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OLAVO DE CARVALHO

CURSO ONLINE DE FILOSOFIA


AULA 559 – 20/03/2021
TRANSCRIÇÃO FEITA POR GABRIEL COELHO TEIXEIRA EM 27/03/2021*

Boa noite, sejam bem-vindos. Hoje eu queria aqui mencionar o fato de que está
sendo lançado o meu livro A Consciência de Imortalidade e dar algumas
explicaçõezinhas sobre ele, as quais talvez não estejam lá.
Em primeiro lugar, não é um livro sobre a imortalidade, muito menos é algo que
pretenda resumir ou transmitir os ensinamentos da Igreja Católica ou de qualquer religião
que seja sobre a imortalidade. Eu quis trabalhar a experiência humana real da
imortalidade através sobretudo dessas chamadas experiências de quase-morte (Eu não
sei por que chamam de “quase-morte”. O sujeito está clinicamente morto, está morto
mesmo. O certo seria “morte temporária”, não “quase-morte”. Chamar de “quase-morte”
já é diminuir muito a importância do fenômeno) Eu quis especular algo sobre isso a partir
dos depoimentos.
Os depoimentos são em número muito maior do que as pessoas geralmente
imaginam. E uma das coisas mais incríveis do nosso tempo é a total indiferença que a
mídia (jornal e televisão) tem sobre isso aí, que são evidentemente os acontecimentos
mais importantes do mundo. Por um motivo muito simples: se uma única alma humana
é imortal, se ela começa e não termina mais, ela vai durar mais do que toda a história
humana, porque a história humana um dia vai terminar. Meça e diga: que importância
tem toda a História da humanidade comparada com a duração de uma única vida
humana? Não significa absolutamente nada. A simples existência da imortalidade já
muda completamente a escala com que você vê as coisas. E a minha idéia era
justamente conseguir meter na cabeça das pessoas essa mudança de escala.
Geralmente, mesmo as pessoas religiosas têm a idéia de que elas estão vivendo
na realidade e depois da morte existe um não-sei-quê que se chama de imortalidade, de
Céu, de Inferno etc. etc. Esse próprio modo de expor as coisas já falsifica tudo porque
você não está falando de uma imortalidade real, você está falando de uma idéia de
imortalidade. É a idéia que você mesmo tem.
Agora, como seria a imortalidade de fato para aquelas pessoas que a
experimentaram de algum modo? Esse que foi meu ponto de partida. Decidi não
especular sobre o conceito de imortalidade, sobre a doutrina da imortalidade, mas sobre
os fatos, isto é, os depoimentos a esse respeito.
Eu mesmo não tenho essa experiência. Pode-se dizer que tive experiências
similares quando era criança, mas não chegavam a esse ponto. Mas eu acredito que
hoje em dia eu consiga conceber essa idéia de imortalidade de maneira muito mais
concreta do que em outras épocas. Inclusive, quando você toma consciência
* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de
imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
efetivamente da imortalidade, é essa vida aqui que começa a te parecer meio irreal, em
comparação. Por quê?
Preste bem atenção. Tudo o que você percebe neste mundo, você percebe por
fragmentos. Você não percebe uma coisa inteira. As pessoas que você está vendo, por
exemplo, você as vê de maneira contínua ou você tem que piscar, o seu olho desvia?
Então o que você vê é uma sucessão de imagens separadas e uma não tem nada que
ver com a outra. Você acredita que elas formam a unidade de um ser – e de fato formam,
você não está enganado nisso aí –, mas não foi sua visão que lhe deu essa informação.
Foi a presença real da pessoa que a visão traduziu de maneira muito parcial e imperfeita.
Isto é que é importante.
No mundo em geral as abordagens filosóficas do assunto se dividiram em duas:
realistas e idealistas. Realista é aquele que acredita que nós vemos as coisas como elas
realmente são, e idealista acredita que nós não enxergamos nada da realidade, nós
inventamos tudo – tudo vem da mente, do espírito etc. etc.
É claro que essas duas são uma imensa besteira. Eu não vejo como um idealista
possa negar que um objeto que esteja na sua frente lhe passe alguma informação. Se
tudo viesse de nós mesmos, nós não teríamos sequer como distinguir os vários objetos.
Por exemplo, eu tenho várias pessoas na minha frente, cada uma delas acredita que ela
tenha uma individualidade que é dela, que não é do vizinho. E eu as vejo exatamente
assim. O que me impediria de confundi-las todas? Se fossem apenas imagens que eu
estivesse projetando, elas não teriam essa autonomia do eu real humano. Elas não
poderiam dizer “eu” e serem responsáveis pelos seus atos. E no entanto, cada pessoa
que você conhece não é só uma visão, um elemento visual que você tem, nem auditivo
nem táctil. É uma presença humana que diz “eu” e que tem pretensões de ser tão
autônoma quanto você.
A posição idealista é absolutamente insustentável mas a realista também é. Por
quê? Porque tudo que nós percebemos é percebido de maneira parcial e interminente.
Nós não recebemos dos objetos que nos circundam essa visão assim maciça e
impressiva a ponto de reconhecer a realidade porque ela está diante de nós. Ela não
está diante de nós, é só um pedacinho dela. O exemplo que eu sempre dou é o seguinte,
todo mundo sabe que um cubo tem seis lados. Nunca ninguém viu seis lados de um
cubo. Nunca, ninguém. Você só vê três ao mesmo tempo. Quando você vira para ver o
lado quatro, o lado um some. Todos nós sabemos o que é a forma cúbica, nós sabemos
que o cubo ocupa um lugar no espaço, que ele não é só um elemento visual, mas nós
não temos a tradução visual disso de maneira alguma. Então a pergunta é a seguinte:
como é que eu sei que o cubo tem seis lados? Não é pelo visual. Também não pode ser
por raciocínio, porque o raciocínio pode levar você a alguma conclusão errada e eu
poderia me equivocar na contagem dos lados do cubo. Poderia parecer que eram seis
mas talvez sejam sete, talvez sejam oito. Mas isso nunca acontece. Então, é daí que eu
tiro a idéia do que chamei de “conhecimento por presença”.
Ou seja, não é por um dos sentidos que isto nos chega, é pela presença total do
objeto. Eu não posso perceber essa presença, nem pelos olhos, nem pelas mãos, nem
* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de
imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
pelo ouvido. Nada me dá acesso a isso. Mas eu tenho que reconhecer que a presença
existe. Porque se eu não a reconhecer, eu vou ter que chegar na conclusão idealista de
que sou eu quem está inventando tudo, conclusão que me leva a outras conclusões
absolutamente insustentáveis.
Nós temos que admitir que a presença do objeto nos dá algum conhecimento para
além do que os nossos sentidos percebem. Era isso que Leibniz estava querendo dizer
quando ele dizia que se juntássemos todos os aspectos mensuráveis, matematizáveis
de um ente, ainda não obteríamos a realidade dele; ficaria faltando alguma coisa. O que
é essa coisa? Essa coisa é justamente o que chamo de presença.
Eu uso a palavra “presença” num sentido um pouco diferente do que usa o Louis
Lavelle. O Louis Lavelle quando fala em “presença”, ele está falando sempre da presença
total do ser diante de nós. Eu nunca investiguei isso. Isso a gente encontra no livro do
Louis Lavelle. Eu tô falando da presença dos entes, um por um. Você vai ter que
reconhecer que cada ente que você conhece lhe dá algo para além do que você percebe
dele pelos sentidos e do que você pode deduzir dele por pensamento. Se fosse só por
pensamento, isso significaria que a única realidade que você percebe no objeto, foi o seu
pensamento que captou. Então ele só existe no seu pensamento. Você cairia no
idealismo total, o que já vimos ser absolutamente inaceitável.
Cada objeto, seja uma pessoa, seja uma ente do mundo físico, seja um animal –
qualquer coisa, ele me dá alguma informação pela sua simples presença, a qual
transcende tudo o que os meus sentidos captam dele e que não é captável por
pensamento. É captável pelo quê? Pela minha própria presença, porque eu também
estou presente. Eu nunca sou um puro observador – isso é a coisa mais importante! Eu
não posso imaginar o mundo como uma tela diante da qual eu seja puro observador, que
eu só esteja vendo e não esteja agindo sobre esse mundo. Não é possível isso. E grande
parte do pensamento realista cai um pouco nessa ilusão de achar que se está vendo o
mundo objetivo. Não, as coisas não são assim. O que eu capto da presença do objeto,
eu não capto pela minha visão, pela minha audição, pelo meu tato e nem pelo meu
pensamento. Eu capto pela minha presença. Eu também estou presente.
Essa noção de presença é muito mais importante do que tudo o que os filósofos
idealistas e realistas disseram ao longo do tempo. Pode-se dizer que essa minha
abordagem seja materialista, mas ela é mais materialista do que os materialistas. Porque
o materialista, no fim das contas, faz tudo depender da percepção sensível, e eu digo
que não, que há algo que vai para muito além da percepção sensível. E é dentro dessa
presença que se recortam os vários aspectos que você percebe pelos vários sentidos. O
meu aparato de percepção, que se divide em visão, audição, tato etc. etc., ele é que
divide o objeto em todos esses aspectos. Mas no próprio objeto, na constituição efetiva
desse objeto, esses aspectos estão separados? Não. Eles estão unidos no quê? Na
presença dele. Esta percepção, este sentimento da minha presença diante de um objeto
que também está presente, isto é a base de toda percepção humana, de todo
conhecimento humano.

* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de


imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
Os sentidos entram nisso? Claro que entram, mas entram secundariamente. Eles
dependem da presença, e não a presença, deles.
O problema com todas as antigas abordagens sobre isso aí é que os realistas
acreditavam piamente nos sentidos, que os sentidos nos dão a realidade dos objetos, e
os idealistas respondiam que os sentidos jamais nos dão a realidade do que quer que
seja. Os dois lados estavam certos. Só que nenhum admitiu algo que fosse para além
dos sentidos. E hoje nós temos que aceitar isso, sobretudo quando nós conhecemos
todos os estudos que existem sobre percepção extra-sensorial, o que era uma coisa que
no século XX avançou de maneira absolutamente fantástica.
Por exemplo, aqueles estudos do Rupert Shelrake, A sensação de estar sendo
observado. Se você tem a sensação de estar sendo observado, você não está vendo
quem te observa, mas esse fenômeno efetivamente existe. Também certas percepções
animais. Eu tinha um gato que se chamava Bartolomeu. E diariamente, na hora de voltar
pra casa, o Bartolomeu ia me esperar na porta da rua. Não era um cachorro, era um
gato. Sabe-se que é difícil ensinar alguma coisa pra um gato. Não fui eu que ensinei isso
pra ele, ele aprendeu sozinho. Como é que ele percebia a minha presença antes de ter
acesso a ela pelos seus cinco sentidos? Eu não tenho a menor idéia mas é óbvio que
ele, por estar fisicamente presente, percebia uma presença física que ia para além dos
dados sensíveis que essa presença física lhe mostraria depois para os olhos, ouvidos,
tato etc. E eu acho francamente incrível que essa noção de presença jamais tenha
ocorrido aos filósofos das eras passadas e que por causa disso eles tenham gastado
tanto tempo no debate entre idealistas e realistas, ou idealistas e materialistas, como
queiram chamá-los.
Também um outro aspecto interessantíssimo do negócio, que eu não sei se eu
abordei suficientemente no curso e no livro, é que tudo aquilo que nós percebemos dos
objetos, nunca é o objeto inteiro, nunca é a presença total dele. São signos dessa
presença, apenas signos. Porém, uma coisa que não está presente, não pode me dar
nenhum signo da sua presença. Portanto, o signo é um elemento fortíssimo para me
convencer da presença. Se eu recebo o signo, é porque o objeto está presente, senão
eu estaria apenas pensando o signo.
Quando você vê um urso, o que você vê dele? Você vê o urso inteiro? Não, você
vê só o aspecto interno do urso. Você não vê os órgãos internos, você não vê o coração
do urso batendo. Se não tivesse coração batendo, o urso seria absolutamente inofensivo.
E você sabe que ele não é. Então, estes poucos signos que você pegou do urso lhe
indicam a presença maciça dele. E eles indicam, por quê? Porque eles são signos disto.
Não existe signo sem o significado e muito menos signo sem o referente.
Significado é o que? É o sentido dum signo, é o o quê, aquilo que corresponde ao
signo na esfera da palavra, é a definição do signo. Mas o referente é o objeto real a que
corresponde esse signo. O referente não é verbal, o referente não é dizível. Isso é
importante. A não ser que seja o referente de um fenômeno verbal, claro. Mas o referente
de um objeto físico qualquer é o próprio objeto físico, que não é o seu significado nem o
seu signo.
* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de
imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
A partir da hora que você percebe que existe um negócio chamado signo, você se
dá conta de uma coisa importantíssima: os signos não existem só na sua mente, no seu
pensamento – os signos existem em toda parte da natureza. Tudo na natureza você
conhece por signos.
Este conceito, que parecia ser o conceito fundamental da nossa linguagem e do
nosso pensamento, é também o conceito fundamental do mundo físico.
A divisão entre os filósofos que acreditam na existência de um mundo físico real
e aqueles que só acreditam no pensamento está abolida automaticamente pela noção
de signo. É isso o que diz o filósofo americano John Deely.
Ele diz que, naqueles tempos remotos, se em vez de terem lido Descartes, Bacon,
Hume, tivessem lido o João de Santo Tomás (João Poinsot, um filósofo português), três
séculos de discussão idiota teriam sido evitados. Porque não faz sentido você colocar
realismo e idealismo, ou materialismo e idealismo, como alternativas quando no mundo
dos signos tudo é essas duas coisas ao mesmo tempo. A noção de signo abarca tudo
isso aí. Abarca e reorganiza o mundo da natureza e o mundo do pensamento e mostra
como no fundo são exatamente o mesmo mundo e que se distinguem pela sua atitude
perante eles e não em si mesmos.
Por exemplo, se você tem uma recordação, se você recorda uma cena do seu
passado, você vai dizer que essa cena não existe no mundo físico, que ela só existe na
sua mente? Como? Como é possível? Como é possível que uma coisa que sucedeu no
tempo fisicamente só exista na minha mente? Não, ela existe no mundo físico. Num
tempo passado, mas existe. Ela é um elemento do mundo físico, como tudo que
aconteceu é um elemento do mundo físico. Se você disser que não é, você cai na
conclusão do seguinte: o mundo acabou de surgir neste mesmo momento, todo o
passado não existiu. O que é absurdo, evidentemente. Quando você recorda uma cena
do passado, você está recordando algo do mundo físico, do mundo real. Não existe só
no seu pensamento. Ele existe numa secção, num departamente específico do mundo
físico e você chama de “mundo passado”. Mas se você retirar um único elemento desse
mundo passado e jogá-lo para a esfera do irreal, você acaba por abolir toda a realidade
do mundo. Porque você pega um capítulo do passado, suprime o capítulo mas todas as
consequências e tudo o que aconteceu depois do capítulo continua existindo. Como é
possível? É inteiramente absurdo.
É absolutamente errado você acreditar que as suas recordações só existam na
sua mente. E é por isso que eu chamo a minha posição filosófica de realismo radical (do
conceito idealista eu aceito um pedacinho da crítica que ele faz ao realismo ingênuo,
mas é só um pedacinho, porque eu acho que até o realismo ingênuo é mais esperto que
o idealismo). A minha posição é o realismo radical, quer dizer, existe muito menos coisas
na nossa mente do que as pessoas imaginam. A concepção atual é a de que tudo está
no nosso cérebro, de que a estrutura do mundo, tudo, só existe no nosso cérebro. Mas
o que que é o cérebro senão um pedaço do mesmo mundo? No meu modesto entender,
o meu cérebro está dentro do mundo, e não o mundo dentro do meu cérebro. Ou o seu
é diferente? O seu cérebro é maior que o mundo?
* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de
imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
Cérebro é apenas o nome de uma coisa física que existe dentro da sua caixa
craneana. Ela não tem todo esse privilégio que as pessoas acreditam. Você quer que as
pessoas guardem recordações no cérebro? Que coisa mais absurda. Você não guarda
nada no seu cérebro, meu filho. Você apenas repete operações. É isso que você faz.
Mas você está inevitavelmente se referindo a um mundo real. Este mundo real, ele não
é só o mundo que você está vendo neste momento. Ele é tudo o que aconteceu antes e
o que vai acontecer depois. E nós transitamos dentro disso com a nossa imaginação,
com o nosso pensamento. Mas nós, quando estamos pensando, nós não fugimos do
mundo para entrar dentro da nossa subjetividade. Isto é uma besteira.
Por exemplo, eu me lembro da minha mãe, Dona Nice, que morreu um tempo
atrás. Morreu aos 99 anos. Morreu porque caiu no banheiro e quebrou a perna, senão
estaria viva ainda. Então, eu me lembro de inumeráveis cenas da Dona Nice, mas
inumeráveis. Eu não conseguiria contar pra vocês. Se eu fosse escrever minhas
memórias da Dona Nice, daria um livro de dez volumes. E tudo isso não aconteceu, tudo
isso está dentro da minha mente apenas? Como é possível que exista só na minha
mente?
Para que existisse só na minha mente, eu precisaria ter abolido todo esse
passado. Entender que ele não existe, nunca existiu. Que sumiu e só existe a
recordação. Mas como é que pode existir só a recordação de uma coisa se a coisa não
existe? Não é possível.
O passado da Dona Nice é tão real quanto a presença dela neste momento. Se
ela está presente apenas como recordação, é uma presença que transcende a minha
capacidade de recordar. Eu não estou recordando a minha recordação. Daí surge a
discussão sobre a Eucaristia.
Um pessoal diz que não tem a presença real, que Cristo mandou fazer a Eucaristia
apenas como uma recordação. Não, isso é coisa de quem não sabe ler. Eu sei um
pouquinho de grego, só um pouquinho. Mas ali está claro que Ele está dizendo o
seguinte: “fazei isto em memória de mim”. Ele não diz “fazei uma recordação de mim”.
“Fazei isto” é o que? O que Ele acabou de fazer. O que Ele acaba de fazer é também
uma recordação dele. Mas é só uma recordação? Não é possível. Senão Ele diria “fazei
apenas uma recordação de mim”. Ou será que Ele não sabe o que tá falando?
Se você for se ater ao sentido estrito do que está na Bíblia, o Cristo afirmou a
presença real Dele, sim. Porque Ele diz “fazei isto”. O que que é “isto”? O que ele acaba
de fazer! Ele parte o pão e diz “isto é o meu corpo”. Ele não diz “isto significa o meu
corpo”, “isto é um signo do meu corpo”. Ele diz “isto é o meu corpo”. Entao Ele mandou
os caras fazerem a mesma coisa de novo e dizer “isto é o corpo de Cristo” (Você não
pode dizer “isto é o meu corpo” porque não é você que está lá. Foi Ele que disse, não foi
você).
Inumeráveis discussões teológicas teriam sido evitadas se as pessoas
entendessem, se elas se ativessem ao sentido literal do que Ele diz.
Eu vou contar um segredo pra vocês. Eu sou inteiramente favorável à
interpretação literal da Bíblia. Inteiramente. Porque se a interpretação literal não vale, as
* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de
imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
outras também não valem. Se lá está escrito: “Moiséis fez tal coisa assim, assim e assim”,
o que que significa isso? Significa que Moiséis fez tal coisa assim, assim e assim. Este
fato por sua vez pode significar uma outra coisa num plano metafísico, num plano místico.
Ou até no plano literário. Mas se o fato não aconteceu, aquilo que não aconteceu não
significa nada. Se fosse apenas um signo e mais nada, o próprio Deus diria “isto é apenas
uma palavra”. Mas, como diz São Tomás de Aquino, nós pensamos e falamos com
palavras, Deus fala com palavras e coisas.
Jesus interpretava a Bíblia assim. Ele interpretou e nos ensinou a interpretar.
Interpretar o que? Confiando no que você está lendo. Porque, se você não confia,
significa que você não confia no depoimento desses caras, que você é mais honesto do
que eles. É o que falava o Charles Maurras.
Charles Maurras é um grande intelectual francês, mas pra mim era
completamente biruta. Foi um dos teóricos do fascimo francês (Fascismo francês é o que
se tem que definir como o Zeev Sternhell, “não é nem direita nem esquerda, é um outro
treco”). Charles Maurras apoiava a Igreja Católica mas ele não era católico, ele era
positivista, ele era discipulo do Auguste Comte. Ele dizia o seguinte: “Por que que eu vou
duvidar de gerações e gerações de sábios, cardeais, profetas e teólogos pra me fiar nos
Evangelhos de quatro judeus obscuros que ninguém sabe quem foi?” É simples, porque
toda essa gente tá falando baseada nas quatro judeus obscuros, pô, e não o contrário.
Você acha que Mateus foi perguntar pra algum bispo o que ele tinha que escrever ou ele
escreveu o que ele viu? Eles mesmos dizem “em parte eu vi, em parte me contaram”,
“tem depoimentos e testemunhos e tem meus próprios depoimentos e testemunhos”. Por
que que eu vou duvidar? Não é razoável a dúvida. A credulidade, no caso, é mais sábia
e mais razoável do que a dúvida. Pra que que eles fariam isso? Pra ganharem um
dinheiro, pra se fazerem de importante? Pra que que eles enganariam todo mundo? Ou
então eles eram loucos? Bom, então me dá algum sinal de loucura, você não vê nenhum
sinal de loucura.
É que nem o negócio daquele filme do Clint Eastwood, que o sujeito de repente
se joga num cacto. Daí os amigos tão lá tirandos os espinhos dele e dizem “por que você
fez isso?”, e ele diz “na hora me pareceu uma boa idéia”.
Você não vê nenhum deles fazendo isso. Todos agem de maneira razoável.
Inclusive saem das situações mais difíceis. Eu não vejo por que duvidar. Eu prefiro
duvidar do palpiteiro que está querendo encher o meu saco. Por que que eu vou duvidar
do evangelista? Duvido de você. É ou não é mais razoável?
Então, tem que ler a Bíblia acreditando. Mas é um tal negócio. Tem aquele padre
Calderón, que escreveu o livro A candeia debaixo do alqueire. O livro é bom. Mas ele diz
que na Bíblia existe a verdade ontológica, que está falando da natureza de Deus e essas
coisas, e existe a verdade lógica que é a verdade da doutrina. Mas ele esquece um treco.
Existe a verdade histórica que é o sentido literal do que se está falando e sem o qual
você não tem acesso a nenhum desses dois.
Como eu já falei de verdade histórica, veio uns cretinos aí, que eu chamo de
catolicuzinhos, e acharam que eu estava falando de verdade metafísica. Mas que
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imortalidade, daí achei por bem transcrevê-la, já que ela serve como um apêndice ao livro. Não
houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
verdade metafísica? E eu lá me meti nisso aí? Eu falei que você conhece diretamente a
essência de Deus por experiência? Eu disse isso? Eu nunca que ia dizer uma estupidez
dessa, meu Deus do céu. Deus não falou pra Moiséis “ninguém me conheceu e continuou
vivo”? Ele num falou isso pra Moisés? Então, qualquer sujeito que diga que conheceu
Deus por presença é maluco ou está mentindo. Você conhece os sinais de Deus. Se até
um urso você só conhece por signos como é que você vai conhecer Deus por presença?
Tá brincando comigo, pô? Você sabe que Deus está presente. Por quê? Porque está
presente o signo. E aquilo que não está presente, não envia signo nenhum.
A história dos milagres, por exemplo, eu acho a coisa mais importante da religião.
Muito mais importante você estudar todos os milagres do que você estudar toda a
doutrina, porque a doutrina não acaba mais, não sei se vocês perceberam. Tem a
patrística. A patrística grega tem dois mil volumos, a patrística latina tem mil (sem falar
nos escolásticos, só no tempo da patrística). Tudo isso aí é doutrina. Você vai estudar
tudo isso? Tá brincando comigo?
Mas os milagres, bom também são em número enorme, mas nem todos estão
registrados. Se você for estudar só aqueles que estão registrados, você pode alcançar,
não todos, mas um bom número deles, o suficiente para você tentar entender alguma
coisa de como se manifesta a presença divina, a ação divina no mundo físico. Se você
não entende nada da ação divina no mundo físico, você vai entender o que da
imortalidade, o que do mundo espiritual?
Eu escuto falar negócio de espiritual, já começo a ficar brabo, já saco o meu rolo
de papel higiênico. Tudo isso que eu tô falando não é espiritual, é material. Que que
Cristo fala àqueles que vão perguntar pra Ele em nome de João “você é o Cristo mesmo
ou devemos esperar um outro?” Ele diz “vão lá e contem para João o que vocês viram e
ouviram”.
Viram com esses olhos e ouviram com esses ouvidos. Ele está falando de coisas
materiais. Ele sabe que nós não temos percepção espiritual. Ele sabe que nós somos
umas bestas quadradas. Nós somos uns animais pouquinho inteligentes mas somos
apenas animais no fim das contas. Então, se não tem um expressão material, pra nós
não chega, a gente não aprende. Por que que você acha que Deus fez o mundo material
pra nós? Se nós pudéssemos ter acesso a tudo espiritual, ele faria um mundo espiritual
e estaríamos lá contentes da vida. Foi isso que Ele fez? Não.
O número de pessoas que querem dar lição pra Deus, que querem corrigir Deus,
é muito grande. Se o sujeito faz predominar o espiritual sobre o material, já começou
errado. Deus-Pai mandou o Filho dele pra onde? Pro mundo espiritual? Não, mandou
pro mundo material, pô. Então, sejamos materialistas. É o que Deus quer de nós. Quer
que nós acreditemos na realidade mais material das coisas que Ele fez. Tão
entendendo?
Isso aqui que eu estou dizendo pra vocês é o conjunto de princípios e métodos
que eu usei no estudo da imortalidade. Falei alguma besteira, algum desses princípios é
ilógico, é absurdo? Não. Eu acho que são todos razoáveis. E se você não acha que é

* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de


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houve revisão do professor no texto da transcrição, e quem quer que encontre erros ou outras
imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.
razoável, você por favor me conteste e você terá tanto sucesso quanto teve o Pumdeu e
outras pessoas desse tipo.

* Esta aula foi ministrada especialmente para o lançamento do livro A consciência de


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imperfeições, fique à vontade para arrumá-los.

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