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Todo ente externo aparece dentro das relações que ele estabelece com outros entes.
Não é possível separar o ente dos seus modos de aparição. Isso significa que a
percepção sensível é sempre a captação do objeto sob uma de suas formas de aparição
determinada pelas relações que ele estabelece com outro objetos dentro do alcance da
observação.
Se vejo um elefante à uma distância considerável, ele me aparece como algo pequeno
que cabe em minha mão. Quando o vejo de perto, percebo que ele é maior do que eu. O
que mudou não foi o elefante que diminuiu de tamanho e depois aumentou. O que mudou
foi a relação, nesse caso a distância, entre o elefante e eu.
Não faz sentido, portanto, perguntar qual dos dois elefantes é o elefante "verdadeiro". Só
há um e o mesmo ente animal apresentando-se à percepção de acordo com o conjunto
de relações que ele estabelece com os outros entes. Por exemplo, o elefante próximo a
mim aparece sob uma certa tonalidade que é determinada pela sua relação com a luz do
Sol. Em um cômodo completamente escuro, ele desaparecerá, justamente por conta do
ambiente no qual se encontra.
Todas essas formas de aparição (ou de desaparição, no caso do cômodo escuro) são
inteiramente reais e manifestam o que é o ente. Daí que podemos dizer que o
conhecimento sensível é sempre relacional. O objeto nunca aparece fora da trama de
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relações na qual está inserido. E separar o ente das suas formas de aparição é torná-lo
incognoscível e ininteligível.
Isso pela simples razão de que, como asseveravam os antigos e os medievais, o ente
opera segundo a sua natureza. Tudo o que ele faz ou pode fazer, tudo o que ele sofre e
pode sofrer está contido em anteriormente em sua natureza, isto é, naquilo que ele é. O
homem não pode voar, mas pode rir, por exemplo. Conhecemos o objeto, embora nunca
completamente, pelo conjunto de formas de aparição que ele apresenta à nossa
observação.
Se vejo um ente que tem as características externas de um cachorro, não terei nenhuma
dúvida de que se trata de um cachorro. Jamais o confundirei com uma galinha ou um
rinoceronte. Se alguém afirmar que aquele animal, apesar de operar e se manifestar
exteriormente com as formas de aparição típicas de um cachorro, não é realmente um
cachorro e sim uma outra coisa, terá criado um ser cujas manifestações e operações não
correspondem ao que ele é realmente.
Não é de se surpreender que assim se tenha cortado pela raiz toda possibilidade de
conhecimento verdadeiro dos objetos da realidade externa. No entanto, é mister lembrar
que essa separação do ente de suas formas de aparição é somente uma atividade
abstrativa, uma operação mental que distingue e separa características que no objeto
real estão unidas indissociavelmente. Posso abstrair a cabeça de um homem e pensar
em um cavaleiro sem cabeça, mas isso não significa que possa haver na realidade um
homem desprovido de cabeça.
Admitir que há um objeto cuja natureza não corresponde aos modos nos quais ele se
manifesta é cair inescapavelmente no ceticismo. Uma vez que se tenha separado de
forma completa o objeto de seus modos de aparição não há como uni-los de novo, pois
foi criada a ficção de um objeto realmente existente cuja natureza é para sempre
incognoscível, pois estão cortados todos os laços de comunicação entre o ente e a
percepção sensível.
Essa ficção tem origem nos argumentos céticos sobre a variação das percepções de um
mesmo objeto. O exemplo mais conhecido é o do bastão parcialmente mergulhado na
água que parece estar curvado ou quebrado. O que o ceticismo defende é que o bastão
é reto na realidade e aparece como quebrado quando mergulhado na água. Obviamente
se trata de uma ilusão dos sentidos, exclama o cético. Sendo assim, nossos sentidos nos
enganam. E se nos enganam nesse caso particular, por qual razão não cogitar a
possibilidade de que eles nos enganam sempre?
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Not so fast, my friend. Em primeiro lugar, a percepção não é em si mesma verdadeira ou
falsa. É somente quando há um juízo sobre a aparição sensível, isto é, uma afirmação ou
uma negação realizada por uma consciência humana, que se pode falar propriamente de
verdade ou de falsidade. A percepção sensível só capta a aparição da coisa dentro da
trama de relações nas quais está inserida. Se faço um juízo apressado, sem considerar
as relações nas quais o objeto está inserido, e concluo que o bastão está quebrado, isso
não é um problema da percepção e sim do meu juízo sobre a realidade.
Em segundo lugar, a percepção me mostra a coisa no modo em que ela aparece dadas
as relações que ela estabelece com outros entes. Se a percepção me mostrasse uma
vara reta mesmo quando ela está mergulhada parcialmente na água (em um meio mais
denso do que o ar), então aí sim haveria erro na percepção, pois uma relação real estaria
sendo omitida da minha visão. A parte do bastão mergulhada na água aparece curvada
ou quebrada justamente por causa da mediação estabelecida pela água entre o bastão e
a minha visão.
Ademais, se não confundimos a silhueta de uma pessoa vista através de uma cortina
com a própria pessoa, e nem consideramos que estamos diante de uma ilusão dos
sentidos, não há razão para considerarmos uma falha dos sentidos um bastão reto
aparecer curvado quando parcialmente mergulhado na água. A forma de aparição do
objeto é determinada pela situação em que ele está. Os sentidos simplesmente captam
como o objeto se apresenta dentro de determinado cenário.
Note-se, contudo, que o ente não é um "feixe" de relações, como se ele não existisse em
si mesmo, e somente como produto dessas mesmas relações. A relação é uma categoria
da realidade que se estabelece sempre entre entes reais. Como assevera Mário Ferreira
dos Santos na tese 34 de sua obra Filosofia Concreta, o ser necessariamente antecede a
relação:
"A relação implica o dual, e no mínimo duas positividades, pois uma relação entre termos
não positivos deixaria automaticamente de ser positiva. A relação implica anteriormente
substância e oposição, duas categorias que a antecedem. Os que consideram que ser é
expresso na cópula ser, reduzem-no a uma relação. Mas uma relação é relação de
qualquer coisa que é. E, afinal, qualquer coisa deve ser para que haja relações. Portanto,
há prioridade ontológica do ser à relação."
É preciso que haja entes para haver relações. As relações surgem graças aos entes e só
perduram enquanto os entes as mantém. Um time de futebol é o resultado de um
conjunto determinado de relações que os jogadores concretos e reais estabelecem uns
com os outros. Não faria sentido alguém afirmar "fui ao estádio e só vi jogadores no
campo, mas não vi o time do Flamengo". Isso seria um clássico erro categorial. Seria
:
considerar o Flamengo como um ente substancialmente separado e independente dos
jogadores que são os entes reais e substanciais que o compõem. Sem os jogadores não
há time do Flamengo, mas sem Flamengo ainda existem os jogadores.
Não significa, todavia, que as relações não existam. Elas existem, mas de um modo
muito mais tênue e dependente do que os entes que as estabelecem. E os entes só
aparecem e se manifestam estabelecendo esse intrincado tecido de relações.
Percebemos os objetos dentro dessas relações, e os objetos manifestam o que são nos
seus modos de aparição determinados pelas situações nas quais se encontram.
Dito isso, retornemos ao cético que acredita haver ilusões nos dados dos sentidos. Há,
segundo ele, percepções ou modos de aparição dos entes que são legítimos e outros
que são ilegítimos. Como os sentidos supostamente nos enganam em algumas
situações, nada nos impediria supor que eles nos enganem sempre. Aqui se apresenta
uma falácia, já que afirmar que "se algo acontece algumas vezes, então pode acontecer
sempre" não possui qualquer base a não ser a de uma mera possibilidade lógica, não
exatamente a de uma possibilidade factual.
Já vimos como a própria noção de engano nos sentidos é questionável, mas admitamos
por hipótese que os sentidos possam nos enganar sempre. Se desconfiamos de que as
nossas percepções podem não corresponder à realidade, então somos obrigados a
cogitar a possibilidade de que tudo o que nos cerca, inclusive nosso próprio corpo, seja
produto de uma ilusão. Aparentemente, conhecemos uma situação em que isso acontece
cotidianamente: o sonho.
Ao que parece, não há motivos para pensar que o mundo externo não seja exatamente
isso, um conjunto complexo e vívido de imagens que não possuem qualquer referente
cuja existência seja independente de nossa mente. O argumento do sonho, no limite, é
solipsista, isto é, afirma que tudo o que há não passa de projeções de minha mente, e
:
que eu sou o único existente real. A tese que subjaz ao solipsismo e ao argumento do
sonho é a de que o espírito pode produzir suas próprias percepções. O que percebemos
não é uma forma de aparição de um objeto real e externo dentro de determinada trama
de relações, mas somente imagens produzidas pelo poder do espírito.
A operação em curso aqui é exatamente a separação mental do objeto das suas formas
de aparição. O que captamos sensivelmente deixa de ser um conjunto de informações
transmitidas pelo objeto e se torna meramente um conjunto de imagens produzidas pelo
espírito humano. Se há ou não objetos fora de minha mente eu não posso afirmar,
porque só tenho acesso ao meu conteúdo mental. Das duas, uma: ou bem os objetos
externos não existem ou bem eles existem e são incognoscíveis e ininteligíveis.
Se isso é verdade, parece então não haver razão suficiente para assumir a cogência do
argumento do sonho. Não é evidente que nosso espírito possa produzir de si mesmo
todas as suas percepções. Não é mesmo possível testar essa hipótese dado que jamais
estamos completamente isolados em nós mesmos sem qualquer interferência de material
proveniente do mundo que nos cerca. Ao contrário, a evidência que nós temos aponta
para a dependência das percepções e das imagens que habitam nosso espírito dos
objetos externos aos quais elas se referem.
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