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Fichamento 3 – Arthur Megiani Carvalho

De início vale ressaltar a premissa básica para a caracterização da psicose, a qual se define
por meio de uma ausência de vínculo com a realidade concreta. Essa realidade, por sua
vez consiste em uma série de cadeias relacionais que não são percebidas pelos indivíduos,
mas que existem puramente por uma “fé perceptiva”, ou seja, a crença de que existe um
mundo tal como ele se apresenta a nós. É por meio da análise da psicose, que não
consegue enquadrar o próprio indivíduo nessas relações que formam a realidade q se pode
explicar como que aquilo que entendemos e percebemos como mundo na verdade são
preconceitos despercebidos que possuímos sobre seus componentes, que unidos e em
relação são capazes de formar o todo que chamamos de realidade.

A percepção não consiste puramente na utilização dos aparelhos cognitivos e sensoriais


para receber estimulações exteriores e com isso identificar e entender a realidade, ela
depende de um contexto de apreensão discursiva, o qual varia para cada um dos
indivíduos, ou seja, é a partir da cadeia significante preconcebida por determinado sujeito
que um estímulo do ambiente irá produzir determinado significado específico para ele.

O enquadre corporal da realidade perceptiva


Ao analisar a percepção exclusivamente como um apanhado dos diversos estímulos
produzidos por um agente externo e que somados o inserem como conjunto na realidade,
não permite o entendimento correto de como funciona a articulação entre os estímulos e
a criação de significados. Os estímulos propriamente ditos não são capazes por si mesmos
de promover a identificação do agente estimulador, existe algo a mais que os conecta e
promove sua especificação em determinada cadeia significante. Esse algo a mais constitui
uma unidade imperceptível que atua associando os diferentes estímulos avulsos e produz
o significado, ela se estabelece justamente na crença de uma ordem existente que permite
a ligação entre os estímulos que nos chegam a um todo que vem a ser definido.

A atenção, derivada da percepção, provém da capacidade do indivíduo de absorver


determinados estímulos e descartar outros, ou seja, é por meio da atenção que se identifica
a intencionalidade da ação corporal. Se todos os estímulos que chegassem ao indivíduo
fossem igualmente absorvidos e interpretados por ele, este seria incapaz de viver na
realidade do mundo, uma vez que suas ações não apresentariam qualquer tipo de
intencionalidade, ele estaria à mercê exclusiva da estimulação sensorial, que o levaria a
um entendimento completamente distorcido da realidade. Vale ressaltar ainda que a
atenção em si não significa apenas focalizar o investimento em certos dados perceptivos
já presentes, mas também na capacidade de se criar cadeias de significantes a partir da
percepção seletiva dos estímulos.
A fé perceptiva e sua desconstrução irônica na psicose

De acordo com a teoria lacaniana, a realidade encontra-se inserida no âmbito do discurso,


para ele, é o discurso que organiza a crença na realidade como um campo de relações
aparentemente estáveis e que definem o mundo como o entendemos. Ao entender isso,
Lacan expressa que seria o discurso, portanto, o elemento imperceptível que ordenaria a
realidade, seria ele o responsável por relacionar os diferentes estímulos absorvidos em
uma cadeia significante e, assim, produzir significado. Lacan define então esse discurso
como o grande Outro, aquele que não se pode perceber, mas que produz a percepção, sua
relação com os indivíduos se dá a partir de uma crença compartilhada de sua existência,
a qual permite a percepção particular da realidade por eles. Por apresentar um caráter
exclusivamente de crença, também entendido como caráter de fé, a percepção da
realidade encontra-se sempre ameaçada pela descrença. Uma vez que o indivíduo perde
esse contato estabelecido pela fé, e passa a questioná-lo, a realidade como a entendemos
deixa de existir para ele (é necessário que se entenda o Outro como razão inquestionável),
ele perde o caráter de fé sobre a realidade, portanto não consegue se conectar mais a ela,
muito menos estabelecer as cadeias significantes entre os estímulos.

Essa perda do contato com a realidade apresentou diversas interpretações ao longo da


história, contudo, a mais relevante consiste no entendimento de que a descrença no Outro,
que segundo Jaspers seria a causa da irrupção da psicose, produz uma ruptura na história
de vida do indivíduo (caracterizando-se como um fenômeno processual), provocando a
percepção da realidade para este de forma delirante.

A estrutura da percepção delirante


Ao buscar entender como se estabelecia o delírio em pacientes caracterizados como
psicóticos, Conrad propõe que nestes, a irrupção do processo se estabelece a partir de um
estado de esquizoforia (trema), no qual o indivíduo sabe que algo irá acontecer com ele
muito em breve, porém é incapaz de definir o que acontecerá. Nesse estado, o sujeito
encontra-se em estranheza devido a indeterminação, a qual só será extinta a partir do
momento que a percepção delirante irromper nele. A partir desse momento, o indivíduo
passa a perceber uma verdade não mais por uma inferência, tal qual faria em um estado
normal, mas sim por uma revelação (percepção apofântica), ele intui sem apresentar
qualquer conhecimento prévio sobre a situação (“é isso”), ou seja, a partir de um vazio,
sem encadeamento de significante o indivíduo entende um fenômeno perceptivo de uma
realidade particular.

A percepção delirante se encontra fixada no campo dos signos e não dos significantes,
uma vez que estes encontram-se invariavelmente conectados em uma cadeia, os signos
são elementos soltos e, portanto, não competem a uma cadeia. Entretanto, não podem ser
entendidos por si só e, por isso é que o indivíduo busca achar significado para eles,
produzindo uma nova cadeia de interpretação, totalmente desconexa com aquela
estabelecida anteriormente (o delírio é a tentativa de reencadear o signo para que este
produza significado).

A partir do momento em que o indivíduo delirante não se encontra mais no âmbito do


discurso, tudo para ele é passível de significação, não existe mais o filtro seletor da
atenção, que permite identificar os estímulos e transformá-los em significado a partir de
uma regra preestabelecida. Lacan denomina a instância que prende o indivíduo à realidade
como Nome-do-Pai, este se opõe aos desejos incestuosos sobre a mãe instituindo o falo
como o significante que irá estabelecer as regras condizentes com a realidade. É a partir
da inserção do falo que o indivíduo passa a elaborar as cadeias significantes adotando
certos signos e descartando outros para assim produzir uma noção de realidade. Na
psicose, o falo deixa de operar sobre o sujeito e esse passa a entender tudo como
significante, não existe mais a seleção daquilo que se encaixa na regra, tudo é passível de
significação.

Semiologia da alucinação
Contudo, não se pode acreditar que o indivíduo, por estar em delírio é incapaz de
diferenciar a realidade normal da realidade delirante, pelo contrário, ele apresenta plena
consciência de que está em um delírio, embora entenda como real tudo aquilo que chega
a ele nesse estado. Além disso, não se pode entender como alucinação qualquer
experiência provocada intencionalmente pelo indivíduo, pelo contrário, o indivíduo que
está alucinando não tinha qualquer intenção de se encontrar naquele estado, o delírio
apenas o invadiu e provocou a alucinação.

A diferenciação entre a percepção da realidade e percepção delirante do psicótico consiste


na possibilidade de dúvida existente na primeira, ao passo que na segunda, o indivíduo
trabalha apenas no campo da certeza. A dúvida aqui se relaciona com a capacidade de
alteração de uma cadeia significante por outra mais adequada, no delírio esse processo
não ocorre, de modo que todas os signos buscam ser encadeados mesmo que suas relações
sejam incoerentes. Dessa maneira, a alucinação não pode ser entendida como um processo
ativo, no qual o indivíduo atua percebendo a realidade de maneira delirante, ela consiste,
portanto em um processo passivo, no qual os signos chegam ao indivíduo que incapaz de
elaborar um encadeamento entre eles se vê entendendo a realidade de uma maneira
completamente exclusiva.

O corpo na alucinação psicótica


A partir do entendimento da necessidade da exclusão do Outro da realidade para que esta
possa ser percebida pelo indivíduo, é possível entender o próprio corpo do sujeito como
componente da realidade e, portanto, para que se possa entender o corpo como
instrumento de percepção é necessário que deixemos de percebê-lo em si, assim, a
superfície biológica, bem como todos aqueles objetos incorporados como instrumentos
de percepção só podem agir como tais se forem excluídos da própria percepção (a
subtração do corpo é aquilo que faz com que este se abra para a percepção).

Lacan entende esse processo subtrativo como a extração do objeto a, uma vez que é por
meio da sua ausência que o indivíduo passa a construir sua realidade, ou seja, é por meio
da extração do objeto não identificável que a pulsão não consegue encontrar um
correspondente a ele na realidade e, assim, passa a se direcionar ao outro na busca de
encontrar nele (representações do objeto) aquele que fora perdido, processo que, por sua
vez, produzirá as relações do indivíduo com o ambiente.
A partir disso, é possível entender os casos em que o objeto a não é extraído e a psicose
se instala. Diversas são as possíveis consequências da não extração do objeto, entre elas
a alucinação, processo pelo qual o corpo não é subtraído da percepção e, dessa forma,
passa a fazer parte desta, de modo que a percepção da realidade fica completamente
comprometida no indivíduo que se encontra nessa condição. A pulsão nesse caso não se
direciona ao outro (busca pelo objeto a), mas mantém esse objeto de desejo preso no
próprio corpo, impossibilitando o enquadramento na realidade.

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