1718 e A escultura efectuada passadoscinquenta anos por Pigalle é de uma natureza com
1776. Em 1718, o escultor Louis Gamier terminou a execução de uma obra de bronze pletamente diferente. O seu estilo não é propriamente alegórico, mas realista, não exalta
que Ihe foi encomendadapor Titon du Tillet e que representao Parnasofrancês. a magnanimidade do soberano nem celebra as glórias literárias desaparecidas; com
O comitente, descendente de uma família de magistrados, antigo capitão dos dragões efeito, representa um contemporâneo na sua nudez: Voltaire. Numa carta a Galiani,
e depois mordomo da delfina Mana Adelaide de Sabóia, é um homem de letras que datada de 13 de Abril de 1770, Madame d'Epinay recorda assim a origem do projecto:
procura (e consegue obter) as ordens académicas: será membro de vinte e sete aca-
demias (oito em ltália, duas em Madrid, uma em Lisboa, dezasseis nas cidades de Os domingos da rue Roya]e [o saião do barão d'Ho]bach], as quintas-feiras da rue
província francesas). O seu projecto visava <<cnalteceros Poetas e Músicos Célebres Ste.Anne [o salão de Helvétius, que mora na mesmarua de Madamed'Epinay], e as
num Monumento que designei por Parnaso /ra/zcês, onde reina Luís, a Grcznde, sextas-feirasda rue de C]éry [o sa]ãode Madame Necker] conceberamo projecto de
Augusto Protector das Ciências e das Belas-Artes>>. Este Parnaso é <<representadopor erigir, quotizando-se, uma estátua a Voltaire e coloca-la na nova sala da Comédie
Française que está a ser construída. Disso foi encarregado Pigalle que pediu duas mil
uma Montanha isolada, um pouco escarpada e de forma bela, sobre a qual se encon-
livres e dois anos para a sua rea]ização. Panurge [o abade More]]et] logo se apoderou
tram dispersos Louros, Palmas, Murtas c Troncos de Carvalho cobertos de Hera>>.
deste projecto e elaborou um código económico para a execução. A primeira lei prevê
Sobre esta montanha,Louis Garnier colocou trinta e seis figuras. As catorze princi- que, para subscrever, é preciso ser um homem de letras e ter obra publicada e fixa o
pais são estátuas que representam Apoio (Luís XIV), as três Graças (Madame de la preço da subscrição em 2 luíses, em 10 e em duas mil /lares. D'Alembert será o depo-
Suze, Madame Deshouliêres e Mademoiselle de Scudéry), a Ninfa do Sana, e em sitário dos pedidos e do dinheiro. Panurge exige sigilo quanto à quantia e quanto ao
imitação das nove Musas, oito poetas (Pierre Comeille, Moliêre, Racan, Segrais, La nome do subscritor e, levando ao auge o despotismo, elaborou uma lista onde fixou,
Fontaine, Chapelle, Racine e Boileau) e um músico, Lully, que leva debaixo do braço sem o seu consenso, quanto deve pagar cada membro da sociedade.
um medalhão com o retrato de Quinault. As vinte e duas figuras mais pequenas osten-
tam medalhõese três rolos onde estão representadosos nomes e as efígies de outros Uma semanadepois,Madamed'Epinay informa o seucorrespondentede que as
três poetas e músicos, num total de noventa e um, dos quais onze são mulheres. Titon condições de subscrição foram alargadas e que já não é necessário ter obra publicada
du Tillet previu o espaçonecessáriopara poderem ser admitidos novos escritores e músi- para se quotizar: <<Apluralidade das vozes venceu Panurge e todos os letrados e ama-
cos no Parrzaso, quando morrerem: a sua imagem e o seu nome poderão ser inscritos dores podem subscrevera estátuaque vai ser erigida a Voltaire. A epígrafe diz
num quarto rolo, num novo medalhão ou, se merecedores,numa décima figura de autoró8. «a Voltaire ainda em vida, dos seuscompatriotasletrados.»
Esculpido em formato reduzido a fim de poder ser colocado num salão ou numa Galiani, que estava então completamente absorvido com a publicação dos Z)iá/egos
galeria, representado por Jean Audran numa gravura que foi oferecida ao rei e aos sobre o comércio dos cereais e a polémica com Morellet e os <<economistas>»
(o que
principais cortesãos em 1723, o monumento de Titon du Tillet aguarda uma realiza equivale a dizer fisiocratas), responde à primeira carta no dia 5 de Maio, com uma
ção mais grandiosa, promovida pelo soberano: facécia
(. l

Podeconsiderar-se esteParnaso como um ensaio de um dos maiores e mais sober- SÓ subscreverei a estátua a Voltaire com uma condição. Têm de me erigir também
bos que terei o prazer de ver erigir com toda a magnificência possível e com o gosto uma naquela bonita rotunda do novo salão do Hotel de Soissons.Ficarei lindamente
mais requintado; mas a vontade de executar algo de grande deve suprir de algum modo, ali no meio da farinha e das raparigas de Paris. Terei tudo o que necessitopara o sus-
a falta de meios de um particular. tento e para a população e os novos filósofos não fariam mais perguntas. Quero que
seja colossal para esconderda posteridade a minha estatura.
ó7Sobre o género e a temática do elogio académico, cfr. Rocha, Z,eSfêc/e des Z,lz/n/aresen proa/nce
cit., t. 1, PP. 166-181 Galiani imagina depois as inscrições latinas e os medalhões(<<umeconomista,
õ8T\ton du 'Tl\let, Descriptiolt du Parnasse Français, exécuté en bronze, si,{ivied'unte Lista Alphabétiqtte inclinado em adoração diante do grande deus dos jardins e que, ao curvar-se, mos-
des Padres,ef des il/uslcíe/zs raisernb/és sur ce Ã/onume/zf,Paris, 1727(citações das pp. XXlll, 1, e XXV
e seg.). Sobre este monumento e o seucomitente, cfr. Roche, Z,eSíêcle des l,umlêres e/zprova/zcecit., t. l,
tra o traseiro>>, <<umadama economista que faz oferendas de frutos e flores a Pomona,
pp. 302 e sega. e t.ll, p. 120. e ao oferecê-los levanta demasiado a parte da frente da saia>>, os dois abades <<Panurge

150 151
e Badot que, sobre um altar rústico, sacrificam as suasobras e os seusescritos ao financeira, na medida em que as suas quotas foram limitadas para não destruir (dema-
deus Arpócrates, o deus do silêncio, do sono c do esquecimento>>) que deveriam ornar siado) a igualdade entre os subscritores - da sua participação: «decisivo na execução
o monumento.O abadenapolitanorespondeà segundacarta, cm 12 de Maio, de um do projecto foi o papel do rei da Dinamarca, da imperatriz da Rússia, de Frederico,
modo mais sério: o Grande, e de inúmeros príncipes da Alemanha.>>72
Encomendadoàqueleque criara a estátuade Luís XV para a PeaceRoyale de
A inscrição que se pretende colocar na base da estátua de Voltaire seria sublime Reims em 1755, o Vo/raíre de Pigalle, que apresentao escritor nu, sentado,com um
se todos os letrados da Europa fossem admitidos na subscrição.Seria belo chamar rolo antigo numa mão e na outra uma pena, dá a imagem do homem de letras que
«compatriotas>> de Voltaire ao Inglês, ao Alemão,.ao Italiano e mesmo ao imperador não foi muito apreciado pelos contemporâneos. Morellet declara:
da China que acaboude escreverum poema: mas, se só houver Franceses,a inscri-
ção será insignificante, e talvez ficasse melhor do seguinte modo: .4 Vo/ralhe, com Em geral, as pessoasde gosto têm criticado a execução: Pigalle, para mostrar o
íme/zsaadmiração. Mas ficaria melhor em latim: yo/faíre devícfa ínvídía. Saecu/í s í seu conhecimento da anatomia, fez um velho nu e descarnado,um esqueleto, defeito
/rzfrac-u/o.
Acre erüdffar&lmcola/afo[A Voltaire, destruidorda inveja. Milagre do seu a custo resgatadoà verdade e à vida que se contempla na fisionomia e na posição do
século.Com o dinheiro dos eruditos recolhido atravésde uma subscrição.]O latim é n
velhn73
a língua das inscrições, e os Franceses não deixarão que se faça este outro milagre à
sua língua.ÓP.
Todavia, ao esculpir Voltaire na sua humanidade, sem monumentalidade nem este-
ticidade, Pigalle mostrava, ao mesmo tempo, uma igualdade fundamental que deve
A iniciativa, que a Corresponda/zce /í//érafre atribui a <<umaassembleia de 17
existir entre todos aquelesque constituem a república das letras e, para além do mais,
venerandosfilósofos, na qual, depois de devidamenteinvocado o Espírito Santo,
a própria dignidade de cidadão. Produzida pela sociedade dos salões parisienses, ans
almoçado opiparamentee falado à toa, se decidiu por unanimidade erigir uma está- socrática e muito exclusiva, sustentada pelos ambientes literários mais bem dotados
tua ao senhorde Voltaire>>'o,causaescândalo,já que nenhum homem de letras havia
e melhor integrados na sociedadedas ordens e dos corpos, realizada com o apoio dos
alguma vez sido objecto de semelhante homenagem em vida. O uso só é válido para príncipes iluminados mas despóticos do Norte da Europa, a estátua de Voltaire repre
os soberanos,e o princípio fora respeitado pelo Par/luso /rancês, que homenageava senta também os valores de uma nova ordem literária e política. Representaperfei-
exclusivamente os poetas mortos. Ao mandar esculpir uma estátua de Voltaire, a
tamente as contradições de que enferma a definição e a condição do homem de letras
<câmara dos pares da literatura>> (como escreve i éo;resto/zdance /frr2r;zÍre), reu-
na época das Luzes, entre privilégio e igualdade, protecção e independência, pru-
nida em casa de Madame Necker, pretende não só enaltecer os méritos de uM homem-
dência reformadora e aspiração utópica''
mas difundir também uma representaçãodo homem de letras na sua nova definição.
Promovida pelos letrados que integram a sociedade intelectual parisiense na sua esfera
mais restrita, a subscrição permite que um ambiente mais vasto tenha oportunidade
de se manifestar e ser reconhecidopelos iniciadores da empresa-- como partici-
pante na república das letras: <<Aosubscrever-se a estátua dc Voltaire, estava a fazer-
se uma afirmação política: era declarado cidadão da república das letras.)>Postas"ao
corrente do projecto através da correspondência particular (pensemosnas cartas de
Madame d'Epinay a Galiani) e das notícias que corriam de boca em boca, oitenta
pessoas decidem subscrever. Elas representam a assembleia dupla das Luzes na sua
definição mais legítima: de um lado, no que se refere ao Reino, homensde letras
ricos e de sólida posição social (a idade mínima dos subscritores é elevada: 45 anos),
com frequência detentores de lugares ou cargos na administração real, correspon-
dentesesporádicosou regularesde Voltaire; do outro, os príncipesda Europadas
Luzes'i. Morellet recordanas suasmemóriasa importância -- mais política do que

ó9Galiani-d'Epinay, Correspo/zdancecit., t. 1, pp. 140, 144, 158 e seg. e 165


70Grimm e/ a/., Co/"resto/ídance /f//éraíre, direcção de M. Toureaux, Paris, 1879, t. 9, pp. 15 e seg
A lista dos 17 filósofos é constituída por Madame Necker, Diderot, Suard, o cavaleiro de Chastellux
Grimm, o conde de Schomberg, Marmontel, d'Alembert, Thomas, Necker, Saint-Lambert, Saurin, o abade 7zMorellet, À/émoi/"escit., p. 175.
Raynal, Helvétius, Benard, o abade Arnaud e o abadeMorellet. /
Ibid
7i D. Goodman,«Pigalle's 'Voltaire nu': The republic of Letters Representsltself to the World», 24F. Ventura,Uropla e r forma ne//'l//u/2zínlsrzzo,
Einaudi, Turim, 1970 e a nota crítica da tradução
Represen/arlans,16 ( 1986), pp. 86-109. inglesa da obra de B. Baczko, Z.'e/lig/7tedei Z.ir/7zíêres,<<AnnalesE.S.C.>>(1973), pp. 1515-1520.

152 153
CAPITULOV

O HOMEM DE CIENCIA
por Vicenzo Ferrone

l
;" Se no século xvll se começa a delinear a ciência mas não ainda o cientista, a
época das Luzes passaa ver ambos como protagonistas. E, sem dúvida, como ire-
mos ter ocasião de referir, necessário chegar a um consenso sobre o termo cientista,
tendo em conta os contextos e o momento histórico, sem exageros nem anacronis-
mos'O fio condutor deste ensaio assentana hipótese de o século xvlu, mais do que
uma fase de transição no sentido do nascimento do cientista contemporâneo (ocor-
rido sobretudo no século xlx), representar para o homem de ciência uma espéciede
laboratório da modernidade.Naquelaépocajuntaram-se, de facto, para maturação,
processosmuito antigos como a fase de identificação definitiva de um novo saber, a
sua legitimação, a sua consolidação institucional necessária à criação das bases de
uma verdadeira profissão autónoma,assim como surgiram no horizonte novas ques-
tões lancinantes de entre as quais se destaca, debatido pela primeira vez oficialmente,
o grande tema da demarcação, isto é, a incógnita sobre o que deve ser considerado
ciência e, ao invés, o que se deve considerar fora dela.
p Mas, para compreender a caracterização setecentista do homem de ciência, impõe-
se antes de mais o conhecimento do facto de aquela figura ter atrás de si, pelo menos,
dois séculosda chamadarevolução científica. Tinha tambémos esforçosde profes-
sores universitários, clérigos, médicos, filósofos, matemáticos, astrólogos, artistas,
arquitectos e engenheiros no sentido de dar vida a um novo saber e a uma figura iné
dita do intelectual decidido a investigar os fenómenosnaturais atravésde métodos
empíricos, medições e verificações experimentais, através de uma linguagem e de
objectivos diferentes dos de disciplinas tradicionais como a filosofia, a teologia, o
direito ou a literatura. A criação, no século xvm, de um movimento agressivo para
propagandeara ciência como saber autónomo e original, merecedor de dignidade e
prestígio em virtude da sua utilidade social, conheceu sem dúvida um momento-chave
no encontro com o movimento académico, surgido a maior parte das vezesem mani-
festa oposição à corporação universitária. O homem de ciência desencadeou nas aca-
demias a longa marcha que o deveria conduzir à identificação da pesquisacientífica
como profissão. l.Jm processo longo e laborioso que se desenvolveu com êxito no
período de dois séculos não obstante o primeiro revés neste sentido ter ocorrido em
Itália. Ali, no berço da ciência moderna, antecedido do movimento académico, pôde
singrar a omnipotente figura do teólogo e as academiascientíficas não conseguiram
consolidar-se.A condenaçãode Galileu, a experiênciados Lincei, de Cimento e
depois dos católicos chefiados por Celestino Galiani no início do século xvni são,
nessesentido, etapas de uma marginalização progressiva e melancólica da figura do
homem de ciência em prol dos letrados e filósofos muito mais sensíveis à <<razãoda

157
lgrejn>, impostapelo Concílio de Trento. Melhor sorte teve, ao invés, o homem de lettres. Um forte movimento de propaganda a favor do progresso das ciências con-
ciência inglês. Do lado de lá da Mancha, a propaganda científica não tardou a ven- tribuíra para a sua realização, alimentado por estudiosos como Auzout, Petit, Huygens,
cer toda a resistência.O acordo entreciência e religião, negadoem Romã, torna-se Thévenot, Sorbiêre, todos eles formados na escola de Galileu, de Descartes e de
em Londres o fulcro de uma autêntica revolução cultural, a ponto de se falar das Bacon. O seu modo de conceber a organização da pesquisa apresentavareminiscên-
<<origensanglicanas da ciência moderna>>.O milenarismo que animava o protestan- cias da lição de tendência democrática do modelo baconiano e também de uma visão
tismo inglês captoufacilmente a dimensãoutilitarista do novo saber.Bacon, e mui: do mundo académico ainda sensível ao modelo de mecenato do Renascimento italiano
tos pensadÕiêi puritanos depois dele, atribuíram à ciência a tarefa de produzir riqueza, que caracterizara os Lidei e Cimento. Não foi por acaso que, imitando as indicações
melhorar a saúde, desenvolver o comércio, criar na terra a <(GrandeInstauração>>,
o da Compagnie des sciences et des ans, projectada por Thévenot em 1665, onde se
regresso ao Éden originário. O universo-máquina de lsaac Newton, as famosas Boy/e deveria trabalhar e publicar colectivamente, sob anonimato, a coberto de um plano
Z,ec/urssrecitadase difundidas contra /'reef/zi/zkerse republicanosradicais,contri- de absoluta igualdade entre todos os membros da nova <<Casa de Salomão>, as acti-
buíram finalmente para a definição de uma ideologia do esfab/ís/zmenfque saiu ven- vidades das primeiras décadasda Académie sofreram a forte influência daquelascon-
cedor da G/oríozzsRevoJ fica de 1689, determinando as condições óptimas para a vicçõesiniciais. As primeiras publicaçõesoficiais da Académie surgiramsem os
afirmação do primado europeu da Royal Society surgida em 1662. A ciência foi então nomes dos autores, enquanto, em última análise, o mesmo soberano desempenhava
considerada parte integrante e decisiva na educação das novas elites do país. E, toda- uma função ainda mais semelhanteà antiga função de Mecenas.
via, aquele indiscutível primado continental do homem de ciência inglês na segunda .. Somente em 1669, com os novos regulamentos pretendidos pelo abade Bignon e
metade do século xvn viria a revelar-sc bem mais frágil do que o previsto. aprovadosem definitivo pelo Parlamentode Paris em 1713, começoua tomar niti-
Paradoxalmente, as próprias razões do seu extraordinário êxito prejudicaram as sor- damente forma e substância uma autêntica mutação genética do homem de ciência
tes futuras numa fase de mudança rápida dos problemas e dos métodos de investi francês. Nascia, na verdade, uma figura com características originais, absolutamente
cação. O modelo baconiano do bom <<filósofonatural)>diletante e o associativismo X inédita e bem diferente do novo sábio hipnotizado por Bacon assimcomo pelasexpe
privado que essemesmo modelo alimentava não se adaptavammuito à crescente ciênciasdos primeiros <cientistas>>.Uma figura que poderemosdefinir, em homena-
especialização,à necessidadede chegar em pouco tempo a qualquer forma de pro- gem à sua terra de origem, a França, como o sapo/zf do a/zcle/zrégfme, isto é, um
fissionalização. intelectual que, organicamente inserido no aparelho do Estado, aceitava inteiramente
, No século xvlii, a Royal Society devia ceder o espaço à sua consoror parisiense a lógica e os valores de uma sociedade hierarquizada, estabelecida, organizada por
mais nova, robustecida pelas pensõese privilégios alargados concedidos por Luís XIV. ordens, classese corpos diferenciados pelas dignidades, honras, omnipresença do pri-
O glorioso /e//ow da Royal Society, destinado a permanecer ainda durante todo o vilégio e categorias. A integração do homem de ciência nesta ordem social caracte
século o nafuraJ p/zí/osopAer baconiano, dava lugar ao savana parisiense bem mais rizada pela desigualdade representava, sem dúvida, o carácter genuíno do Rêg/e/7zenr
desinibido e moderno. ' de 1699: <<Envertu de ses rêglements escreveu Fontenelle, satisfeito 1'.4cadémle
des sciences devient un coros établi en forme par I'autorité royale, ce quelle n'était
pas auparavant.>>zUm coros savanadecidido a encontrar um lugar de destaque,uma
O homemde ciência do <ancienrégime» e o primado da Fiança identidade concreta e uma legitimação plena entre os coros d'Fiar. E é neste sentido
que a Académie dá os primeiros passos,criando um ritual, uma etiqueta rígida, for-
Lagrange estava de facto certo quando, em 1787, instado pelos sólidos argumen- mulando normas escritas de comportamento e práticas obstinadas para apreciar os
tos do novo soberanopiemontês,Vittorio Amedeo Tll, a regressara Turim, respon- trabalhos e propagandearno estrangeiro os méritos e as conquistas dos estudiosos.
deu que não podia renunciar às propostas que Ihe haviam sido feitas pela Academia Prepara-se no seu seio um debate com o intuito de encontrar uma imagem, um lema,
das Ciências de Paras. <<L'Áíadémle a beaucoup d'attrait pour moi escrevia Lagrange símbolos capazesde representar no imaginário colectivo a comunidade que vai nas-
comme étant le premier tribunal de I'Europe pour les sciences.>>tA comunidade cien- cer. A escolha final, como conta o seu primeiro grande secretário e historiador
tífica francesa dominava, na verdade, incontestavelmente cada disciplina. Em todo o Fontenelle, recai a fa«or de <<unsoleil, symbole du Roi et des sciences entre trois
lado se admirava e imitava aquele modelo do fava/zf ao serviço do Estado, criado no fleurs-de-lys>>, e <(ladevise>>foi «une Minerve environnée des instruments des sciences
período de um século desdeo absolutismo dos Bourbons, passandopor uma política et des ans aves ces mots latina, Inveníf ef peryicfr>>.
/
cultural eficaz e sagaz de pa/ronage por parte da coroa, iniciada por Richelieu e ' O elo crucial da relação entre a memória histórica e a nova identidade foi, pelo
Colbert. A Académie Royale des Sciences,destinada a tornar-se o culminar de todo contrário, enfrentado com êxito, inventando a prática dos é/ages recitados para come
o sistemaacadémico, surgira em 1666, decorridos muitos anos sobre a fundação da morar os fava/z/sfalecidos. Esteselogios, publicados periodicamente,tornaram-se
bem mais célebre Académie française e da Académie des inscriptions et des belles com o tempo um verdadeiro géneroliterário, um contributo formidável para a

<<A.Academiatem para mim um encantoespecial,pelo facto de ser o primeiro tribunal da Europa «Em virtude dos seus regulamentos, a .Aonde/nfade Ciência.storna-se um corpo a que a autoridade
para as ciências.>> (N.T.) real conferiu forma, o que não sucediaanteriormente.>>
(N.T.)

158 159
<<histoiredes sciences>>
a que Condorcet atribuía conscientemente, no final do Século nhecimento formal de um lugar especial no cerimonial da corte e nas manifestações
das Luzes, a função. de fornecer o nervo de uma ideologia do progresso da <<mar públicas coO todos os outros coros d'E/aí. Por último, apenasos pe/zs/Ofznaíres
e os
che de I'esprit humain», símbolo do saber científico. O novo coros d'traí de mafAé- honoraíres podiam votar na eleição dos novos membros, cuja nomeação era ratifi-
marlciens, p/zysfcie/zs,médecíns, c/zymísres, sapo/z/sana/o/tzfxfes, se bem que <<ouvert cada pelo soberano. Também a participação em comités e comissões ou, de igual
au mérite>> como reivindicava com orgulho Fontenelle --, é organizado segundo a modo, a discussão de assuntosespecíficos nas reuniões da Académie constituía motivo
lógica vertical da sociedade de classes francesa. A Académie previa, de facto, a pre- de discriminação hierárquica, de respeito férreo dos processos de antiguidade e de
sença de grupos de fava/zfs hierarquicamente divididos entre si. No topo estavam etiqueta.
os /zo/zoraíres,todos eles expoentesdo alto clero, da nobreza e do governo, quanto . Em síntese,não existem dúvidas quanto ao facto de predominar ainda o espírito
muito simples amaleari sem qualquermérito científico. Excluídos do acto da fun- 'da herança feudal, que nada tinha em comum com a democrática <<Casa
de Salomão>>
dação, sancionavam no novo regulamento de 1699 a presença do Estado absolutista sonhada por Bacon, nos salões do Louvre onde, duas vezes por semana, se reuniam
e a adesãoaos princípios sociais do ancíen régíme. Em segundolugar, vinham os os sócios da Académie, obedecendocom reserva silenciosa e obscura a um cerimo-
pe/zsio/znaires, homens de ciência respeitáveis que recebiam uma compensação pelas nial rigoroso. Atry.yÉsda AcagÉmie,o sat'anf deixara de assumir a sua posição na
suas investigações. Seguiam-se depois os associés, os correspo/zdanfs estrangeiros dialéctica dos s/aíus. E todavia, paradoxalmente, para lá das aparências ído nítido
e franceses,os é/êles também chamadosa(Ooílz/s.No conjunto, mais de 300 pes- cohti:astiliitre o sistema de valores inovador da nova ciência e a realidade viscosa
soas que davam vida àquela que podemos definir como a primeira <empresacien- de uma sociedadede classes,juntamente com a adesãodo Rég/e/?ze/z/ à lógica cor-
tífica>> moderna.,
porativa do aníien r(ígime, a dinâmica de identificação do savcznfmoderno acabava
p Confiando a dois ministérios (Bâtiments du Roi e Maison du Roi) o controlo por ser bastanteacelerada.O homem dc ciência tornava-se um dos protagonistas
administrativo da Académie, a coroa nomeavatambém os expoentesmáximos de do processo de formação das nove elites de mérito, ao lado da nobreza e dos g/-amasdo
entre os /zonoraíres, sancionando deste modo a mudança definitiva, a partir de 1699, reino. O compromisso com o absolutismo e com o sistema de organização da vida
da estrutura semiprivada, sustentada pelo mecenato real e gerida apenas pelos estu- intelectual assenteno pa/rolzage permitia, aliás, desenvolver a fundo as potenciali
diosos, para uma verdadeira instituição estatal, com funções bastante parecidas com dadosdo método científico e aumentaro número dos protagonistasem virtude dos
as de um moderno órgão técnico-científico de consulta. Vale a pena recordar as fun- financiamentos, das pensões, dos privilégios alargados pelo soberano.'
ções que foram atribuídas à Académie à luz desta mudança radical: 1) o dever de ' Paria podia mostrar com orgulho aos olhos do homem de ciência estrangeiro, que
examinar as novidades científicas surgidas na pátria e no estrangeiro; 2) o controlo se dirigia em pleno século xviíi à capital francesa numa espéciede peregrinação
e a orientação da pesquisaatravés de uma estratégia de concursosque, pela primeira laica, os seuscentrosde investigaçãoque não encontravamrival em todo o conti
vez na história, atribuía prémios substanciais às melhores soluções dos problemas nente, os seus laboratórios, as suas bibliotecas bem apetrechadas. Se no topo do sis-
surgidos nas diferentes disciplinas; 3) a criação de bases para o desenvolvimento tema estava a Académie des sciences, surgiam também outras instituições não menos
equilibrado e controlado de uma tecnologia moderna. Esta última tarefa de extrema prestigiosas financiadas pelo Estado: la Société de médecine e I'Observatoire, por
importância, que incluía a formulação de normas genéricasválidas para todos os exemp[o. Na monumenta] construção aprovada pe]o Rei-So] em 1667 para o
<<inventores»,é realizada quer através da concessão do famoso prívf/êge da Académie Observatório, e administrada durante décadaspela célebre dinastia dos Cassini, tra-
aos artesãose inventores, quer da publicação de volumes de Z)escrlprlons des .4r/s balham também com proveito Bailly e Lalande. Em colaboração com a rede de teles-
et des Métiers. cópios em funcionamentono Collêge des Quatre Nations, na Ecole militaire e no
p Merece também uma referência a ordem, logo transformada em privilégio exclu- Collêge de Cluny, o Obscrvatoire organizou as pesquisasde várias pessoas Delambre,
sivo, de vigiar todas as publicaçõescientíficas, não só as destinadasa figurar nas Maraldi, Lecaille, La Condamine, Legendre em colaboração com outros astróno
J14émoíresda Académie, mas na verdade toda a produção nacional, superintendendo, mos europeus, no campo da cartografia, da geodesia e do conhecimento dos astros,
entre outras, a vida do Joürna/ des Sapo/zfse a compilação do almanaqueastronó- disponibilizando recursos e homens para viagens espectaculares ao Equador e outras
mico do Observatório.Como recompensapelo cumprimentodestesdeveresinstitu longínquas paragens do globo.
cionais, são concedidos amplos reconhecimentos e benefícios importantes. O sobe- Para se poderem avaliar as relações complexas que vieram a estabelecer-seentre
rano concedia aos pelzslon/caíres,verdadeiros donos da Académie, juntamente com os ambientescientíficos e o poder no séculoXVlll, revestemparticular interesseas
os /zo/zoralres,2000 /ivres anuais e o ./eramde presença nas reuniões. Quantias sem vivências atribuladas da Société de médecine. Fundada ejn 17 18 com cartas de patente
dúvida modestas que, no entanto, se faziam acompanhar de posteriores compensa do soberanoe dirigida com grandeautoridadepor Vicq d'Azir, amigo de Turgot, a
ções-- nada despiciendas-- sob a forma de nomeaçõespara a administração pública, Société vê o governo atribuir-lhe ampla jurisdição sobre a política sanitária nacional
o ensino, os pareceres do Bureau de commerce. O Estado atribuía privilégios e hon em manifesta oposição aos privilégios da poderosa Faculdade de Medicina que rea
ras a cada uma das classes de académlcfens, segundo o costume e a lógica do a/zcíe/z giu com um apelo ao Parlamento de Paras.A administração conferiu à Société a mis
r(ígíme,privilégios que iam desdeuma isençãoparcial dos rendimentosà dispensa são de intervir no controlo das epidemias, nas análises científicas dos fármacos com
do serviço militar, à enorme possibilidade de ser levado à presençado rei, ao reco- vista à sua comercialização, na coordenação da nascente pesquisa meteorológica e

160 161
da nosológica, através da recolha dos relatórios sobre cada tipo de doença enviados científica e tecnológicasUm exemplo clássico da utilização dos homens de ciência
pelos diversos correspondentesprovinciais. Outras instituições organicamente liga- para as funções de tecnocratasfoi a administração da Régie des poudres e do labo
das ao aparelho burocrático contribuíram também para o alargamento e a posterior ratório do Arsenal por um notável académíclencomo Antoine Lavoisier, o pai da
qualificação do número de homens de ciência parisienses. Basta pensar no presta revolução química. Sob a sua direcção idónea, os interessesde tipo científico e de
gioso Collêge de France, justamente considerado a primeira estrutura moderna de tipo económico saldaram-se por resultados bastante positivos. Com efeito, não só é
ensino científico avançado. Nas salas de aula anexas à Sorbonne, abertas pelo mede restabelecida a auto-suficiência francesa no sector das pólvoras de disparo com um
nato da coroa aos cidadãos particulares desde 1550 com o intuito de divulgar um forte aumento da produtividade mas, graças também aos 6 000 000 de liras pagos
saber por vezes alternativo ao universitário, das 19 disciplinas ensinadas, 8 eram cien- pela Régle ao Tesouro em apenas 13 anos, a partir de 1775, foi possível proceder à
tíficas, vindo confirmar um crescente interessedo público. Entre outros, Daubenton, modernização da maquinaria e das tecnologias de laboração, e financiar as investi-
Poissonnier e La]ande davam lições de Astronomia, Darcet de Química, Girault de gaçõessobre o ácido nítrico, dando até azo a que Turgot abrisseum concurso na
Académie des sciences sobre o assunto.
Kéroudou de Mecânica, Lefêvre de Gineau de Física Experimental. Também o pessoal
do Jardin des plantei se dedicava a tarefas didácticas, tendo este conhecido instituto, A figura do lapa/z/ usado como tecnocrata e funcionário atinge o seu apogeu
com Turgot no cargo de controlador geral: a simbiose entre conhecimentocientí-
onde trabalhavam Buffon e os seus alunos, permitido alargar os conhecimentos no
grampo da História Natural, da Botânica, da Zoologia e da Geologia. fico e administração revelou então na íntegra as suas potencialidades ao criar os
\ ~ Mas, para se ficar a conhecer integralmente a espessura, a amplitude, as razões pressupostostecnológicos necessáriosao desenvolvimento da indústria mineira, da
celulose e dos produtos têxteis, chegando mesmo a atingir a actividade agronómica
profundas do primado das proezas científicas francesas na época das Luzes, é pre-
ciso reflectir principalmentesobre o conjunto da organicidadedo sistemaque se das sociedades agrícolas em embrião. As Voyages f/zéía//urg/quem ( 1774) de Gabriel
auto-alimentava através da concorrência de factores múltiplos. Eram factores que, Jars constituem nessamedida um magnífico monumento à actividade efervescente
na maioria das vezes,exprimiam exigênciasestruturais já antigascomo a necessi- daqueles tecnocrataspioneiros ao serviço do Estado e da ciência que deviam encon-
dade por parte do Estado de coordenar e incentivar, lenta mas progressivamente, o trar um ponto de referência e de formação concreto nos grandescentros como a
Ecole royale des pontaet des chaussées,ou na Ecole des mines. Mas o maior impulso
desenvolvimento económico e tecnológico da nação através de uma estratégia de
magistraturas técnicas, ou então a necessidade de auxiliar a pesquisa no campo das dado pela indústria e pelas necessidadesda produção à investigação científica veio
sobretudo a concretizar-se nos laboratórios anexos às manufacturas reais. Foi, com
inovações militares. Neste sector encontrou o homem dc ciência francês um terreno
efeito, na Manufactura royale das tapeçariasdos Gobelins que o saboiano Louis
particularmente fértil onde desenvolver as suas potencialidades e avançar também
no sentido de uma profissionalização precoce. De salientar que esta relação entre Bertholet, director dos laboratórios e académícíe/z,efectuou as suasfelizes expe-
riências de química industrial, posteriormente publicadas no manual sobre os E/érzze/z/s
ciência e guerra é um facto comum a muitos outros países europeus, da Prússia ao
de /'ar/ de /a /ei/zfare em 1791. Nas fábricas de porcelana de Sêvres trabalharam,
Reino de Nápoles, ao Império de Pedra, o Gra/zde, e Catarina 11.Encontramos tal-
vez no Piemonte de Carlos Manuel Tll o exemplo mais gritante do modo como o em tempos, diversos dos melhores investigadores como Réaumur, Macquer e Darcet.
mundo militar e o aparelho burocrático quase fazem nascer do nada uma grande cul- Para o estudo das propriedades do aço, em que se registaria uma concorrência comer-
tura científica a fim de satisfazer as exigências de modernização do exército. Em cial forte e terrível com as naçõesdo Norte da Europa,o Estadodisponibilizou recur-
Turim, as raízes da Academia Real das Ciências, de 1783, penetravam inteiramente sos consideráveis, confiando a administração a Monge, Vandermonde e Bertholet.
Verificaram-se intervenções análogas nos sectores da produção de papel, na con-
no terreno fértil preparado pelas Escolas Reais de Artilharia de 1739 e pelos labo-
ratórios de química do Arsenal. cepção e construção de novas máquinas para a indústria têxtil. Em suma, havia sub
e Sucede que as chamadas <<armessavantes», artilharia e engenharia, sempre tive- jacente ao universo da Académie des sciences toda uma rede de instituições públi
ram um papel impulsionador na investigação. Soberanose governos não hesitavam cas, um movimento de homense fortes interessessustentadospor uma política de
em investir consideráveis recursos em laboratórios, bibliotecas e escolas de vanguarda intervenção do Estado sábia e eficaz. A identidade, o prestígio e o fascínio do Fava/zf
durante todo o século xvni tinham, deste modo, não só raízes reais, que remonta
para o estudo da balística, da química, das pólvoras, da metalurgia e, em geral, naque
les sectoresda <<tecnologia
do canhão>que haviam fascinadoGalileu e Newton e vam às primeiras fases da Revolução científica, mas também, e sobretudo, às sóli-
das raízes sociais e económicas manifestamente conhecidas e legitimadas pelo poder
que não deixavam agora de suscitar o interesse de Euler, Lavoisier, Monge e tantos
outros. Em França, com a criação da Ecole royale du Génio em Méziêres, nas Ardinas, político.
em 1748, esta sinergia forte e sempre trágica entre guerra e ciência atinge novamente E todavia, o primado de Paris não se alimentava apenas das razões internas adve
os resultados mais elevados. A Ecole torna-se efectivamente um incrível foco de cien- dentes dos efeitos do modelo de pafronage adoptado pelo absolutismo francês.
tistas da mais alta craveira: No1let, Monge, Carnot, Coulomb, Borda, Bossut, Bézout, Existiam, de igual modo, razões externas que eram já visíveis nas análises da grande
correnteza de sociedades e academias científicas continentais, todas elas organica-
etc. Mas isto não é suficiente. Em redor do universo militar e dos seusproblemas
giravam também interesses económicos e exigências administrativas muito concre- mente ligadas à França e de onde nasceua primeira autêntica comunidade científica
internacional.
tos que diziam directamente respeito às questões relevantes do campo das inovações
]63
162
A <<Nova
Atlântida»: entre a utopia e a realidade logo a seguir as academias e as sociedades de Bordéus, Edimburgo, Dijon, Montpellier,
Gõttingen, Turim, Nápoles, Mannheim, Filadél fia. Finalmente, as instituições menos
Nos anos 70 do século xvnl, nomeado secretário da Académie des sciences, ricas, desprovidas de grandes talentos e de laboratórios apetrechadose cujas publi-
Condorcet começou a interrogar-se sobre a forma de reorganizar a investigação cien- caçõesrevestiam por vezes um carácter irregular, como as de Bruxelas, Copenhaga,
tífica e, mais genericamente, a função extraordinária da ciência na história do homem. Barcelona, Marselha, Mónaco, Roterdão, Tolosa.
Durante os anos tumultuosos em que Turgot reuniu fava/z/s e p/zí/osopbespara a Da Rússia ao Brasil, da Irlanda à Suíça, do Tamisa às margens do Mediterrâneo,
última grande tentativa de reforma sob o signo das Luzes antes do colapso revolu o desenvolvimento rápido do circuito académico no decurso do século xvlll prefi-
cionário, nasceram algumas reflexões que iremos encontrar amadurecidas naquele gurava nitidamente aquilo a que chamamos hoje uma moderna comunidade cientí-
fresco profético que é o Esquissed'urt [abteau historique des progrês de L'esprit fica internacional. Surgia como um mundo isolado que se fora formando a pouco e
b maín. bm particular, Condorcet escreveu as R({/7exío/zssur / 'Áf/a/z//de que escla- pouco e de modo diverso, segundo determinados mitos e valores cosmopolitas e uni-
receram na íntegra o seu projecto de relançamento do sonho baconiano de uma trans versais da propaganda do movimento científico desde o século xvll, mas desenvol-
formação profunda da humanidade através de uma nova política do conhecimento vendo-se também através de funções, tarefas e características específicas impostas
científico e da realizaçãoda //zs/durariait/agia. Relançandoo mito e os objectivos pelos diversos contextos históricos que não devem ser subvalorizados
da /Vew 4rZa/zfls,Condorcet já não propunha, contudo, o modelo organizativo igua- Por exemplo, na Rússia, a Academia Scientiarum Imperialis Petropolitana, criada
litário da <<Casade Salomão>, mas uma <<Nouvellc Atlantide>>, centralizadora e hie em 1724, representou directamente a origem e o fulcro de todo o processo de acul-
rarquizada, assente no mérito e no talento. No âmbito da realização prática deste pro- turação <<pordecreto>>inaugurada por Pedra, o Gra/zde, e prosseguida por Catarina ll.
jecto, as academias provinciais francesas deveriam ser directamente responsáveis pela Gastando24 000 rublos por ano, o Estadovia garantidoscom a Academia não só os
organização dos seus trabalhos em Paras,enquanto a grande rede de sociedades euro serviços de um órgão de consulta técnica e de um centro de promoção da investiga
peias devia, por sua vez, reforçar os seuspróprios laços hierárquicos com as acade- ção, mas também o empenhodos académicosna didáctica, função vital num país
mias estatais mais importantes. Tratava-se, sem dúvida, de uma proposta utópica que destituído de verdadeiras universidades até à inauguração da de Moscovo em 1755
pressupunha um grau de homogeneidade cultural bastante elevado por parte da comu- E foi das margensdo Neva, com a chegada de um grupo numeroso de matemáticos,
nidade científica do continente e de uma comunhão ideológica e de intenções que físicos e químicos estrangeiros,na sua maioria suíços e alemães,entre os quais Euler,
dificilmente encontraria uma correspondência efectiva nos factos. Na verdade, as Bilfinger, Hermann,Nicolas e Daniel Bernoulli, que se iniciou o /ake cWcultural que
reacçõesforam frias um pouco por todo o lado, paranão dizer mesmonegativas/ viria a ligar a Rússiaà civilização europeia.Noutro contexto, onde eram bem pouco
f No entanto, Condorcet não sonhava propriamente de olhos abertos. Entre o mito fortes as tradições científicas (basta pensar nos trabalhos da Societas Regia Scientiarum
e a realidade existia efectivamente no Ocidente algo que se assemelhavabastante a Upsalensis fundada em 1728 por Berzelius, Poluem, o engenheiro e tecnólogo máximo
uma <<Nouvelle Atlantide>>, cosmopolita, dotada de valores e práticas comuns. Estudos da época, e Swedenborg), a academia estatal de Estocolmo participava com caracte-
recentes acabaram por realçar as dimensões e o relevo desta grande rede que se arti- rísticas marcadamente originais na actividade da <(Nouvelle Atlantide>>. A Kungl.
culava nas academias e nas sociedades. As primeiras, directamente influenciadas pelo Vetenskapsakademie
(1755) tinha, de facto, como função institucional o dever de
absolutismo e pela sociedadedo alzcíen r( game,faziam eco do fascínio da Académie encaminhar todos os recursos provenientes do monopólio dos almanaquese calen-
des sciences de Paras;as segundas, mais abertas, de tendência democrática, por certo dários concedidos pela coroa para a sua manutenção para investigações de utilidade
menos profissionais, seguiam o exemplo da Royal Society e dos seusle//ows. Ambas imediata no campo tecnológico, mineiro, agrícola, marítimo. SÓ em 1744, com a
as formas associativas se vieram depois a dividir em públicas e privadas em virtude nomeação do astrónomo Wargentin, foi possível estender totalmente o grande potes
do reconhecimento pelo Estado e da concessão de cartas de patente do soberano, de cial científico, garantido também no campo teórico com a presençade Celsius, von
pensõese de financiamentos. Na segundametade do século xvlll, estavama funcio- Linné, Scheele,Bergmann e outros ainda, colocando Estocolmo ao lado de Paria,
nar no Ocidente cerca de setenta academias e sociedades públicas, para além de uma Berlim e São Petersburgo, com o início de uma série de concursos importantes em
centenade privadas, sem contar com uma vintena de pequenosconventículos cien- sectores específicos da investigação.
tíficos sustentadospela intervenção de um mecenas.Em vez do modelo igualitário e Em Itália, o circuito académicoeuropeupodia contar sobretudocom Turim.
utópico da <(República das ciências», constantemente evocado e invocado pelos estu Nascida em 1783, segundo o modelo parisiense, e contando com uma estrutura aná-
diosos de então, existia concretamente uma estrutura de pesquisa que obedecia ao loga de magistraturastécnicas e de interesseseconómicose militares, a Academia
princípio hierárquico da importância e da influência de centros individuais, uma espé- Real das Ciências conduzia aquilo que poderemosdesignar por um verdadeiro renas
cie de pirâmide que sancionava na verdade o primado e o prestígio das grandes aca cimento científico italiano nos finais do século xvm. Um renascimento que respei-
demias estataisde França, Inglaterra, Prússia, Rússia e Suécia. SÓfaltavam aderir a tava apenasao Norte da península, onde funcionavam centros universitários de van-
estapequenaelite a Espanhae a Àustria, a primeira devido a um atrasoobjectivo e guarda como Pavia de Boscovich, Volta, Spallanzani, e fervilhava a actividade das
a segunda por haver escolhido um modelo policêntrico de organizaçãoda investiga- sociedadesvenetas, toscanase emilianas. Bem diferente era a situação no Sul. Na
ção que privilegiava a deslocação das academias para a periferia do Império. Vinham verdade, não nos devemos iludir quanto aos vultuosos investimentos do governo dos

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Bourbons de Nápoles para a fundação, cm 1787, da Academia Real de Ciências e esse êxito alimentou a difusão da chamada <<ideologia académica>>, uma ideologia de
Belas-Letras, imitando a estrutura da sua congénereberlinense. A Academia napoli- compromisso e de integração social que representavauma das principais formas de
tana copiou apenasdesta prestigiosa instituição a fórmula organizativa, os propósi- luta política praticadapelo absolutismoiluminado a fim de conciliar semtraumaso
tos, mas não a eficiência e a produtividade. Decorridos poucos anos, tudo se saldou velho e o novo, a tradição e a inovação,o privilégio antigo do sanguee da posição
num enorme revés, em que predominou uma experiência aviltante de tipo cortesão com os direitos do mérito e do talento. Se nas academias se celebrava antes de mais
que só serviu para afastar definitivamente a ciência napolitana do Sul da ltália em
a legitimação cultural da autoridade,no seu interior davam-seos primeiros passos
relação ao resto da Europa. no sentido de um ideal inédito de serviço cívico, de uma sublimação ritual dos con-
Bastante mais complicada era a situação na Alemanha e na Tnglaterra.O cresci- flitos de classe capaz de conciliar a heterogeneidade social com uma homogeneidade
mento tumultuoso da chamada sociedade cientifica provinciana opunha-se ao declí-
cultural e espiritual. No âmbito deste processo,que envolvia letrados,artistas, eru-
nio da Royal Society no decurso do século xvlll. De Manchester a Derby, de Newcastle ditos, os homensde ciência e o seu mundo constituíram sem sombra de dúvida a
a Birmingham actuavam pequenoscenáculos empreendedoresde diletantes, de fzafura/ elite do movimento académico, a comunidade mais sábia e orgânica, um verdadeiro
p/zí/osopàers, a anos-luz de distância dos savanas parisienses, decididos a prosseguir
jmperlam i/z ímperío:como gostava de dizer, com orgulho, o secretário da Academia
o sonho baconiano e puritano da /pzs/aura/íoA4ag/za,inventando máquinas, efectuando de Berlim, Samuel Formey:
experiências químicas e eléctricas, reflectindo com espírito utilitarista sobre as apli
cações industriais das novas investigações. Foram eles os criadores daqueles pressu- Quelle révolution messsieurs. . . Partout ailleurs, jusqu' aux glaces du pele, les aca-
postos técnico-científicos mas também ideológicos para o nascimento da revolução démies sont des capitales des sciences dont on ne croit pas que les capitales des empi-
industrial sobre a qual se debruçou recentemente M. C. Jacob na sua obra The Cu/lura/ res doivent ou même puissent être dépourvues. ll me semble déjà les voar traverser le
A/eanl/zg of Sele/zr!/ic Rapo/ fiar. Um capítulo em especial mereceria uma análise do détroit tant cherché et à la découverte duques il semble qu'on touche celui qui sépare
movimento das sociedadese academiascientíficas, que eclodiu na Alemanha durante I'Europe de I'Amérique et procurer à nobreglobe un avantage, dont le soleil lui-mime
a segunda metade do século xvlll. Nascidos da experiência berlinense da Societas quoique pêro du jour ne sauroit le faire jouir c'est d'avoir ses deus hémisphàres éclai
rés à la fois.s
Regia Scientiarum leibniziana de 1700, transformada em 1744, com a reforma de
Frederico 11,na Académie royale des scienceset belles lettres de Prusse,estas socie-
dades logo se distinguiram pelas suas características especificamente regionais e pela Com efeito, de entre as instituições da República das letras, apenasa cadeia de
sua capacidade de se tornarem um ponto de referência importante para muitas outras lojas maçónicas (que, por sinal, muitas vezes se sobrepunha à das sociedades cien-
iniciativas de associativismo, reactivando, aliás, importantes canais de comunicação tíficas) se podia vangloriar de uma dimensão internacional análoga e sobretudo de
com o mundo universitário. A academia de Gõttingen (Kóniglich Societãt der uma identidade cultural semelhante. Para nos convencermos, bastaria analisar as publi-
Wissenschaften), presidida por Haller e financiada directamente pelos Hanâver abra cações de academias individuais como a M)ví Commenfaríí de São Petersburgo ou a
vés do monopólio habitual sobre os almanaques, soube constituir uma eficaz associa- /7fsforíae de Mannheim, as A/éímoíres parisienses ou as A/ísce//a/zeae turinenses.
ção com o corpo docenteda prestigiosauniversidadelocal. A de Erfurt (Akademie A iconografia oficial que surgenos frontispícios daquelestextos é quaseidêntica e
Gemeinütziger Wissenschaften)torna-se o centro das iniciativas comuns entre os chega a conter em escassas imagens toda a ideologia e a história do movimento cien-
homens de ciência e as sociedades económicas e patrióticas. Em Munique (1759), em tífico: instrumentosde medida,Minerva, o sol que ilumina as mentes,as colunas
Mannheim (1763), em Leipzig (1768), nasceram laboratórios, observatórios, centros míticas de Hércules da /Vew 4í/arzfls baconiana,as insígnias dos soberanos,etc.
de estudosespecializadosem alguns sectorescomo a meteorologia e o magnetismo, Circulavam naquelas páginas referências comuns ao mito de Prometeu, a uma his
destinados a criar as premissas para a grande ciência alemã do século xlx. teria muito positiva das ciências, feita de êxitos, descobertas,invenções, a que todas
.Poderíamoscontinuar a ilustrar outras experiências de associativismo científico as sociedades individuais davam o seu pequeno mas importante contributo.
sob o signo do absolutismo, como em Praga, Bruxelas e Mântua, onde a coroa aus- A garantir as sólidas basesdaquela comunidade cultural não estava unicamente

l tríaca fez nascer importantes academiasestataisde província, ou sob o signo de um


modelo monopolista hegemónico nos Estados Unidos da América e nas Províncias
um sistemade crençasassentenuma ideologia do progresso promovida pela utili
dade social da ciência e dos seus valores (elemento este que bastaria, por si só, para
cimentar a solidariedade de um grupo). Outros factores contribuíram também para a
Unidas. Se, por um lado, são evidentes em cada uma destas iniciativas as características
originais, os condicionalismos do conteúdo histórico, a diferença de objectivos polí- tornar particularmente homogénea, seja no interior, seja no exterior. Ao lado das prá
ticos e programáticos, por outro, vem também à superfície com alguma insistência a ricas académicastradicionais compartilhadas também pelas sociedadesde letrados e
verificação de um mesmo horizonte de referência. Sente-scnitidamente a existência
de um quadro unitário de valores, de linguagem, de práticas.'A <(Nouvelle Atlantide>> : <<Querevolução, meus senhores... Por toda a parte, até aos gelos polares, as academias são as capi-
surge como uma espécie de comunidade cultural de aspectos incompreensíveis se tais das ciências, não se concebendoque as capitais dos impérios as devam ou possam sequerdispensar.
Parece-me vê-las já a atravessar o estreito tão almejado e em cuja descobertajulgámos transpor aquele
não fizermos referência à força e ao êxito crescentede todo o movimento académico
que separa a Europa da América, trazendo uma vantagem para o nosso globo, cujo sol, ainda que pai do
setecentista:Ficamos a saber, através das obras magistrais de Daniel Roche, como dia, não saberia dela desfrutar, ver os seusdois hemisférios simultaneamente iluminados.>>(JV.r. )

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de diletantes, para a difusão daquele sentido de omnipotência que caracterizava os
de artistas, entre as quais o mecanismo das eleições, o cerimonial das sessõespúblicas,
comentários gerais e a publicidade sobre as ciências e as técnicas. Não era por acaso
o ritual da viagem académica,estava, na verdade, a adesãoconvicta àquele veículo
formidável de identidade representado pelo método científico, o mesmo será dizer, que Priestley falava de <<universalenthusiasm>>numa das inúmeras edições e tradu-
a aceitação de uma linguagem comum que permitia ao homem de ciência de Turim ções da sua obra H/srory a/zd Frase/z/ S/a/e of E/ecrríc/Q. Também Mallet Du Pan
testemunhava com eficácia, num número do seu Joarna/ Alsroríque e/ poli/fgtze de
agir segundoos mesmosprocessos,com os critérios de análise racional e de verifi-
Genebra, de 1784, o incrível clamor daqueles anos em relação a estes temas afir-
cação experimental dos resultados adoptados pelo homem de ciência de Filadélfia ou
mando: <<Lcs
ans, les sciences,tout fourmille aujourd'hui d'inventions, de prodiges,
de Estocolmo. Tudo isto permitia activar e alimentar outros mecanismosnão menos
de talents surnaturels. Une foule de Bens de tour état, qui ne s'étaient jamais doutés
poderosos de homegeneidadecultural. Basta pensar na organização de empreendi-
d'être chimistes, géomêtres,mécaniciens,etc. se présententjournellement avec des
mentos científicos entre as instituições de diversos paísesque viam trabalhar lado a
mervcilles de touLe espace.)>'Outra confirmação, não menos surpreendente pela rápida
lado investigadores de diversas nacionalidades sem qualquer problema de entendi-
mento. Outro dado a não subvalorizar é a possibilidade de pertencer na época a mais mudança provocada nos interesses do público culto e pelo enorme êxito das ciências,
de uma academia,o que abria o caminho a uma mobilidade intelectual determinada é a que surge no Tab/eau de Paras de Mercier: <<Lerêgne des lettrcs est passé; les
unicamente pelo aspecto financeiro e por melhores condições de trabalho. physiciens remplacent les pontes et les romanciers; la machine eléctrique tient lieu
E, por último, o impacte dos concursos internacionais. Constituíam prova defini- d'une piêce de théâtre.>>s
Aliás, um indício desta mudança de interesses está rela-
cionado com os resultados das investigações sobre o género de livros presentesnas
tiva da existência de uma comunidade cultural que sentia agora como facto colec-
bibliotecas francesas do século xvln. Se nos anos 20, a quota dos volumes de carácter
tivo as questõese os problemas específicos da Física, da Matemática, da Hidráulica,
científico é de 18qa,no início dos anos 80 sobe rapidamentepara 30%. Mas, mais
da Química. Os 75 prémios da Academia das Ciências de Paria (numa quantia supe-
do que a produção livreira, são na realidade as gazetas as indiscutíveis protagonis
rior a 200 000 /ívres), os 45 oferecidos por Berlim, os 125 concursosabertos por
tas do nascimento da opinião pública europeia, que oferecem as provas de um ver-
Copenhaga são ocasiões sucessivasde trabalho, de pesquisa e de comparação comuns,
dadeiro triunfo das ciências dando não só voz aos grandes confrontos científicos da
que põem de parte as convicções religiosas dos protagonistas, as culturas nacionais,
as fronteiras entre os povos. A correspondência dos homens de ciência da época mos- época, mas também às polémicas e às diatribes mais cediças no seio de uma comu-
nidade em plena efervescênciae que transpôsagora o limiar mínimo do direito à
tra que estão conscientes de pertencerem a uma elite cultural de dimensão interna-
existência prosseguido com tenacidade no decurso do século xvllT. O primeiro diá
cional, dotada de características bem definidas e de uma linguagem científica comum.
rio de França, o ./Durma/de Paras, constitui um testemunho precioso nessesentido.
E certo que, pelo facto de se sentirem idealmente <<co.nfrêres>>
(a expressão surge com
Não encontramos nas suas páginas apenas a crónica caprichosa sobre o debate cien
frequência nas cartas dos académicos), não conseguia encobrir totalmente aqueles
tífico na capital, o calendário dos trabalhos da Académie des sciences, mas também
aspectosnegativos de um forte processo de identificação. O espríf de coros deixava
as diatribes mesquinhasno seu seio. Outros indícios eram os que provinham dos
entrever também com clareza o carácter normativo e prescritivo daquela que se iria
tornar uma das corporações mais fortes e invejadas do ancíe/z reíg/me. periódicos italianos, alemãese ingleses, que reservavam grande espaço à vida das
academias de província e nacionais, aos concursos, aos debates, ao confronto científico,
como o que se verificava entre os defensores e os opositores da revolução química
de Lavoisier, ou das interpretaçõesdo electricismo de Franklin.
A noó/e carriêre des scíences.Entre comunidade e corporação
Por entre os indícios da moda científica que se ia estendendo, com os seus pró
' O século xvlll assinalou, sem dúvida tardiamente, o «triunfo da ciência>> (R. Hahn, prios excessosque, como afirmámos, viam na primeira fila, como protagonistas, inte-
lectuais, burgueses,damas da aristocracia, rainhas c soberanosde todo o continente,
1971) e a sua legitimação definitiva aos olhos da opinião pública que se formava,
mas também a sua primeira crise institucional e epistemológica grave, destinada a cada vez mais surpreendidosa sonharde olhos abertosdiante dos fenómenosmila-
grosos das máquinas eléctricas ou a sofrer com a terrível tragédia de Pilâtre de Rosier,
abalar os alicerces do prestígio do savci/zífrancês. Ainda hoje é difícil compreender,
nos seus efeitos psicológicos profundos e de mentalidade colectiva, o espanto, a mal'a malogrado ácaroque morreu carbonizado em Junho de 1785, quando o seu balão se
incendiou durante a travessia da Mancha, começava a delinear-se uma mudança pro-
vinha, o entusiasmo daquelas grandes massasde pessoas que por essa Europa fora se
reuniam nas praças, a fim de assistirem aos prii6eiros voos dos balões aerostáticas. funda nos grandes pontos de referência cultural tradicionais do Ocidente. A cultura
científica principiava a tomar parte de direito na formação intelectual das modernas
A sucessão de invenções valiosas como o pára-raios ou a campanha movida pelas
gazetasà polémica candente das curas milagrosas conseguidas pelos partidários do
magnetismo animal, ou em torno da existência do llogisto, alimentavam depois a 4 «Hoje em dia, as artes, as ciências fervilham de invenções, de prodígios, de talentos sobrenaturais
curiosidade frenética dos salões e das cortes em relação às maravilhosas experiên Gente de todas as condições, que nunca havia sonhado ter vocação para a química, a geometria, a mecâ
das com electricidadede que Franklin era o grandemestre.' nica, etc., surge a cada passo com maravilhas de toda a espécie)> (N.T.)
No final do século, o homem de ciência estavaefectivamente <<àla mode>>.
Todos 5 <<Terminouo reinado das letras; os físicos substituem os poetas e os romancistas; a máquina eléc
trica sub)titui uma peça teatral.>>
(N.T.)
gostavam de se sentir pefífs-mafrres p/zysíciens, e contribuir, ainda que na qualidade
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elites urbanas. Segundo os dados fornecidos por D. Roche (mas o fenómeno é idên- pensesda <(Sceltadi opuscoli>>,cuja primeira edição remonta a 1775, mas também
tico na Europa) sobre as academias de província, entre 1700 e 1789, 50qü dos mais os inúmeros periódicos especializadospromovidos pelo pavês Luigi Brugnatelli, diri-
de 2000 concursos abertos foram reservados a temas tecnológicos e científicos. gidos programaticamente apenas aos homens de ciência, mas em aberta concorrên-
Montpellier, Brest, Bordéus,Orleães,Metz, Valença,Tolosa, nascidascomo socie cia com as comunicaçõesoficiais ocultas e lentas das academiase em aberta polé-
dados predominantemente sensíveis às letras, logo se transformaram durante a segunda mica com as crónicas de escândalos das gazetas.
metade do século xvm em socíéfés lava/ares, sendo 80% dos seus trabalhos dedica- O elemento caracterizadordestes novos periódicos é, sem dúvida, a tendência
dos às ciências. Sem dúvida, a maior parte das vezes estamos perante diletantes, paraa especializaçãodisciplinar.Tratava-sede mais um sinal do nível de maturi-
peranteformas de divulgação um pouco superficiais. No entanto, o impacte sobre a dade alcançadopor uma comunidadeem que, paralelamentea uma sólida base de
sociedade civil daquela ideologia optimista do progresso humano, a alcançar por potenciais estudiosos, encorajados pelo cada vez maior consenso da opinião pública
intermédio da experiência, da observação, do método científico, revelou-se de grande em relação às ciências, surgiam no horizonte os primeiros autênticos monstros sagra-
eficácia durante um longo período, vencendo obstáculos e preconceitos. A sua forma dos. Estrelas de primeira grandeza,elogiadas pelos periódicos e gazetas,premiadas
de insinuação manifesta-se em todas as direcções.'Na Itália do Norte, por exemplo, e recebidas na corte, em todo o lado, e cada vez mais cobiçadas pelas academias
as academias de província e as sociedades agrárias recorreram a uma estratégia de estatais, tornadas rivais numa espécie de mercado ocupacional do cientista do
aculturação científica no sentido descendente, através dos almanaques populares que século xvlrl. Eram aqueles homens de ciência geralmente conscientes de que haviam
falavam de Newton, dos irmãos Montgolfier, da descobertado novo planeta Urano progredido bastante na pesquisa, e sobretudo na sua organização, em relação à época
e também dasprevisões astrológicas mais tradicionais. Era uma estratégia que visava de Galileu e de Newton. Não obstante todas as diferenças determinadas pelos con
mudar no fundo o imaginário colectivo da época, legitimar definitivamente o saber cursos e pelas tradições segundo as quais agiam, eles prefiguravam uma nova carreira
científico como instrumento formidável de transformaçãoe de secularizaçãojunto que já se delineava com clareza no século xvm, com as suas etapas obrigatórias, o
de todas as camadas sociais. seu cursos /zolzoru/zz,as suas metas, as suas formas históricas que são merecedoras
Em face do <<triunfo das ciências>> nos salões, nas gazetas, nos pequenos cenáculos de uma breve análise através de algumas biografias exemplificativas.
provincianos, quaseque a alimentar e a justificar o exuberante florescimento daquela O caso mais gritante do cientista profissional avcz/zf/a /ef/re foi sem dúvida o de
moda tão singular, ganhava rapidamente corpo a chamada segunda revolução cien Giuseppe Lodovico Lagrange. Nascido em Turim em 1736, foi nomeado, com ape
tífica. Os seus frutos maravilhosos amadureciam silenciosamente nos laboratórios
nas 19 anos, professor de <análise sublime>>nas Escolas Reais de Artilharia. A sua
dessas sociedades do Estado, tomando-se conhecidos através de uma linguagem cada carreira, apesardos conhecimentos excepcionais da personagem, pode ser conside
vez mais especializada sobre o estudo das À/émoíres e de actos académicos. Lavoisier rada uma espéciede ideal-tipo do fava/zf da época das Luzes. Juntamentecom outros
levava a efeito as suas experiências, dando origem à química moderna em basesquan- homens de ciência piemonteses,na sua maioria militares, Lagrange fundou em 1757
titativas, abandonandodefinitivamente o antigo simbolismo de origem alquimista; a SociedadePrivada Turinesa, núcleo original da futura academia estatal de 1783.
Lagrange, com o cálculo das variações, estabelecia as bases da matematização defi- O seu excepcional talento de físico e de matemático é conhecido e admirado em todo
nitiva da mecânica; Laplace elaborava teoremas e fórmulas cada vez mais apuradas o continente através das <<Mélanges>> daquela pequena sociedade. Em 1763, tal como
para o cálculo das probabilidadese aplicava a todos os movimentosestelaresa lei muitos jovens que se estreavam no mundo científico europeu, efectuou o verdadeiro
newtonianado número.O electricismopioneiro e espectacular
do início do século, rito de iniciação representadopela viagem académica. Foi a Basileia, Berlim, Paras,
que tanto maravilhava e fascinava as damas dos salões da Europa, começava final- a fim de conhecer e cumprimentar os seus futuros co/!/rêdes. Teve ocasião, em
mente a transformar-se em análises físico-matemáticas dos fenómenos electrodinâ Paris, de frequentar salões importantes; torna-se fiel amigo de d'Alembert, com o
mimose magnéticos nas obras complexas de Cavendish, Coulomb e Aepinus. E mais: qual viria mais tarde a administrar, transformado em grande patriarca, todo o circuito
adquiriam estatuto e rigor científico a meteorologia, a hidráulica (com a teoria ciné- das academias europeias. Aquela viagem seguiram-se a associação às maiores aca-
tica dos fluidos, numabaseatomista, formulada por Daniel Bernoulli e Michail demias,as primeiras vitórias (e generosamenterecompensadas)nos concursos de
Lomonosov), a biologia, com os caprichosos protocolos experimentais elaborados astronomia, física e matemática, e por fim a ambicionada nomeação, em 1766, para
por Spallanzani: uma comunidade científica agora adulta levantava o problema da director da secçãode ciência e matemática da academia berlincnse. Como homem
superaçãodos limites do antigo sistemade comunicação entre os centros de investi- de ciência e académico, Lagrange alcançara a meta. Com apenas trinta anos, no auge
gação ainda arreigado à fórmula setecentista dos actos académicos.'Nos anos 70, a da sua carreira fulgurante, podia finalmente permitir-se o luxo de dedicar todo o seu
solução para o problema surge com o aparecimento dos primeiros periódicos cientí- tempo unicamente à pesquisa (privilégio concedido ainda a poucos no século xvnl),
ficos, uma inovação que quase media simbolicamente o mudar dos tempos. O Journa/ limitando-se, como função institucional, a avaliar os contributos dos colegas e a pro-
de p/zysíqzledo abade Rozier surge em 1771. Em 1783, ainda em França, aparece- duzir construções maravilhosas do pensamento que ainda hoje fascinam pela audá-
ram os Á/z/za/ei de c/zfmíe. Na Alemanha, o grande opositor das teorias de Lavoisier, cia do engenho. Nos anos 80, já grande e célebre mestre, Lagrange colocou-se
Lorenz Crell, torna-se o artífice de iniciativas editoriais análogas, como o C/zemísc/zes discretamente no mercado. As academias de São Petersburgo, Nápoles e Turim
/furna/, em 1784.Na Itália, tiveram enorme sucessoas ediçõesmilanesase turi disputavam-no sem regatear as ofertas, mas ele preferiu ir para Paris. Ali atravessou
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incólume o Terror, o Tcrmidor, o Império. O seu génio e a sua prudênciaabriram- E, todavia, ncm sempre as carreiras dos homens de ciência do século xvlll segui-
Ihe as portas do PanfAéon,primeiro cientista entre os pais da França moderna. ram o esquema do académico conforme nos mostram os exemplos supramenciona-
Outra carreira não menosextraordinária foi a de Leonhard Euler (1707-1783), dos. Impõe-se,com efeito, dissipar esta tipologia rígida, tendo em atençãoa edis
grande expoente da numerosa colónia de homens de ciência suíços de língua alemã, tência de articulações intermédias múltiplas, até se chegar ao outro grande pólo de
entre os quais se destacam os Bernoulli, que animaram o mercado dos académicos referência neste campo durante a época das Luzes: o rza/ura/ p/zí/osop/zer de matriz
setecentistas.Encontramos também no caso de Euler as mesmasetapas percorridas newtoniana,particularmentedifundido em Inglaterra, nos EstadosUnidos e nas
por Lagrange, como, aliás, pela maioria dos estudiososda época que pretendiam Províncias Unidas. Veja-se nesse sentido, a título exemplificativo, a carreira cientí-
dedicar-se ao estudo das ciências: os primeiros trabalhos matemáticos publicados fica de outro grande estudioso dos finais do século xvln: Joseph Priestley, que des-
nas <<Actaeruditorum>>,o convite da Academia de São Petersburgoem 1726, 12 cobriu o oxigénio, o grande opositor e rival de Lavoisier
prémios atribuídos entre 1738 e ]772, publicações nas actas oficiais das maiores E difícil apercebermo-nosda distância que separa um <<pronissional>>
como Lagrange
de um <<dileLantc>> como Priestley. Representam, na verdade, dois universos cultu-
academiasestatais,e, por fim, a transferênciapara a Rússia em 1727. Deveria lá
permanecer até 1744, quando aceitou as excelentes propostas de Frcderico IT e foi rais, institucionais e sociais bastante diferentes, por vezes irredutíveis. O primeiro
para Berlim. Continuou durante bastante tempo a ser pago por ambas as academias pertence por inteiro a uma sociedade fechada, corporativa, dominada pela lógica do
na qualidade de consultor técnico e científico dos dois governos.Quer na Rússia Estado absolutista; o segundo reflecte a predominância de uma sociedade civil mais
quer no Estado prussiano, para além da organização da pesquisa c do ensino, Euler dinâmica e aberta,em que o papel do Estadoestava muito mais circunscrito. Se a
identidade do savana,como vimos, surgia através da aquisição da condição de coros
dedicou-se à hidráulica, à compilação de mapas,de calendários, de manuais de arti-
lharia e de navegação.Desenvolveu também intensa actividade como divulgador das d'éra/, o nafzlra/p/zíZosopAer
tinha, ao invés, atrás de si o mito igualitário das inte-
grandesideias científicas e filosóficas do século e da sua articulação com a religião. ligências formulado por Bacon e as Boy/e /ecízlresnewtonianassobre as quais se
Foi na verdade seu um dos besr-ie//ers da época: as célebres Z,effres à u/zeprí/zcesse baseavao próprio Priestley.'A carreira deste último é a de um autodidactahostil às
d'Á//emagne, publicado em 12 edições em francês, e traduzido para muitas línguas hipótesesde um sabercientífico cada vez mais especializadoe profissionalizante,
entre as quais o inglês (9 edições), o alemão (6) e o russo (4). Comparada com a que se arriscava a perder de vista todos os seus laços fecundos com a política, a reli-
de Lagrange, a carreira de Euler foi enriquecida por outro elemento: a paixão obs gião, a filosofia. Não foi por acaso que Priestley chegou tarde às investigações sobre
o electricismo e os seus <<ares>>,
a química moderna dos gases. Os seus primeiros tra-
finada pelo ensino. Foi ele que formou a primeira geraçãode químicos russoscapazes
de competir com os colegas europeus. A Rússia deve-lhe o aparecimento em cena balhos foram exposições e comentários do pensamentopolítico radical e da tradição
de Kotel'nikov, de Rumovskij, de Sofronov e sobretudode Michail Vasilevié sociniana que ]he era muito cara. Ganhou a vida como professor e jornalista e escre-
Lomonosov, o <<Lavoisiersiberianos, nascido em 1711, na província de Arcangel. veu manuais para a educação dos jovens. Quando decidiu dedicar parte do seu tempo
Entre os homens de ciência da época das Luzes, este último constituiu um caso par- à pesquisacientífica, interpretoua fundo o modelodo filósofo natural, participando
ticularmente interessantede carreira científica num contexto de subdesenvolvimento nos trabalhos da Lunar Society de Birmingham, uma sociedade privada de província
cultural, quase um produto í/z vífro dos mecanismos de reprodução do circuito aca- onde, sob a égide do utilitarismo e do industrialismo, se reuniam e discutiam, num
démico europeu. plano plenamente paritário, ge/zf/eme/ze estudiosos como Sainuel Galton, James Watt,
Após estudar em Marburgo com Wolff, Lomonosov percorrera na íntegra o cllrsus ErasmusDarwin e outros ainda. Priestley publicou muitos livros de êxito, traduzi-
bo/foram tradicional, tornando-se académico de São Petersburgoem 1742. Naquela dos em várias línguas, a fim de divulgar c propagandear as conquistas da ciência ao
cidade monumental que Pedra, o Grande, pretendia que fosse a porta da Rússia para serviço do homem. Realizando centenas de experiências em sua casa, que o deve-
o Ocidente, ele criou laboratórios de química, elaborou projectos para a universidade riam levar a descobertasimportantes, ia construindo pessoalmenteos instrumentos e
de Moscovo e estudou, com excelentes resultados, modelos matemáticos apurados os apetrechos necessários.Tal como outro famoso filósofo natural setecentista,
de uma teoria cinética dos gases nas suas bases atómicas. A semelhançados seus Benjamin Franklin, nunca gostou da matemática e dos métodos quantitativos revo-
colegas parisienses, berlinenses ou turineses, Lomonosov tornou-se também consul- lucionários de Lavoisier, ou das teorizações intelectualistas abstractas de Laplace.
tor técnico do governo, dedicou muito tempo à metalurgia, à geodesia, à hidráulica, Conservou-setoda a vida um diletante apaixonadopelo experimentalismodedicado
a um modo de concebere criar a ciência ainda minoritário e marginal na época das
compilou manuais para as escolas, mas estabeleceu sobretudo as bases da linguagem
científica russa com as suas tradições. A sua carreira fulgurante de homem de ciên- Luzes. Refira-se que somente nos finais do século xlx o mundo anglo-saxónico acei-
cia e de intelectual militante encerra-secompletamente na fidelidade a uma espécie tou também no plano linguístico a saída definitiva de cena do naízíra/ /7/zi/oso
de dupla identidade, que o vê por um lado aceitar e propagandear o enciclopedismo, p/zer setecentistaa favor do scfen/fs/ moderno (S. Ross, 1964).
a ideologia científica do progresso,o sentir-se idealmentemembro daquilo quc ele No entanto, em muitas zonas da Europa, este processo de transformação foi bas-
próprio definia nos seusescritos como a <<República
das ciências>>,
com os seusvalo tante mais rápido e poder-sc-ia dizer que em parte estavajá concluído nos finais da
res cosmopolitas; por outro, aderiu com convicção ao modelo francês do cientista século xvlll. Com efeito, é possível discutir indefinidamente a vexadaqaaesrío da
organicamcnte ligado ao Estado. profissionalização do homem de ciência setecentista.À luz de critérios abstractosde

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avaliação sociológica (definição do conjunto de conhecimentos, ocupaçãoremune promulgado pela Convenção, em Agosto de 1793, que previa a eliminação imediata
de todo o tipo de sociedades e academias estatais, um autêntico desmantelamento do
rada, organização autónoma na formação e na conduta), a situação não resulta muito
sistema de parronage estatal sobre uma cultura que chegara a custar ao governo fran-
vantajosa. Ser cientista não é ainda, por exemplo, verdadeiramenteum ofício, de
cês, apenas em pensões para o ano de 1785, mais de 250 000 /1vres. Os motivos desta
modo a definir uma classe profissional. A maior parte dos homens de ciência traba-
medida drástica foram ilustrados pelo abade Grégoire num discurso duro, proferido
lha praticamente em par/-rime; com algumas honrosas excepções, trata-se sobretudo
de funcionários do Estado. Tanto quanto sabemos, nunca surge nos arquivos notariais peranteos convencionais,e que vale a pena sintetizar devido à sua extraordinária
clareza. Na opinião de Grégoire, através do mecanismo dos coros savanas,os privi-
europeus a profissão específica de cientista. E, todavia, do ponto de vista histórico,
não podem existir dúvidas quanto ao facto de tere.msurgido agora definitivamente légios e as pensõeshaviam traído os ideais democráticos e igualitários da Re'p zb/iq e
des /elfres. Aceitando mudar o princípio da comunidade cultural a favor do corpo-
em cena uma figura e uma carreira que sc aproximam em muitos pontos de vista do
rativismo, tinha forçosamente de surgir <unc sorte d'hiérarchie entre des hommes>>
cientista moderno. Uma figura, mesmo assim, quc convém valorizar sempre nas suas
que ignorava o talento e o mérito. A passagemda comunidade à <<corporationaca-
peculiaridades e formas, condicionadas pelo contexto histórico do a/zc/e/z/égide. Um
démique>>havia, deste modo, acabadopor degenerar,a ponto de transformar os seus
parâmetro interessante nesse sentido deveria ser sempre o do conhecimento dos con-
membros em <<inquisiteurs de la pensée>> dos excluídos. <<L'esprit de corps>> mani-
temporâneos.
festara-se com arrogância, sobretudo na marginalização de todos os inovadores e anti-
Se Voltaire, no artigo ge/zsde /e/ires da E/zcyc/opédfe,ao indicar todos os Ào/n-
conformistas, e na função pública humilhante de <<panégyristes>><<esclaves>>
dos «des
mes ínsrruí/s, abrangia genericamente também os estudiosos das matérias científicas,
em 1753,d'Alembert falava, ao invés, claramentedc <<noble
caniêre des sciences», potes».
Como chave dc todo o sistemaacadémico, os homens de ciência mantiveram-se
distinguindo com rigor entre /zomme de /eífres e fava/zf. <<Quand je dis les savanas
durante muito tempo no olho do furacão. Assim, os ferozes acusadoresda corpora-
- escreved'Alembert no Essass r /a sociéfé des gins de /e/ res ef Jesgramas-- je
ção académica tinham-se enfurecido contra eles, atacando as raízes da organização
n'entends pas par-là ceux qu'on appelle érudits>>, mas por certo aquela parte <(des
da investigação, os métodos, o papel social do cientista, e contestando mesmo a ima-
Bens de lettres qui s'occupent des sciences exactes>>.'Sejanos E/ages de Condorcet,
gem da ciência saída vitoriosa da primeira revolução científica de Galileu e de Newton.
sqa nos artigos das gazetas mais importantes do continente, o homem de ciência é
Como tudo isto sucedeuatravés da criação de uma grave crise de identidade do
um sujeito reconhecidoe reconhecível,nitidamentedistinto do filósofo, do teólogo
homem de ciência setecentista,ainda hoje é objecto de investigação e reflexão entre
e sobretudo do letrado. Em relação a este último, desenvolve-se concretamente nos
os historiadores que, durante muito tempo, subvalorizaram as polémicas agudasdo
anos 80 um verdadeiro antagonismo que dá mostras decisivas de maturação, ocor
final do século no seio da comunidade científica europeia.
rodatambém nas representaçõescolectivas da relação existente entre os termos savana
ou cíe/zflsracom a actividade de pesquisa num sector específico do saber~Na ltália
dos finais do século xvTll, torna-se um fofos a contraposição entre o letrado e o cien-
O homemde ciência e a crise de identidade de final do século
tista. Encontramo-lo nas obras dos iluministas napolitanos Galanti e Filangieri. Páginas
elucidativas, dignas de um sociólogo moderno da ciência, são as que Vittorio Alfieri
Em Maio de 1784, a gazeta ita]iana ]Vofízíe de/ A/o/zdo, ironizando a «instabili-
escreveu sobre o assunto na sua obra Z)o prhclpe e das /errczs,com o objectivo de
dade dos cérebros parisienses>>,referia com abundância de pormenores que <<amania
estabelecer a <<diferençaentre as belas-letras e as ciênciap>. Alfieri atacava frontal-
do magnetismo animal sucederaà dos balões voadores>>.<<Corremtodos em grande
mente o c/e/zí/sla (o uso deste termo por parte do autor é agora muito semelhante ao
velocidade para Delon para verem o senhor Mesmer que cura com um toque de mão,
nosso), denunciando o pacto tácito com o poder, <<aservidão>, revelando aquela que
scm necessidadede remédios.>>
Em tons nada irónicos, muito pelo contrário, bastante
era, em seuentender,a naturezaprofunda de um sabercientífico, a que a ajuda e o
problemáticos e até favoráveis à crença nas curas efectuadas pelo médico austríaco
apoio económico das grandes academias estatais eram absolutamente indispensáveis
Franz Anton Mesmer, uma outra gazeta ita]iana, a ]Vofízfe díverie do cremonense
para viver e progredir. Muito diferente era, pelo contrário, o <<letrado>>,
cuja activi-
Lorenzo Manini, referia os mesmosacontecimentos. A oposição entre os que consi-
dade não estava obcecada pelos financiamentos e podia, assim, prescindir se qui-
deravam Mesmer um charlatão (palavra que subitamente se tomou moda em Paris
sesse-- do príncipe. Liberto daquele abraço mortal, era na verdadeconcedida ao
naqueles anos) e aqueles que viam um grande cientista incompreendido e denegrido
letrado uma dimensão particular do próprio trabalho (garantida, aliás, pelo êxito cres-
pelos arrogantes académlcie/zs repetia-se também nas gazetas francesas, alemãs e das
cente da luta a favor do reconhecimento dos direitos de autor), que Ihe permitia denun-
Províncias Unidas. Um pouco por toda a Europa, na primeira metade dos anos 80,
ciar o despotismo, pregar as virtudes, educar o povo.
espalhou-sea polémica aguda sobre a existência e os poderes do fluido magnético
Alfieri -- diga-se de passagem não seria o único nos anos 80 a criticar os cien-
animal, polémica que não abrangeu apenas os mais populares e crédulos, mas também,
tistas e a denunciar os aspectos negativos da <<Nouvelle Atlantide», estabelecendo a e sobretudo. cientistas ilustres, letrados famosos, cortes, academias, iluministas de
relação entre cientista e letrado em termos de contraposição entre público e privado,
todas as nações. Sempre nos mesmos anos, reflorescia na Alemanha, para logo se
entre despotismo e liberdade. Mais de uma década de acesaspolémicas contra todo
difundir no resto do continente, o interesse de intelectuais isolados c de universidades
o mundo académicohaviaprecedidoe preparadoo terreno parao clamorosodecreto
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de prestígio em relaçãoà fisiognomonia e à rabdomancia,paranão falar da curiosa lidade e conhecimento científico, que pertencemao passadoe que foram sendosem-
proposta, no campo da meteorologia em embrião, dos fundamentos teóricos da astro pre postasem causa mais recentementepor filósofos e epistemólogosautorizados.
logia natural depurada de toda a contaminação mágica graças ao cientista Giuseppe Num aspecto,porém, todos os historiadores são unânimes: o saber,o tumulto
Toaldo, corajoso editor das obras de Galileu e seu sucessor na universidade de Pádua. entre os homensde ciência representou,se virmos bem, o primeiro grande ataque
Tratava-se de um regresso clamoroso a formas antigas de racionalização de cunho desferido com uma força e uma sensibilidade já pré-revolucionárias sobre as insti-
empírico-divinatório já presentesnos primórdios da Revolução científica e agora tuiçõese no próprio âmagodo sistemacultural corporativodo a/zcfe/zrégfme a
relançadascomo possíveis formas de conhecimento alternativo ao paradigma físico- <<NouvelleAtlantide>>. É, por conseguinte, desta consideração que temos de partir se
matemático que dominava as grandes academias estatais. Aqueles tipos de ciências queremos compreender um fenómeno destinado a condicionar as próprias caracte
-- ou pseudociências conforme os pontos de vista eram considerados <<populares>> rísticas originais do Iluminismo e as suas sucessivasinterpretações historiográficas.
pelos próprios protagonistas nas suas obras, já não como expressões culturais de uma Paradoxalmente,foi, de facto, o que definimos como o <ltriunfo da ciência>>,que
camada social <<baixa»,mas como simples, elementares, alheias às teorizações inte- criou as bases sociais e ideológicas do conflito. Esse triunfo acarretava fenómenos
lectualistas da realidade, abstractase por vezes incompreensíveis, tão do agrado de colaterais que determinariam inevitavelmente uma crise de crescimento de conse-
Condorcet e Laplace. Denis Diderot fora um dos seus pais na época das Luzes. Na quências graves. Por exemplo, o aumento dos czmaíe rs, dos diletantcs que inaugu-
sua obra Z)e /'i/zrerpréraríon de /a /za/ure, de 1754, deixara expressos os fundamen- ravam em todo o lado pequenassociedadesprivadas, que não toleravam qualquer
tos epistemológicos da contraposição entre uma imagem da ciência definida como forma de controlo por parte das academiasestatais,contribuiu para o aumentodas
tal, unicamente a partir da utilidade dos resultados, da simplicidade dos instrumen- tensões. Também a maçonaria teve a sua participação neste sentido, com uma estra-
tos cognitivos de tipo qualitativo e experimental, da ambição de unir uma morfolo- tégia de propagandavirada para a educaçãocientífica popular, atravésda fundação
gia da natureza,consideradavariável e dinâmica, em constantetransformação,c a de academias, museus e periódicos, que alargavam a base dos praticantes em prejuízo
imagem tradicional da ciência galilaico-newtoniana, feita de eternas leis matemáti- do rigor das investigações. Por fim, o crescente contencioso entre académicos e
cas a entender através de nzzmero,po/adere e/ mensure. Diderot prognosticara preci- universitários com vista ao controlo das profissões, questão espinhosade relevo
samente que as suas reflexões epistemológicas teriam de futuro um largo eco entre e dimensões europeias.
a multidão de dilctantes que, no final do século, se dedicavam à prática das ciências Mas se todos estes elementosde pressãoeram exteriores à comunidade dos cien-
que, de um momento para o outro, estavam à /a made. Pelas suas dimensões e impli- tistas, o germe da contestação alojava-se também no interior da própria Académie
cações, o êxito das <<ciênciaspopulares» nos círculos intelectuais e junto da opinião des sciences. Na segunda metade do século Xvlll, esta contestação começou a reve-
pública alarmou bastantesestudiososcomo Volta, Condorcet, Lavoisier, que se viram lar-se publicamente e de uma forma estrondosa. A desigualdade e o privilégio san-
obrigados a intervir e a definir-se publicamente. A acusação de charlatanismo abran- cionados pelo Rêg/eme/zfde 1699 começaram, de facto, a revelar-se particularmente
geu duas frentes, criando confusão e envolvendo pela primeira vez a própria defini- odiosos tambémaos olhos de muitos académicos.D'Alembert foi dos primeiros a
ção do sabercientífico adquirida a custo como elemento de identidade por todos os falar em 1753 de <<espritde despotisme>>,
que se tornou uma regra insuportável nas
homens de ciência europeus relações entre as <<gensde lettrep>, e a realçar quc a <<formedémocratique convenait
Mas se hoje é opinião corrente entre os historiadores que aquelas polémicas repre- mieux qu'aucune autre à un Etat tel que la République des Lettres qui ne vit que de
sentavam um acontecimento cultural bastante rico em significados políticos, sociais sa liberté>>ó.E, contudo, o próprio d'Alembert, que contribuíra para a politização, por
e ideológicos antes da Revolução (R. Damton, 1968; F. Ventura, 1984), muito pelo assim dizer, do debate sobre a organização da investigação, esteve depois na primeira
contrario, a sua interpretação apresenta-seconsolidada c destituída de contrastes. linha da agitação do final do século, ao lado de Condorcet, Lavoisier e Vicq d'Azyr,
Houve quem visse a quere//e única e simplesmente em termos de regresso fulgurante na defesa rígida da corporação académica contra os excluídos, Mesmer, Marat, Brissot
da magia, esquecendo que os grupos ocultistas europeus eram escassose que a esma- e tantos outros. Sucedeque o ataque frontal à ciência oficial era de tal modo radical
gadora maioria dos mesmeristase dos partidários das <<ciências
populares>>
eram e perigoso, pelas suas implicações institucionais, políticas e epistemológicas, que não
racionalistasconvictos, descendentesda tradição enciclopedista,e até inimigos decla- chegava a permitir qualquer defeito ou tolerância. Enquanto se tratava da denúncia
rados do recurso ao sobrenatural que ridicularizavam e desprezavam nos seus livros. velada do abrasdes sele/ices por parte dos savan/s, proveniente do baconiano Deleyre
Basta pensar nas obras afins do mesmerista Brissot de Warville. Outra hipótese e na suaÁna/yse de /a p/zí/osop/zledzzcÀa/zce/íerFra/zçols Bacon, publicada em 1755,
que foi a que prevaleceu até agora que partia do carácter inacional daqueles factos as respostas poderiam aceitar e compartilhar mesmo parte das censuras. Bem dife-
prefere atribuir-lhes mesmo a responsabilidadedo declínio e da própria morte do rentes eram as acusações corrosivas dos defensores das <<ciênciaspopulares>>.
Iluminismo já a partir dos anos 80. Na realidade, os confrontos entre Condorcet e Em 1782, Brissot de Warville sintetizava com vigor c subtileza os pontos de maior
Marat, entre Mesmer c os académicos,sobre a legitimidade da definição científica impacte junto da opinião pública num Rampa/er intitulado Z)e Za vérílél destinado a
dos métodos cognitivos propostos pelas <<ciênciaspopulares>>bem como as próprias
argumentações contra os coros sapo/zfs,podem e devem ser reinterpretados com maior 6 <<Melhordo que nenhumaoutra, a forma democrática é a que convém a um Estado como a República
espírito crítico em relação às definições e categorias demasiadorígidas de raciona- das Letras, que vive exclusivamente da sua ]iberdade.>> (]V. T. )

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tornar-se uma espécie de catecismo dos contestatários, que contribuíam com moti- da comissão real sobre o magnetismo, publicadas e comentadas nas gazetas euro
vos e sugestões para alimentar as polémicas nos seus opúsculos e nas gazetas de toda peias, quasecomo uma prefiguração singular e desconcertantedo que será nos anos
a Europa. Para demonstrar que as academias <<nuisentà la recherche de la vérité>>, 30 do século xx a discussãosobre a definição de ciência entre um neopositivista
Brissot estabeleceu, de uma forma rousseauniana, um paralelismo entre o saber vir-
lógico como Karl R. Popper e os defensores da psicanálise, eram afloradas nitida-
tuoso e livre dos antigos, e a arrogância descaradae a avidez de <<gloiro>e de <<for-
mente duas imagens irredutíveis de racionalidade científica. Lavoisier, Franklin,
tune>>dos modernos. Nunca se tinha visto em Atenas e Romã os intelectuais torna
Bailly, no seu papel de comissários reais, insistiam em afirmar que a pergunta-chave
rem-se tal <<parbrevet». Até então, nunca ninguém chegara a conceber algo de a colocar na avaliação do mesmerismo era a da existência, pelo menos, do fluido ani-
semelhante a <<descorps aussi bizarres que nos académies>>.
SÓ <<lesmodernes ont mal e da suacomprovaçãoexperimental:Para os adversários,o critério de cientifi-
introduit dans I'empire des sciences une espace d'aristocracie électivo>. Os custos cidade reside, ao invés, na verificação da utilidade prática do método de tratamento
destainstituição tornaram-sepesados segundoBrissot não só no plano moral e testemunhado pelas curas. De um lado, estava a defesa a todo o transe de uma ciên-
da convivência civil mas sobretudo para os problemas quc levantava ao processo do cia que, em termos históricos, acabara por coincidir totalmente com o método clás-
saber. Vendo bem, era exactamenteeste um dos pontos nevrálgicos do conflito. Tal
sico galilaico-newtoniano;do outro, voltava a propor-seuma forma actualizadade
como todos os corpos burocráticos, as academiasestatais tinham, na verdade, aca- racionalismo empírico-divinatório, qualitativo, morfológico, utilitarista que, como
bado por aplicar à comunidade cultural livre dos homens de ciência o manto pesado afirmámos, fascinava Denis Diderot e muitos estudiosos de formação rousseauniana.
de uma ideologia impermeável às novidades, alimentando um tipo de conhecimento Resulta inevitavelmente uma posterior contraposição do modo de conceber o homem
codificado, imóvel, normativo. Os grandes cientistas sentiam-se agora os <<déposi- de ciência e as instituições dedicadas à investigação: no primeiro caso, academias
taires infaillibles des verités»; cada novidade era apelidada de <<hérésie>>.
A afirma- estatais elitistas e selectivas profissionalizantes; sociedades populares, privadas, ani-
ção categórica que se torna o s/oga/z irónico dos charlatães, <(Hors de Newton point madas por amadores, no segundo caso.
de salut>>,criticava o carácter conservador e sistemático de um conhecimento típico Ressalta também destas breves reflexões sobre semelhantes casos isolados que o
de uma fase da ciência <<normal>>, diríamos hoje juntamente com T. Kuhn, através triunfo das ciênciasno final do século, a crise e os ataquesà racionalidadeclássica
do qual se exprimia abertamente o <<prqugéacadémique>>. Para entrar na corpora- do mecanicismofísico-matemático,a própria amplitude e profundidadedo conflito
ção, era preciso aceitar o paradigma científico dominante dos grandes mestres, <<en
entre os homens de ciência, para além do interesse específico que merecem em si mes-
répétant, en croyant scrupuleusementtoutes leurs idées>>.E que existe um fundo de mos, parecemexistir expressamentepara dissipar a dúvida, as.jntgrpretaçõesantigas
verdade nestas reflexões exacerbadas, não só o parecem mostrar as polémicas vio- e arreigadas sobre a ligação entre Iluminismo e ciência, um teplçPhiludível para quem
lentas contra quem ousava atacar as teorias newtonianas, mas também as palavras
quer aprofundara análisedo homemde ciência setecentist%êDjabidoque em 1932,
intransigentes de personagens poderosas e escutadas, como Samuel Formey que, já através de uma operação meritória e importante de reabilitaçã(i'do mundo das Luzes
em 1767, ao discutir com os primeiros <<demi-savants>> portadores de um <(faux da condenação romântico-hegeliana à qual estava associada -- muito embora proveni-
savoir», que então começavam a surgir na Alemanha, reclamava um <<demi-siêcle ente de outras vias e com outras motivações a escola marxista, Ernst Cassirer, ao
d'une... dictature», afirmando que se <<1'Egliseveile au dépât sacré de la réligion, publicar a sua obra Z)íe P/zí/osop/zíe der .4zí®/ãrufzg, estabelecera, nesse contexto, as
les tribunaux au mantien des leis, c'est aux académies à faire régner un savoir épuré, basesde uma leitura filosófica de cariz kantiano, leitura que, não obstante os ataques
solido>7. E a intervenção oficial das academias na controvérsia ruidosa do final do
e contínuas contestações,ainda hoje parece resistir como uma espéciede horizonte,
século veio demonstrar que não se tratava de uma simples ameaça.
por vezes também apenas de referência implícita, e surge em muitas obras após a
Em 1784, com a nomeação das comissões reais da Académie des sciences e da SegundaGuerraMundial. Definindo a filosofia do Iluminismo essencialmentecomo
Société de médecine, preparava-se em Paris o processo que visava estabelecer os fun um método, uma mentalidade,uma forma de pensamento,e não como um sistema
damentos científicos do magnetismo animal. Deconidos poucos anos, em Turim, a coerente de ideias, Cassirer situará a origem, o cunho mais autêntico na Revolução
Academia Real das Ciências mandava investigar o fenómeno da rabdomancia. Na científica e nas suasconquistas, indicando Repler, Galileu e Newton como seus pais
Alemanha, estudiosos ilustres dc universidades prestigiadas degladiavam-se em comis- espirituais. Segundo ele, o dado caracterizador da cultura das Luzes estava na nova
sões nomeadasexpressamentepara determinar as bases teóricas da fisiognomonia e
definição de razão, diferente da dos séculos anteriores e coincidindo com os preces'
de uma possível ciência morfológica da natureza, para lá da inquietante leitura mís sos de racionalização próprios do paradigma científico newtoniano.
rica apresentadapor Lavater e alguns círculos maçónicas. Pela primeira vez em ter- Na realidade, esta identificação rígida, exactamenteà luz do que se procurou
mos modemos, eclodia na Europa, a nível oficial, o grande tema epistemológico da demonstrar nas páginas anteriores, não parece vir comprovar os acontecimentos his-
referida demarcação.O que é a ciência? Quais são os critérios de cientificidade? tóricos dos anos 80. A crise dos finais do século xvm parece efectivamente vir dar
Quem os decide? E lícito impâ-los associando-os ao conceito de verdade? Nas actas
razão àqueles estudiosos que sempre preferiram ver o mundo das Luzes como um
fenómeno histórico particularmente rico e complexo, de fronteiras mais vastas e inde-
7 <<AIgreja zela pelo depósito sagradoda religião e os tribunais pela manutençãodas leis, cabe às finidas do que a suposiçãode Cassirer. O Iluminismo surgiu em muitos livros impor-
academias fazer reinar um saber aperfeiçoado, sólido>>. (N. T.)
tantes calmo uma tentativa extraordinária -- cuja natureza profunda é de tipo político
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por parte de um movimento de homens decididos a transformar a sociedade,atra- certezasdo universo-máquina newtoniano alimentaram as reflexões de um sector impor-
vés de uma batalha de ideias, a criar um novo sistema dc valores (tolerância, igual- tante do mundo das Luzes aLéao aparecimento do último volume da E/zcyc/opéíd/e,em
dade, liberdade, filantropia, felicidade, cosmopolitismo, etc.), expressãoimediata de 1764. O célebre retrato do Pbl/osop/ze de Dumarsais, considerado justamente uma das
uma sociedade civil moderna finalmente emancipadae liberta da pesadatutela da manifestações das Luzes, pertence na íntegra àquela primeira grande estação. Nele,
Igreja, das religiões confessionais e de uma ideia da política concebida até então ape diante de uma natureza /zor/oge com as suas leis matemáticas eternas e tranquilizado
nas ex par/e prípzczpíse nunca ex parte clvízlm. ras, se destacava a figura serena e orgulhosa de um novo filósofo capaz de dominar as
O homem de ciência fomeceu, sem dúvida, ao arsenal do movimento iluminista paixões e as emoções através do primado de uma razão crítica e metodológica. Deixando
armas e sugestões importantes para a elaboração dc um estilo de pensamento crítico para trás a religião e os seus mistérios, com ironia e distanciamento, em tons nitida-
e problemático, destinado a actuar, na realidade, com vista à sua transformação. mente libertinos, a única divindade agora reconhecida e venerada pelo p/zí/osop/zeera
E todavia, seria na verdade um empobrecimentodos principais conteúdose pers- a humanidade, em particular a socio/é cfvf/e, considerada mesmo, com manifesta von-
pectivas do movimento se permitíssemosque se equacionassemo Iluminismo, a sua tade iconoclasta, o &l/z/qlleZ)leu. A uma outra fase do Iluminismo pertence, ao invés,
imagem da razão e o método científico newtoniano. o retrato traçado por J.-L. Carta no seu opúsculo, surgido em 1782, com o título Sysrê/ne
Não existem dúvidas dQ,quese parte da hipótesehistórica de um novo grande sis- de /a falso/z o /e propbêre p/z//osop/ze.Aquelas páginas exprimem uma profunda
tema de valores, de unçuhiverso cultural e linguístico original (ou talvez os antro- mudança do clima intelectual e do contexto histórico. Sente-se ali a afirmação de uma
pólogos preferissem.falar de um novo sistemade crenças e de práticas sociais e cul- sensaçãode autêntica omnipotência do homem devido àquele triunfo da ciência que se
turais), e já não géuma forma específica de racionalidade, tornando-se deste modo mencionou anteriormente, às elevadas sugestõessuscitadas pelos balões aerostáticos e
mais fácil analisar o movimento científico e o iluminista como dois fenómenos dis- bem assim à difusão de uma imagem vital e dinâmica da natureza e ao reconhecimento
tintos, sel4aúvida interagindo sempre, mas também autónomosnas suasmotivações explícito de uma autonomia e da força do mundo das paixões no que se refere à razão.
de fundéf:tornar-se-iam eventualmente mais claros o papel e a função dos homens Ficando estabelecidoque a função histórica das Luzes é proceder à emancipaçãodo
de ciência católicos ou, de algum modo, organicamente ligados às instituições reli- homem, à criação de novos valores para uma sociedade civil moderna, o prof/zêre p/zí-
giosas, ou então animados de uma imensa necessidade de religiosidade, mas não lhes /oiopbe registava o neonaturalismo dos finais do século xvlll, as suas implicações polí-
dedicamosmuito espaço,não obstanteo seu indubitável relevo na cultura setecen ticas e filosóficas. o confronto existente entre as diferentes formas de racionalização
lista e o seu contributo para o progressoda investigação. Ao contrário do positivismo, científica, que articulavam e tornavam mais amplo e complexo o campo das faculda-
que muitas vezes vem indevida e polemicamente associadoquando nos referimos à des e dos instrumentos à disposição do homem. Se para Dumarsais só a ra/son podia
ciência (é exemplo disso a célebre Z)fa/effk der 4z /k/ãrÉlng, de Adorno e Horkheimer, e devia iluminar o filósofo durantea travessiadas trevas,caracterizandodessemodo
de 1947), o Iluminismo nunca considerou (com intenções manifestamenteideológi a estação das primeiras Luzes; para Carta, impunha-se antes registar que o arsenal à
cas)o sabercientíficocomoo culminardc todo o conhecimento
humano.Na sua disposição era agora mais vasto: a nova /rlnf/é óacrée do Iluminismo do final do século
árvore do saber dedicada à Enc c/opédíe, a partir d:ís faculdades do homem (razão, tornara extensiva à serás/bflí/ée à vérí/é o papel fundamental reservadoapenasà ral-
memória, imaginação), eram atribuídas igual dignidade e grande importância a todas son. O próprio tom da argumentaçãoentre a primeira e a última geraçãode homens
as formas do conhecimento com vista à realização utópica da cidade celeste na terra. das Luzes mudara radicalmente. As reflexões de Dumarsais pareciam tão serenase des-
Os p/zí/osopÀesamaram, estudaram, propagaram a ciência, mas revelaram também, tacadascomo se tinham tomado apaixonadas,fortes e declamatóriasas de Carta. <<Le
no que se Ihe refere, uma nítida posição de distanciamento e, por vezes, de crítica. premiar droit de I'homme escreveu este último, retomando as sugestões rousseaunia-
Não foi só Rousseaua inaugurar no século xvlll, como vimos, aquele movimento nas <<estcelui d'être, son second droit est celui de pensar.>>
que depois se viria a revelar cada vez mais forte e rancoroso da moderna crítica
moral, política e filosófica contra a ciência. No decursodo séculoxvm, muitos ilu- Je prédirai [es progrês de [a raison. . . ]a grande fami]]e des hommes será dono réu-
lninistas, de Voltaire a Condillac, a Boilly, interrogaram-se bastante tempo, em par nie un jour et ne será qu' une même sociétél Le code des loas naturelles será donc alors
ticular nos anos 80, sobre as origens remotas das ciências e, em especial, da revolu- la seule autorité donaon aura besoin pour conduire ]a multitude. L'égalité morde ne
ção galilaica e newtoniana, estabelecendo as basesde uma história das ciências como será plus um problêmel La distribution des biens será reglée par I'équité distributivo
história social e cultural dos outros saberes.Em suma, a experiênciaintelectual do et non par le caprice despotiquel... Le vice bas,les crimes célebresne serontplus des
cientista na épocade Voltaire não chegavasequer a esgotar a amplitude das refe droits pour être respectés; tour será une fois dana I'ordre, parce qu'enfin le systême de
la raison doit aussi avoir son tour.'
rências e a vontade política de transformação da realidade encarada pelo Iluminista.
Não significa isto que o homem de ciência não tenha querido um papel extraor-
dinário no condicionamento das características das Luzes. Pelo contrário, ainda que 8 «Prevejo os progressosda razão... a grande família dos homens reunir-se-á um dia e será uma e
mesma sociedade! O código das leis naturais será então a única autoridade necessáriapara conduzir a mul-
se tenha sempre de falar em condicionamento recíproco, não podem existir dúvidas
tidão. A igualdade moral deixará de constituir problemas A distribuição dos bens reger-se-á pela equidade
quanto à função da comunidade científica no que se refere às diferentes formas assu- distributiva e não pelo capricho despótico!... O vício baixo, os crimes célebres não serão mais direitos a
tnidas pelo Iluminismo no decursodo século. E sabido que o prestígio e as sólidas respeitar; tudo terá então uma ordem, para que chegue finalmente a vez do sistema da razão.» (N.7'.)

180 181
Tons proféticos estes do mesmerista Carta, provenientes da escatologia laica,
imbuídos de autêntica religiosidade. Na verdade, este modo de expressão não estava
isolado nem era comum apenas aos ambientes dos partidários das «ciências popula-
rep>. Basta lermos o Esq éssed'uiz rab/ea de /'espr/í /zulncz//z,daquele inimigo figa
dal do mesmerismocÜe foi Condorcet, para nele encontrarmoso par/zosreligioso do
propbêre pbílosop/z# Sucede que a nova estação das Luzes que acompanhava o Outono
do século via como protagonistasfiguras diferentesdas de um passadorecente.
A entrada nas lojas maçónicas de toda uma geração de intelectuais educados segundo
os ideais da E/zcyc/opédíemudava radicalmente a atitude em relação às representa-
ções da história inquietante da religiosidade e das suas potencialidades de se tornar
CAPITULO VI
um instrumento extraordinário dc comunicação, verdadeiramenteideal pela sua sim-
plicidade e facilidade de activação de uma relação eficaz entre alto e baixo na difu-
são das Luzes. E com este Iluminismo profético do fim do século, imbuído de radi- OARTISTA
calidade política e destinado a tornar-se o verdadeiro terreno de cultura da mentalidade
revolucionária, que se encontrou a massade que é feito o homem de ciência dos por Daniet orasse
anos 80. A sua influência, através do triunfo das ciências, foi sem dúvida reveladora
das esperanças e ânsias de resgate desencadeadas,alimentando assim, com o seu neo-
naturalismo, com a imagem de uma ordem natural que se transforma e muda, a ideia
revolucionária de poder mudar também a ordem social e regenerar o homem, criando
o cidadão. Neste sentido, afiguram-se reveladoras as célebres palavras proferidas por
Robespierre em 1794: <<Touta changé dans I'ordre physique et tour dois changer dana
I'ordre moral et politique.%Mas ondeo cientista e o iluminista encontraramno final
do século Xvm o modo de sc influenciar mutuamente foi sobretudo na reflexão com-
plexa que determinou a mudança semântica, do campo religioso tradicional para o
laico, de um conceito terrível e ao mesmotempo sugestivo:a verdade.A palavra
verdade parece efectivamente obcecar os iluministas de todas as nacionalidades: de
Condorceta Lcssing, a RadiÉéev,a Filangieri, cada um atribui-lhe funções e signi-
ficados carregados de intensa religiosidade laica, identificando o poder de comuni-
car conquistas do pensamento,valores e esperanças.Entre os cientistas, o processo
rápido de apropriação daquela palavra mágica surgira durante os últimos anos do
séculoxviii e deixavajá entrever a sua transformaçãoem dogma férreo no século
seguinte! Enquanto Galileu, na sua luta com o teólogo, hesitara e retrocedeu, con-
tentando-secom a chamada dupla verdade, o prof/zêre p/z//osop/zee cientista Condorcet
não revelara qualquer dúvida em reivindicar, com orgulho, a verdade da ciência e da
razãocomo única e eterna, relegando definitivamente para segundo plano as antigas
pretensõesdos teólogos. Em suma, o homem de ciência da época das Luzes havia
conquistado,na íntegra,até às consequências
extremas,o direito de se tornar de
futuro, no bem e no mal, um dos protagonistas absolutos da história humana. Podia
dar-se finalmente por concluída a longa marcha iniciada no mundo antigo, inter-
rompida e depois retomada na época moderna com a Revolução científica.
/

182
A exposição na Royal Academy, em 1793, do incubo de Johann Heinrich Füssli
(Detroit, Institute of Ans) foi um acontecimento.Nunca se vira um quadro assim:
não pertencia a nenhuma das categorias em que se enquadram a produção e a recep
ção da pintura da época (história, género, retrato ou paisagem), e não se nota, em
particular, o objectivo de agradar.O seu tema está, sem dúvida, relacionado com
aqueles assuntos aterradores que conhecem enorme êxito na Inglaterra do final da
século xvlll: a exposição da Roya] Academy apresentavatambém a Z,lr/a entre São
Àdigue/e Saranás,de Benjamin West, o r'an/as/zzade C/í/em/zes/raQue l)esperta as
F'árias, de Downmann, e o ralo Q íe Deselzcadeía u/?zaTe/lzpesrade, de Mana Cosway
Mas o .f/zcubonão envolve nenhumareferênciaculta, e os monstrosde Füssli ape
nas conseguem afectar um contemporâneo. O pintor pretende agitar o seu especta-
dor; o próprio HoraceWalpole não se enganaa este respeito, considerandoa obra
«chocanto>.
Contudo, o quadro não é condenado; tem, muito pelo contrário, um êxito retum
banheque garante imediatamente a Füssli uma glória mundial: alguma imprensa
difunde a imagem atravésda Europa e, ao longo de toda a sua carreira, até aos anos
1810- 1820, o /pzclzóoacompanha Füssli através de reproduções, cópias e versões que
é convidado a fazer da sua obra-prima. Se este quadro é um dos mais célebresda
época, isso deve-se ao facto de satisfazer múltiplas expectativas de natureza diversa,
a ponto de hoje em dia poder ser considerado como exemplo da complexidade ine-
rente à inspiração c dos objectivos com que o artista e o público do Iluminismo se
identificavam.
Porque, por mais surpreendenteque possaparecer à primeira vista, o /Rouboé
uma obra <(iluminad»>. Füssli denuncia nela as crenças supersticiosas que continuam
a atribuir aos íncubos a intervenção de seres sobrenaturais nefastos (íncubos, súcubos
e outros espíritos), que vinham perturbar o sono, possuir e aterrar o espírito daquele
ou daquela que dormia. De acordo com as teorias médicas e filosóficas modernas
(que são retomadas por Kant em 1798 na sua obra Á/zrropo/agia Praz//záfíca), Füssli
pensa que os íncubos possuem causas fisiológicas concretas, e a segunda versão do
/}zcubo (1790-91, Francoforte) é concebida de modo a servir de base a uma das qua-
tro ilustrações que ele realiza para o BofaPzíítarde/z de Erasmus Darwin, o qual irá
aprofundar, na sua Zoo/agia or f/ze Z,aws of arfa/zíc Z.iHe(1794-1796), as análises
dos mecanismos fisiológicos do sonho.
Todavia, a força do impacte do i zc rbo não depende da concepção filosófica que
o inspira mas, pelo contrário, do facto de, para dar forma a esta concepçãoilumi-
nada,Fiissli ter utilizado o material mais tradicional do folclore e da superstição que

185
«sensata adopção das figuras na arte>>;o verso da tela revela que ela já está inves-
ataca.O quadro afirma que os monstrossão produtosdo íncubo e não a sua causa tida de uma função quasemágica,que indica até que ponto a intimidade subjectiva
mas a evidência da imagem confere-lhes uma realidade equivalente à do corpo da do artista do Iluminismo pode abrigar paixões pouco iluminadas.
jovem adormecida e impõe a sua presença aterradora (verifica-se uma intenção meti- O pensamentovai de novo para a gravura de Goya. Os seus monstrosnão são
culosa no sentido de realçar que o contorno do íncubo é esfumado, inexistente, em íncubos de existência improvável. As corujas e os morcegos criados pelo sono da
comparaçãocom o desenhonitidamente definido do corpo contorcido daquelaque Razão são animais noctívagos muito reais e, juntamente com imagens nefastas,
dorme). A dialéctica paradoxal de Füssli prenuncia exactamente aquela em que alguns encontram a sua origem na iconografia clássica (em particular, a dos livros de sím-
anos mais tarde irão assentarmuitas das obras de Goya, artista <<iluminado>>,
inven-
bolos). Na gravura de 1797, Goya afirma também que a sua linguagem é <<univer-
tor das trevas. O /ncubo faz-nos pensar sobretudo na sua famosíssima quadragésima sal>>.A sua gravura deve ser entendida como uma alegoria: «clara, expressiva, elo-
terceira gravura dos CaprícAoi publicados em 1799: O Sorgoda Razão Origina quente>>,segundo os termos utilizados por Gravelot e Cochin na sua /co/zo/ogle pízr
À/o/zsfros.Numa versão anterior, de 1797, esta gravura apresentavauma inscnçao
.#gures, pub]icada em Parasentre 1765 e ]781. Mas a legenda da imagem afirma
em que o autor declarava pretender apenas '<denunciar os preconceitos perniciosos e também que o homem adormecido, cujo sonho origina estes monstros, não é senão
perpetuar, através da obra Capric/zos, o testemunho imutável da Verdade>>.Como o <<autor>>,
portanto Goya em pessoa,que não está livre das loucurase das supers-
Goya, FÓssIl traduz em imagens os preconceitos e as superstições unicamente para tições que condena, dando mostrasde conhecer o remédio. Inicialmente, O Sorgoda
melhor os combater.
/?anãoOrigina /b/onsfros deveria servir de frontispício a uma colecção de gravuras
Esta comparação entre Füssli e Goya toca num dos maiores paradoxos que toda intitulada Os Son/zos.Transformadaem Os CaprfcAos,a colectânealeva no fron-
uma família de artistasdo Iluminismo tem de enfrentar: o elo indissociável e con-
tispício um Á ffo-refraía com expressão de desprezo, como se o artista tivesse esmo
traditório entre a claridade luminosa da Razão e dos Princípios (que inspiram o artista)
Ihido iniciar com uma imagem apotropaica de si mesmo a descrição das terríveis
e a força inesgotável das Trevas contra as quais precisamenteos homens do Iluminismo experiênciasnocturnasde que a obra é testemunho.Goya afastar-se-ábastantede
declararam guerra. A concepção diurna do neoclassicismo, em particular na sua forma Füssli na sua procura fundamental das forças das Trevas; afinal de contas, e como
davidiana, afirma sem qualquer ambiguidade a sua confiança na perfeição da socie- salientou Jean Starobinski, este último mantém-se <<dolado de cá do disforme e do
dade e do indivíduo humano.A sua energia, tensae voluntarista, representaa pró- ignóbil>>.Pelo contrário, o furor de Goya contra as Trevas tem <<algode nocturnos
pria manifestação desta confiança. Mas a arte de David não é senão um aspecto, par- e confere ao escuro, que ridiculariza, «um aspecto duro e maciço, que já não é pos-
ticular e original, do neoclassicismo. Com efeito, não chega a esgotar a sua riqueza sível expulsar do nada>>.
Assim, não se poderiam compreenderos artistas do
e, como é impossível levar exclusivamente o neoclacissismo davidiano até à Revolução Iluminismo, nem pretender apresentar o quadro conjunto, supondo que fossem guia-
Francesa (ele começou muito antes de 1793 e até de 1789), também não é possível dos por uma unidade de inspiração luminosa. Não só os diversos artistas, segundo
ver na moda crescente do terrível e do obscuro o sinal de uma ilusão de fim do século
os lugares e os momentos, são animados por tendências diferentes e efectuam esco-
em relação à Razão. A Procura da Be/o e do Sub//urze, de Edmund Burke, confere as lhas artísticas, filosóficas ou políticas diversas, como é no íntimo do próprio artista
basesteóricas ao prazer trazido pelo obscuro e pelo terrível. Ora, a Procura remonta que se podem confrontar as instâncias mais contraditórias entre a Luz e as Trevas,
a 1757 e, já a partir de 1758, o racionalíssimo Diderot considera, no que Ihe toca, entre Paixão e Razão. É este choque que confere à arte do iluminismo a sua ener-
que a poesia <<exigealgo de enorme, de bárbaro e de selvagem>>.Sucede que o Século gia mais forte, que a razão se afadiga a dominar a bestialidadeobscura e a Luz a
das Luzes é também o da Sensibilidade e do Sentimento, e esta sensibilidade deli-
fazer recuar a Sombra, ainda que, na sua resistência à própria revelação, as figuras
cada pode virar-se catastroficamente e desencadearpaixões e pulsões obscuras. da Noite se vejam detentorasde uma vitalidade fascinante e irresistível, como se
O encaixe dialéctico entre a Claridade e as Trevas encontra-seno âmago da inspira-
nelas residissem as fontes profundas da vida.
ção artística do Iluminismo. Por isso mesmotambém,o /Roubode Füssli é signifi- Quaisquer que sejam as opções e as formas estilísticas adoptadas, os artistas do
cativo, já que a sua primeira versão, realizada à margem de qualquer encomenda, Iluminismo comungam de uma mesma ideia: de formas diversas, todos possuem uma
obedecerá provavelmente a motivações tanto pessoais como profundamente <<tene- elevada consciência da sua arte, da missão dela na sociedade. Para o Iluminismo, a
brosas>>.
Como que em segredo, FÓssIl pintou na parte de trás da tela o retrato de dignidade e a legitimidade da criação artística ultrapassam as consideraçõesmorais
uma jovem. Tratar-se-á possivelmente da sobrinha de Lavater, Anna Landholt, por ou sociais que a obra veicula aquém e além da sua qualidade meramenteformal.
quem Füssli se apaixonara perdida e desesperadamenteem Zurique, em 1778. A partir dos anos 30 do século xvlll, William Hogarth desenvolve uma nova forma
Concebido, por conseguinte, rec/o-verso, o /nczzóotem todo o aspecto de um sorti- de <<pinturahistória»>: através de uma série de quadros (oito cenas para The Rale'i
légio lançado de longe à amante inacessível: o pintor pretende obsidiar as noites
Progress entre 1733-1735, seis para l/arrfage à /a nzode entre 1743-1745), ilustra
daquela que possui apenas em sonhos, em sonhos semelhantes ao que descreve numa uma moralidade contemporânea. Considerando-se, segundo as suas próprias palavras,
carta a Lavater. em 16 de Junho de 1779. Portanto, ainda que no avesso de um qua-
um <<Pintorde História cómica>>(Camlc Hísfoly Paí/z/er), não apresenta como exem-
dro, as figuras da jovem, do monstro e da égua são inspiradasem modelosda plos os próprios valores,mas pinta os aspectosridículos e os vícios da aristocracia
Antiguidade e do Renascimento,se bem que Füssli recorra a uma <(invenção>>,
Ja e das classes médias. 4 ironia deve ajudar a corrigir os costumes e, para que a lição
baseadanaqui]o a que chamaráem ]801, numa conferênciana Royal Academy, a
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seja mais eficaz, Hogarth difunde-a através da gravura, escolhendo temas que foi de moral na arte pode ser convencional, conservadora e até obscurantista. Mas, tal
buscar a obras teatrais ou a romances célebres. Esta mesma atitude leva-o, para refor- como foi então formulada, a ideia da responsabilidade social do artista tem o valor
çar um pa/ zp/z/efde Fielding sobre os danos causadospelo alcoolismo, a mandar de uma crítica contra a decadência e a corrupção da sociedade contemporânea.Tal
publicar em 1751 duas gravuras complementares: G/pzl,ane e Beé'r Sfreé,f. Venda como o escritor sartriano,o artista do Iluminismo age <<porrevelação>>
e a sua obra
bem, a moralidade social de Hogarth é conservadora e o preço elevado das suas gra- <<apela
à liberdade>>
do público. Diderot quer que se pinte <<comose falava em Espart»>
vuras obsta à difusão popular, mas o artista promove as ideias e os interesses da e Winckelmann, historiador-teórico do regresso ao antigo, afirmava que só a Liberdade
classe média iluminada -- cujo apreço Ihe garante, em troca, dignidade. pode levar a arte à perfeição, conforme o demonstra abundantemente,segundo ele,
Apesar de todas as ambiguidades para que Jean-Baptiste Greuze se vê arrastado a beleza incomparável da arte grega clássica.
pelo seu arrivismo e do seu fraco pelo êxito na sociedade, a <<pintura moral)>, de que Importa, porém, salientar desdejá que esta concepção da missão do artista não
é arauto, progride com semelhanteambição. Ê neste sentido que Diderot o entende implica uma consciência política revolucionária e a revolução artística operada não
e enalteceem ]763, convencidoda <<coragem>> de Greuzeem <(pregara moral atra- é em nada equiparável à revolução política que está para se realizar em Fiança. Como
vés da pintura>>,
<<em
nos comover,instruir, corrigir e incitar à virtude>>.
E Baudouin veremos mais adiante, não só é encorajada pelos dirigentes políticos a vontade de
retoma este ponto em 1765, estabelecendo uma comparação (cuja conclusão é reve- moral e de seriedade na arte, como se encontram artistas neoclássicos tanto conser-
ladora) entre Greuze e o género de Boucher, nos seguintes termos: <<Greuzetornou-se vadores como progressistas ou revolucionários. Neste aspecto, a evolução de Antonio
um pintor pregador dos bons costumes, Baudouin, pintor pregador dos maus; Greuze, Canova constitui um exemplo. Em 1799, a sua obra Z)éda/o e /caro é muito admi-
pintor de famílias e de gentehonesta; Baudouin, pintor de casasde prazer e de liber- rada em Romã, mas o artista é convidado a temperar o seu virtuosismo realista em
tinos. Mas, felizmente, ele não possui nem escola, nem génio, nem cor, e nós temos nome do ideal grego-romano.Em 1783,demonstracom Tese e o it4ínolal/ro que a
o génio, a escola e a cor, e venceremos.>> lição foi compreendida e os ecos morais e políticos da obra ostentam a marca de um
Os dois quadros (Saf/zr Roc/ze /iéZfsízfre) que David apresenta no Sa/on em 1781 artista <<iluminado>>.
Renunciando à sua ideia original (a contenda de dois antago
são bastante significativos. Saí/z/ Roc/z í/z/erceída/z/ ízuprés de /a Víerge po !r /ex pes- nestas), Canova representa Teseu sentado triunfalmente sobre o corpo do monstro
te/Hrésde it/arde///e dá resposta a uma encomenda do Bureau de la Santé Publique, morto. O seu Minotauro inspira-se num quadro de PI/zfaras Ánfígas de Ergo/ano e
destinado a comemorar a epidemia de 1720. Reportando-se à iconografia tradicional ,4rredorei e o seuefeito brutal de realidadecontrastacom a perfeição idealizadade
do santo intercessor, David salienta a infelicidade e o desespero dos que estão con- Teseu, cujo corpo constitui uma actualização perfeita daquela tranquilidade nobre,
taminados, muito embora não enalteça a própria intervenção. É possível ver nesta daquela <<grandezaserenm>em que Winckelmann individualizada os sinais distinta
interpretação singular um ataque velado à Igreja, que parecia mais indiferente à sorte vos da perfeiçãoclássica.A obra é aclamadacomo <<oprimeiro exemplo em Romã
dos pobres do que à dos ricos, a partir do momento em que, das quarentamil víti- da ressurreiçãodo estilo, do sistema e dos princípios da antiguidado>. Como recom-
mas em 1720, apenasum milhar detinhauma posiçãosocial superior à de operário pensa por esta obra-prima e não obstante o estado preocupante das suas finanças, o
ou artesão. Preferindo, ao invés, pintar um /ié//salte para a sua recepção na Académie Senado veneziano atribui uma pensão anual ao jovem Canova. Mais do que o êxito
Royale, David adopta um tema que estava na moda pelos seus reflexos políticos, artístico, é evidentemente o conteúdo político da escultura que se premeia desse modo.
sobretudo após a publicação em 1767 do romance moralizador de Marmontel. Na Vencedor idealizado do monstro de Creta, Teseu encama o patriotismo da Sereníssima
segunda metade do século xvm, a figura de Belisário, general que a injustiça cínica República: depois de ter perdido as suas últimas possessõesem Creia em 1715, Veneza
e a ingratidão do imperador Justiniano reduziram à mendicidade, representava um teve de ceder o Peloponeso aos Turcos em 1718 e em 1770, não pede fazer nada
esteio ideal para a propagandasocial e política dos reformistas liberais e dos con- quando estes reprimiram brutalmente uma sublevação na ilha de Creta. Este ideal da
servadoresmoderados.A escolha de David era tanto mais oportuna quanto o conde Liberdade que triunfa sobre a bestialidade constitui, todavia, uma excepção na obra
de Angiviller, director das Construções reais desde a ascensão ao trono de Luís XVI de Canova.Nos anos80, as forças reaccionáriaslevam a melhor em Venezae deter
(1774), era amigo pessoal de Marmontel, ele próprio secretário da Academia de minam, em particular, o desaparecimentodo movimento liberal dos Bernabotti a que
r
trança os comitentes de Canova estavam indirectamente ligados. O idealismo de Canova
Seria possível multiplicar os exemplosque, no âmbito de génerosmuito diver torna-se mais conservador, quase nostálgico, como se a beleza eterna dos antigos não
sos, atestam o empenho moral, social ou político quc está na base das escolhas do pudesse voltar a ser captada senão no reflexo de uma ausência irremediável. De qual-
artista <<iluminado>>.
A E/zcyc/opédíe retoma esta concepção afirmando, com o termo quer modo, quando em 1799 os visitantes francesesdo seu a/e/íé'r em Romã viram
<<interessante>>,
que o artista deve ser <(filósofo e homem de bem>>e que o interesse o seu Hérc l/es e Z,lca, uma alegoria do Hércules francês que derruba a monarquia,
de uma obra reside no seu conteúdo moral e social. É esta concepçãode La Font de Canova afirma que nada no mundo o faria representar aquele tema e que a figura de
Sant Yenne, inventor da crítica de arte na acepção moderna, quando pede, em 1754, Liça poderia simbolizar também a degeneraçãoda Liberdade. Esta respostaé sufici-
que os quadros de tema histórico sejam <'umaescola de costumes>>e tenham como ente para demonstrar como o ideal de Liberdade que, segundo Winckelmann, levara
tema as acções virtuosas e heróicas dos homens grandes,exemplos de humanidade, a arte à sua perfeição, não se podia comparar ao que a Revolução Francesa se esfor-
de generosidade, de grandeza e de coragem. A ideia não é in.ovadora e esta vontade çava por difundir através da Europa.

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Não é, portanto, sob o signo da política que a vontade de seriedade e de moral ram para fazerem reinar dentro de si o antigo vigor [...]. O primeiro homem, os pri-
na arte consegue reunir os artistas do Iluminismo. Na segunda metade do século XVlll, meiros povos receberama totalidade da arte e do saber:a história limitou-se a obs
manifestar uma atitude iluminada no campo da arte significa antes de mais recusar curecer o nível da luz primitiva>>.
tudo o que se refere ao Rococó. Esta recusa pode revestir o aspectode uma reacção Esta abordagemintelectual e austeraconstitui um dado comum a todos os artis-
nacional contra um gosto estrangeiro. Na Alemanha, vem juntar-se-lhe um sentimento tas do iluminismo e contribui para a renovação da consciência teórica que os artistas
antifrancês: o Rococó e o estilo <<rocaille>>
estão intimamente ligados ao gosto que têm da própria criação. É um aspectode importância capital porque a reflexão racio-
triunfou na épocade Luís XV. Em Inglaterra, a mudançade estilo que se processa nal que durante aquele período acompanha a produção artística leva ao reconheci-
no início do reinado de Jorge Tll é nitidamente encorajada pelo arquitecto Robert mento progressivo do papel desempenhado pelo irracional na obra de arte, na sua
Adam em nome da <<simplicidadedecorosa>> própria da tradição anglicana, que con- criação e no seu uso. Podemos verifica-lo em dois campos privilegiados: a definição
trapõe à profusão e à magnificência que rodeiam o fausto da Igreja católica romana. do génio criador e a reelaboraçãoda noção básica do Sublime.
Mas a tendênciaé europeiae, a partir dos anos 70, triunfa igualmentena ltália e na A difusão extraordinária das academiasconstitui a base e o próprio sinal desta
França e também na Alemanha e na Inglaterra, nos círculos aristocráticos bem como evolução teórica. Em 1720, existem somente 19 academias na Europa, das quais
na burguesia em ascensão.Pal'aalém das divisões nacionais, políticas ou sociais, a apenasalgumas garantem um ensino artístico; em 1790, conta-se mais de uma cen-
recusa do Rococó é a recusa de uma arte concebida como um luxo privado. Artistas tena, de Filadélfia a São Petersburgo.Uma das fundações mais significativas é a
c comitentes condenam as suas graças <<frívolas>>,
dando preferência a um ideal de que teve lugar em 1768, a da Royal Academy de Londres, resultando do encon-
belezaracional e universal, assentena nitidez da linha pura. Para Füssli, a arte atinge tro entre a vontade do monarcae um movimento geral da sociedade,no qual par-
a sua finalidade se segue <<osditames da moda ou os caprichos de um protector>>; ticipam quer os industriais, quer os homensde negócios (fundadores de uma Society
segundo Reynolds, <<aobra que agrada numa única época ou numa única nação deve for the Encouragementof Ans, Manufacturas and Commerce, a actual Royal
o seu sucessoapenasa uma associaçãolocal ou acidental>>.A nova arte afirma-se Society of Ans), quer os artistas, estes últimos divididos entre a Frei Society of
antesuniversal como a Razão;é ao público o mais vasto possívele, além disso, à Artists e a Society of Artists of Great Britain, de onde saiu a maior parte dos mem-
humanidade enquanto tal, aos homens de todos os países e de todos os tempos, que bros fundadoresda Royal Academy. Inspiradas no modelo francês, as conferên-
ela deve dirigir a sua mensagem de grandeza e de virtude. cias da Royal Academy terão uma enorme importância na medida em que o artista
Na pintura, os efeitos da cor e da matéria são particularmente suspeitos, <<super- deve ser teórico em si mesmo: ciente das razões que o inspiram e guiam, coloca
ficiais>>; uma vez que se dirigem aos sentidos, podem ser percebidos de modo dife- a sua criação em relação com os exemplos grandes do passado e as mais altas exi-
rente pelos diversos indivíduos. Opondo-se à graça das cores e ao não sef quê que gências artísticas.
constituíam a base dos prazeres mais apurados, a linha é a lição da Natureza e o pró- A vivacidade e a actualidade desta abordagem intelectual (bem como o seu carác
prio Rousseau, embora sensível, não deixa de se aperceber que, <<semas linhas, as ter europeu) manifestam-se através do interesse dedicado aos livros de teoria da arte,
cores não servem de nada>>.
Mais <<natural>>
e universal do que a cor, a linha é ainda testemunhado pela quantidade e rapidez das traduções efectuadas de uma língua para
mais <<verdadeirn>. Segundo Schiller, o <<contorno puro>> dá uma <<imagem mais fiel>> a outra. Bastamalgunsexemplos: o Essassur /'Árc-/zí/ec/ re, de Langier, publicado
do objecto. Para Reynolds, ela deixa ver <<aforma exacta que cada parte da natureza em França em 1753, encontra-se disponível em Inglaterra a partir de 1755; o //aqui/y
deveria ter>>.ParaWilliam Blake, a simplicidade linear não é apenas<<oornamento i/z/o //ze Beauffes ofPaí/zfíng, de Daniel Webb (1760), surge em França em 1765, na
mais nobre da verdade>>,
mas um seu atributo essencial Alemanhaem 1766e, por fim, em Itália em 1791;Á Hfsfórla da Árfe Anríga de
A difusão irresistível do neoclassicismo fica também a dever-se ao facto de, com Winckelmann (1764) é traduzida para francês em 1766 e, em 1765, Füssli foi o pri-
este estilo de vocação universal, se ter a sensaçãode redescobrir a tradição europeia meiro a traduzir para inglês um texto de Winckelmann (as suasJ?ePexões
Sobre a
mais antiga, a das pinturas lineares dos vasos gregos e a da simplicidade linear dos [mitação das Obras Gregas na Pinturcl e na Escuttura].
italianos primitivos: Goethe admira deste modo Flaxman pela sua capacidade de reen- O artista do Iluminismo surge assim como uma figura nitidamente moderna de
contrar <<oespírito inocente das escolas italianas primitivas>>. A recusa das tendên- criador, distanciado tanto do artesão como do perito, apenas dotado de habilidade
cias <<afectadas>>
do Rococó é consideradanão só como um triunfo da Razão, mas técnica, como do artista que serve com condescendênciao seu comitente, que faz
como um regressoàs próprias origens da arte europeia, antesda sua conupção social. fortuna devido à elegância das suas pinceladas, através de retratos ou pinturas gra-
Não se trata de um caso em que, nos primórdios da pintura, os artistaspreferiam o ciosas. Depois de Winckelmann ter convidado os pintores a <<molharemos pincéis
mito da filha do oleiro de Corinto, que desenhaa sombrado perfil do seuamante no intelecto>>,os artistas iluminados pensam. Se Greuze declara abertamente que mer
projectada num muro: para a época, o desenho beneficia do valor incomparável de gulha o seu pincel <<nocoração>>,Diderot acrescenta algumas observações pertinen-
ter sido o instrumento mais antigo da representaçãopictórica. Incitando deste modo tes; neste artista completo, Sensibilidade e Razão caminham lado a lado: <<seriadeve-
os artistas a <<reacenderema chama da antiguidade>>,Quattremêre de Quincy convida ras surpreendente que este artista não sobressaísse. Possui espírito e sensibilidade; é
a uma levo/zzçãoque é ao mesmo tempo uma reis lrreíçâo. Como escreveJean entusiastada sua arte; ]eva por diante estudossem fim [...]. Medita num assunto;
Starobinski, os modernos esforçam-se <<poresquecer os procedimentos que aprende- obceca-o, persegue-o. Por fim, o seu carácter é afectado>>.E retoma este mesmo tema

190 191
F'

dois anos mais tarde, em 1765: <<Elee Chardin falam muito do seu próprio talento, Para o abade Batteux, que publica em 1746 Z,ei Beízux-Ár/s réduirs à f/z mê/ne
Chardin com discernimento e sangue-frio, Greuze com calor e entusiasmo.>> prlPzclpe,a situação deve ser clara. Contra o abadeDu Bos, cujas ReWexions
crífí-
O entusiasmo intelectual e sensível de Greuze é um sinal da época. O gosto pela q es sllr /a Poésie e/ /a Pefnfure (1719) deixavam uma certa margem ao irracional
na inspiração poética (<<Épreciso ser inspirado por uma espécie de furor, para pro-
teoria da arte renova o conhecimento que os artistas adquirem da sua própria activi-
duzir belos versos>,),Batteux detemlina que génio e razão são indissociáveis. O génio
dade, a partir do momento em que o Iluminismo conseguefazer convergir sobre a
Razão o papel desempenhado pelos factores irracionais na criação e na recepção das é <<umarazão activa que se exerce com arte sobre um objecto, que. procura laborio-
obras de arte. Sem dúvida, um dos contributos fundamentais da época é ter radicado samente todos os aspectos leais; todos os que são possíveis [...]. E um instrumento
a racionalidade concebida segundo as suas intenções <<diurnas>>
numa concepção com- iluminado que procura, escava,penetra sub-repticiamente>>.
Os homens de génio não
inventam nada de novo, não conferem <<aessência a um objecto>>,reconhecem-no
plexa do génio criador e numa reelaboraçãodecisiva da noção de sublime.
A partir de 1750, a 4esf/ze/fcado alemão Baumgarten revoluciona as concepções <<nolugar e no modo em que está>>.Esta posição rígida mantém-se durante todo o
tradicionais. articulando de um modo radicalmente novo a ideia do conhecimento de século. É, com alguma diferença subtil, a de Condillac: todo o mérito dos génios
que a obra de arte seria veículo e de que ela apresentariaa experiência. A estética consiste apenasem <'observar,encontrar e imitar>>;a partir do momento em que a
constitui um campo em que o <<princípioda razão>, condição de todo o conhecimento imaginação se afastada <<analogia
com a natureza>>, <<sóconsegue criar ideias mons
truosas e extravagantes>>(Z)fc/ío/znafre des Sy/zo/zy/7zes,1758- 1767). Para D' Alembert,
distinto, não tem poder. Mas, neste campo específico,Baumgarten reconheceum
o génio artístico assemelha-seao génio <<lógico>>:
<<ele
revela com delicadeza as bole
valor específico: a relação estática é o lugar e a ocasião de uma <(percepçãocon-
fusa>>,
o que equivalea dizer dc uma percepçãoem que o todo se revela no seu zas ocultap>. No artigo <'Entusiasmo>>da EI/zí c/opédle (1755) refere-se que, longe
aspecto imediato, sem que seja possível abstrair os elementos isolados que o com de ser <wma espéciede furor>>ou um <<transporte>>,
o momento de entusiasmo asse
molha-se <<aoque sucede na alma do homem de génio, quando a razão, com uma
põem. A experiência estética pertence, então, a uma esfera pré-conceptual que a
Lógica não deve conhecer, mas que tem uma lógica própria, a das <<faculdadesinfe- operaçãorápida, Ihe proporcionaum quadro assombrosoe novo que o faz parar, o
comove, o arrebata e o absorve [. . .] . As pa]avras imaginação, geí/zlo, espú'/ro, ía/erz/o
riores do conhecimento>>.Baumgarten respeita sempre a autoridade da Razão, mas
não passam de termos inventados para exprimir as diferentes operações da razão>>
concebe a Estética como uma <(gnoseologiainferior>>: também as <<faculdadesinfe-
riores>>da alma são comandadaspor uma Lei que lhes é inerente e que, apesarde Para o final do século, Joscph-Made Chenier irá adaptar estas fórmulas ao gosto da
<<inferiop>,não deixa de ser uma Leira relação estética com o mundo encontra-se época: <'E o bom senso, a razão, que faz tudo [...]. E o génio é a razão sublime.>,
definida como uma <<doutrina
do pensarem beleza>>
(czrsp l/Garecogífandl). O pen- Todavia, no artigo <.Génio(filosofia e literatura)>»da E/zcyc/opédle,vem referido
samento de Baumgarten determina a partir de então uma nova concepção do génio que o génio se encontra ligado a uma determinada forma de sensibilidade, que é pró-
artístico: dotado de extrema receptividade, de força e capacidade de imaginação, mas pria de um certo tipo de indivíduos e não de um talento do qual cada homem pode
ria ser natura]mente dotado: <o homem de gérzío [...] possui um modo de ver, de
igualmente de perspicácia intelectual (dísposírío na/zzra/ís ad perspfcacfam), o génio
sentir, de pensar, que Ihe é característico.>> Assim, a razão já não é a qualidade essen-
é o corolário de um dom particular, o do inge/ziu/zzve/zusfum.Longe de ser um soma-
tório de qualidades que é possível separar em partes individuais, o f/zgeiz/zz/zz ve/za.ç-
cial do génio artístico; a criação torna-se o fruto de uma sensibilidade e de uma ima
fum é <.umaatitude, uma impressão espiritual conjunta que comunica as suas pró ginação sobre a qual não impera a Razão.
Diderot desempenhanesta transformaçãoum papel tanto mais siginficativo na
prias cores a tudo o que colhe ou absorve>>;é um estado de alma que nascecom o
artista. A força inovadora da Áesf/zeííca não depende unicamente do facto de se que- medida em que possui inúmeros contactos com os artistas contemporâneos, por oca-
rer instituir com ela uma Lógica inerente às «faculdades inferiores do conhecimento>> sião das exposições bienais da Académie Royale. É seu crítico de 1759 a 1781, por
no seio de um sistema filosófico. Pretende ser também uma <<doutrinado homem>>, conta de Z,ízcorresporzdarzce/ífféra/re de Grimm, e difunde desse modo pelas cortes
uma antropologia iluminadas da Europa a nova concepçãointeriorizada do génio criador. Desde 1746
perder verá em Baumgarteno <(verdadeiroAristóteles do nossotempo>>Na rea- que afirma nos Pensõespàf/osop/ziq les que <<somenteas paixões, e as grandes pai-

H lidade. a sua influência conserva-semuito limitada e os artistasdo Iluminismo não


lêem as suas obras. Todavia, o seu pensamento representa um ponto de referência
xões, podem elevar a alma às coisas grandes. Sem elas, não resta mais nada de
sublime>>.De seguida, e apesarde insistir no papel da Razão como factor de equilí-
teórico e histórico fundamental porque é portador, em termos filosóficos e no campo brio na criação, Diderot exalta o sentimento e, em particular, o entusiasmo, contra-
da arte, das consequências da tal reabilitação das paixões para que o século concorre, pondo, deste modo, no seu Sa/o/z, de 1767, o filósofo que é <«óbrio>>ao entusiasta
aquilo que Cassirer chamou <<aemancipação da scnsibilidade>>. que é <<ébrio>>.
Impõe-se, todavia, conciliar esta inebriação com a instância racional
Mais acessíveisdo que a austeraÁes//zef/ccralemã, muitos textos <<filosóflcop> reela- que preside sempre ao acto criativo (em Paradoxo s r /e Co/}zéd/e/z,em 1773-1778,
sustenta que num <<grande génio, não é o coração, mas a cabeça, que faz tudo>>).
boram a noção de génio criador, e a mudança de sentido teórico dela derivante molda
a consciência que os artistas têm de si mesmos. A evolução da reflexão dos <<Hilóso
Desenvolve neste âmbito a teoria das etapas sucessivas do processo de criação. A ideia
fos>>franceses merece ser considerada com atenção porque é nessatradição cartesiana pairavano ar, a partir do momento em que já Winckelmann aconselhava:<esboçai
e no culto da Razãoque sejoga o prestígiocrescentedo sentimentoe das paixões. com ímpeto, executam
com fleuma>>,e os quadros de Canova vêm demonstrar-nosque

193
192
a prática neoclássica mais pura conhecia esse <<ímpeto>>.
Mas Diderot vai mais longe: da sensibilidade: um dos sinais de reconhecimento mais seguros do efeito do sublime
chega à ideia, radicalmente nova e quase preocupante para a época das Luzes, de que é a <<torrentede lágrimas>>.A Razão abdica nesse ponto, sucumbe a uma emoção que
o génio pode ser acometida de uma espécie de /oucura específica em cada estádio a leva muito além de qualquer discurso racionalmente possível e o excesso dessa
do seu processocriativo. Longe de ser patológica, esta loucura genial faz parte inte- emoção manifesta-se através de uma reacção que fica aquém do racional. O sublime
grante da energia e da pulsão criadora. A importância desta afirmação dependedo <(patético>>
pode tornar-se uma arma eficaz ao serviço da luta filosófica do Iluminismo.
facto de Diderot distinguir nitidamente a loucura criadora do génio do .@ror poefí Esta concepção clássica é orientada de uma forma completamente nova por Edmund
cui que inspirava o poeta da antiguidade. Este último não podia compor senãodepois Burke quando ele publica, em 1757, a Procura do Be/o e do Sub/ime, obra reeditada
dez vezes em trinta anos, traduzida para francês em 1765 e alemão em 1773. Se o
de ter sido visitado por um espírito divino; pelo contrário, na sua aparente loucura,
o poeta ou o pintor do Iluminismo é inspirado unicamentepelo próprio génio, que sublime de <<Longino>>pudesse ser um cavalo de Tróia no seio da teoria clássica,
o de Burke opera uma verdadeira mutação epistemológica. Recorrendo a um método
por sua vez se torna o atributo do grande artista.
Conferindo aos artistas uma capacidade específica de loucura, Diderot deixa trans <experimental)> baseado no <<examedas nossas paixõep> e na <<investigaçãoatenta
das leis da naturez»>, portanto, de verdadeiro filósofo, Burke afirma que o efeito pro
parecer um dado essencial da consciência artística do iluminismo: a clareza dos prin-
cípios da Razão e dos seusideais diurnos só lucra em ser associada,no campo artís- duzido pelo Sublime é irredutível ao originado pelo Belo. Irregular, <<duro
e deslei-
tico, às forças obscuras mas positivas das paixões e da imaginação criadora. xado>>,coberto <<desombras e de trevas>>,o Sublime do Iluminismo suscita uma <<pai
O êxito extraordinário que o conceito de sublime conheceu na segunda metade xão análoga ao terror>>:<<tudoaquilo que é susceptível de despertar as ideias de dor
do século participa de igual tomada de consciência. Abundantemente utilizada, a qua- e de perigo, o mesmo será dizer tudo aquilo que é de algum modo terrível, tudo
lificação de <<sublimo>
é aplicadaa obrasque se diferenciamem tudo. Somente aquilo que trata de objectos terríveis, tudo aquilo que age de maneira análogaao ter-
ror, é uma fonte do sab/ime ou, se quisermos, pode suscitar a emoção mais forte que
Diderot, nos seus Sa/ons, acha a /t/a/édícííon pa/ente//e de Greuze tão sublime como
o Corrésus ef Ca//fr/zoé de Fragonard ou as 7'empêfesde Vernet, as pequenas ruínas a alma seja capaz de sentir.»
Caberá a Kant demonstrar que o sublime não é o objecto dos sentidos e que esse
de Hubert Robert bem como a grande máquina do /WíracZedes 4rdelzfs de Doyen;
misto de terror e de prazer, a sua reacção perante Sailzl Roc/zde David é tipicamente pertence ao <<usoque a faculdade de discernimento faz naturalmente de alguns objec
tos>> e o texto de Burke não terá, na verdade,influência directa sobrea produção
sublime e o próprio Chardin salva aquilo que o seu <<idcal>> teria de <<miserável>>,
gra-
ças ao sublime da sua <(produção>>.
É inegável que o termo está na moda. Seria, artística. Mas, tal como Baumgarten, na .4esf/zefica,apresentaum ponto de referên-
porém, errado pensar que Diderot empolou o seu uso. A confusão semântica que cia teórico capital para uma articulação decisiva do século, que aprofunda a dife
envolve a noção de sublime indica apenas que, tal como a ideia de felicidade na pró- vença entre a leveza esmeradado Rococó e a gravidade passional do Iluminismo:
com o sublime <<terrível>>,
abre-se ao artista um campo novo, a produção de uma obra
pria época,ela condensadiversasintuições cujo princípio de unidade é mais exis-
tencial do que conceptual(Robert Mauzi). Com efeito, a emoçãosublime afecta a que, longe de ter como finalidade o <'prazer>>associado à beleza, joga com as pul-
maior parte das criações da segunda metade do século xvlll e constitui um fermento mõesinstintivas da psique.
específico da inspiração artística do Iluminismo: Piranesi é tão sublime como Füssli, A personalidadede Burke poderia levar a pensar que o Sublime e as Luzes se
Goya como Blake; o <<primitivismo>>
de Ossian é sublime, e os quadros científicos e opõem radicalmente. Líder intelectual de uma reacçãoimediatamente hostil à Revolução
nocturnos de Joseph Wright of Derby relacionam-se com aquilo que se pode chamar Francesa (as suas ReWexõessobre a Rapo/zzçãoFra/acesa são publicadas a partir de
o <<sublimeindustriab> próprio da pintura inglesa da época. 1790), evidencia uma aversão constante em relação à filosofia francesa. Burke opõe
à razão individual a razão colectiva e geral. A primeira é demasiado fraca para poder
Impõe-se esclarecer o conceito, pois toca em pontos essenciais da emoção artís
tida do Iluminismo. revelar-se útil e impõe-se, além do mais, <<tirarglobalmente partido da banca em geral
Retirado do 7'rufado de Rerórlca do pseudo-Longino e antes mesmo de ser apli- e do capital das naçõese dos séculos>>.Por outras palavras, Burke transforma-se em
cado às artes visuais, o sublime indica em Boileau (1674) o extraordinário, o sur- apóstolo dos <<preconceitosgerais>>,portadores de uma sabedoria oculta. Para ele, a
preendente e o maravilhoso no discurso. O seu objectivo não é persuadir, está para natureza humana é má e deve ser vigiada por uma autoridade superior, religiosa ou
além da razão e aquém das regras: <<cativa,maravilha, arrebatn>. Esta cambiante man política. As suas ideias políticas estão em concordânciacom a sua concepçãodo
tém-se no Iluminismo: o sublime pode evocar um arrebatamentoda razão exaltada. sublime, assente mais na obscuridade do que na luz, que acomete o indivíduo de uma
E então, segundo as palavras do próprio <<Longino>>,
<<oeco de uma grande alma>>. sensação de terror perante um poder que o transcende e que ela não compreende.
E na razãoda sua grandezasobre-humanaque Z,eSerene/zf
des Horacei, o Socrafe Mas a Procura do Be/o e do S ró/íme (publicada quando Burke tinha vinte e oito
ou o Brufus de David são sublimes, que o Apoio de Belvedere exerce um efeito anos) superou o seu autor. Se Fiissli vai ao ponto de condenar como muitos outros
sublime sobre Winckelmann. Ao contrário do Belo, que é absolutoe objectivo, o a Revolução Francesa, William Blake, outro grande criador sublime de final do século,
estáa seufavor: inclusivamente,em 1793, o seuN2zbzzcodo/zosor
ilustra com feroci-
Sublime é uma qualidade que se capta de forma subjectiva, que se encontra, no seu
limite, menos no próprio objecto do que no efeito perturbador que esseobjecto sus- dade a queda de um despotismo vilipendiado e, já em 1791, o primeiro livro da sua
cita. O sublime encontra-se associado, como é lógico, ao sentimento, às exaltações obra The r'rena/z Neva/ufío/z. Á roem //z deve/z Books elogia os deputados que pies

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taram o Juramento do Jeu de Paume em termos inequivocamente sublimes: <<Semelhantes centro de gravidade da esfera, o visitante apenas poderia lançar o seu olhar sobre <<a
a espíritos de chama nos pórticos esplêndidos do sol, prontos a semear a beleza no imensidade do céu>>.Neste projecto de cenotáfio e na «descobertada arto> que ele
abismo deserto e afamado, difundem a sua luz sobre a cidade ansiosa.)>Encontramos implica, Boullée tem a sensação de ser <(tornadosublimo>. Tê-lo-ia sido, sem dúvida,
aqui a inspiração que presidirá ao esboço de G/ad Z)ay em 1780, com o qual Blake nos seus diversos monumentos funerários com os quais pretendia competir com os
comemorava a agitação social dos Gordo/z /?íofs. No último terço do século, a noção Egípcios e inventar, para além da <<arquitecturasepultada>>,uma <<arquitecturadas
terrível do sublime não pertence mais a Burke; conforme o sugerea retórica revolu- sombras>>.Com Boullée e a sua meditação (neoclássica, por excelência) sobre a morte
cionária de Saint Just, tipicamente sublime, as Luzes da Razão e as Trevas sublimes e sobre a memória dos vivos, o arquitecto das Luzes chega a sonhar com uma arqui-
sãoagora corolários, de acordo com Milton (citado por Burke), paraquem <<oexcesso tectura ideal que seria <'um conjunto constituído pelo efeito das sombras>>.
de esplendor obscurecido>>alcançava<a obscuridade de uma luz excessivm>. O túmulo de Newton nunca chegará a ser construído, nem tão-pouco a arquitec-
A fecundidade da Escuridão é tal que a polaridade da luz e das trevas se torna, tura das sombras. Para Boullée, a arte do arquitecto não consistia na arte de cons-
para alguns, o próprio princípio do Universo. Para Blake, <<aoposição é a amizade>>. truir, mas na concepção da imagem da construção e é nesta <<produção do espírito>>
Segundo Mefistófeles, é a escuridão que <<faznascer a luz, a luz orgulhosa que agora que ele leva a Razão-arquitecto a um extremo, com certeza sublime, de racionali
dado
a
disputa com a sua mãe, a Noite, o seu anterior lugan>. Deste confronto, em que a luz
fica em segundolugar e a escuridãoem primeiro, o homem não é apenastestemu- Porém, não seria possível isolar a renovação teórica, intelectual e moral da cria-
nha: é também o campo fechado de um conflito (sublime) entre a clarividência solar ção artística, que acabámos de descrever, dos ambientes sociais, económicos e polí-
(o lince de Goya) e as trevas ocultas. ticos onde os artistas exerciam a sua actividade. A recusa do Rococó ganha cor a
Os maiores arquitectos do Iluminismo fazem sentir toda a fecundidade desta con- partir de uma crítica geral a uma sociedade corrupta, mas não é levada avante contra
cepção paradoxal. Em geral, a preocupação de uma arte assenteem verdades uni- as autoridadesdo lugar; pelo contrário, estasúltimas apoiam essacrítica e contribuem
versalmente válidas, estabelecidas em virtude das Luzes da Natureza, leva os arqui- para a afirmação da dignidade reconquistada do artista. E certo que os comitentes
tectos neoclássicosa procurar formas cada vez mais puras, ou também (segundo o tiveram sempre um papel na produção artística e na história das formas, mas com o
princípio do retorno às origens) cada vez mais primitivas ou naturais. A ordem dórica Iluminismo e sob o impacte dos temasdesenvolvidospelos <<filósofos>>,
este papel
é então objecto de consideração particular: reconhece-se-lhe a expressão mais antiga, chega a delinear uma concepçãonova (moderna) das relaçõesentre arte, cultura,
mais apurada,de um ideal arquitectónico.É a «purezageométricn>dos fenómenos sociedadee poder político.
naturais que inspira em Nicolas Ledoux a ideia de assentar a arquitectura nas formas \Com efeito, em toda a Europa, o século Xvlll é o século do <<despotismoilumi-
absolutas da pirâmide, do cubo e da esfera.}E se, para o fim do século, Du Fourny nados. Este último faz o que se pode chamar (com um certo anacronismo) uma ver-
considera que <<aarquitectura deve regenerar-se através da geometria>>,existe tam- dadeira <<políticacultural>>,baseadana ideia, difundida pelos homens de letras, de
bém o facto de, para citar Christopher Wren, <<asfiguras geométricas serem natural- que a grandeza de um reino não se exprime tanto na glória dos seusactos militares,
mente mais belas do que qualquer forma irregular: todas se ajustam, como uma lei mas antes na qualidade e quantidade dos génios activos no seu seio. Esta ideia con
da natureza>>.Baseada assim na natureza e na razão, a arquitectura das Luzes recusa duz em toda a Europa (monárquica ou não) à proliferação dos monumentos em honra
o Rococó, seguindo o exemplo da pintura e da escultura. Como escreve Quatremêre dos homens grandes, glória de uma nação. Em 1737, Florença homenageia Galileu
de Quincy em 1798, impõe-se expulsar da arquitectura a <extravagâncla>>que <'ori- com a Santa Cruz; em 1740, é a vez de Shakespeare em Westminster Abbey; depois,
gina um sistema destruidor da ordem e das formas ditadas pela Natureza>>.O gosto em 1755, Newton no Trinity College de Cambridge; de Cartesio em Estocolmo, em
pelo bizarro na arquitectura fica a dever-se a este <<tédiodas coisas melhorep>, cau- 1780: e de Grozio em Delft, em 1781. Já em 1776, o Panteão de Romã acolhe o busto
sado pelo hábito de uma abundância excessiva de riquezas e de prazeres c que requer de Winckelmann (morto em 1768), antecedendo uma série que irá transformar o
o <<disfarceda arte ilusória>>.Ao contrário, para alcançar uma grandeza simultanea- monumentoem templo de glória, segundouma ideia de que a RevoluçãoFrancesa
mente «proporcional>> e <<moral>>,o <efeito do grande>> deve ser <<suficientemente será recordada. Os monarcas e príncipes não se contentam em honrar os mortos.
simples para nos atingir de imediato>>.Reconhece-se a concepção moral que anima Encorajam também os vivos e manifestam esta tendência com as suas opções artís-
a vertente diurna do artista do Iluminismo. ticas que, apesarde <<pessoais>>,
não são por isso <<privadas>>,
a partir do momento
Mas a exaltação da Razão pode acarretar também um extravasamento do sublime em que são escolhidas pelo monarca. Se Frederico, o Gra/zde, a rainha da Suécia e
até limites em que o rigor racional das formas faz nascer a sombra em que ele assenta, o príncipe do Liechtenstein manifestam um entusiasmo comum pela pintura de Chardin,
uma sombra concebida a partir de massashomogénease brutais. Como escreve é também porque, provavelmente, o carácter <<holandês>> do seu estilo (aos olhos dos
Boullée, <<aarte de nos comovermos com os efeitos da luz é própria da arquitectura, contemporâneos) Ihe confere uma reputação de artista <«iluminado>>: Amsterdão é, no
porque diante de todos os monumentos susceptíveis de demonstrar à alma o horror século xvlll, uma fortaleza de difusão das ideias filosóficas, e a paixão manifestada
das trevas [...], o artista [...] pode ousar dizer de si para si: crio luz>>.Pensemosa pelaculturaholandesa
é o sinal de um espíritofilosófico.É a Augusto111,rei da
estepropósito no túmulo que Boullée dedica ao espírito do <<sublime Newton>>e cuja Polónia e eleitor da Saxónia, que Winckelmann dedica em 1755 as suas Re@exõe.s
luz deveria <<assemelhar-se à de uma noite pura>>.<<lsoladode todas as partes>>,no Sobre a Imitação das Obras Gregas na Pinttlra e na EscLLltüra.Trata-se de um ataque

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frontal ao gosto Rococó no auge em Dresden. Em resposta,Augusto 111concedeao programa deve ilustrar mais as acções pacíficas e virtuosas dos imperadores e não
autor uma pensão,que Ihe permite partir para Romã e fazer o que sabemos.Por seu os seusfeitos militares. Dois anos mais tarde, Luís XV mandou retirar os quadros
lado, Carlos VTI, rei das duas Sicílias e que não tardou a ser coroado como Cardos llT terminados e chama Bucher. Mas, decorrido um ano sobre a morte deste último, o
de Espanta, manda imprimir em 1757 a colectânea das Pfní ras 4nrigas de Ergo/ano Rei aceita o programa virtuoso, em estilo sóbrio, que Marigny propõe novamente
e Arredores, que oferece graciosamente a uma elite europeia, contribuindo assim dc Com Luís XVI, esta política é confirmada e aumentada.Z,'Ombro d Grama
forma <(desinteressada>>
e iluminada para a rápida difusão dos motivos neoclássicos Co/berr, publicado por La Font de Saint Yenne em 1747 e, mais ainda, Z,eSíêcZede
na Europa. Z,QuisX/y de Voltaire (1751) dão finalmente os seus frutos. O marquês d'Angiviller
x Os soberanosmanifestamtambém a atitude iluminada com a fundaçãodos pri- sucedea Marigny em 1774 e promove sistematicamenteuma política artística que
meiros museus (na acepção moderna do termo). Em 1769, o Fredericianum de Cassel visa reencontrara grandezae a glória do Gralzd Siêc/e,concebidassegundoo novo
reúne estátuas antigas, biblioteca e colecção de história natural; em 1772, Pio VI espírito do Iluminismo. Ao contrário dos ciclos que enalteciam a glória da coroa de
manda construir e instalar as galerias do Vaticano. São ainda colecções particulares trança, as obras encomendadasraramente fazem referência ao rei; celebram as vir-
abertas sem muitas restrições aos visitantes, como os Ofícios de Florença. Com a tudes da nação em geral, a coragem,a moderação,o respeito das leis e, sobretudo,
construção do museu do Belvedere em Viena, em 1779, o objectivo é diferente: para o patriotismo. E em respostaa encomendasreais que David realiza, em 1784,1,e
o seu organizador, Christian van Meckel, amigo de Winckelmann, a concepçãoe a Sermen/das Horacese depois, entre 1787 e 1789,o Brufus. De uma forma revela-
disposição do conjunto deve apresentar <<umahistória visível da arto>, concebida dora. nas suas cartas de encomenda, d'Angiviller coloca mais a tónica no tema moral
mais para a instrução pública do que para um <<prazer
fugaz>>.A ideia será retomada, do que no sujeito histórico propriamente dito. Contam-se entre os grandes homens a
em 1792,em Paris, para o Louvre e, em 1795, para o Museu dos monumentos fran quem mandou fazer estátuasLa Fontaine e Poussin e, a propósito do marechal de
meses.Finalmente, em 1798, numa dissertação dedicada ao rei da Prússia, Aloys Hirt Catinat, sublinha que este <<nãoera menos recomendável pelo seu talento militar do
define o museu como instrumento de educação no sentido mais lato: as obras de arte que pela sua humanidade e espírito filosófico>>.
não devem ser conservadas em palácios particulares, mas em museus públicos, por Assim, as encomendas oficiais encorajam de forma sistemática os programas
que <<representam uma herança de toda a humanidade>>. exemplares e didácticos, os temas morais e virtuosos, em suma, as obras <<ilumina-
Mantido e encorajado pelos soberanos, este desenvolvimento correspondia ao inte- das>>e a vertente mais optimista do iluminismo. Podemos perguntar-nos também se
ressecrescente alimentado por um público cada vez mais vasto em relação às expo- o êxito destes grandes temas <<diurnop>não será uma consequência directa dos inte-
sições temporárias. Em Paras,os Sa/ons da Academia chegam por vezes a atrair dia- resses convergentes dos intelectuais e do poder político. Nos últimos trinta anos do
riamente setecentaspessoas,de origens sociais diversas -- aristocratas, burgueses, século, a cultura do Estado parece ser uma alavanca essencial de produção artística
intelectuais, mas também altos funcionários, os <.fatoscinzentos galonados>>,cuja iluminada mais ambiciosa.
promiscuidade é um c/coque para certos grandes senhores que conseguem, nos anos 70, A situação da França é particularmente interessante neste aspecto porque o período
visitar a exposição no dia em que está fechada ao <(grandepúblico>>. revolucionário revela a verdadeira complexidade deste fenómeno. Os novos dirigen-
Confirmado pela extraordinária popularidade da imprensa, o nascimento do público tes empenham-se em continuar a política de mecenato oficial, cujos temas, evidente-
moderno na épocadas Luzes é um fenómeno fundamental. Permite também explicar mente, orientam. Deste modo, após o relativo fracasso da subscrição lançada pelo
o motivo por que a refutaçãodo <<iluminado>
é importantepara a imagem política e Clube dos jacobinos, em l de Janeiro de 1791, para apoiar com a publicação de uma
social do soberano. Preocupações desta natureza não serão por certo alheias ao facto gravura a produção do Serene/zfdzl Jea de Paume de David, é a Constituinte que, dois
de, em 1787, a rainha de França, Mana Antonieta, decidir mandar Elisabeth Vigée dias antes da sua dissolução em 28 de Setembro de 1791, decide assumir os encargos
Lebrun fazer um retrato seu com os filhos: a <<mãe
de família>>é uma figura maior da obra. Assim, em Agosto de 1793, a Convenção abre o célebre concurso do ano ir
da literatura iluminada e da pintura moral. Por vezes, o reinado de Luís XV é com (que se destina a comemorar <<asépocas mais gloriosas da Revolução Frances»>) e
parado com o de Luís XVI neste aspecto.Contudo, a partir de 1758, Boucher dera festeja o primeiro aniversário da queda da monarquia com uma dupla manifestação
ao retrato de Madame Pompadour (Londres, Vistoria and Albert Museum) um per- simbólica: a inauguração do Louvre e a destruição dos monumentos fúnebres reais de
fume <<iluminado>>, representando o seu modelo, musicista talentosa, envolta pela Saint-Denis. A 9 e 10 Termidor do ano vl (27 e 28 de Julho de 1798), o Directório
natureza, enquanto se distrai de uma partitura musical para escutar o canto de uma comemora, por sua vez, o <qepatriamento>>das obras de arte da Itália com uma gran-
ave: assim, a irmã do Marquês de Marigny, director das Construçõesreais, surgia diosa festa das artes e da vitória. Prosseguindo uma verdadeira manipulação ideoló-
quase como uma rousseauniana alzfe /íf/eram, de modo a associar os interesses do gica e não obstante a oposição de inúmeros artistas (entre os quais David e Quatremêre
intelecto ao simples fascínio da natureza e a dar também precedência aos segundos de Quincy), o poder estabelece que a França, país de liberdade, possui um direito legí-
sobreos primeiros. A partir de 1764,depois de Cochin persuadir Marigny a substituir timo de mandar repatriar para o seu próprio solo aquelas manifestações da liberdade
as decorações à base de paisagens, cenas de caça e mitologia erótica, por um conjunto que são as obras-primas de todos os tempos e de todos os países
que exaltasse os sentimentos de humanidade dos soberanos, o castelo real de Choisy Todavia, enfraquecendo as estruturas tradicionais de produção (o Sa/on é aberto
torna-se um centro de renovação artística iluminada. Retirado da história romana, o a todos em 1792,a Académie Royale é dissolvida em 1793), sem as substituir de

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aos seusolhos os aspectossublimes do heroísmo e da virtudo>. Patriotismoilumi-
imediato por outras novas, a Revolução põe em evidência a distância que separaos nado, heroísmo e virtudes sublimes: o espírito destes quadros é inegavelmenteo de
seusdirigentes dos hábitos, das capacidadesou do gosto da maioria. Durante os um artista das Luzes e o procedimentoque David propõe vem confirmar como,
Sa/o/zsrevolucionários, o número dos expositores e das obras multiplica-se duas ou distanciando-se da anedota, ele capta o alcance <<uniVersal>>
do acontecimento. Na
três vezes, mas os <<quadroshistóricos>>,os do <<grandegénero>>,que estabeleceda
suanudez primordia], o jovem Baia, morto aos ]4 anos, transforma-sena figura do
melhor maneira a ligação com o pensamentomoral e artístico do iluminismo, não homem novo que encontrou a pureza da humanidade primitiva, antes de toda a cor-
aumentamsignificativamente: em 1789, o Sa/on inclui 17 <<quadros
antigos>>de um
rupção social. A figura do herói na sua maturidade (Marat tem cinquenta anos quando
total de 206; em 1795,a proporçãoé de 16 para 535 e, de 1789 a 1799,contam-se é assassinado)condensaduas figuras míticas da morte heróica: a de Crista morto por
apenas 147quadros históricos de um total de 3076. A cada dia que passa,na França amor à humanidadee a do filósofo antigo (Séneca em particular) que morre pela sua
revolucionária, os <«génerosmenores>>(retrato, paisagem, cenas de guerra) represen- fé num ideal de humanidade. O A4araí assassíné propõe deste modo a primeira
tam a esmagadoramaioria da produção pictórica, inquietante banalidade quando se <<Piedadcfilosófica>> da história, uma piedade sem outra imortalidade a não ser a con-
trava o combate decisivo entre a Luz e as Trevas.
ferida pela memória dos homens.
São diversas as causas deste fenómeno. Antes de mais, e para além do custo bas-
O Bufa expínz/zí e o /l/arar asiassl/zé são, talvez, as obras-primas de David, obras
tante elevado dos quadros de tema histórico, surge a aceleraçãodo ritmo dos acon-
em que o rigor intelectual da idealização deixa passar o frémito do patético. Os qua-
tecimentos durante o breve período propriamente revolucionário, em contraste com
dros atingem ainda mais um valor sintomático: no âmago desta luta formidável entre
o período de tempo que decorre forçosamente entre a decisão e a realização de cada
a luz e as trevas que é para cada revolucionário a Revolução, as obras-primasde
grandeprojectohistórico.O malogrofinal do Ser/nerzf du Jetl de Pala//ze
fica sem David enaltecema figura do herói do Iluminismo que resvalanastrevasda morte.
dúvida a dever-seàs múltiplas responsabilidadesque recaemsobre David, empe- Se a Revoluçãoé vista como a aurorada Razãoque se manifesta na História, este
nhado na política activa; mas também é verdade que, decorridos apenasdois anos advento é a história de uma violência dupla e obscura. Invadindo a opacidade do real,
sobre o acontecimento, deixou de existir unanimidade entre os revolucionários, e inú-
a Luz no caminho determina o regressoterrível da Sombra.
meros protagonistas do dia 20 de Junho de 1789 serão guilhotinados sob o Terror.
Em comparação, a Inglaterra parece reunir todas as condições para permitir a feliz
Indo mais longe, a ausênciade grandes realizaçõesartísticas durante a fase mais
expansãodo artista do Iluminismo. Depois de ter sido um modelo de liberdade para
acesada Revolução depende da contradição fundamental com que o artista das Luzes os filósofos, a sociedade inglesa acolhe, a partir dos anos 60, inúmeros artistas estran-
se vê confrontado quando os Princípios da Razão encontram a realidade opaca dos
geiros que escolhem Londres para aí fazerem carreira. A seguir a JohannesZoffany,
homens. Na sua obra, o artista filósofo é testemunha de um conflito de que é tam-
originário de Francoforte,que chega a Romã por volta de 1760 e se torna, a partir
bém protagonista empenhado.
dos anos 60, o especialistamais solicitado das co/zversízrlon
preces,podemoscitar,
Excepcional, a actividade de David é também exemplo destasituação.Desde o iní-
entre outros, Benjamin West (originário da Pensilvânia, que vem para Londres em
cio da sua carreira nos Síz/o/zs,tipifica o artista iluminado. Não só os temas e o estilo
1763), a suíça Angelica Kaufmann (vinda de Veneza em 1766), o francês Philippe
dos seusgrandesquadrosde história fazem dele o inventor de um neoclassicismo
Jacques de Loutherbourg (em 1771) e o suíço Filssli que, após a primeira estada entre
filosófico original, mas, por tudo o que o espírito e a sociabilidadeperfeita dos seus 1764-1766, se estabelece definitivamente em Londres, em 1778, no regresso de uma
modelos sugerem, com a confiança que manifestam na bondade humana e na per-
prolongada estadacm ltália.
feição do indivíduo, os seus retratos revelam uma abordagemessencialmenteilumi- Romã é uma etapaquase obrigatória nesta migração para Londres. Tal facto fica
nadadaquelegéneroinferior que é o retrato. Com o empenhopolítico, David chama a dever-se à abundante colónia inglesa estabelecida na cidade e porque os viajan
l si as responsabilidadessociais em que vêm assentara missão e a dignidade do
tes ingleses de passagem no seu Grama 7'our representam com o seu luxo o prestí-
artista do Iluminismo. A pedido da Assembleia ou da Comissão da saúde pública,
gio de uma sociedadearistocrática e mercantil, aberta ao novo estilo e disposta a
não organiza apenas as grandes festas comemorativas da Revolução em marcha; encar- investir com abundância de meios a fim de renovar o ambiente das próprias resi-
rega-se da administração das artes, fornece os desenhosdos novos <(trajosnacionais>>, dências. O fenómeno reveste importância porque indica, desde o início, um dado
propõe medalhas comemorativas para os grandes acontecimentos da República e, em característicoda atitude iluminada na arte, tal como se manifestaem Inglaterra.
Maio de 1794, chega mesmo a apresentar as caricaturas solicitadas <<quepodem fazer
Personagem-chaveda colónia britânica de Romã, o pintor escocêsGavin Hamilton
despertaro espírito público e sentir como são atrozes e ridículos os inimigos da trabalha para clientes com gosto pela arte e algumas das suas obras influenciaram
Liberdade e da República>>.Todavia, no âmbito desta actividademúltipla, os pro-
de certo modo o próprio David; mas a maior parte dos seus rendimentos provém da
jectos ambiciosos que deveriam comemorar o triunfo dos princípios iluminados da actividade de comerciante e de intermediário. Frequentando o enrourízgedo cardeal
Revoluçãonão podem ver a luz. Os únicos quadrosque David conclui foram em coleccionador Alessandro Albani, sócio do banqueiro Thomas Jenkins, ele próprio
número de três e produzidos sob o c/zoqaede acontecimentos análogos: as mortes
procede a escavaçõesna Etrúria, em Romã, Ostra, Villa Adriana, e outros locais.
dos heróis revolucionários. Como ele próprio declara ao apresentar o retrato de Le Com o auxílio do escultor inglês Joseph No1lekens,não hesita em <<restaurar>>
as
Pelletier de Saint Fargeau assassinado, <<overdadeiro patriota deve procurar com cui- obras combinando diversos fragmentos, e enriquece, fornecendo algumas das colecções
dado e de todos os modos iluminar os seus concidadãos e apresentar constantemente
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mais prestigiosas de Inglaterra (entre outras, as de Charles Towneley, de Lorde West repete a operação com O Triz/ado de Wi//ia/n Pe/z/zcom os /maios. Representando
Shelbourne, do duque de Bedford, dos condes de Egremont, Leicester e Londsale). o acontecimento de 1682 como um <(idílio iluminado>>, o quadro enaltece, em detri-
As actividades de Gavin Hamilton e de Thomas Jenkins revelam também que o mento da realidade histórica, a ideologia do colonialismo britânico, que libertaria os
neoclassicismo é o primeiro movimento artístico da história a ser sistematicamente indígenas da tirania, convertê-los-ia e trar-lhes-ia os benefícios de uma civilização
promovido como investimento financeiro rentável. A publicação, entre 1766-1767, superior.No ano seguinte,1772, Benjamin West é nomeadopintor do rei, com uma
de quatro sumptuososvolumes ilustrados sobre a colecção de antiguidades etruscas, renda anual dc 1000 libras esterlinas
gregas e romanas de Sir William Hamilton, enviado extraordinário do rei à corte de De origem escocesa,Robert Adam regressade Romã a Londres em 1758 e logo
Nápoles, obedece aparentementea motivos mais desinteressados.No Prefácio, Sir em 1761 é nomeado segundo arquitecto do rei (Jollzf ÁrcAírecr). O scu neoclassi-
Hamilton defende a revivescência da arte antiga e afirma querer ajudar os artistas cismo esmerado visa explicitamente fazer do reinado de Jorge 111uma época digna
que desejem <<inventar>>no estilo antigo ou simplesmente <<copiar>>
os monumentos, da <<dePéricles,de Augusto ou dos Médicis>>e encoraja o rei a ver-se mais como
colocando à sua disposição a reprodução fiel dos originais. Os volumes terão em um imperador romano do que como um monarca constitucional. A importância de
todo o lado um impacte extraordinário sobre artistas como Flaxman, Füssli ou Robert Adam não dependesomente da quantidade de construções que realiza para a
Wedgwood. Mas a fama que esta publicação(dedicadaa Jorge 111)confere à sua Coroa ou para a elite dirigente; deve-se igualmente ao facto de, com ele, o arquitecto
colecção pessoal permite-lhe vender esta última em 1772 ao British Muscum, rea se tornar o artífice de todo o ambiente onde se desenvolve a vida, da <<composição
lizando um considerável lucro. Esta intenção comercial é confirmada em 1781-1782 interior e exterior» do palácio. Concebendo os programas decorativos e o conjunto
quando Sir Hamilton volta a vender à duquesa de Portland antiguidades importan do mobiliário (cadeiras,mesas,candeeiros,candelabros,tapetes,espelhos,etc.), Adam
tes, praticamente pelo dobro da quantia paga a um sócio de Gavin Hamilton e Thomas encontra-seno centro de uma considerável actividade que respeita a todas as artes e
Jenkins. às empresas, artesanais ou industriais, que realizam os produtos.
Também em Inglaterra o êxito do neoclassicismo se encontra estreitamente ligado Matthew Boulton, Chippendale ou Josiah Wedgwood trabalham para Adam, mas
à convergênciaentre a <<política
cultural>>iniciada por Jorge111e os interessesinte- é Angélica Kaufmann que melhor representao êxito desta concepçãoinglesa da cria-
lectuais e comerciais de uma poderosa burguesia iluminada, enriquecida pelo desen ção artística. Depois de ter permanecido em Romã entre 1763 e 1765, onde frequentou
volvimento industrial e económico. Winckelmann, Mengs, Batoni e Gavin Hamilton, estabelecendolaços muito estrei-
Jorge TTTtem 22 anos quando sobe ao trono em 1760. Apesar de empenhadona tos com a colónia inglesa (como refere uma carta de Winckelmann, <<elapinta todos
restauração das prerrogativas reais com o auxílio dos Tornes, o jovem rei apoia o os ingleses que visitam Roma>>),Angelica Kaufmann chega a Londres em 1766,
novo estilo, rompendo com o gosto da aristocracia w/zlg, cujo neopaladianismomis- acompanhadade Lady Wentworth, a mulher do embaixador de Sua Majestade em
turava as influências do Renascimento,do Maneirismo e do Bacoco italianos. Assim. Veneza. Tal como o de Vien em França, o seu estilo <<àgrega>>apresentauma ver-
Jorge 111declara que a sua <<ordempreferida>> é a dórica e manifesta vontade dc uma são suave e decorativa do neoclassicismo. Inspirando-se em Homero e Virgílio para
política artística coerente, recebendo oficialmente dois dos representantes mais noto evocar uma época heróica segundo o género do idílio e evitando o género trágico ou
rios do novo estilo: o pintor Benjamin West e o arquitectoRobert Adam. l austeridade«espartana>>, Angelica Kaufmann vem ao encontro das expectativas da
Filho de Quakers emigrados na Pensilvânia em 1725, Benjamin West chega a elite que desfruta agora de um período de paz e de relativa prosperidade.E eleita em
Romã em 1760 e frequenta aqui o e/z/o ruge do cardeal Albani, Pompeo Batoni, 1762, com 27 anos,privilégio absolutamenteextraordinário,membro-fundador
da
Mengs c Winckelmann. Gavin Hamilton orienta o no neoclassicismoe fá-lo com- Royal Academy e, durante os 15 anos da sua estada em Londres (1766-1781), a sua
preender o interesse de o pintor mandar imprimir as suas obras para aumentar a noto arte traz-lhe a soma de 14 000 libras esterlinas, cifra excepcional para uma pintora
riedade e os proventos. West dá depois preferência a Londres, onde se estabelece em da época quaseo equivalenteà pensãoreal paga a Benjamin West.
1763. O seu êxito nesta cidade é muito rápido. Não são só os temas morais e patrió- A fortuna dc Angélica Kaufmann depende,sem dúvida, da sua capacidade,no
ticos do neoclassicismoque estão de acordo com os valores conservadoresdo poder, retrato ou na pintura de tema histórico, de satisfazer as exigências de uma elite aris-
mas West é de ascendênciainglesa e respeitam-no como um artista de origem nacio- tocrática. Mas semelhante sorte é também indissociável de uma nova prática artís-
nal, que compete com os neoclássicosromanos e que permite aos jovens artistas tica, típica da forma que a arte das Luzes assumeem Inglaterra: a reprodução mecâ-
ingleses encontrarem os seus próprios modelos na pátria. Após uma série de quadros nica das obrase o elo entre produçãoartística e revolução industrial. As suasobras
neoclássicos à antiga, de nítidas ressonânciaspolíticas, West <<moderniza>>
o estilo são impressase reproduzidasem todos os objectos possíveise imagináveis: leques,
com A /t/ar/e do Ge/lera/ Wo{6e:o quadro, que comemora a vitória das tropas ingle- móveis, jarras, baldes de gelo, serviços de chá, porcelanase outros. Angélica Kaufmann
sas sobreas francesasno Québec,vitória que em 1759 trouxe o Norte da América é a colaboradorapreferida de Matthew Boulton; com o objectivo de produzir em
para a Coroa britânica, faz furor; as personagens estão vestidas à moderna, rompendo grande escala decorações neoclássicas inflacionadas para o mercado em grande expan'
com o princípio (então chamado de Reynolds) que quer que a <<pintura histórica>> são das obras de Robert Adam, Boulton inventa um método que permite a reprodu
obedeça à convenção da <mudezheróicu>. O quadro conhece um tremendo êxito e ção mecânica dos quadros (não muito diferente da incisão a aquatinta), e Angelica
de seguida, graças à impressão, traz uma fortuna considerável ao seu autor. Em 1771, Kaufmann realiza cerca de trinta quadros para o seu projecto.

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y'
A característica mais original da produção artística do Iluminismo em Inglaterra por sua vez William Blake, a industrialização contribui para a perfeição da espécie
consiste nesta associação entre a indústria e os artistas. A Coroa e a aristocracia têm humana. Na Etruria, os operários dispõem de alojamentos decentes,de escolas e de
uma prática equivalente à que se encontra por toda a Europa, mas os representantes hospitais que lhes estão reservados e, em troca de uma submissão absoluta, recebem
mais ricos da burguesia iluminada (eruditos, profissionais liberais, industriais e comer- alimento, roupa, habitação, assistência médica e instrução. Triunfo de uma concep-
ciantes) desempenham funções de mecenato em grande escala. A sua palavra de ção iluminista da arte industrial, as oficinas de Wedgwood suscitam a emoçãodos
ordetn foi formulada pelo médico Erasmus l)arwin: <(integrara Imaginação no estan pintores e dos poetas, a admiração dos cientistas: anunciam <<oamanhãque cant»>,
darte da Ciência.>>Os empresários iluminados, que garantem um mercado regular aos o fim da pobreza e da ignorância próprias da sociedaderural, e pl'eparamo caminho
artistas, organizam-se em clubes, associações e sociedades mais ou menos informais, para a prosperidade,a educaçãopopular e a civilização moderna.
cujos membros mantêm uma correspondência regular entre si e com os especialistas Deste modo, nos anos 70, a Grã-Bretanhapode surgir como o reino da Europa
dc maior destaqueda Europa e da América. Depois de ter fundado uma sociedade onde se realiza a arte do Tlutninismo na sua versão diurna, feita de confiança na razão
botânica em Lichfield (que traduz o Ge/lera P/cznrarl/tz de Carlos Lineu), Erasmus e de uma fé optimista num progressoconstruído a partir das ciências aplicadas.
Darwin, institui tambéma Derby Philosophical Society e, com Matthew Boulton e Impõe-se, todavia, esclarecer esta afirmação. Sem evocar o agravamento da situação
o matemático Charles Small, a Lunar Society of Birmingham. Outra figura de relevo política e social dos anos 80 [devido à derrota inglesa na guerra de independência
neste círculo, coleccionador-de arte e de fósseis, Sir Brooke Boothby é membro da travada nas colónias americanas com o auxílio da França (1777) e à concomitância,
Lichfield Botanical Society e da Derby Philosophical Society e, em 1766, Jean- em 1780, de uma grave crise na Irlanda e dos Gordo/z J?ío/sque revelam um peri-
Jacques Rousseau confia-lhe o manuscrito de Rairsseau ./líge de /ean-./acqEres, publi- goso descontentamento socia] e re]igioso], o historiador vê-se obrigado a fazer uma
cado em Lichfield em 1780.Este tipo de ambientegarantea vitalidade e, afinal de verificação singular: as obras <<iluminadas>> de Benjamin West, Wright of Derby,
contas, a coerência da criação artística do Iluminismo no Reino l.Jnido. Boulton põe Angelica Kaufmann, Johannes Zoffany e Josiah Wedgwood não são as que se pro-
a trabalhar artistas tão diversos como Reynolds, Kaufmann, Flaxman, West, Wedgwood jectam artisticamente no futuro, as mais <(modernas>».É ao lado de Blake, de Füssli,
e Wright of Derby; ErasmusDarwin encomendaobras a Füssli e Blake, Sir Brooke numa palavra, do sublime pré-romântico, que os artistas ingleses surgem, com o seu
Boothby a Füssli e Wright of Derby. distanciamento da história, como os criadores mais dotados de invenção, como aque-
Referimos a respeito dos quadros deste último que fizeram pela Revolução Industrial les que testemunham com maior intensidade aquele empenho pessoal e filosófico que
o mesmoque as obrasde David pela Revolução política francesa.Com efeito, estrei- estabelecea dignidadedo criador para o Iluminismo.
tamente ligado aos membros da Lunar Society de Birmingham, JosephWright espe- A razão de tal residirá talvez no facto de uma das apostas fundamentais do
cializa-se em cenas nocturnas baseadasem obras de arte ou instrumentos científicos; Iluminismo não se poder resolver através da simples confiança na perfeição do indi-
depois, nos anos 70, inventa o <mocturnoindustrial>>(T/ze B/acks/7zffA's S/zopem 1771, víduo e da sociedade. Tal aposta não é senão a ideia (<<filosófica>>por excelência) da
An Iron Force em \112, Vlew ofCromford: Arkwright's Cotton Mltt at Night enfie /íberdade mora/ aquela dimensão espiritual especificamente humana que, sem recor-
1782-1783). Os seus quadros representam desdeentão quaseuma crónica da indús- rer a qualquer tipo de metafísica, permitiria aos homens ultrapassar as violências cós-
tria e do trabalho nas Midlands, e as suasrepercussõesevocam, numa versão muito micas ou históricas que Ihe escapam. Esta liberdade moral só se encontra no conflito
racional e moderna, o sublime nocturno de Burke. perturbador com o seu oposto, o peso opaco das alienações naturais e sociais. Para
Os ideaise o êxito de JosephWedgwoodretomam ainda melhor a figura inglesa conseguir que esta aposta se revele na sua obra, o artista do Iluminismo (Goya, David
do alista das Luzes. Famoso ceramista do rei em 1766, membro da Lunar Society, e outros) deve aceitar um desafio paradoxal: em vez de uma elegância requintada e
Wedgwood desempenhaum papel essencial na difusão do ncoclassicismo em Inglaterra. <<diurna>>,
em vez de uma concepçãodecorativa de uma arte colocada ao serviço de
Assentes na simplicidade e na elegância das linhas, na recusa das exuberâncias do uma sociedade patriarcal e conservadora, ele precisa, segundo as palavras de Jean
Rococó e do chinesismo, decoradascom motivos antigos retirados das Pinturas alzfí- Starobinski. de enaltecer a luz, restituindo ao mundo material <<todoo seu lado sel-
gas de Ercolano e Arredores, da Colecção de Antiguidades Etruscas, Gregas e vagem, toda a sua inextricável riqueza de cores, de luz e trevas misturadas>>,de fazer
Romafzas, de William Hamilron, e ainda das Reco/Aas de Á/zffgufdades, de Caylus, surgir <<apresença invisível>> da liberdade no homem mesmo quando este último
as suas obras aspiram ao monopólio do mercado aristocrático, obtendo-o. A fim de enfrenta as <(fatalidadesda matéria e do facto».
assegurara correcção do desenho, Wedgwood recorre a artistas consagrados (Angelica
Kaufmann, Wright of Derby, Flaxman, Stubbs e Blake, entre outros) e, para garan
tir a regularidadee a qualidade da sua produção em massa,constrói em 1766 um
imenso complexo industrial, <<Etruria>>,
cuja organização revela uma aliança <<ilumi-
nadn> da rentabilidade e da humanidade na produção em massa de obras de arte.
Inventando a divisão do trabalho e a sistematização da produção, o despedimento por
alcoolismo e o controlo horário, Wedgwood sonha transformar os <<Homensem
Máquinas isentas de errop>. Aos seus olhos, em vez de ser desumana,como pensa
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204
SÉCULO Vll

OEXPLORADOR
por Made-Noêtte Bourguet

P
Bougainville, Cook, Lapérouse, La Condamine, Pallas, Humboldt. . . Bastam alguns
nomes para evocar a aventura do Século das Luzes: gloriosa, porque leva a cabo a
exploraçãodos oceanos,empreendea dos continentes e estabelecepara a Europa,
com mapas, desenhos,herbários e colecções, a matéria de um saber enciclopédico
sobre o mundo; e. todavia, bem diferente do triunfo conquistador que caracteriza os
séculosxvl e xlx. Das pesquisasefectuadasnos confins do planeta, os explorado
res, mais do que a possevitoriosa de terras novas, trazem uma quantidade de semen-
tes e de plantas, uma imagem completa do globo e o fim de alguns mitos como os
das terras austrais e o do bom selvagem. Uma ambição curiosa e uma confiança na
utilidade do saber são a característica de uma época que pretende unir o comércio,
a ciência e o progresso. As grandes expedições geográficas do Iluminismo são reve-
ladoras do momento frágil em que a Europa acredita que o seu sonho humanista se
concretizou e estendeufinalmente a um mundo que ela descobriu, e que não tardará
a perder. Ilusão? Seja como for, esta é a história dos viajantes que partiram à des-
coberta dos mares e dos continentes.

Explorador: história de uma palavra

«E.xp/orador: aquele que vai, que é enviado à descoberta de um país para conhe-
cer a sua extensão, a sua situação, etc. . .>>Esta definição assinala, em 1718, a entrada
da palavra para o l)fcflorznaíre de J'Ácadém/e/ra/zçaise, enquanto o termo era ainda
ignoradopela ediçãode 1694, bem como pelo dicionário de Furetiêreem 1690.
Seríamoslevados a pensarque se trata do símbolo de um novo uso da língua e, ao
invés, parece que a palavra tem dificuldade em entrar para o francês escrito, que, por
estranho que pareça, se atrasa no que se refere aos dicionários. Será necessário espe'
rar pelo seu testemunho até 1765 mas somente no vocabulário médico, <<aexplo-
raçãode uma praga>> e até aos últimos vinte anos do século para quc a ideia seja
aplicada ao campo geográfico. Surge em Lapérouse quando este navega ao longo das
costas do Japão e da Tartária: <<Setivermos a imensa sorte de explorar estas costas
com o mesmo rigor que as da América, estou certo de que Sua Majestade não igno-
rará o facto de os seus barcos terem sido os primeiros a realizar esta navegação>>,
escreve o oficial francês ao ministro da Marinha, em 7 de Abril de 1787. Mas, na
altura, também o substantivo exp/orador era pouco usado. Empregam-se outros ter-
mos para definir aqueles que são enviados <<à
descoberta>>
do globo: o próprio Lapérouse
é um rzavegadore os estudiosos que se encontram a bordo astrónomos, bo/áfzícos,
209
rnfnera/ogisras. <<Viajantenaturalista>>é o título usado com frequência para designar anotarão num mapa todos os sítios e campos que conseguiram identificar.>> Como se
oficialmente os correspondentes do Jardim do Rei ou, mais tarde, do Museu Nacional trata de uma prática clandestinae falsa, a ponto de tornar impossível a confiança
de História Natural, encarregados de uma missão longínqua; em 1793, o cidadão mútua entreos países,Kant denunciao uso de informadores(ulí exp/ora/oríóai)
Richard, enviado à América em explorações, assinaos seus relatórios em latim: duranteas campanhasmilitares: <<Estes
artifícios infernais [. . .] não ficariam por
<(Ludovicus Claudus Richard, ltinerator botanicus.)>iNenhum vestígio de explora muito tempo circunscritos ao âmbito da guerra [.. .] mas verificar-se-iam também em
dores. Por quê este desvio entre a língua falada e o dicionário? O prefácio do tempo de paz, destruindo por completo a finalidade.>>:
Z)ící/Olzrzízírede 7'révoux, surgido em 1771, sugere uma interpretação. Neste contexto militar, que relega a exploração para as actividades do observador
ou mesmodo informador num país inimigo, não surpreenderátanto a dificuldade que
Exp/orador. O termo comum é: informador. São palavraspouco usadasque têm tem em se impor na linguagemcorrente,segundoa acepçãomais <<nobre
e audaz>>
de
algo de nobre e de arrojado que agrada logo: parece que o uso faz mal em não as adop- viagem científica proposta pelos dicionários. Para Lapérouse, oficial da marinha encar-
tar. Julgo que o termo exp/orador possui esta característica. Creio que, se utilizado regado de dar a volta ao mundo em dois navios alugados por Luís XVI, a palavra <explo-
com um pouco de sagacidade,faria facilmente fortuna e que o uso, apesar de despó-
ração>> aliás, frequentemente associada a <<expedição>>, <<campanha de descoberta>>,
tico, cederia a seu favor. Pode acrescentar-se que a palavra exp/orador parece pre
<aeconhecimento>> mantém-se ainda muito próxima da sua etimologia e da sua cono-
nunciar funções mais nobres e requintadas do que a de ilt/armador. Aplica-se àquele
que é enviado às cortes estrangeiras, para descobrir os sentimentos, o modo de pen tação militar dos primeiros usos que dela se fazem, muito embora os perigos do oceano
sar, os segredosdo ministério, etc. <<Oministro empregou hábeis exp/oradores nesta substituam a ameaçainimiga: <<Estaexploração, para ficar completa, necessitariade uma
corte.>>Dá ideia que se pode aplicar também nesse caso ao que é convidado à desco- expediçãoque não tivesse outro objectivo, e cuja duração não fosse inferior a dois ou
berta de um país, para conhecer a situação, a extensão, etc. três anos. Não existe nada mais moroso do que descrever minuciosamenteuma costa
semeadade ilhas, cortada por imensos golfos, da qual os nevoeiros frequentes e as cor-
O argumento procura, portanto, eliminar a conotação militar e pejorativa que parece rentes sempre fortes e imprevisíveis apenas permitem uma aproximação com prudência
pesar sobre a palavra, a fim de Ihe abrir uma carreira semântica mais gloriosa, que e precaução.>>Contudo, no que se refere ao observador militar, enviado no maior segredo
faça passar o explorador da dimensão de informador para a de estudioso. Ele oferece em exploraçãodo tenitórío inimigo, o método e o campo de investigaçãomudaram.
a vantagem de ancorar a noção moderna de exploração científica a uma história secular, Agora já não existem segredos nem estratégias de guerra: <(Nãocravarei mais a minha
relacionando-acom outros significados, antigos e fortes, derivados da sua etimologia bandeira [...]. Apesar de ser um bom francês, nesta campanha sou um cosmopolita,
e dos seusprimeiros empregos; convida a questionar as implicações dos laços entre alheio à política da Asia.» Não existem intenções de conquista: trata-seapenasde tra-
reconhecimento militar e exploração geográfica, em suma, a esboçar, através de uma balhar com os ingleses no <<reconhecimentogeral do globo>>,através do levantamento
análise semântica,um primeiro retrato do explorador do Século das Luzes. das costas e das ilhas e da procura de novas vias marítimas. A missão do explorador é
Retirada do latim clássico exp/orador, termo que em Plínio designa, no exército traçar o mapa das terras até àquele momento desconhecidas da Europa.
romano, o encarregado dos reconhecimentos, a palavra encontrava-se já bastante pre E nesta acepçãoque se utiliza o termo em inglês, mesmo no final do século. Em
sentena língua francesa desdemeados do século xv com o seu sentido etimológico 1793. Thomas Jefferson anuncia ao botânico francês André Michaux que uma subs-
militar: o explorador é aquele que é enviado em perlustraçãonum país inimigo a fim crição promovida a seu favor, sob o patrocínio da American Philosophical Society,
de obter informações sobre a estabilidade do exército e sobre a configuração dos Ihe irá permitir <<explorar
a regiãodo Missouri e dali cm direcçãoao Oeste[aventu
locais -- é o emissário, o observador,por vezeso informador. Os tratadosmilitares rar-sel, até ao Oceano Pacífico>>.Em 1803, utiliza o mesmo termo (ro exp/ore) para
da época moderna descrevem pormenorizadamente o comportamento que se espera definir o programa da expedição projectada pelo governo americano para o Oeste e
destesenviados: o simples soldado que é enviado em exploração ao campo circum- o Sul do país: <<Aguardoa autorização do Congresso para explorar a região entre o
vizinho, a fim de recolher informações sobre o inimigo, distingue-se do oficial encar- Mississípi c o Missuri, a fim de conhecera geografia dos seusafluentes e determi-
regado do estado-maior de uma missão de reconhecimento no interior do país, ver- nar o seu curso até às nascentes.»'
dadeira averiguaçãoem que são permitidos todos os meios para que ela possaser
conduzida, inclusivamente, o disfarce e o segredo.<<Epreciso enviar oficiais prepa <Osestafetas e os exploradores que são enviados em missão para transmitirem informações sobre
rados com todo o tipo de pretexto, e manda-los também disfarçar-se, senão não con- o percurso e o modo de encontrar o caminho e, por vezes, se possível, saber a situação dos inimigos»
seguiremosnada. Serão instruídos sobre tudo o que devem observar, e no regresso (Z,fure des Esc/zezAmolíretr,r, v. 1450, cit. in P. Laurent. <.Contribution à I'hisLoire du lexique français>>,
Rn/?za/iia, 5 1 [1925], pp. 38-39); /rzsfrüclíon rnl'/fraíre d rol de Prusse tour ses gérzéraux..., 1761, P 31
1. Kant, Per Ja Face perpetua, l.' secção, par. 6 (devo esta referência bibliográfica a Alain Dewerpe)
' «Explorador>>,<<Exploração>>, in 7résor de/a /ang e/ra/zçaíse, Paria, 1980, t. 8; Lapérouse ao minis : Z'? voyage de Inpéírolfse cit. passam, em particular t. 1, pp. 260 (Lapérouse a Fleurieu, 3 de Jan. de
tro da Mail.nha, in Le voyage de l.apérouse, 1785-1788, Récita et doctllnents originaux préselttés par 1787), 266 (7 de Abr. de 1787), 257 (Lamanon ao ministro, l.' de Jan. de 1787); Th. Jefferson a A. Michaux,
.r. l)ifnmore ef it/. de Brossí2rd,t. l, Imprimerie Nationale, Paras,1985, p. 265 (citado segundo Lapérouse); 30 de Abr. de 1793, in D. D. Jackson(direcçãode) l,effers af Zzwls and Clara ExpedífloPZ,
Urbana, 1962,
Paria, Archives nationales, AJ 15/51 1, p. 420: Catálogo das aves guineenses doado ao museu público de p. 669; Th. Jefferson a Ellicott, 23 de Dez. de 1803, in J. F. McDermott, <<TheWestem Journals of George
Paraspor Louis-Claude Richard, 1793. Hunter, 1796-1805>>,Praceeedfrzgsof f#e Amerfcan P/zf/osop#fca/SocleO, 103 (Dez. de 1959), n.' 6. p. 77 1

210 211
Por estes exemplos, sejam franceses, sejam ingleses, compreender-se-á que o dor Beauharnais para o seu projecto de expedição ao Missuri, deixando entrever a
explorador, tal como o informador de um exército, é um enviado oficial, encarregado esperançade que a descobertadas minas no Nordeste canadiano teria enriquecido o
pelo governo de uma missão de descoberta numa terra longínqua e desconhecida; e, rei de França. Quando em 1763, com o Tratado de Pauis, é aprovado o fim da Nova
como tal, pode ver-se apanhado na teia das rivalidades políticas e dos conflit(!ê.inter- França,estesterritórios vastosficam à mercê das ambiçõesdos Ingleses e, pouco
nacionais.Mas passandode um objectivo guerreiro(avaliar as forças inimigas) a uõ depois, às dos Americanos e também dos Espanhóis e dos Russos. Caçadores de
programa cognitivo (completar o mapa dos mares e o inventário dos continentes), a peles, comerciantes, aventureiros seguem o caminho dos Grandes Lagos e das
natureza da sua missão assumiu uma dimensão diferente: reconhecedor por conta da Montanhas Rochosas,com projectos maravilhosos em que convergem os Interesses
Europa, até aos antípodasdeste continente, o explorador é aquele que parte à des- das companhias mercantis e as aspirações dos governos; em 1802, ao ler as propos-
coberta de uma frente de conquista intelectual, cujo império se estendea pouco e tas do explorador escocêsAlexander Mackenzie para a construção de uma linha de
pouco a todo o planeta. fortins que manteria a presença inglesa desde os Grandes Lagos até ao Pacífico,
Thomas Jefferson decide enviar a primeira expedição americana transcontinental, em
que participaramos oficiais Meriwether Lewis e William Clark.
Exploração, ciência e império Depois cabe a vez ao Oceano Pacífico. Quando, a partir de 1760, os progressos
realizados na medição da longitude e a maior atenção dada à saúde das tripulações
O explorador estimula a imaginação pelo facto de suscitar a ideia da aventura de permitem pensar sem muitos riscos em navegaçõeslongas até aos maresaustrais,
um herói intrépido e solitário, que parte para um destino desconhecido, que avança Cook, Vancouver, Lapérouse, Malaspina, navegadores oficiais, transferem para estas
semquaisquer pontos de referência. Mas esta iconografia romântica esqueceque o regiões, até ali inacessíveis, as rivalidades políticas e as ambições económicas ou
exploradoré mais um reconhecedordo que um aventureiro,viaja em cumprimento estratégicas dos seus governos. As instruções transmitidas por Luís XVI a Lapérouse
de uma missão organizada que conta com o financiamento de um príncipe, de um descrevem pormenorizadamente as <<intençõesrelativas à política e ao comércios, a
grupo de comerciantes,de uma instituição científica ou missionária, com objectivos que o navegador deve prestar atenção: <<Tantoquanto é possível avaliar pelos rela-
precisos nascidos de um conhecimento geográfico provisório e das expectativas de tórios que chegam a França vindos destes países, a posse activa da Espanha não ultra-
uma época. Em vez de se lançar no vazio, o explorador sabe o que deve procurar, o passa as portas de San Diego e de Monterey [...]. O senhor de Lapérouse procurará
que pretende encontrar. Antes de seguirmos os seus passos, convém vermos primeiro conhecer o estado, a força c o objectivo destas colónias, e assegurar-se de que sejam
o panorama político, económico e mental que idealizou a sua partida. as únicas quc a Espanha fundou naquela costa. Exatninará igualmente a que latitude
Não é difícil apercebermo-nosde que, a partir do Renascimento, exploração e se pode começar a procurar pe]es, [...] qual a possibilidade de se fundar uma coló-
conquista andaram lado a lado; os exploradores europeus abriram sempre o caminho nia nesta costa, [...] que benefício advirta para a trança com este novo ramo de
aosmercadores,aos soldados, aos colonos; não existe exploração sem uma forma de comércio.>>Lapérouse não se esquecerá de comunicar a Luís XVI as suas observa-
domínio. Efectivamente, num plano genérico, é evidente o elo entre descoberta e con- ções sobre o comércio russo de peles no Alasca, nem de proceder a uma avaliação
quista, como o demonstraa corzfrario o exemplo da China, que na época dos Mina do lucro que a trança retiraria de uma participação no comércio de peles de lontra
renuncia simultaneamente à expansão marítima e à curiosidade em relação ao mundo, destinadasà China.
negligenciando as grandes expedições que em finais do século xv levaram os jun- E segue-se a Africa, último espaço vazio no mapa-múndi até ao final do século.
cos do imperador Yong-lo até ao mar Vermelho. Mas uma coisa é verificar esta Feia Uma vez que a Inglatena perdeu as colónias americanas,este contmente torna-sc
ção, quaseestrutural, entre ciência e poder, e outra é especificar a sua articulação: uma nova terra para novas explorações. Enviado por um grupo de homensde negó-
dado que no século XVlll os laços entre descoberta e domínio do mundo não se afi- cios e de nobres ingleses, o escocês Musgo Park empreende, em 1795, uma viagem
guram tão simples como nas épocas da conquista, como o século XIV e o século XIX, ao Níger, a fim de dar a conhecer aos compatriotas a geografia de Africa e <abrir
o Século das Luzes oferece um campo de investigação particularmente aberto. novas fontes de riqueza à sua ambição, ao seu comércio, à sua indústria>>'
Não que a época seja parca em ambições ou apetites materiais. Por detrás das via
gens deste século misturam-se interesses pessoais e nacionais, objectivos políticos, Mas é possível reduzir estasexploraçõesaos seusobjectivos directamenteutili-
miras estratégicas e comerciais. taristas, comerciais e geopolíticos? O «projecto de uma campanha de descobertas>>
E o caso da América do Norte. Na época da presençafrancesa,os territórios des- redigido em face da missão de Lapérouse afirma-o expressamente: <<Aqui,a empresa
conhecidos do Oeste atraem na altura os colonos em busca de peles ou de jazidas,
os missionários em busca de almas para converter e as autoridades locais desejosas
l Ph. }acquln, A la recherchede la iner de I'ouest. L'exploríltion Jrançcíiseetl Ailtériqtle dil Nord, in
de reforçar o controlo da monarquia nestas regiões: Bénard de La Harpe e o agri-
yayager. exp/crer, n.' especial de «xvllle"' siêcle>>,n.' 22 (1990), p. 144; J. P. Ronda, <'Dreamsand
mensor Dumont de Montigny partem para a Louisiana em 1720, à procura da <<rocha Discoveries: Exploring the AmericanWest, 1760-1815>>,Wi//fa/n and Àfary Quarrer/y, 111série,46 (Jan
de esmeralda>>situada, segundo as indicações dos índios, junto ao rio Arkansas; no ] 989), pp. 145-162; Z,evoyage de Z.aparar. e çit. t. 1, pp. 31-32; Musgo Park, yoyage dUnS/'ínférlewr de
Canadá, o colono La Vérendrye e seus filhos obtêm, em 1738, o apoio do governa- /'Ádrique, Maspero, Paras, 1980 (reedição da edição francesa do ano VIII), p. 34

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v'
It coinercia[ [...] é apenassecundáriu>,no que se refere ao programa geográfico e
científico desenvolvido em pormenor, segundo as instruções copiadas à mão pelo
próprio rei, que informa o navegador de quais as regiões a explorar, no Pacífico e
circulação e de comércio: através dela, a Europa difunde, pacificamente, o modelo
universal da civilização. As instruções de Luís XVI a Lapérouse retomam esta aliança
ideal entre ciência e política, entre comércio e filantropia:
ao longo das costas americanas e asiáticas, e apresenta aos estudiosos, naturalis-
tas, médicos e astrónomos, a lista das suas tarefas. Para os médicos e cirurgiões de À chegada a cada país, ele deverá procurar conquistar a amizade dos principais
bordo, a Societé royale de médecine redigiu um questionário especial onde, entre chefes, quer com sinais de benevo]ência quer com dádivas [...]. Usará de todos os
meios honestos para estreitar os ]aços com os indígenas [...]. Recomendara a todos
outras dúvidas, se pode ler: <<Nãofoi dito quase nada sobre o uso das duas mãos.
os homens da tripu]ação que vivam em harmonia com os indígenas [. . .]. Ocupar-se-á
A questão relativa aos ambidextros, ou a preferência de uma mão em vez da outra, com zelo e interesse de todos os meios que podem melhorar a sua condição, introdu-
não despertou ainda suficientemente o interesse dos naturalistas. E por isso impor- zindo no seu país legumes, árvores de fruto e outras árvores úteis provenientes da
tante examinar se os povos que vamos visitar se servem, para trabalhar, indiferen Europa e ensinando-]hes a semeá-]as e a cu]tivá-]as [. . .]. Não recorrerá às armas senão
temente das duas mãos, ou se usam de preferência uma delas, e se a predominân- em caso extremo, unicamente para defesa pessoa] [. . .]. Sua Majestade consideraria um
cia da direita nas naçõescivilizadas mais não é do que uma consequênciados dos êxitos mais felizes da expedição que ela fosse levada a cabo sem custar a vida a
preconceitos.>> Para a missão de descoberta nos mares austrais confiada por Bonaparte um só homem.s
ao capitão Baudin, sob o patrocínio oficial do Instituto e da Sociedadedos obser-
vadoresdo homem, G. Cuvier redige uma <<Notainstrutiva sobre as investigações Os viajantes e os navegadores são, no imaginário europeu, os heróis desta utopia
a efectuar em articulação com as diferenças anatómicas das diversas raças huma- liberal, que prometecom um único movimento -- o do comércio entre os homens--
nap>,e J.-M. de Gérando propõe <(Consideraçõessobre o método a seguir na obser a riqueza a toda a terra e a civilização aos povos selvagens.
vação dos povos selvagenP>, primeiro questionário de antropologia comparada,
manifestamente sistemático: <<Pretendeu-se
sobretudo apresentar um quadro com- Definitivamente, se existe interesse político nas expedições, isso sucede através
pleto que reunissetodos os pontos de vista possíveis segundoos quais o filósofo da dimensão nacional com que estas estão frequentemente conotadas, como se a
considera estas nações.>> demonstraçãode poder passassenecessariamentepela conquista da glória científica.
O lugar privilegiado conferido à investigação e ao inventário é comum a todas as Há conhecimento da missão académicaorganizada por iniciativa francesa, em 1735,
explorações do século, inclusivamente às proezas individuais levadas a cabo por aven- pela Academia das Ciências que, a fim de medir o meridiano terrestre, leva o mate-
tureiros. Quando JamesMcKay, caçador de peles escocêsque se colocou ao serviço mático Maupertuis até à Lapónia e o hidrógrafo Bouger, o astrónomo Godin e o cien-
da Espanha, envia, em 1795, em exploração ao continente americano, um jovem via- tista-filósofo La Condamine aosplanaltos andinos: a glória do rei de França afirma-se
jante galês, John Evans, ordena-lhe que conserve um diário de viagem dedicando através do progresso da ciência e da solução do enigma do <<aspecto>> da Terra. Um
uma secção especial à história natural e que recolha exemplaresda fauna e da flora quarto de século depois, a ocasião das duas passagensde Vénus, em 1761 e 1769,
para um posterior estudo científico; o explorador- deverá observar também os povos provoca uma verdadeira mobilização internacional e leva os estudiosos aos quatro
índios que encontrar número, /zabírczr,território, produção -- e procurar também o cantos do mundo: participam na observação da primeira passagemcerca de cento e
unicórnio que segundo se diz -- vive nas Montanhas Rochosas. Quando, em 1803, vinte investigadores,dos quaistrinta e dois franceses,vinte e um alemãese outros
Thomas Jefferson contacta um farmacêutico de Filadélfia, George Hunter, perito em tantos suecos, dezoito ingleses, nove italianos, três portugueses, três russos, três dina-
química e mineralogia, no sentido de explorar a Louisiana, aconselhao chefe da marqueses,três espanhóis. Em 1769, mais de cento e cinquenta estudiosos encon-
pequena expedição, William Dunbar, a não esquecer o objectivo essencialmente <<lite- tram-se preparados, dos quais desta vez uma maioria de ingleses (oitenta), trinta e
rário>>(/Ire/aW), isto é, de estudo,da sua viagem: <<Convém
evitar que um excesso dois franceses, quatro alemães, quinze suecos, sete espanhóis, treze russos. A riva
dc complacência em face das suasqualificações não leve a que a nossa missão redunde lidade entre os países mostra a formação de uma comunidade científica internacio-
numa procura de minas de ouro e de prata. Devem assinalar-se se aparecerem como nal; isto significa, de igual modo,que a afirmaçãonacional passapelo prestígio da
succdeiia em relação a uma jazida de sal, de carvão ou de calcário, e não como um ciência
objecto que se procura propositadamente.>> A evolução da Espanha demonstra os laços crescentes entre ciência e nação.
Será lícito afirmar quc a curiosidade enciclopédica demonstrada nestasexpedi Durante uma parte do século e no momento em que dispõe do império colonial mais
ções seja algo de insólito, ou que sirva de álibi a outras motivações de espionagem
política ou comercial? Não faríamos justiça aos propósitos do século, àquilo que dis
5 l,e voyagede l,apérouse,cit., t. 1,pp. 14,37-38; M. Zobel, l,es /zatzlra/lxfes
voyagelrs/ra/zçais ef
ringue esta época: uma vontade de conhecimento que ultrapassa a manifesta utili /es gramas voyages marírlme.s dzzxv7//õ"'' ez'x/p"'' sfêc/es, teses de doutoramento em medicina, Paria, 1961
dado,directa e imediata; em última análise, a convicção íntima e profunda de que Sobre esta expedição, ver também C. Gaziello, Z.'expédífio/z de Inpérouse, / 785-/ 788. Rlgplíq fe/ríz/zçaíse
não existe progresso possível a não scr depois de ultimados o mapa do mundo e o au.r voyagesde book, CTHS, Paras,1984;J. Copans-J.Jamin(direcção de), Aux orzgí/ze.de l 'arzràropo
inventário completo das suas riquezas. O conhecimento surge como instrumento do logre fraKçaise. Les Mémoires de ta Société des Obsemateurs de !'Homme en !'att Vlll, l.e SNcomote,
progresso, uma vez que implica abertura, rotura do isolamento, primeira forma de Paria, 1978, pp. 127-176; Ronda, op. cir., pp. 151-152; McDermott, op. cí/., p. 772.

214 215
Y'
vasto do mundo, a coroa espanhola também não se mostra particularmente activa em de Copenhaga>>de 12 de Janeiro de 1761. Neste caso, não existem objectivos comer-
matéria de exploração geográfica dos territórios que se encontram sob o seu domí- ciais nem estratégicos:constituída por cinco cientistas - dois dinamarqueses,o filó-
nio: de um total de oitenta e um viajantes registados no Peru entre 1685 e 1805, ape- logo Von Haven e o médico Christian Karl Kramer; um sueco, o naturalista Forsskal,
nas doze são de nacionalidade espanhola, contra quarenta e um franceses,dezassete aluno de Lineu; um frisão, o jovem agrimensor CarstenNiebuhr, e um alemão, o
ingleses, sete alemães, um holandês, um sueco, um italiano e um americano. Os espa- desenhador Georg Wilhelm Baurenfeind -- a missão deve <<procedera novas desco-
nhóis limitam-se a acompanhar nas suas colónias os exploradores estrangeiros, a fim bertase observações,onde quer que as venha a encontrar e para o bem da ciência.
de vigiarem os seus actos e, simultaneamente, participarem nos trabalhos: dois tenen- Deverá de igual modo recolher, para os enviar, manuscritos orientais de manifesta
tes da marinha, Don Jorge Juan e Don Antonio Ulloa, acompanham os académicos utilidade, beM como colecções de história natural e outros objectos raros do Levante>>.
franceses na sua expedição andina com vista à medição do meridiano; em 1769, vinte Portanto, uma expedição puramente científica: é graças ao seu contributo para o
oficiais espanhóis irão acompanhar o astrónomo Chappe d'Auteroche na sua deslo- estudo das línguas antigas e da astrologia, da astronomia e da história natural que a
cação à Califórnia para observar a segunda passagemde Vénus; também em 1777, Dinamarca tenciona manter a sua posição entre as nações europeias
o naturalista francês J. Dombey é autorizado a deslocar-seà América do Sul, apenas Esta dimensão patriótica das expedições leva, por outro lado, à questão do recru-
na condição de aceitar a presençade dois jovens botânicos, Hippolito Ruiz, que é tamento dos exploradores. Com efeito, é frequentemente inevitável os governos, na
nomeado chefe oficial da expedição, e José Antonio Pavon; terá de aceitar dividir falta de pessoascompetentes,terem de recorrer a estrangeiros. E o caso da Rússia:
também com eles, no regresso, os frutos da sua expedição. Mas, quando surge em membro da Academia das Ciências de São Petersburgo, o geógrafo francês Joseph-
1782, na secção géograpA/e da Enc clopédle A/ér/zodíque,um artigo destrutivo de -Nicolas Delisle dedica-sedurante vinte anos a trabalhos de cartografia e à prepara
Masson de Morvilliers (<(Oque se deve à Espanha?>>),a polémica daquele momento ção de viagenscientíficas; o seu irmão Louis é chamadoa participar na expedição
provoca na península uma onda de orgulho nacional: as duas últimas décadas do de Bering e encontraa morte em Kamchatkaem 1741; o próprio Bering é um dina-
século conhecem o envio de inúmeras expedições geográficas e científicas que, sob marquêsque se colocou ao serviço de Pedro, o Grande; Gmelin e Pallas, que chefia-
o patrocínio oficial da coroa, procuram agora demonstrar a capacidade científica da ram as expedições siberianas, são ambos alemães, bem como a maioria dos partici-
Espanha.Ruiz e Pavon, que ficaram no local após o regressode Dombey a França, pantes, muito embora alguns russos integrem já equipas da segunda expedição.
prosseguematé 1788 a exploraçãodo Child e do Peru; o botânico José Celestino Ora, ainda que conforme ao espírito cosmopolita do Iluminismo, o recrutamento
Mutis é encarregado de uma expedição a Nova Granada; em 1787, o médico Marin de estrangeiros levanta algumas dificuldades: o francês Chappe d'Auteroche, enviado
de Sesséchefia uma exploração da Nova Espanta; mas a circum-navegação atribuída a Tobolsk a pedido da Academia de São Petersburgo, suscita a fúria da imperatriz
em 1789 e 1794 ao navegador genovês Alessandro Malaspina é sobretudo a resposta Catarina ll pelo quadro bastante negro que traça da Rússia na narração da sua via-
às viagens de Cook e Lapérouse, na tentativa de restaurar o prestígio da Espanhae gem; o botânico André Michaux, encarregadopelos EstadosUnidos, em 1793,de
afirmar a sua presença nas águas do Pacífico. uma missão de exploração, vê-se obrigado a interromper a viagem ao Kentucky e a
/t/ /aífs m fa/edis, observa-se o mesmo fenómeno nas nações que, durante o século regressarà pátria no momento em que se descobreque este <<agentebotânico da
xvln, se dedicam às explorações dos seus novos territórios. Na Rússia verifica-se a França>>teria provavelmentea missão de prepararuma intervençãocontra as pos'
ocupação, por parte do poder czarista, das imensas terras siberianas até ao Pacífico, sessõesespanholasna América. Uma disputa, logo após a morte de Cook, opõe o
com as expediçõesde Bering e com as duas missõesenviadaspela Academia das Almirantado e os amigos do navegador inglês aos dois botânicos alemães Reinhold
Ciências de São Petersburgo,uma chefiada pelo médico JohanGeorg Gmelin no rei- e Georg Forster, pai e filho, que partcipam na segunda viagem e que começaram a
nado de lsabe11 (1733 1742), a outra no início do reinado de Catarina 11,confiada publicar os resultados por sua própria iniciativa. Também a expedição dinamarquesa
ao naturalista Petcr Simon Palhas(1768-1774). Na América do Norte, a independên- à Arábia, concebida como uma viagem científica modelo, corre perigo em virtude da
cia dos EstadosUnidos suscitapor parte do governo federal o envio de explorado carga de amor-próprio nacional: todavia, na sua organização,ela escapaa todo e
res para o Sul e o Oeste do país, territórios ainda mal conhecidos, a ponto de a pró- qualquer preconceito nacional, a partir do momento em que os cinco membros da
pria linha de fronteira permanecerincerta. ParaJefferson e a American Philosophical expedição são considerados em pé de igualdade, sem um chefe oficial, e que o minis-
Society, fundada em 1767, a construção do território nacional, a sua delimitação tro Bemstorff confiou, de facto, ao jovem Niebuhr, e não ao dinamarquêsvon Haven,
exacta e o seu inventário por um lado, e a afirmaçãoda autonomia científica, por a responsabilidadefinanceira da missão. Mas quando, durante a viagem, sobrevêm
outro, avançam lado a lado. A ciência participa no processo de construção nacional. confrontos entre Forsskal e von Haven, o ministro preocupa-se com as ambições pes-
Afinal de contas, ele é suficiente para a glória de um país, em vez da expansão soais do jovem sueco: <'Nada seria mais desagradável para a nossa nação do que ver
territorial, como o demonstraa expediçãoenviada pelo rei da Dinamarcaà Arábia esteestrangeirochamara si toda a glória de uma iniciativa que, de início, tomou
em 1761: <<Nãoobstante os tempos difíceis e mal-grado a pesada opressão que causa forma no nosso país, e cuja realização se fica a dever à generosidade do nosso rei.>>
ao governo do nosso país, Sua Majestade procura a todo o custo privilegiar o desen- A preocupação tem o seu fundamento: desde o início da viagem, e para que Copenhaga
volvimento dos conhecimentos e da ciência, aumentando deste modo, graças a estas não consiga decifrar os seus herbários e as suas colecções, Forsskal preparou um
empresas úteis e meritórias, a honra do seu povoa, anuncia o <<Correiodinamarquês código de classificação, de que somente Lineu conhecia a chave; aliás, para que o

216 217
seu mestre usufruísse das suas descobertas, o jovem estudioso solicitou ao governo Apesar de dois séculos de presençaeuropeia, o continente norte-americano per-
dinamarquês que enviasse a diversas instituições científicas europeias, entre as quais manece em grande parte desconhecido: após as primeiras viagens de descoberta, de
a Universidade de Uppsala, cópias dos seus exemplares. Forsskal pretendia favore Cartier a Champlain, circulam lendas sobre a existência de jazidas e de um <<mar

cer simultaneamentea sua carreira, os interesses da botânica suecae o prestígio do de Oeste>> acessível por via fluvial. Ainda na primeira década do século xvin, o geó
empresário real. Graças ao contributo científico com que abrilhanta a glória do pró- grafo Guillaume Delisle refere este mar ocidental nos seus mapas, multiplicando as
prio país, afirma-se o orgulho patriótico do explorador do Século das Luzes. <(Ovia- crónicas. Em 1720, o jesuíta François-Xavier de Charlevoix é enviado à descoberta
jante consideraa pátria como um amigo doente; parte mundo fora em buscade um do mar de Oeste e leva avante a investigação durante três anos, junto dos caçadores
remédio para os seus males>>,escreve Leopold Berchtold em 1789ó. de peles e dos selvagens. Subindo o Missouri e avançando até ao território dos Mandans,
entre 1738 e 1743, o colono canadiano Pierre La Verendrye e seus filhos são persuadidos
a procurar naquelasparagensum rio que os levará até ao mar. Não terá afirmado um
Do sonho à descoberta: o mundo traduzido em mapas geográl'ices chefe índio, propondo-se conduzi-los até às <(montanhasgrandes>>:<<Dalipodereis ver
o mar que procurais?>>
Os guiasindígenase os mapascientíficos são,pois, unânimes
O célebre quadro de Mansiaux representa Luís XVT a dar instruções a Lapérouse ao sustentarema hipótesedo mar de Oeste. Mas a que distância?Do lado de lá de
para a sua viagem de circum-navegação: sobre a mesa do gabinete real encontram-se que montanhas?Na época, ninguém o sabe:partindo de uma visão restrita do conta
.]

atlas, mapas geográficos estendidos, um mapa-múndi. Antes da partida, os explora nente, nem os geógrafos teóricos nem os exploradores conseguem imaginar a exis-
1!
dores, geógrafos e políticos imaginam a viagem debruçados sobre os mapas; com os tência da enorme barreira que se ergue a Oeste do continente. Pensa-se que as Montanhas
seus contornos incertos, os seus espaços em branco envoltos em lendas, apresentam Rochosas, bem como os Apalachcs a Leste, não passam de uma sucessãode picos
um quadro do saber geográfico da época, misto de conhecimentos positivos, de infor pouco elevados, interrompidos por inúmeros vales fáceis de transpor, de onde, atra-
maçõesmais ou menos confirmadas, de sonhos. Não se duvidará de que estas repre- vés de um transporte simples por terra, se poderá alcançar o oceano por intermédio
sentações são por vezes fantasiosas e que, uma vez encaixadas, se podem revelar de um rio. Assentam nesta imagem todos os projectos de expedição transcontinental,
totalmente erróneas. Isso não obsta a que as decisões da viagem, a escolhado itine- particulares e oficiais, franceses, ingleses ou americanos: o do Parlamento inglês que,
rário e dos objectivos se baseiem nestes conhecimentos. O imaginário geográfico per- ao saber da chegada dos Russos ao Pacífico, após os feitos de Bering no Alasca e nas
mite pensar na partida e torna-a, portanto, possível. Aleutas, em 1745,aprovaa atribuiçãode uma recompensade 20 000 francosa quem
Ora, dois mistérios pairam ainda, no século xvlll, sobre o conhecimento do globo: encontrar uma passagem directa, no Norte da América, para a Asia; o do colono Robert
o da passagem a Noroeste, que permitiria contornar ou atravessar a América do Norte Rogers que, em 1766, solicita ao Board of Trade o financiamento da expedição que
com uma navegaçãodirecta do Atlântico ao Pacífico, e o do continente austral com pretendeenviar a um certo rio <(Oregam>;
por último, o dos capitãesLewis e Clark,
o qual, desde o Renascimento, cartógrafos e cosmógrafos continuam, por uma ques- enviados por Jefferson em 1804: nos mapas que levam consigo para orientar o avanço
tão de simetria, a preenchero hemisfério sul; permitindo qualquer hipótese,estes para lá do Missuri, as MontanhasRochosasnão passamde um traço de penasem
11 dois enigmasimpulsionam os exploradorespor terra e por mar. espessura. É incorrecto afirmar que estes mapas são conjecturais: eles desenham o
Oeste americano tal como é imaginado pelos geógrafos e pelos viajantes.

6 R. Mercier, <<LesFrançais en Amérique du sud au xvlllêm' siêcle. La mission de I'Académie des No caso do continente austral, a curiosidade dos filólogos vem juntar-se às teo-
sciences>>,1735-1745,Rev e/ralzçaíse d'&isroíre d'ourre-mer, 56 (1969), n.' 205, pp. 327 374; J.-P. Faivre, rias dos geógrafoslevandoao augea especulação.E mais ainda, na medidaem quc,
«Savants et navigateurs: un aspect de la coopération internationale entre 1750 et 1840», Ca/ziers d'/z/.ç-
devido à distância, à enorme mortalidade provocada pelo escorbuto durante as longas
foíre /nondía/e, lO (1966), n.' 1, pp. 98-108; A.-M. Brénot, <(Lesvoyageurs français duns la vice-royauté
du Pérou au xvule"' siêcle>>,Recue d'/zísfoíre foder/ze ef co/zremporalne, 35 (Abr.-Jun. 1988), pp. 240-
permanências no mar, à imprecisão da navegação à vista, estas regiões se mantêm,
-261;INicolas Massonde Morvilliers] , EncyclopédíeÀ/éfàodlqiíe,Géograp/líemader/ze,t. 1, Paria, 1782; até 1760, quase inacessíveis. A imagem do mundo construída através das descober-
Espagize,cit. in F. del Pino Diaz(direcção de), Cíe/iria y confexfoAisfóríco nílclo/zal.elzlas expedfclo/zes tas do Renascimento e da primeira metade do século xvll mantém-se praticamente
í//lz.çr/ada.sa A/neríca, Consejo superior de investigaciones científicas, Madrid; 1988, pp. 20, 181-186; .La intacta: nos mapas, o hemisfério sul é ocupado por um imenso continente, de con
spedízfo/ze .A4a/aspí/za,Sagep Editrice, Génova, 1987; Th. Hansen, Z,a mora e/z ..4rabíe. ZI/neexpedirfo/z
torno assinalado à pressa, com base em alguns aspectos de costas conhecidas; o
da/lol.çe./7ó/-/7ó7, Actes Sud, Artes, 1988, pp. 17, 84-85; ver tambémC. Niebuhr, Voyagee/t .Arabie
Oceano Pacífico é povoado por inúmeras ilhas, avistadas uma vez e nunca mais reen-
e/ d'azlfres paus cfrc rmvoisilzs, [rad. fr. 2 vais. Amsterdão, 1776-1780(ed. or. Reísebesc/lrefbu/zg /zczc/z
Áraóíe/z l{/zd a/lderlz um/lego/éden l,dlzder/z, 2 volt., Copenhaga, 1774- 1778); N. Broa, Z,a géagra/)/zíe des contradas, ou descobertas várias vezes em posições e com nomes diversos. Para que
p/zl/osopAes.Géograp/zes ef voya8eurs/ralzçafs au XV//r"'' . lêc/e, Ophrys, Pauis, 1975, pp. 159-162, 383-391; fosse possível a exploração geográfica dos mares austrais, eram necessáriasinova-
G. B. Goode, <<The Origina of the National Scientific and Educational Institutions of the United States>>, ções radicais. Graças aos progressos efectuados pelos astrónomos e pelos matemáti-
Papers of fAeÁmerica/z Hísforíca/ Associaríon, IV(Abr. 1890), n.' 2, p. 38; L. Berchtold, Essaspoür dóri cos com vista à determinação das distâncias lunares, e dos relojoeiros na construção
ger et étendre!es recherchesdesvoyageursqüi se prolJosent!'ütilité de le {r patrie, traí., fr., t. 1, Par\s,
de instrumentos bastante precisos para manter a bordo a medição exacta do tempo,
1797, p. 93 (citado por E. Chevalier, Urzeméf#ode universo//e tour voyager aves pr(Z/íl, par le cobre
Leopotd Berchfoid, in Voyager, exploremcit. p. 13). a navegaçãoastronómica acabapor se impor, permitindo um cálculo exacto da posi-

218 219
r
ção em termos de longitude: JamesCook é o primeiro a levar, na sua segundavia Vai ser precisoaguardara Restauraçãoparaque se crie em trança, junto do Museu
gem (1772), relógios e cronómetrose, em particular, a cópia do relógio marítimo de História Natural, uma escola de <<viajantesnaturalistas>>que recruta por concurso,
inventado por Harrison em 1759. As suas viagens assinalam também a mudança radi- verifica atravésde um exameo ensino recebidoe entregaaos que envia em missão
cal efectuada em matéria de higiene naval e de tutela da saúde das tripulações: devido um manual de instruções, verdadeiro guia da exploração, reeditado por diversas vezes
a provisões de fruta, couve picada fermentada, legumes conservados em vinagre durante o século. Até àquele momento, não existia nada de tão formal. E-se religioso
(ignora as virtudes do limão) e uma logística das escalasque permite, de três em três ou oficial, botânicoou astrónomo,caçadorde pelesou médico;masum sonhoda
ou de quatro em quatro meses, o descanso da tripulação e o reabastecimento de víve- infância, um acontecimento imprevisto na carreira, um encontro, um acontecimento
res frescos, o navegador inglês, durante os três anos e onze meses da sua segunda político levam a que se torne explorador
viagem, perde apenas dezassetehomens, dois dos quais devido ao escorbuto, de uma
tripulação de duzentos e cinquenta e cinco marinheiros. Este progresso duplo abre Sentia, desde a primeira juventude, um desejo ardente de viajar até terras longín
qual e pouco frequentadas pelos Europeus conta Alexander von Humboldt. Crescendo
os mares do Sul aos navegadores europeus
Ora, a partir de meados do século xvm, surge novamente o debate sobre o con- num país que não mantém qualquer comunicação directa com as colónias das duas
Índias, vivendo depois em montanhasafastadasda costa, senti a pouco e pouco desen
tinente austral, impulsionado pelos filósofos Buffon, Maupertuis e, sobretudo, o pre volver-se em mim uma paixão viva pe]o mai e pe]as navegações]ongas [...]. O gosto
vidente Brosses. A sua monumental /7ísfoíre dei /íavígafíons a x /errei allsfra/es,
pelas herborizações,o estudo da geologia, uma ida à Holanda, à Inglaterra e à França
publicada em 1756, é um apelo à retomada das explorações sistemáticas, financia com um homem célebre,Georg Forster,que tivera a sorte de acompanharo capitão
das pelos príncipes europeus: <<Eimpossível não existir numa superfície tão vasta Cook na sua segundanavegaçãoà volta do globo, contribuíram para uma orientação
a[gum imenso continente de terra firme, [. . .] capaz de manter o g]obo em equi]íbrio exacta dos projectos de viagem que formulada já aos dezoito anos de idade
na sua rotação e de servir de contrapeso à massa da Asmasetentrional.>>
O interesse
comercial e político mas também a filosofia atraem os Europeus a estas regiões, uma Parao .jovem Lapérouse,nascido numa família de proprietários de terrasda região
vez que a descobertadestasterras dos antípodaspermitirá resolver o enigma das ori de Albi. o relato das batalhas navais escutado durante a infância desperta o gosto
gene do homem: que espécie de homens irão os navegadores ali encontrar, e em que pelo mar; trata-se ainda de uma vocação integralmente militar, que só a vontade régia
estado social? Os filósofos das Luzes alimentam a esperançade descobrir um povo orienta para uma exploraçãogeográfica, a seguir à guerra da América: <<Nãovos
desconhecidoda história, que viva ainda no estado natural e que talvez demonstrea escondo escreve na altura o oficial ao ministro da Marinha --, que todos os meus
bondade original do homem. <<Preferiauma hora de conversa com ele do que com o objectivos estavam voltados até este momento para a parte mi]itar do meu ofício [. . .]
melhor cérebro da Europa>>,afirma Maupertuis. No Taiti, nas ilhas Havai, nas Samoa, e aspirava mais à glória de de Suffren do que à de Cook.>>É um acontecimentopolí-
os navegadores não esquecem o debate que, de Paris a Berlim, anima as discussões7. tico -- o tratadode Paras que lançaBougainville, lugar-tenentede Montcalm no
Canadá, nos mares para uma expedição às ilhas Malvinas, que não tarda a transfor-
mar-se numa viagem de circum-navegação. Terá de se configurar. uma série de coin-
Figuras de exploradores cidências para que o jovem Mungo Park chegue finalmente a Africa: o sétimo de
treze filhos de uma família camponesaescocesa,Park teve de procurar na instrução
Curiosidade, ambições, saber e especulações:eis o que determina a missão do um meio de sobrevivência; pouco atraído pelas funções sacerdotais, estuda medicina
explorador e antecede a sua partida. <<Emnome do Rei[...]. Tendo encarregadoo na Universidade de Edimburgo, mas interessa-osobretudo a botânica. Um cunhado,
senhor Peissonnel, doutor em medicina, de se dirigir às costas da Berbéria para estu negociante de cereais em Londres, põe-no em contacto com o presidente da Royal
dar as plantas e as flores que ali encontrar e efectuar as observaçõesque entender Society, Sir Joseph Banks, naturalista que participara na primeira viagem de Cook
necessárias à história natural, queremos e ordenámos que o deixeis passar livremente. . .>> Banks consegue-lhe o cargo de cirurgião-assistente a bordo de um navio da East Índia
Para além de um nome escrito ao fundo de uma autorização ou de um passaporte,o Company, depois, no regresso,uma missão de exploração em Àfrica. O percurso de
que sabemosdaqueleque parte para lugares remotos, enviado à descoberta? Carsten Niebuhr é também inesperado: filho de um modesto camponês frisão, que se
Na época das Luzes, a exploração não é um ofício para o qual se esteja prepa- tornou agrimensor, obtém em 1757 uma bolsa para estudar matemática e astronomia
rado através de uma formação especial e da aquisição de competências profissionais. na Universidade de Gõttingen; despertandoa atenção de um dos seus professores,é
recrutado para a expedição projectada pelo rei da Dinamarca, ao lado de estudiosos
7 Broc, 0/2.ci/., pp. 154-58, 173-75, 183; L. Lagarde, «Le passagedu Nord-Ouest et la Mer de I'Ouest mais nobres e prestigiados do que eles
dans la cartographie française du xvlllõ"'- siêcle. Contribution à I'étude de I'oeuvre des Delisle et Buache>>,
/rrlago 4/ /zdí (1989), n.' 41, pp. 19-43; Jacquin, op. c'ír., p. 147; Ronda, op. cíl., pp. 150-151; Z,e vayí7ge
de Lz/2éro rse cit., t. 1, pp. 150- 184; Ch. de Brosses, .r/isroíre des /zavígafío/zs czrx /e/'res alí.sz'ra/es,t. 1, Pauis, 8 J.-A. Peyssonnel, Voyczgeda/?s /es /-ege/ices de Tün/s ef .A/ger, apresentação e notas de L. Valensi,
1756, p. 13; P. L. Moreau de Maupertuis, Z,er//'es-lzr/e p/"ogrê.çdes icfe/ices, Aubier-Montaigne, Paras, La Découverte, Paras, 1986, p. 13; /nsfrucrío/zs polir /es }'oyageu/".çe/ polar /es em/o/oyés da/zs /es co/o/,zie.ç
1980 (1.' ed. 1752), p. 150. Sobre este debate, ver M. Duches, .4nrAropa/agir ef /zlsfolre í7ii síêc/e des ;btr ta ma tiàl'e de rectteil,t,ir, de conservei et d'eltvoyer des objets d'histoire nattirette, rédigée st,ir t' invi-
Z,amiê/'es,
Maspero,Paris, 1971 tatiotl de S. E. te }ttinistre de i,a Marina et des Colonies par t'administration, du Mtlséum royat d' histoire

221
220
Todavia.casosfortuitos e circunstânciasfavoráveis por si só não bastariam,sem rudes a fim de corrigirmos as nossas estimativas.>>Juntamente com os caçadores de
se registar uma condição específica: situações de <(terreno>>para uns, piratas, caçadores, peles canadianos, os <<sotainaspretas>>penetram no interior do continente americano,
vendedores ou missionários; actividade científica para outros, médicos naturalistas, do Mississípi à Louisiana: JacquesMarquette no final do século xvn, Joseph Lafitau
matemáticos ou astrónomos; enfim, para outros ainda, oficiais de marinha ou enge- e François-Xavier de Charlevoix no século xvlll. Também outras ordens religiosas
nheiros, estatuto profissional. Surgem, através destes vários tipos de situaçõese de fornecem exploradores: de entre os mínimos, o botânico Charles Plumier enviado por
Luís XIV às Antilhas, e Louis Feuillée, astrónomoe naturalista, que se desloca às
competências, imagens diversas do explorador do Século das Luzes, e talvez se per'
file também o esboço de uma cronologia. Antilhas e ao Chile no início do século xvlll; de entre os dominicanos, Jean-Baptiste
E natural encontrar entre as primeiras filas de exploradores, de qualquer forma Labat, que alcança a Africa e explora as Antilhas. Na segunda metade do século, a
os mais qualificados, aquelesque os negócios ou a vocação.levam até ao outro presença dos homens da Igreja parece diminuir, sem todavia desaparecer. Vêem-se
extremo da Terra. Por mar, aventureiros, marinheiros ou corsários, como o pirata também, na América do Norte, missionários como John Heckewelder e David Zeisberger
inglês William Dampier: depois de muitos assaltos aos armazénsespanhóisdas substituírem os religiosos francesese visitarem as regiões do Ohio. Mas a condena-
Antilhas e do Golfo do México, este franco-atirador da exploração, despertado ção dos jesuítas, o declínio do impulso missionário têm, sem dúvida, um certo peso
novamente pela curiosidade, ataca na Asia e no mar da China, em Inglaterra liga- no seu desaparecimentorelativo. Revelam também um processo de secularizaçãoda
-se ao naturalista Hans Sloane e aos estudiosos da Royal Society e depois, em 1699, ciência e de especializaçãodo saberque, a pouco e pouco, lado a lado com os reli-
faz-se outra vez ao mar para uma nova aventura, desta vez científica; chegado ao giosos, impõe novos tipos de viajantes9
oceanoPacífico, costela a Nova Irlanda, descobre a Nova Bretanha e explora o Predominam entre estes viajantes mais especializados, no campo da botânica e
estreito que tem hoje o seu nome. Em terra firme, empregados de companhias da história natural, os médicos, os boticários e os farmacêuticos, que fornecem alguns
comerciais, agentes diplomáticos como Engelbert Kaempfer: cirurgião da Companhia dos mais célebres viajantes do século. A razão é simples e provém dos laços que
holandesa das Índias. embarca em 1690 para o Japão, onde os Holandeses possuem na época associavam o ensino das ciências naturais, da botânica, da anatomia com-
uma agência comercial, e aproveita a delegação que se desloca a Yedo, ao impe- parada e da zoologia ao estudo da medicina. Entre os franceses que contribuíram
rador, para visitar por duas vezes o Japão; consulta os mapaslocais a fim de se para a exploração botânica da América do Sul, figuram Jean-Baptiste Fusée-Aublet,
informar sobre a geografia do arquipélago, observa a valorização do solo e a auto- fundador da botânica guianense, Jean-Baptiste Le Blond, Pierre Barêre, Joseph de
suficiência económica do país, anota as leis, os usos, a religião. Homens também Jussieu,Joseph Dombey, Louis-Claude Richard, Aimé Bonpland. Também a maior
parte dos naturalistas embarcados nas expedições marítimas de final do século recebe
prontos a partir são os colonos, os caçadores de peles e.os comerciantes que, após
a queda da Nova França, se lançam à conquista dos territórios do Norte e do Oeste formação médica: Philibert Commerson com Bougainville, Joseph Boissieu de La
americanos. Peter Pond, traficante de peles do Connecticut, semianalfabeto, explora Martiniêre com Lapérouse,Jacques-JulienHoutou de La Billardiêre com
o Noroeste canadiano na década compreendida entre 1770 e 1780: os seus mapas, d'Entrecasteaux. A presença de especialistas em história natural torna-se tanto mais
as suas descrições abrem o caminho às viagens de Alexander Mackenzie, em ]789 necessária quanto na época de Lineu a botânica não se pode contentar com uma
e 1793 recolha de dados improvisada, sem uma formação preliminar. Em Inglaterra, Sir
Por fim, missionários: homens por definição colocados no campo, vanguarda cristã JosephBanksesforça-sepor convencera Companhiadas Índias e o Almirantado a
da Europa em terra pagã, são o protótipo desta primeira categoria de exploradores. reunir à tripulação de marinheiros hidrógrafos e astrónomos, verdadeiros naturalis-
Na verdade,o gosto pela viagem vem juntar-se à formação recebida nos colégios e tas, aptos a procedera uma recolha metódica da flora e simultaneamentea avaliar
nos seminários da Europa, em matemática, astronomia, botânica, geografia. Prosseguindo os recursos da região explorada, com vista a uma eventual colonização. Em 1768,
uma tradição secular, no século xvm eles estão presentes em todo o mundo, sobre- obtém para si e para o botânico sueco Daniel Solander autorização para participar,
tudo os jesuítas, que se estendem da América até à Ásia: encontramo-los em 1689 a expensas suas, na primeira viagem de Cook; discordâncias com o navegador impe
nas margens do Amur para negociar o tratado sino-russo de Nerscinsk e no século dem-no de participar na segundaexpedição, mas é-lhe possível introduzir nesta dois
xvlll atravessamo Império chinês, utilizando os seusconhecimentosde astronomia naturalistas alemães, Reinhold e Georg Forster. Banks consegue fazer embarcar na
tanto ao serviço do progresso da cartografia europeia colho do imperador: <<Tínhamos última viagem um jardineiro, como supranumerário, encarregadoda recolha de plan
sempre a bússola na mão e preocupávamo-nos em observar de vez em quando as lati- tas. Mas é sobretudo graças a ele que as últimas grandes navegações do século bene-
ficiam de naturalistasprofissionais: em 1791, Vancouver leva consigo a bordo o
cirurgião da marinha Archibald Menzies, e Flinders, em 1801, o botânico Robert
rzafure//e, Paras, 1824, Retn\tos de exploradores em A. Leroi-Gourban (direcção de), li'-s exp/orareizrs célê- Brown. Simples <<jardineiros-recolhedores>>
ou botânicos especializados, todos estes
b/"es.Mazenod. Genebra, 1947, e Y. Laissus, <<Lesvoyageurs naturalistes du Jardin du Roi et du Muséum
d'histoire naturelle: essasde portrait-robot>>,
Recued'/zlsfofredes sclences,34 (1981), n." 3-4, pp. 260-
9G. Blanc, «Dampierou la relation desnesauxTortues>>,
in Voyczger,
exp/orar cit., p. 160; D. Brahimi,
-317; Z,'A/nér;gazeespagno/e e/l /800 vila par l/n .çavcz/zr
a//emcz/?d,apresentação de J. Tulard, Calmann-
Qzlelquesé/émenfssur /a vfe d'Elege/berr caem/Z$er(ined.); N. Broc, <(Voyageursfrançais en Chine», in
Lévy, Paras, 1965, pp. 31-32 (citado segundo Humboldt); Le voyage de l,aparo se cit. t. 1, p. 61; Pack.
Voyager,e.x79/Orar
cit., pp. 39-49; Laissus,o/). cir., pp. 265-66; Ronda,op. cír., pp. 148-149.
OP.clr., pp. 17-21; Hansen,op. clr., pp. 39-45.

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l

viajantes puderam preparar a sua expedição, consultando tratados de botânica. nar- governo à procura de jazidas para explorar. Do outro lado do mundo, na Cordilheira
rativas de viagens e inclusivamente o herbário da expedição de Cook na biblioteca dos Andes, Humboldt não esquecea antiga profissão de engenheiro de minas, que o
pessoal de Banks mantém atento ao terreno e à natureza das rochas. Enquanto os navegadorese os
A crescenteespecialização é ainda mais notória no que se refere à astronomia e botânicos levam a cabo a exploração dos mares e dos continentes, os geólogos come-
à cartografia, campos em que o nível das competências técnicas e matemáticas obriga çam a sondar a história da Terra''
a recorrer a verdadeiros estudiosos, nada mais nada menos do que aos membros da
Academia das Ciências de Paris, para a expedição geodésica à Lapónia e ao Peru; e
para a observação da passagem de Vénus, em 1761, a três abades astrónomos: Le Por mar e por terra: modos de viajar
Gentil de La Galaisiêre, enviado a Pondichéry, Pingré à ilha Rodrigues e Chappe
d'Auteroche à Sibéria. Também a bordo dos navios, as exigências da navegação astro- A variedade de biografias, de itinerários, de competências individuais é posterior-
nómica tornam sempre necessário o uso de astrónomos especializados: o abade mente evidenciada pela viagem que simplifica e acentua simultaneamente os con-
La Caille seguea bordo do G/orieux, embarcaçãoda Companhia das Índias que, em trastes. Uma vez abandonadoo mundo conhecido, para o explorador apenasexiste a
1751, empreendea rota do Cabo da Boa Esperançasob o comandode Aprês de paisagem onde se desloca. Para uns, a imensidade do oceano, semeada de ilhas, de
Mannevillette; e ainda em 1785, para a expedição de Lapérouse, que dispõe de cro- costas avistadas de longe; areias, florestas ou montanhas, para outros. Tudo contra-
nórnetros e também dos instrumentos utilizados por Cook na sua segunda viagem e põe a experiência dos marinheiros à dos viajantes.
cedidos pelo Almirantado inglês, é designado astrónomo de bordo do /iousso/e. Por mais paradoxal que se possa afigurar, o marinheiro é uma espéciede seden-
Lepaute d'Agelet, membro da Academia das Ciências e professor na Escola militar tário que, à custa de enormes riscos, leva para os oceanos um pouco do seu país
e, a bordo do Astro/aóe, Monge, irmão do matemático natal, até aos confins da Terra. Agitando a bandeira, transporta consigo, amontoa-
dos no habitáculo da cabina, livros, instrumentos de medição, por vezes um animal
Todavia, encontra-sejá a postos, em finais do século, urna nova geração,ter- amigo. Na Ásfro/abe e na B sso/e, as duas fragatas de Lapérouse, na entrecoberta,
ceira categoria de exploradores a quem as tarefas quotidianas da descoberta fazer entre os canhões e inclusivamente nas chalupas de salvamento, são reunidos os víve-
o ponto da situação, traçar os mapas incumbem quase que por estatuto profissio- res para três anos, dois moinhos de vento, cinco vacas, duzentas aves, trinta ove-
nal. Com efeito, a fim de assegurar aos oficiais da marinha as competências cientí- lhas, vinte porcos. D'Entrecasteaux, enviado em 1791 à procura das duas fragatas
ficas e técnicas necessáriasàs novas condições de navegação, foram criadas insti- desaparecidas,acrescentaà habitual biblioteca constituída por tratados de astrono
tuições especiais: em Fiança, o estado-maior das expedições de fim do século mia, atlas e obras de história natural (o inventário não menciona cerca de uma quin-
formou-se nos bancos da Academia da Marinha, fundada em 1752. <<SuaMajestade zena de obras de Lineu), algo como dezanove volumes do ./oa/na/ des débafs ef
está convencida de que os oficiais e os guardas-marinha embarcadosnas duas fra- décre/x de /'Asse/lzó/ée na/lona/el A mil léguas da base, a tripulação dos navios
gatas conduzirão, com zelo e de combinação com a astronomia, todas as observa- forma um universo fechado, masculino, hierarquizado, uma pequena Europa ideal
ções que possam ter alguma relação de utilidade com a navegação>>,dizem as ins- com a sua academiaflutuante de estudiosos,uma sociedadeem ponto pequeno,de
truções de Luís XVI a Lapérouse: de facto, quando o chefe da expedição tem de idade, estatuto e temperamentos diversos: na /ioudetne de Bougainville, encontram
decidir desembarcarem Tenerife o astrónomo Monge, incapaz de suportar o alto .se lado a lado o voluntário Fesche,veteranodas Malvinas, o jovem Veron, astró-
mar, o transbordoé asseguradopelo capitão da embarcaçãode Languee pelo sub- nomo autodidacta, o advogado Saint-Germain, embarcado como escritor, e o jovem
tenente Law de Lauriston. Quer sejam oficiais do Almirantado inglês, como Cook príncipe de Nassau-Siegen,enviado pela família aos mares do Sul por causa da sua
e Vancouver, quer da Royale française, como Lapérouse, Baudin ou Bruni devassidão.
d'Entrecasteaux, os marinheiros fornecem alguns dos nomes mais ilustres da explo- Do alto do navio, os navegadoresvêem suceder-seos mares, mesesa fio, encon
ração geográfica de final do século. arando apenas alguns atóis. Por vezes surge uma ilha ou uma costa que são obser-
Enfim, é possível associar a esta categoria de oficiais da marinha, exploradores vadas de longe pelo óculo, como a ilha de Akiaki alistada por Bougainville, a 22 de
por estatuto e formação, uln último grupo, desta vez de terra: o dos viajantes que, Março de 1768: <<Penseique fosse desabitada e, vendo coqueiros, apeteceu-me enviar
no último terço do século, descem às crateras dos vulcões da Itália e da Sicília. esca- chalupas a terra para procurar madeira, um pouco de fruta e eventualmente água.
os picos dos Alpes e dos Pirenéus,interessam-sepelos Urales e pelos Andes,
esquadrinham as rochas, interrogam-se sobre a idade da Terra. Entre os naturalistas
ou os amadores curiosos, encontram-se inúmeros engenheiros,mineralogistas, quí- Laissus, op. ci/.; S. Lacroix, <<SirJosephBanks et I'envoi de naturalistas dans les explorations
micos, cuja especialização leva à investigação de campo e à exploração geológica. anglaises, 1765-1820», in Voyczger,exp/o/'er cit., pp. 121-126; J.-M. Racault, <<L'observationdu passage
de Vénus sur le soleil. Le voyage de Pingré dans I'Océan Indien», /bidé'm, p. 107; Z,e voyage de Z,czpé/"alise
Deste modo, entre os <<inventores>> dos Pirenéus, Flavichon é um engenheiro geó- cit. t. 1, pp. 34, 261 (de Langle ao ministro, 18 de Jan. de 1787); S. Biiffaud, <<Naissance
d'un paysage.
grafo encarregado de ampliar o mapa do Béarn e interessado em compreender a estru- L'invention géologique du paysage pyrénéen à la fin du XV[Me""siêcle>>,Remir de sy/zfAêse,IV série (Jul.
tura do relevo; Palassou, Cordier, Duhamel são engenheiros de minas, enviados pelo -Dez. 1989), n." 3-4, pp. 424-426

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Uma infinidade de avessobrevoavaa ilha junto à margeme pareciaprometer uma hostil, contudo, fica estupefactocom a sua tendência para a rapina. E por vezessurge
costa abundante em peixe, mas o mar estava agitado em todo o lado e nenhuma praia a tragédia. Cook é morto pelos havaianos e o seu corpo despedaçado, oferecido em
oferecia um local onde desembarcar.)> As escalas são breves, apenas o tempo neces- sacrifício, num desencadearimprevisto de violência em que os sinais se subvertem
brutalmente: recebido até àquele momento como a personificação sacra do deus da
sário para o aprovisionamento, o descanso da tripulação, a reparação dos navios; são
também uma concessãofeita, quer queiram, quer não, à curiosidade dos estudiosos: Primavera, o navegador, regressando à ilha após uma avaria, sem o saber, transgride
<<Apenasposso conceder pouquíssimo tempo aos momentos de repouso ' escreve com este regressoinexplicável o sistema simbólico em que a primeira visita o ins-
creveu. Mas até se verem perante o drama, os europeus têm sempre a possibilidade
Lapérouse e esta longa permanência no mar não é nada conveniente para os nos-
sos botânicos e os nossos mineralogistas que apenas em terra podem aplicar os seus de se afastarem: <<Confesso
que necessitei de todo o meu bom senso para não me
talentos.>> deixar levar pela cólera e impedir que as nossas tripulações os massacrassem>>,comenta
De um modo geral, uma vez desembarcados,os marinheirosnão se dispersam Lapérousequando vem a saberque um grupo de ilhéus matou à pedrada,durante
uma paragem para reabastecimento de água, o imediato Fleuriot de Langle, o botâ-
nem penetram muito no interior do país. Escreve Lapérouse em Abril de 1786, pró-
ximo da ilha da Páscoa: <<Anossa primeira preocupação, depois de desembarcarmos, nico Lamanon e diversos marinheiros. Uma canhonada disparada do mar, para apla-
foi formar uma barreira com soldados armados dispostos em círculo; ordenámos aos car a ira e salvar a honra, e só resta ao navegador fazer-se ao largo para retomar a
habitantes que deixassemeste espaço vazio, onde montámos uma tenda, e mandei exploração dos oceanos''
desembarcar os presentes que lhes havia destinado, bem como diversos animais.>>
Quanto muito, o navegadorautoriza uma incursão rápida: <<Dispúnhamos
apenasde Completamente diferente é a situação do explorador que viaja em solo firme: só
ou na companhia de alguns colegas, ajudado por vezes por um intérprete, sem qual-
oito ou dez horas para passarmos na i]ha e não quisemos desperdiçar este tempo [. ..].
Dividimo-nos [. . .] em dois grupos: o primeiro sob as ordens do Visconde de Langle, quer outra bagagem para além de um maço de mapas, um relógio, uma bússola e
alguns instrumentos de astronomia, uma espingarda, agendas, alguns frascos e um
deveria penetrar o mais possível no interior da ilha, lançar sementesem todos os
herbário, o viajante atravessa países por vezes hostis, caminha, esgota-se, treme de
lugares que se afigurassem susceptíveis de as reproduzir, examinar o terreno, as plan-
tas, as culturas, a população, os monumentos e, de um modo geral, tudo o que pudesse frio ou de febre, sem hipótese de regressar.A 10 de Março de 1761, um modesto
cortqo de quatro trenós deixa São Petersburgo, levando Chappe d'Auteroche, o seu
interessar a respeito deste povo deveras extraordinário [.. .]. Os outros, e incluía-me
entre eles. limitaram-se a visitar as obras artísticas, os socalcos, as casas, as planta- relojoeiro e o seu criado latão em direcção a Tobolsk, com um carregamento de bús-
solas, óculos, lentes, barómetros, mapas, livros de astronomia e também algumas
ções, a uma légua do nosso quartel-general.>>Durante estes passeios velozes, do tipo
de um reconhecimento militar, os civis, naturalistas, mineralogistas e botânicos subs- garrafasde vinho. A 2 de Dezembro de 1795, Mungo Park deixa as margensdo
Gâmbia:
tituem os oficiais: é chegado o momento de herborizar, recolher pedras e exempla-
res de animais, de anotar as condições dos habitantes e os recursos do país. Mais do
Montava um cavalo que me custara sete libras esterlinas e meia. Era pequeno, mas
que uma pesquisa metodológica, a <<visita>>
é uma vistoria rápida. Enquanto a Boudeuse vivo e muito bom. O meu intérpretee o meu criado tinham cada um o seu burro.
e a E/oí/e se afastam do Taiti. Saint-Germain, secretário da expedição, faz um balanço
A bagagemera leve. Consistia principalmente em provisões frescas para dois dias, e
um pouco desiludido: <(Quepodemos dizer de Citera? Teremos visto o interior do num pequeno sortido de peças de vidro, de âmbar e de tabaco, para com elas comprar
país?Levará talvez Commerson consigo a lista dos tesouros que ele possui ou pode- depois outras à medida que fosse prosseguindo o meu caminho. Levava também alguma
ria encerrar em matéria de história natural, plantas ou minerais? Teremos esquadri- roupa pessoal, um chapéu de chuva, um pequeno quadrante, uma bússola, um termó-
nhado as costas?Saberemos onde se encontra um bom ancoradouro? Ao que se reduz, metro, duas espingardas,dois pares de pistolas e a]guns objectos pequenos[. . .]. Tinha
para a nação, a utilidade desta viagem?>> pela frente uma floresta imensa, habitada por povos incivilizados, e para a maioria dos
Subsiste o facto de, com frequência, antes mesmo de desembarcarem, os nave- quais um homem branco era objecto de curiosidade ou de roubo. Pensavaque acabara
gadoresencontrarem ilhéus. Estabelecem-secontactos, gestos, sinais, intercâmbios. de me separar dos últimos europeus que iria encontrar nestas paragens e que, ao deixá-
Se é sempre aconselhável prudência -- «independentemente do bom acolhimento por los, teria perdido para sempre a sociedade dos cristãos.
parte do selvagem, é sempre importante uma atitude defensiva>>,especificam as ins-
truções dadas a Lapérouse - há, com frequência, dificuldade na imposição da disci- i' Z,e voyage de Z,apéroiise cit. t. 1, pp. 51, 260 (Lapérouse ao ministro, 3 de Jan. de 1787); t. ll,
pp. 67-69, 455 (diário de Lapérouse); H. Richard, Z.e voyage de d'Elz/recasfealrx à /a rec/zercAede
plina. Sabemoscomo, no Taiti, Bougainville e os seushomens,uma vez, se deixa- Zapérouse, CTHS, Paria, 1986; E. Taillemite(direcção de), Bougaínvf//e ef ses ca/7zpag/zo/zs
a ífolir d
ram seduzir pela atmosfera idílica da ilha: <(Opovo propôs-me uma das suas mulheres, monde,2 vais. Imprimerie nationale,Paras,1977,t. 1, pp. 305, 320 (diário de Bougainville), e t. 11,p. 109
jovem e bela, e toda a assembleia comemorou as núpcias. Que país! que povoa?'Mas (diáriode Saint-Germain);J.-P. Le Golf, «Lesfleurs d'Akiaki. Un épisodedu voyagede Bougainville>>, in
estas relações são de pouca dura - os próprios haitianos explicam a Bougainville que Voyager,exp/crer cit., p. 172; L.-A. de Bougainville, Voyageaiífolrr d morzdepar /a/r(ígafe «in Boudeu.se»
a sua permanência não deverá exceder nove dias -- e sobretudo limitadas pela natu- et la Jlüte «L' Etoila> (1'171),cit. in E. Vibaü, Tahili. Naissanced'üit paradasat{ siêcle desLltiuiêres,
reza. Efectivamente, é inevitável a incompreensão de parte a parte: se Lapérouse Ed. Complexe, Paris, 1987, p. 85; M. Sahlins, Z)esf/es da/zs/'/zlsroíre, trad. fr., Gallimard/Le Seuil, Paras,
1989, pp. 114-141 (trad. it. /se/e dl sforía. Socíefà e mofo lzel /zzarl de/ Sud, Einaudi, Turim, 1986)
deixa que os indígenas roubem pregos, espelhos e chapéus sem fazer o menor gesto
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O explorador será tanto mais afortunado no seu avanço quanto melhor se adap- O diário, o mapa geográfico, o herbário: o registo da descoberta
tar ao país e aos homens que encontra, compartilhar o seu modo de vida e mesmo
os seus costumes. Desde a sua chegada a Constantinopla, Niebuhr compreende a Se o espaço e o ambiente geográfico distinguem navegadores e viajantes, em com-
necessidadede adoptar um trajo oriental para seguir viagem até ao Egipto e ao lémen: pensação,o tempo é uma experiência comum tanto pela duração como pelo desen-
<(NaArábia, as inúmeras peças de que se compõe o nosso vestuâno provocariam o volvimento da vida quotidiana. Em primeiro lugar, a duração, já que todas estas expe-
escámio da população, e o fato europeu seria extraordinariamente incómodo.>>E neces- dições são longas, arrastando-se por diversos meses, com frequência mesmo por anos:
sário mostrar desenvoltura perante situações difíceis e saber encontrar maneira de pelo menosdois ou três anos para os navegadoresque empreendemuma viagem à
sobreviver ou de que viver, em troca de algum serviço: no final do século XVll, o volta do mundo (dois anos e sete meses para Bougainville), também quatro (é o tempo
italiano Gemelli Careri -- um dos poucos viajantes a dar a volta ao mundo por curiosi- previsto para o itinerário de Lapérouse e o necessário para os navios da terceira via
dade pessoal vê-se obrigado a fazer-se à estrada e a comercializar os seus próprios gem de Cook e de Vancouver realizarem a sua circum-navegação). A duração é mais
conhecimentos médicos. No Peru, Jussieu cuida dos índios doentes, enquanto um dos flexível para as viagens terrestres: Chappe d'Auteroche passa quinze meses na Rússia,
seus companheiros, o cirurgião Seniergues, vende as mercadorias que trouxe da Peyssonnel visita durante mais de um ano as regências da Argélia e da Tunísia, Mungo
Europa. Park volta a Àfrica em 1797, depois de uma ausência da Tnglaterra de dois anos e
Mundo Park causauma forte impressão num mestre-escolamuçulmano ao exibir sete meses.Mas é entre os que viajam por terra que se dão as peregrinaçõesmais
os seusrudimentos de árabee demonstraa um chefe mouro, que o mantémprisio- longas: Adanson permanecemais de quatro anos no Senegal como agente da Companhia
neiro, a sua competênciacomo cabeleireiro e barbeiro; abandonadopelos compa- das Índias; Niebuhr, após a exploração do lémen, visita o Oriente e vai até à Índia,
nheiros. roubado e tributado, só e sem recursos, à mercê do auxílio que concede a para só voltar à Dinamarca ao cabo de seis anos de ausência; Pallas e os seus com-
gente do país, o explorador escocês tem de se acostumar à comida que Ihe é apre- panheiros percorrem a Sibéria durante seis anos, dos Urales ao lago Baikal; Humboldt
sentada: <<Noinício, desagradava-me o modo de vida dos Africanos, mas, sem dar e Bonpland atravessamentre 1799 e 1804 a América Central, dos Andes até ao
por isso, superem
a repugnância,e os seusalimentos acabarampor me parecerbas- Orenoco, das Antilhas ao Novo México; La Condamine, que partiu cm 1735 para o
tante bons.>>Sabe como evitar o confronto com as crenças dos seus hospedeiros, Peru, só regressa a França em 1745, após uma passagem pela Amazónia. E o astró-
recusando comer o porco que ]he fora oferecido: <<Muito embora tivesse uma tre- nomo Le Gentil, não tendo conseguido observar em 1761 a primeira passagemdc
menda fome, não achei prudente comer um animal a que os mouros têm horror.>> Vénus diante do Sol, decide, para maior segurança,esperar no local, em Pondichéry,
Aprende a viajar discretamente e, como a cor da sua pele trai a sua raça, faz-se pas' a de 1769, ocasião imprevista para uma longa estada na Índia.
sar por árabe junto dos muçulmanos africanos: «Notei com satisfação que todos os Estes longos anos de viagem causam, antes de mais, um desgaste físico e moral
habitantes negros me tomavam por um muçulmano.>>Para levar por diante a sua na pessoado explorador. Após dois anos e meio de navegação, Lapérouse confessa-se,
investigação fazer perguntas, tentar definir o mapa do país - são necessárias pre- numa carta ao amigo Le Coulteux, escrita de Botany Bay, no momento da partida
cauções: <<Abússola logo se torna um objecto de curiosidade supersticiosa. Ali quer para a última etapa da sua missão, cansado e debilitado. <<Pormaiores vantagens
saber porque girava[...] a agu]ha sempre para a zona do grande deserto[...]. Resolvi militares que esta campanhame trouxesse,podes [er a certezade que poucaspes-
dizer-lhe que minha mãe morava muito para lá das areias do cara e, enquanto esti- soas a teriam efectuado por este preço, e é impossível descrever as fadigas de some
vesse viva, aquele pedacinho de ferro giraria sempre naquela direcção.>>Por fim, teve Ihante viagem. Quando regressar,tomar-me-ás por um velho de cem anos. Já não
de aceitar que, por vezes, os papéis se invertem e deixar-se olhar, tocar, interrogar tenho dentes nem cabelo, e creio que não tardarei a perder a razão.>>O afastamento,
pelos indígenas com a mesma curiosidade que ele próprio manifesta em relação a o sentido da distância e do isolamento são ainda mais difíceis de suportar. Quando
eles: algumasmulheres muçulmanasdespem-noe examinam-noaté aos mais ínfi- a 16 de Novembro de 1785 se preparava para enfrentar a travessia do Pacífico, a
mos pormenores.Os escravos,com os quais percorre parte do caminho, surpreen- navegador escreveu a Fleurieu: <<Nãovos esqueçais, meu caro amigo, de escrever
dem-no com as suas perguntas: <«Interrogaram-me por diversas vezes se, por acaso, para Kamchatka, Manila, China e lle de France: não podereis imaginar como as vos
os meus compatriotas seriam canibais. Queriam saber com insistência o que aconte- sas cartas nos trarão prazer e como serão necessárias. Peço-vos que junteis todos os
cia aos escravos após atravessarem a água salgada.)>.Em suma, aquele que penetra .jamais possíveis.>>
Uma nota de André Thouin, primeiro jardineiro do rei, mostra,
no interior dos continentes deve estar preparado para se integrar no país atravessado, com efeito, que não são esquecidos em Paris os viajantes mandados aos confins do
fundir-se na paisagem: esta capacidade de adaptação, quase de diluição, é a condi- mundo: a 7 de Fevereiro de 1786, é enviada uma encomenda postal, contendo dever
ção para a sua sobrevivência':. sas cartas pessoais para os membros da expedição, exemplares recentes do Jolzrna/
de Parase uma missiva de Thouin ao colega Collignon, em que mistura recomen
dações práticas e notícias de outros naturalistas em missão, tudo <mumgrande volumo>
iz F.-D. Liechtenhan, <<Custineavant Custine: un jésuite en Russie», Revtíe de /a Zifb/io//zêqzíe/7a/fo-
endereçado ao <(SenhorConde de Lapérouse, em Cantão, na China>>.Não se sabe o
rja/e (1989), n.' 33, pp. 36-46; Hansen,op. cf/.. p. 98; Broa, op. cír., pp. 46-47; Laissus,op. cí/., p 299
Park, OP.cir., pp. 57-60, 70, 142, 147-148, 151, 213, 310, e D. Brahimi, «Mundo Packen Afrique: I'explo
que foi feito desta encomenda nem de muitas outras, que nunca chegaram aos des
rateur exploré», in Voyager, exp/crer cit., pp. 147-158. tinatários -- <<Poruma fatalidade extraordinária, conta Humboldt, ficámos dois anos

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nas colónias espanholas sem receber uma única carta da Europa>' ' ou que então che- cível, e, todavia, constituem já o primeiro critério de selecção do conjunto dos factos
garam lá demasiado tarde: a lista de perguntas enviada pelo professor Michaelis para e das experiências do dia. Como é natural, predomina a geografia, preocupaçãoprin-
o endereço da expedição que partira da Dinamarca em 1761 chega a Niebuhr em 1764, cipal do explorador encarregadode avançar por terras e mares desconhecidos,cujo
estando já concluída a missão do sémen e tendo morrido todos os seus companhei- mapa deve corrigir ou elaborar, tarefa tão fundamental aos olhos de qualquer via
ros. A ignorância em que os viajantes são mantidos a respeito do que sucedena jante, que o astrónomo Pingré, enviado à ilha Rodrigues a fim de observar a passa
Europa pode coloca-los involuntariamente em situações de perigo, em caso de guer- gem de Vénus, não quer deixar a ilha sem ter penetrado no seu interior para prole
ras ou de agitações políticas: quando os barcos que partiram em 1791 em busca de der às mediçõesde triangulaçãoque Ihe permitirão traçar o mapa.Dia após dia, os
Lapérouse chegam ao largo de Java, ostentando a bandeira branca com a flor-de-lis navegadores anotam a rota seguida, fazem o levantamento das costas e das ilhas avia
dourada, tomam conhecimento da proclamação da República e da morte de Luís XVl; fadas.Em 11 de Março de 1793,d'Auribeau,vice-comandante da Rec/zercbe, cos
d'Auribeau, oficial da Royale, que chefia a expedição após a morte de Entrecasteaux, teia a Nova Zelândia na esteira de Lapérouse:<<Domeio-dia às quatro: céu enco-
prefere entregar-se aos holandeses a içar a nova bandeira, enquanto a equipa de estu- berto, mar muito ca]mo, vento ú'aco de Oeste, navegamos a E]/4S-E para nos dirigimlos
diosos, suspeita de republicanismo, é feita prisioneira; o naturalista La Billardiêre directamente ao cabo norte, prosseguindo todavia pela costa setentrional a duas ou
consegue regressar a França apenas em 1796, e as suas colecções são confiscadas três léguasde distância.» Nestes mares longínquos, de que alguns navegadoresingle-
pela Inglaterra. ses ou holandeses se aproximaram já, e também o próprio Cook durante a sua via
Tendo abandonadoa Europa há meses ou anos, sem notícias a não ser de boca gem, são muitas as observações geográficas a anotar: «Reconhecemos perfeitamente
em boca, os exploradores vêem-se mergulhados num tempo sem pontos de referên- e efectuámoso levantamentoa Norte e a Sul do cabo Mana Van Diemen, a cercade
cia, em que os dias se sucedemuns aos outros; é um tempo ocupadopelos gestos quatro ou cinco léguas de distância; este cabo é o que se situa mais a NO da Nova
quotidianos da descoberta: deitar o ponto, traçar o mapa, observar o país. Os seus Zelândia, e foi Tasman que Ihe deu o nome. Noto a existência de quatro ilhotas na
diários de bordo ou de viagem são disso testemunho: a normalidade dos seus dias ponta deste cabo, duas das quais relativamente grandes e mais duas pequenas;apa
decorre, mais do que em aventuras heróicas e tumultuosas que contribuem para o rocem simplesmente assinaladasno mapa de Cook como rochedos, mas nós deter-
enriquecimento da sua lenda, na realização destas tarefas executadas com uma minú- minamos perfeitamente a extensão de cada uma que, repito-o, é considerável.>>Há
cia repetitiva e habitual, fastidiosa, por vezes esgotante,interrompidas por momen- erros de longitude a corrigir: <<Estecélebre navegador, durante a sua primeira cam
tos de perigo ou de medo. panha, não dispunha de sa]vatempo (?) e, sem esta ajuda, [. . .] uma diferença de meio
Precisamente o diário, que permite ir registando a descoberta, é a primeira destas grau não nos deve surpreenderminimamente.» E quando se trata de regiões até então
ocupações: <<Fizquestão, durante toda a viagem, [. . .] de escrever diariamente, seja no impenetradas, para as quais o explorador não possuía outro guia a não ser os mapas
barco, seja no acampamento,aquilo que se me afigurava digno de nota», recorda traçados pelos geógrafos sobre a mesa, com base em factos mal verificados e em len
Humboldt, evocando a sua viagem ao Orenoco. Há muito prática habitual dos nave- das, é preciso recomeçar tudo do princípio, ípz/oco, como nos conta Humboldt, não
gadores,tornada obrigatória para os oficiais da marinha francesa pelos decretos de sem uma ponta de ironia: <<Mostrámosaos velhos militares estacionados nas missões
1689 e de 1765, impõe-se, por maioria de razão, a conservação de um diário por parte cópias dos mapas de Surville e de La Cruz. Riram-se da pretensaexistência de uma
dos oficiais e dos estudiosos, nas grandes expedições: <(Osenhor de Lapérouse obriga via de comunicação entre o Orenoco e o Rio Tdapa,e daquele Mar Branco que deve-
a manter em cada fragata um registo duplo, onde serão referidas, dia a dia, quer no ria atravessaro primeiro dos dois rios [...] . Esta boa gente não conseguia entender
mar quer em terra, as observações astronómicas, [. . .] todas as observações relativas como é que, ao desenharo mapa geográfico de países nunca visitados, se podia ter
ao estado do céu e do mar, aos ventos, às correntes, às mudanças na atmosfera e a a pretensão de conhecer nos mínimos pormenores tudo aquilo que se desconhece a
tudo o que pertenceà meteoro]ogia [. . .]. No fina] da viagem, [. . .] o senhor de Lapérouse respeito desteslugares. O lago de Parime, a serra Mey, as nascentesque se dividem
mandará entregar todos os diários da expedição que foram conservados nas duas fra- no ponto de onde saem da terra em Esmeralda são completamente desconhecidos.>>
gatas pelos oficiais e guardas-marinha, pelos astrónomos, pelos estudiosos e artistas, Pode ao menos o explorador basear-seamplamente nos conhecimentos geográfi-
pelos pilotos e todos os outros.>>As mesmas instruções se aplicam aos viajantes que cos dos habitanteslocais? <<Osíndios haviam-nosfornecido o nome das dez ilhas
exploram novas terras: <<Cada um dos membros da expedição deverá conservar um que constituem o seu arquipélago, anota Lapérouse em Dezembro de 1787, quando
diário do qual será enviada uma cópia a Copenhaga,sempre que for possível>>,pede navega nas proximidades das mamoa. Haviam-nas desenhado toscamente numa folha
o ministro Bernstorff aoscinco estudiososque o rei da Dinamarcaenvia à Arábia'3 e, não obstante a nossa convicção de que não podíamos confiar minimamente no
mapa traçado por eles, não duvidaríamos que existisse entre estas dez ilhas, que se
Cheios de apreciações e de observações sábias, de pomlenores, de datas e de luga conheciam bastante bem umas às outras, uma espécie de confederação.)>Todavia,
res, estes diários são um primeiro trabalho de registo, o mais isento e completo pos para o navegador, é difícil decifrar o espaço habitual traçado no esquema dos ilhéus.
Cheio de itinerários e referênciasfamiliares, circunscrito ao território percorrido pelas
': lz voyage de lzzpéra r -e cit. t. 1, p. 165 (carta de 7 de Fev. de 1788), p. 250 (carta de 16 de Nov pirogas, o seu mapa mental não é igual ao do geógrafo; o deste, elaborado segundo
de 1785),pp. 34-36; Laissus,op. cíl., pp- 295-297; Hansen,op. cfr., pp. 66, 349; Humboldt, op. cí/., p- 60 levantamentos topográficos e astronómicos, pressupõe uma visão global. Todos os

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os dias, as observaçõesmeteorológicas: <<Termómetroantes da alva, 65', vento
viajantes sentem esta diferença entre representações tradicionais e método científico.
Ao avançarem para as Montanhas Rochosas, os viajantes canadianos ou americanos S-SE; tempo nub]ado, a]guns aguaceiros antes do nascer do dia [...])> Seguem-se as
anotações sobre a flora: <<Vistas[...] também muitas plantas aquáticas que se asse-
interrogam os Ameríndios. La Verandrye dispõe apenasde um mapa hidrográfico
traçado pelo selvagem Ochagach para localizar os rápidos: a distância do Lago Superior melham a pequenasilhas, algumas a flutuar no rio, outras enraizadas ou crescendo
ao <<riodo Oeste>>
é ali representadapor uma série de transportes em solo firme de na margem em pedaçosde madeira.)>Uma vez recolhida a planta, a descriçãoque
dela se faz permite identifica-la, comparando-a com espécies conhecidas: <<Examinada
uma via navegável à outra e é avaliada num dia de caminho. Lewis e Clark são acom-
a planta, descobri que o caule era constituído por elementos ocos, unidos uns aos
panhadospor guias índios que, mudando de uma tribo para a outra à medida que o
outros. com raízes da mesma forma. Não consegui encontrar flores que me permi-
pequenogrupo avança,o conduzem de colina em colina, de pico em pico, em direc-
tissem determinar a classee a ordem desta planta; provavelmente não é nova. Pensei
ção a um horizonte sempre anunciado e sempre inacessível. Também na Europa
sucede idêntica desventura àqueles exploradores de outro género que, para levarem antes de mais que pudessetratar-se de uma planta do mesmo tipo da descrita por
Bartram e que se encontra nos rios da Florida Oriental; mas, após exame, achei-a
a cabo a escalada dos Alpes ou dos Pirenéus, procuram informar-se junto dos habi-
tantes dos vales sobre o caminho a seguir para atingir o topo: <<Destas
dificuldades, completamente diferente.>>
A curiosidade manifestada pelos homens das Luzes em relação às plantas tem
a mais imprevisível é a ignorância que se me deparou nas gentesdo país sobre a
duas explicações. Apesar da dificuldade dos viajantes em submeter a exuberância das
posição verdadeira do Monte Perdido. Avista-se apenasde locais elevados e desa
vegetações tropicais às categorias de uma classificação pensada a partir da flora euro-
parece mal se desce; tive de me resolver a procurar o caminho ao acaso>>,
conta o
naturalista Ramond, que explorou os Pirenéus em finais do século XVllli4 peia, e apesar do verdadeiro absurdo que representa para eles a pretensão lineana de
dispor da flor e do fruto de cada planta para uma identificação segura,a botânica
E preciso atribuir um nome às ilhas e arquipélagos,costasou montanhasque o
justifica a esperançade chegar a uma nomenclatura sistemática do mundo natural
explorador descobree cuja posição e forma refere no mapa. Por vezes, é um termo
retirado do uso indígena, mais ou menos deturpado: o Mississípi é <'o grande rio>>;a que satisfaça assim o gosto enciclopédico do século pelo inventário e pela taxiono-
mia. Além disso, uma preocupaçãoeconómica e utilitarista impulsiona a procura de
expressão <(OTahiti)>, inicialmente adaptada pelos Ingleses, significa <<eiso Taiti>>.
Com maior frequência, o descobridor substitui as denominaçõeslocais por um nome plantas novas para a sua aclimatação na Europa e no mundo. Durante a estada na
Louisiana, François La Madre apega-seàs virtudes dos simples: <(Envieino último
pertencenteà própria cultura, projectando nestesespaçoslongínquos um imaginário
navio uma carta a lsnard, sucessorde Tournefort no cargo de botânico do Jardim
povoadode santos,de reis e de heróis. Encantadocom as referênciasantigas,
Royal, onde Ihe dizia que me preparava para Ihe mandar daqui algumas plantas medi-
Bougainville baptizacom o nome de Nova Citera a ilha paradisíacaque antesde si
cinais a fim de repararos danoscausadospelo grande Invemo de 1709.>>
As cultu-
os Ingleses e ele ignora-o -- haviam reconhecidosob o nome indígena de Taiti.
Cook dedica à Real Sociedade de Geografia o arquipélago da Sociedadee ao pri- ras alimentares despertam particularmente a atenção: em 1792, a pedido de Sir Joseph
meiro lorde do Almirantado as ilhas Sandwich (Havai); desembarcandona ilha da Banks, William Bligh, velho capitão da Boz{/zQ,transporta plantas de fruta-pão do
Desolação, durante a sua terceira viagem, atribui-lhe o nome de Kerguelen, em home- Taiti para as Antilhas; Archibald Menzies, botânico que acompanhaVancouver, é
nagem ao navegador francês que a descobriu em 1772. Lapérouse dissemina nas cos- encarregado de proceder ao recenseamento dos vegetais das terras visitadas, obser-
tas da Ásia e da América a recordação da passagemdos navios francesese grava o vando o uso que deles fazem os indígenas e a utilidade que daí pode advir em caso
nome de Necker no meio do Pacífico. O mapa torna-se a recordaçãode uma desco- dc colonização.
berta, das suas datas, dos seus protagonistas. Com efeito, os exploradores naturalistas desenvolvem localmente uma actividade
enérgica. Em 28 de Maio de 1767, Philibert Commerson, botânico a bordo da E/Dize
escreve ao irmão. de Montevideu: <<Muitasvezes nem sei por onde começar, esqueço-
Observações astronómicas, levantamentos topográficos, medidas de triangulação:
me dc comer e de beber, e o nosso capitão, meu excelente amigo, teve de desviar a
a exploração prossegueum ritual tão inalterado e quotidianamente repetido que os
índios de Tarqui não encontram melhor paródia durante uma festa a que La Condamine atenção dos seus afazeres para que me fosse concedida luz apenas até à meia-noite,
assiste do que imitar o gesto de um astrónomo que ergue o óculo em direcção ao porque se apercebeude que, em prquízo da minha saúde, roubo quase toda a noite
ao sono para poder examinar a fundo tudo o que se me apresenta.» E sem dúvida um
céu. Mas, apesarde mais discreta, a recolha botânica ocupa também uma boa parte
do tempo de viagem. Na segunda-feira,22 de Outubro de 1804,William Dunbar, em quadro verídico: de escala em escala, no Brasil, na ilha Maurícia, na Terra do Fogo,
no Taiti, na Nova Guiné, Commerson compõe um herbário de mais de duzentos volu-
missão de exploração no Sudoeste americano, anota no seu diário, como sucede todos
mes. Quase no mesmo momento, a bordo da Endeavoar, Joseph Banks e Daniel
Solander mostram-se bastante obstinados nesta tarefa: <<Seos nossos amigos ingle-
i4Racault, op. cíf., p. 114; 1. Ollivier (direcção de), Exfracrs/r0/7z New Zealand Jo] r/n]/s Wrífíe/zon ses pudessemver-nos: o Dr. Solander que descreve os exemplares, eu que anoto o
the chips tttlder !he Colnlltílrtd of d'Erltrecasteatíxa:ld Dllperrey, 1793 alta 1824 (diário de Abri\)eau)\ diário, e entre nós a grande mesa, um enorme molho de algas, de madeiras e de con-
Humboldt, op. cí/., pp. 176-177; 1.e voyagede l,apératzsecit., t. 11,pp. 458-459 (diário); L. Ramond, chas, procurando à viva força imaginar a próxima margem que iremos encontrarl>>
Extraits d'une !entredt{ citoyen Ratnolld... at{ citoyett Hauy... tüe à l,'lnstitt;tt,séancedu 21 vendémiaire
alz V7,s.l., s.d., 30 pp., cit. in Briffaud, op. cír., p. 445. Por muito exíguo que seja o espaço na cabina, os botânicos têm a vantagem de poder

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ordenar os exemplares amontoados em abundância durante as escalas e de preencher ave, segundo o método que Ihc foi ensinado por Jefferson. Pallas descobre na Sibéria
o tempo da navegação a classifica-los nos seus herbários, com o auxílio dos tratados restos de mamíferos conservados nos gelos. Forsskal reúne colecções de corais e con-
de botânica que levam a bordo. A tarefa já não é tão fácil para os que viajam por chas no Mediterrâneo e na Arábia; não obstante o calor e as condições da viagem,
terra firme e que, não podendo transportar tudo, têm de limitar rigorosamente a sua procura conservar peixes e serpentes em frascos cheios de álcool. Ao chegar a França,
recolha (<(Dombey,que viaja com muito menor comodidade através do Peru e do em 1804, Humboldt oferece um esqueleto de alpaca ao Museu de História Natural e
Chile, recolheu uma dúzia de exemplares de cada espécie de plantas novao>) e, além submete ao exame de Cuvier alguns dentes de elefante fossilizados. Durante a via-
do mais, na falta de livros e de termos de comparação, não podem proceder a iden- gem procurara, juntamente com Bonpland, enviar também animais vivos para a Europa.
tificações rigorosas. Dombey desculpa-se antecipadamente a Thouin: <<Houve,sem <<Ogebo capuchinho de esmeralda (Sfmía c/ziroporei) que, devido à expressão da sua
dúvida, muitos erros nas nossas descrições. Pelo menos serão necessários alguns anos fisionomia. se assemelhatanto ao homem, e o macaco dorminhoco (Sim/a rrfvírgara),
até nos familiarizarmos com a botânica de uma parte ínfima destas florestas quase que pertence à tipologia de um novo grupo, nunca tinham sido vistos [. . .]. Enviámo-
impenetráveise onde a maior parte das árvoresé dióica [...]. Havia avisadoque os -los para a co]ecção do Jardim Botânico de Paria [...]. Os macacos e as aves mor-
meus manuscritos estão cheios de erros [...]. Compreendereisbem que, sem uma reram em Guadalupe;e, por um feliz acaso,a pele do Simía cÀíropo/es,que não
grande experiência, sem livros e bons instrumentos, devo ter incorrido em graves existe em nenhuma parte da Europa, foi enviada há alguns anos ao Jardim Botânico,
erros)> Estas dificuldades não obstam a que Dombey e os seus companheiros enviem que receberajá o couxío (Símla saunas) e o sfe/zforou a/uaf/a das estepesde Caraças
do Peru setenta e oito caixas cheias de plantas, de sementes e outros objectos de his- (Sitia wrsina).»"
tória natural. Humboldt e Bonpland trazem da América mais de sessentamil plantas Finalmente, também o homem, passadoou presente, do ponto de vista físico e
e um herbário com cerca de seis mil e duzentas espécies. O sueco Forsskal, durante moral, entra na gigantescarecolha empreendida pelos naturalistas. No Child, na
a sua passagempelo Mediterrâneo,pelo Egipto e pelo lémen, reúne vinte caixas de Califórnia. na ilha da Páscoa c em Sacalina, Rolin, primeiro cirurgião da Z?oussole,
exemplares's. dedica-sea mediçõesanatómicase antropológicas,e Lapérouseanotano seudiário
alguns termos do vocabulário indígena recolhido nas costas da Tartária. Humboldt
Neste crescendo de dados acumulados, que através da colecção procuram ergo envia para a América algumascaveiras,subtraídasà vigilância dos indígenasnum
tar o herbário do mundo, os exploradores não esquecem a fauna que, aliás, cada vez santuário; afastao irmão Guillaume, gramática e linguista, das suasinvestigações
os fascina mais, como o atestam as anotações dos diários sobre os encontros e as sur- sobre as línguas índias. Dombey estuda os hábitos alimentares e práticas médicas dos
presas que têm. E deste género a primeira experiência que Humboldt e Bonpland têm Ameríndios; entre os primeiros, interessa-sepela arqueologiaperuanae colecciona
da vida nocturna da selva: <(Anoite estava calma e serena; havia um belo luar. Os cro vasos e terracotas incas. Palhasdescreve pormenorizadamenteo modo de vida das
codi[os estavam estendidos na praia [. . .]. Manteve-se tudo relativamente tranquilo tribos siberianas Ostíacos, Quirguizes, Samoiedos. Cpok, durante a sua primeira
até às onze da noite. Então, fez-se ouvir na floresta próxima um ruído tão assusta- viagem, manda reunir na E/zdeavourtecidos, objectos comunais e artísticos recolhi-
dor que era quase impossíve] pregar o]ho [...]. Eram os sons fracos e aflautados dos dos durante a escala taitiana; Banks junta os elementos de um primeiro vocabulário
Bebas,os gemidos do sreníor, os gritos do tigre, do cuguardo ou leão americano sem haitiano e inicia-se nos costumes locais. Péron, o naturalista e zoólogo da expedição
juba, do pecari, da preguiça, do homo,do parraqua, e de outros galináceos.Quando do capitão Baudin aos mares austrais, reúne diversas peças' um esqueleto de Moçam-
os jaguares se aproximaram do ]imite da floresta, o nosso cão [. ..] começou a ladrar.>> bique, um braço de múmia e, sobretudo, agrega uma colecção de mais de duzen-
Durante o dia, os naturalistasprocedema observaçõesmais tranquilase científicas. tos objectos <<relativosà história natural do homem)>,provenientesde Timor e de
Se Lewis não encontra o mítico unicórnio nas Montanhas Rochosas, pelo menos des diversas ilhas do Pacífico: escudos, zagaias, armas, jóias, utensílios. Tal como para
Grevepara cima de duzentas e cinquenta espécies animais, das quais mais de cem até a flora e a fauna, só uma acção de reconhecimento e inventário pode estabeleceras
então desconhecidas; anota com minúcia o aspecto e as dimensões: está ainda fresca bases para a história natural do homem.
a polémica que opusera Buffon a Jefferson sobre a degeneração das espécies no Novo Mas os exploradores, quando vão até aos confins do mundo, têm em mente outros
Mundo. Todavia, por razõesevidentes de ordem prática, são raros os exemplos refe- esquemaspara além da recolha naturalista. O primitivismo dos filósofos que, de
ridos; o oficial americano só pode limitar-se a recolher fósseis e a embalsamar alguma Buffon a Rousseau,de Helvétius a Diderot, apresentamo selvagemcomo testemu-
nho das origens do homem, está subjacenteà percepção e à atitude dos navegadores
i5 «The Exploration of the Red, the Black and the Washita Rivers, by William Dunbar», in Doczíme/7/s peranteaquilo que descobrem.As anotaçõesdos seus diários revelam como a des-
Re/afílzgfo f/zeP rc/laje a/zdExplora/lon of lotíísía/za, Mifflin & Co, Boston-Novalorque, 1904,p. 15; locação no espaço é vivida como uma viagem no tempo que conduz a épocas pri-
François Le Maire, l?e/afia/zde /a Zouisíane, Paris, Bibliothêque centrale du Muséum d'histoire naturellê, mitivas da humanidade. Para Bougainville, a escala taitiana assinala a consecução
ms. n.' 948, f. 3v; Lacroix, op. cíf., pp. 121-125; Laissus, op. cír., p. 312; C. Lang, <<Joseph
Dombey (1742-
deste regresso ao passado, aos tempos das origens: aqui encontra um povo "que traz
1794). Un botaniste au Pérou et au Child. Présentation des sources>>,Recue d'Ãlsfoíre moderlzeef co/i-
rem/)orai/ze,35 (Abr.-Jun. 1988), pp. 262-274; E.-T. Hitmy, Alexandre de Humóo/df ef le Mude'umd'hls-
toire natural,te. Etude historique ptlbtiée à t'occasion. du cen,tenairedu retour en Europe de Humbotdt et i6Humboldt, op. cí/., pp. 66, 193; P. R. Cutright, «Meriwether Lewii: Zoologist», OfegamHísforlca/
de Bonpla/zd, extraído de <<Nouvellesarchives du Muséum», IV série, 8 (1904), 32 pp. Qiíarrerly, 69 (Mar. 1968), 1, pp. 5-28; Hamy, ibidem

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Y
para as artes aqueles conhecimentos elementares suficientes ao homem que vive pró- rios e os relatórios da primeira parte da viagem, realiza uma extraordinária travessia
ximo do estado natural, que trabalha pouco, que usufrui de todos os prazeres da socie- de Este a Oeste que, retrocedendopelo itinerário estabelecido,o leva da solidão da
dade, da dança, da música, da conversa e, enfim, do amor, o único deus ao qual, Sibéria até à Rússia e de São Petersburgo a Versalhes. Foi o único que regressou,
creio, este povo se sacrificará>>.Para o europeu, a viagem proporciona a ocasião de pois o resto da expedição desapareceupara sempre no misterioso naufrágio de Vanikoro
um regressoàs origens da história humana. e. com ele, a narrativa das últimas navegações realizadas pelas duas fragatas nos
Decorridos vinte anos, também Lapérouse pode acreditar que encontrou o paraíso mares do Sul. Mas a sua aventura acabou por revelar a obsessão que era a hipótese
terrestre nas ilhas mamoa: <(E impossível imaginar a felicidade de um local tão fas- de uma viagem sem retomo que tornaria vã a sua empresae, quanto muito, estimu-
cinante, um clima que não exige vestuário; além da fruta-pão, dos coqueiros, bana- laria a imaginação utópica e novas tentativas desenvolvidas com base nela, como a
neiras, goiabeiras, laranjeiras, etc., que não precisatn de quaisquer cuidados, ofere- expedição de Entrecasteaux que, na verdade foi enviado, em 1791, em busca de
cerem a estes felizes habitantesum alimento são e agradável, galinhas, porcos, cães Lapérouse.
que vivem dos restos destes frutos permitem-lhes variar a alimentação. São tão ricos, São inúmeras as explorações sem regresso. É sobretudo o caso daqueles viajan-
têm tão poucas necessidadesque desdenham os nossos instrumentos de ferro, os nos- tes que pagam com a vida os perigos que foram procurar. Cook e Fleuriot de Langle
sos tecidos.)>Estas imagens evocam nos marinheiros o paraíso da criação, antes da são vítimas de recontros com os indígenas.Perde-sequalquer rasto de Lapérouse
queda e do pecado: <<Dizíamo-nos: 'Estes ilhéus são os habitantes mais felizes da terra, após o naufrágio de Vanikoro e Bruni d'Entrecasteaux morre de exaustão, ao largo
passamdias de ócio rodeados pelas mulheres e têm como única preocupaçãoa de se da ilhota onde se afundarao seu antecessor.
Suspeitode republicanismo,lançado
ornamentar, de criar aves e, tal como o primeiro homem, de colher sem a menor para as prisões holandesas, o naturalista Joseph Venterat morre em Java, em 1795
fadiga os frutos que crescempor cima das suascabeças'.>>
Mas o navegadorsabe Commerson morre na lle de France, em 1773, sem saber que acabara de ser eleito
perfeitamente que estas fantasias são uma ilusão, nascida na Europa e projectada nos membro associadoda Academia das Ciências. Também para aquelesque viajam por
antípodas: <<Nãovimos armas, mas tinham os seus corpos cobertos de cicatrizes, o terra firme, o balanço é pesado: dos cinco membros da expedição dinamarquesa, ape-
que prova que estavam em guerra ou em litígio [...]. O homem semi-se]vagemque nas Niebuhr alcançaSana'a, capital do lémen; Chapped'Auteroche é vitimado por
vive na anarquiaé um ser pior que os lobos e os tigres das florestas.>>
Ainda antes, uma epidemia enquanto se dirige para a Califórnia; durante a sua segunda viagem a
a propósito dos habitantes da costa setentrional do continente americano, afirmara Africa, Mungo Park morre afogado ao descer o Níger, apanhadotalvez numa embos-
que desaparecerao sonho da época áurea, atribuindo de longe as culpas aos filóso cada indígena.
fos: <<Escrevemos seus livros junto à lareira e, ao invés, eu viajo durante trinta anos: Existem também outras formas de não regressar.Há viajantes que decidem não
sou testemunha das injustiças e da astúcia destes povos que são descritos como bons voltar à Europa,ou que o fazem após tantos anos que o seu regi-essopassadesper-
porque em contacto com a natureza; mas esta natureza só é sublime quando sc fala cebido, em silêncio. Enquanto Bouguer e, sobretudo, La Condamine organizam reu-
dc massas;pelo contrário, assentano pormenor. E impossível [...] organizar uma niões brilhantes em Paris para falarem da expedição peruana e se dedicam à redac-
sociedade com o homem no estado natural, porque bárbaro, mau e astuto.>>O mundo ção de relatórios, o académico Godin estabelece-se primeiro na América do Sul como
que se revelou aos olhos do explorador perdeu o seu encanto: o homem não é bom professor de matemática,jornalista, consultor de fortificações, e depois em Espanha;
por natureza, nem aqui, nem lái7. o astrónomonão publica em vida nada sobrea suaviagem. Com a saúdedebilitada,
Joseph de Jussieu, outro membro da expedição, permanece na América, acumulando
apontamentos e herbários sem nunca os chegar a organizar; quando, ao fim de trinta
O regressoà pátria e seisanos, regressafinalmente, prostradoe com os nervos abalados,é uma sombra
de si próprio. Depois, há aqueles que, uma vez regressados,não se conseguem rea-
Se a diatribe levantada por Lapérousc chegou aos seus destinatários, foi porque daptar à vida ocidental: enquanto Humboldt, recebido triunfalmente em todas as capi-
ele, para obviar à eventualidade de um naufrágio onde se teriam perdido todos os tais europeias,se lança em múltiplas actividadesde estudiosocosmopolita,o seu
frutos das suas descobertas e reflexões, decidiu separar-se a meio do caminho de um velho companheiro Bonpland, obcecado pelas recordações das viagens, não se con-
dos seus companheiros, o jovem Barthélemy de Lesseps, embarcado como intérprete. seguecontentarcom a vida tranquila que Ihe é oferecida nosjardins de Malmaison;
Lesseps, que ficou em Petropavlovsk, na costa de Kamchatka, carregado com os diá encarregandoHumboldt da organização do material da sua viagem e de efectuar o
relato, parte de novo em 1814 para a América do Sul, onde leva uma vida de cons-
7 Rollin, <<Mémoireou dissertation sur les habitante des êles de Pâcques et de Mowée..., Mémoire tantes aventuras e insucessos, até acabar na miséria. Outros vêem-se, no regresso,
phisiologique et pathologique sur les Américains..., Dissertation sur les habitants de I'Íle de Choka et sur desapossadosda glória das descobertas efectuadas. Na altura em que pisou a Europa,
les Tartares orientaux, par M. Rolin, chirurgien ordinaire de la Marine et chirurgien-major de la frégate>> Dombey conheceu um breve momento de celebridade junto de uma certa opinião
La Boussole, in Z,e voyage de Z,apérousecit., t. 1, pp. 228-239; <<Journalde Lapérouse», ibidem, t. ll,
pp. 147, 388-391, 447; Lang, op. c//., p. 263; E.-T. Hamy, <<Lescollections anthropologiqueset ethno- pública interessadapela ciência e pelo exotismo, que acompanhapasso a passo nos
graphiques du voyage de découvertes aux terras australes (1 801-1804)», Blr//afia de géograp/zíe Alslorí jornais o itinerário dos viajantes: <<AAcademia das Ciências acabade saberque o
que ef descrzpfíve(1906), n.' 1, pp. 20-34;Taillemite, op. cír., t. 1, p. 327 (diário de Bougainville). senhor Dombey, médico botânico, regressado do Peru, chegou a Cádis em 22 de

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frascos de álcool, deitam fora os exemplares de peixes e serpentes.Uma dúzia de
Fevereiro com setentae oito caixas cheias de objectos de história natural>>,anuncia
a Gaze/rede Fra/zcede 29 de Maio de 1785. Mas logo sobrevêmas dificuldades: caixas consegue chegar à Europa, após um longo desvio através da Índia e da China,
uma primeira série de caixas é capturada por piratas ingleses e o seu conteúdo, ven- três anos depois da morte do explorador: por rancor em relação a um rival mais céle-
dido num leilão em Lisboa, é comprado pela Espanha; devido a uma tempestade que, bre ou por simples negligência, o director do Departamentode história natural de
durante uma segunda expedição, provoca a perda dos exemplares recolhidos por dois Copenhaga não as abre sequer, deixando que as colecções entrem em decomposição
companheiros seus, as autoridades espanholas apreendem as colecções do botânico Vai ser preciso esperar por 1772 para que sejam finalmente estudadas: é então que
francês e, sem Ihe dar tempo de classificar as suas plantas, procedem à partilha; além são publicadas algumas descrições botânicas e zoológicas. Mas o manuscrito do seu
disso, é exigida a Dombey a promessa de não publicar nada antes do regressodos diário, dado como perdido, só é encontrado no início do século xx. Dos sete maços
de manuscritos e das vinte caixas de amostras apenas resta hoje em dia uma colec-
dois jovens espanhóis,que ficaram na América para completar a suarecolha. Cansaço
devido às duras provações que demoraram demasiado tempo, dificuldades económi- ção de insectos, corais, conchas e peixes, e a designação de uma planta com o nome
cas, sensaçãode impotência? Subsiste o facto de Dombey renunciar tanto a publicar do botânico e atribuída por Lineu a... uma urtiga, recordação da profunda obstina-
como a protestar: dele nos chegam, para além do herbário, apenascorrespondência ção do seu discípulo. Do grosso das suas investigações, dos cerca de vinte e quatro
com Thovin e Jussieu, algumas reflexões sobre agronomia e a descrição de algumas génerose das trezentasnovas espéciesque ele descobriu, a ciência da época nada
plantas, nascidas das sementes que trouxe e plantadas no Jardim do rei. A glória da sabe,quase frustrando a actividade incansável do viajante: seria necessáriocomeçar
expedição reverte em benefício da Espanha, quando Ruiz e Pavon, regressando qua- tudo do princípio"
tro anos mais tarde, publicam a sua flora do Child e do Peru sem mencionarem sequer
o nome daqueleque lhes servira de guia nos locais.
Outros ainda são ignorados, ou então as suas descobertasincompreendidas. No Da viagem à narrativa
regressodo Norte dc Aü'ica, em 1725, Peyssonnelesperatrazer daquelaviagem, rea
lizada a expensas suas, sem qualquer apoio a não ser um passaporte régio, o reco- Para além dos episódios por vezes idílicos e com frequência trágicos, é importante
nhecimento de estudioso e talvez uma outra missão, mais oficial. Envia quinze car- avaliar a obra realizada pelos exploradores, os seus efeitos na cultura e na ciência das
Luzes. no limiar do século xlx. Antes, porém, e para ficarmos o mais próximo pos'
tas c memórias aos estudiosos da sua época, à Academia das Ciências de Paria, à
cível da sua aventura, teremos de considerar a descrição por eles apresentadano
Royal Society de Londrcs, em vão; o relato da sua viagem fica no manuscrito e, se
as suascartas circulam nos ambientesiluminados, não têm qualquer eco: o abade regresso para informação do público. Com efeito, escrever é uma obrigação acentuada
Bignon acha os seus apontamentos sobre a Tunísia <<deinteresse medíocre»; Réaumur pelo abade Prévost, que recomenda: <(Um verdadeiro viajante deve trabalhar para a
e Bernard de Jussieu não consideram a descrição que fez do coral, sendo, todavia, o posteridade e para si próprio, e transformar os seus escritos em algo de utilidade geral.)>
E. na verdade. com i540 títulos franceses e estrangeiros ou seja, mais do dobro dos
primeiro a realçar a sua natureza animal. Sem outra recompensapara além do título
do século anterior --. a literatura de viagens, até àquele momento parte menor da pro-
de médico herborista do rei, em 1727, Peyssonnel parte para se estabelecer em
Guadalupe,onde casae fica até à morte, em 1759,voltando à Europa apenasnuma dução livreira, transforma-se no século xviil num género que desperta as atenções-
breve viagem. Na altura, apenasos ingleses noticiam os seus trabalhos nas Nos últimos quarenta anos do século, quando estão na moda as viagens para Norte e
<<PhilosophicalTransactions», em 1751 e cm 1759; Daubenton cita o seu nome no para Sul, o zelo com que os exploradores se apressam a publicar as suasdescrições
dá uma ideia do entusiasmo do público por estas terras longínquas. A edição alemã
artigo <<Corail>>
da E zcyclopédíe;também o abadePoiret o menciona,no final do
século, na descrição da sua viagem a Africa. Mas vai ser preciso esperar por 1830 dos primeiros volumes da yoyage dz{prcláessezzrPaJ/as da/zi /es dWZrenfes par/íes de
para que a crónica c as cartas de Peyssonnel sejam parcialmente publicadas e para /a Rzzssíeef de /'Ásíe seprenrrío/za/e surge em São Petersburgo em 1771, numa altura
que Flourens revele o seu estudo sobre o coral: nessa altura, um contexto completa- em que o naturalista procede ainda à descoberta da Sibéria: <<Oconde Vladimir Orlof,
director da Academia, exortou-nos a publicar o mais rapidamente possível os diários
mente diferente o da conquista colonial da Argélia vem renovar a curiosidade
em relação ao Norte de Afhca. das nossas viagens, a fim de dar resposta às solicitações dos estudiosos da Europa."
A história das recolhas botânicas e zoológicas efectuadaspor Forsskal no A obra é logo traduzida para russo, inglês e italiano; é publicada a partir de 1788 uma
Mediterrâneo e na Arábia oferece, por fim, um exemplo patético e ridículo dos custos edição francesa em cinco volumes, acompanhada de um atlas, e uma segunda, <<menos
humano e material destasexpediçõesque, por vezes, atingem o desperdício. A seme- cara e mais manuseável>>,surge em 1793, em plena Revolução Francesa.
lhança dos seus companheiros, Forsskal envia, em cada etapa da viagem para o lémen,
as caixas já prontas de plantas, sementes e animais. Mas uma parte das encomendas -8B. de Lesseps,Jourtla! historiqtte dt{ voyagede M. de Lesseps...depois !'instant oü i! a qltitté tes
expedidas de Constantinopla e do Cairo é interceptada no caminho por piratas; a /régafes .Üançoísesau porá Sainr-Plerre ef Saí/zr-raBI du KamrscAarka,.ÍusqK'à son arrlvée en France, le
resto chega a Copenhaga apenas em 1763, em péssimo estado; um pacote, enviado /7 ocfobre /788, 2 vols. Imprimerie Royale, Paras, 1790; 1.e voyage de l,aparo se cit. t. 1, pp..185-191;
do Suez, perde-se no caminho; outros, depositados na alfândega de Mokka, são revis- Mercier, op. cíl., pp. 337-342;Hamy, op. cif., pp. 11-22; Lang, op. cif., pp. 262-267; Peyssonnel,op. cír.,
tados com desconfiança pelas autoridades locais que abrem as provetas, despejam os pp. 10-16; Hansen,op. cif., pp. 301-315

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<([0 viajante] deve ser educadode modo a não fazer apenasum relato cm que reza que se revela de repente: <<Ali onde o verde nos encantava os olhos e os coquei-
não falte a verdade, mas que contenha, sem distinção, tudo o que é objecto de curio- ros nos ofereciam por todo o lado os seus frutos e a sua sombra sobre um prado sal-
sidade e de saber>>,recomenda o abade Prévost. Uma vez regressado o explorador, picado de flores [...]; ansiávamos pe]a hora de desembarcar.>>
começa para cle um novo período de recordação e de descrição. De pena na mão, Para além destes factos, temos também os exploradores, em número reduzido,
deve enfrentar perigos diferentes dos da viagem: como contar uma aventura pessoal que conferem outra dimensão à sua aventura pessoal e à narrativa dos factos, cons-
e, simultaneamente, descrever um mundo desconhecido? Como transformar a dimen- cientes de que cada passo no sentido do conhecimento aprofunda as raízes numa
são romanceadada narrativa num relato fidedigno e numa obra científica? Mungo experiência subjectiva, alimentando-se dela. Para o naturalista Ramond, que explo-
Pack, regressado em 1797, passa alguns meses em Londres e entrega à sociedade que rou os Pirenéus.a narrativa não é uma forma literária escolhida pelo tom pitoresco,
patrocinou a sua viagem um breve relato, considerado insuficiente: esperava-sedele mas um método de exposição privilegiado, na medida em que permite apenas explicar
uma obra mais pormenorizada. instalando-sc na Escória, lança-se numa tarefa para a relação entre o investigador c o local de investigação, uma relação simultaneamente
a qual ninguémo preparou:o livro é publicadoem 1799e traduzido parafrancêsno física e intelectual,feita de um misto de empatiae de hostilidade,de sofrimentoe
mesmo ano. Provirá o êxito da novidade das suas informações, que desbravam o inte- de incompreensão, que é impossível apagar impunemente da narração final. A bio-
rior de um continente quasedesconhecido?Ou do tom pessoalda narrativa, da qua- grafia do explorador não é escória inútil nem exotismo vulgar: é exactamentea maté-
[idade da perspectiva, da abundância de peripécias? <<A minha descrição [conterá] ria a partir da qual o estudiosoconstrói a própria ciência. E o diário ou a narrativa
pormenores exactos dos factos que me surpreenderam e das reflexões que fiz durante de viagem tornam-se, neste sentido, um género realmente científico, adaptado à des-
a minha viagem fatigante e perigosa ao interior da Africa.>> cobertae à investigaçãode campo''
Apresentam-seao explorador-escritor dois métodos, dois tipos opostos de expo- Contrariamente ao colega La Condamine, Bouguer prefere redigir um pequeno
sição e de escrita para organizar a sua matéria: o da narrativa e o da imagem, imi- tratado que se propõe apresentaruma visão global e sistemática do Peru: a geogra-
tando o género clássico do diário de viagem ou da memória descritiva. No regresso fia e o clima, a naturezado terreno e a origem das montanhas,por último, os habi-
da expedição, para contar a sua descoberta dos Andes e da Amazónia, o académico tantes e os seus costumes. Testemunha simples, como um espelho que percorre o
La Condamine opta pela forma do diário de viagem, em que as observações se desen- caminho. reflectindo de modo neutro e exaustivo a imagem do mundo observado,
rolam segundouma narraçãocronológica, convidandoo leitor a seguir o seu itine- o explorador exclui-se o mais possível da descrição. A natureza é mais referida do
rário e a acompanha-lo na descoberta. A narração pretende transmitir, através das que vista, expostade forma tosca, como um dado imediato em que o viajante não
palavras e do ritmo, as sensaçõesde um viajante que escala lentamente a Cordilheira manifesta a sua presença: <(Estasflorestas formam quase sempre uma espécie de mata
dos Andes: de corte na proximidade do mar [...]. A distância entre as árvores está coberta por
uma quantidade prodigiosa de plantas e arbustos parasitas. Uns envolvem os troncos
e os ramos, outros descem verticalmente em linha recta, como cordas presas no alto.
Quanto mais subia, mais os bosques rareavam: não tardei a ver senãodetritos racho
sos; e lá no alto, rochas nuas e carbonizadas, que rodeavam a cratera setentrional do Os últimos espaços vazios são ocupados por canas de todas as dimensões.>>Quanto
vulcão de Pitchincha. Junto ao cimo, fui tomado por espanto misturado com admira- muito, a organizaçãoda narrativa, que indica o itinerário seguido, vem recordar a
ção ao ver um longo vale de cinco ou seis léguas de largura, sulcado por riachos que aventura pessoal do viajante: a yfagem às regiões eqzzírzocia/sdo /lavo confírzenre,
se reuniam para formar um rio: até onde conseguia alcançar, via campos cultivados de Alexander von Humboldt, apresentao modelo perfeito deste estilo que reúne o
onde se alternavam planícies e pradarias; colinas verdes, aldeias, grupos de casas rodea- itinerário e o quadro-síntese, mas que, pelo privilégio atribuído a uma apresentação
dos de sebes e de jardins; a cidade de Quito, ao longe, fechava esta perspectiva agra- sistemática, ordenada, o mais exaustiva possível, encaminha a narrativa da viagem
dável

R. Chartier, <<Les
livres de voyage>>,
in Id. H.-J. Martin (direcçãode), Hlsfoíre de /'édlflan .Õnn
O autor apresentainicialmente a explicação em relação ao espaçoque é atribuído çaise, t. ll Fayard, Paras,1990, pp. 266-268: a divisão dos títulos reflecte a actividade geográfica do século
e o desabrochar da curiosidade em todas as partes do mundo, próximas ou longínquas: se a Europa está
às peripécias de viagem e à autobiografia: ambas respeitam a lei deste género lite
presente em mais de metade dos títulos, a América e a Asia interessam um total de 13% das obras, a
ratio c as expectativasdo público. <<Sem
dúvida ireis achar que falei muitas vezes Africa 7qo. os mares austrais 2qu e, por último, a geografia geral 12%; P. S. Pallas, Voyage dzl pr(Z$essez/r
de mim nesta narrativa; é um privilégio que não se contesta aos viajantes: são lidos Fatias dons ptusieurs provinces de I'Empire russo et dons !'Adie septentrionale. .., traí. ft., }d.axadan,Pal\s,
apenas para se saber o que fizeram e o que viram.>> Sem dúvida, é para melhor suge- ano n, ver o prefácio: esta edição permite que o geógrafo Mentelle enriqueça o curso por ele ministrado
rir as suas inquietações que Chappe d'Auteroche compõe a sua yoyage e/z Síbérfe, na Escola Normal, no ano 111, com os novos conhecimentos trazidos pelo naturalista sobre a Sibéria (agra-
deço a D. Nordman esta indicação); A.-F. Prévost, Hlsfofre génerale dei voyages ou No ve//e co/leclion
mantendo até ao fim a incerteza na travessia da Rússia: conseguirá chegar a Tobolsk
de foa/es /es re/a/itensde voyages..., t. 1 1, Didot, Paras, 1753, p. 560; Pack, op. cif., p..55; Ch.-M. de La
a tempo de ver a passagemde Vénus? Simultaneamente,Bougainville, para a sua Condamlne.Jotlma! du voyagefale par ordre du Roi à !'Equateur, servantd'introdüctioit historiqLleà la
Voyage azlfo r dzi mo/zde,que é publicada em 1771, mantém a forma narrativa do mesz#redes froís pre/nie/'s deg/"élçdu méridíen, Imprimerie Royale, Paris, 1751, pp. XXVI, 14-15; Mercier
diário, destinada a comunicar ao leitor a emoção sentida pelos marinheiros ao apro OP.cjr., pp.. 352-356; J. Chappe d'Auteroche, Voyage en Sfbéríe, Debure pai, Paras, 1768; Bougainville,
ximarem-se das ilhas, convidando-o a mergulhar com eles na contemplaçãoda natu- op. cif., p. 179, cit. in Le Goff, op. cif., p. 172. Sobre Ramond, ver Briffaud, op. cif., p. 426

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para a estatística descritiva. Contemporâneada obra de Humboldt e prolongando-se de estabelecer uma diferença de estatuto entre uma e outra, que reserva à primeira
até à Restauração, a publicação monumental da Z)escríprfon d'Egyp/e assinala o apo- vista os campos menos codificados do conhecimento, os mais próximos da experiên-
geu deste género enciclopédico que procura conferir à realidade geográfica, natural cia do viajante, para a sua curiosidade pessoal, a sua subjectividade: a geografia, a
e humana uma dupla dimensão espacial e metódica: a obra ilustra bastante bem as história, os costumes dos povos"
ligações entre a viagem e a estatística na medida em que é o equivalente da S/arlsrique Exactamente por estas razões, a narrativa de viagem é um género literário sus-
gérzéraZede /a Fra/ ce publicada no final do século, com base nas investigações depar- peito aos olhos de alguns leitores amantesda actualidade geográfica: o duque de
tamentais conduzidas no território nacional pelos primeiros prefeitos. Coroy, por exemplo, admite preferir a procura de informações no estudo directo dos
A demonstra-lo, estes últimos exemplos: da descrição à imagem, são possíveis mapas,dos diários de bordo e das memóriaseruditas e censura Bougainville pela
todos os géneros intermédios, consoante a arte e a qualidade de quem escreve. preocupação de querer agradar a quem o induziu a ceder às modas da época para a
O astrónomo Pingré compõe a sua Voyage a Rodrfgues, alternando de modo clás- vedaçãoda sua yoyage aülour da nzolzde.Que dizer? E verdade que para esta nalTa-
sico a narrativa cronísticae anedótica da navegaçãode ilha em ilha com a memó tiva Bougainville reformula com cuidado o texto inicial do diário de bordo: em vez
ria descritiva conferida, sob a forma de escala, aos principais lugares (Rodrigues, de poucaspáginas,três capítulosinteiros, dos dezassetede que a obra se compõe,
a lle de France, a lle Bourbon) e compartimentadasegundouma ordem inalterá- são dedicados apenas à reevocação da etapa do Taiti. É, sem dúvida, para ele um
vel: história, geografia, clima, botânica, zoologia, população,economia, adminis- modo de mascararo relativo insucessogeográfico e comercial da viagem, tentando
tração... Pcyssonneladopta, tal como Tournefort antes dele, o género clássico da fazer esquecer um vaguear no oceano que não levou a qualquer descobertanem do
narl'aviva epistolar, que subdivide a descrição em sequênciastemporais e permite continente austral, nem de terras ricas em especiarias, nem a um novo caminho para
organizar os temas, consoante o destinatário seja um botânico, um geógrafo ou um a China. Mas por certo, relegando para o fim do capítulo as anotações sobre a guerra,
homem de letras. os sacrifícios humanos,a hierarquia da sociedadetaitiana e depois, no prossegui-
Na medidaem que a escrita e a forma podem variar, surgemno conteúdoatri- mento da viagem mas quem Ihe daria atenção, após aquela escala de encantar?--
buído a estas obras algumas características comuns, que realçam aquilo que os via- sobre o encontro com outros ilhéus nitidamente hostis e belicosos, Bougainville entra
jantes consideram digno de menção e, eventualmente, publicação. Médico e natura no debate intelectual da época c respondeàs expectativas de um público que se
lista, Peyssonnel, durante as suas passagens pela Berbéria, em conformidade com o encanta ao ler nestas páginas a ilustração das ideias em voga sobre a natureza do
objectivo oficial da sua missão, enviou por diversas vezes a Jussieu e a Chirac semen- homem e da sociedade, sobre a origem das línguas e sobre as religiões. Acentuando
tes e amostras de plantas, recolhidas no campo ou compradas no mercado; no regresso, a carga emotiva e filosófica destas narrativas, procuram-se nelas vestígios da cultura
desenvolve diversas memórias, destinadas a instituições eruditas da sua época. e do imaginário daqueles filósofos e curiosos -- que, sem se afastarem de casa, for-
Surpreende muito mais a verificação de que as cartas por ele endereçadas a diversas necem o material para a reflexão sobre a natureza do homem e da sociedade, sobre
personalidades,e que não tardam a circular semioficialmente no mundo culto, como, a origem das línguas, sobre as religiões.
por exemplo, o seu relatório manuscrito, sem dúvida destinado a publicação, contêm
apenasescassosvestígiosdestestrabalhoscientíficos: a medicina e a botânica,jun- Poderão os leitores, na confusão pitoresca com que os viajantes escrevem as suas
tas, ocupam apenas 5qn do texto. Ao invés, a geografia, <<quer antiga quer modema>>, narrativas. encontrar o modo de entender as sociedadeshumanas? Sem dúvida, para
abrange um terço, os usos, mais de 35qo, a história, a arqueologia, as belas-letras, dominarem uma produção variada e díspar, alguns editores procuraram juntar, segundo
por último, <<osmanuscritos árabes, as inscrições, as medalhas e as estátuas>>cerca uma ordem geográfica ou histórica, recolhas de excertos ou de compêndios: L.-F
de um quarto. Não tardou que, neste século, os escritos de Peyssonnel ilustrassem Bernard publica em Amsterdão um Recuei/ des voyages d nora, entre 1715 e 1718,
uma distinção implícita entre o género da obra científica do explorador e a narrativa e depois um Recuei/ des voyages da/zs /'.4mérfque /nérldíona/e, em 1738. A empresa
da viagem. Análogo desdobramento leva o astrónomo Pingré a eliminar da sua descri- mais ambiciosa, em face da vontade que manifesta de criar um <6istemacompleto
ção, centrada em aspectos anedóticos das suas aventuras e na reportagem-documen- de história e de geografia moderna que representaráo estado actual de todas as
tário, qualquer referência técnica à observação de Vénus, objecto da sua missão à
ilha Rodrigues: reserva os pormenores para uma comunicação na Academia das
Ciências. Pallas faz acompanhara publicação da sua narrativa de uma série de arti- } P. Bouguer.La$gure de la torre détenninépar les observation\de Messieurs
Bougtteret La
Colzdcz/zzine...
Aves u/le re/afíon abre'géede ce voyage..., Jombert, Paras,1749, pp. xxl; Mercier, op. cl/.
gos e de obras eruditas que contêm, pelo menos, setentatítulos relativos a todos os
p. 344; A. von Humboldt, Voyr7geí] lr réglons équlrzoxialesdu /zolfveaHconfíne/zf,Jtzlr en /799. /800.
campos abordados durante a exploração (botânica, zoologia, geografia, filologia). /80/. /802. /803 er /804, 13 vols., Schoell, Paris, 1816; Z)escripríon de /'.Egypre, ot{ Recuei/ des obser-
Humboldt faz o mesmo, pl'eocupado em não sobrecarregar excessivamente uma nar- vations et des recherches qui ortt étéjailes en Egypte pertdant I'expédition de I'armée française, Paria
rativa destinada ao grande público, como o testemunhaa atenção com que ilustra a 1809-1828. Sobre as relações entre viagem e estatística: M.-N. Bourguet, DécAi#rer /a /?ral?ce.lxz sra-
rísrique dí+'arrede/zfa/e à /'q)oque napa/éonie/lne, Ed. des archives contemporaine, Pauis, 1988; Racault
sua Viagem às regiões eq ínocíaís do /lava con/l/ze/z/e com inúmeros desenhos e gra-
clr., p- l l l (o relatório de Pingré manteve-seinédito); Peyssonnel,op. cír, pp. 19, 35, e E.-T. Hamy
vuras de paisagens.Nos primeiros tempos de explosão e de especializaçãodo saber, Peyssopznelef .4pzrofrze
de Jussleu, retirado do «Bulletin de géographie historique et descriptive» ( 1907)
afirma-se uma vontade de distinguir a narrativa de viagem da memória científica e n 2, 7 PP

242 243
nações>>,
é l,'/zfsfoíre généríz/edes voyages,solicitada por d'Aguesseauao abade de Z,apérozlse,publicados anonimamenteem 1797, no momento em que se rende ao
Prévost, cujos dezassetevolumes surgem entre 1746 e 1761. Mas e para além des- mistério do desaparecimentoda Ásrro/aZ)ee da Bousso/e,são uma outra forma de
tas narrativas? reprodução literária: o expediente de um caderno roubado, que chegaria a França
<<Osviajantes referem apenasos factos [...]. Não fazem um estudo aprofundado após uma série de coincidências, serve de apoio a uma narl'açãoutópica em que, de
dos usos dos povos>>,escreve em 1776 Jcan-Nicholas Demeunier. Uma vez que o acordo com as leis do género, se misturam temas estereotipados e pormenores minu-
século regista a paixão de clarificar c não sabe pensar numa ordem que não seja a ciosos e <.verdadeiros>>
(topónimos de ilhas visitadas por Lapérouse, nomes de mari-
da imagem, Demeunier dedicou-se à suposição dos usos dos povos e do seu modo nheiros da tripulação, menção a plantas exóticas existentes, etc.). Nesta sede, o desa-
de vida segundo as regras de uma ordem taxionómica, à semelhança dos naturalis- parecimento de Lapérouse é explicado pela escolha deliberada que o navegador teria
tas para as plantas e as pedras. O Élspr/r des usízges ef des coaíu/nes des dWZre/zn feito a fim de se estabelecer numa ilha do Pacífico para evitar resvalar num tormento
peup/es é um catálogo enciclopédico quc inclui mais de dois mil e quinhentos exem- pior do que todos aqueles que enfrentou nos mares: o naufrágio da França em revo-
plos, provenientes de todos os quadrantes do mundo e de todos os séculos da histó- lução. Por muito pouco prolixos que sejam os diários de bordo, estas falsas narrati-
ria. A ideia ambiciosada obra é um golpe de mestre: Demeunierrenunciaao jogo vas fazem das últimas ilhas descobertaso local na moda para a novidade imaginá-
fácil das analogias formais que se limitam a juntar costumes longínquos ou antigos ria. No momento exacto em que as grandes navegações do final do século XVlll
que se assemelham,jogo de que o próprio Lafitau dá exemplo em A/oet rs des sau- solucionaram, concretamente, o enigma do continente austral, os arquipélagos que
Pagesüméricains comparéesaüx moet4rsdes premiers tempo(\124). Como tez pululam no oceanoPacífico tornam-se, como que por um efeito de retorno, uma nova
Montesquieu para as leis, Detneunier vai procurar nos usos e nos gestos mais comuns terra para o sonho, um refúgio para a utopia. A realidade geográfica das explorações
do homem um sentido, um <<espírito>>:
a função real ou simbólica que têm para a é abandonadaem benefício da história, da filosofia e da sátira política.:
sociedadeque os pratica. O ambicioso compilador aborda em dezoito secçõestodos
os aspectos da vida humana, desde os hábitos alimentares até aos ritos fúnebres, pas-
sando pelos usos da aliança, pelas estruturas do poder e pelas formas de guerra. O .jardim dos retornos
Distribuindo por cada uma das rubricas os diversos conhecimentos acumulados pelos
autores antigos, pelos historiadores e pelos viajantes a respeito de todos os povos do <<NoJardim Botânico. abre-sede certa forma o imenso livro da natureza.>> Com
mundo, coloca em evidência a extrema plasticidade do espírito humano, que pode esta proclamação diante da Convenção, Lakanal anuncia em 1793 a apropriação do
atribuir diferentes significados a um mesmo gesto ou, pelo contrário, exprimir uma antigo Jardim do Rei por parte da nação e a fundação do Museu de História Natural
Convida os estudiosos,bem como os curiosos, a abandonaras salas de leitura e a
mesma ideia através de usos aparentementecontraditórios: <<Efrequente os povos
invertcrem os costumes.>>Demeunier resume com esta afirmação o alcance de uma passear pelas áleas do jardim botânico e examinar as colecções do museu onde, reve-
empresa que, estruturalista a/z/e /fí/era/n, é uma elaboração não geográfica do mate- lando-se ao olhar, se encontram as peles de animais exóticos, amostras de pedras
rial obtido pelos viajantes,mas assinalade igual modo os seus limites porque, ao raras, exemplares de vegetais trazidos pelos exploradores. Realizada nos quatro can-
revelar a função dos usos mais diversos, deixa na sombra a questão da sua origem tos do mundo, a recolha dos viajantes do século xvin levou, literalmente, à explo-
local. O próprio Demeunier sente isso, ao solicitar novas viagens: <<Osusos mais sin- são do fenómeno do inventário da Terra, para impor a imagem de uma natureza ines-
gulares afigurar-se-iam simples se fosse possível o filósofo examina-los localmente.» gotável, de variedades infinitas: assim, para citar apenas o reino vegetal, conheciam-se
E precisojuntar a estaprimeira forma de reconstituiçãodo saberdos explorado- no século XVI alguns milhares de espécies; na época de Tournefort encontram-sc
res, no quadro de uma ordem taxionómica, a partir do momento em que nele se encon- registadas dez mil; no início do século xlx, o seu número ultrapassa os cmquenta
tra também uma espécie de evasão da geografia, outro género de textos cuja moda mil exemplares. Jardineiros e botânicos procuram dominar estes materiais supera-
bundantes, diversos e em constante aumento.
é difundida na época:o dos <<suplementos>>
e das falsas narrativasutópicas,repro-
duções literárias que prolongam as narrativas publicadas, exagerando-as até se per- Fazem-no. antes de mais, com a nomenclatura e a classificação, que lhes permi-
derem no comentário. «Legisladores e filósofos, vinde ver, bem definido, aquilo com tem aplicar uma ordem inteligível à natureza, onde cada espécie animal ou vegetal
que a vossa imaginação não consegue sequer sonhar [...]. E a verdadeira Utopia.>>
Esta anotação do diário de Bougainville, redigida no momento em que abandonava M.-P. Dion. EtTt17tínlue!
de Crov (1 718-1784). 1tinéraire inlettectüet et réussite nobitiaire al{ siàcle
o Taiti, convidavajá à viagemimaginária:a partir de 1772,Diderot preparaum des Z,1{/7?lares.
Editions de I'Université de Bruxelles, Bruxelas, 1987, pp. 226-236; J.-N. Demeunier, Z,'esp/"ff
Surf/éme/zr a voyage de Bo gafnvi/Je que, baseando-seno efeito de realidade da des usage.çet des cazí/ //zesdes di#Vre/lfs pelzp/es, direcção de J.-M. Place, Paras, 1988 (1'. ed« 1776),
pp. IX, 40; Taillemite, ap. clr., t. 1, pp. 327-328(diário de Bougainville); D. Diderot, Supp/émenrall voyage
narrativa e juntando às observaçõesdo marinheiro as reflexões do filósofo, faz que de Z?ougainvi//e,Garnier-Flammarion, Paras, 1972; cópias do manuscrito, circulam desde 1773, nos salões
a descrição etnográfica deslize de forma imperceptível para a fantasia utópica; o tema de Paris e da Europa: B. d'Astorg, Varíczfio/is s-ar /'ínrerdi/ /71c{/ellr.Z,if/érarz#re ef incesfe e/7 Occidenf,
do incesto e da liberdade sexual, únicos elementos da vida taitiana que despertam Gallimard, Paras, 1990, p. 30; [J. Cambry], /?ragmenfs du dernler voyage de l,a Pérozzse, Imprimerie de
a sua atenção,é um meio de voltar a si próprio, para formular uma crítica violenta à P. M. Barazer,Quimper, ano v, publicado de novo in J. Gury, En marge d'une expédilion scientifique
moral e às sociedadeseuropeias.De igual modo, os Frczgme/zfs du der/zíervoyage Fragment du demier voyage de La Pérouse' (1797)>>,in Voyager, explarer cit. pp 195-236

245
244
é inserida no devido lugar. Se os herbários trazidos pelos botânicosdas temasque de ligação nos intercâmbios botânicos de região para região do mundo: a partir de
visitaram são geralmente conservados segundo a disposição inicial, juntamente com uma única planta do café, importada da Indonésia via Amsterdão e cultivada numa
os mapas e os manuscritos de cada viajante (temos, no British Museum, o herbário estufa do Jardim, construída propositadamente em 1714, Antoine de Jussieu intro-
de Hans Sloane e o de Sir Joseph Banks; no Museu de História Natural de Paria, o duz o café na Martinica, nas Antilhas e em todas as colónias francesas. Também nas
herbário de Tournefort, o dc Vaillant, os dc Commerson,de Jussieu,de Michaux e terras coloniais são criadas instituições análogas. Na Tle de France, Pierre Poivre
de Dombey), os estudiososresolvem também redistribuir os exemplaresrepetidos dedica-se à naturalização, no Jardim das Toranjeiras, de espécies provenientes das
destes herbários <<históricos>>, reclassificando-os num <(herbário geral>> do inundo, Molucas e ao cultivo, à semelhançados jardins europeus,de plantasúteis ou estra-
inventário supostamente completo com todas as espécies conhecidas graças aos explo- nhas; em face do depauperamentodas florestas da ilha, o naturalista Fusée-Aublet
radores. «Será colocada em cada planta uma etiqueta com um número na parte supe procura aclimatar no jardim botânico do Réduit carvalhos vindos da Europa. Na Nova
dor; depois virá indicado o nome genérico e específico da planta segundo Lineu ou Espanha,o jardim botânico do Médico tem como objectivo aclimatar as espécies
segundo o autor mais moderno que a tenha tratado depois de]e [...]. Nessa mesma europeias e preparar o transplante da vegetação indígena. Na América do Norte, o
etiqueta, na parte inferior, citar-se-á o local de origem da planta, o herbário especí- viveiro criado por André Michaux, próximo de Nova lorque em 1786, destina-se
fico de onde foi retirada, ou o jardim de onde provém, ou então a pessoa que fez a sobretudo à cultura de plantas jovens susceptíveis de aclimatação na Europa, em con-
doação ao Museu, com a indicação do ano em que a planta foi introduzida no her- formidadecom a investigaçãodo abadeNo1in,director do viveiro de Rambouillet
bário>>: eis o <<plano de trabalho a executar>> que Lamarck apresenta aos colegas, em que, preocupado com a evolução da deflorestação, elaborou um catálogo das árvo-
1793. Os botânicos discutem a ordem que convém adoptar para este herbário geral: res americanas, para uso dos botânicos, e cujo sonho era ver as espécies adoptadas
mais do que o sistema sexual de Lineu, útil aos estudiosos, mas demasiado abstracto, em trança. Graças a estes esforços, a flora tradicional pôde ser modificada, enri-
demasiado parcial, Lamarck aconselha <<a ordem das famílias naturais de Jussieu>>, quecida com novas espécies. Assim, são introduzidas na Europa inúmeras plantas
que melhor explica as relações das plantas entre si, segundo as afinidades das carac- ornamentaisou exóticas:a Buganv!//ea,chegadado Taiti; da Américaprovêma
terísticas gerais. E é também a ordem já adoptada nos finais do século para os jar madressilvada Virgínia, em 1731,e em 1737 a JI/asno/íagrande/Fora,
importada
donsbotânicos, onde se cultivam as plantas cujas sementes,ou as próprias plantas, pelo governador do Canadá, La Galissonniêre. Mas são também introduzidas plan-
os viajantes conseguiram trazer consigo: o de Trianon, que Bernard de Jussieu rees- tas úteis: Michaux afirma ter enviado no decurso da sua estada,entre 1785 e 1796,
truturou em 1759, e o da Escola botânica do Gabinete do rei, cujo cultivo Antoine mais de sessentamil árvores e noventa caixas de sementes,cuja distribuição é orga-
.Laurent de Jussieu renovou sucessivamente de acordo com o mesmo princípio. Cada nizada em todo o país a partir dos jardins botânicos e dos viveiros de província.
planta encontra-sc ao lado daquela que se Ihe assemelhamais em termos taxionó- Mas, no fim, o balanço é exíguo se tivermos em conta, excluindo as estufas e os
micos. O jardim, imagem do quadro botânico reproduzido no terreno, oferece à vista jardins, apenas as plantas verdadeiramente integradas na flora local e naturalizadas
a ordem de uma natureza, certamente múltipla e infinitamente variada, mas raciona no seunovo Aabfla/. Lineu podecitar, é certo, o casodo Erf8eron ca/zadíerzsís,
enviado
lizada, sujeita a classificação, finalmente tornada legível. Apenas as etiquetas ou as da América do Norte em meados do século xvn, introduzido em alguns jardins botâ-
páginas que o botânico teve de deixar em branco na construção do quadro sistemá- nicos e que se tornou uma planta selvagem dos terrenos incultos; mas, em 1801, o
tico do seu herbário, os locais vagos que o jardineiro teve de predispor no seu ter catálogodo Jardim Botânico compilado por Louis Desfontainesregistaapenas120
rena, assinalam as lacunas: as das espécies vegetais que, virtuais ou quiçá existen- espécies vegetais de origem americana, mais ou menos aclimatadas em França. A uni-
tes em algumas partes do mundo, se desconhecem ainda. Somente os espaços vazios ficação botânica do mundo, no início do século xlx, permanece um sonho e sobre-
vêm lembrar que o inventário do planeta está incompleto. tudo uma interrogação.
Mas, nestaordem proposta para decifrar o livro da natureza, a origem geográfica Com efeito, fica por resolver o problema da repartição das espéciespela superfí-
das plantas é simplesmente uma citação na parte inferior de uma etiqueta. Ora, só cie do planetaou, melhor dizendo,a questãocomeçaapenasa colocar-seenquanto
muito raramentea proximidade geográficae a proximidade taxionómicase identifi- tal. Como explicar a distribuição espacial das espéciesbotânicas, a presençade plan-
cam: é possível que algumas plantas, muito parecidas segundo os critérios de clas- tas numa certa zona, a sua ausência noutros locais, e cm latitudes análogas? Já no seu
sificação de Lineu, de Jussieu ou de Lamarck, sc encontrem na natureza, nos antí- projecto, Lamarck sugereque se complete o herbário geral com herbários especiais,
podas. E muito difícil que o quadro da natureza e o mapa do mundo coincidam. classificados segundoa origem geográfica das plantas: <<Proponho, então, formar qua-
Osjardineiros fazem experiências,esforçando-sepor eliminar a diferença geo- tro herbários individuais, ou seja: 1) um herbário das plantas indígenasda Europa; 2)
gráfica com a aclimatação de plantas vindas de todas as latitudes. Em França, a par- um herbáriodas plantasda Ásia; 3) um herbário das plantasda Àfrica; 4) um herbá-
tir de 1719, o jardim das espécies de Nantes fica na dependência do Jardim Real de rio das plantas da América.>>Mas esta primeira classificação por continentes revela-
Paris, a fim de constituir <<umdepósitoe um viveiro [...] para os cuidadose o cu]- ainda muito imprecisa e, de resto, patenteia a insuficiência dos dados recolhidos.
tivo de plantas de paísesestrangeiros>>;também os de Rochefort e de La Rochelle Com efeito, apesarde terem por missão nomeare classificar cada planta recolhida
assumem o papel de de'pe/zda/icesno oceano, especificamente destinados à aclima- separadamente,os exploradores botânicos não tinham a obrigação de observar, ín /oco,
tação de plantasexóticas. Desta altura em diante, o Jardim do Rei serve de agente o /zabfraf,o clima, o terreno, nem de descrevero conjunto da flora local. Paracons-

246 247
truir o quadro geral dos géneros e das espécies, bastavam a simples recolha cumula- Tal conhecimento geográfico é, deste modo, na altura, fruto de uma exploração
tiva e a colecção. Todavia, já Humboldt, observando a influência da temperatura e da fugaz, circunscrita. Neste aspecto, também as expedições promovidas por um pro'
altitude sobre a vegetação, sentira a necessidade de inserir no seu ambiente natural os recto de construção estatal como o da Ária russa e da América do Norte, onde des-
diversos tipos de flora encontrados. A 27 Frimário do ano Xll, declara ao professor coberta e apropriação do território são sinónimos e ainda mal se distinguem, nas suas
do museu a que destina o herbário reunido na América juntamente com Bonpland: modalidades concretas, das expedições científicas sem ocupação do solo, a não ser
<<Estacolecção, para a]ém de ter sido descrita //z /oco [...], possui também a vanta- por vezes uma tomada de possesimbólica, deixaram como único vestígio uma reco-
gem de apresentar um único objecto em relação ao qual não foi possível indicar a alti- lha de plantas e de espécimes secos entre as páginas de um herbário. A rota dos
tude a que cresceacima do nível do mar.>>A Géographle des p/antes, que o natura- navios e o itinerário dos viajantes teceram sobre a superfície dos oceanose da terra
lista manda publicar em 1807, revela um método geográfico de repartição da vegetação. firme uma teia ténue e descontínua. Se agora a configuração do planeta está quase
Surge, deste modo, o problema das relações entre a geografia e a botânica. completa no contorno das suascaracterísticas,o espaço da Terra, a sua espessura,a
Mas delineia um novo programa de exploração que, para passar da colecção ao sua profundidade e a sua história estão por descobrir e, com elas, as raízes regionais
mapa geográfico, obriga a voltar ao local, a fim dc estudar e compreender a relação, dos diversos tipos de fauna, flora e sociedade. Os exploradores do Século das Luzes
em cada parte do mundo, entre o terreno e o clima, a fauna e a flora, os próprios deixam como legado este programa que se insere na confluência do traçado dos seus
homens: <<Asexpedições marítimas, as viagens à volta do mundo fizeram precisa- mapas geográficos, da organização das suas colecções e da narrativa das suas via-
mente brilhar o nome dos naturalistas e dos astrónomos a quem o governo chamara gens àqueles que, seguindo as suas pegadas, no século xx irão voltar aos locais cujo
para partilhar os perigos; mas [. . .] não é percorrendo as costas que se consegue reco- caminho eles desbravaram."
nhecer a direcção das cadeias montanhosase a sua constituição geológica, o clima
de cada zona e a sua influência sobre as formas e os hábitos dos seres organizados
[...]. O grande prob]ema da física do mundo é determinar [...] os vínculos eternos
que ligam os fenómenos da vida e os da natureza inanimada.)>:z
E sobre este retorno ao âmbito da geografia que gostaríamosde terminar. Poderá
talvez afigurar-se paradoxal, se pensarmos no balanço das descobertasque glorifi-
cam as explorações marítimas e terrestres do Século das Luzes. Após as navegações
de Cook, Lapérousee Vancouver, ficamos a saber que não existe um continente nas
latitudes temperadasdo hemisfério austral, nem uma passagema Norte aberta às
embarcações entre o Atlântico e o Pacífico. As primeiras expedições aos novos ter-
ritórios da América e da Sibéria, as primeiras incursõesem África, revelaramaos
olhos dos Europeuso interior dos continentes.Nos Alpes, nos Urales, nos Andes,
também as montanhas foram exploradas e, através do estudo dos relevos, vemo-nos
confrontados com a história do planeta. Mas a bacia da Amazónia, os territórios a
Oestedo Missuri, os planaltosda Ária Central e sobretudoo interior da África
mantêm-se ainda inviolados no início do século xlx.

!z B..-'t. Hamy, Les derniers jours du iardin du Roi et !a fottdation dli Muséum d'histoire ttaturette,
Imprimerie nationale, Paris, 1893; J.-M. Drouin, <<DeLinné a Darwin: les voyageurs naturalistes»,in
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A. von Humbo]dt, Es.!af szfr ]a géograp/zie des p]a/zre.ç(]807), Editions Erasme, 1990, e l,' Á/ zériq e
espczg/zo/e
en /800 cit., p. 282. zl Os meusagradecimentosa Daniel Nordman pela leitura atentado texto

248 249
CAPÍTULO Vlll

OFUNCIONÁRIO
por Carta Capta
OÜ est dono la cito? Elle est presqueusurpée
par les fonctionnaires.
SAINr-JUsr

Os membros do governo e os funcionários


do Estado constituem a parte principal da classe
média, na qual se encontra a inteligência
educada e a consciência jurídica da massa de
um povo
Hegel

Graças aos lexicógrafos, os termos <<funcionário>> (/oncfío/znaíre) e <<buro-


cracia>>(btfreaucraíie, de bureau, repartição) surgiram pela primeira vez em França
nos finais do século xvlu, atribuídos o primeiro a Turgot e o segundoa Vincent
de Gournay (exactamente aquele a quem se deve a fórmula <<laisserpaire, laisser
passer>>).Os vocábulos usados na Europa do ancíerz régíme faziam referência ao \
<<cargo>>
entendido como o exercício dos poderesconferidos pelo soberano (<<ofi-
ciais», o/iria/es, oWlcíers,oWlcers,Bea/nre)ou então ao <<serviço>> prestadoao
próprio (kí/zg's servallfs, kóníg/ic/ie Bedíenre,dvoriane). O facto de os neologis-
mos atrás citados começarema circular após 1780 poderia levar a pensar que só
nessa altura, ou um pouco antes, os fenómenos a que se referiam se tivessem apre'
sentadocom evidência suficiente, pressionandoo instar de uma <<revolução buro-
crática>>(cfr. J. F. Bosher, 1970, pp. 123 e segs.) ou de uma «revolução admi-
nistrativa>>
(cfr. J. Torrente, 1978,p. 56), paralelae associadaa muitasoutras
(demográfica, agrícola, industrial, política) que os estudiososestão habituados a
situar por alturas daquele período. <<Ocrescimento rápido da administração esta-l
tal e a sua transformação numa burocracia manifestamente moderna vejamos,
por exemplo, uma síntese recente -- estiveram estreitamente ligados à explo.são
demográfica, à consequenteurbanização e ao desenvolvimento económico e social)>
(P. M. Pilbeam, 1990, p.107). Para a França, a tese tocquevilliana de uma continui-
dade de fundo, no campo administrativo, entre a monarquia absoluta e os governos
pós-revolucionários, foi contestada por diversos estudiosos recentes, que estabe
leceram o nascimento da burocracia moderna no período do Directório (C. H
Church) ou nos anosdo Consuladoe do Império napoleónico(P. Légendre,
J. Tulard).
253
No fundo, uma tal interpretação não discorda da celebérrima tese de Max Weber, a patrimonialidade dos cargos, a predominância das fidelidades pessoaisem relação i
segundo a qual o advento da burocracia moderna (<'a administração monocrático- à concepção impessoal do serviço, a existência de sinecuras, o uso privado dos fun-
burocrática>>) não passa de outra face do processo de racionalização associado ao dos públicos, etc.
capitalismo: <<Comoo capitalismo no seu estado actual requer a burocracia -- se bem Como é lógico, ressalta destasconsiderações a oportunidade de renunciar a dis-
que ambos provenham de raízes históricas diferentes também ele é a base econó tinções demasiado nítidas e critérios de classificação demasiado rígidos com base
mica mais racional, na medida em que coloca à sua disposição,por via fiscal, os na composição e na realidade variegada do século xvili. Todavia, são necessárias
meios financeiros necessáriop> (M. Weber, 1974, p. 2]9). Com efeito, a afirmação algumas delimitações se queremos evitar um excesso de generalidade. Antes de
weberiana (<ae bem que ambos provenham de raízes históricas diferentes>>)abre o mais, dado que o termo funcionário se aplica hoje indiferentemente a indivíduos
caminho a uma cronologia diversa do fenómeno burocrático, uma cronologia que, activos na administraçãopública ou em empresasprivadas,impõe-sejustificar a
acima de tudo, não se deveria limitar ao contexto europeu: na China, os exames do exclusão da segunda subespécie do horizonte deste ensaio: uma exclusão sugerida
concurso para o recrutamento dos funcionários, que entre nós têm apenas dois séculos quer pela inconsistência, anterior ao século XIX, de uma camada de empregadosna
de vida, foram introduzidos há cerca de 1400 anos. Por outro lado, se observarmos dependência de particulares (o que não significa que todos os empregados fossem
os sistemas administrativos vigentes na Europa de finais do século xvlll, será difícil estatais: pensemos nas administrações cívicas e locais, nas dos hospitais e institui-
encontrar mais do que uma presençaparcial ou embrionária das características que ções de caridade, etc.), quer pela dignidade específica que distinguia, então mais\
constituem o retrato ideal-típico weberiano das componentes do <<aparelhoadminis- do que hoje em dia, as funções ligadas ao serviço régio ou mesmo de carácter \
trativo burocrático>>moderno. público, e que se manifesta na definição do cargo atribuída no princípio do século XVll
O assunto em que se baseia o presente texto é que não é a transição para o capi- a C. Loysseau,<(dignitéordinaire avec fonction publiquo>. Uma excepçãoimpor'
talismo, mas o reforço das exigências militares e fiscais dos Estados, a tendência para tanto é. no entanto, a constituída por organizações complexas que, apesarde assen-
um controlo cada vez maior do território e para uma disciplina social mais estreita, tes na remuneraçãodos capitais privados nelas investidos, beneficiavam, por razões
a evolução dos critérios de legitimação do poder constituem o quadro adequado a diversas, da protecção e do apoio do Estado: as Companhias comerciais privile-
uma consideração histórica da burocracia e do funcionalismo, pelo menos no espaço giadas, o Banco de Inglaterra (fundado em 1694), as sociedadesempreiteiras de
europeu a que, por razões de oportunidade e competência, nos teremos de limitar. cobrança de impostos. Não é em vão que a locução civil sen'anf, que designa hoje
Não estamos, por conseguinte, perante um processorápido e linear, mas lento e aci- no mundo anglo-saxónicoo funcionário público, se aplicava no início aos empre-
dentado, que conhece alterações e roturas, mas de igual modo fases de estagnação e gados da Companhiainglesa das Índias orientais. Quanto à Firma geral francesa,
de sedimentação,e que não comporta paralelismos necessáriosentre as experiências que contava por alturas de 1774 quase 30 000 empregados fixos para.além de
l dos diversos países. Deste modo, se por um lado se encontram já presentes alguns j000-ó000 bzlra/lsfes(supranumerários) e que produzia cerca de um terço das recei-
aspectos do sentimento e da atitude burocráticos, suponhamos, nos <<oficiais>>
que tas recebidas pela monarquia, cabe registar a introdução no seu seio, anteriormente
servem os príncipes ou as cidades-Estado italianas do Renascimento, desenvolvem- e de uma-forma mais completa do que nos outros lados, de inovações como a for-
se outros no âmbito das grandes monarquias absolutas, na altura em que <<aadmi- malização das carreiras, os louvores para os empregadose um esquemauniforme
nistração régia se transformou em algo semelhante a uma estrutura administrativa de pensões com base em pagamentos regulares dos interessados e da Companhia.
centralizada, assente em cargos, regulamentos e procedimentos estáveis e geralmente Vida Azimi. autora do estudo mais recente e documentado sobre o assunto, obser-
respeitados>>(E. Kamenka, 1989, p. 93); outros ainda terão de esperar pela Revolução vava com razão que «não nos devemos deter diante do carácter privado desta ins-
\ Francesa. O Século das Luzes representa, sem dúvida, em cada caso, uma etapa sig- tituição. O contrato é a antiga forma de concessão?a qual e uma forma específica
nificativa neste caminho longo e tortuoso: não tanto pelo crescimento dos aparelhos de organização de um serviço público>>(V. Azimi, 1987, p. 3); e poder-se-iam fazer
estatais que, no entanto, foi notável em diversos casos, mas pelo nascimento de uma consideraçõesanálogaspara a Firma geral lombarda (1751-1770) ou para a Régíe
ideologia do bem público que levou inclusivamente alguns <<déspotas
iluminadop> a instituída por Frederico ll da Prússia em 1766, exemplos típicos, uma e outra, de
proclamarem-se os <<primeirosservidores do Estado», e a cujas origens seria aqui <<estruturasburocráticas paralelas>>(H. C. Johnson, 1975, p. 201), destinadas a con-
demasiado longo remontar, do pietismo ao catolicismo iluminado de cariz murato- fluir, sem alterações substanciais, na administração estatal e a servir também de
riano, do jusnaturalismo ao camarismo austro-alemão,do contranaturalismo de tipo modelo a outras repartições.
lockiano à bie/táaíxa/zcepreconizada,muito embora num quadro absolutista, pelo Nem tão-pouco se afigura possível eliminar da categoria do emprego público,
abade de Saint-Pierre ou pelo marquês d'Argenson. Todavia, o aparecimento de mais entendida em geral, o pessoal das cortes, se bem que no interior dos próprios exér-
figuras modernas de servidores públicos, como os inspectores e os engenheiros do citos de dignitários nobres, camaristas, mordomos, escudeiros, esmoleres, encarre-
Corpo das Pontese Estudas, que alguns historiadoresfrancesesvêem como a pri gados de caça, guardas a pé e a cavalo, porteiros, despenseiros, copeiros, cozinheiros,
moira encarnaçãodo funcionário (R. Monsnier, 1974-1980, vol. 11,pp. 79-80, 545 e camareiros, músicos, cantores, pintores, etc., que povoavam os palácios de Versalhes
segs.,seguido de M. Antoine, ] 989, p. 329), podia coabitar tranquilamente com estro ou de Hofburgo, ou os muitos erigidos à sua semelhança,poucosfossemos indiví-
furas clássicas do ancíen régíme como, para não sairmos de França, a venalidade e duos que se adaptassem às conotações weberianas supramencionadas. Mas o papel

254 255
crucial da corte na preparaçãoda nobreza, na projecção no exterior de uma imagem direito eram. sem dúvida, considerados os sacerdotes e os abades, inseridos de diver-
de grandeza e poder e na elaboraçãode modelos de gosto e de comportamento não sasformas nas administraçõesestatais, ainda que em menor número em relação aos
deve fazer com que se esqueça que séculos anteriores; um caso especial é o do Estado Pontifício, sobre cuja burocracia,
constituída aos níveis superioresquaseque exclusivamente por prelados, RenataAgo
o exercício da soberaniase manteve estruturado no sentido patrimonial até ao fim da escreveu páginas interessantes.
monarquia absoluta. Também os defensores da administração pública eram concebi- Pelo contrário, não é possível separar a esfera judicial da esfera administrativa,
dos naturalmente como <<servidores>> dos seus senhores, que se deveriam orientar no ainda que o próprio século xviii tenha apadrinhado a teoria da divisão dos poderes
sentido do interesse do príncipe e não no do <<Estado».Assim o demonstram os fre- e visse as suas primeiras aplicações práticas (por exemplo, na monarquia austríaca,
quenteslaços pessoaisentre os cargos da corte e os cargos administrativos bem como e nas suas ramificações italianas). Na verdade, a ideia da jurisdição como exercício
a falta de qualquer separaçãofinanceira entre as duas esferas(J. von Kruedener, 1973, de uma autoridade (delegada ou menor) não só se encontrava profundamente arrei-
PP 3 4) gada na Europa do ande/z régíme, não obstante Montesquieu, como visava quer diri-
mir as polémicase punir as transgressões,quer prevenir o seu aparecimentocom
Seria preciso elaborar outro discurso para aquelas figuras notáveis que Max Webcr todas aquelas medidas que eram reintroduzidas no conceito de <<polícia>>;também a
reintroduz na tipologia do poder patriarcal. O próprio Weber dá o exemplo dos juí- formação jurídica continuou durante todo o século xviii a representar o terreno de
zes de paz ingleses, chamadosa desempenham <<umconjunto de atribuições de polí- cultivo privilegiado para os aspirantes a funcionários, independentemente do poste-
cia e de direito penal cada vez mais diferenciadas no decurso do tempo, formalmente rior destino efectivo. Quanto aos professores universitários e mestres-escola(estes
revogáveis mas de facto vitalícias>>(M. Weber, 1974, vol. 11,p. 363), escolhidos com últimos uma figura em vias de adquirir conotações<<estatais>>
com a introdução do
baseno recenseamentoe no prestígio local e colocadosao serviço semqualquer retri- ensino básico obrigatório na Prússia e na monarquia austríaca), observa-se que, durante
buição. Individualmente ou reunidos em pequenos grupos nas Ferry sessíopzs,ou o século xvlll, surgeem muitos paísesa ideia de que a educaçãodos cidadãose a
mesmo nas assembleias trimestrais do condado (quarrer sessão/zs),estas personagens formação dos quadros para a administração pública voltam a constar das principais
não só julgavam os pequenos delitos como sanavam as disputas e arbitravam os dize tarefasdos governantes,diminuindo consequentemente
(para voltar depois a crescer
rendos locais, fixavam os salários, fiscalizavam os pesos e as medidas, a viabilidade, na época do liberalismo) a margem de autonomia deixada ao corpo docente. Como
o auxílio aos pobres, concediam e revogavam as licenças para a abertura de taber- observa McClelland, <.oprofessor era cada vez mais um funcionário público (mesmo
nas; reuniam-se no juiz de paz, segundo a autora do estudo mais recente e profundo que suí ge/leres) e cada vez menos membro de uma corporação>>(Ch. E. McClelland,
sobreo assunto, <<queruma figura paterna que simboliza a comunidade local e satis 1980, P. 92).
faz as suasnecessidadesimediatas, quer o mais remoto parei$a/ zi/ias vitoriano cujo Convém, por último, referir aqui a grande questãoda venalidade, ou melhor, da
governo está em conformidade com as leis justas mas impessoais da natureza>>.A pre- patrimonialidade dos cargos. E com frequência citado o óo/z /vzofdo conde de
dominância gradual do segundo aspecto sobre o primeiro no decurso do século XVlll, Pontchartrain. controlador das Finanças durante o reinado de Luís XIV: <<Decada
com a respectiva ênfase na imparcialidade e no carácter desinteressadodo juiz de vez que apetecea Vossa Majestade criar um cargo, Deus cria logo um imbecil que
paz, deveriam constituir um modelo para o cíví/ sewan/ do futuro (N. Landau, 1984, o compra.>>Deste modo, a criatividade do monarca bem como do seu direito supe-
pp. 5-16, 359-62). Podemos, pois, negar-lhe a qualificação de funcionário, em aten- rior foi-se esgotando,como se sabe, durante o século xvlll, mas nas vésperasda
ção ao carácter voluntário e diletante dos seus honorários (poucos juízes dc paz pos Revolução existiam ainda 50 000 cargos patrimoniais, dos quais mais de 4000, segundo
suíam preparação legal), mas não devemos esquecer que este tipo de autoridade <<patri- o cálculo de Necker, atribuídosà nobreza(cfr. C. B. A. Behrens,]985, pp. 50-51).
cial>>era, no século xvnl, e não só em Inglaterra, um instrumento bastante importante Tratava-se em parte de uma verdadeira sinecura, como no caso do cargo de secré-
de controlo social ao nível periférico, lado a lado com o poder <(patrimonial>>
dos falre da roí. a clássicasavonefíeà ví/a/pzs,por isso mesmomuito procuradae carís-
senhoresfeudais ainda bem presentena maior parte do continente. sima. Mas. na maioria dos casos,correspondiam ao título funções efectivas que exi-
Menos problemáticas parecem as outras exclusões, em primeiro lugar as dos mili- giam determinadasqualificações, como a licenciatura em jurisprudência para os
tares e dos eclesiásticos, categorias votadas de diferente modo ao serviço público, magistrados ou a experiência militar para os oficiais da Maréchaussée (uma espécie
mas caracterizadas demasiado energicamente por formas de recrutamento, atitudes de polícia montada).Se, por princípio, o carácterpatrimonial e hereditário dos car-
mentais e estilos de vida para poderem ser agregadasa outras. Bastante ténue era, gos surge nos antípodasde uma visão moderna da burocracia, assenteno profissio-
contudo, a delimitação entre as funções militares e as civis, e frequente a passagem nalismo e no mérito, por outro lado, é verdade que essecarácter conferia aos titula-
de umas para outras em países como a Rússia e a Prússia. E negligenciada a ten- res uma independênciaque, de outro modo, seria rigidamente hierarquizada como a
dência para a transformação dos ministros do culto em funcionários públicos, notó do ande/z réglme francês. Assim, por exemplo, Luís XIV restitui aos Gralzdx it4aífrex
ria nos territórios luteranos onde lhes era confiado um verdadeiro ministério gover- des c'auxef deslorêfs o estatuto de ol$:cíersque haviam perdido, para melhor con-
nativo, chamado Consistorium, mas presente nos finais do século xvnl também no seguirem resistir às pressõesdirectas de um benefício indiscriminado dos recursos
âmbito católico, na figura do <<bompastor»josefista. Como funcionários de pleno florestais (J.-C. Waquet, 1978, pp. 323-324). Nem a formação de autênticas dinastias

256 257
de magistrados e administradores constituía, necessariamente,um impedimento à numeroso exército terrestre (quase 150 000 homens de armas no último ano da guerra
aquisição de uma mentalidade <<protoburocrática>> (o termo pertence a R. E. Giesey, de sucessãoespanhola)explicam a decuplicação do efectivo estatal que Aylmer, no
1983, p. 207), em que as ambições pessoais e familiares se misturam com uma orgu- seu excelente estudo sobre o interregno cromwelliano, calculara em cerca de 1200
[hosa consciência profissiona] e com uma sincera dedicação ao serviço do monarca. homens (G. E. Aylmer, 1973, p. 169). Não causará por isso surpresa que, pelo menos,
Pensemos, por exemplo, naquelas personagens poderosas que eram, no século XVlll, três quartos deste pessoal estivessem adstritos à cobrança e à administração das recei-
os seis intendentes das finanças e os quatro intendentes do comércio: todos detento- tas: o departamentoda gabelaabrangiapor si só mais de 6000 servidoresnos finais
do século, e outros 6000 trabalhavam nos serviços alfandegários.
res de cargos patrimoniais que eram, com frequência, transmitidos de pais para filhos,
todos nobres, todos provenientes dos estudos jurídicos e daquele viveiro de admi- Em relação à trança, poucos foram os estudiosos que arriscaram estimativas glo-
nistradores que era o corpo dos maífres des reqlrêfes (de onde saíam, na sua maio- bais. O número de mais de 300 000 empregados e o#7cíers proposto há muito tempo
ria, também os intendentesprovinciais), tinham então acessoao Conselho do rei, por Finer (cfr. W. Fischer-P.Lundgreen, 1975,p. 462) pareceexcessivamenteexa-
gerado. Por outro lado, ainda em meadosdo século Xlx, os efectivos da administra-
exerciam a jurisdição em matéria de contencioso, efectuavam reuniões colegiais, com
ou semo seucontroladorgeral, em que viam mais um colegaou um rival do que ção pública variavam entre 135 000 e 250 000 homenssegundoos critérios adopta-
um superior. No que se lhes refere, <<osempregados comuns encontravam-se em posi- dos (V. Wright, 1985, p. 2211). Aos mais de 50 000 oWzciersvêm juntar-se ainda
muitos dos cerca de 35000 empregadose agentesdo fisco a tempo inteiro, de que
ção de inferioridade, quais empregadosdomésticos, e eram considerados apêndices
dos seus patrões, os magistrados, uma vez que estes empregados, quaisquer que fos- fala Necker (J. Necker, 1784, vol. 1, pp. 194 e segs.).Se tivermos igualmenteem
conta os ministros secretários de estado e os seus gabinetes (670 pessoas em 1788,
sem as suas responsabilidades, não podiam ter nem dignidade nem autoridade aos
olhos das ordens privilegiadas>>(J. F. Bosher, 1970, p. 57). No entanto, cm nítida segundoC. H. Church, 1981, p. 326), as 32 intendênciasprovinciais, com as suas
contradição com os finais do arzcíen régí/zze, estes representantes de uma concepção secretarias e subdelegações, os adidos ao serviço da corte, os 4000 componentes da
Maréchausséec os mais de 2000 agentesda lugar-tenência geral de Paris, não esta
aristocrática e patrimonial do cargo, eram simultaneamente tecnocratas, detentores
de uma visão modernae dinâmica da administração.Pensemosno contributo dos remos muito longe da verdade se considerarmos que, na França pré-revolucionária,
Trudaine, pai e filho, para o desenvolvimento da engenharia civil e da construção de a globalidade dos funcionários públicos (mas excluindo as administrações cívicas e
estudas (de que falaremos mais adiante), ou das três gerações de Lefêvre d'Ormesson senhoriais) andaria à volta das 100 000 unidades', para uma proporção de cerca de
que foram responsáveis,com notável empenho reformador, pelo Départementdes 1:270 no conjunto da população.
Não muito inferior (cerca de 1:350) teria sido em finais do século a <<densidade>>
impositions (F. Mosser, 1978). Na prática, a distinção tradicional entre oWzc/erse
co//z/zzlssaires
revela-se bastante difusa, não podendo servir de critél-io de discrimi- administrativa da Espanha, constando dos recenseamentos de 1787 e 1797, que enu-
nação, em França, entre administração <<patrimonial>>e burocracia moderna. Seja meram respectivamente 36485 e 27 243 emp/dados de/ rey para uma população de
cerca de 11 milhões (A. Dominguez Ortiz, 1981, p. 394). Também aqui, aliás, são
como for, o problema tem muito maior relevo para os outros países europeus, onde
bastante incertos e difusos os limites das funções públicas, já que <'nema carreira
a venalidade das funções, se não foi formalmente abolida (como sucede no Estado
Pontifício em 1694 ou na Lombardia austríaca em 1749), foi desaparecendo aos pou- administrativa nem a organização do trabalho sofrem mudançasespectacularesno
decurso do século xviiJ>>(P. Fernández Albadalejo, 1985, p. 2321), à parte a exten
cos ou quanto muito continuou a abranger (por exemplo, em Espanhae no Reino de
Nápoles) as funções subalternas e os cargos municipais. são aos reinos aragonesesdos ordenamentoscastelhanose a extinção dos antigos
conselhos régios em benefício de secretários de Estado equiparáveis aos modernos
2. Feitos os esclarecimentos necessários, perguntamo-nos, antes de mais, se é pos- ministros. A venalidade das funções manteve-sedurante os Bourbons, apesarde não
sível uma avaliação numérica do emprego público na Europa das Luzes. Para a se reger por uma lei, como em França, e estar limitada aos cargos semjurisdição; ou
Inglaterra, é por norma aceite o número de 16000 servidores públicos, avançadopor melhor, a sua i-ecuperaçãopor parte da coroa destinava-se, na sua maioria, à revenda
Joseph Massie na décadade 1760 (J. Brewer, 1989, p. 65). A proporção em relação a um preço acrescido(F. Tomas y Valiente, 1982, pp. 151-177).
No Reino da Prússia,o desenvolvimento numérico da burocracia, contrariamente
à população global seria, portanto, naquela época, de cerca de 1:500. Quatro anos
antes, no início da era Walpole, o seu número seria de cerca de 12 000 indivíduos, a uma impressão difundida, manteve-se razoavelmente refreado: no final do reinado
excluindo a CasaReal (G. Holmes, 1982,p. 255). Mas o verdadeirozoom do emprego de Frederico Guilherme 1 (1740) não ultrapassava,ao que parece, os dois mil indi-
público registou-seentre o fim da dinastia Stuart e a paz de Utrecht (1713), altura víduos, e também após a anexaçãoda Silésia, em 1750, o aumento foi superior a um
em que a Inglaterra teve de se preparar, militar e financeiramente, para o longo con- mi[har (H. C. Johnson, 1975, pp. ]6-17, mas parecem excluídas do cálculo as fun-
fronto com a França do Rei-Sol: a passagemdo sistemade concessõespara a gestão ções judiciais). Supõe-se que parte das tarefas atribuídas noutros sítios à adminis-
directa das alfândegas, o pilar tradicional das finanças britânicas, a organização com- tração civil sejam aqui efectuadas pelos militares, dado que a Prússia, segundo a céle-
plexa necessária à cobrança da gabela, o novo imposto sobre as bebidas alcoólicas
(depois alargado ao sal e a outros géneros de consumo generalizado), as exigências ' O próprio C. H. Church (1981, p. 72) parece sugerir um tal número quarldo avalia em 5{) 000 inda
víduos <<aglobalidade da administração não venal em 1788>>
de carácteradministrativoassociadas
ao aumentoda frota e à mobilizaçãode um
259
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bre frase atribuída a Mirabeau, não era um Estado que dispunha de um exército, mas moda a sua presença. Em Berlim, os servidores estatais eram, em 1786, 3500, para
um exército que dispunha de um Estado. A segunda parte do reinado de Frederico ll uma população de cerca de 150 000 habitantes; 6372 apresentava Madrid no fim do
e o reinado de Frederico Guilherme 11,com a instituição da Réígle,as novas con- século, que não reunia 200 000 almas; 4500 Viena, que as excedia um pouco. Não
quistas territoriais, a reforma judicial e o impulso dado à instrução conheceram,sem causará surpresa que o fenómeno atraísse a atenção dos observadores contemporâ-
dúvida, um forte incremento, cujas dimensões não é fácil precisar, dado que os estu- neos: deste modo, Johann Pezzl descrevia em 1789 o <<exército>> dos funcionários
dos se baseiam quase sempre nos funcionários de categoria mais elevada. Uma esti- vianensesque, de manhãcedo, se dirigiam para o trabalho (cit. por W. Heidl, 1991,
mativa efectuadapor Fischere Lundgreenfixava em 23000 o número de emprega- p. 227), e SébastienMercier, com manifestoexagero,falava mesmode um terço da
dos régios por alturas de 1800, quando a população ultrapassavaos onze milhões e populaçãoparisienseocupadaa <<lançar tinta sob a bandeirado fisco> (S. Mercier,
meio: a proporção seria, portanto, de 1:500 (W. Fischer-Lundgreen, 1975, p. 462). 1782-1783, vol. Vll, PP. 176-177).
Para a monarquia austríaca dispomos agora da investigação rigorosa de Dickson, que
estima em cerca de 10 000 o número de empregadosrégios em 1762, abrangendo a 3. A amplitude do quadro de referência e o desenvolvimento desigual dos estu-
Hungria, mas excluindo a Bélgica e a Lombardia austríaca(P. G. M. Dickson, 1987, dos obstam a um tratamento sistemático dos aspectos determinantes do nosso tema,
vol. 1, p. 309); uma vez que a populaçãodo corpo central da monarquiarondaria como a condição social dos funcionários, o recrutamento e a formação profissional,
então os 14 milhões, a proporção teria sido ainda mais baixa do que na Prússia. No a estratificação hierárquica, os salários, as promoções e as carreiras, os horários e os
entanto, se juntarmos aos empregadosrégios os das administrações superiores dos regulamentos de trabalho. Teremos inevitavelmente de nos limitar a escassoscená-
territórios (l,ãnder), chega-setambém aqui a um coeficiente de cerca de 1:1000. Nas rios gerais e a alguns exemplos ilustrativos.
décadas subsequentes assistiu-sc também a uma rápida expansão dos quadros de pes- A tendência dos príncipes da primeira época moderna para se rodearem de cola- l
soal, destinados a abranger as 130000 unidades em 1841 para o conjunto dos terri- moradoresde origem burguesa encontra explicação na cultura humanístico-jurídica
tórios da monarquia (W. Heindl, 1991, p. 140). de que estes estratos sociais eram depositários quase que exclusivos e na descon-
Uma proporção entre funcionários régios e população bastante elevada e próxima fiança em relação à nobreza de espadaque não abandonara ainda as suas ambições
da francesa é a que vamos encontrar nos Estados italianos. No Piemonte da dinastia políticas. Mas entre os séculos xvll e xvlll estes motivos acabaram por desaparecer:
dos Sabóias, após as reformas de Vítor Amadeu ll, <a magistratura empregava, iso na luta frontal contra o Estado, as aristocracias europeias haviam substituído o objec
ladamente,quaseduas mil pessoase outras tantas eram oficiais do sector adminis- tido do emprego do Estado, e tinham optado pela aquisição da preparação necessá-
trativo-financeiro>>,a que vinham juntar-se .<<algumas
centenasde funcionários polí- ria nas universidades, nos colégios jesuítas ou nas pzzb/íc st/zoo/s, efectuando inclu-
ticos, das instituições culturais e da corte>>(D. Balani, 1981, p. 597), para uma sivamente viagens longas e dispendiosas ao estrangeiro (gra/zd fo r e X.ava/íersrour). l
população que rondava o milhão e meio de indivíduos; cerca dc 3500 eram os <assa- Esta evolução ao nível dos estratos nobres seguira diversas vias, do monopólio puro l
lariados>>do Grão-Ducado da Toscana no início do domínio de Pedro Leopoldo, num e simples dos cargospúblicos mais elevados(em Espanha)à constituição de uma
escasso milhão de habitantesz. forte nobreza de toga (em França), à derrota do esquemaabsolutista da coroa e ao
Vamos concluir esta resenha breve e parcial com alguns dados relativos à Rússia, afastamento dos equilíbrios políticos a favor da representação das classes (em Inglaterra
onde o desenvolvimento da burocracia czarista superou o rápido aumento da popu- e. entre 1720 e 1722, na Suécia); mas daí resultou um pouco por todo o lado que,
lação: 10 500 burocratas em 1755, 16 500 em 1765, 38 000 em 1800, ao passo que durante o século Xvlll, os níveis superiores da administração pública estivessemem
a proporção para o total da população é reduzida a metade em comparação com o grande medida mas mãos de uma nobreza de origem mais ou menos antiga. Na
século anterior, de 1:2000 para 1:1000 (W. M. Pintner, 1980, p. 292). Espanhados Bourbons, os grandesviram-se excluídos dos cargos mais influentes,
Conquanto os números que apresentámos tenham mais o valor de ordens de gran- em benefício da pequena e média nobreza, em vez da burguesia como o dão a enten-
deza do que de dados concretos, é possível afirmar, com fundamento, que no final der estudiosos autorizados,como Domínguez Ortiz e P. Molas Ribalta, que falam do
do Século das Luzes a burocracia estatal representavaem toda a Europa uma frac- nascimento de uma <<nobrezaadministrativm> (P. Molas Ribalta, 1980, p. 93). Os mem-
ção variável entre um tricentésimo e um milésimo da população: uma proporção que bros do Conselho de Castelã,analisados em profundidade por Janine Fayard, perten
assumetodo o seu significado quando se pensaque, hoje em dia, nos maiores paí- fiam na sua grande maioria a famílias de /tida/gos se/arlegos ou /zororios, detentores
seseuropeus o coeficiente oscila entre 1: 15/20. Todavia, os contemporâneos estavam de modestaspropriedades fundiárias no Norte da Península Ibérica, e um terço eram
naturalmente a fazer a comparação com épocas passadasquando lamentavam a exces filhos de regadoresou veínffclla/ros (os titulares de assentoshereditários nos conse-
diva invasão do Estado na sua vida. De considerar também que o grau de concen- lhos municipais); apenas8qu eram titulados (J. Fayard, 1979, p. 343). Sob a nova
tração dos funcionários nas capitais e nos centros provinciais era então maior do que dinastia dos Bourbons. verificou-se uma certa descida na posição social, no entanto,
se viria a verificar posteriormente,tornando, por assim dizer, mais visível e incó- sempre no seio da ordem aristocrática mas diminuiu sobretudo o predomínio dos
juristas provenientesdos Co/egíosJWayores
de Salamanca,Valladolid e Alcalá (no
O dado para 1766 é retirado de R. B. Litchfield, 1986, p. 124, onde, porém, inexplicavelmente, era Conselho de Castelã, a sua presença desce, entre o século xvll e o XVlll de 77qn para
calculada a proporção de 1:470. 47% do total). A desforra dos /}zan/eísras, os licenciados estranhos àquele forte con

260 261
T'
ventículo, implicou a subida aos graus superioresda administraçãoespanholados níveis na administração civil, paralelos aos postos do exército e da marinha, e con-
magistrados e burocratas <(fiéis à monarquia absoluta e de espírito aberto às novas feria automaticamente a nobreza a quem alcançasse o oitavo nível. Se a grande maio-
ideias>>,aos quais será atribuída, durante o reinado de Carlos 111,a designação depre- ria daqueles que se encontravam nesta situação era já de família nobre, não foram
ciativa de go/l//as (J. Lynch, 1989, pp. 253 e seis., 293 e segs.). poucosos plebeusou os estrangeirosque se integrarampor esta via na elite russa.
Em França, o problema da composição social da burocracia régia insere-se, sem Em meados do século xvlll, era a seguinte a constituição social da burguesia, de
dúvida, no debate sobre as origens sociais da Revolução e a existência, pelo menos, acordo com os estudos de S. M. Troitski(cfr. B. Meehan Waters, 1980, pp. 80-82):
de uma <<reacçãoaristocrática>>.As investigações efectuadas sobre corpos mais pres-
tigiados demonstraram, sem qualquer possibilidade de dúvida, o predomínio abso-
luto dos titulados entre as suas fileiras: <<noreinado de Luís XVI todos os ministros, Total de casos recenseados Origem nobre Não nobi es

todos os conselheiros de Estado, todos os intendentes (à excepção de dois), todos os


l (categorias1-5) 145 127 (88q ) [ 8 (12%)
bispos e todos os abadeseram nobres de origem antiga ou antiquíssima... as portas 562 432 (77%) [ 30 (23%)
fechavam-se umas atrás das outras aos talentos brasonados ou enobrecidos de fresco>>, [l (categorias 6-8)
lll (categorias9-14) 1344 463 (34%) 881(66%)
observou Pierre Goubert (1984, p. 595). Outros negaram semelhanterestrição dos 3328 [38 (4%) 3190(96%)
[V (sem categoria)
acessose colocaram antes a tónica na continuidade do predomínio nobre a partir da
Totais 5379 [ 160(22%) 4219(78%)
época de Luís XIV ou mesmo na relativa abertura aos homens novos que viria a veri-
ficar-se nas últimas décadasdo a/zcíe/lregime (por exemplo, W. Doyle, 1976, pp. 13
e sega.). Sem entrarmos no debate, iremos ver que uma proporção autêntica de
homens novos em tais órgãos administrativos e judiciais no princípio e no final do Como vemos, nesta altura, a grande maioria dos funcionários não estava ainda
século xvlll não significa propriamente a manutenção de iguais possibilidades de enquadrada nas categorias, mas a proporção destes últimos não cessou depois de cres-
ingresso para uma multidão de aspirantes em constante crescimento (cfr. C. Lucas, cer até alcançaros 72% passadoum século (W. M. Pintner, 1980, p. 192). A pro-
1976, pp. 107 c segs.). Além disso, o problema da mobilidade social não se coloca funda influência da tabela de categorias sobre a mentalidade da aristocracia russa é
tanto nos topos como nos níveis intermédios da administraçãoe da magistratura. demonstradapelo próprio facto de o termo antigo dvoríane (<<servidores>>)
ser gra-
O caso de Besançon, estudado por Gresset, demonstra que, com a formação de autên- dualmente substituído para designar os burocratas por dl/zovnikl (cí/z = posto, cate-
ticas dinastias de magistradosno século xvlll, se foi dificultando cada vez mais a goria). Se bem que a obrigatoriedade vitalícia de servir a burocracia ou o exército
passagemda profissão jurídica para os assentosno Parlamento local, o que contri- (com transições bastantefrequentes de uma para o outro) fosse sucessivamenteate-
bui para a explicação da orientação maciça falo-revolucionária dos avocafs em 1789 nuada com os sucessores de Pedro 1, e praticamente revogada por Pedro Tll em 1762,
(M. Gresset, 1978). o hábito nunca chega a perder-se, sobretudo para a esmagadora maioria da aristo-
Na Inglaterra dos Hanâver, o maior número de novos funcionários provinha cracia que não dispunha de um número suficiente de criados que lhes garantisse uma
<<daquela categoria faminta de cargos, a gene/.yde paróquia, sem brasõese de for- vida ociosa e dispendiosa;e uma vez que a categoria (ao invés da posição nobre)
tuna limitada» (G. Holmes, 1982, p. 250). Também na Suécia, a «época da liber- não era hereditária,cada um deveria iniciar a carreira pelo nível mais baixo. O sen
dade>>inaugurada com as constituições de 1719-1720 foi assinaladapor uma feroz tido de desarreigamento determinado pelas transferências constantes solicitadas pelo
caça aos cargos governativos por parte de uma nobreza empobrecida: em 1750, dois serviço do czar, a adaptaçãoa uma hierarquia e a uma disciplina de tipo militar, a
terços dos cerca de 500 postos de nível elevado eram ocupados por nobres, percen' atitude ambivalente em relação aos modelos ocidentais impostos de cima são tudo
tagem destinada, aliás, a descer sensivelmente na segunda metade do século (M. Roberts, componentesde uma mentalidade aristocrato-burocrática que encontramosreflectida
1986, p. 74). Superior a 60% era a presençados nobres nos cerca de 500 cargos nos grandes romances russos do século xlx: <<reforçadapelas realidades políticas e
médios e altos da administração central austríaca, tanto no princípio como no fim da sociais, a sensaçãode incerteza e de insegurança no que se refere à sua posição social,
décadajosefista; todavia, setivermos em atençãoa obra de Waltraud Heindl, segundo alimentada pelo indivíduo nobre, desempenhou um papel importante no favoreci-
o qual <<osque pertenciam à nobreza menor tinham muito menos em comum, no mento da sua transformação num membro da camada intelectual>>(M. Paeff, 1966,
estilo de vida e níveis de rendimentos,com a burguesiado que com a alta aristo P 41)
cracia>>;e se tomarmosapenasem consideraçãoos nobres,a percentagemé inferior Um caso à parte é, naturalmente, o das repúblicas aristocráticas italianas ou das
a 20qo (W. Heidl, 1991, pp. 147-148). cidades-Estado suíças ou alemãs, onde se verificava uma distinção constitucional
Em nenhum país foi tão estreita a identificação entre a posição aristocrática e o entre os cargos políticos de relevo, reservados ao patriciado, e as funções subalter-
serviço prestado ao monarca como na Rússia quer pelo enfraquecimento de uma nas acessíveis a uma segunda ordem (a dos <cidadãos naturaip> em Veneza). Alguns
camadanobre dependentedo Czar para a atribuição de terras (pomesf'e) e para a Estados alemães são os territórios onde se afigura mais bem conservada a tradição
repressão das fugas e das revoltas camponesas, quer pela falta de uma alternativa quinhentista que atribuía a um grupo de juristas de origem burguesa o privilégio de
burguesa. A famosa tabela de categorias de Pedra, o Gra/zde (1722), instituía catorze fornecer ao príncipe os seus colaboradoresmais qualificados: de 180 médios e altos

263
262
turísticas próprias, que chega a alcançar na Prússia uma sançãojurídica com o f
funcionários,
registados
em Assia-Casselpor Ch. Ingrao, 130 eramde pai plebeu,
AIZgemeinesZ.a/zdrec/zr,
código promulgado em 1794, e obtém também noutros locais '
muitoembora32 daqueles tivessem sido sucessivamenteenobrecidos (Ch. Ingrao,
1987,p.24).Ao invés, no eleitorado de Hanõver, o século xvlll registou um reforço privilégios e reconhecimentos que já não se encontram ligados ao berço, mas à fun-
ção pública.
do predomínio nobre nos níveis superiores da administração, onde a presença <<bur-. Paralelamenteà mobilidadesocial, um outro fenómenobastantedifundido na l
guesa>>
selimitava a uns míseros 12qn; <<aposição de monopólio da aristocracia do
Hanâver observou-se dependia em grande medida da ausênciado príncipe elei- Europa cosmopolita do século xvlll é a mobilidade geográfica, isto é, a frequente
transmigração dos funcionários civis, não menor que a dos militares, de um país para
tor e do seurespeito pelas relações sociais consolidadas>>(J. Lampe, 1963, p. 237).
TambémnoReino da Prússia o recrutamento de elementos burguesespromovido pelo
o outro, por vezesmesmoa título de <empréstimo>>,
como sucedecom a estadado
toscano Pompeo Neri em Milão, onde dirige as operações do cadastro teresiano, entre
Reí-Sargento, Frcderico Guilherme 1, encontrou obstáculos bastante superiores com
1749e 1757,ou com a passagemdo silesiano lgnaz von Felbiger da administração
o seusucessor,
Frederico 11,convencido de que <<cabe,antes de mais, à nobreza, o
prussiana para a austríaca onde desempenha, a partir de 1774, um papel crucial como
primeiroestratodo Estado por definição, a defesa do Estado e bem assim a tutela da
organizador das escolas para o povo. Sc para o Império habsburgo o afluxo de pes-
suadignidade
no exterior e da sua constituição internam»
(cit. in T. Schiedcr, ]989,
soal do estrangeiroera um facto tradicional, para a Rússia tratava-sede um fenó-
p. 252).Destemodo, por exemplo, enquanto em 1737 apenas 17qudos componentes
meno novo, ligado à política de modernizaçãoe ocidentalizaçãoempreendidapor
do Directório central e das Câmaras provinciais da guerra e do património eram
Pedra, o Grande. Mas não menor é a circulação das elites burocráticas dentro dos
nobres,estapercentagem sobe nas décadas seguintes para 25-32qu (H. C. Johnson,
1975,p. 254). Dos vinte membros do Generaldirektorium, nomeados entre 1740 e espaçosalemãesou italianos: entre os médios e altos funcionários de Assia-Cassel,
cerca de um terço provinha de outras áreas da Alemanha (Ch. W. Ingrao, 1987, p. 29),
1786,apenas um não era de nascimento nobre (H. Rosenberg, 1958, p. 162); nobres
e encontramostambém uma elevada proporção de estrangeirosna burocracia do
por definiçãoeram os Z,aizdrdre, figuras intermédias entre os notáveis e os funcio-
Wilrttenberg (J. A. Vann, 1984,p. 178); no Conselhosupremode economia,insti-
nários,queexerciamfunções administrativas, judiciais e fiscais nos distritos rurais
tuído por Mana Teresa cm Melão, em 1765, o presidente e seis dos dez conselheiros
(Xrelse),e que eram eleitos pelo ./anker do local, de acordo com listas aprovadas
provinham de outras partesda Itália ou de além-Alpes, c os dois principais minis-
pelo soberano. tros de Carlos de Bourbon em Nápoles foram o espanhol conde de Montealegre e o
U. Tambémo Piemonte dos Sabóia conheceu, na segunda metade do século XVlll,
toscano Bernarda Tanucci. A frequência destastransferências não se explica unida- l
uma recuperação
da nobreza mas tratava-se sobretudo dos títulos recentes adquiri
mente pelo facto, recordado a seu tempo por Ernesto Sestan, de no século xvln as
dosgraçasàs funções exercidas e, além disso, os níveis de partida eram bastante bai-
xos (]6% dos nobres entre os funcionários superiores e apenas 2qn entre os meno- competências técnico-administrativas serem uma mercadoria rara e, por isso, expor-
tável (E. Sestan, 1955, pp. 20-21), mas sobretudo pela necessidade sentida pelos sobe-
res:cfr. D. Balani, 1981, p. 598). Como escreveu Giuseppe Ricuperati, o resultado
ranos reformadores. de recurso a colaboradores não pertencentes às classes dirigen
do longoperíodo de absolutismo saboiano é <<acriação de uma nobreza de serviço,
tes locais e seusinteresses,por conseguintenão viciados na defesa da ordem
caIUumfortesentido do Estado, uma ideologia de competência, uma notável capa-
político-institucional vigente. A melhor demonstraçãodeste assuntoreside exacta-
cidadede viver a relação entre política e cultura como uma ética profissional>>; uma
mente nos casosjá referidos de Pompeo Neri e Bernardo Tanucci, que figuravam na
camadasocialda burguesia e da antiga nobreza, que «tende a controlar no período
Toscana natal entre os defensores da continuidade do regime anterior e das tradições
dealgumas
geraçõesnão só as carreiras políticas mas também os percursossubsidiá-
rios,do exército à diplomacia, à corte, à lgreja>>(G. Ricuperati, 1990, pp. 853, 870). <<republicanas>>,
e que se tornaram, respectivamente,na Lombardia e em Nápoles,
Um processo decerta forma análogo é o que encontramos no Grão-Ducado da Toscana, intransigcntes partidários do absolutismo monárquico e das reformas.
ondesaemde cena as antigas famílias patrícias que, entre os primórdios seiscentas
4. Quer para os nobres, quer para os rafuríers que aspiravam ao exercício de fun-
[as e o fim da dinastia dos Médias (1737), haviam monopolizado os cargos mais
rendosose prestigiosos nas magistraturas e nas funções permanentes: a sua presença ções públicas, colocava-se o problema de uma preparação geral e específica ade-
nestesúltimos é reduzida de 31qo em 1736 para 20%u em 1733 e 12-13qo em 1784. quada. Mencionou-se a insistente centralidade dos estudos jurídicos para os magis-
trados e para os funcionários de categoria mais elevada. Em todo o lado era estreita
Bem melhor resiste, pelo contrário, a categoria dos <<novos patrícios e nobres>> que
a articulação entre a formação universitária e as carreiras burocráticas, excepto na
constamdo livro de ouro redigido com base na lei de 1750 (R. B. Litchfield, 1986,
Inglaterra, onde <<aformação jurídica setecentista tinha outra proveniência, através
P. 315)
Ao ladodas carreiras eclesiásticas e militares, o exercício de funções públicas da prática nos estudoslegais e nos Inns of Court, e a admissãoou a promoção na
administração régia dependia do parrolzage e das relações de clientelismo e quaseA
representa,afinal, em toda a Europa centro-ocidental, uma importante fonte adicio-
nada da formação universitária>>(L. Stone, 1975, p. 51). De acordo com uma opi-
nal de entradaspara a aristocracia, especialmente para a menos rica, e uma válvula
nião agora consolidada, há muito que as universidades europeias do século xvm
deescapeideal para os cadetes. Para os burgueses, constitui uma das principais vias
tinham deixado de ser centros impulsionadoresda vida intelectual, limitando-se a
para a nobilitação, mas, com o passar das gerações, os detentores de cargos públicos
médios-altosde cada estrato social tendem a misturar-se numa camada com carac- transmitir uma cultura tradicional e acanhada,firmada no culto dos clássic.ose do
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264
direito romano. Todavia, verificaram-se em diversos locais sérios esforços de reno- quais o acolhimento dos jovens nos regimentos seleccionadosdos guardase no corpo
vação, por exemplo, instituindo cursos de direito público e aumentando o espaço de cadetes instituído em 1721 em São Petersburgo. Todavia, subsiste o facto de, para
reservado ao direito pátrio. Se muitas universidades alemãs vegetavam numa deso- a grande maioria dos funcionários civis, a escola principal ter sido o estágio prático
ladora penúria dc meios e ideias, Góttingen, fundada em 1734 pelo eleitor do Hanõver, efectuado nos serviços a título de supranumerários (com a esperançade entrada no
logo se torna um foco de cultura humanística e histórica; a percentagemde licencia quadro, caso ocorresse uma vaga) ou de estagiários (Áuscu/ralar na Prússia); e com
dos nos níveis superiores da administração Hanâveriana subiu de 56%, no período bastantefrequência, a transmissãodos conhecimentos práticos e teóricos necessários
compreendido entre 1714-1736, para 82% entre 1737-1760 (Ch. E. McClelland, 1980, processava-se
ainda por via familiar, entre pais e filhos ou tios e sobrinhos.O qua-
p. 50). Halle e Francoforte sobre o Oder foram dotadas em 1727 de cadeiras de ciên- dro do emp/Cadatraçado por Antonio Gil Zarate em 1843, com um pouco de sau-
cias camarárias e viram aumentar consideravelmente as matrículas, em resposta às dosismo dos bons velhos tempos, não é só válido para a Espanha: <<Umapraxe cons
exigênciasmanifestadaspor FredericoGuilherme l de recrutar em 1723, parao ins- tanto fazia com que, de um modo geral, o funcionário nascessedo funcionário. Mal
tituto Generaldirektorium apenas funcionários <(fiéis e honestos, de mente aberta, que o filho de um funcionário deixava a escola, era colocado como aluno rmerí/aria) ao
entendam de negócios e os tenham praticado, que possuam boas informações sobre lado do pai. Ali era instruído na escrituração, aperfeiçoava-se na contabilidade e
o comércio, as manufacturas e questões afins, e saibam também manejar a pena>> aprendia as regras burocráticas. Ao fim de seis anos ou mais era então criado um
(ÁcrczBorussfca, 1901, p. 577). A Prússia esteve também na vanguarda no que se lugar, e o neófito ingressava no quadro como escrivão, com trezentos ducados de
refere à instituição de exames regulares para o ingresso de funcionários no Estado: soldo ...>>(ín E. Corria Calderón, 1950, p. 1023).
esta praxe, adoptada em 1755 para os funcionários judiciais c em 1770 para os admi- Juntamente com os laços de parentesco, a protecção de pessoas influentes era
nistrativos, <<fezcom que o estudo universitário se tornasse uma regra para os can determinante para o ingresso no funcionalismo público. Tomemos como exemplo o
didatos a funcionários>»(E. Hellmuth, 1985, p. 111), como sucedeigualmente na Bureau des dépêchesdo Ministério das Finanças francês dirigido, a partir de 1778,
Austria a partir de 1766. pelo premíer c0/7zmfsCharles Hersemulle de la Roche:
Em ltália, o Ateneu de Pisa reveste um papel extremamente importante na pre-
paração de uma nova classe dirigente; em Nápoles, à reforma universitária efectuada no seu gabinete trabalhavam o genro, Etienne-Made Denois, que era também filho de
cm 1736 por Celestino Galiani vem juntar-se a criação de uma cadeira de Comércio um premfer colnmixdo Ministério da Guerra; um de Bouconvilliers, sobrinho do pró-
e Mecânicapor Antonio Genovesi(1754); em Pavia, o plano disciplinar para 1771 prio de la Roche; um Pardos (provavelmente seu primo); um Meslin, por quem se inte-
e o plano científico para 1773 prepararam,à semelhançadas reformasjá efectuadas ressarauma tia do rei, Madame Victoire; um Vassal, genro de um premíer commís,
em Viena, uma autêntica revolução ao nível dos conteúdos e dos métodos de ensino, Cochereau,e que tinha dois «protectores>>,Madame Adélaide, uma outra tia do rei, e
destinadosa promover <<acultura dos engenhose a rectificação dos coraçõese, por de Villevalt, í/zaffredei req êles; um de Glatigny, filho de um va/ef de chambreda
consequência,a formação e propagação dos sujeitos iluminados e anticonformistas rainha; um Nay, sobrinho de Cadet de Chambine, pre//zfer comínfs des Ponta et Chaussées;
que sustentame secundamos regulamentossalutares>>
(despachorégio de 24 de François Delorme; parente de um pre/miar commís do Ministério da Guerra; e, por
Novembro de 1764, cit. í/z C. Capra, 1984, pp. 407-408). Mas, no. Piemonte, veria último, Charles Coster, pertencente a uma família grande e poderosa com muitos ele-
cou-se uma estreita ligação entre os estudos superiores e o mercado burocrático, onde mentos no serviço régio (J. F. Bosher, 1970, p. 61).
a reforma da Universidade de Turim, no reinado de Vítor Amadeu 111,se fez acom
panhar da implantação de um sistema de escolas secundárias estatais único na Europa: Para a actividade da Navy Board inglesa contribuíram <(pelo menos, 47 famílias
a já referida investigação de Donatella Balani veio mostrar de que forma cerca de com três membrosou maiu>, entre 1660 e 1800 (J. Brewer, 1989, p. 81). A indis-
metade dos mais de 4000 licenciados pela Faculdade de Direito de Turim, entre 1720 pensabilidade de recomendações e indicações para o acesso aos cargos públicos, ou
e 1798, encontrou ocupação nas funções públicas e como o próprio andamento das mesmo a própria venalidade dos cargos, não significam, porém, que a preparaçãoe
matrículas reflectia as exigências da administração estatal (D. Balani, 1981, pp. 690 o mérito fossem de todo descurados.Pelo contrário, procurava conciliar-se ambos:
c seis.) Em França, o caminho seguido foi, mais do que a reforma dos estudos, a como observa Ajello, <<ogoverno não podia permitir-se, a menos que quisesse com-
criação de escolas especiais para a formação do pessoal técnico necessário às novas prometer a eficiência da sua administração, e também a sobrevivência do seu poder,
tarefas assumidas pelo governo: Luigi Blanco (1991) escreveu recentemente uma ignorar as qualidades de competência específica>>(R. Ajello, 1981, p. 348)
monografia muito rica e documentada sobre a já referida Ecole des ponta et chaussées,
fundadaem 1747,e sobrea formação, a ideologia e a actividadedo corpo de enge 5. A tabela de categorias russaé um exemplo único de hierarquia que se estende
nheiros; mas de recordar também a Escola da Marinha aberta no Louvre, em 1748, uniformemente a todo o aparelho burocrático, sem distinção de funções nem de sec-
e a Escola de engenharia fundada no mesmo ano em Méziêres. Viena pede orgulhar- ções.Em todo o lado, a heterogeneidade
das qualificaçõese das relaçõesde subor-
se, a partir de 1780, do Theresiarum,um colégio reservadoaos nobresque quises- dinaçãoera regra e mal começavaa tomar forma um enquadramentodo pessoalnas
sem dedicar-se ao serviço do Estado. Por último, na Rússia, a partir de Pedra, o Gra/zde, categorias e níveis preestabelecidos. Nos ministérios franceses, vai-se delineando a
desenvolveram-se todos os esforços para obrigar a nobreza a instruir-se, entre os partir de meadosdo século xvlll uma classificação entre <(premiarsecrétaire,second

266 267
secrétaire,chefs de bureaux,commis du premiar ordre, commis du sccond ordre, do tesouro, e tinham na sua dependência uma equipa, em 1770, de mais de 200 pes-
écrivains' et 'copistes'>>
(R. Mosnier, 1974-1980,vo] 11,p. 546). Antigo e novo mis- soas.Os pagamentosdos 723 agenteslondrinos, controlados por um corpo de ins-
turavam-se estranhamente na maior das pastas francesas, o Controlo-geral das finan- pectores, entravam directamente para o gabinete do recebedor geral. Mais complexa
ças, que reunia em si as atribuições hoje respeitantesaos ministérios do Interior, das era a organização nas províncias, onde 53 cobradores coadjuvados por outros tantos
Finanças e do Tesouro, da Economia, das Obras Públicas e outros mais. No final do escrivães (os números reportam-se sempre a 1770) funcionavam como centros de
a/zcíenrégfme dependiamdo controlador-geral cerca de 360 funcionários, dos quais recolha das cobranças, vigiados por 253 supervisores. Para ingressar, era necessário
30 pre/zz/er co/}z/zzfs,um número quase igual de c/z({/) subordinados a estes, cerca de passar em exames bastante rigorosos, que previam conhecimentos de matemática e
205 com/nfs e uns trinta garça/zs de b rreízu. Nem todo o pessoal se encontrava inte- geometria mais do que elementares:<<TomPaine, talvez o mais célebre dos funcio-
grado nos trinta e oito b reallx que constituíam o ministério, uma vez que havia pes- nários das avisas, estudou durante catorze meses antes de se tornar supranumerário
soas pagas a título individual por tarefas específicas, como a recolha de informações em 1761>»(J. Brewcr, 1989, p. 104). Os agentes, ditos gazlgers (<<medidore»>),tinham
sobre a população ou a compilação de um dicionário de comércio (confiada por de percorrer muitas milhas a pé ou a cavalo para inspeccionarem as fábricas c as
Trudaine ao abadeAndré Morellet, o tradutor de Beccaria, que não chega a concluir lojas dos génerostributados (cerca de cem mil em toda a Inglaterra em finais do
a obra). Por um lado, os métodos de trabalho destesfuncionários distinguiam-se per- século xvlll), receberem as quantias devidas e entregarem o recibo; deviam, além
feitamente dos adoptados nos outros ministérios, onde vigorava ainda a praxe cole disso, manter registos pormenorizados que eram enviados periodicamente, juntamente
gia[: <<d'a]]urep]us moderno, [ils] étaient inspirés par un esprit p]us administratif que com os dos supervisores, aos serviços centrais. O sistema de controlo fora concebido
judiciaire, avide de rapports, d'enquêtes, de circulaires, de lettres de réponses, étudiés, de modoa dificultar a conivência e a fraude e a permitir uma avaliaçãoreal do ren-r
dépouillés, peséset résuméspar des commis dans la solitude d'un cabinesplutât dimento de cada dependência; nesta base, eram definidas as promoções ou as san-l
que dons des conférencesde légistes>>3
(M. Antoine, 1970,p. 327). Por outro lado, a ções; as transferências frequentesde pessoal de uma dívfsíon para outra dcsencora-l
estrutura do ministério não se assemelhava efectivamente a uma pirâmide hierárquica javain também a formação de laços pessoais entre os agentes do fisco e os fabricantesl
ordenada. Assim, as funções eram desempenhadas em parte em Versalhes e maiori- ou os gerenteslocais. O bom funcionamento desta máquina explica, juntamente com
tariamente em Paria, dispersas pela cidade: geada pre/n/er co/ z/ ?ís, responsável por o incremento natural da produção e do comércio e com os agravamentosperiódicos,
um ou dois óureazíx,alugava por norma os locais, organizava e decorava as salas e de que forma as acesasconstituíram no século xvlll a fonte mais dinâmica de recei-
depois solicitava o reembolso ao ministro>>(J. F. Bosher, 1970, p. 53). Além disso. tas da monarquia inglesa, passandode cerca de 30qu na primeira década do século
as relações entre este último e o pessoal subalterno efectuavam-se, em grande parte, para uma média de quase 50qn entre 1740 e 1780.
por intermédio dos intendentesdas finançase do comércio, a que fizemos já men- Bem diferente era a atmosfera predominante nos serviços do Tesouro britânico,
ção, até às reformas realizadas por Necker em 1777. De realçar ainda que os homens que um estudioso recente definiu como <<umacarruagem antiga cheia de funcioná-
do Controle général só eram parcialmente responsáveis pela gestão das finanças fran- rios supérfluos e de onerosos detentores de sinecuras>>(H. Roseveare, 1969, p. 95)
fl cesas:o grosso do seu trabalho consistia, de facto, no controlo e no registo da acti- Por isso mesmo, eram cargos muito solicitados, reservadosnormalmente a parentes
vidade desenvolvida pelos oPícíers estranhos ao ministério (os tesoureiros, os cobra- ou clientesde ministrosempossados
ou de grandesaristocratas.Um destespostu-
dores e os pagadores, titulares de cargos venais e em grande medida independentes lantes escrevia ao seu protector que se contentaria com uma remuneração anual de
no manejo do dinheiro, de que se serviam para negócios particulares ou mesmo para 70-100 libras esterlinas, mas que pediria duzentas ou trezentas se Ihe exigissem que
li empréstimosà coroa), ou por agênciascomo a Repartiçãogeral dos impostos indi- trabalhassea sério (ibid., p. 96). O número revestesignificado se compararmosos
rectos, a Administração-geraldo património régio e a Régie généraledas gabelas ganhos dos excfse/ne/z,que rondavam as 50 libras esterlinas anuais para os agentes,
(andes), estas duas últimas criadas por Necker entre 1777 e 1780, com a incorpora- 90 para os supervisorese 120 para os cobradores, e que muito raramente incluíam
ção de vários cargos e organismos anteriores. outros benefícios de que, ao invés, usufruíam os seuscolegas do Tesouro.
Em Inglaterra, a administração das tabelas (impostos lançados sobre as bebidas Seria fácil apresentar números para demonstrar o facto de os ordenadosdo fun-
alcoólicas e sobre uma série de outros géneros de consumo generalizado, do sal às cionário público serem em média baixos, diferenciados por níveis entre os vários
velas e ao sabão) pode ser definida como um verdadeiro modelo de organização buro- quadros e inseridos numa escala muito mais ampla do que hoje em dia. No Piemonte,
crática, em que se inspiraram as reformas das duas últimas décadasdo século, e que a distância entre o topo e a base da pirâmide burocrática era algo como 15-20 para
«não só era o maior departamento governativo da época, mas também aquele que pos- um (D. Balani, 1981,p. 607). Em Viena, podia ir dos 20000-30000 florins anuais,
suía maiores contactos com o público>>(J. Brewer, 1989, p. 102). Havia nove comis- atribuídos aos presidentes dos serviços, até aos 500 ou mesmo menos para os subal-
sários à frente do departamento govemativo, que informavam semanalmente os Lordes ternos mais desfavorecidos. No Ministério da Guena francês, os vencimentos osci-
lavam entre 200 francos anuais para os menos remunerados, entre os porteiros e os
carregadores, e quantias que variavam entre os 4000 e os 8000 para os escalões mais
3 <<Deatitudes mais modernas,inspirava-os um espírito mais administrativo do que judicial, ávido de
relatórios, de inquéritos, de circulares, de cartas de resposta, estudadas,verificadas, avaliadas e resumi- elevados. Em 1776, o ministro Saint-Germain promulgou um regulamento que refor
das por funcionários, no isolamento de um gabinete e não nas reuniões de jurisconsultos>>. (N.T.)
mulava os ordenados dos seus servidores de acordo com a seguinte hierarquia: i5 000

268 269
liras tornesesanuaispara um cbegde b reata (equivalente a um ex-premíer commls), funcionalismo público foi, um pouco por todo o lado, a mudança no carácter das pen-
de ] 000 a 5200 liras para os com/nls, que se dividiam em três escalões,600 liras para sões, que deixavam de ser consideradas uma benesseconcedida fortuitamente pelo
soberano. mas antes um direito regulamentado por lei e associado à antiguidade de
um estagiário (C. H. Church, 1981, p. 33). O projecto encontrou fortíssima oposi-
ção, sobretudoporque previa a acumulação no vencimento de todas aquelasrubricas serviço. Enquanto os exemplos franceses e ingleses apontados se baseavam nas con-
que constituem tradicionalmente uma parte relevante e, com frequência, preponde- tribuições voluntárias dos trabalhadores, a <<circular>>
promulgada em 1781 por José ll,
rante do <<envelope do ordenado>>de um funcionário: gratificações, direitos e paga- logo imitada por outros governos, garantia indiscriminadamente a todos os funcio-
mentos impostos a Lodosos que recorriam aos serviços para declaraçõesou outras nários um terço do vencimento após quinze anos de serviço, metade ao fim de vinte
e cinco e o vencimento por inteiro após quarenta; outras disposições respeitavamaos
práticas, espórtulas (no caso dos juízes), isenções e privilégios de natureza diversa.
casos de invalidez e à reversibilidade das pensõespara os cônjuges após o faleci-
No Estado de Melão, ainda nos princípios do século xvin, estes <<suplementosdupli-
mento do beneficiário. Também as promoções foram regulamentadas na administra-
cavam em média os vencimentos dos cargos mais elevados, isto é, do Governador,
do Chanceler-Mor, dos senadores e questores . . ., ao passo que sextuplicavam mesmo ção austríaca,com base no princípio da antiguidade,norma que viria com o tempo
a revelar efeitos negativospara o espírito de iniciativa dos funcionários, mas que
os rendimentos das categorias inferiores. Juntando os cargos altos e baixos de todos
os escalões administrativos, é possível afirmar que os encargos inerentes, que eram apresentavaa vantagem de oferecer uma certa garantia contra a influência de clien-
de 459 134 liras só para os vencimentos, teriam subido para 1283 256 liras, englo telas e de relações pessoais.
J. Van Klaveren explicou o carácter estrutural da conupção nos aparelhos esta-
bando as propinas e ajudas de custo e todos os ganhos eventuais permitidos e regis-
tados nos livros de Mezza Annata>>(S. Pugliese, 1924, p. 383). Era um sistema que tais da Europa do arzcíenregime em termos estritamente económicos, como o bene-
apresentavaparao governo a vantagemde transferir para a população,e em parti- fício, segundo as leis do mercado, daquela forma particular de empresa representada
cular para os utentes dos serviços públicos, grande parte dos encargos com a manu- pelas funções públicas, benefício tornado possível pela ampla autonomia atribuída
aos funcionários das repúblicas oligárquicas e das monarquias moderadas.Outros
tenção dos <<funcionários», mas que obviamente favorecia toda a espécie de abusos
relacionaram-nocom a insuficiência das remunerações.Recentemente,Jean-Claude
e de extorsõespor parte destesúltimos, como nos demonstramad ab /zda/zffa/nos
estudosde F. Chabod para o Milanês e de R. Mantelli para o Reino de Nápoles sob Waquet avançou uma explicação em termos funcionais: segundo esta tese, abundan-
temente ilustrada com exemplos retirados da história do Grão-Ducado da Toscana
domínio espanhol, e que estava manifestamente associado à concessão patrimonial
entre os séculos XVll e Xvlrl, a corrupção <correspondia... a uma dupla função: tra-
do cargo consideradocomo um investimento rendoso. Uma das primeiras reformas
efectuadasna Lombardia durante o reinado de Mana Teresa, o <<novoregime>>das zia o dinheiro líquido de que os funcionários, pertencentesna sua maioria à aristo-
magistraturasmilanesasintroduzido por Gianluca Pallavicini em 1749, com signifi- cracia local, tinham grandenecessidadee, simultaneamente,procedia a uma redis
cativa simultaneidade, eliminava a venalidade dos cargos, atribuía vencimentos razoá- tribuição do poder a favor de uma elite pelo nascimento que nunca se resignara com
veis aos funcionáriose reduzia a quantias moderadase fixas os emolumentosque a sua expoliação>>
(J. C. Waquet, 1984,p. 236). O próprio Waquet chamou a aten-
seriam a partir de então redistribuídos através de uma caixa central (C. Mozzarelli, ção para uma aplicação mecânica deste esquema a diversas realidades político-
1972, PP. 134-140). institucionais e insistiu na importância de valores morais mais ou menos permissivos
Foram tomadas idênticas medidas nos outros tenitórios da monarquia dos Habsburgo de que semelhantescomportamentoseram objecto quer por parte da sociedadeem
onde, todavia, as retribuições se mantiveram sensivelmente mais baixas do quc no geral, quer por parte dos próprios agentes.Enquantono século xviil se registaram
Milanês, e onde a falta de adequação ao aumento do custo de vida, nas últimas déca- progressossignificativos no combateà corrupção, como na Prússia,em Inglaterra,
das do século, levou a condições de grave necessidade. No sistemajudicial prussiano, na monarquia austríaca e na própria Toscania sob os Lorena, podemos dizer que isso
a luta pelo aumentodos vencimentos,a eliminaçãodas espórtulase a introduçãode resultou de uma dupla evolução: de um lado, a maior vigilância dos governos (tam-
bém com formas de autêntica espionagem, como sucedia na Prússia, obra dos fami-
um sistemade recrutamentobaseadono mérito foi conduzida com grande vigor a
partir de 1748 por Salnuel van Coccej. Nos outros Estadosalemães,onde durante gerados<<fiscais>>,
ou na Austria após a instituição de uma polícia secretapor parte
todo o séculoxvlll os vencimentoscontinuarama ser pagosem boa parte em espé- de José 11), a adopção de normas disciplinares mais rígidas e a aplicação sistemática
cie (com quantidades de cereais, madeira, vinho, que depois os funcionários tinham de sançõesseveras;do outro, a interiorização por parte dos próprios funcionários de
de voltar a vender), semelhantesreformas fizeram-se ainda esperar; todavia, foi no uma nova ideologia do bem público e de um conceito de honra diferente do da honra
aristocrática e baseadosobretudo, como pretendia Sonnenfels, na <<consideração da
Baden, no Württenberg e na Baviera que se modificou, pela primeira vcz, na época
napoleónica e nos anos imediatamente subsequentes,um /icem/emrec/zfque previa, probidade de um cidadão>>(J. von Sonnenfels, 1819, vol. 1, pp. 370 e seis:). A expres'
são mais conhecida destaética burocrática e estatalistaé a <<cartapastoral>>
difundida
aliás, a <<justa
causa>>para o despedimentoe o reconhecimentode um estatutojurí-
dico privilegiado a todos os funcionários do Estado e não só aos nobres: <<ahonra por José ll em Dezembro de 1783: <(Procurei como se pode ler -- inserir em todos
dos funcionários devia ser estimulada e constantemente incentivada no sentido de os servidoresdo Estado o amor que nutro pelo bem geral e o zelo pelo seu serviço
um compromisso
ilimitado, não atravésde puniçõesmasde prémios>>
(B. Wunder, De onde resulta que, em todos os cargos sem excepção alguma, se deverão desem-
1986, p. 28). Um indicador significativo da passagem a uma concepção moderna do penhar as funções com o máximo zelo, sem medir o próprio trabalho nem por horas
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nem por dias nem por páginas; porém, devem scr desenvolvidos todos os esforços, dobrar quando se tem a consciência de haver cumprido o seu dever>>(F. Walter,
quando há uma tarefa, para que seja executada segundo as expectativas e segundo o ]950, p. 125). O cremonenseVincenzo Lancetti, funcionário do Ministério da
próprio dever... Quem não tiver amor ao serviço da sua pátria e aos seus conceda Guerra do Reino Itálico e autor, no período napoleónico, de um pequenotratado
dãos, quem não se sentir inflamado por um zelo especial para praticar o bem, não (ainda inédito) l)as g a/idades e dos deveres doi /u/leia/zárlos públíc'os, enaltecia
está talhado para essasfunções... O interesse próprio de cada um é a ruína de todos a <.agradávelsatisfação... de um funcionário que todos os dias deixa a sua secre-
os assuntosc o delito mais imperdoável num funcionário do Estado» (F. Walter, tária limpa de papéis>>,
mascontestavaa oportunidadede impor aosfuncionários
1950, pp. 123-26). Claro que a realidade estava longe deste ideal, como teremos oca- um horário de trabalho regular: <<Ésempre útil estabeleceros horários em que os
sião de ver. No entanto, todos os historiadores são unânimes em afirmar que a for ministérios estão abertos e acessíveis... Mas tresandará a escolástico ou monás
mação de uma burocracia de um modo geral honesta, disciplinada e dedicada ao ser- ligo se os ministérios e, inclusivamente, os chefes exigirem a presença constante
viço público, inteiramente desligadade qualquer conceito de <<representação>>
de e absoluta dos funcionários de qualquer categoria durante um determinado período
territórios ou de estratos, cujos princípios remontam sem sombra de dúvida à segunda fixado para todos, tenham ou não a mesma quantidade de trabalho>>;o bom fun-
metade do séculoxvlll, foi um dos pilares que sustentaramaté à Primeira Guerra cionário, observavaLancetti, ficará no serviço até à noite se o trabalho o deter-
Mundial o edifício imponente da monarquia austríaca, assegurando-lhe a <<estática minar, mas <<quando estiver mais aliviado saberá aproveitar as ocasiões,semcriar
grandiosa>>contra os múltiplos impulsos de desagregação. E sucede o mesmo, mu/a- a fama de indi[igente>>(cit. ín C. Capra, ]986, p. 66).
íís mzz/ardis, na Alemanha que Oito Hintze definiu com orgulho, num ensaio dc 191 1, Vale a pena citar ainda do texto de Lancetti a definição de alacridade como <m
como <<opaís por excelência da burocracia no mundo europeu>>(O. Hintze, 1980, vontade espontâneae resoluta de dar curso às incumbências que te pertencem, de te
p. 179): de acordo com um estudioso recente, <<emfinais do século xvlTI, as buro sentaresno teu lugar sem muitos preâmbulosde voltas e reviravoltas,visitas, con-
cracias alemãs compreendiam um núcleo de administradores profissionais educados versas, risotas, refeições, gazetas, passeios, tudo aquilo que costuma ocupar um terço
das horas dedicadas ao trabalho>>(ibid.). O quadro da vida quotidiana dos funcioná-
nas universidades, geralmente honestos e laboriosos. Se bem que existisse no seu
seio uma elevada percentagemde não nobres em todos os níveis, encontravam-se rios evocados nestas linhas, já nossa conhecida, relaciona-se com outros testemunhos
bem integrados nos aparelhos do poder e nas estruturas sociais dos respectivos Estados da época,como esta enumeraçãodos <<defeitosgenéricos>>
dos funcionários tosca-
em virtude de um sistemabaseadono mérito que privilegiava o talentoe não o nas nos, compilada pelo Grão-Duque Pedro Leopoldo, antesde deixar Florença em 1790:
cimento>>(Ch. W. Ingrao, 1990, p. 230).
a negligência de querer aplicar-se pouco ao trabalho e de permanecerpouco no ser-
6. Verifica-se no século xvlll uma tendência para a separação entre o local de viço; de depender completamentedos subalternos para as minudências do trabalho; de
trabalho e a habitação doméstica. Possuímos informações fragmentárias sobre os aparecer ali mais para se mostrar o menos e tão tarde quanto possível, e passar o tempo
horários de serviço, mas está-semuito longe dos dias intermináveis dos trabalha- em grupos e tagarelices inúteis, ou a falar da vida alheia; de se dar ares, e prometer
dores manuais. No Ministério do Tesouro inglês, onde a disciplina era particular- protecções e enganar as pessoas,em especial em Florença, fingindo sempre que são
mente flexível, o horário estabelecidocm 1752 ia das 9 da manhã às 3 da tarde cargos de negócios e ocupações e prometendo a todos com ar de importância e de mis-
durante cinco dias da semanamas muitos funcionários só apareciam depois das ll tério para se fazer aclamar, reverenciar, recomendar e procurar ficar com as honras de
tudo o que se faz e desculpando-secom o público e com os particulares, mesmo con-
c alguns faltavam com frequência ao serviço (H. Roseveare, 1969, p. 106). O mesmo
trariamente à verdade, e de lançar sempre sobre um indivíduo, sobre quem govema ou
sucedia no Ministério da Marinha, onde até um chefe de secção teve de ser cha- sobre outros funcionários o odioso do que não agrada (Pedra Leopoldo de Habsburgo-
mado à atenção para <<passara assinar todos os certificados e outros documentos no -Lorena, 1969-1974, vol. 1, P. 57)
seu serviço e não, como tem sido praticado até aqui, nas tabernas e nos cafés>>(D. A.
Baugh, 1965,pp. 60-61). Em França, o dia de trabalho nos ministérios durava tra-
dicionalmente sete-oito horas, mas também aqui a observância da norma era muito Na monarquia austríaca, o ideal josefista austero parece ter penetrado nos funcio-
elástica, mesmo na época de Balzac (G. Thuillier, 1976, pp. 28 e sega.).Nas chan- nários da intendência provincial de Bozzolo, tal como no-lo descreve o seu chefe,
celarias vianenses,o horário de trabalho ia das 9 às 12 e das 15 às 18, duranteseis Luigi Berti, num relatório datado de 1787: <<Todosos funcionários chegam [ao ser-
dias por semana, mas a sua observância ia perdendo rigidez à medida que se subia viço] de manhã. .. o mais tardar às oito horas. .. ali permanecem até às duas da tarde,
na escala hierárquica. Sete horas era quanto durava a permanência no serviço pre regressam às cinco e ficam até à meia-noite...>>; na sua opinião, eram todos <<capa'
zes e correctos e instruídos. A sua conduta é exemplar, não forçada, mas de índole
vista nas instruções para o Magistrado camarário milanês após a reforma de 1771
(C. Mozzarelli, 1981, p. 456). Na realidade, o que contava, também aos olhos dos e carácter.. . Se têm qualquer folga em dias de festa, aproveitam para dar um passeio
governos mais exigentes, não era tanto a regularidade da prestação de trabalho, mas juntos, afastam-sedos ociososdo país e das pândegase divertem-secom a sua pre'
a disponibilidade para o desempenhoimediato e total das tarefas atribuídas.O pró- sença no serviço, associando-se para tratar de assuntos com o seu Intendente>>(C. Capra,
prio José ll que, como vimos, não queria que o trabalho fosse medido <memem 1984, p. 524). Mas não faltavam as provas de uma realidade muito menos heróica,
horas nem em dias nem cm páginas», admitia também <<queo descanso se sente a mais próxima daquele <<ideal burocrático, tão típico da Áustria que conhecemos>>,

273
272
feito não tanto <(davontade iluminista de renovar o Estado», mas antes <<deum sis çavam a suscitardenúnciase movimentosde intolerância,que se irão tornar depois
tema de desleixo rigoroso, que era simultaneamente o respeito escrupuloso e pru mais frequentes na época revolucionária e napoleónica. Contra a arrogância e a cor-
denteda lei... e o imobilismo indolente avessoa toda e qualquer refonna ou cona rupção dos comeis, contra <<aqueletom de mistério e de intriga que reina nos servi-
tituição efectivas>>(C. Margis, 1976, p. 30). O Hera Á.aspas de Joseph Richter (1787) ços mais essenciais ao bem-estar e à tranquilidade dos cidadãop>, se bateu em l /õv
encontra o seu pequeno paraíso num departamento governamental onde ninguém se com grande vigor, entre outros, Jacques Peuchet (cfr. J. Thuillier: 1987, pp. 53 .e segs.).
mata de cansaço: <<Nãosc viam à sua volta senão rostos amigáveis e alegres; os Mas leiamos este texto coevo de Pietro Verri contra <<odespotismo ministerial>>ins-
senhoresseus colegas, em vez de trabalharem, formavam um círculo, cheiravam rapé, tituído por Joséll
contavam uns aos outros as novidades citadinas ou então jogavam piquete. Muitas
vezes não se viam os superiores durante semanase, quando o dia estava bonito, a E certo que os ministros se degradaram, que o cargo se tornou precário e incerto,
chancelaria em peso ia jogar pauzitos.>>
A dada altura, Kaspar resolve trabalham-
com que todos, quando recebem o vencimento, temem que possa ser pela.última vez, e que
afinco: pasmo dos colegas <<enão tinham passado duas horas que meia cidade não olham bem para a fisionomia dos presidentes por um minuto antes de manifestarem a
soubessejá do milagre: a chancelaria tinha um empregado que trabalhav»> (J. Richter, sua opinião, a fim de não lhes desagradarem,porque deles depende o destino de cada
1987, PP. 196-198). mas ninguém fica comprometido porque felizmente saem os novos regulamentos,
Tanto quanto posso afirmar, este é um dos pouquíssimos romances setecentistas ninguém aperta no fundo do seu coração a glória e a felicidade do vosso reinado, cada
que tem como protagonista um funcionário público, uma vez que o burocrata não se um trabalha apenaso suficiente para continuar a ser pago. . . Todos os documentos são
tornara ainda uma personagemliterária; não existe no Século das Luzes o equiva- numerados sequencialmente, para não se dispensarem;todas as propostas são escritas
e enviadas à censura. Mas as propostas não são sinceras, nem tão pouco os despachos;
lente dos emp/oyésde Balzac ou dos folias-de-culr de Courteline, do Bancbano, de tudo é servilmente submetido e ninguém ousa manifestar uma opinião ingénua, depen-
Grillparzer,ou do Akakij Akakievic, de Gogol, paranão falar dos nossosMonsü dendo tudo do despotismo sem limites dos vossos presidente.. . A organização de .um
Travetou Demetrio Pianelli, ou ainda mais adiantede Von Trotta, de Roth. e do ministério é. sem dúvida, um bem, mas é um bem secundário, sendo o primeiro a boa
chefe de repartição Tuzzi de Musil. Para reconstituirmos alguns elementos daquela vontade, a rectidão e o esclarecimento dos ministros, cujas propriedades aspiram, sem
<<antropologiaadministrativa>>, daquele <<burocratavivido>> de que Guy Thuillier nos dúvida, a uma plena independência nas opiniões (Z)íá/ogo entre o imperador /osé // e
forneceu esboços sugestivos para a França oitocentista, convém debruçarmo-nos mais ü/rz.Ü/óso$o,in P. Verti, 1854, pp. 74-75 do Apêndice).
sobre as memórias do que sobre descrições caricaturais como a do .já citado Sébastien
Mercier (cfr. G. Thuillier, 1987, pp. 39-52). Para o século xviu, não existe nada tão Transpareceaqui o ideal alternativo, que Verri tinha em comum (feitas as devi-
minucioso e cativante como os diários de Samuel Pepys e de John Evelyn, mas não das distinções) com os fisiocratas e com Turgot, e não só com a opinião ínO' em
faltam as biografias de funcionários ou ex-funcionários, como a já mencionada de Inglaterra, do funcionário como membro e representante da classe dirigente <<natu-
Tom Paine, ou os Solzve/zfrsde Jacob Nicolas Moreau, conselheiro da Corte dos con ral» de um país, a dos proprietários de terras, a única movida por um amor desinte-
des da Provençaa partir de 1764 e avocaf de /!/za/zcea partir de 1759, ou a ressado pela pátria e a dispor simultaneamente da educação e das luzes necessárias
Á robiograp/zfe de Ernst Ferdinand Klein, expoente máximo da burocracia prussiana, para colaborar com o governo do país: <(Estacamada-- escreveraPietro Verri em
ou as recordaçõessobre a Educação Z)frígida às Funçõe.çe Cargos Áfravés das /l/edlrações sopre a eco/zo/níapolúíca não sendo obrigada a pensar na alimenta-
/)aixões 2 le a e/a Conduzem,de Francesco Mana Gianni, protagonista de uma ful- ção e nas comodidades que já possui, será o local onde se irão buscar os jovens mais
gurante ascensão<<daburocracia à política>>na Toscana de Pedro Leopoldo (F. Diaz, bem-educadospara serem magistrados, homens de letras, capitães, Jovens a quem
1966). Uma filha do funcionário austríaco Johann Georg Obermayer deixou-nos como não faltaram os meios para serem educados e aos quais não é necessãno remunerar
exemplo um perfil vivo dos estudos, da carreira e do estilo de vida do pai, desde o o serviço público pelo preço devido a quem só vive do seu ordenado>> (P. Verti, 1964,
seu primeiro encontro memorável com Kaunitz, quc o leva a decidir ingressarna PP. 208-209). Esta visão nobre da administração pública, que encontramosem parte
Chancelaria da Corte e do Estado, à aquisição da qualificação de <<oficialmaioP>, concretizada nosjuízes de paz inglesese nos l,a/zdrdíe prussianose que inspirou tam-
que Ihe confere uma nova dignidade social e Ihe permite alcançaruma existência bém a criação das assembleias provinciais francesas em 1787, destinava-se a põr
com todas as comodidades e requintes intelectuais. <(Meu pai adorava o imperador termo ao ancíelz régíme onde tomara corpo, bem como à outra visão, rousseauniana,
José como um Deus e compartilhava de quase todas as opiniões livres daquela época>>, dos magistrados como expressão imediata da soberania popular, espécie dc Cincinatos
recordaa suabiógrafa (E. von Weckbecker, 1929,p. 39), que desconfiafortemente prontos a trocar a pena pelo arado ou pela espada em qualquer momento. Seria dema-
das causasda morte súbita do incorruptível Obermayer, detestadopelos colegas do siado longo intenogarmo-nos aqui sobre os motivos desta derrota histórica, que poi
serviço aos quais descobria, frequentemente, os pontos fracos. certo não se limitarão à grave subvalorização de competências técnico-administrati-
vas implícita em tais concepções. Convirá, pelo contrário, concluir esta resenha com
7. O formalismo, o apego insensato à roa/íne, o culto dos regulamentos e da pape- uma chamadageral de atençãopara o que de positivo a presençae a .obrados fun-
lada, o servilismo em relação aos superiores, a altivez em relação aos subalternos e cionários trouxeram não só'à execução das tarefas superiormente atribuídas luas à
ao público, em suma, os aspectos negativos da burocracia de todas as épocas come- idealização e à planificação das reformas.

274 275
Cabe recordar, em primeiro lugar, quc sc os pA//osop/zesse organizaram em França tornou possível mais tarde a forte afia-maçãodo liberalismo no Sudoeste da Alemanha>>
como um <<partido>>estranho e fundamentalmente hostil ao aparelho monárquico, nos (H. Liebel, 1965, p. 12). A ideia de H. Liebel deixa sem dúvida transpareceruma
paísesde eleição do absolutismo iluminado, a monarquia austríaca, a Espanha dos defesa <<antitirânicm>;mas também alguns estudos (como o de K. Gerteis, 1983)
Bourbons, os Estados alemães e italianos. bastante diferentes foram os destinos e as salientaram a ampla difusão de atitudes protoliberais nos escalõesda burocracia dos
opções dos intelectuais, que encontramos em grande número entre os colaboradores Estados alemães do Sudoeste. No que se refere à monarquia austríaca, é evidente
dos príncipes. Temos na Alemanha, entre outros, Kant, Goethe, Herdar e Wicland; que, nos últimos vinte anos do século, com a concessão da liberdade de .imprensa em
na Austria, Martini e Sonnenfels; na ltália, Verri, Beccaria, Galiani, Filangeri, Galante; 1781 por José 11,desenvolveu-se rapidamente um movimento de opinião, integrado
em Espanha, Campomanes, Olavide, Jovellanos; e, se as suas relações com os sobe pela facção mais avançadada burocracia, que <wenceraos limites do despotismo ilu-
ranos e com os seus principais ministros nem sempre foram idílicas (como vimos no minado em cujo seio se desenvolvera»e que <<começava
a contestaros postulados
caso de Pietro Verri, ou no de Goethe, que conclui os seus dez anos de experiência fundamentais do privilégio aristocrático, do cristianismo e da própria monarquia abso-
de conselheiro definindo <<quemquer que ocupe o seu tempo com os assuntos admi- luta>>(E. Wangennann, 1969,p. 12). O próprio estudioso a quem pertencemtais afir-
nistrativos sem ser ele próprio o soberano... é um filisteu, ou um celerado, ou uln mações reconstituiu cuidadosamente a carreira e as ideias de um expoente típico.deste
louco»), não é menos verdade que, durante uma parte do percurso, eles deram o seu movimento. Gottfried van Swieten, filho do célebre médico e conselheiro de Mana
contributo para a criação dc uma sociedademais civil e maisjusta. Mas a pesquisa Teresa, Gerard: protegido do chanceler Kaunitz, de posições deístas no campo reli-
histórica vai alargando cada vez mais a atenção, desde estas personagensfamosas gioso e constitucionalistas no campo político, Gottfried foi nomeado cm 1781 presi-
pelassuasobras literárias e filosóficas, aos magistrados,aos administradorese aos dente da Comissão áulica dos estudos e da censura; e em diversos casos conseguiu,
técnicos cujos textos se debruçavam sobre questões concretas e não se destinavam com a ajuda de colegas, fazer aprovar medidas progressistas e mais <(liberais>>do que
ao grande público, ou aos funcionários e servidores anónimos cujas preparação, acti- asque o imperador teria pretendido, por exemplo, no que respeita à extensãoe a qua-
vidade e orientação eram co/zdí//o sí/ze guc{ /zon para a realização dos programas de lidade do ensino universitário, que para José ll deveria <<servirexclusivamente para
renovação. a formação dos funcionários do Estado>>
(E. Wangermann, 1978, pp.. 23 e segs.).
A glorificação, tradicional na antiga historiografia alemã, da burocracia prussiana Se quiséssemosprosseguir esta exemplificação, ela seria infindável ao estende-
como veículo de valores universais e da concepção ética do Estado, contrapõe-se no la, como se impunha, aos Estados italianos e ibéricos, à Rússia, aos países escandi-
segundo pós-guerra o rumo tomado por Hans Rosenberg, que sublinhou a sua defesa navos. mas também aos tenitórios europeus menos tocados pelo despotismo iluminado,
dos interessesde classe e a luta vitoriosa empreendidapor ela com a monarquia, em primeiro lugar a Françae a Inglaterra.A paráboladelineadacom enormeeficá-
entre os séculos xvlll e xlX, a fim de impor uma <<transformaçãoformal da autocra- cia por Waltraud Heindl, no seu estudo l-ecentesobre a burocracia austríaca de 1780
cia monárquica num sistema de autoritarismo burocrato-aristocrático» (H. Rosenberg, a 1848, de uma força que, até ao auge da Revolução Francesa e mesmo depois.dela,
1958, p. 173). Mas a unilateralidade deste perfil, apesar de fecunda em resultados, actuou em sentido dinâmico, e só depois se transformou num factor de imobilismo
foi demonstrada por estudos recentes, como os de Mõller, Hellmuth e Tortarolo, que político e social, pode ser aplicada, /l?!ralis mula/vais, a grande parte do velho con-
realçaram a amplitude dos interesses intelectuais e a verdadeira vocação reformadora tinente. A habitual identificação da mentalidade burocrática com uma atitude miso-
de uma boa parte desta classe. Resulta, deste modo, por exemplo, que de entre os neísta e conservadora só é válida naquela época de transição do <<oficial>>
antigo para
autores dos artigos publicados na <<Berlinische Monatschrift>>, o mais importante o funcionário modernoque foi o Séculodas Luzes.
periódico iluminista berlinense, 20qoeram funcionários públicos e outros 26,7qüpro
fessores de escolas ou de universidades (H. Móller, 1974, p. 252); segundo o cálculo
de um observador contemporâneo, ] 38 dos 172 letrados que trabalhavam na capital
prussiana, mas não tinham lá nascido, ocupavam cargos públicos (E. Tortarolo, 1989,
p. 273); e a <'forte e, com frequência, amarga vontade de reforma, comum à geração
dos jovens funcionários>>foi, aliás, ilustrada por Tortarolo nos trabalhos preparató
rios para o Á//geme//zes Z,andret/zf de 1794 (íbfd., 1989, p. 217 e passam).
Também no que se refere aos Estados alemães,como escreveCharles W. Ingrao,
<<nasúltimas duas décadas,os historiadores passarama valorizar o papel da buro-
cracia como instrumento de progressivas inovações>>
(Ch. W. Tngrao,1987, p. 12).
A definição de <(burocraciailuminada>>
foi propostapor Helen Liebel, em oposição
à atenção,exclusivamente virada para o passadode muitos estudiosos,em relação às
orientações e directivas dos soberanos supostamente <<iluminados>>:no caso por ela
analisado, o de Baden, <<osburocratas acabaram por conseguir impor uma espécie de
monarquia temperada por margraviado e, neste sentido, obtiveram uma vitória que

276


CAPÍTULOIX

lt
OSACERDOTE
por Dominique Juba
Todos os seus desejos tendiam para a felicidade de ser pároco: empenhava-se bons
tanlementeem adquirir os talentos e as virtudes necessáriasa este alto cargo. <(Não
conheço na terra funções que sejam mais dignas de um homem afi!-mava frequente-
mente com entusiasmo -- do que as de pároco. Ensinar os seus irmãos, socorrê-los nas
suas aflições, consola-los quando sof!'em, encorajamas suas virtudes, ensinar-lhes o
bom uso dos bens, facilitar-lhes o caminho na vida, afastar deles o horror da tumba e
dar-lhes como companhia, no momento da morte, a doce esperança; eis as tarefas de
um bom pároco.>'Era esta a opinião que o senhor de Sernin tinha da sua missão. Que
felicidade tirariam da sua escolha os ministros que imaginassem assim as suastarefasl
É à administração dos chefes das paróquias que são confiadas a conduta e a paz das
gentes, e apenasdeles depende a felicidade no seio da família. As leis podem conter
só os males declarados e manter a ordem externa; mas unicamente os pastores Ganhe
cem a ordem interna cujos pot menores infinitos escapam às leis [...]. Muito simples-
mente, um bom pároco é a imagem menos imperfeita de um Deus de paz e miseri-
córdia

O tema do bom pastor não é, por certo, novidade no século xvllt. Todavia, desde
os autores espirituais aos filósofos, ele volta a dominar, acentuando mais a função sacia/
que Ihe é atribuída através da união mística ao sacrifício de Crista. Terapeuta das almas,
Teotimo. o bom sacerdotede Voltaire, é antesde mais um preceptor de moral, preo-
cupado com a prosperidade e a ordem pública, encarregado de conservar as virtudes e
a boa conduta dos seusfiéis. Por seu lado, o vigário saboiano de mean-JacquesRousseau
concentra-se exclusivamente nos <<dogmasverdadeiramente úteiu> e dirige-se ao cora-
ção dos fiéis. Para ele, não se trata de <«penetrarnaqueles abismos metafísicos que não
têm princípio nem fim>>,nem de <'perder,para discutir a essênciadivina, o tempo tão
breve que nos é concedido para a honram->>; a verdadeira religião é aquela que <<agrada
a Deus e é útil aoshomens>>.
Distribuidor de beneficência,ministro da paz, o bom
pároco faz de pai dos fiéis ao conduzi-los à felicidade, trazendo-os,com as suas pré-
dicas e os seus conselhos, à moral sublime do Evangelho, liberta de todas as escórias
supersticiosasde que a história da Igreja a obstruiu. Poderíamos evocar também o
pároco de aldeia de Bernardin de Saint-Pierre ou a Arcádia de Auxerne, descrita por
Restif de [a Bretonne em Z,a víe de /non Pare e em ]b/o/zsfelr /VÍ(o/as. A leitura des
tes modelos filosóficos e literários deixa a impressão de que a acção do clero, inteira-
mente baseadanuma axiomática da utilidade social, corresponde agora à lógica de uma

[Pierre Picos de Cjoriviêre], l,e /iladê/e des padre/rrs a f préc;s de /a vie de À/. df' Ser/zln, cl/ré d'u/l
vitiage dalts te diocese de 'P$+, Par\s, \7'79.

281

/
Com efeito, vendo-os enaltecer uma ordem superior às coisas do século, todos os
construção da sociedade civil e política:. As crenças religiosas que os párocos têm de
outros se reflectem neles como num espelho e seguem o exemplo daqueles que devem
transmitir são menos importantes do que o resultado obtido pela sua administração das
imitar. Por este motivo, os clérigos destinados a dividir a sua vida com o Senhor
práticas no seio da paróquia e da hermenêutica das suas prédicas: na qualidade de edu- devem discip[inar de ta] modo a sua vida e a sua conduta que, no seu modo de ves-
cadores, conseguiram «civilizar>> um país inteiro. De resto, é a própria parábola que tir, no aspecto exterior, no caminhar solene e majestoso, nos discursos e em tudo o
Pierre de Cloriviêre nos pretende narrar na descrição da vida de M. de Sernin: o novo mais, não deixem transparecer senão seriedade, contenção e atitudes conformes à
padre foi enviado para uma paróquia situada numa floresta, a pelo menos sete léguas religião.4
do primeiro lugar habitado; avisado, entretanto, <<docarácter mau e feroz dos homens
que deveria guiar>>e considerandoo facto de os habitantes, na sua maioria caçadores 7.Obviamente'que não foi fácil a realização desta reforma do estado sacerdotal,
furtivos, <<completamente desligados da família, passarem dia e noite nos bosques>>, confiada aos bispos. Com efeito, o fluxo de admissões no clero não é determinado
contando com o apoio do intendente provincial, consegue arrancar os fiéis da profunda exclusivamente pelas inflexões do discurso teológico sobre a vocação sacerdotal, mas
miséria em que viviam. As espingardas são depositadas no presbitério, depois transfe também, e talvez mais, pelas condições objectivas que definem o acessoaos cargos
rodas para a brigada mais próxima da polícia e em sua substituição distribuem-se os eclesiásticos: tipologia e hierarquia económica dos benefícios, processosde trans-
utensílios, as sementes,o adubo e o gado: <<noperíodo de um ano, viu-se uma feita, missão, evolução demográfica do próprio grupo clerical. Nesta perspectiva, a extrema
tomada horrível pela sua esterilidade e pela crueldade dos homens que a habitavam, complexidade do sistema dos benefícios sobre o qual a acção dos pastores só pode
ser transformada num lugar fértil e risonho, povoado por homens álacres e virtuosos.>> ser limitada contribuiu em grande medida para a lenta radicação da Reforma cató-
Quanto ao mais, a doutrina do Senhor de Sernin é simples: «explicar aos homens tudo lica, para a redução e a diversificação do seu impacte, não só entre Estados, mas tam-
l aquilo de que podem ter necessidade na terra e para a eternidade: é esta repetia com bém entre dioceses. Mantiveram-se durante a época moderna as estruturas beneficiais
frequência a maneira de os manter na ordem e de os tornar felizes.>>3 Esta ficção lite- herdadas do período medieval. Encontramos, pelo menos, uma consequência dupla
rária, que insere o cura de aldeia na categoria dos funcionários da moral, encaiTega- na persistência desta multiplicidade de óbitos, presbitérios, capelanias, comunidades
dos, juntamente com os polícias, de garantir a paz nas aldeias e a concórdia nas famí- eclesiásticas.Em primeiro lugar, não favoreceuo aparecimentode um clero dedi-
lias, encontra correspondência em alguma realidade histórica? cado apenasàs suas funções, pois cuidar das almas não faz parte das condiçõescle-
ricais, e os beneficiários podem encontrar facilmente quem os substitua no cumpri-
mento das funções associadasao seu rendimento. Mas é sobretudo através do jogo
Os vínculos do sistema beneHicial
dos patrocínios, sejam eclesiásticos ou laicos, que se reforça o ascendentedas estra
tégias locais e familiares sobre as carreiras clericais, deixando uma margem exígua
Antes de respondermos a esta pergunta, convém interrogarmo-nos sobre o estatuto ao poder efectivo de controlo do bispo.
social do sacerdote na época moderna. Afigura-se natural para o historiador a tentação
de remontar aos decretos do Concílio de Trento, que eram animados por uma dupla Nestas condições, as curvas de ordenação são analisadas não tanto em termos de
preocupação: responder de forma dogmática à recusa de Lutero do sacramento da arde vocação sacerdotal, mas antes com base no número e nas características específicas
naçãoe reformar os abusos.O decreto dogmático de 15 de Julho de 1563 insiste no dos lugares vagos: a propensão para a sua ocupação será tanto mais elevada quanto
caráctersacrificial do sacerdócio:instituído por Crista, tem por missãoprincipal um mais estes forem considerados possessõesquase patrimoniais. Antes de interpretar-
HI duplo poder de co/zsagrízre absolver (é deliberadamenteomitido o poder de pregar mos as ondas ascendentes e descendentes, convém, por conseguinte, examinarmos
porque os reformadores procuram precisamente restringir o ministério à mera prédica). atentamente a estrutura do mercado dos benefícios de cada diocese, bem como a
Transmitida através de um autêntico sacramento (o que é constestado pela afirmação hierarquia dos rendimentoss. Por exemplo, não é relevante o facto de ter sido man-
luterana, segundo a qual as cerimónias de ordenação não passam de uma invenção tida na Bretanhatoda uma sociedadeclerical de capelanias,cujo apanágionão é
humana), a ordenação contribui para conferir à Igreja a sua estrutura /zierárq fica, dado necessariamentea riqueza, masque conservaestreitos laços com a nobrezalocal'
que os poderes espirituais vêm do alto, transmitidos por Cristo, e não por delegação
da comunidade. Simultaneamente, o sacerdote é superior ao laico, e o decreto de 17
de Setembro de 1562 é uma consequência lógica da afirmação doutrinária: + Seguimos aqui a tradução de A. Michel, ín C. J. Héfelé, //ís/oiro de.çcoricf/e.çaprék /es doc í/lze/z/s
orígí/zízux,t. X, l,es décrel dü concf/ede Trelzrela traduçãoitaliana foi efectuadaa partir da francesa,e
Nada institui melhor nem conduz de forma mais evidente à piedade e aos exerci por isso citamos também o original em alemão com vista a eventuais comparações: K. J. Hefele,
cites sagrados da vida do que o exemplo daqueles que se dedicaram ao santo ministério. Conci[ie/zgesc'/zicàre nac'/z íe//en, 9 vo]s. Friburgo, 1885-1890; /V.r. ]
5 Sobre este aspecto, cfr. D. Juba, Sys/ê/7ze bélzeglcía/ e/ rízrríêres ecc/ésíasfíqlies da/l.ç /a Frafzce
d'Attcien, Régime,Jourttéesd' études anllueites de !a Société Fran,çaisede Sociotogie, Univet'sité de Lilte l.
Sobre o tema do bom sacerdote,pode consultar-se P. Sabe, l,e «bo/z»prêfre dali /a /ifféraf re/ra/z /4-/5 /zíín /984, Editions du CNRS, Paria, 1986, pp. 79-197.
çízíse d'.A/7iadf.sde' Gata/e alí Génio du C/zrfsria/zi.ç/ne, Genebra-Lille, 195 1 6 Cfr. Ch. Berthelot du Chesnay, Z,esprêrre.ç .soca//ers en //a /e-.Bré'/acnea&lxv///' s/êc/e, Presses
Universitaires de Rennes11,Rennes, 1984
[Picot de Cloriviêre], ].e / toda/e des pa.ç/elrrs cit. pp. 25-26, 45, 52.

282 283
Do mesmo modo, surgem na Borgonha, no Franco Condado e no Auvergne inúme- das paróquias do Reino de Nápoles, concentram entre si, durante a primeira metade
ras capelanias de sacerdotes -- //zé/)aras,consortes, ja/ni/iaríreís, comunidades de do século xlx, 55% do rendimento anual bruto do conjunto dos presbitérios c com
sacerdotes /l//ell/s' --, mantendo fn Joio uma presença pletórica de sacerdotes nas- boa aproximação, podemos pensarque no século xvlll atingissem uma quota que ia
cidos na paróquia onde estão localizados esta é, de facto, a co/zdífla i//zé' qiííz /zon de 70%ua 75qo. Pela sua riqueza, estas formas representam um desafio constante à
para o acesso e encarregadosde resolver os assuntosda instituição. Todavia, na acção pastoral dos bispos. Como o nota em 1771, na sua relação ad /í/ zona,Domenico
França setecentista, esta estrutura originária vem provocar um forte declínio, em Rosso, bispo de Potenza, diocese de que as igrejas ieceptícias constituem 93,4%udo
parte devido à erosão secular dos rendimentosgeridos em comum e, em parte, à total dos presbitérios:
autoridade que os bispos conseguem impor gradualmente sobre ela. Deste modo, em
1726, contando com o apoio do Parlamento de Paras,Massillon, bispo de Clermont, Não resta ao bispo nenhum benefício da livre comparação, com o qual possa pre
obriga todos os futuros sacerdotes/l//eu/s a exercerem, durante um período de pelo miar os sacerdotes merecedores;donde resulta que os clérigos, mal chegam a sacer-
menos três anos, as funções de vigário na própria diocese, antes de poderem ser dotes, nada tendo a esperardo seu prelado, não estudam e dedicam-se ao ócio e aos
recebidos na comunidade paroquial de origem, c impõe às próprias comunidades o vícios. O segundo preconceito é que os presbitérios, tendo mais respeito pela carne e
reconhecimento, para todos os efeitos, da plena autoridade de um cura, não neces pe[o sangue [isto é, pe]o parentesco], do que pe]os méritos, dão frequentemente pre-
sariamenteescolhido no seu seio, que deve presidir a todas as assembleias:trata-se ferência aos menos dignos.''
de remediar o escândalo público que representam as discórdias provocadas por aque-
les sacerdotes <<ociosos>>
que limitam <«todaa sua actividade e todo o seu zelo à dis- Não seria difícil encontrar aspectos muito semelhantes em toda a zona da Espinha,
puta com os curas dos direitos inerentes à sua posição> e que se consideram <os que vai dos Pirenéus ao oceano Atlântico, dos paísesda coroa de Aragão à Galiza,
donos das igrejas de que são apenas ministros subordinados e subsidiários>>8.
Todavia, passandopela Velha Castelãe Leão: aqui, o papel essencial desenvolvido pelo patro
se em certos lugares este modelo se apresentajá como um arcaísmo nas dioceses cínio da paróquia ou da região, o grande número de capelanias de sangue, acessíveis
de Clermont, mais de metade (78) das 145 comunidades de sacerdotes.P//el{/s recen- unicamente aos membros da linhagem do fundador, a densidade da rede de paróquias
seadasem 1729 são representadasapenas pelo cura ou pelo cura acompanhado de <<capitulares>>,
cujo cuidado fn se/id l/n pertence ao corpo e que obtinha a maior parte
mais dois ./i//el!/s, constitui, ao invés, uma das armaduras mais sólidas da estrutura dos seus rendimentos da distribuição de assiduidade, derivados do património comum,
eclesiástica do Sul de ltália9. Nesta parte da península e, em particular, na vertente são outros tantos aspectosespecíficos que, juntos, contribuíram para a considerável
adriática dos Apeninos meridionais (Molise, Basilicata, Capitanata, Terra di Bari e limitação do poder de intervenção do bispo e a manutenção de um fluxo contínuo de
Otranto), onde chegou a representar entre metade a dois terços das paróquias, as clérigos que não aspiravam senãoao estado sacerdotali'. Para dar apenas um exem
igrejas receptícias evidenciam o ascendentedos sistemas familiares sobre a organi- plo, na diocese de Santiago de Compostela, as ordenações menores são mais nume-
zaçãoeclesiástica local. Com efeito, consideradaspelos juristas do Reino de Nápoles rosas do que as sacerdotais ao longo de todo o século Xvllliz. Foi mantida aqui uma
como património laico, as igrejas receptícias são associaçõesparticulares de prela concessãoabertaao estadoclerical que, entre a tradição laica e a sacerdotal,deixa
dos provenientes da mesma paróquia, que elegem entre si o próprio reitor (enquanto margem para diversos graus de clericalização: a Igreja define-se antes de mais com
o bispo se limita a verificar a idoneidade do candidato para a ocupação do cargo) e base na radicação num determinado lugar, uma vez que os habitantes entendem que,
desfrutam de um considerável conjunto de bens comuns, cuja gestão é, por sua vez, em troca do património eclesiástico constituído pelos seuspadres e pelasdízimas
confiada por um determinado período de tempo aos titulares das diversas quotas. recebidas anualmente a favor dos benefícios, os correspondentes serviços espirituais
As igrejasreceptícias,que representamno total pouco menosde um terço (29qü) devem ser asseguradospor clérigos estritamente inseridos nas redeslocais de paren-
tesco e de sociabilidade.

7 Preferimos deixar alguns termos em francês como /zzíPrzrrs,consortes, /amí/larlrés e sacerdotes.P/-


/ez,l/s,que se referem a realidades regionais, tornando impossível qualquer tradução, mesmo aproximada. Texto citado por De Rosa, op. ci/., p. 26.
ÍX. 7'. J CtT. C. Hermann, L'Eglise d' Espíigne sons !e palroltage ro)ai (1476- i834). Estai d'ecclésiolagie
8 Cfr. L. Welter, <<Lescommunautés de prêtres dans le diocese de Clermont au xvll' et xvlll' siêcle», po/irfqzle, Casa de Velásquez, Madrid, 1988, pp. 23, 260-61. Na diocese de Nápoles, durante o terceiro
Repita d'Histoire de t'EgEise de Frattce, XXXV (\ 949), pp. 5-35. quartel do século XVll1, 40% dos tonsurados têm uma idade compreendida entre 7 e 14 anos: o acesso ao
A análise das igrejas receptícias foi recentemente renovada por uma significativa bibliografia. Citamos, estado clerical não é, por isso, neste caso, uma escolha deliberada do sacerdócio, mas apenas um meio de
entre os principais artigos, G. De Rosa, <<Pertinenzeecclesiastiche e santità nella storia sociale e religiosa as famílias obterem um benefício, de resto, 59% dos tonsurados provenientes da cidade de Nápoles fica-
della Basilicatadel xvnt al xix secolo>>,
Ríc-erc'/ze
dl sforl(í focía/e e re/;glosa (1975), n." 7-8, pp. 7-68; -se pelas ordens menores (ao contrário dos tonsuiados das regiões rurais dos quais apenas dois terços che
À.. P\acaitüca, Chiesa e società net Settecettto }neridioltate: \leccltio e }tt,movoctel'o ne! quadro delta tegis- gam até subdiáconos), cfr. G. Garzya, <<Reclutamento e nobilità sociale nella secunda metà del Seicento>>,
!azíolte ri/OI'lllatrice, ibidem?t,
pp. \2\-89; M. Rosa,Retigiofle e società nei Meaogiorno tra Cinqtte e in G-GalassoC. Russo (direcçãode), Per /a i/orl(r se(ía/e e re/lgíosa de/ A/ezzogior/zo,vol. 1, Guida
Seice//ro, De Donato, Bari, 1976; V. De Vitiis, C/zíese /ícerz'ízíe e organ/zzaz/o/ze ecc/eiiasríca /ze/ J?exmo Nápoles,1980,pp. 241-306.
deite Due Sicilie da! Cancordatodet 18i8 a11'unità,in G. Ga\asse C. Russo (direcçãode), Per !a sto iz Cfr. B. Barreiro Malon, EI clero de la diócesis de Santiago:estructuray comportamientos(siglos
ría .çocía/ee re/igfo.çúz
de/ .A/ezzogío//zo
d'/ra/ía, vol. 11,Guida, Nápoles, 1982,pp. 349-473. XXVl-xlX>>,Ca/?v/)osfe//a/iua!,XXl11 ( 1988), pp. 469-508

284 285
Todos estes exemplos nos mostram até que ponto a figura do sacerdote setecen Como formar os sacerdotes: a instituição dos seminários
Listasc insere cm contextos sociais, económicos e culturais diversos, e como seria
ilusório quererreduzi-la a um modelo único. Convém inseri-la sempreno contexto Uma das principais funções atribuídas pelos cânones tridentinos foi a de garan-
da sociedade local ou regional, eclesiástica ou laica, analisando precisamentea tir uma melhor formação aos sacerdotes graças à instituição de seminários especiais.
incidência da hierarquia dos rendimentos beneficiais, dos tipos dominantes de patro- A vigésima terceira secçãodo cânone 18 previra que cada catedral, <<namedida clãs
cínio e dos processoscanónicos de acesso.E claro que as facilidades oferecidas em suas faculdades e segundo a amplitude da diocese>>,fosse obrigada a <<alimentare a
França pela possibilidade de recorrer a Romã ou ao vice-legado de Avinhão, para crescer na piedade, e a instruir na profissão e disciplina eclesiásticas>>
um determi-
obter um benefício ambicionado (<<precaução>>, logo após a morte do titular, para nado número de .jovens da cidade e da diocese, reunidos num colégio situado junto
reservar antecipadamente uma data nos registos da Datada, <aesignaçãoi/zjavore//z»), da sede episcopal. Com idade não inferior a doze anos, já em condições de <'ler e
permitem contornar os direitos dos colatores ordinários e são também elementos que escrever discretamento>, escolhidos principalmente de entre os filhos de pais pobres
facilitam a manutenção dentro da própria linhagem de um benefício considerado parte não são excluídos os ricos, mas <<alimentar-se-ão e estudarão a expensas suas>>
do património familiar, em virtude de uma transmissãode tio a sobrinho,de irmão os seminaristas devem dar mostras de uma <<bondadenatural>>e de «boas intenções>>,
a irmão ou de primo a primo. Em Espanha, o sistema de <<reservas>> apostólicas, que deixando antever que estarão dispostos a dedicar-se o resto da vida às funções ecle
conferia à Santa Sé o poder de efectuar as nomeações de um grande número de bene- suásticas.No colégio, os jovens, tonsurados no momento da admissão, envergam sem-
fícios durante oito mesesno ano, faz chegar ao núncio, que possui os plenos pode- pre o hábito clerical, e o seminário torna-se simultaneamente, concebido pelo Concílio,
res do legado pontifício com autoridade espiritual, um grande número de pedidos um instituto em que os estudantes, divididos em classes <eom base no número, na
análogos, provenientes de clérigos pouco inclinados a submeter-se às regras refor- idade e nos progressos realizados na disciplina eclesiástica>>,estudam <a gramática,
madorasque os prelados ordinários do lugar queriam impor. De igual modo, cabe o canto, o cálculo eclesiásticoe tudo aquilo que respeita às boas-letra»>,e se dedi-
ria perguntarmo-nos qual a verdadeira extensão do processo de concursos para os cam <'ao estudo da Sagrada Escritura, dos livros que tratam de assuntos eclesiásti-
presbitérios, que se efectua nos meses reservados à Santa Sé nos países ditos de obe- cos, das homilias dos santose de tudo o que se refere ao modo de ministrar os sacra
diência ou nos da Concordata germânica: calcula-se, por exemplo, para a ex-diocese mentos>>.instruindo-se sobre <<todasas cerimónias e usos da lgreja>>.Inspirado
de Toul que, entre 1750 e 1789, o concurso abrangesseapenas30 dos presbitérios directamente no modelo medieval do colégio universitário para bolseiros, colocado
sujeitos a este processo,enquanto o papa tem à sua disposição seis mesesnos três ao serviço da disciplina eclesiástica,o seminário, inteiramente sujeito à jurisdição do
bispadose oito na Lorena, o que só vem demonstrar que os beneficiários souberam bispo, deveria ser financiado por um contributo deduzido dos rendimentos de todos
aproveitar os recursos da resignação ínlavorem a fim de evitar a escolha do bispo'3. os benefícios da diocese, <e também pelos regulares de qualquer patrocínio ou isen-
O canonista Durand de Maillane, grande conhecedor desta matéria, considera até que tos>>,e por todos os outros rendimentos eclesiásticos, com a possibilidade de o bispo
<<asdemissões puras e simples>>,entregues pelos beneficiários nas mãos do seu cola- local, se o considerassenecessário,recorrer ao braço secular <<paraobrigar ao paga-
tor ordinário ou do bispo, não sejam, na maior parte dos casos, senão uma espécie mento da dita parte e porção de contributo>>.Mas semelhantevontade está longe de
de resignação em favor secreta graças à complacência de sucessivos colatores, ainda corresponder à realidade, bem como a aplicação respeitante à definição de um modelo
que realizada livremente e sem simonia, com a intenção do destituinte em proveito institucional. Que devemos entender por seminário no século xvlll? A resposta varia
desta ou daquela pessoa por ele indicada>>'4.A referência feita a estas regras de fun muito consoante os Estados católicos e as dioceses, e podemos apenas tentar indicar
cionamento do sistema beneficial não visa negar o impacte da Reforma, mas subli- alguns aspectos essenciais deste modelo escolástico que assegura a instrução do
nhar os limites e os vínculos em que ele se inscreve. O facto de se registar uma den- sacerdote.
sidade clerical elevada ou baixa numa determinadaregião não significa a priori que São muitas as razões relevantes que explicam o relativo insucesso do modelo de
ela seja mais ou menos crês/ã do que a vizinha aliás, segundo que parâmetros pode seminário tridentino. A primeira é de ordem econónica e consiste na impossibilidade
ríamos medir a sua vitalidade? --, mas demonstra simplesmente que estas estruturas de aplicar um imposto geral sobre os benefícios sobretudo num período de crise
de longa duração,já desaparecidasnoutros locais, se conservaramdurante mais dos rendimentos fundiários --, ou na resistência levantada a qualquer união entre prio-
temooi5
P rados ou abadias,que impediram que se constituísse uma sólida base financeira para
l estas instituições, excepto naqueles casos raros em que os próprios prelados Ihe con-
l
11 sagraramuma parte significativa da sua fortuna. Os capítulos das catedrais deram
Cfr. J. M. Ory, «La carriêre ecclesiastiquedanale diocesede Toul, 1750-1790>>,
A/z/7a/es
de /'E'sf, prova de uma unanimidade perfeita, ao recusarem-sea contribuir para a construção
V série, XXXVI (1984), pp. 18-49. dos seminários,invocandocomo pretextoo facto de manteremjá um conservatório
i4Dul'and de Maillane, Díí'llanricllre de draft cano/iiqlíe ef de praflqire béiz(gií'ía/e, t. 11,Lyon, 1776
de meninos de coro; quando mais tarde, por mero acaso, o bispo consegue impor a
(terceira edição), p. 276.
5 Sobre o peso das estratégias familiares no prodigioso aumento do número de clérigos no séc. xvm, sua vontade, os cónegos da catedral desenvolveram todos os esforços para obriga
em particular na zona mediterrânica, ler o sugestivo artigo de P. Stella, Sfrafegiejamíllari e ce/abafo sacro rem os seminaristasa assistir a todas as funçõesdo coro: assim sucedeem Cádis,
ílz /fa/fa frrz /ÓOOe /700, <<Sa]esianum>>,
41 (]979), pp. 73-109. Córdova, Granada, Málaga ou Múrcia. Em segundo lugar, nem todos os bispos, por

286 287
possam aceitar e, <<destemodo, retirar-se sem ofensa por parte do corpo, sem con-
seu lado, estão plenamente convencidos da utilidade dos seminários tridentinos; as
fusão por parte do mundo>>t8.
De igual modo, a escolha efectuadapor Vigente de
suas preferências vão para o modelo expressivo do colégio universitário para bol-
Paulo de impor aos lazaristas alguns votos simples, entre os quais o de pobreza,
seiros e pensam que esta via é suficiente para assegurar a formação do clero: assim
encontra justificação na vontade de conservar as energias missionárias no seio de
seexplica melhor por que motivo sedesimportantes como Salamanca,Sevilha, Toledo
um modo de vida apostólico: a experiência mostrara-lhes efectivamente como era
ou Santiago de Compostela não tiveram um seminário antes de finais do século XVll
grande a tentação, para muitos dos seus companheiros, de receber um benefício
e até do século seguinte''. Neste aspecto,é também significativa a decisãotomada
depois de terem passadoalguns anos na congregação, e a escolha é finalmente homo-
pelo Concílio da província eclesiástica de Cambrai, reunido em Mons em 1586, de
logada em 1655, pela bula Ex Co/?zmlssa
/Vobls. Com o florescimento, durante o
abrir junto da Universidade de Donasum seminário «provincial>, que acolheria, ape- século xvlll, das congregações sacerdotais, que se propuseram a missão específica
nas para a realização dos estudos de teologia, vinte bolseiros provenientes da arqui-
de melhorar a formaçãodo sacerdote,é possível vislumbrar a originalidade do caso
diocese e doze de cada diocese sufragânea: o financiamento seria assegurado, segundo
francês em relação às congregações espanholas (pensemos nos Pios Operários espa'
os auspícios dos padres conciliares, por um imposto aplicado a cada benefício. Para
nhóis fundados por Francisco Ferver, no Reino de Aragão, por alturas de 1720y9 ou
terminar. a extensão da rede de escolas da Companhia de Jesus que, a partir da
italianas (como os missionários oblatos de Rho, fundados em 1721):', que se man-
segunda Congregação geral de 1565, se recusou deliberadamente a assumir a res- têm maioritariamente diocesanas: são dotadas de uma estrutura forte, reunidas sob
ponsabilidade, considerando algumas excepções, dos seminários propostos pelos bis-
a direcção de um superior geral muito embora estejam sujeitas aos bispos em maté-
pos veio contrabalançar em grande medida os esforços dos prelados que, uns mais ria de exercício e de uso das funções eclesiásticas, não dependendo dele no que se
do que outros, reconheceramo êxito da fórmula. Os seminários <(tridentinos>>
esta-
refere ao governo e ao regulamento. Daí, a possibilidade de uniformização das prá-
vam, deste modo, apenasem condições, devido aos seus recursos muito limitados,
ticas, cada vez mais acentuadapela circulação dos homens entre as sedesde uma
de acolher uma parte mínima do futuro clero diocesano, atendendo ao facto de serem
mesma família espiritual
muito poucas as bolsas concedidas.
Ocorreram durante o século xvll diversas mudançasde relevo que vieram modi- Nesta perspectiva, os esforços das congregações alcançam, ao fim de muitas hesi-
ficar consideravelmentea fisionomia institucional dos seminários.Antes de mais, e tações, um modelo de formação sacerdotal que visa acolher, durante um determinado
período de tempo antes de cada ordenação, os aspirantesa sacerdotes,a fim de os
particularmente em Fiança, foi fundada uma série de congregaçõesseculares, tendo
prepararem para a necessáriainteriorização do seu estado, através da explicação de
em vista restaurar a dignidade eminente da condição sacerdotal, degradada pelo vício
toda uma série de exercícios: método e repetição das orações, <<exames>> pessoaise
do álcool e pela libertinagem dos beneficiários. Impulsionados pelo seu fundador -- o
colectivos, conferênciasespirituais, leituras, confissões. A tónica incide sobretudo na
Cardealde Bérulle, pelo Oratório, ou Jean-JacquesOlier, pela Companhiade São observância dos regulamentos, destinada a conseguir, através de um horário rigoroso
Sulpício, por exemplo --, deram vida a uma espiritualidade sacerdotal que coloca a
tónica na união mística do sacerdote ao sacrifício de JesusCrista, <(mártir e vítima que ocupa cada seminaristade manhã à noite, uma ligação íntima a Cristo sacerdote.
A medidaque vão introduzindo nos seusdiscursos o tema da refonna pastoral, os
de Deus>>,que torna presente na Eucaristia. Sublinhando a santidade do estado sacer-
bispos vêem uma longa permanênciano seminário colmouma incorporação essencial
dotal, que exige a perfeição e a rotura necessáriacom o mundo, estas congregações
para que o clero adquira aquela regularidade de vida necessáriaao exemplo da sua
chamam a si a missão de assistir os bispos em todas as funções eclesiásticas que lhes
missão. Passam gradualmente da ideia de simples «retiros, para os futuros sacerdo-
são atribuídas (missões, prédicas, etc.), mas sobretudo <(instituir>>os sacerdotes, como
tes de cada organização,para a de uma permanênciaobrigatória no seminário durante
diz o projecto de fundação do Oratório francês, <<nouso da ciência que a escola e os
um período de tempo que pode variar mas também, e ao mesmo tempo, tende a pro-
livros não ensinam, nas virtudes estritamente eclesiásticas e no modo de exercer com
longar-se e a ser menosinterrompido por permanênciasna vida civil. As fórmulas
prudência, prontidão de espírito e eficiência as funções eclesiásticasnas quais cada
adoptadas em função dos recursos materiais e humanos permanecem, no entanto,
um tem por normacomo único mestree guia a suacapacidadee experiênciu>'' extremamente variadas
Simultaneamente, aquelas congregações constituíram-se com carácter voluntário, fora
dos sistemas de benefícios, dado que tanto os oblatos de Santo Ambrósio, fundados
Se nos limitarmos por agora ao caso francês que é, sem dúvida, um dos mais uni-
sob a orientação de Cárie Borromeo, bispo de Melão, como os oratorianos, fizeram
tários na Europa, em virtude da centralização das congregaçõesa que já aludimos, é
questão de nunca os receber <<nemdirecta, nem indirectamente>>, muito embora os
possível individualizar, desde o início do século xviii, diversos tipos de seminários
relativamente diferentes. Um primeiro caso é constituído pelo seminário que garante
iõ Cfr. F. Martín Hernandéz, Z,os .çe/nlnczríosespião/es. H/.gloria y pedagog/b, t. 1. /5ó3-/ 700, Ediciones
Siaueme. Salamanca, 1964; F. Martin Hernandéz--J. Martín Hernandéz, Z,os se/zzínar/osespaço/es en /a
is /bidé/7t, p. 118.
época de !a l11ustl'ación. Ettsayo de ttlla pedagogia eclesiástica ell e! sigla XVlll, Coítse\o Super\or de 9 Cfr. Martín Hernandéz--J.Martín Hernandéz,op. cír., PP.56-83
Investigaciones Científicas, Madrid, 1973 20Sobre os missionários oblatos de Rho, cfr. X. Toscani, <<Laletteratura del buon prete di Lombardia
' Projecto de criação da Congregação do Oratório de Jesus, 1610, publicada in Correspo/zdancedu
Beija prima metà del Settecento», /{r(/zfvío Sforico /o//lbardo, 102 (1976), PP- 158-195
Cardo/za/Píerre de Bé'ru//e, direcção de J. Dagens, t. 1, Pauis--Lovaina, 1937, p. 119
289
288
dadeiradivisão das funções entre os seminários-internatosque fornecem uma pre-
apenasa preparaçãopara as funções clericais. O futuro ordenando dirige-se para lá
paraçãoespiritual para a vida clerical e os colégios para externos que ministram um
depois de ter concluído noutro sítio (geralmente um colégio ou uma universidade)
ensino intelectual.
os estudos de teologia e ali permanece por um determinado tempo, estipulado pelo
Vamos encontrar a mesmadicotomia no segundo tipo de seminário: o internato
bispo antes de cada ordenação, quer para se impregnar do espírito e das virtudes ine-
rentes ao estado que escolheu, quer para ser instruído nas funções que Ihe serão con- onde vivem os jovens durante os estudos de filosofia ou de teologia, que têm lugar
fiadas: liturgia, prédica, administraçãode sacramentos,catecismo.Como escreve no exterior,junto do colégio ou na Universidadeda própria cidade.Esta fórmula
conheceu um desenvolvimento especial no final do século xvlt, de acordo com diversas
Jean-François de Montillet, bispo de Auch, em 1770, na Instrução pastoral que acém
modalidades. Por vezes, o seminário está associado ao ex-colégio, que anteriormente
panha a colectânea de estudos sinodais da diocese, os estudos efectuados neste tipo
de instituição não se debruçam sobre questões teológicas: pertencia a uma congregação: é, por exemplo, a situação dos seminários entregues à
Companhia de Jesus, todos abertos após a décima segunda congregação geral que,
Não é o momento para elas. Dá-se o caso de ter aprendido estas coisas antes de em 1682, a pedido de inúmeros bispos e do padre de la Chaize, confessor do rei, dei-
vir para aqui, mas agora é preciso aprender as das Escrituras, das regras sagradasda xara à prudência do geral a tarefa de fixar as condições de admissão nestes institu-
Igreja na administração dos sacramentos,em particular, a da penitência, das cerimó- tos: o desafio consiste em combater o avanço do jansenismo, considerado nefasto,
nias, das rubricas, do ritual, das constituições da diocese, sobretudo o estudo da grande no seio do clero francês. Outras vezes, o seminário é fundado na mesma altura em
ciência dos santose daquela que origina os santos: o mesmo será dizer da ciência emi- que a escola da cidade é confiada a uma congregação que assume o encargo das suas
nente que ensina a falar com Deus, a pregar e a meditar, o estudo da conduta dos cos instituições. Por vezes, os docentes de filosofia e de teologia encarregados do ensino
11 lumes, dos sentimentos,da linguagem, do aspectointerior e exterior de um sacerdote público podem ser completamente independentes dos directores dos seminários: é o
11
digno em todas as diversas condições em que a divina Providência nos pode colocar.:' caso em particular de Paris que é a cidade universitária mais importante para o ensino
da teologia. Os seminaristas dirigem-se ali duas vezes por dia para ouvir as lições
Na segunda metade do século xvlrl, os seminários de Cambrai, Le Maná ou Saint- de teologia ministradas na Sorbonne, ou no colégio de Navarra, antes de voltarem às
.Maio enquadram-se perfeitamente neste modelo. Na arquidiocese de Cambrai, onde respectivas comunidades mantidas por congregações sacerdotais (sulpícios, lazaris-
os candidatos às ordens, reunidos no castelo de Beuvrages nos arredores de Valenciennes, tas. oratorianos. sacerdotesda comunidade de Saint Nicolas du Chardonnet).
passam um período de tempo que varia entre sete mesese meio a um ano, 83,5qu Mesmo assim, é evidente que, durante o século xvln, o modelo escolástico tende
dos seminaristas têm entre vinte e dois e vinte e seis anos no momento da admissão; cada vez mais a investir na instituição do seminário por duas razões:por um lado,
têm por detrástrês (32,7%) ou quatro anos (49,3qn)passadosna Universidadede na diocese onde a rede de escolas é menos densa, os seminários episcopais devem
Donas(62,6qu), ou na de Lovaina, muito próximo (22,8qu), ou então junto dos jesuí- ministrar um ensino de filosofia e de teologia que não existe noutro lugar; por outro,
tas de Mons (9%)::. Os futuros sacerdotes da diocese de Le Maná, aos quais o bispo em virtude da violência dos conflitos teológicos gerados pela crise jansenista, mui-
impõe três anos de estudos teológicos, dividem-se igualmente entre os colégios dio- tos bispos pretendem manter sob sua vigilância directa o ensino prestado na sua
cesanos (Le Mans sobretudo e Domfront) e os institutos extradiocesanos (seminário cidade pelas congregaçõessuspeitas de heterodoxia: é o que sucede em Angers ou
de filosofia agregado à Universidade de Angers, colégios e comunidades clericais da em Nantes, onde as escolas são mantidas pelo Oratório. Por último, a expulsão dos
capital), mas a permanência no seminário da cidade episcopal tem frequentes vezes jesuítas acelera esta evolução para um modelo escolástico <<total>>,
dado que, com
lugar entre o ciclo de filosofia e o de teologiazs.Na diocese de Saint-Maio, até à relativa i:requência, as cadeiras de teologia existentes nas velhas escolas da Companhia
expulsãodos jesuítas do Reino de França (1762), a maior parte dos diáconosque, são eliminadas e o ensino vê-se transferido para o seminário episcopal: é o caso de
após a permanênciano seminário diocesano de Saint-Méon mantido pelos lazaristas, Aix-en-Provence, Cahors, Carcassonne,Le Puy, Pau ou Tolosa, para referir apenas
passou no exame de acessoao sacerdócio, estudou teologia no colégio secular dc alguns exemplos. Nos séculos xvll e Xvlll, vão aumentando cada vez mais os requi-
Dinau ou então nos dos jesuítas nas proximidades da diocese (na sua maior parte em sitos estritamente escolásticos exigidos aos candidatos ao sacerdócio. Ainda em 1668,
Rennes, mas também em Vannesy'. Estamos, deste modo, em presença de uma ver- a assembleiageral da congregaçãoda Missão, referindo-se aos seminários, declarava
que cera preciso ter em conta, para a escolha dos autores que são ensinados, a capa'
l Recueit des statu,tssynodaux du diocese d'Auch. Instruction pastel'ate de Monseignet,{rt'archevê- cidade dos seminaristas,o período de tempo que podem permanecer no seminário, a
qae d'.Auc/zsur /'orar face/"doía/, Tolosa, 1770, p. 42. Aqui, o período a passar no seminário previsto tem
a duração obrigatória de um ano e divide-se em quatro estadas de três meses antes de cada ordenação,
disponibilidade dos livros, a vontade do bispo e muitas outras circunstâncias idênti-
mas os clérigos terão de demonstrar que cumpriram três anos de estudos de teologia. cas: todavia, em alguns dos nossos seminários, seria possível ensinar autores mais
G. t)eregnaucouü, De Fénelo l à !a Révolütion. Le clergé patoissial datasí'archevêclté de Catnbrai, importantes do que os actualmente estudados>>25. Naquela altura, isto significava
PressesUniversitaires de Lille, Lille, 1991, pp. 173-181, 204.
!3A. Poyer, Z)evenir czíré da/zs /e diocese du .A/ansau xw//' sido/e, tese de doutoramento do 111ciclo,
15Avia et résolütion de t'Assettlblée géltérale {etlLteen t'anltée 1668 tottchant !es sémittaires, in Recteeit
dactilografada, Université de Rennes 11, 1986, p. 65.
:4Ch. Berthelot du Chesnay, Z,esprê/res soca/lerá e/l J7alí/e-.Bre/czgne
au xv/.r/' síêc/e, Presses des prillcipales circlllaires des supériettrsgénérattxde !a Coll8régation de !a }llission, t. 1, Par\s, \ 8'7'7,
Universitailes de Rennes 11, Rennes, 1984, p. 145. P. 90

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290
admitir que o ensino da teologia nos seminários lazaristas não se encontrava entre grande número de alunos, escolher as melhores mentes, as mais adaptadas aos semi-
os mais desenvolvidose que a sugestãoessencial.visa a aprendizagemdos exercí- nários maiores>>z8.
Pelo contrário, foi sem dúvida São Vicente de Paulo que escreveu
cios espirituais e da prática das funções eclesiásticas. Parece que, no século XVm, a crítica mais vigorosa à ordem do Concílio de Trento que, todavia, tencionares-
os exames que precedem a ordenação foram sempre mais rigorosos. Em Limoges, peitar como <<derivada do Espírito Santo>>:
todos os seminaristas são interrogados três vezes por ano antes da data predeter-
minada para as ordenações (Natal, Quaresma, Pentecostes): o exame é efectuado De qualquer modo, a experiência demonstra que, pela maneira como é levada a
por dois ou três directores do seminário, na presençados grandesvigários do bispo, efeito. e tendo em conta a idade dos seminaristas, não funciona nem em ltália nem em
e incide sobre<<tratados
de escolásticae de moral que estudarame sobre as ordens trança, dado que uns desistem antes de tempo, outros não revelam a menor inclina-
a que aspiram>>,e os candidatos têm, <<porvezes, de responder a perguntas sobre ção para o estado eclesiástico, outros ainda retiram-se para as comunidades e outros
seis ou sete tratados>>.O superior tem a missão de impedir que os seminaristas que fogem dos lugares aos quais estão ligados por uma obrigação que deriva da sua pro-
moção e preferem procurar a sua sorte noutros locais. Contam-se quatro casos no reina
não o satisfaçamnão se apresentema exame: o seu director espiritual <<tema mis- em Bordéus, Reims, Rouen e uma vez um em Angers. Nenhuma daquelas dioceses
são de fazer engolir suavemente a pílula: de modo a que tudo decorra sem escân obtinha resultados positivos: e temo que o mesmo seja válido para a ltália, se excluir-
dalo>>zó.No final do século, algumas ordens diocesanas indicam os programas das mos Milão e Romã.29
questõesde dogma e de moral sobre as quais serão interrogados, todos os anos, os
aspirantes à ordenação. Mas, para além destas denominações gerais, seria neces
As congregações estritamente sacerdotais evidenciavam, por conseguinte, uma
bário podermos estabelecer com precisão uma escala de razões que determinam a certa relutância em assumir a gestão de seminários menores: <<Nãoé nem a nossa
aceitação ou a reprovação dos candidatos por parte dos examinadores (o mesmo é vocação nem a nossa vontade>>,explica, por exemplo, o senhor Tronson, em 1692,
também válido para o exame de admissão ao seminário, quando existe). No que se
a propósitodo desejomanifestadopelo bispo de Autun de ver a Companhiade São
refere à diocese de Saint-Maio, cujos registos dos exames nos chegaram ainda, a
Sulpício dirigir um seminário menorlo. Com efeito, no século Xvll, as vocações sacer-
maior parte das reprovações parece motivada por conhecimentos insuficientes: um dotais são mais cultivadas nas congregações marianas e outras associaçõesrelógio
subdiácono de 27 anos, interrogado sobre o Génesis, invocara memória fraca para
l sas, que reúnem em intervalos regulares os alunos mais devotos dos colégios urba-
justificar as respostas incompletas, precisando que <<aindaque tivesse passadoseis nos, a fim de se aplicarem mais aos exercícios espirituais. E oportuno referir que
anos a estuda-lo, a sua memória não estaria em condições de Ihe ser mais útil, mas muitos dos seminários menores daquela época são mais internatos escolásticos para
responde com brusquidão aos examinadores diocesanos, que o reprovam, dizendo
uma elite, para onde as classes dirigentes enviam os filhos destinados a uma presti-
que <<teriapermanecido subdiácono durante mais de doze anos, se não tivesse desen- giosa carreira eclesiástica:é o caso de Pontlevoy, Sorêze,Juilly, no início, ou Saint-
volvido esforçosmaiores>>. Ao invés, um outro é admitido não obstantea insu- Vincent de Senlis. Mas não tardou que, pela própria sociologia do público recebido,
ficiência das respostas,com a menção de que <<seficar no campo, sem ir a uma a vocação/?zulzdafza dos institutos tendessea prevalecer sobrea orientação clerical
escolaonde se possapreparar, não passaráde diácono>> 27.De resto, a maior parte inicial, e as lições de matériascultivadas por gosto sobre os exercíciosespirituais.
das reprovaçõesconcentra-sesobretudo na primeira tonsura ou nas ordenações Aliás, verifica-se uma evolução semelhante, na Ttália central e setentrional, nos semi-
menores, porque os examinadores preferem impedir que o clérigo comprometa <ms nários-colégios fundados pelos bispos no século xviii: recebendo, mediante paga-
ordens>>e querem evitar as admissões concedidas, segundo a expressão evangélica, mento, hóspedespertencentes à nobreza ou à burguesia, tendem a moldar o seu ensino
ad düriíiam cordas.
pelo dos semínarla /zobl/lum, como sucedeem Pistoia, Reggio Emitia ou Siena3'.No
Mas é talvez na transformaçãodos seminários <<menores>>entendidoscomo entanto,a partir dos anos80 do séculoxvH, surgeem trança um outro modelode
internatos para os rapazesque frequentam as aulas de humanidades, isto é, até aos
seminário menor para o qual se anuncia um futuro brilhante: é o dos clérigos pobres,
doze anos de idade que mais se nota a influência do modelo escolástico. No mantido pela caridade dos bispos e dos nobres solicitados. Partindo de Paris, onde
século xvn, as opiniões encontram-se ainda muito divididas quanto à oportunidade um diácono gascão,François de Chanciergues,criara uma dúzia de comunidades de
de cultivar a vocação sacerdotal desde a infância. O padre Charles Faure, superior
jovens alunos junto dos colégios, o movimento estende-se rapidamente à província.
geral dos canónicos regulares de Sainte-Geneviêve, vê nisso uma maneira de se opor
às paixões dos pais que, por norma, metem nos seminários maiores <<osmembros da
família de espírito mais carregadoe corpo mais desajeitado>>;
se, ao invés, forem !8Cfr. 'ç)êredu bAo\inet,Histoire deschaltoiltes régttliers de ]a Congrégationde Ft"andede t'all ]630
enviados <<rapazes
de mais tenra idade, com pouca ou nenhuma consciência do seu ./asq&í'e/l /'a/z /ó40, Bibliothêque Sainte-Geneviêve, ms. n." 612, f. 273
espírito e das suas capacidades>>,será possível <<como tempo, tendo à disposição um 9 Carta de Vicente de Paulo a Bernard Codoing, superior da casa da Missão em Romã, 13 de Maio
de 1644, Correspo/zdance
de S. VÍ/icem/de Pa&{/,t. 11,ed. P. Costa, Paras,1920,pp. 408-411
30Tronson, Cor/-esp0/7da/?ce cit., p. 162, carta ao Senhor La Vayer de Pressas, 14 de Dezembro de
:õL. Tronson, Cor/"esmo/zda/7ce,
t. 1, Paras,1904,p. 416: cartade ThomasBouguet,director do semi. 1692
nário Saint-Sulpice em Paria, 8 de Abril de 1695. 3i Cfr. C. Fantappiê, «lstituzioni ecclesiastiche e istruzione secondaria nela'ltalia moderna: i seminari-
!7Berthelot du Chesnay, op. ci/., p. 147. -collegi vescovili>>, Án/ía/f de//'/slf/ufo Sfaríco ifa/o-gp/'lní71zfco in 7'refiro, XV (1989). pp. 189-240

292 293
Trata-se concretamente, devido ao carácter gracioso dos estudos propostos -- o que como a melhor maneira de proteger os futuros servidores da Igreja da crescente
não sucede nos seminários maiores onde se paga --, de encorajar as vocações prove- maré de ataquesfilosóficos. É esta a raiz de um sistema que irá conhecer a sua
nientes de camadassociais mais modestas para a ocupação de cargos mais difíceis: plena expansão no século seguinte.
vicariatos ou presbitérios rurais com um rendimento modesto, cátedras de ensino, em
suma, lugares que os jovens provenientes dos estratos urbanos endinheirados não O modelo que esquematizámos para a França pode ser aplicado aos outros Estados
parecem muito entusiasmadosem ocupar. O seminário menor é, portanto, o instru- europeus?No casoda península italiana, não se ignora o impacte do modelo precoce
mento que permite dotar as regiões rurais de sacerdotes <<regularep>:em troca da sua instituído por Carlo Borromeo em Milão, o qual constitui um ponto de referência
bolsa (por vezes chamada /íía/lzm semínarí), os clérigos pobres procuram aceitar todos obrigatório para qualquerinstituição seminarística.Iniciando-se por uma semanade
os cargos que lhes são conferidos. O instituto tem por isso a missão de avaliar, assim exercícios espirituais, marcada todos os dias por manifestações de piedade que decor-
que possível, a vocação dos seminaristas, provenientes dos ambientes artesanaise rem na capela do seminário ou na catedral metropolitana, a vida dos seminaristas
camponeses,examinando <<osseustalentos, as suasdisposições e os motivos que os milaneses, que efectuam os estudos dentro da instituição arquiepiscopal, partindo dos
[evam a entrar para o estudo ec]esiástico, [...] impede-]os de o fazer contra a von- rudimentos gramaticais para alcançar as matérias estritamente eclesiásticas, está sujeita
tade de Deus quando não estejam preparados para ta], [. ..] arranca-]os à sua terra e a uma rigorosa vigilância por parte dos prefeitos, que informam regularmente o rei-
aos seus familiares, ao desejo de riquezas e dos prazeres seculares>>,
uma vez que, tor do estado dos pupilos: através de um sistema disciplinar que não deixa qualquer
como escreveHenri Arnauld, bispo de Angers, no regulamento promulgado em 1686 margem à iniciativa individual, e que tende a evitar todo o contacto inútil com o
para uma <«ociedadede alunos pobres, fundada na cidade de Angers, com o intuito exterior, procura inculcar-se um ideal de separaçãodo mundo de que o sacerdote
de os formar no espírito eclesiástico, segundo a vontade do Concílio de Trento e o conservara, durante as suas funções, um sinal indelével. Simultaneamente, a minú-
desígnio do grande São Carlos>>,um dos maiores defeitos das vocações provenien- cia das disposições recomendadas para os exames previstos antes de cada ordenação
tes das classes pobres da população é que visa não só controlar a preparação dos candidatos, mas também verificar se eles pos-
suem os dotes morais e intelectuais necessários ao exercício deste ou daquele tipo
Os pobres consultam apenas a vontade dos pais a que se encontram ligados por um de funções: segundo Carlo Borromeo, a lista dos candidatos corresponde a uma hie-
laço muito mais forte porque deles depende a sua subsistência, e seguem assim cega- rarquia dos lugares eclesiásticos a atribuir, hierarquia dividida em cinco classes com
mente, como que por necessidade,as instruções que lhes são transmitidas com vista à base na importância das responsabilidades pastorais conferidas a cada uma3s.Todavia,
obtenção das ordens sacras, que vêem apenas com olhos vulgares e interessados, como não nos iludamos com a difusão do modelo borromeano: se é verdade que se con
uma profissão mecânica, que serve para ganhar a vida e ter acessoa uma posição mais
tam mais de setenta criações de seminários <<tridentinos>>entre 1563 e 1570, cerca
distinta que a de origem.':
de cinquenta em 1571 e no final do século xvl, ainda quarenta e cinco na primeira
metade do século xvn, quantos deles terão seguido propriamente o exemplo mila-
Não surpreenderá,nessecaso, que um dos critérios mais frequentespara a admis-
nês? Quantos terão conhecido uma existência duradoura e qual a sua capacidade de
são dos clérigos pobres nos seminários menores tenha sido o concurso baseado nos
acolhimento efectivo? Seria preciso conhecer sempre o funcionamento efectivo da
melhores resultados escolares: classificados pelo pároco de aldeia nas escolas pres-
instituição: parece que, em relação ao número dos clérigos a formar, os efectivos
biterianas que existem na sua paróquia, os génios locais mais brilhantes são depois
hospedados nos seminários terão representado durante muito tempo uma percenta-
encaminhados para o seminário menor diocesano, que os acolhe após um rigoroso
gem bastante minoritária. Limitar-nos-emos a citar aqui dois exemplos. Quando, em
exame às suas capacidades. O preço da pensão, já bastante moderado em relação
finais do século xvn, os bispos de Nápoles, Innico Caracciolo e Giacomo Cantelmo
aos internos dos colégios, é com frequência calculado com base nas capacidades
Stuart, empreenderamuma rigorosa política de <<sacerdotalização>>
do seu clero,
económicas de cada família, a que vem juntar-se com frequência um sistema de
impondo severos requisitos económicos (obrigação de possuir já um título patrimo-
isenções progressivas, consoante o nível dos resultados alcançados pelo semina
nial no acto de tonsura para reduzir as falsas vocações), intelectuais (exame antes de
rista: a meritocracia começa,assim, a insinuar-se no âmago da formação sacerdo- cada ordenação) e disciplinares, criaram um organismo de controlo eficiente, a
tal. Após a expulsão dos jesuítas, o modelo de seminário menor-colégio passa a
Congregação dos ordenandos, com a missão de controlar o valor económico dos patri-
ser visto com melhores olhos pelos prelados franceses, na medida em que atribuem
mónios, as qualidades intelectuais dos candidatos aos exames e a conformidade da
a diminuição das vocações real e bastante generalizadaa partir de meados do sua atitude em face das exigências requeridas. Mas, a partir do momento em que se
século xvlll a um enfraquecimento do enquadramento religioso nos colégios:
trata de garantir a formação espiritual dos futuros sacerdotes, o bispo deve dirigir-se às
começa então a ser concebido o internato, que ministra um ensino humanitário
associaçõesreligiosas, congregaçõesque reúnem, para o desenvolvimento dos exercícios

32O regulamento escrito por Joseph Grandet foi publicado por G. Letourneau, /7ísroire da séminaire s3Sobre o modelo do seminário borromeano, cfr. M. Guasco, «La formazione del clero: i seminari»
d'Angers depois safondatiott elt 1659 jüsqu'a son union avec Saint Suípice eln i695, t. 2, Angers-Par\s- In Storia d'ltalia, Aytnali, 9, La Chiesa e i{ potere politico da! Medievo all'età contetnporanea, Ei.nada\
-Lyon, 1893,pp. 487-503. Turim, 1986, pp. 649-658.

294 295
e na formação de um novo tipo de sacerdote37.Se bem que o esforço desenvolvido
espirituais, laicos ou eclesiásticos, sob a direcção de institutos de sacerdotessecula-
pelos bispos lombardos não tenha conseguido impor a todos uma permanênciadura-
res, que vivem em comunidade (primeiramente os jesuítas, mas depois também os
doura nos internatos, conseguiu, mesmo assim, promover uma considerável melhoria
pios operários e os oratorianos): de 381 ordenandos (todos os graus das ordens) ori-
na formação cultural e espiritual dos clérigos e, portanto, na disciplina eclesiástica.
ginários da cidade de Nápoles, de 1692 a 1702, 257 (o que equivale a dizer 67,4%)
frequentaram mais ou menos regularmente as congregações,contando-se ainda 62
seminaristas (ou seja, 16,3%). Todavia, isto representa um nítido progresso na edu- A «modéstia» sacerdotal
cação espiritual dos futuros sacerdotes, em relação à situação anterior34.Com efeito,
o crescimentodo clero que se conservana penínsulaem meadosdo séculoXVlll e
Se insistimos tanto na importância do seminário é porque, não obstante a multi-
que se fica a dever não só às estratégias das famílias mas também a uma maior pro-
plicidade das fórmulas que acabámosde apresentar que, como é natural, provoca
cura dos serviços sacerdotais por parte da comunidade's (procura que cria, por sua
diferenças bastante consideráveis no grau de penetração do espírito eclesiástico -
vez. nos diversos estratos sociais analisados, esperanças de carreiras beneficiais que
todas estas tentativas apresentam um aspecto em comum: trata-se, insistindo na obser-
não correspondem sequer à sua amplitude real)3ó,requer, da parte dos prelados um
vância dos regulamentos, de ensinar os jovens a abster-se das corrupções do mundo,
esforço considerável de financiamento e de edificação. No caso lombardo, estudado inculcando neles a modéstia e a seriedade, aspecto exrerlor de um estado interior,
atentamentepor X. Toscani, as ordenaçõesno sacerdócioduplicam (e em alguns
que é a adesãoíntima do eclesiástico ao sacerdócio de Jesus Crista, perfeito adora-
casos chegam mesmo a triplicar) entre a última década do século xvll e os anos 30
dor de Deus. Segundo este ponto de vista, e para dar um exemplo, o texto dos Examens
do século xvln, e mantêm-seem nível muito elevado até aos anos 50: no período de
parríca/leis do senhor Tronson, director do seminário de São Sulpício (publicados
quarenta anos, os efectivos globais do clero das várias dioceses lombardas quase
pela primeira vez em 1690 e reeditados depois várias vezes), pode ser considerado
duplicaram. Por este motivo, os semináriosque, em finais do séculoXVll estavam como símbolo da função de um esííZoclerical criado por um sistema pedagógico ade-
em condições de receber apenas logo a 15qn dos candidatos ao sacerdócio revelam-
quado38.O mundo é então visto como um perigo constante, contra o qual se tem de
se ainda menos adaptados à sua função de formação espiritual. Dadas estas condi-
estar precavido através de toda uma série de bloqueios. Não são só as visitas inúteis,
ções, explica-se melhor o activismo febril com que os prelados lombardos começam
que revelam «os pensamentosdo mundo, a ideia de divertimento, a recordação dos
a construir: o seminário de Brescia passade 60 para 120 internos já em 1710-1711
pecados do passador, que são reduzidas ao mínimo; não é apenas a mulher que se
e, por ocasião da morte do Cardeal Querini, em 1755, está em condições de acolher
vê excluída daqueleuniverso-- o clérigo deve evitar ficar só com dumapessoaper'
150: em Cremona, entre os finais do século xvll e os anos 30 do xvlll, a capacidade
tencente ao outro sexo>>e deve evitar olha-la, <(pois para remediar a paixão do amor
de acolhimento do seminário atinge as 80 vagas, das 40 iniciais; em Lodi, já nos anos
não é preciso fechar os olhos a criaturas que possam enternecer ou amolecer o cora-
20 do século xvlll se observa a duplicação da capacidade receptiva, que ascende a
ção> --, mas impõe-se praticar uma higiene espiritual quotidiana que permita atra-
50 internos. Este florescimento arquitectónico limita-se, aliás, a acompanhar o aumento
vessar o mundo sem o olhar. Os percursos citadinos para se dirigirem aos cursos de
das ordenações: poucas dioceses (como a minúscula diocese de Calma que, com ape'
teologia organizados nas escolas públicas ou para irem passearaté à casade campo
nas 50 paróquias que circundam a cidade episcopal, recebe no seu seminário 60qu
são marcados por exercícios de piedade que dissuadem quem caminha de toda e qual-
dos clérigos diocesanos) se podem ainda orgulhar de receber dentro dos muros do
quer distracção: o cónego Baston, que foi aluno de uma das comunidades do semi-
seminário episcopal a maioria dos aspirantes ao sacerdócio. A maior parte deles
nário de São Sulpício por alturas de 1770, conta que os seminaristas se dirigiam para
forma-se, na verdade,junto dos párocos de aldeia, em colégios ou escolas abertos
os cursos da Sorbonne em grupos de dois ou três, rezando o terço em voz alta. <<Graças
nos conventos dos regulares. Assim se explica o aparecimento, encorajado pelos pre-
a este inocente estratagema,o tra)factoentre o seminário e o colégio e vice-versa
lados, de congregaçõese grupos de sacerdotes secularesque se consagram particu-
decorria por norma sem terem visto nada. Parecia que se passava de uma aula para
larmente aos exercícios espirituais destinados ao clero: é então fundado um grande
a outra sem encontrar ninguém>>39. Deste modo, um espaço sem descontinuidade
número de <<casas
para exercícios espirituais do clero>>,que têm uma função pri-
separa em cada momento do dia o seminarista do exterior. No entanto, as necessi-
mordial de substituição na promoção de uma espiritualidade sacerdotalmais austera
dades da natureza introduzem novamente o gesto profano no seio da clausura. Por
isso, a fim de exorcizar todas as tentações,os actos de se levantar, comer ou deitar
34Cfr. G. Garzya, «Reclutamento e sacerdotalizzazione del clero secolare della diocesi di Napoli
Dinâmica di una politica pastorale nella metà del Seicento>>,in Galasso-Russo(direcção de), Per /a s/o
rfa sacia/ee /-e/íglosacit., vol. 11,pp. 81-157 s7Cfr. a este propósito, XI. Toscani, // c/ero /ombardo da//'.A/zcíen Ríígime a//a .Res/aurazío/ze,ll
5Cfr. X. Toscani,<<llreclutamento
del clero (secoliXVI xlx)>>,in Sforíc7
d'/fíz/ía.Á/zna/f9, cit« Mulino. Bolonha,1979;Id., «Ecclesiasticie societàcivile nel '700: un problemadi storiasocialee reli-
PP.573-628 giosa>>,Soc-íefàe sroria, V (1982), pp. 683-716
6Para o mesmo realce dado ao excesso de população sacerdotal sem comparação nem com o aumento
38Seguimos aqui a demonstraçãode E. Goichot, «'Sacerdosalter Christus'. Modêle spiíitual et conditi-
da população, nem com as disponibilidades das estruturas beneficiais, cfr. as anotaçõesde C. Donati res- onnement social dana les 'Examens particuliers'», Recue d'Hísroíre de la Spínrua/Ifé. 51(1975), pp- 73-98
peitantes ao Friuli: <<Dalla'regolata devozione' al 'giuseppinismo' nela'ltalia del Settecento, in M. Rosa 39À/émofresde Z'abbéBasron,c/zanoí/zede Rouca, t. 1, ed. Loth et Ch. Verger, Paras,1897,p. 55
(direcção de), Carro/lceslma e l,lrmí ne/ Serrecenrofra/i(/no, Heider, Rama, 198] , pp. 77-98
297
296

/
são apresentadose vividos como outras tantas provas de mortificação durante as quais de uma nítida moralização do clero. Enquanto no século xvll as actas das visitas pas-
o clérigo é duramente lembrado da sua condição de pecador: é, assim, desencadeada torais e os processosdas autoridadesnos mostram um universo de sacerdotesviolen-
toda uma simbologia, tendo em vista sacralizar os momentos mais simples e, toda- tos e irascíveis, jogadores, caçadores, beberrões, mulherengos e dissolutos, estas veri-
via, mais perigosos da vida quotidiana. Enquanto a batina é um <<hábitode honra>>, ficações tornam-se muito mais raras na França setecentista: é possível, sem corrermos
a roupa interior <eonsequência>> e <<restos>>do pecado, deve ser considerada <<osres o risco de errar muito, estimar em 5qn a proporção do pessoal secular diocesano impli-
[os das bestas e o esbulho dos animais abaixo dos quais a nossa desobediência nos cado em práticas de desvio a partir de 172040.É verdade que, em meados do século xvn,
reduziu>>e é vestida apesarde <«elamentar a inocência perdida». Não só a obe os inspectores da polícia detêm todos os anos uma centena de eclesiásticos <<surpreen'
diência, a modéstia, a religião devem regular o aspecto exterior da acção de se dei- didos em atitudes dissolutas>>
junto de mulheres de vida fácil: trata-se de metade dos
tar, como o clérigo, enquanto se despe, deve considerar-se tomado <<porum enorme grandesbeneficiários, com frequência de passagempor Pauis,e não se pode deduzir
desejo de liberlação>>de si mesmo e de tudo o resto <<parahonrar a renúncia de Nosso que esta estatística de flagrantes delitos amorosos pagos, em que estão envolvidos clé-
Senhor na Paixão>>e <alcançar a grande renúncia a tudo como o velho de que nos rigos dissolutos, seja uma condição geral da moralidade sacerdotal':. Além disso, não
fala São Paulo: Exspo/la/ares vos veíerem /zomí/zemcum acrlbus suíp>. A cama é um há dúvida que algumas dioceses se encontrem menos avançadas do que outras no pro'
<<sepulcro>>,os lençóis <<onosso sudário>>, o sono <a própria imagem da morte>>: tudo cessode reforma moral e pastoral: na diocesebretã de Tréguier, entre 1700 e 1730,
lembrançasque visam eliminar os fantasmas de uma fantasia errante. de um total de cerca de 530 sacerdotes, 147 (o que corresponde a quase um terço)
Para além desta rotura essencial, os Exame/zspar/íca/íers do senhor Tronson embriagam-se regularmente, 41 vivem de forma dissoluta, 27 cometeram actos de vio-
desenvolvem uma dialéctica do olhar, comum a muitos outros textos espirituais, desde lência de facto, 11 perpetraram actos desonestos vários, 8 são absentistas. Ao todo, e
o 4fercfcfo de peigeccíó/z de Alonso Rodríguez até Bérulle: o sacerdote não deve vol- apenasno plano da moralidade, contam-se 237 clérigos passíveisde condenação,sem
ver os olhos para um mundo onde se arrisca à perdição; deve, pelo contrário, ter sem- incluir aqueles que, no plano pastoral, exercem mal as funções eclesiásticas. Ao invés,
pre presente que está constantemente a ser observado por ele. Desta consideração a partir de 1730, são nitidamente visíveis os resultadosda reforma conduzida pelos
deriva a insistência básica na composição da personagemexterior: o aspecto fun- prelados de Tréguier e, em particular, por Monsenhor Olivier Jegou de Kervilio (bispo
ciona, neste caso, como via de acessoà essência de Crista-sacerdote, cuja atitude de 1694 a 1731, que todos os anos visita a sua diocese de 1695 a 1729): os proces'
sacerdotal deve mesmo assim apresentar uma transcrição legível aos olhos dos con- sos do tribunal episcopal mostram que são agora muito raros os casosde sacerdotes
temporâneos. Trata-se exactamente de inculcar um /zaóírus, aquela modas/fa eclesiás julgados por actos imorais e excepcionais de desvios de conduta. Aliás, agora o sacer-
tida que, no início do século xlx, suscitou num observador perspicaz como Stendhal dote prevaricador é punido por uma severa sanção. Nasceu, em suma, um novo tipo
uma repulsa irresistível. A modéstia clerical, apesar de abranger muitos aspectos do de sacerdote,com melhor formação, maior espiritualidade,talvez mais isolado dos
código social da civ//í/as erasmiana,procura não só reprimir toda a espontaneidade fiéis42. De resto, é a este modelo encarnado no bom pastor que E. Renau, nascido em
exterior ao corpo, mas sobretudo conservar no sacerdote um centro de gravidade que 1823 em Tréguier, presta sincera homenagem quando, evocando a sua infância, aplaude
o afaste dos extremos e o situe à mesma distância da negligência e da afectação, da os sacerdotes<<dignos>>, que foram os seus primeiros preceptores esptntuats e aos quais
tristeza e do riso desmedido, das conversas mundanas c do silêncio triste e desde- reconhece dever <o pouco de bom que pode existir>>em si. <<Tiveposteriormente mes-
nhoso. Através de regras que Ihe são incutidas, o sacerdote setecentista surge como tres igualmente brilhantes e sagazes;mas não tão venerandos [...]. A verdade é que
uma espéciede /zeuíra,que se define com a categoria do nem, /zem;eliminando todas aquilo que se diz dos costumes clericais é, segundo a minha experiência, destituído
as asperezas da sua personalidade, deve apagar-se enquanto indivíduo. A eliminação de qualquer fundamento. Passei treze anos da minha vida nas mãos dos padrese não
de todo e qualquer aspectopessoal, juntamente com o afastamentodo mundo, repre- vi qualquer sombra de escândalo: só conheci bons sacerdotes".>>
sentamaos olhos dos educadoresdo clero moderno a condição de visibilidade do Enquanto homem que vive separado do mundo, o sacerdote tem de renovar regu-
sacerdócio cristão. Paradoxalmente, este modelo de educação conheceu o seu apo- larmente o seu espírito de vocação: é-lhe vivamente recomendado um retiro anual
geu em França apenas no século XX, quando os bispos pós-concordatários aderiram que, em algumas dioceses, reveste a forma de um retiro geral que reúne no seminário
a uma fórmula de seminário que se encarregassedurante um longo período de toda episcopal, durante determinadas épocas do ano, a totalidade ou parte dos eclesiásticos
a formação sacerdotal intelectual, espiritual e pastoral: aliás, muitas reedições dos
Eka/ne/zsparrlc /fera testemunhameste êxito que durou todo o século. Todavia, no 40Este número resulta da investigação de Gilles Deregnaucourt realizada com base nos processos do
que se refere às evoluções registadas,o modelo não se apresentajá anacrónico? tribunal episcopalde Cambrai,op. cir., pp. 329-340.
4i Cfr. E. M. Benabou, «Amours 'vendues' à Pauisà la fin de I'Ancien Régime: 'clercs libertins', police
et prostituées»,in Aimer etl Ft"anca ] 760-]860, Acres du Co11oqueinterrtationa! de Clerinont-Ferraytd, col\-
Sociabilidade e cultura sacerdotal gidas e apresentadaspor P. Viallaneix e J. Ehrard, t. 11,Clermont-Ferrand, 1980, pp. 493-502.
42G. Minois, Z,a.B/"erízg/7e
desprê/res en Trlígo/ d'.A/zcíenR ígíme, Editions Beltan, s.1.,1987, pp. 196-
197. 254-270
Prescindindo da diferença entre o modelo e a apropriação deste último por parte +l E. Renan, Soirvenfrs d'ePIÃalzce e/ de .fez/nesse,ed. J. Pommier, Paras, 1959, pp. 53 e 129 (trad. it.
dos clérigos, não se duvidará de que a formação do seminário se encontre na origem Ric-arda
d'l/tánnzlae df glovílzezza,
Editrice Bietti, Milano, s.d. pp. 30 e 123).

298 299
empenhados nas suas funções, os quais, sob a orientação de um pregador, meditam demonstraçãoa cofzfrarlo do impacte das conferências. As suas reflexões sobre a
e rezam em comunidade durante cerca de oito dias. Esta prática, que parecegenera- «incertezados Evangelhos>>
e sobre <<as
ditas Escriturap>que <<não
contêm nenhum
lizar-se em França com o decorrer do século, só pode ter reforçado a solidariedade carácter de erudição ou de sabedoria que não seja human»>, bem como a denúncia
sacerdotal. Um outro exercício reúne, em intervalos regulares -- uma vez por mês ou das interpretações espirituais ou místicas relacionam-se, de facto, não só com os pedi-
de dois em dois meses, os sacerdotes da mesma circunscrição devido a assuntosa dos apresentadosnas conferências eclesiásticas da diocese de Reims, mas também
tratar: as <Konferências eclesiásticas>> (também chamadas <<assembleias de decanos>> com a bibliografia fornecidapela autoridadearcebispalpara a sua ilustração. O tra-
ou <<assembleiasde vigários ambulanteP>), efectuadassob a direcção do decano balho de compilação imposto pelas conferênciaseclesiásticaspôde servir, nestecaso,
(quandoa divisão territorial da diocesefoi respeitada)ou de um director que reúne de ponto de partida para a elaboraçãode um pensamentoparti.cularmentehetero-
na sua paróquia dez a vinte confrades das vizinhanças. As conferências são normal- doxo4Ó.Não é necessário acrescentar que Jean Meslier não vê utilidade em comuni-
mente dedicadas a três temas: a explicação da Sagrada Escritura, um tema espira/zzcz/ car os seussentimentosaos confradese mantém no mais rigoroso segredoos seus
a maior parte das vezes,os deverese as virtudes dos eclesiásticos--, a teologia pensamentos,<<bemfeliz>>por morrer <<tãopacificamente>>como vivera e não se que-
práfíca ou moral, o que equivale a dizer a análise dos casos de consciência, que tende rendo expor durante a sua vida amemà indignação dos sacerdotes,nem à crueldade
a assumir uma parte cada vcz maior no decurso da reunião«. Os temas mensais ou dos tiranos, que não teriam encontrado, ao que parece, nenhum tormento que fosse
bimestrais, fornecidos antecipadamente pela cúria episcopal, são por vezes acompa- suficientemente rigoroso para punir uma tal pretensa temeridade>>". O exercício de um
nhadosde uma considerável bibliografia destinada a orientar os participantes no controlo das práticas vem juntar-se, deste modo, ao conformismo linguístico de todo
estudo preparatório da conferência: os <<resultados>>
ou <<conclusões>>
são enviados. um corpo, ou à escolha de uma vida dupla que, subjacente a uma personagemofi-
sob arforma de dissertação de teologia, à chancelaria episcopal que avalia os traba- cial. dissimula uma experiência interior que não se pode exprimir abertamente.
lhos.'Estes constituem, então, um meio de controlo intelectual do clero, que pode vir As conferências eclesiásticastestemunham exactamente o facto de a ignorância
a servir para a promoção dos sacerdotes que neles participam. Todavia, os /rapa//zos de outros tempos ter sido substituída por uma cultura clerical que vive essencial-
corrigidos pelos vigários gerais chegama dar origem a um discurso uniforme: aliás, mente de São Tomas e dos Padres da Igreja, de comentários modernos feitos aos tex-
não se trata de conseguir <a uniformidade da doutrina e da conduta, a paixão pelo tos sagrados e de obras de teologia moral. De resto, os estatutos sinodais, bem como
estudo», como diz o bispo de Saint-Maio em 1750? Sucedeque a erudição livresca as ordens episcopais, não deixaram de contribuir com obras para a lista que deveria
demonstrada pelos redactores, que enchem os seus trabalhos de citações oportuna- constituir a biblioteca do bom sacerdote,e os relatórios dasvisitas pastoraisatestam
mente escolhidas, atinge uma linguagem estereotipada,de todo impermeável quer à que estas normas são respeitadas no século xvlll. Na arquidiocese de Autun, a inves-
experiência pessoaldos participantes, quer à vida real dos fiéis. A vontade de desen- tigação demonstra que, em 1729, todos os sacerdotes possuíam os volumes conside-
volver uma jurisprudência comum a todos os confessoresapresentauma série de rados indispensáveis e que muitos deles reúnem até um número muito maior: assim,
<<casos>>
abstractos, todos tratados de idêntico modo. Contudo, nem sempre a hierar- nove sacerdotestêm entre vinte a cinquenta volumes, cinco de cem a trezentos"
quia se deixa iludir por estabela unanimidade. Como salienta o diácono do capítulo Uma análise mais minuciosa, efectuadadesta vez a partir dos inventários post mor-
de Cambrai a propósito das assembleiasde decanos da diocese: <<Apósuma oração fei7zdas bibliotecas de eclesiásticos nas grandes cidades das províncias ocidentais da
latina que cada pároco profere por sua vez, conversam sobre assuntos respeitantes às trança (Normandia, Maine, Andou, Bretanha), sublinha a progressão rápida que ocorre
suas paróquias, e o deão expõe aquilo quc o arcebispo lhes deseja comunicar, ou no decurso do século xvnl: em finais do século xvn, 30qo dos sacerdotes perten-
então refere aquilo que os párocos o encarregamde apresentar.Depois da assem- centes à amostragemescolhida têm menos de dez volumes e alguns deles não têm
bleia, vão jantar juntos.>>'5Atingida uma codificação tal da linguagem do grupo, mesmo nenhum, apenas 5qn possuem uma biblioteca de mais dc cem obras. E durante
parece que a função de sociabilidade clerical passa a predominar sobre a actividade o primeiro terço do século xvlll que os sacerdotesque receberamnos semináriosa
intelectual /ou/ court. Nesta matéria, o exemplo canónico de Jean Meslier, sacerdote formação intelectual necessáriaprocuram bibliotecas à altura: já em 1730, as biblio-
da paróquia de Etrepigny, nas Ardenas, que deixa, após a sua morte, uma coZeclá- tecas de mais de cem volumes representam45qu da amostra escolhida, 60qo entre
/zeade pensamentose sentimentosparticularmente explosiva, na medida em que 1755-1760 e 75% em 1790. Nesta última data, nove em dez eclesiásticos têm mais
denuncia todas as religiões, em primeiro lugar a cristã, como imposturas e mistérios de cinquenta volumes, um em três mais de cem. No período de um século, a excep'
de iniquidade que mantêm os povos na idolatria e na superstição -- proporciona uma ção transforma-seem regra. Mas, simultaneamente,a composição das bibliotecas

'u A literatura sobre as conferências eclesiásticas tem sido abundantemente renovada nos últimos anos. 4óCfr. D. Juba--D.McKee, Les Confrêresde JeanMeslier. Culture et spiritualité du clergé champe-
Cfr. J. M. Gouesse, «Assembléeset associations cléricales. Synodes et conférences ecclésiastiques dans nois au xvn' siêcle, Recue d'Hlsfoire de ['Eg/fse de Fra/zre, XIX (1983), PP. 61-86.
le diocese de Coutancesau xvn' et xvm' siêcles»,Á/z/lajes de JVormai7dle,XXIV (1974), n.' 2, pp. 37-7 1; 47Oeuvres complêres de mean À/esller, direcção de J. Deprun, R. Desné, A. Soboul, t. 1, Edilions
M. de Certeau, Z,'.Ecrírzz/"e
de /'ãísrofre, Gallimard, Paria, 1975, pp. 208- 10; Berthelot du Chesnay, op. clr., Anthropos, Paras, 1970, p. 33 (prefácio em A/émolre)
pp. 427-432; Deregnaucourt,op. cf/., pp. 340-344. 48Th. ]. Sckxniitt,L' Orgaltisatior!ecclésiastiqtteet la pratique religieusede I'arcllidiacrie d'Autull de
45Citado por Deregnaucourt, op. ,cft., p. 344. /Ó50 à /750, s. 1. 1957, p. 133. Cfr. também Juba-McKee, cit.

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muda de forma radical. Os comentaristas flamengos e espanhóis das Escrituras (como entre as bibliotecas dos sacerdotes franceses e as dos piemonteses, semelhança essa
Maldonat, Estins ou Cornelius a Lápide), a Samba 7'/zeo/ogfcade São Tomas e os que se acentua mais tarde devido a três aspectosespecíficos: numa região em que a
Padresda Igreja deramlugar a manuaismais práticos,a obrasescritasem francêse prática linguística do francês se encontra bastante mais difundida do que no resto da
com uma larga difusão: relatórios impressos de conferências eclesiásticas,colectâ- península, a percentagem de obras impressas em França atinge 18,7qo; são inúmeros
neas de homilias, métodos para a administração dos sacramentos,livros de teologia os textos traduzidos por autores espirituais ou por oradores sacros franceses (como
moral, de meditaçõesou de espiritualidade sacerdotal.Pelo contrário, mantém-se Francisco de fales ou Bourdaloue). Aliás, é atravésdesta mesmavia que se processa
extremamente limitada a abertura destas bibliotecas à cultura profana: nas bibliote- uma difusão do pensamentojansenista, dado que as traduções de Joseph Duguet, de
cas com menos de trezentos volumes, o livro religioso ocupa sempre uma parte que Pierre Nicole ou as do catecismo de Montpellier do oratoriano François Pouget estão
vai de 80% a 90%. Assim se mede a diferença criada entre a cultura clerical e a das presentes em inúmeras bibliotecas. As anotações referidas nas actas muito polme'
elites laicas do mundo da administração ou da burguesia de /a/e/z/o,junto das quais norizadasda visita geral efectuadaem 1749-1751 por Leopoldo Erncsto Firmian,
se nota um nítido desaparecimentodo livro religioso, sobretudoa partir de 1760'9. bispo auxiliar de Trento, confirmam em tudo os dadospiemonteses:o clero da dio-
Idênticas afirmações se podem fazer a propósito das bibliotecas presbiteriais no cese de Trento, também nas zonas mais dispersas e isoladas, demonstra uma atenção
Piemonte, cujos inventários, elaborados na primeira metade do século xix, remetem viva pela cultura eclesiástica contemporânea, desde os comentários sobre os dois
para a situação do século anterior: 26 dos 57 inventários encontrados (o mesmo será Testamentos,do padre Noêl Alexandre, aos de don Augustin Calmet, aos textos de
dizer 45,7%) respeitama bibliotecas de mais de cem volumes, ll (ou seja, 19,3qu) Muratori e de Tartarottisz. A seu modo, a composição das bibliotecas clericais vem
<<bibliotecas>>
de cinquenta-cem volumes, ao passo que onze colecções reúnem menos confirmar que, sob a pressão dos mecanismos disciplinares, os novos sacerdotes inte-
de dez volumesso.Por aqui se via também que o livro passavaa fazer parte habitual riorizaram amplamenteas normasque lhes foram inculcadasno seminário a fim de
da bagagemdo sacerdoteda cidade ou da aldeia. Mas trata-se ainda basicamentede os preparar para o exercício correcto das suasfunções
um livro religioso: pondo de parte quatro bibliotecas que possuemmais de 400 volu
mcs de diversos temas, a percentagemde livros religiosos atinge 84qodo total. Para
além dos textos <Klássicos>>
-- como as Cor/!ssões e A Cidade de Z)eus de Santo Uma ordem das práticas
Agostinho, a Sumia Theo/oglca de São Tomas ou as E/)íkro/as de São Jerónimo
que se encontram em muitas bibliotecas (mas que representam apenas 5qo do con- Todavia, se os sacerdotes que, em virtude da sua segregação social e cultural, são
junto dos livros), os dois corpos principais das <<bibliotecaP>piemontesas são cona encarregados de estabelecer a fronteira entre o sagrado e o profano e de manter uma
tituídos, por um lado, por compêndios de teologia, usadossobretudo inicialmente no difusão ortodoxa das representaçõese dos credos religiosos, se tornaram o ponto
seminário e depois levados pelos sacerdotespara os seus benefícios (na sua maioria, focal atravésdo qual a Igreja se distingue dos outros grupos sociais, fazem também
tratadosdc teologia moral como os de Daniel Concha, Idalfonso da Bressanvido, parte de uma administração das práticas cuja lógica deixou de ser religiosa, para se
mastambém de autores francesescomo Paul-Gabriel Antoine, Piene Collet ou Louis regular pelo critério da utilidade socials3. Apresentaremos aqui apenas alguns exem-
Habert), que constituem um quinto das obras, ou, por outro, por livros dc devoção, plos, retirados de diversos registos. Os sacerdotes de aldeia, agora mais cultos, podem
de exercícios espirituais ou de vidas de santos, que representamtambém um quinto coadjuvar o intendente provincial no inventário das produções agrícolas (como sucede
das bibliotecas. Encontram-se aqui os besf-se//ers da literatura devota da Reforma no Franco Condado, em 1774), ou ajudar à listagem sistemática dos baptismos e óbi-
Católica desde a //zfrodüçõo à Vida Z)evo/a de Francisco de fales ao Zyerclcfo de tos, através das funções da intendência, solicitada pelo abade Expilly para a redac-
pei$eccíón y vlrrades cr/sííanas de Alongo Rodríguez, da Z,ufa Espfríraa/ do teatino ção do seu l)íc/forzlzaire des Caules. Todavia, os sacerdotes, apesar de continuarem
Lorenzo Scupoli às obras do jesuíta Paolo Segneri: encontramosnelas um sinal da a percorrer os terrenos da circunscrição paroquial durante as bênçãos e as procissões
espiritualidade inspirada nos Exercüíos Espíríruaíx de Tnáciode Loiola. Catecismos, da época litúrgica das Rogações, a fim de solicitarem a protecção dos bens terres-
manuais de confissão e colectâneas de homilias completam o conjunto, ajudando o tres a pedido dos fiéis, não se limitam mais a cultivar o jardim do presbitério, efec-
pastor na prática quotidianasl. Não deixa de surpreendera semelhançaprofissional tuando experiências agrícolas destinadasa melhorar a produção dos cereais e tam-
bém a qualidade do gado: cultivando de forma racional as terras do próprio benefício,
<<levamos agricu]tores mais sérios da sua paróquia [. . .] a seguirem o seu exemplo>>s'
49Cfr. J. Quéniart, l,es/zo/tz/ zes,J'Eglló'e ef Z)leu da/zs /a Fra/zce da xv//r siêc/e, Hachette, Paras, 1978,
PP.69-77, 260-.273
seL. AÂ\e,gxa,
Richerche suttc}ct,{!ttlradel.clero in Piemonte. Le bibtioteche parrocchiati n.eil'Archidiocesi
dí Zoríno sec. xv/7-xv/77,Deputazione Subalpina di Storia Pátria, Turim, 1978. 5z Cfr. C. Donati, Ecc/esfasflci e /ala ne1 7'renfírzo deJ Sef/ecenfo (/748-/7ó3), lstituto storico per
51As instruções, os manuais de catecismo e de confissão representam 9,9%; os livros de prédica 8,8%u; I'età moderna e contemporânea, Romã, 1975, pp. 174-178
os livros de estudos públicos ou de história eclesiástica, e os textos dos sínodos e dos concílios 7,4%. 53De Certeau.l,'Ecrífüre de /'hísloire cit., em particularo cap IV, Zn/or/rza/Irédei praflqifes.Z)u
Quanto à parte profana, a literatura representa 5qo, a história, a geografia e a filosofa:t 3%, as matérias slystêmereligieux à !'éthique des tumiêres, xvl!'-Xvlll', pp. 153-2t2
54Texto de um sacerdotedo Jura citado por M. Vernus, Z,epresbyrê/eef /a c/zaumíê/"e.
purés ef viZ-
científicas e técnicas 2,5qo.Todos estesvalores foram determinados, excluindo as quatro bibliotecas ecle-
siásticas com mais de quatrocentos volumes que teriam alterado a globalidade dos dados. /ageois dons Z'a/zcíenneFra/zce xv7/'-xv7/.r' slêc/es, Editions Togirix, Rioz, 1987, p. 112.

302 303
Quando, em 1774, respondem ao inquérito sobre a mendicidade, que lhes foi pedido belzévo/o e pedido pelas populações durante os temporais: os sacerdotes setecentis-
pelo bispo Jean-Françoisde la Marche, na sequênciadas solicitações do controlador tas revelam uma hostilidade cada vez maior na prática dos exorcismos previstos pelo
-geral das Finanças Turgot, os reitores da diocese bretã de Saint Pol de Léon mani- ritual naquela época. Se pretendem a eliminação da cerimónia litúrgica é porque estai
festam a sua hostilidade em relação ao sistema medieval da esmola. A fonte mais vul- plenamente conscientes do eqzlA'oco por ela criado: o povo espera um efeito imediato
gar da mendicidade é, aos olhos deles, o <<ócio>>,a «aversão em relação ao trabalho, do exorcismo o êxito ou o fracasso dependem do poder do agente e a recusa de acção
sobretudo se desagradável>>, o prazer <<devagabundear>>; admitindo também causas faz-se acompanharde ameaçasde morte. O fracasso provoca, por parte da comuni-
económicas -- o elevado custo dos cereais, as divisões das herançasque tornam dema- dade uma atitude agressiva em relação ao seu ministro, que perde.desta feita todo o
siado pequenas as empresas - e demográficas (famílias demasiado numerosas) da prestígio: na verdade, ele não é um <<caçadorde granizo>>.Ao significado mágico
pobreza, depositam, todavia, as suas esperanças quer na polícia, para dar caça aos atribuído aos cânones cerimoniais, que transforma o padre numa espécie de xamã,
mendigos a//zelos à paróquia por exemplo, as tropas poderiam prendê-los ou enviá- os sacerdotes do século xvlll contrapõem aos ignorantes a força.da razão e do saber
los para as colónias --, quer no trabalho forçado desdea infância, a exercer ou nos (os fiéis são supersticiosos, cheios de preconcefros, ia/záíÍcos)s9 Respondendo ao
hospitais gerais de província ou nos hospitais administrados pela paróquia sob a res- inquérito endereçado ao bispo em 1783, um pároco da diocese de Tarbes explica com
ponsabilidade do reitores. Um deles chega mesmo a prever <a exclusão do casamento malícia como tentouintroduzir a descobertade Franklin na sua aldeia:
para todos aquelesque se supõe não estarem em condições de fazer face às respon-
sabilidades temporais. Vi sempre com uma certa repugnância os mendigos arrasta Durante os temporais, tocam-se os sinos: e foi assim que o campanário e os sinos
rem-se e, quando analiso as consequências de tais uniões, parece-me que o Estado é foram fulminados duas vezesem menos de cinquenta anos. Nós próprios seríamosful-
minados pelos habitantes se os quiséssemos impedir de tocar os sinos. Gostaria de lhes
que fica a perder enquanto a religião nada lucra>>só.O sacerdote é aqui um agente da
ordem pública que participa na racionalidade e no utilitarismo das Luzes, todos vira inspirar maior confiança com um pára-raios eléctrico que me dei ao cuidado de man-
dar instalar no nosso campanário, muito alto, mas como se lhes afigura dotado de algu-
dos para a produção. Não surpreenderá, pois, que os sacerdotes tenham sido, nos prin mas virtudes. seria necessárioconsagra-lo com alguma bênção no que os físicos não
cípios do século xlx, os veículos mais favoráveis da difusão da vacina contra a epi- viram até ao momento grande vantagem. Continuamos, de resto, a fazer exorcismos e
demia de varíola, tanto em França como nos Países Baixos, ou nos departamentos preces, com o ritual na mão: e é assim que ficamos pessoalmentegarantidos contra o
anexos da península itálicas7. A fim de conseguirem a adesão maciça dos fiéis, alguns raio60
sacerdotessão vacinados; outros obrigam os paroquianos a vacinarem-se ou então
organizam postos gratuitos de vacinação no presbitério. Trata-se precisamente de um Em face da aplicação da técnica, a bênção do padre vai parar, por iniciativa deste
dever do Estado já que os sacerdotes são os <<ministros de um Deus de verdade>>e por pároco í/umínado, ao compartimento dos' acessórios inúteis. No âmbito do grande
isso lhes incumbe demibar os erros populares relativos aos humores que serão inoculados. movimento que visa purificar o culto das <<indecênciao>
que o macularam e moldar
Em 1805, um sacerdote do departamento de Ourthe refere, em termos entusiásticos, o comportamentodos fiéis, também não espantarase notarmosque os critérios cul-
ao secretário da prefeitura a abertura do primeiro posto de vacinação naquela zona: turais assumem uma parte considerável nos valores morais que os pastores difundem
junto dos seus fiéis. Quando os respectivos bispos solicitam aos párocos da diocese
O dia, senhor!, em que o antídoto da varíola foi acolhido com entusiasmo e recebido de Reims. em 1774, e à de Tarbes, em 1783, que respondam à mesma pergunta, com
com alegria pelos paroquianosfoi para mim o dia vitorioso do admirável vencedor da a finalidade de definir <o carácterdominante dos paroquianos,as suasboas quaij-
doença mais horrenda e homicida, e as esperançasdo senhor prefeito não foram vãs. dades.os seusvícios e defeitos mais comuns>>, ressaltamdois aspectosa quem lê
A luz penetrou finalmente nas nossas casas e as trevas e os preconceitos dissiparam-ses'.
hoje as respostasó'.Por um lado, a grelha de leitura utilizada pelos pastoresparte
directamente das categorias dos tratados de moral que lhes foram inculcados no semi-
Todavia, a vigilância do culto e das práticas exercida pelo sacerdote encontra forte
nário: estamos, pois, em presençade um catálogo sistemático dos vícios que denun-
resistênciajunto dos fiéis. Pensemosno exemplo do toque dos sinos considerado

55 F. Roudaut-D. Collet-J. L. Le Floc'h, /774; Z,es rec/euro /éónards parte/z/ de /a míxsíon,


archéologique du Finistêre, Quimper, 1988. Aliás, segundo alguns reitores, os hospitais poderiam contar
também com os bens pertencentes às ordens religiosas.
5õ Resposta do sacerdote de Plocider, ibidem, p. 129.
Société

ÊIH$$HB$1$
:i$1HÜl%g$ÇIH
51Cít. '{. b.Â.Bexcê,Le chaudron et ta tancette. Croyances poputaires et médecine préventive, 1789-
/830, Pressesde la Renaissance,Paria, 1984,pp. 121-35; P. Darmon, Z,a Zo/zguefraque de /czgarfo/e.
Z s píolznlers de/a médeclzze prove/zríve, Perrin, Paria, 1986, pp. 201-207; C. Havelange, l,es .#gures de
la guérison (xvn'-xix' siàctes. Une histoire sociate e{ culturelte des professions médicales au paus de Liàge,
Bibliothêque de la Faculté de Philosophie et Lettres de Liêge, Liêge, 1990, pp. 251-267.
58Texto citado por Havelange,op. cíf., p. 261 entre aspas são retirados dos dois inquéritos.

305
304

]
r

cia, por ordem decrescentede gravidade, o alcoolismo e as casasde jogo autên- ao serviço de uma ordem que elas deixaram de determinar e que introduziu pro-
tica obsessão omnipresente, que é também um aspecto do poder no seio da comuni- gressivamenteos seuscritérios. Quando o josefismo austríacodos finais do século
dade, dado que o taberneiro é uma espécie de anrfpároco capaz de polarizar uma define o sacerdote como um pároco-funcionário, que é simultaneamenteo agrónomo
sociabilidade em concorrência directa com a da Igreja --, o interesse, a maledicência, da paróquia em condições de aconselhar eficazmente os paroquianos na gestão das
a calúnia, os processose as divisões,a violência, a astúcia ou a má-fé, a libertina- suasempresas,limita-se a levar ao extremo uma experiência comum. Os historiado-
gem da juventude, os juízos e a blasfémia. Ainda mais, os conjuntos de associações res insistiram sem dúvida demasiado no conflito que opõe José ll ao Papa (e que,
que ligam entre si os <<vícios>>nas respostas trazem nitidamente a assinatura do con- aliás, pende mais para a supressãodas ordens regulares). Com efeito, se existe uma
fessor. A frente, as boas qualidades são citadas muito mais raramente; os paroquia- realidade manifesta no século xvm, é exactamente o reconhecimento, por parte do
nos são, aos olhos do sacerdote, essencialmente <<laboriosos>>,«caridosos>>e <<esmo Papa, da proeminência do Estado modems, posição que é testemunhadapor.toda a
leres>>,<<devotop>ou levados <<àreligião>>.Por outro, encanta-nos o aspecto altamente lítica concordatária conduzida por Bento XIV com o Reino das Duas Sicílias (1741):
corfés das respostas:insistem sobretudo nos aspectos culturais que caracterizam a a Espanha(1753), a Lombardia'(1757). Aceitando nestescasos a tributaçãoestatal
relação entre o pastor e os próprios fiéis, bem como a subordinaçãodestes àquele. dos bens eclesiásticos e o abandono dos privilégios anacrónicos da Cúria romana em
Por um lado, os fiéis podem ser <<doces»,<<educados>>,
<<afáveis»,<<sociáceis>>,
<<tra matéria de patrocínio dos benefícios, o Papa repunha toda a sua confiança numa
táveis>>,<<maleáveis>>,
<<dóceis>>,
<<submissos>>,
se bem que alguns sacerdotes se inter- reforma religiosa, conduzida sob a tutela dos Estados, contra os delitos de uma super'
roguem sobre a sinceridade da sua atitude: <<dãomostras de uma grande submissão população de clérigos ociosos e incontroláveis. Todavia: a ordem que se vai então
c de respeitoem relaçãoao seu pastorsobretudoquandofala com eles.>>
Mas em instaurando já não é a de Trento, mas a da soberania nacional das monarquias abso-
compensação, é bem frequente serem <<altivos>>,
<orgulhosos>>,<<duros>>,
<<insubmis lutas modernas, ao serviço das quais trabalham agora as convicções e as instituições
sos», <<independentes>>, <<republicano»>, <<de modos bruscos e livres>>, <(grosseiros>>, religiosas, sem que aqueles que estão encarregados de as pâr a funcionar se aperte'
<<selváticosconsoante as aldeiap>, <<desconfiadosporque erram sempre pela monta- bam das mudançasem curso. A administraçãodos ritos e dos símbolos religiosos
nha atrás da manada>>,<<naturalmenteferozes>>.Os pastores e os camponeses dos encontra-se cada vez mais presa, congelada numa operação de controlo social que
Pirenéus não aprenderam o código da cívl/f/as erasmiana e, dc resto, não possuem faz dos fiéis o ntl/erro de uma política. Se, no que se refere à repressãodo flagelo
<<qualquereducação>> e não demonstram <<gostopelo saber>>.Nestas condições, a tarefa social da mendicidade, os já referidos reitores de Léon vêem uma solução no hospi-
do sacerdote torna-se acima de tudo um trabalho de educação e de c/vi/ízaçãa. Como tal-oficina associadoa uma <<polícin>eficaz exercida pela gendarmaria, não voltam
explica o pároco de Beaudean na diocese de Tarbes, que combate o <<despotismofeu- a falar dos mendigos como xtdeiros. Neste sentido, a resposta do pároco da ilha de
dal>>do senhor local -- este opas-se sempre à criação de uma escola que mesmo assim Molêne é unida no seu esfí/a, identificando-se através do nós com o seu povo, ao
o pastor conseguiu fundar: suplicar ao bispo Jean-Françoisde la Marche:

Os habitantes de Beaudean encontravam-se ainda, quando cheguei, num estado difí- que tenha piedade do Seu pobre povo que grita e geme na miséria: estou mais do que
cil de definir, já que a degradação da servidão extrema não é uma característica mas convencido de que em nenhum outro lugar na sua diocese se está mais desprovido de
um embrutecimento. E obrigação do nosso estado dar ao pobre povo algumas noções víveres do que aqui. Vêm até mim já sem poderem chorar ou dizer que morrem de fome,
de moralidade. Vi-me obrigado a começar por ensinar a estes infelizes que eram homens, juntamente com os filhos: por mais de uma vez lhes dei o pão que tinha em cima da
e homens que viviam em sociedade, que esperavam todas as vantagens trazidas pela minha mesa, não possuindo mais nada. Mas o sofrimento do povo causa também a
civilização [...]. Os meus progressos são tanto menos consistentes na medida em que pobreza do sacerdote. Recebi ao todo apenas 50 alqueires de cevada, medida de Brest,
estive sempre sob a mão opressora que mantinha os paroquianos ligados a mim. Todavia, pelo pagamentoda dízima, que não tardarão a esgotar-se. Como se arranjarão aqueles
pelo que pude ver naquelasalmashumilhadase limitadas a uma escravidãolonga e infelizes até ao final do ano? Não temos ninguém a quem recorrer, nem que se inte-
rígida, creio que os meus paroquianos são capazes de dar boa conta de si. O seu cora- resse por nós, excepto V. Ex.', Monsenhor.ó3
ção é bom e possuem um grande espírito: muito embora sejam religiosos e incapazes
de maldade, faltar-lhes-ão ainda, durante muito tempo, todas aquelas virtudes que reque-
rem coragem e energia."

A narrativa da vida do senhor de Semin não era, por conseguinte, ficção. Educador,
<<civilizador>>,
o bom pastor participa no movimento que transforma a ética social no
quadro de referência das práticas. O que prova, a seu modo, a evolução da figura do
sacerdote no século xvnT, é exactamente o aproveitamento das estruturas religiosas

ó2Resposta de Alexis Doleac, cura de Bodean, Biblioteca municipal de Tarbes, ms. n." 60, pp. 33-43. ó3Resposta de Joseph Bégoc, pároco de Molêne, in Roudaut-Collet-Le Flor'h, op. cfr., PP. 103-104

306 307
CAPÍTULO X

A MULHER
por DominiqueGodineau
Quando recordamos o século xviii, ocorrem-nos inúmeras figuras de mulher, reais
ou imaginárias: Madame d'Epinay, que reúne no seu salão as mentes mais ilustres
da época, a marquesa de Pompadour, protectora das artes e das letj'as, Madame Roland,
<<inspiradorados Girondinos>>,a marquesa de Merteuil, Marceline das Bodas de F@aro
que protesta com amargura contra a condição das mulheres, e a lista poderia ser muito
mais longa.
Será também por isso o Século das Luzes o século da mulher, conforme foi afir-
mado?t De muitas formas, esta afirmação parece justificada, não só porque as penso'
nagensfemininas abundamna cena pública ou literária, mas também porque a À/uZ/ier
se encontra no centro de uma série de textos em que filósofos, médicos e escritores se
interrogamsobrea suafisiologia, a suamente, a suaeducação,o seu papel na socie-
dade. A mulher, objecto de estudo, viva, real ou imaginária, está sem dúvida em toda
a parte: se caminharmos pelos bairros populares da cidade, se espreitarmos pela porta
de uma oficina artesanal, se nos sentarmos à mesa de uma tabema, ou se penetrarmos
num círculo literário, se acompanharmos uma manifestação pública, se percorrermos
as páginas de um romance ou de um ensaio ou se nos encontrarmos na primeira fila 4
de um teatro, cla estará sempre presente, Neste sentido, o Século das Luzes é efecti-
vamente o século da mulher, a qual, todavia, se mantém subordinada, menor: sem per'
tonalidade civil e política, é excluída dos centros de poder e existe juridicamente ape-
nas através dos homens. Os seusdireitos profissionais, civis e políticos não são
reconhecidos. Não nos iludamos com as figuras emblemáticas: se as mulheres reinam
nos salões literários, filosóficos e políticos, se os maiores filósofos da época não se
importam de trocar as suas ideias com as mulheres e são sensíveis às suas opmioes,
não esqueçamosque a Enc clopédíe não teve qualquer colaboradora. Madame de
Merteuil ou Marceline, enquanto símbolos de revolta contra a condição feminina,
influenciam pouco o modelo feminino do Iluminismo, que é representadopor Sophie,
a companheirasubmissade Emile, criada para ele, cuja principal função.é garantir o
bcm-estar e a felicidade do marido. Quando, no final do século, os revolucionários ten-
tarem realizar as ideias iluministas, quando procurarem construir uma cidade nova em
que todos os homens, cidadãos responsáveis, compartilhem a soberania, as mulheres
continuarão a ser excluídas. Eclodirão então com violência as contradições deste <aéculo
paradoxal>>durante o qual as .mulheresdesfrutam de uma <<promiscuidadesem igual>>'

P. Hoffmann, .La Fe/nme dons /a pensée des LI/miêres, Ophrys, Pauis, 1977
A. Farge,«ll secoloal femmínile:ruoloe rappresentazione
delladonna>>,
in .Ezzropa
7Wode/"na.
Z,a
disgregazíone de//'.A/zcíe/zRé?'game,
ed. Banca Nazionale del Lavoro, s.l., s.d., PP. 177-189

311
/a/zcede selníre des pr ages, ]673) assinalaram uma viragem fundamental do pensa'
#

)k 8
mento no que se refere à relação homem/mulher. Em vez de afirmar, como sucederaaté
àquele momento, que um dos dois géneros é superior ao outro, introduziu a noção de
E perigoso falar da mulher do Iluminismo, porque não existe uma mas várias. Pode igualdade na q lera//e. Como cartesiano convicto que é, rejeita os preconceitos a favor
ser aquela que os filósofos descrevem, tal como nos surge nos textos filosóficos, escri- da razão e baseia as suas opiniões num sistema filosófico coerente e não em preferên-
tos na sua maior parte por homens. E a mulher das Luzes masculinas,cujo retrato, cias pessoais. Declarando que <a mente não tem sexo>>,Poullain sustenta que a razão,
absolutamente teórico, não corresponde com rigor ao dos contemporâneos. A mulher que distingue o pertencerà espéciehumana,é apanágioquer dos homensquer das
do Iluminismo é também a da literatura do século xvnl, a de escritores como Choderlos mulheres. Esta humanidade comum tem precedência sobre as diferenças provenientes
dc Lados e Beaumarchais, que sabem encontrar as palavras certas para descrever a da cultura, da educaçãoe da natureza,por isso as mulheres deveriam usufruir dos mesmos
condição das mulheres da época. Ou então, será aquela que participa no movimento direitos e da mesma educaçãoque os homens (o que permitiria eliminar aqueles defeitos
iluminista, com as suasobras e a capacidadede criar em seu redor centrosintelec- que sempre lhes foram contestados) e exercer as mesmas funções, pronlssionais, intelec-
tuais? Por último, é também possível pensar que a mulher do Iluminismo é aquela que tuais e políticas. Poullain relaciona a história da subordinaçãofeminina com a história
vive no seu século. Nesse caso, não será apenas uma mulher, mas diversos tipos de das instituições e analisa a separaçãodas funções como resultado de um processohistórico.
mulher, pertencentes a diversos ambientes sociais: a cortesã, a aristocrata, a burguesa, Muito embora tenham tido pouca ressonância,os seustratados foram reeditados durante
a mulher do povo, a camponesa, etc. De igual modo, não são esquecidas as diferenças o século xvnl (e também traduzidos em inglês) e lidos, entre outros, por Montesquieu
entre as nações; muito embora as ideias iluministas sejam comuns ao mundo ocidental, e Choderlos de Lados. Alguns filósofos, como Helvétius ou Condorcet, retomam as
cada país conserva a sua cultura e as mulheres têm existências bastante diversas. suas teorias, que todavia não representam a ideologia dominante dos iluministas
Todavia, a nossa finalidade não é apresentar um catálogo exaustivo dos vários A atitude oposta, largamente maioritária, conta com dois ilustres porta-vozes, um
tipos de mulher do Iluminismo, mas evidenciar as componentesmais importantes do filósofo e um médico:Jean-Jacques
Rousseaue Pierre Roussel.O primeiro dedica a
século. Teremos de nos interrogar sobre o movimento contraditório que, por um lado, última parte do seu livro E/7zí/e o de /'Edzzcafío/z (1762) a Sop/zfe al! /a Fe/7z/ne; o
coloca as mulheres no centro da sociedade,dos textos e do pensamento,enquanto, segundo pub[ica em ] 775 um Sysfê/zze
p/zysiqEreef / tara/ de /a/e/fine, estudo do corpo
por outro, tende a relega-las para as margens, a reservar-lhes um lugar inferior. Este e do ser feminino. E enorme a influência de Rousseau e Roussel sobre o pensamento
conflito, que deriva da relação entre os dois sexos e simultaneamente a reflecte, atra- iluminista. Trazendo a um sistema uma opinião corrente, provocam um efeito dinâ-
vessatoda a época.Falar da mulher do Iluminismo significa, tambéme sobretudo, mico que tem como resultadoa multiplicação dasobras, médicase/ou filosóficas, sobre
analisar esta relação, evidenciar a sua complexidade, compreender como nasce, como a especificidade. Para estes autores, a mulher é efectivamente metade do género humano,
influencia a vida das mulheres (e dos homens) e, mais em geral, a evolução da socie- mas uma metade fundamentalmente diferente. Da diferença passa-serapidamentea
dade. Além disso, antes de mais, importa saber que imagem tinham os homens do uma desigualdade e da desigualdade à inferioridade. Mas retomemos o raciocina no
Iluminismo das mulheres suascompanheiras. seu desenvolvimento lógico. Tudo começa por uma verificação: os homens e as mulhe-
res são fisicamente diferentes. Foi a Natureza quem o determinou, e a Natureza não
faz nada ao acaso. Existem, sem dúvida, aspectoscomuns respeitantes<«àespécie'»,
O olhar doshomens escreve Rousseau, visto que as diferenças se referem <<aosexo>>.Por outras palavras
<<Emtudo aquilo que não dependerdo sexo, a mulher é homem>>.O problema é que
.4 na/urezalemílzlna. O século xvlll assinalao triunfo da ideia segundo a qual existe nas mulheres tudo deriva do sexo. <<Omacho não é macho senão em certos momen-
uma natureza feminina específica. Este triunfo é essencialmente obra de médicos e de tos, a fêmeaé fêmeapara toda a vida ou, pelo menos,em toda a suajuventude: tudo
filósofos que, muito embora não o tenham feito anteriormente,se perguntam o que é a reporta constantemente ao seu sexo.)>3Esta opinião não se deve à misoginia rousseauniana,
uma mulher e o que a distingue do homem. Falam em nome do género humano e con- visto que Diderot pensaexactamenteo mesmo: <a mulher traz dentro de si um órgão
sideram-se observadores neutros das diferenças entre os dois sexos mas é na qualidade susceptível de espasmos terríveis, que dispõe da sua pessoa ...>>' E acrescenta que a
de homens que escrevem, e é o seu sexo que serve de ponto de referência, de medida, vida da mulher é marcadapelas suasfunções sexuais: menstruação,gravidez, meno-
para analisar o outro. Assim, na EPzcyc/opédfe
de Diderot, a mulher é definida como pausa. Quanto a Roussel, afirma que <<amulher não o é apenas nesse ponto, mas em
«fêmea do homem>>,enquanto algumas páginas mais adiante, no artigo <(Homem>>,
se todos os aspectosatravésdos quais é possível considera-la>>5.
O útero é o órgão femi-
lê uma definição geral da espécieinteira. Eis-nos chegadosa um dos maioresproble-
mas do Iluminismo: como conciliar a diferença entrc os dois sexos e uma filoso6la do
3 J.-J. Rousseau,E/7zí//oe a//rí scrí/fí pedagogícf,trad. it. de L. De Anna, Sansoni,Florença, 1923:
universal. Todos os autoressão unânimesem afirmar que as mulheres constituem metade
pp. 367e 371
do género humano mas, uma vez aceite esta premissa, as posições divergem. 4 D. Diderot, Sur /e{/e/n//les, in Oeupresde Dlderor, <<Bibjiothêque
de la Pléiade>>,
Galimard, Paras
Uma corrente é representadapelos herdeiros de Poullain de la Barre. As suas obras 1951, P. 952
(sobretudo De !'égalité des detlx sexos. Discottrs physiqlle et mora! oü I' on volt I' impor- s P. Roussel, Sysr/zê/nf p&ysique er /nau/ de /a /e/plllze, Chapar, Caille et Ravier, Paria, 1805:, p. l

312 313
r

nino por excelência, aqueleque comandatodos os outros órgãos. Domina e determina principais têm por fundo a cena doméstica.Por outro lado, sustentamos médicos,
a mulher, definida por isso a partir do seu sexo e não da razão,como o homem. não foi feita para o exercício físico: os seusossos são menos duros, as ancas e a
bacia conferem-lhe um andamento pouco seguro. Enquanto o marido reflecte sobre
Á razão das mz{/Acres.Com efeito, a mulher não pode ter o mesmo tipo de razão o destino humano ou sai para desenvolver uma vida social, !.mulher fica em casa a
que o homem. A sua está, tal como o resto da pessoa,sujeita aos órgãos genitais. cuidar dos filhos. a tornar o lar o mais acolhedor possível. Cada sexo possui as fun-
Daí provém em grande parte a sua fraqueza e, por conseguinte, a sua inferioridade. çoes que a natureza quis: públicas as do homem, privadas as da mulher, que não se
Por um lado, é uma eterna doente, sujeita regularmente a males que Ihe são especí- misturam a fim de se evitar uma subversão. Ao analisar a diferença e a relação dos
ficos: autêntico /za/zdicapque não Ihe permite levar uma vida social activa. Por outro, sexos, o pensamentoiluminista torna-se profundamente determinista e funcionalista.
<<Sofiadeve ser mulher, tal como Emílio é homem, isto é, ter tudo o que convémà
o útero dominador faz dela um ser excessivamentesensível, presade uma imagina-
ção desenfreada,exaltada. Diderot, por exemplo, depois de ter salientado que este constituição da sua espéciee do seu sexo para ocupar o devido lugar na ordem física
órgão <<dispõeda mulher>>,acrescentaque <<suscitana sua imaginação fantasmasde erBioral. >>' '
toda a espécie>>ó.
Médicos como Roussel explicam a sensibilidade superior das mulhe- 1 0 século da razão triunfante não está, por conseguinte, bento de paradoxos. Numa
res através da maior ramificação dos vasos sanguíneos e dos seus nervos. O sensismo slEbãedade
em que (pelo menos, em trança),a.promiscuidade tlm lugar a todo o
de Condillac, predominante na época, faz derivar a razão da sensação. Sendo as momento e as mulheres se encontram no seios'tear"sociedade;'nãs praças ou nos cír
mulheres predominantemente sensíveis, têm por isso mais vantagens? Não, porque a cujos literários, triunfa uma ideologia que distribui sem apelo nem agravo as quali-
sensibilidade excessiva bloqueia essedesenvolvimento: demasiadassensaçõesimpe- dades, o espaço e as funções sociais entre os sexos. Os homens do Iluminismo tro-
dem a maturação das ideias, a passagemdo sensível ao conceptual. As ideias ficam-se, cam regularmente ideias e conceitos com as mulheres, mas duvidam das possibilidades
por conseguinte, pelo primeiro estádio, o da imaginação, uma imaginação negativa, intelectuais da <<mulhep>.
Enquanto as Luzes declaram guerra aos preconceitos, ini-
povoada por <<fantasmas
de toda a espécie>>,
infantil («Ó mulheresl sois crianças migos da razão, os filósofos não pensam libertar-se deles no que respeita às mulhe-
deveras extraordinárias>>,escreve ainda Diderot), incontrolável7 e perigosa. res; e mesmo que se coloque no centro do seu discurso a noção de universal e o prin-
Incapaz de uma conceptualização acabada, a sua razão deve virar-se para o con- cípio de igualdade que se baseia no direito natural, defendem a ideia de uma <<natureza
creto, o prático. <<Cabe-lhea aplicação dos princípios a que o homem chegou e com- feminina>> separada e inferior. A crença na
dos fundamentos do pensamento iluminista: o piõgiêiiã ãiiãzão congtiiliií üiR dos
pete-lhe fazer aquelasobservaçõesque levam o homem a estabelecerprincípios>>;<m
mulher observa, e o homem raciocina>>,8 escreve Rousseaua propósito de Sophie. motores da história. Mas as mulheres situam-se fora da história inteiramente deter-
Como não Ihe compete a abstracção,a reflexão feminina pode incidir sobre o espe- minadas pela sua fisiologia, sob o signo do imutável. A sua razão, as suas funções,
cífico e não sobre o genérico. Não deve filosofar sobre o Homem, mas <<énecessá- a sua<<natureza>>
não evduem. <<Emtodos os tempop>,como repeteEmílio, os seus
rio que estudea fundo o espírito [...] dos homens que a rodeiam, o espírito dos deveres são os mesmos.
homens a que se encontra submetida, seja pela lei seja pela opinião>9. O uso da razão Estas contradições derivam em grande parte da dificuldade de enfrentar a dife-
dirige-se aos outros, ao marido, aos filhos: esse uso permite-lhe assegurar a felici- rença sexual. Quando é um homem que fala das mulheres, vê-se confrontado com
uma dificuldade filosófica em relação à articulação de um discurso sobre o univer-
dade deles e o seu bem-estar e, portanto, desempenhar correctamente o seu papel de
mulher. sal e sobre o Outro, que se afigura ainda mais evidente quando o Outro se tornou
um inimigo capazde produzir a morte.De repente,no interior da mesmapágina,
O pape/ das ma//leres. Tudo isto sucede porque a diferença anatómica e intelec- nasce um verdadeiro medo da mulher, da sua sexualidade <'ilimitad»> (Rousseau),
tual entre os dois sexos correspondea uma diferença de funções sociais. <<Osla/zls medo de que a atracçãoque os homenssofrem os conduza à morte. Felizmente, a
da mulher>>
é ser mãe, afirmou Rousseaue também os médicos,que salientamque natureza dotou-as de modéstia, de vergonha e de pudor para refrear a insaciabili-
a sua configuração anatómica a predestinou a tal tarefa. Desta função'inatefnà e da dade. O corpo feminino, cujas funções constituem ainda um mistério para a ciên-
sua debilidade fisiológica deriva uma vida menos activa, um restado passivo» (Roussel) cia, assustapela sua diferença e pela sua violência. As páginasque os filósofos e
imposto pela natureza. A mulher dos iluministas é uma sedentária, cujas actividades os médicos enchem de palavras sobre as mulheres transbordam de contradições:
passa-sebruscamenteda figura de mulher doce e maternal para a de uma mulher
desenfreada e selvagem, a ponto de nos interrogarmos se as longas dissertações sobre
6 Diderot, op. cír., p. 952. a fraqueza e o pudor femininos não serão um exorcismo destinado a tranquiliza-las
7M. Crampe-Casnabet,<<Ladonna nelle opere filosofiche del Settecento>>, in G. Duby-M. Perrot (direc- em vez de uma afirmação já em si segura. Estas angústias surgem com muito maior
ção de), Suor/adel/e da/l/ze, vol. 111,direcção de N. Zemon Davis e A. Farge, Laterza, Romã-Bari, 1991, nitidez noutro tipo de textos, os da chamadaliteratura popular, em que são postas
pp. 315-50; cfr. também Y. Knibiehler, «Les médecins et la nature féminine au tempo du Code Civil», in a nu
,4lz/zíz/esE.S. C. (Jun.-Jul. 1976). 7
8Rousseau,op. cír., p. 402.
Ibid. io /lidem, p. 367

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V

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Outras tantas in.justiças bem conhecidas ainda que sejam recordadas, revelam-se
insuficientes para dar uma ideia da complexidade da condição feminina na época do
Iluminismo. Por isso, vamos deixar a mll/Àer dos filósofos, dos médicos, dos roman-
.4 mu//zer /za /iferafura. O romance do século xvul celebra as mulheres e cria cistas e dos legisladores, a fim de conhecermosa/gemas mu//fere.çdo século XVIII.
complexas figuras de heroínas. A guerra dos sexos torna-se um expediente da acção Ricas ou pobres, instruídas ou ignorantes, cada uma aproveita à sua maneira as fis-
dramática. A mulher é objecto de comiseração e/ou de exaltação, mas não perma- suras do tecido social para participar na vida pública, não obstante os discursos,os
nece no estado de caricatura estereotipada; torna-se uma personagem verdadeira e os preconceitos e as leis.
esçrítores descrevem a sua condição, os seus problemas, a sua psicologia.
O tom varia nas obras escritas para o povo (mas não pelo povo), que são objecto, O casa17zen/o
posto em causa. Uma jovem fica a saber pela criada de quarto que
nà)século xvm, de um novo êxito. Esta literatura de grande divulgação, conhecida cm breve será dada como esposa,e chora. O pai fica surpreendido:<<Quemal tem
com o nome de <(Bibliothêque Bleue>>(devido à cor das capas dos livros), difunde casar-secom um homemde boas famílias, muito gentil e sobretudobastanterico?
uma imagem da mulher que é dominada por estereótipose surpreendepelo seu ódio. Acredito nisso tudo, já que mo dizeis mas é demasiado ser dada como esposaa um
Má, cruel, astuta, vaidosa, preguiçosa, colérica, tagarela, concupiscente, perdulária e homem desconhecido.>> Depois de Ihe explicar que os únicos casamentos maus são
dominadora, parece ter sido criada para a infelicidade dos homens. Discípula de os de amor, o pai conclui dizendo: <<Oscampónios têm necessidadede se amar para
Satanás, espalhou a morte sobre a Terra. Quando Deus criou Eva a partir da costela serem felizes na sua vida a dois mas, à parte o facto de as pessoas ricas viverem jun-
de Adio, teve o cuidado de o fazer cair no sono <<paraque este não visse sair do seu tas de maneira digna, a riqueza faz com que se dêem bem. Vamos, minha filha, fir-
corpo aquelaque o iria levar consigo para a tumb»>''. Subjacentea um invólucro meza, coragem, alegria, vai correr tudo bem!>>':
terreno belo e fascinante,por isso mesmoainda mais terrível, a mulher é a morte e O aspectoestereotipadodeste diálogo imaginado por Louis-Sébastien Mercier não
o seu amplexo fatal ao homem. Para esconjurar a morte é preciso subjugar a mulher, afecta a sua verosimilhança. Nos meios abastados, o casamento é ainda visto sobre-
domestica-la, a partir do momento em que o homem é obrigado a viver com ela. tudo como uma transacção social ou económica, decidida pelos homens da família.
A fim de evitar ser reduzido ao nada pelo casamento,o homem deve dominar a sua O futuro consorte é escolhido pelos pais da jovem em função da posição social e dos
esposa,reprimindo-lhe os desejos e o insaciável apetite sexual, deve aniquilar a rendimentos; esperam,deste modo, criar uma união conveniente ou garantir a situa-
sua personalidade. A <<mulher-morte»activa toma-se assim uma <<mulhermorta devido ção da filha. Pouco importa se o feliz contemplado é um velho, se a noiva ama outro
à inexistência pessoal e social)>tz.SÓ nestas condições é possível viver com ela. ou simplesmente se não Ihe agrada: tem de se calar, porque os pais estão convenci-
A <<BibliothêqueBleue>>transforma o casamento numa autêntica guerra, sem punhos dos de que agem para o seu bem. Para o final do século, as filhas de família sensí-
de renda, mas que o homem deve vencer se não quiser ser derrotado. Tal excesso veis às novas ideias do Iluminismo, nobres ou plebeias, poderão fazer ouvir a sua
revela, melhor do que as frases amáveis dos filósofos, o conflito entre os homens e voz com maior facilidade: muito embora preocupados em encontrar bons partidos
as mulheres,e também a angústiamasculinaque suscita.O casal é um dos princi- para as suas filhas, nem o pai de Victorine de Chastenay (nascida em 1771), nem o
pais lugares desta competição. As Luzes põem em causa axcasamentotradicional, de Manon Phlipon (a futura Madame Roland, nascida em 1754) se opõem à recusa
terminante de casarem com os pretendentes que lhes são apresentados. O nobre ou
avançandouma nova concepçãoda relação marido-mulher. J
o mestre gravador, ambos adeptos dos phi/osopAes, haviam certamente lido uma parte
da abundante literatura, ensaios, romances ou peças teatrais, que denunciavam os
Mulheres casadas casamentoscombinados.
O casamentotradicional é, com efeito, um dos objectivos preferidos das Luzes:
Sem dúvida, a vontade de submeter as mulheres reside na condição que lhes é <<Ocasamento tornou-se um jugo pesados, escreve ainda Mercieri'. O que se cen-
imposta por lei. Em todos os paísesocidentais, elas são menoresdo ponto de vista sura nesta instituição? Acima de tudo, ser pervertida pelas convenções sociais e pelo
jurídico, com uma personalidade civil quase inexistente: geralmente, não têm o direito dinheiro (Mercier exige a eliminação do dote, segundo ele, a principal fonte dos dis-
de mover acçõesou de assumir um compromisso. Os seus bens são, na maioria dos sabores conjugais). São apontados esposos mal escolhidos cuja união será um desas-
casos, administrados pelos maridos sem que tenham sequer a possibilidade de intervir. tre. Choram-seas jovens sacrificadasà política familiar, dadas a velhos repugnan-
O direito consuetudinário francês coloca a esposasob a autoridade do marido, sem cuja tes, a libertinos que delapidação o seu património, a avarentos que as farão viver na
autorização não pode agir. Em algumas regiões, as raparigas são afastadas da herança miséria, etc. As mais resignadasserãovotadas à infelicidade, outras trairão os mari-
paterna. Em todo o lado, as mulheres vêem-se excluídas da direcção das associações dos. Tais casamentos são, por isso, rejeitados em nome da liberdade das jovens e em
de ofícios, bem como das instânciaspolíticas, municipais, regionais ou nacionais. nome dos bons costumes de que são a tumba.

il L.-S. Mercier, «Comment se fait un marriage», in Zab/ealí de Paras, Paria, 1783-1786


A. Farge, l,e /7zíroírdes/e/71/1zes,
Montajba, Pauis, 1982
/bídem, p. 35. t+<<Filles nubiles», íbide/71.

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A indissolubilidade do casamento é, assim, fortemente atacada. O divórcio existe da natureza>>
venceu. Uma vez casado,Emile não tratará a mulher como <<oseu
em vários paísesprotestantes,mas na Europa católica os cônjuges que acabam por cavalo>>,
mas como a suacompanheira,e os dois procurarãoconstituir uma família
se odiar são condenados a permanecer unidos até à morte. Por certo, a separação feliz. Mas, objectarão, Sophie encontra-se numa posição inferior e a união assenta
física e dos bens constitui uma saída, mas os esposos separados não podem voltar a na desigualdadesSe não há lugar para a D. Discórdia, se não existem gritos nem lití-
casar. Tornam-se deste modo <<inúteisao Estado>>,já que não são fecundos, ou então gios, é porque Sophie,que <<cedo
aprendeua suportar sem se queixar a injustiça e
votados à libertinagem>>,escreve MercieriS, que mais uma vez retoma habilmente as afrontas de um marido>>,Ihe obedece sem protestar e não procura senão agradar-
as ideias do século e exige manifestamente a liberalização do divórcio. Vai-se desen- -lhe: Sophie ou a <(mulher-morte>>
da literatura popular. Por certo, não obstante o seu
volvendo a pouco e pouco a ideia contra a concepção religiosa da indissolubilidade excesso e a sua crueza, Rousseau não chega a destoar no seu século, visto que todos
contratual do matrimónio. Este é então considerado como um contrato livremente os pensadores, enquanto progressistas, estão de acordo ao afirmarem que é natural
aceite por duas partes iguais e que pode ser dissolvido. Esta noção irá concretizar-se que seja o homem a dominar e a mandar. Ser a companheira do próprio marido não
durante a Revolução Francesa, quando a Constituição de 1791 garantir que <<alei não significa em nenhuma circunstância ser sua igual. Se o amor, a confiança ou mesmo
considera o casamentocomo um contrato civil)>, definição propriamente revolucio- a cumplicidade imperam no casal do Iluminismo, isso não quer dizer, de modo nenhum
nária que, por um lado, transforma a mulher numa pessoajurídica e, por outro, abre que exista desigualdade,muito pelo contrário.
o caminho à legislação que autoriza o divórcio (20 de Setembro de 1792). Na série de 37 festividades propostas por Robespierre para a Convenção na assem-
bleia de 7 de Maio de 1794, a vigésima segunda é dedicada ao Amor, e as quatro
O casa/ na ( oca i/umi/zisfa. Ressalta das reflexões sobre o casamento uma nova seguintesàs virtudes familiares, entre as quais figuram a Fidelidade conjugal, seguida
visão do casal. Na época iluminista, o casal deve assentarnos sentimentose não nas do Amor paterno, da Ternura materna e da Devoção filial. Fidelidade: a palavra sur-
conveniências. Não é concebido como sede de desafio entre o homem e a mulher mas preende. Quiçá ingenuamente, seria de a esperar do Amor, mas dá uma ideia dos sen-
como sede de harmonia e de expressão de duas pessoas,construída por ambos os par- timentos que, segundoos critérios então vigentes, devem predominar entre os espo-
ceiros. Em 1797, Kant publica a À/era/bica dos Cosia/lhese, numa secção intitulada sos. O Directório mantém uma parte do sistema festivo de Robespierre: todos os anos
<<Direitoconjugal>>,apresentaa seguinte denlnição de matrimónio: <<Omatrimónio é a se celebrava a Festa dos Casados. Nessa ocasião, notáveis membros do Directório,
união de duas pessoasde sexo diferente para a posserecíproca das suasfaculdades sexu- homens dos finais do século XVlll, davam a conhecer em discursos normativos a sua
ais durante toda a vida.>>'' Um outro filósofo alemão, Fichte, afimia que <<nãoexiste visão do casal ideal. O estudo destestextos'9 permite conhecer melhor o significado
outro objectivo excepto o próprio, que depois se transforma no próprio objectivo, isto da fórmula de Robespierre. Os casamentosfelizes, dizem-nos, são <<frutoda refle-
é, uma relação recíproca,natural e moral dos coraçõep>(Fu/zdamerzros da Z)freira Naítlra/, xão>. O amor conjugal é um amor racional. A paixão, apenas tolerada no acto da
i796y'. As noções de contrato livremente aceite e de cooperação mútua valorizam a génesedo casal, deve ser repelida se se reduzir a um <<prazer
passageiro>>,
a <wma
posição da mulher. Estas noções não são apanágio de um pequeno círculo de mentes sensaçãointensa que tudo destrói, ficando o rcmorso>, se não se fizer acompanhar
iluminadas. difundem-se antes na sociedade,testemunhando uma evolução profunda das da estima, das virtudes e da harmonia dos caracteres. E isto porque a paixão é efé
mentalidades. Assim, enquanto um provérbio do século xvl afirmava que <<o cavalo bom mera e quando se apaga devem poder suceder-lhe a confiança e a amizade, verda
e o cavalo mau precisam das esporas -- mulher boa, mulher má precisam do pau>>,em deiro cimento da união. <<Oamor une o casal, lê-se num destes discursos, mas é a
1786, lê-se, ao invés, no Z)ícfíon/zaíreComia le de Leroux, que <<épreciso ser-seo com- amizade que o dirige.)> Tal amizade, baseada na estima, na franqueza, na <<ternura
panheiro da própria mulher e o dono do próprio cavalo>>i8.Paradoxal Século das Luzes, iluminada>>
e na fidelidade, deve ser <<sábia>>,
regida pela razão. Do sexo masculino,
diremos mais uma vez, que nos dá duas imagens do casamento, a sinistra da <<Bibliothêque os oradoresdirigem-se por diversasvezes às jovens para delinearem melhor a sua
Bleue>>e uma outra, muito mais optimista e lenitiva, que faz dos espososdois companhehos. posição futura, subordinada, mas não escrava. A esposa é <a companheira do homem
E Rousseau,interrogar-nos-emos?Onde colocar Emile e Sophie, o casal-modelo na sua juventude, a sua amiga na idade madura, a sua ama na velhico>.
e guia do Iluminismo? Sophie é verdadeiramentea companheirade Emile. O seu Quanto às mulheres, que esperam do casamento?Publicaram menos do que os
casamentonão foi de conveniência; os pais, orientando-a com sabedoria,deixaram- homens, mas mesmo assim é possível conhecer as suas aspirações graças a outros
-na escolher o eleito do seu coração. O amor e o afecto precederam a união, <<odireito tipos de texto, sobretudoos arquivosjudiciários e policiais, que nos fornecem mais
informações sobre o casal da camada popular.
i5 «Séparation», /bode/72.
ió1. Kant, il/era/isíca deí casou/7zí,
Laterza,Bati, 1970,p. 96. O coxa/da carfadapopa/ar. Estecasalconstitui-secom muito maior liberdade
7Citado por M.-C. Hoock-Demarle in in/e/?zme d remos de Gaerhe, Stock, Paras,1987, pp. 123 e do que nos meios abastados,pois a atracção recíproca predomina sobre o aspecto
163. [Não estandodisponível a edição italiana da obra de Fichte, reportamo-nosaqui ao título original económico. A jovem trabalha e, pelo menos nas cidades, não depende completamente
Gru/7d/age de.s]Va/lfrrecArs /mica Principiem der IVfsseriscAú#sle/zre,bei Christian Ernst Gabler, lena- dos pais, a quem abandona por vezes para ir viver só. Não são raras as ocasiões de
Leipzig 1796, N. T.]
i8 Citado por J.-L. Flandrin in Fa/n///es. Pa/-e/zfé,/zlaíso/z,sextía/i/é dons /'a/zcie/?/zesocféré, Seuil,
Pauis, 1984, p. 121 ' E conservada na Biblioteca Nacional de Pauiscerca de uma vintena deles com a classificação Lb42

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encontro,e a ausênciade estratégiasfinanceirasrígidas facilita a união, legítima ou a sobrevivênciado casal. Elemento constituinte da paisagemsocial e familiar, é a
não, já que, mesmo não sendo a norma, é frequente o concubinato e este desenvolve- norma nos ambientes populares e ocupa um lugar de destaque na vida económica.
se nas grandes cidades durante o século xvlii. Não que o casamento seja um acto '«Sabem-no os cidadãos do século xvln, que em cada curva da estrada encontram
decidido de ânimo leve, mas não se rege pelas mesmas regras. A mulher do povo jovens vendedeiras, comerciantes, mulheres pobres que para sobreviverem vendem de
espera que o casamento Ihe traga felicidade, muitas vezes equiparada à palavra tudo, roupas e chapéusvelhos, pequenosbolos ou tisanas,flores ou tabaco. A mulher
<<arrumo>>. Numa vida demasiado precária, deve ser sinónimo de estabilidade, afec- do mercado e a lavadeira, a que a lenda atribuiu mau carácter e uma língua comprida,
tiva e socioeconómica,visto que a união popular obedeceapenasàs leis do amor. Se são também figuras que se encontram com frequência, bem como a criada, normal-
o dinheiro não entra em jogo na formação do casal, os noivos, homens e mulheres, mente oriunda do campo (numa cidade como Paria, as mulheres representamquase
esperam mesmo assim um progresso económico na sua união, assente na comunhão 80qn da criadagem). Também é sabido que as mulheres ganham a vida com trabalhos
dos frutos do seu trabalho. de costura, e os cronistas da época vilipendiam os homens que não hesitam em pegar
h As queixas registadas nos arquivos indicam, de forma negativa, como se processa na agulha, privando deste modo as mulheres de um trabalho que é consideradoseu.
a repartição social das funções masculinas e femininas no casal da camada popular. Não é necessário recordar que as camponesas(a maioria da população) trabalham tam-
Através das amargas desilusões, dos rancores sórdidos, da indignação dos testemunhos, bém arduamenteem casa,onde as tarefas são distribuídas consoante os sexos. A maioria
vislumbram-se os retratos do bom marido e da boa mulher. Ao trabalhar, a mulher deve conservou as imagens tradicionais das mulheres no trabalho e, de acordo com um fenó-
administrar o dinheiro da família e arranjar-se como pode com o que tem para que a meno bastante frequente, deduziu-se que estas actividades de serviço eram os únicos
comida nunca falte na mesa.Esta função feminina de ama, cujas dificuldades os homens campos da vida económica em que as trabalhadoras intervinham. Isso implica esque-
não estão interessados em conhecer, é um dos motivos da participação das mulheres cer de uma forma um pouco brusca as inúmeras operárias do artesanato, empregadas
nas revoltas, devido à escassezde alimentos: não é então apenas a fome ou o instinto no trabalho têxtil, sem dúvida, mas também na laboração da madeira, do metal (poli-
maternal que as leva a encabeçar a multidão, mas também o insuportável fracasso da mento, fabrico de agulhas. . .), do papel, dos livros, dos leques, das cigarreiras, etc. Estas
sua função social. Também o marido tem deveres a cumprir: não deve agredir a mulher, operáriastrabalhamem casa,ao lado dos maridos,ou em oficinas onde auxiliam os
traí-la, falar-lhe com demasiadarispidez ou põr em perigo com o seu comportamento operários especializados. Do outro lado da pequena oficina artesanal há uma persona-
a honra comum do casal. Não deve delapidar o património familiar, pelo contrário, gem feminina sempre presente: a mulher do dono, que participa activamente na vida
deve dar à mulher meios para manter a vida doméstica. Se, por um lado, a esposa espera da oficina, vende os produtos, dirige a actividade quando o marido se ausenta por moti-
encontrar no casamentouma certa estabilidade económica, por outro, esperatambém vos de trabalho; não é raro vê-la à frente da contabilidade ou meter mãos à obra.
que o marido a estimee manifesteum comportamentozelosoem relaçãoa ela e aos
filhos. Se este acordo tácito for demasiado frequentemente e demasiado violentamente ao esfaf fo desagua/.Indispensáveisna vida económica,mesmoassim, as
violado. a mulher não hesitará, não obstante as dificuldades económicasque a espe- mulheres não ocupam um lugar idêntico ao dos homens. Menos qualificadas, estão
ram, em abandonaro domicílio conjugal com os filhos para tentar refazera suavida limitadas aos trabalhos subalternosde preparaçãoou dc acabamentoe, por isso, são
noutro lugar. Além disso, a mulher do povo quer conservar a sua parte de autonomia: menos bem remuneradas. Aqueles e aquelas que, para porem termo a este círculo
em alguns aspectos,o marido não deve imiscuir-se, nem tão-pouco ela Ihe deve dar vicioso e permitirem que as mulheres ganhemdecentementea vida, propõem que
satisfações.A mulher sabe que tem o direito, uma vez cumpridos os seus deveres lhes seja atribuída uma qualificação igual à dos homens, fazem recair sobre si a fúria
familiares, de sair quando quiser, quer para tratar de assuntospessoaisquer para con destes. Em Paras,durante a Revolução Francesa, é aberta uma escola tipográfica para
versar com as amigas ou para ir à taberna lugar misto, em que a presençade uma mulheres: até então, as operárias da imprensa eram cosedoras ou encadernadoras de
mulher, só ou acompanhadade amigos ou amigas, não chegaa surpreender. livros e ganhavam em média sete vezes menos do que um operário tipógrafo. Ao ser
anunciado que se pretendia iniciar as mulheres nos trabalhos mais <'nobres>>(e por
isso mais bem pagos) do ofício, todos os tipógrafos parisiensesprotestaram e reagi-
Mulheres que trabalham ram de forma violenta em relação ao director da escola e aos colegas que ousassem
transmitir a sua experiência às mulheres.
Z)as'operárias.. . Louis-Sébastien Mercier referiu esta relativa independência das Além disso, excepção feita a certas profissões relacionadas com o comércio ou a
mulheres (e das jovens) do estrato popular, artesão ou pequeno-burguês, e asso- moda de carácter feminino, as mulheres vêem-se afastadasdo sistema corporativo.
ciou-a a uma actividade profissional que Ihe permite ter <<maispoder no seu lar>>e Todavia. a mulher do dono, sem a qual a oficina não progrediria, é como se não exis
<<disporsempre de um pouco de dinheiros, algo que não sucede com as mulheres risse aos olhos da corporaçãodo ofício, que a ignora; se o marido morre e a viúva
de estratos sociais mais elevados.A observaçãoé pertinente. A maior parte das volta a casar, é o novo consorte que vai herdar a empresa. Quanto às operárias, muito
mulheres do Século das Luzes trabalha nas cidades ou nos campos. Não se trata de embora tenham beneficiado de uma formação de aprendizas, nunca se tornttm ope'
uma livre escolha mas de necessidade económica: numa época em que o limite entre farias e vêem-se afastadas das organizações de <<compagnonnage>>
de fisionomia pre
a pobrezae a indigência é muito pequeno,o trabalho da mulher é obrigatório para dominantemente masculina.

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Assim, não obstante uma presença significativa na quase totalidade dos vários O convento, acusadode tornar as jovens ignorantes, é o alvo preferido das críti-
sectores económicos, as mulheres são excluídas dos órgãos representativos do mundo cas. Nele se dá preferênciaa uma educaçãofamiliar, do tipo de Emile e Sophie.
do trabalho e ignoradas em Lermosjurídicos. Mais uma vez nos encontramos perante Conscientes de que tal educaçãosó pode ser apanágio de ambientes privilegiados,
esta ambiguidade característica do Século das Luzes que coloca as mulheres no cen- alguns autores imaginam verdadeiras instituições escolares para jovens do sexo femi-
tro e, simultaneamente, as empurra para a periferia. nino. E evitada a promiscuidade por lazões de bons costumes, mas também porque
nem o conteúdo nem a finalidade da instrução dos rapazes e das raparigas são os
mesmos. Uns aprendem por si próprios, as outras com vista à sua futura função social
A educação das jovens na época das Luzes e doméstica. <<Todaa educação das mulheres deve ser relativa aos homens>>escreve
Rousseau'' : tem por objectivo formar esposas eficientes e agradáveis, mães capazes
O debate. A companheira do homem iluminista não pode ser uma imbecil e deve de cuidar correctamente dos seus filhos. Saber governar a casa, saber ler, escrever e
possuir um mínimo de instrução para o conseguir entender, discutir com ele e edu fazer contas, conhecer alguns rudimentos de história, de geografia, de literatura e de
car os filhos, escrevemalguns. Mas como a falta de instrução feminina é uma das línguas estrangeiras, sem esquecer, como é óbvio, a religião, a dança, a música e
principais causas da desigualdade, é imperioso remediá-la para que as mulheres per- eventualmenteo desenho,é mais do que suficiente para as mulheres.Paraque lhes
cam as suas deficiências e lhes possa ser restituída a sua verdadeira natureza e o serviria saber grego, latim ou axiomas científicos? Para se tornarem pedantes,ridí-
lugar que lhes deveria pertencer na sociedade,dizem outros. Quaisquerque sejam as culas, deploráveis donas de casa ou velhas solteironas rabugentas, como as b/aex-
razões, a questão da instrução feminina faz correr rios de tinta. O debate não é novo. fockíngs que tanto motivo de riso originam em Inglaterra. Esta visão espartilhada é
O século anterior vira muitos defensores da instrução feminina, moderados como denunciada com cada vez maior veemência por mulheres que reclamam uma verda-
Mademoiselle de Scudéry, Madame de Sévigné ou Fénelon, militantes e feministas deira mudançano conteúdo do ensino feminino, exaltam a igualdade de conheci-
como Poullain de la Barre ou Mary Astel1 (.4 SeríousProposa/ 7'o The Z,adles,1694). mentos entre os dois sexos e convidam as suas irmãs a completar a sua instrução em
A difusão do Iluminismo, que coloca a instrução no centro do seu pensamento,pro- todos os campos.
põe novamentea questãocom mais força e, especialmente,na segundametadedo
século xvlll, faz proliferar as obras sobre o assunto. Homens, mulheres, filósofos, /rzsfrz#çãodlvers #cada. Para além dos debates e dos projectos, qual era na ver-
escritores, célebres ou desconhecidos,oferecem ao público o fruto das suas refle dade o grau de instrução das mulheres na época iluminista? Não se pode negar que
xões, formulam propostas, traçam planos. As Academias de província, que fazem eco um pouco por todas as classes as mulherestenham beneficiado do sistemaeducativo
das questões do momento, perguntam <<Comopode a instrução feminina melhorar os existente no século anterior. Em finais do século xvll, 14 mulheres francesas em 100
homens?>>(Bcsançon, 1775) ou <<Qualé a melhor maneira de aperfeiçoar a instrução sabiam assinar; um século depois, a proporção quase duplicou. Predomina, scm dúvida,
das mulheres?>>(Châlons-sur-Marne, 1783). Foi para dar resposta a esta pergunta que a desigualdade entre os sexos: no mesmo período, 48qn dos homens encontram-se na
Lados escreveu o ensaio Z)e J'édzlca/íon des Jemmes. mesma situação (isto é, 177 homens contra 100 mulheres). Todavia, a diferença dimi-
As vozes femininas estão presentesnum debate que tanto lhes diz respeito. Madame nui a partir do momento em que, no século anterior, 207 homens contra 100 mulhe-
de Miremont consagra vários anos a um volumoso Tra ré de /'éd cízrío/zdexlemmes res sabiam escrever o seu nome. Assim, enquanto em 1755 60qu dos ingleses e 35qo
(7 volumes publicados entre 1779 e 1789). A imprensa feminina, que nasce neste das inglesas assinavam os registos matrimoniais da Church of England, passados 35
período20,transforma o assunto num dos temas predilectos. Em Tbe JVon.çefzseoÍ anos a percentagem masculina é a mesma, ao passo que a das mulheres aumentou
Com/7zolz Se/zse (1737), Lady Montagu, amiga de Mary Astell, defende a instrução 5qo. Idêntico fenómeno se regista em todo o mundo ocidental. Em 1630, 178 homens
feminina. Redactora do <'FemaleSpectator>>
(1744-1746) e depois das <<Epistlesfor contra 100 mulheres assinavam as promessas de casamento redigidas em presença
the Ladies>>(1749-1750), Eliza Haywood convida as suas leituras ao estudo. Quer do notário em Amsterdão (57%üe 32qn); em 1780, a proporção é de 133 homens con-
Tâe Z,adíes]b/agazi/zquer Z,eJourna/ dei Danes (1759- 1778) dedicam especialmente tra 100 mulheres (85%ne 64%). Na província de Turim, em que se parte de níveis
a atençãoà instrução dasjovens. Na Alemanha, Sophie von la Rochacria revistas muito baixos, a proeza é ainda mais espectacu]ar:em 17]0, 350 homens contra 100
femininas de carácter pedagógico (Z,e/iresà Roxa/íe em 1772, Po/no/zí2em 1783). mulheres (21 qo e 6qo) assinavam o contrato de casamento; passados 80 anos não são
Esta escritora conquistou a celebridade graças ao seu romance r'rdu/eí?z vo/z S/er/z/zeíln <<mais de>»216 contra ]00 mulheres (65qo e 30qü). Na Nova Inglaterra americana,
(]771), que abordava o problema da educação da jovem. Como ela, outras mulheres cuja diferença é menos evidente, a progressão não é tão surpreendente: 182 homens
escolhem o estilo romanceado para denunciar as falhas da instrução feminina e pro- contra 100 mulheres assinam o seu testamento em meados do século xvnl (84qu e
por um sistema mais satisfatório: Madame de Graffigny (l,effres d 'u/ze Pérouvíennc?, 46qo), enquanto são 196 um século depois (61qo e 31qü)::. Porém, estes números
1752), Maric Jeanne Riccoboni(Hísfoíre d'Erres'/file, 1762), etc.
zi Rousseau,op. cir., p. 375
22Todos estesnúmeros são citados por R. Chartier in <<Lepratiche della scrittura», in P. Ariês-G. Duby
Cfr. os ensaiosde M. Sonnet e N. Gelbart in Duby-Perrot, op. cir., pp. 119-155 e 435-454; cfr. tam-
bém M. Sonnet, Z,'Edzzcafía/z des .P//es azf rernps des Z,lr/?zíêres,Cerf, Paris, 1987. (direcçãode), la vila privara da/ Rfrzasclme/zro
a//'/IJumínlslno, Laterza, Romã-Bari, 1988,pp 76-117

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escondem imensas disparidades, regionais e sociais. Assim, na França Meridional, a Os colégios onde se formam os adolescentesdo século não recebemjovens do
alfabetizaçãogeral é inferior à média nacional, e a diferençahomem-mulheré niti- sexo feminino. Para onde mandar então todas aquelas que não podem beneficiar de
damente mais significativa do que a Norte da famosa linha que vai de Saint-Maio a uma instrução doméstica e cujos pais recusam, por razões ideológicas ou financei-
Genebra. Não é necessário especificar que não existe comparação entre o ensino tece ras, a educação convencional? Para os inúmeros internatos particulares e laicos aber-
bido pelajovem de ambienteprivilegiado e o dc umajovem do povo. tos na cidade. As Boardi/zg sc/zoo/s inglesas e as casas de educação francesas minis-
Se a sua família é bastante rica, a primeira será confiada a um daqueles conven- tram às jovens da pequena nobreza ou da burguesia um ensino bastante tradicional,
tos tão desacreditados, onde na verdade não aprenderá muito, mas se os seus pais se destinado a transforma-las em boas mães de família cristãs.
converteram às ideias do século poderá beneficiar de uma excelente educaçãofami- Quanto às jovens dos meios mais populares (pequeno artesanato, comercio ou
liar. E esta a sorte de Victorine de Chastenay, nos últimos vinte anos do a/zcíerz mundo agrícola), podem receber uma instrução elementar nas pequenasescolas reli-
régfme. Desde os cinco anos de idade que recebe lições de história, de geografia e giosas, pouco caras ou gratuitas para as menos afortunadas. Para além da religião e
de gramática. O pai acompanha de perto os seus progressos e incita-a a partilhar con- da moral, aprendema ler, e mesmo a escrever e a fazer contas. A esta instrução
sigo os cursos de aritmética que Ihe são ministrados regularmente. Depois, durante baseadana religião, vêm juntar-se diversos trabalhos de costuraque as preparam
sete anos, aprende geometria e álgebra com o preceptor do imião. As duas crianças (sem as formar profissionalmente) para a sua vida futura de trabalhadoras.
estudamlatim e, provavelmente,inglês. A música, o desenhoe o catecismocom-
pletam o programa. O senhor de Chastenay, apaixonado pela botânica, convida a filha
a elaborar um herbário. Quanto à própria, a pequena Victorine é uma criança dotada, Mulheres da cultura
<<prodígio>>,
<<queama o estudo com paixão>>2s.Mas os seus professores são sobre-
tudo os do irmão: são contratadospara ele, em função dos seusestudos.E mesmo Mais instruída do que as suas antecessoras,a mulher do Iluminismo não quer ser
que, como diz Victorine, os professoresa prefiram ao irmão, mesmoque «umajovem uela que um século rico em inovações intelectuais relega para posições secundá-
menina latinista>>seja uma novidade de que o professor se orgulha, é ao irmão que rias. Aproveita também a instrução ministrada para a transformar numa boa esposa
corrigem. Victorine pede aproveitar a instrução ministrada ao irmão. Não obstante a pam se enriquecer pessoalmente. Quer participar também nas Luzes, e não se alhear
abertura mental dos pais e a atmosfera de estudo que reinava em sua casa, teria bene- do seu século. Como inserir-se numa cultura que não se Ihe destina directamente?
ficiado de um estudo tão completo se não houvesse um rapaz na família? Não deixando de estudar, mantendo-se ao corrente daquilo que se diz, daquilo que
Uma ta] educação dá sempre os seus frutos. Sedenta de conhecimentos, a jovem se escreve e, porque não, dizendo ou escrevendotambém ela própria.
devora os livros da biblioteca da família: aos 10 anos, lê a Hls/ocre d'Á/zg/ererredo
padre D'Orléans, Z.esReívo/ü/ío/zsramal/zes, de Vemot, a Consff/a/ío/z d'Á/zg/ererre de Á /eif ra. A mulher iluminista é uma grande leitura. Romances na moda (e os
Delolme, as l/falai Parale/as de Plutarco, Brííarznfcusde Racine, etc. Aos doze anos. escritores sabem bem que as mulheres fazem parte do seu público): autores clássi-
traduz Horário c começa a escrever o seu diário. Quando se dá a Revolução, tem ape- cos. tmtados de educação,revistas, panfletos políticos, textos filosóficos e livros de
nas 16 anos e é <<obviamente>>
paraMontesquieu,Locke e Mably que convergea sua história, nadalhes escapa a jovem Victorine de Chastenayé disso um exemplo
atenção. Inteiramente bilha das Luzes, Victorine considera-se uma <<jovemlivre pensa- extraordinário. As cartas de mulheres estão cheias de resumos da última obra que
dora para quem o aspecto exterior, as frivolidades, os divertimentos ociosos importam leram, das reflexões que esta lhes inspira. As filhas do século encontram refúgio na
pouco>>
comparadoscom a leitura e o estudo,cujo prazera acompanhará
toda a vida. leitura em face da melancolia ou das desordens da época: Caroline Michaelis-Bõhmer
Outras jovens, nobres ou plebeias, beneficiam de igual modo, durante os últimos e Victorine de Chastenay usam praticamente as mesmas palavras para referir o apoio
cidade mineira
trinta anos do século, de uma instrução familiar mais aprofundada.Nascer num que encontraram nos livros, uma para combater o tédio na pequena
ambiente intelectual favorece, sem dúvida, a possibilidade de receber uma educação onde o marido exercia a profissão de médico, a outra para aplacar a tempestade do
fora do vulgar: basta pensarmosem Germaine Necker (Madame de Staêl) ou em Ter
Caroline Michaelis (Bõhmer-Schlegel-Schelling)e Thérêse Heine (Forster-Huber), No século xvm, as representaçõespictóricas da leitura solitária mostram sobre-
ambas filhas de professores de Gõttingen. Quanto às jovens de ambientes menos bri tudo as leitosas, sinal de uma transformação no sentido da leitura feminina (e de uma
intelectual,
Ihantes, desdeque os pais sejam sensíveisàs novas ideias e não excessivamente privatização):'. Mas, enquantoa leitura masculinaé sinal de actividade
pobres, beneficiam também de uma excelente instrução. Filha única de um abastado a leitura é facilmente consideradacomo uma pedante orgulhosa ou uma ociosa. Em
gravador parisiense, a jovem Manon Phlipon pertence às camadas superiores do arte- ambos os casos, isso sucede porque a mulher surge menos no seu papel tradicional,
sanato de arte, próximas da alta burguesia: aos quatro anosjá sabe escrever e a par porque quer ter acessoa um saber masculino, porque rouba o tempo que deveria
tir dos sete recebe aulas de caligrafia, de geografia, de história,. de dança, de música dedicar ao governo da casa, ao marido ou aos filhos, porque cria entre si propna :e
e de latim; lê Apiano, Plutarco, Fénelon,Tasso,Voltaire e a Bíblia. o livro um espaçoíntimo do qual o homemse vê excluído.A leitura feminina é pen-

23Madamede Chastenay,.4/émoíres./77/-/88/, Plon-Perrin, Paris, 1986. 24Chartier, op. cí/., p. 105

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gola. Livro sério sobre a mesa: a reitora quer ficar a saber,quer tirar o lugar ao de participar na aventura do Iluminismo, até mesmo de a suscitar, e a ilusão de acre-
homem. Romance na mão ou sobre os joelhos: a leitura prepara-separa se entregar ditar que no tempo e no espaço do salão são abolidas, como que por magia, as dis-
ao sonho, ao abandono, à lascívia. Esta associação de ideias transparece claramente tinções de classe, de património, de sexo. As mulheres detêm as funções sonhadas
nos quadros e nos comentários que estes suscitam. E revelada também pela queixa pelos livres pensadoresiluminados: companheiras,neste caso, do espírito, atentas,
formulada contra a mulher por um artesão parisiense, fabricante de artigos de moda. suficientemente instruídas e inteligentes para manterem uma conversa, orientarem o
Em 1774, o homem começa a escrever um diário:s, onde conta a dissolução do seu homem (autor, pensador)com o seu encorajamento ou críticas pertinentes, ajuda-lo
casamento: a mulherjá não quer trabalhar mas divertir-se, sair e ler i-omances-- <<Quer com a sua atenção a construir a sua obra. Se as mulheres que têm um salão desem
estar à janela com um livro.» Para além de nos elucidar sobre as relações marido- penham a função.de guias ideais das Luzes, porém, não são detentoras do verdadeiro
mulher no meio artesão,este documento mostra como, quer para a mulher, quer para poder intelectual. Os salõessão, sem dúvida, um local de promoção feminina. Permitem
o homem, a leitura do romance está associadaa um certo ócio e ao mundo das clas- às mulheres a participação na sociabilidade cultural da época e ter também uma fun-
sesprivilegiadas, com as quais a mulher em questão se procura também identificar, ção intelectual, brilhante e reconhecida, mas que mesmo assim se insere dentro de
não suportando mais a sua condição de mulher de artesão. Ser vista com um livro certos limites e não afecta fundamentalmente as relações entre os dois sexos.
na mão é para ela um sinal de distinção social. É típico da época o facto de a leitura A história conservouo nome das mulheresligadas aos salõesmais famosos:
feminina, com o mesmo pretexto que o passeioou a degustaçãode ostras, entrar na Madame de Tencin. Madame de Lambert, Madame Geoffrin, Madame du Châtelet,
esfera dos desejos de ascensãosocial e suscitar a imitação por parte das outras Madame du Deffand, Mademoiselle de Lespinasse,Madame d'Epinay, Madame
mulheres . Necker, etc. Montesquieu, VoJtaire, Diderot, d'Alembert, Grimm, MarmonLel, Buffon
Nem semprea leitora é aquelasolitária cuja intimidade é violada pelos quadros. e todos os enciclopedistas frequentavam as suas casas. Em Pauis e na província, outras
Estabelece-seem redor do livro uma rede de sociabilidade intelectual de que a mulher mulheres recebiam um auditório menos brilhante, constituído por escritores secun-
sai vitoriosa. Nas grandescidadesalemãs,os proprietários de gabinetesde leitura, dários, nobres e burgueses liberais, que contribuíam, ainda que em menor escala, para
sensíveis à vontade das suas concidadãs, preparam cantinhos especiais onde possam o rosto luminoso do século.
aplacar até à saciedade a sua sede de leitura. Quanto às pequenas sociedades de lei- Se bem que atinja o seu auge em França, o salão não é, todavia, uma caracterís
tura formadas por uma companhia agradável e culta, são geralmente mistas, e a divi- rica francesa. Multiplicam-se na Europa do século xvlll reuniões intelectuais e
são das funções de cada sexo é menos marcada. Mais tarde, durante a Revolução mundanas semelhantes, patrocinadas por uma mulher. Em ltália, são chamadas co/z-
Francesa, os inquilinos de ambos os sexos dos edifícios populares irão associar-se versas, palavra que define bem o seu objectivo. Existem também na Alemanha salões
para assinarem um jornal lido cm comum. muito famosos, como o da escritora Sophie von La Rocha, que conta entre os seus
fiéis frequentadores nada mais nada menos do que Goethe. Porém, as reuniões ale-
O sa/ão. Quando recordamos o Iluminismo, ocorre-nos com frequência uma ima- mãs, que nem sempre são orientadas por mulheres, aproximam-se mais dos chás lite-
gem feminina, a da mulher quc mantém um salão. Esta figura surge no centro do rários do que dos salões parisienses: reúnem-se aqui pequenos grupos de amigos para
movimento intelectual, ocupa o primeiro plano no nascimento e na difusão do pen- praticar a leitura e para discutir a literatura, sem que tenham lugar a mistura social
samentoe favorece o seu encontro com o mundo do dinheiro e do poder. Com efeito, e os <calorep>políticos, filosóficos ou económicos. Apesar de tudo, estes salões são
o salãodo séculoxviii é um dos novos lugaresde sociabilidadeonde se encontram o sinal de uma evolução nas relações entre os dois sexos. Do mesmo modo, enquanto
lado a lado nobres,burguesesricos, letrados, homensde ciência de todas as nacio- os hábitos anglo-saxónicos tendem mais para uma não promiscuidade intelectual, a
nalidades. Local de encontro, de saber, dc criação, de intercâmbio, de aprendizagem partir de meados do século xvln, as ó/êles/ockfrzgsinglesas quebram as regras, abrindo
e de circulaçãocultural, o salão é também um lugar de promiscuidadeintelectual. os salões à francesa.
É dirigido por uma mulher ou, com o decorrer do tempo, por aquelesnovos casais
iluministas assentesno respeito recíproco, os Helvétius, os Condorcet, os Lavoisier. Escrever. Da leitura e da conversa dos salões, é interessantepassarà escrita.
Manter um salão é uma ocupação fascinante. E preciso atender à composição do Correspondência, apontamentos tomados sobre livros lidos, tradução pessoal de um
auditório, evitar os excessose as intromissões,valorizar cada um, e assim sucessi autor antigo ou estrangeiro, diário íntimo (como o que Victorine de Chastenay ini-
vamente. Se a dona de casa desempenharbem os seus deveres terá muitas satisfa- ciou aos 12 anos): estasprimeiras abordagensfemininas da escrita despertamem
ções: a mundana de ter um nome no meio cultural, ver o seu salão procurado pela algumas mulheres o desejo de tornar públicas as suas obras. Em todos os países, o
companhia na moda; a intelectual de conversar com as maiores mentes do século, número de publicações femininas aumentano século Xvlll2ó, sinal de uma instrução
escutar enquanto falam de ideias inovadoras, responder no mesmo tom, oferecer-lhes melhor mas também do desejo de não serem apenas<<companheirap> cujo talento é
a possibilidade de se dar a conhecer a eventuais mecenas. Em suma, o prazer imenso mostrado somente às pessoas próximas. Se algumas mulheres acham mais prudente
ficar na sombra do anonimato, de um pseudónimo ou do autor que traduzem, outras
25Estudado por A. Farte, in Z.ízyie /ragl/e. Vía/ente, pouvaírs ef solldarífés à Paras aa xv///' síêc/e.
Hachette,Paras,1986,pp. 101-118. zóC. Dulong, Da//a co/tve/'.fazia/ze
a//a (reízzíone,in Duby-Perrot,op. cfr., pp. 406-434

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dicamente negada, o que pesa em particular no seu campo de acção. De igual modo,
não hesitam em enfrentar abertamente a opinião pública. Os romances de Sophie.von o facto de o sistema monárquico ter em conta a sua reacção não significa que as
La Roche ou de Made-Jeanne Riccoboni são um dos verdadeiros êxitos literários
mulheres participem no poder. . . ..
acolhidos pelos escritores da época e, convém não esquecer, trazem-lhes indepen- O pensamentoiluminista reformula o vínculo político e o contrato social Mas
dência económica. As obras de Madame de Genlis ou de Madame d'Epinay tornam-
a«do os livres -p"s'do:es se interrogam, com o temp': s'bre. ' molho' fo'ma :de
-se um ponto de referência em matéria de instrução. Reduzir a produção feminina a
governo, sobre as noções de nação, de cidadania, de direitos naturais, etc., a maior
romances e a textos pedagógicos célebres significaria esquecer os inúmeros ensaios
parte ignora as mulheres. Qual será o seu lugar na cidade ideal das Luzes? Obviamente,
filosóficos, políticos e científicos escritospor mulheres.Madamedu Châtelet,aliás, em casa. E de tal forma evidente que não vale sequer a pena referi-lo. Mas, se apro'
também tradutora de Newton, publica /nsfíftífíons de p/zyslque. A monumental Hisfo/y
fundarmos um pouco, veremos que não é assim tão fácil eliminar uma questão emba-
ofEngZa/zd/rom íAe 4ccessíon afia/nes / (8 vais., 1763-1778) de Catherine Macaulay raçosa com um traço da pena, ou pior, não a enfrentar. A contradição não tardou a
toma-se quaseum modelo e conquistaa admiração dos filósofos. Quantoà hostili- envolver os melhores. Deste modo, na E/zcyc/opédíe,Diderot considera a palavra
dade e às dificuldades encontradas por Olympe de Gouges para se impor como dra
<(Cidadão>>.definido como o detentor de direitos numa sociedade livre, um substan-
maturga em Pauis nos anos 80, são uma repetição das conhecidas por Luísa Bergalli tivo masculino: «este título é concedido às mulheres, às crianças, aos criados, ape'
em Veneza nos anos 50.
nas na qualidade de membros da família de um cidadão pr.opriamentedito: mas não
sao verdadeiros cidadãos>>.A expressão <<nãosão verdadeiramente>>revela aqui um
embaraçodo pensador:afirmar muito brutalmente que a palav.ranão tem a forma
A cena política
feminina (quando, ao invés, na língua existe <<cidadã>>,
muito embora na acepçãores-
trita de habitante da cidade) também não resolve nenhum problema. As revoluções
Á/Ires das levo/tições. Ana de Inglaterra, Mana Teresa de Áustria, Catarina da
das últimas décadasdo século irão trazer uma nova força ao problema.
Rússia são mulheres que marcaram a política do seu país e do século. Mas, excep'
ção feita a estassoberanasou a algumas amantesde reis como a Pompadour,as Á.çlevo/ clo/zárlas. O final do século é marcado por uma série de revoluções vis-
mulheres são excluídas dos centros políticos do poder, o que não as impede de par-
tas sob o signo das Luzes. De Amsterdão a Paria, passando por Boston, o mundo oci-
ticiparem na vida pública do seu país. Os salões do século xvnl são também círculos
dental põe em causaa ordem tradicional. O lugar e a função das mulheres,a visão
IÍticos. Olympe de Gouges, Catherine Macaulay e muitas outras puseram a pena
ao serviço das suas ideias. Quanto às mulheres das camadas populares, encontram- que se tem delas e das relações entre os dois sexos não escapam a e?.taagitação-:No
-se tradicionalmente à cabeça das rebeliões, alimentares, religiosas, antifiscais e poli. entanto, em parte alguma são legalmente atribuídos às mulheres os direitos políticos
tidas. Protectoras da comunidade, estão atentas à defesa dos seus direitos. Graças à do cidadão. A nova ordem política, resultante do Iluminismo, parecia reservadaaos
homens. Contudo, esta ordem é criada quer por homens quer por mulheres, que não
sua mobilidade, à sua presença constante na estrada, ao seu conhecimento do espaço
só não se mantêm insensíveis aos acontecimentos, como participam neles sem a menor
público, à sua missão no bairro, são logo informadas de qualquer violação tácita das
intenção de sel'emo refugo da nova sociedade.
regras do equílibrio entre o poder e os súbditos. Estão prontas a sublevar-secontra
As mulheres têm o seu papel tradicional nas multidões de insurrectos e estão na
uma situaçãoconsideradaintolerável, arrastandoatrás de si os homens.Graças.às
múmeras obras históricas sobre vários países europeus, esta função, bcm como a rela- origem e à cabeça de inúmeras agitações. Quando os partidários da casa de Orange
de Roterdão se rebelam em 1784 contra os patriotas, figura entre os instigadores uma
ção feminina-masculina na rebelião, é agora bem conhecida27.Mas a relação entre o
vendedeira dc marisco, Kaat Mussel. A 5 de Outubro de 1789 são as parisienses que
poder e as tnulheres não se limita a uma vigilância amedrontada daquelas mulheres
vão buscar Luís XVI a Versalhes. Passados seis anos, em 1795, são ainda as mulhe-
consideradas potenciais rebeldes. Mais subtilmente, a monarquia necessita também
res mais violentas que instigam à revolta contra o poder termidoriano, culpado, em
da sua aprovação. O povo deve assistir às grandes cerimónias festivas que assinalam
acontecimentos importantes (vitórias militares, casamentos ou nascimentos reais, etc.)l sua opinião, de deixar o povo morrer de fome e de trair a revolução popular. E quando
Esta multidão, que fortalece com a sua presençaos laços simbólicos que unem o rei deflagra a insurreiçãodo Primeiro de Maio de 1795, elas organizam as prmteiras
manifestações, incitando os homens a juntar-se-lhes. Por isso: os entendidos afirmam
ao seu povo, é constituída por homens e mulheres. Impõe-se que estas últimas se
destaquem para personificarem tais laços: assim, as vendedeiras dos mercados cen- que as mulheres desempenham a função de <<semeadorasda discórdia>> e os deputados
trais de Paris, que representavamentão o povo, são recebidas em Versalhes quando
vêm felicitar o rei pelo nascimentode um Delfim. Não tivemosconclusõesprecipi-
tadas deste fenómeno complexo, que necessitaria de ser aprofundado. Pelo facto de
as mulheres terem uma existência política concreta mediante os seus escutas, a sua
iEU:HÜ#,i$=HE:RRHi13tEE
rária têxtil afirma que os deputados devem curvar-se perante os insurrectos que repre'
presença ou as suas revoltas, não deveremos esquecer que esta existência lhes é juri-
ZHD. Godineau, Cífoyennes frícafe ses. Z,es/emmes dü pe ple à Paras pertdanf /a Réva/afia/z jran-
çalse, Alinéa, Aix-en-Provence, 1988 (trad. it. Cíftadlne fricofezísei, La Tartaruga, M não, 1989).
!7Cfr. a síntese de A. Farge, Ibidem, pp. 484-503.
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sentam o <<povo soberano>>.Liberdade, soberania, eis as palavras das Luzes. São pro- académicos, os seus tratados técnicos, os seus relatórios sobre as fábricas ou os arti-
feridas para recordar que as mulheres, mesmo de origem modesta, não foram alheias gos para a E/zcyclopédíe/}zérAodique.
A revolução confere depois um novo signifi
às ideias do século e que contribuíram para a tentativa revolucionária de as concretizar. Gadoa esta colaboração conjugal. Manon Roland inspira profundamente a política
Por outro lado, as mulheres não se rebelaram apenasem tempo de crise. Em de seu marido, entretanto nomeado ministro, escrevendo para ele alguns dos textos
França, frequentam as assembleias políticas, formam clubes femininos onde se lêem oficiais mais importantes.
jornais, decretos da Assembleia, se discute política c não se hesita em transmitir aos Verdadeira mulher política, Manon Roland não seconsiderava porta-voz ou repre-
representantes da nação as suas opiniões. As petições e os requerimentos femininos sentantedo seu sexo. <<Nãocreio que os nossos usos permitam ainda às mulheres
figuram em grande quantidade entre os recebidos pelos deputados a fim de os enco- mostrar-sc abertamente,escrevia numa carta de Abril de 1791; elas devem inspirar
rajar ou apresentar-lhesreflexões e reivindicações políticas. Outras tomam públicas o bem, devem alimentar e encorajar todos os sentimentosúteis à pátria, mas não
as suas opiniões em opúsculos, panfletos, manifestos afixados nas paredes. E por causa devem mostrar que contribuem para a acção pública. SÓ poderão agir abertamente
de um destesmanifestos, que põe em causa a Convenção montanhosa,que Olympe quando todos os Francesestiverem merecido o nome de homens livres.» Ela própria
de Gouges é presa no Outono de 1793. Publicara, a partir de 1789, uma trintena de assinava quase sempre com o nome do marido ou então deixava o texto anónimo.
escritos políticos sob a forma de panfletos, livros ou obras teatrais. Entre 1788 e 1799, Nesta medida, e não obstante a sua inegável modernidade, Madame Roland repre
contam-se em França cerca de 150 publicações políticas femininas. Tendo em conta senta uma figura bastantetradicional de mulher política, à semelhançade algumas
as proporções, a França não constitui propriamente um caso à parte. Antes da sua céle- rainhas ou favoritas reais, cuja importância oculta permanece ligada a uma posição
bre ylndfca/fcln ofr/ze Rlgbrs of Women(1792), a feminista britânica Mary Wollstonecraft e a uma influência pessoal nos ambientes directivos dominados pelos homens.
respondera aos ataques de Burke contra a Revolução Francesa com À Vf/zdfca/fo/zo!/ Contudo, foi guilhotinada em 8 de Novembro de 1793 pelas suas opiniões e pelo
fbe Rfg/zrsof éden(1790) e, em 1794, publica Á/z Hís/trica/ arzd4/ora/ Vier of íAe seu papel político. Apenas alguns dias após a sua morte, a oficiosa <(Feuille de salut
Orfã/n a/zd Progress of f/ze Fre/zc/z Neva/zz/fon. Também a sua compatriota Catherine public>>publicou um artigo dirigido <<Aosrepublicanos>>,retomado em 19 de Novembro
Macaulay defende a Revolução Francesa em diversos textos. Sem publicarem ensaios por <<LeMoniteur universel>>.
Nele se lê que <<amulher de Roland, belo espírito
teóricos, algumas alemãstraduzem os revolucionários francesese introduzem a animado por grandes projectos>>, <<um monstro segundo todos os pontos de vista>>,
Revolução nos romances, participando nas reflexões inspiradas pelo acontecimento: <<sacrificoua natureza, querendo elevar-se-lhe; o desejo de saber levou-a a esquecer
Sophie Mereau em Z,a F'/orafson des se/z/ímenís( 1794), Thérêse Heyne-Forster-Huber .se das virtudes do seu sexo, e este esquecimento, sempre perigoso, acabou por fazê-
em Z.aFama//e Se/dod'(1795) c Sophie von La Rocha em Be//e /mago de /a résfg/zaríon -la perecer no patíbulo>>. A advertência é clara e dispensa comentários: que as mulheres
(1795-1796) e em ippar/fíons sur /es borda du /ac O/zelda (1798):9. instruídas se cuideml O artigo ataca também Olympe de Gouges, guilhotinada a
Os salõestornam-seos locais de encontro político. O seu caráctersemiprivado 3 de Novembro: o autor censuraa sua <<imaginação
exaltada>>,
que a levou a querer
faz deles um campo de reunião mais neutro do que os organismosoficiais ou os clu- ser <(homem de Estado>> e a esquecer <<as virtudes que convêm ao seu sexo>>.
bes. O que não era possível discutir na atmosfera inflamada das tribunas oficiais pas Olympc de Gouges não seria certamente uma sábia, a sua instrução fora um pouco
sova para a mais abafada do salão. E o que sucede no salão da Condessad'Yves, descuidada (ela própria reconhece não saber escrever muito bem), o que não a impe
onde se encontram democratas e tradicionalistas belgas em 1789. diu de se lançar numa carreira de letrada e de dramaturga. Também ela impregnada
do espírito das Luzes, bateu-se pela defesa dos direitos naturais de todos os seres
Z)uas mu//leres //üml/zís/as em levo/anão. O salão parisiense de Madame Roland humanos. São conhecidas as suas batalhas contra a escravatura, a favor da igualdade
é um dos mais célebres.Em 1791é frequentadopor todo o meio patriótico: encon- dos sexos ou pela defesa dos direitos de autor, e a demonstra-lo o facto de, ao con-
tram-se lado a lado homens muito diferentes, como Robespierre, Pétion, o abade trário de Madame Roland, Olympe de Gouges ter tornado públicas as suas batalhas,
Grégoire, Brissot, o abade Fauchet, Thomas Paine e Condorcet. O salão faz as fun não hesitando em assinar com o seu nome e em dar-se a conhecer com uma vee
çõesde local de integraçãopolítica para os deputadosprovinciais acabadosde ele- mência que Ihe trouxe muitos dissabores antes mesmo da Revolução. E escreve sobre-
ger, que ali encontram os parisienses importantes. Logo se transforma num dos luga- tudo em nome das mulheres,apresentando-secomo seu porta-voz, exortando-asa
res de elaboração da política girondina em que as intervenções na Assembleia são rebelar-se contra uma situação injusta e reivindicando os direitos naturais para todas
discutidas antes de expostas aos jacobinos. A dona da casa não se contenta em rece- as mulheres(especialmente na Z)éb/ara/fon des l)ralis de /a f'emme ef de /a Cfroyen/ze).
ber, anima as discussõese exerce uma verdadeira influência sobre os convidados: Intransigente quanto aos princípios, recusa-se a agir na sombra e a esperar o reco-
graças à sua instrução, às suas leituras, à sua religião rousseauniana, à sua fé na supe- nhecimento político das mulheres mediante uma evolução futura.
rioridade do talento, é uma excelente representante do espírito das Luzes. Já antes
da Revolução trabalhava muito com o marido, ajudando-o a redigir os seusdiscursos U/ za /lava re/anão en/re os dois sexos? Para além destes dois retratos, surge-nos
outro particularmente interessante:o retrato, ainda que teórico, da mulher produzida
M.-C. Hoock-Demarle,Z,a /"aged'dóri/e. /'em/ne.ç-écrívczin.ç
en .,4//emag/ze
de /790 à /8/5, Alinéa: pela revolução, a mulher da sociedadefutura. Esta nova mulher encontra-sedos dois
Aix-en-Provence,1990,pp. 87-157. lados do Atlântico. Americanas e francesasrecusam, na verdade, a imagem de coque/res

330 331

..d
sedutoras, exclusivamente preocupadas com as suas jóias, o seu aspecto e o fascínio rentes, que «dependem da ordem geral da sociedade>>,garante o deputado Amar no
que possam exercer sobre os homens. Este tipo de mulher, saído de uma relação per- seu relatório de 30 de Outubro de 1793, que precedia a ordem de encerramentodos
versa entre os dois sexos,reflecte o grau de dependênciade todo um povo. Numa clubes de mulheres. Isso não significa que elas permaneçam excluídas da cidade revo-
república, as mulheresjá não são frívolas, fracas e passivas,mas dignas, enérgicase lucionária, mas que a sua função é doméstica e restrita em virtude dos costumes.
activas. Os homens devem olhar de modo diferente as suascompanheiras, devem ava- As mulheresforam <<feitaspara civilizar os costumesdos homens>>, para educaros
lia-las pelas suasqualidadesmoraisc não pela sua belezafísica. Em Dezembrode futuros cidadãosno culto das <<virtudespúblicas>>do bem e da liberdade (Amar). Em
] 793, uma jovem parisiense, Joséphine Fontanier, defende esta nova relação entre os 1798, Kant afirma que é a mulher que leva o homem à moralidade, à cultural'. As ame-
dois sexos num discurso proferido perante a assembleia de revolucionários: ricanas desenvolvem este ponto de vista: sem reivindicarem funções públicas, garan-
tem que a rotura revolucionária conferiu um novo significado, civil, à sua função
Acabou o tempo em que a mulher aviltada, degradada por este culto falso e frí- familiar de mãe.Além disso, acrescentam,
sãoos garantesda moralidadee da vir-
volo que Ihe era atribuído, e com o qual se pretendia honra-la, era vista apenascomo tude do país, sem as quais não é possível sobreviver.
um ser de [sic] segundacategoria, destinada somente a dar algumas coroas de flores Vivendo numa sociedadeem que as mulherestêm uma vida social mais rica, as
ao marido, a ser ornamento da sociedade, tal como as rosas são o ornamento dos jar- francesasnão se contentam com esta <<cidadaniaprivada>>.Não rejeitam a distribui-
dins. Ah l cidadãos, ousaríeis fingir que vos chamais republicanos, se pensais ainda que ção de tarefas entre os dois sexos, mas não vêem por que motivo seria incompatível
a beleza é a primeira qualidade de uma mulher. . .? Não, não, cidadãos, deixemos para com uma actividade pública, ou melhor, com o exercício dos direitos políticos.
as cortes dos déspotas e para as cidades corruptas.. . esta falsa maneira de apreciar
Algumas parisiensesperguntam em 1793:
metade do género humano. . . Olhemos com desprezo, ou melhor, com compaixão, aque-
las mulheres fúteis, aqueles seres efémeros que não sabem nem querem senãobrilhar
E por que deveriam as mulheres, dotadasda faculdadede sentir e de exprimir os
Basta de ideias fnvolas; agora já não nos preocupamos com a cor de uma fita, com a
seus pensamentos, ver-se exc]uídas dos [sic] assuntos púb]icos? A Declaração dos
finura de um véu, a forma ou o preço dos nossos brincos; as nossasvirtudes serão o
Direitos é comum a um e ao outro sexo, e a diferença consiste nos deveres; há os públi-
nosso ornamento e os nossos filhos serão as nossasjóias."
cos e os privados. Os homens são particularmente chamados a exercer os primeiros...

As americanas insistem na importância da instrução das republicanas, que desen


Como elas, todos os partidários da existência política das mulheres evidenciam o
volvera as suas qualidades e garantirá a sua independência, o self-respecr e o se/F-
que têm os dois sexos em comum: a razão que define o ser humano, portador de
re/falir. As francesas acrescentam, por sua vez, que as relações entre os dois sexos
direitos. Os herdeiros de Poullain de la Barre opõem-se à concepção de duas natu-
não se devem continuar a distinguir pelo sigilo do <(despotismo marital>>comparado
ao do rei ou dos nobres.Reivindicamo direito c tambémo deverde as mulheres rezas diametralmente opostas: <(Nãosomos uma espécie diferente da vossa ao cimo
da terra: a mente não tem sexo, nem tão-pouco as virtude»>, escreve Nelle Jodin em
<(participaremna coisa pública>>.
1790 (Vues /égís/aríves tour /es /e/lemes). A consequência é evidente: os dois sexos
Mas para toda a sociedade,a republicanaé, antesde mais, uma mãe de família deverão desfrutar dos mesmos direitos.
cuja principal obrigação é educar os filhos para que se tornem bons cidadãos. A par-
Mais do que uma questão de justiça, trata-se de uma questão de princípio e de lógica.
tir daquele momento, o debate esboçado na segunda metade do século sobre a mulher
A exclusão das mulheres do direito à cidadania, em violação do <<princípioda igualdade
e as suas funções específicas ecoa de forma completamente diferente.
de direitoP> é um <<actode tirania>>,que diz respeito a toda a sociedade e não apenas às
que dela são vítimas, escreve Condorcet no seu artigo Sur / 'admlxsíon des Jemmes au
Cidadãs? A Revolução Francesa criou um novo espaço político em que cada um,
droíf de café(Jourlza/ de ZaSoíiéfé de /789, Julho de 1790). Com efeito, <<oprincípio
na qualidade de cidadão, desfruta dos seus direitos naturais finalmente conquistados.
da igualdade de direitos>>pressupõeque <<ounenhum indivíduo da espécie possua direi-
Coloca-se então a questão da promiscuidade deste espaço: possuirão as mulheres
tos próprios, ou todos possuamos mesmos>>.Na qualidade de homem iluminado, coloca-
direitos políticos? Como sabemos,a respostafoi negativa. Mas como justificar, nesse
-se no campo da razão contra os preconceitos, as vãs declamações (ou <<aopinião uni-
caso, esta violação do princípio da universalidade com base na Declaração dos Direitos,
versal>>
da qual se irá servir Amar em 1793).Recordaaos defensoresda tesefisiológica
universalidade que é o alicerce da nova sociedade?Através do recurso à diferença
que o corpo feminino não tem o triste privilégio das doençase que é ridículo retirar os
dos sexos, à noção da natureza feminina específica. E frequente as revolucionárias
direitos a um ser pensante por causa de uma famigerada fraqueza física:
hostis à participação política feminina invocaram Rousseau.Este raramenteé citado,
mas as suasteorias servem de base à argumentação:em virtude da sua constituição Por que não poderiam os seres expostos à gravidez, a indisposições passageiras
física e intelectual, a mulher é mais frágil do que o homem e... não pode por isso exercer os seus direitos, já que nunca se pensou retira-los às pessoas afectadas por gota
usufruir de direitos políticos. Por outro lado, é chamadapela Natureza a funções dife- no Inverno e às que se constipam facilmente?

30 Archives nationales, Flc 111 Seine 17. 1. Kant, 4n//"opo/agia Pragmar/ca, Laterza, Romã-Bari, 1975

332 333
Os argumentos de Condorcet estão presentes em todos os textos favoráveis à exis-
tência política das mulheres. Olympe de Gouges refere-se à <(forçada razão>>
contra
a <.incoerência>>
e afirma que não existirá Constituição (mas sim tirania) se os homens
e as mulheresnão colaboraremna sua redacção.Quanto à presidentedo clube das
mulheres de Dijon, baseia-se nos seus princípios e nas relações existentes entre os
dois sexospara afirmar que <«emtodo o lado onde as mulheres forem escravas(isto
é, sem a totalidade dos seus direitos), os homens curvar-se-ão ao jugo do despo-
tismo».

Ponto de rotura e de contestação, a Revolução encerra a época das Luzes. As mulhe-


res adquirem (não por muito tempo) personalidadejurídica e civil, mas não a cida-
REFERÊNCIASBIBLIOGRÀFICAS
dania, o que não impede que tenham dado provas de serem cidadãs e que tenham
introduzido esta palavra, na sua acepção política, nos dicionários e na história. Criando
CAPÍTULOI
um espaçopolítico assenteno princípio da igualdade, a Revolução evidencia o para'
dono do Iluminismo, o de uma <<promiscuidadesem igualdade>>. Era possível orga- França
nizar um mundobaseadono princípio da desigualdade,masagoratrata-sede um J.-P. Bertaud, in Révo/ fío/zar/7zée.Z,esse/dais ciroyens ef /a Révo/ lío/z Fríz/zçalse,Paras,1979(trad
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cível confusão dos sexos, que acarretaria o caos. Procura conjugar-se estas angús- S. T. Scott. The respondeofthe ro)aí arma to the Freitch Revotution. The role and devetoptnentofthe
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tias, insistindo nas concepçõesdos médicos-filósofos das Luzes, fonte de exclusão
das mulheres. Talvez porque numa sociedade que tende para a democracia não seja
mais suportáveluma <<promiscuidade sem igualdade>>,
por um lado, o Código Civil ltália
de 1804 insiste firmemente em que nem é bom falar de igualdade e, por outro, a N. Brancaccio,Z,'exerci/ode/ vecc/zfoPle/?lo/zre, Romã, 1922
rígida divisão das competências no século xix reduzirá fortemente a promiscuidade. P. Pieri, Giíer/'a e po/íríccz/zeg/ísc/"í//orfíra/lani, Milão, 1955
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Suhrkamp, Francoforte sobre o Meno. 117
9çO HOMEM DE LETRAS
Espírito filosófico e mecenato monárquico ...... 120
123
Letrados, académicos e panfletistas.........
Comparações ......''' ---' -.. . ' '-- . 126
A aristocracia dos letrados: salões e recepções parisienses 128
A arte de conversar 133
Críticas aos salões 135
As viagens da Razão. Berlim .. 137
Parise a província: instituições de consagraçãoe locais de socialização. 139
Visitas e conespondênciasepistolares.................... 142
Um modelo moral: afastamento e desinteresse... 143
O autor-proprietário da sua obra ....................... 144

340 341

J
r

148
A patologia do homem de letras........
150
Das glórias do Parnasoao cidadão da república das letras

CAPÍTULO V

+0 HOMEM DE CIENCIA 155 J

158
O homem de ciência do afzcferzrégínzee o primado da trança
A <(Nova Atlântida>>: entre a utopia e a realidade 164
A /zob/e cízrríêre des sciences. Entre comunidade e corporação 168
O homem de ciência e a crise de identidade dc final do século. 175

CAPÍTULO VI
OSAUTORES
tO ARTISTA 183
DANIEL AmAssE ( 1944) é /naffre de can/ére/ices na Universidade de Paris l (Panthéon-Sorbonne). Entre
CAPÍTULO Vll as suas obras mais recentes,contam-se: Z,aguí//orf/7e e/ /'iml/magínaire de /a Ter/"eur, Pauis,1987; Z,e
207 détail. Poti} Ltltallistoire ral)proclléede td peiníttt'e,ç)ans,\992
OEXPLORADOR
Louis BERGERON(1929) lecciona na Ecole des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Estudou em parti-
Explorador: história de uma palavra.... 209 cular o processo de industrialização e o desenvolvimento urbano. Entre as suas obras traduzidas em
212 italiano destacam-se: JVapo/eo/zee /a socíefà /ra/zcese (/ 799-/8/5), Nápoles, 1975, e, sob sua direc-
Exploração, ciência c império ................
Do sonho à descoberta: o mundo traduzido em mapas geográficos 218 ção, a colectânea Parlgí, Romã-Bati, 1989.
220 MEAN-PAUL
BEKTAuo lecciona História Moderna na Universidade de Parasl (Panthéon-Sorbonne).E autor
Figuras de exploradores........
Por mar e por terra: modos de viajar 225 de diversas obras sobre a Revolução Francesa e sobre a época napoleónica, entre as quais: Z,aRévo/u/io/l
O diário, o mapa geográfico, o herbário: o registo da descoberta... 229 arlnée. Les soldats citoyeytset ta Révolütiott FI'altçaise, E)aí:ls,\ 919.
O regresso à pátria ...... 236 MARIENoÉLLUBouRcuuT é P72ízífre
de co/t/érences de História Moderna na IJniversidadede PauisVll
Da viagem à nanativa ... 239 Entre as suasobras, citamos: l)éc-Ater /a Frei/lce. l,a sfarísflqlre d(barre/ne/ifa/e.à l '( atire /zapoléo
245 níem/ze, Paris, 1988
O jardim dos rêtornos..
CARA.oCAPRA(1938) lecciona História Moderna na Faculdadede Letras e Filosofia da Universidade
CAPITULO Vlll Estatal de Milão. Entre as suas principais publicações, destacam-se: G/ova/7ní Rís/ori da f//u/77//zis/a
a /unzionílrfo, / 755 /830, Florença, 1968; in l /?zóardl(/ azrs rfa(a ne// 'erà de//e rÍáof'/ne, Turim, 1987
OFUNCIONARIO 251
Rocei CHARTIER(1945) é dírecleirr d'ér ralesna Ecole des Hautes Etudesen SciencesSociales, onde
CAPÍTULOIX dirige o Centro Alexandre Koyré. Entre as suasobras traduzidasem italiano, cabe referir: .[.ef/uree
[eftori ltelta Franzia di Atltico Regime, Tuíim, \ 988 ; Le origina clilturali de!!a Rivoluziane .fraricese,
OSACERDOTE 279 Romã-Bari, 1991

Os vínculos do sistemabeneficial ............ 282 VíNCENzo FERRONE(1954) é docente de História Modema na Faculdade de Línguas e Literaturas Estrangeiras
287 da Universidade de Veneza <«Ca'Foscari».E autor, entre outras obras, de: Z,anuova ..4f/a/zfidee í / /ní.
Como formar os sacerdotes:a instituição dos seminários
297 Scienzae politica ne! Pielnortledi Viftoric Antedeolli, Turim, 1988\ l proferi deil'ilíünlinisnlo, Rama
A<<modéstia>> sacerdotal................. .Bari, 1989.
Sociabilidade e cultura sacerdotal 298
303 DoMINiQUEGoDINEAU, especialista da Revolução Francesa, participou em inúmeras colectânease publi-
Uma ordem das práticas ....... cou em tradução italiana o volume CÍ//adíne fraco/cases, Melão, 1989

CAPÍTULO X DoMINIQUEJuLgA (1940) é dírecfeür de rec/zero/zeno Centre Nacional de la Recherche Scientifique. Na


sua rica bibliografia, interessou-sesobretudo pela história religiosa e pela história da educação entre
AMULHER 309 os séculos xvl e xlx.

O olhar dos homens.................... 312 PIERRESORNA(1963) trabalha há diversos anos com Michel Vovelle no tema da nobreza no século xvnl
316 Actualmente, é leitor na Universidade de Catania.
Mulheres casadas...........
Mulheres que trabalham 320 MicHEL VIVEI.LK (1933) é titular da cadeira de História da RevoluçãoFrancesana Universidade de
322 Parisl (Panthéon-Sorbonne)
e dirige o Institut d'Histoire de la Révolution. Entre os seuslivros
A educação das jovens na época das Luzes
Mulheres da cultura........... 325 traduzidos em italiano, referimos: Z,a F/-a/leia ripa/uzíonarla. Z,a caiu/cz de//a /l,zonízrc/zía.
/787-
/792. Romã-Bari. 1974: Breve sfaría de//a Ripa/ zíone fra/zíese, Romã-Bari, 1979; Z.a /zzorfe
A cena política 328
e I'Occlde/zfe, Romã Bari, 1986; Z.e/7zera/7zoPfosi
de/la /esta. Prove/zza r/ 750-/82a), Bolinha, 1986;
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REFERÊNCIASBIBLIOGRÁFICAS
343
342

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+

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