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448 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO

como outrora meu passado se viveu para aquém de meu


presente.
MERLEAU-PONTY, M. Fenomenologia da Percepção.
Excerto do capítulo "A coisa e o mundo natural"
A alucinação desintegra o real sob nossos olhos, ela o
substitui por uma quase-realidade, das duas maneiras o fe-
nômeno alucinatório nos reconduz aos fundamentos pré-
lógicos de nosso conhecimento e confirma aquilo que se aca-
ba de dizer sobre a coisa e sobre o mundo. O fato capital é
que a maior parte do tempo os doentes distinguem suas alu-
cinações e suas percepções. Esquizofrênicos que têm aluci-
nações táteis de picadas ou de "corrente elétrica" sobressal-
tam-se quando lhes aplicam um jato de cloreto de etilo ou
uma verdadeira corrente elétrica: "Dessa vez", dizem eles
ao médico, "isso vem de você, é para me operar..." Um ou-
tro esquizofrênico, que dizia ver no jardim um homem para-
do sob sua janela e indicava o lugar, a roupa, a atitude, fica
estupefato quando efetivamente se coloca alguém no jardim
no lugar indicado, com a mesma roupa e na mesma posição.
Ele observa atentamente: "E verdade, existe alguém, é um
outro." Ele se recusa a contar dois homens no jardim. Uma
doente que nunca duvidou de suas vozes, quando lhe fazem
ouvir no gramofone vozes análogas às suas, interrompe seu
trabalho, levanta a cabeça sem se voltar, vê aparecer um an-
jo branco, como ocorre toda vez que ela ouve suas vozes, mas
não computa essa experiência entre as "vozes" do dia: desta
vez não é a mesma coisa, é uma voz "direta", talvez a voz
do médico. Uma demente senil que se queixa de encontrar
pó em seu leito sobressalta-se quando verdadeiramente en-
contra nele uma fina camada de pó de arroz: "O que é isso?
Este pó é úmido, o outro é seco." Em um delírio alcoólico,
o paciente que vê a mão do médico como um porquinho-da-
índia logo observa que se colocou um verdadeiro porquinho-
da-índia na outra mão63. Se os doentes dizem tão freqüen-
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temente que lhes falam por telefone ou pelo rádio, é justamente


para exprimir que o mundo mórbido é factício, e que lhe falta
algo para ser u m a " r e a l i d a d e " . As vozes são vozes de mal-
educados ou " d e pessoas que querem parecer mal-educadas'',
é um jovem que simula a voz de um velho, é "como se um
alemão tentasse falar iídiche" 6 4 . "É como quando u m a pes-
soa diz algo a alguém, mas isso não chega até o s o m . " 6 0 Es-
sas confissões não concluem todo debate sobre a alucinação?
Já que a alucinação não é um conteúdo sensorial, só resta
considerá-la como um juízo, como u m a interpretação ou co-
mo u m a crença. Mas, se os doentes não acreditam na aluci-
nação no mesmo sentido em que se crê nos objetos percebi-
dos, u m a teoria intelectualista da alucinação é também im-
possível. Alain cita a frase de Montaigne sobre os loucos " q u e
crêem ver aquilo que efetivamente não v ê e m " 6 6 . Mas justa-
mente os loucos não crêem ver ou, por pouco que os interrogue-
mos, sobre este ponto eles retificam suas declarações. A aluci-
nação não é um juízo ou u m a crença temerária pelas mesmas
razões que a impedem de ser um conteúdo sensorial: o juízo
ou a crença só poderiam consistir em pôr a alucinação como
verdadeira, e é justamente isso que os doentes não fazem. No
plano do juízo, eles distinguem entre a alucinação e a percep-
ção, em todo caso eles argumentam contra suas alucinações:
ratos não podem sair da boca e tornar a entrar no estômago 67 ,
um médico que ouve vozes toma um barco e rema para o alto-
mar para persuadir-se de que ninguém verdadeiramente lhe
fala 68 . Quando a crise alucinatória sobrevém, o rato e as vo-
zes estão novamente ali.
Por que o empirismo e o intelectualismo malogram em
compreender a alucinação, e qual outro método nos permiti-
rá compreendê-la? O empirismo tenta explicar a alucinação
como a percepção: pelo efeito de certas causas fisiológicas,
por exemplo a irritação dos centros nervosos, dados sensíveis
apareceriam do mesmo modo que aparecem na percepção,
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pela ação dos estímulos físicos nos mesmos centros nervosos.


A primeira vista, não há nada de comum entre essas hipóte-
ses fisiológicas e a concepção intelectualista. Na realidade, co-
mo se vai ver, ambas têm em comum o fato de que as duas
doutrinas supõem a prioridade do pensamento objetivo, dis-
põem apenas de um único modo de ser, o ser objetivo, e nele
procuram introduzir à força o fenômeno alucinatório. Atra-
vés disso, elas o falseiam, perdem seu modo próprio de certe-
za e seu sentido imanente, já que, segundo o próprio doente,
a alucinação não tem lugar no ser objetivo. Para o empiris-
mo, a alucinação é um acontecimento na cadeia de aconteci-
mentos que vai do estímulo ao estado de consciência. No
intelectualismo, procura-se desembaraçar-se da alucinação,
construí-la, deduzir aquilo que ela pode ser a partir de uma
certa idéia da consciência. O cogito nos ensina que a existên-
cia da consciência confunde-se com a consciência de existir,
que portanto nela não pode haver nada sem que ela o saiba,
que, reciprocamente, tudo aquilo que sabe com certeza ela
o encontra em si mesma, que por conseguinte a verdade ou
a falsidade de uma experiência não devem consistir em sua
relação a um real exterior, mas devem ser legíveis nela a tí-
tulo de denominações intrínsecas, sem o que nunca poderiam
ser reconhecidas. Assim, as percepções falsas não são verda-
deiras percepções. O alucinado não pode ouvir ou ver no sen-
tido forte desses termos. Ele julga, ele crê ver ou ouvir, mas
não vê, não ouve efetivamente. Essa conclusão não salva nem
mesmo o cogito: com efeito, restaria saber como um sujeito
pode crer que ouve quando efetivamente não ouve. Se se diz
que essa crença é simplesmente assertiva, que é um conheci-
mento do primeiro gênero, uma dessas aparências flutuantes
nas quais não se crê no sentido pleno da palavra e que só sub-
sistem por falta de crítica, em suma um simples estado de fa-
to de nosso conhecimento, será preciso então saber como uma
consciência pode estar, sem o saber, nesse estado de incom-
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pletude ou, se o sabe, como pode aderir a ele69. O cogito in-


telectualista só deixa diante de si um cogitatum inteiramente
puro que ele possui e constitui de um lado a outro. É pratica-
mente impossível compreender como ele pode enganar-se so-
bre um objeto que constitui. Portanto, é exatamente a redu-
ção de nossa experiência a objetos, é a prioridade do pensa-
mento objetivo que, aqui também, desvia o olhar do fenô-
meno alucinatório. Entre a explicação empirista e a reflexão
intelectualista existe um parentesco profundo, que é sua co-
mum ignorância dos fenômenos. Ambas constróem o fenô-
meno alucinatório em lugar de vivê-lo. Mesmo aquilo que
existe de novo e de válido no intelectualismo — a diferença
de natureza que ele estabelece entre percepção e alucinação
— está comprometido pela prioridade do pensamento objeti-
vo: se o sujeito alucinado conhece objetivamente ou pensa sua
alucinação enquanto tal, como a impostura alucinatória é pos-
sível? Tudo provém do fato de que o pensamento objetivo,
a redução das coisas vividas a objetos, da subjetividade à co-
gitatio, não deixa nenhum lugar para a adesão equívoca do
sujeito a fenômenos pré-objetivos. Portanto, a conseqüência
é clara. Não se deve construir a alucinação, nem em geral
construir a consciência segundo uma certa essência ou idéia
dela mesma que obriga a defini-la por uma adequação abso-
luta, e torna impensáveis as suas pausas de desenvolvimen-
to. Aprende-se a conhecer a consciência como qualquer ou-
tra coisa. Quando o alucinado diz que vê e que ouve, não
se deve acreditar nele70, já que ele diz também o contrário,
mas é preciso compreendê-lo. Não devemos nos ater às opi-
niões da consciência sã sobre a consciência alucinada e con-
siderar-nos como os únicos juizes do sentido próprio da alu-
cinação. Ao que se responderá, sem dúvida, que eu não pos-
so atingir a alucinação tal como ela é para si mesma. Aquele
que pensa a alucinação, ou outrem, ou seu próprio passado,
nunca coincide com a alucinação, com outrem, com seu pas-
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sado tal como ele foi. O conhecimento nunca pode ultrapas-


sar este limite da facticidade. Isso é verdade, mas não deve
servir para justificar as construções arbitrárias. É verdade que
não se falaria de nada se só se devesse falar das experiências
com as quais se coincide, já que a fala já é uma separação.
Mais ainda, não existe experiência sem fala, o puro vivido
não está nem mesmo na vida falante do homem. Mas o sen-
tido primeiro da fala está todavia nesse texto de experiência
que ela tenta proferir. O que se busca não é uma coincidên-
cia quimérica de mim com outrem, do eu presente com seu
passado, do médico com o doente; nós não podemos assumir
a situação de outrem, reviver o passado em sua realidade,
a doença tal como ela é vivida pelo doente. A consciência
de outrem, o passado, a doença nunca se reduzem, em sua
existência, àquilo que deles conheço. Mas minha própria cons-
ciência, enquanto ela existe e se engaja, também não se re-
duz àquilo que dela conheço. Se o filósofo causa alucinações
a si mesmo por meio de uma injeção de mescalina, ou ele
cede ao impulso alucinatório, e então ele viverá a alucina-
ção, não a conhecerá, ou conserva algo de seu poder reflexi-
vo e sempre se poderá recusar seu testemunho, que não é
o mesmo de um alucinado "envolvido" na alucinação. Por-
tanto, não existe privilégio do conhecimento de si, e outrem
não me é mais impenetrável do que eu mesmo. O que é dado
não é o eu e, por outro lado, outrem, meu presente e, por
outro lado, meu passado, a consciência sã com seu cogito e,
por outro lado, a consciência alucinada, somente a primeira
sendo juiz da segunda e estando reduzida, naquilo que con-
cerne a esta, às suas conjecturas internas — o que é dado
é o médico com o doente, eu com outrem, meu passado no hori-
zonte de meu presente. Deformo meu passado evocando-o no
presente, mas posso levar em conta essas mesmas deforma-
ções, elas me são indicadas pela tensão que subsiste entre o
passado abolido que viso e minhas interpretações arbitrárias.
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Engano-me sobre outrem porque o vejo de meu ponto de vis-


ta, mas eu o entendo quando protesta e enfim tenho a idéia
de outrem como de um centro de perspectivas. No interior
de minha própria situação me aparece a situação do doente
que interrogo e, neste fenômeno com dois pólos, aprendo a
me conhecer tanto quanto a conhecer a outrem. É preciso
recolocar-nos na situação efetiva em que as alucinações e o
"real" se oferecem a nós, e apreender sua diferenciação con-
creta no momento em que ela se opera na comunicação com
o doente. Estou sentado diante de meu paciente e converso
com ele, ele tenta descrever-me aquilo que " v ê " e aquilo que
"ouve"; não se trata nem de acreditar no que ele diz, nem
de reduzir suas experiências às minhas, nem de coincidir com
ele, nem de ater-me ao meu ponto de vista, mas de explicitar
minha experiência e sua experiência tal como ela se indica
na minha, sua crença alucinatória e minha crença real; trata-
se de compreender uma pela outra.
Se classifico entre as alucinações as vozes e as visões de
meu interlocutor, é porque não encontro nada de semelhan-
te em meu mundo visual ou auditivo. Portanto, tenho cons-
ciência de apreender pela audição e sobretudo pela visão um
sistema de fenômenos que não constitui apenas um espetá-
culo privado, mas que é o único possível para mim e mesmo
para outrem, e é isso que denominamos o real. O mundo per-
cebido não é apenas meu mundo, é nele que vejo desenhar-se
as condutas de outrem, elas também o visam e ele é o corre-
lativo, não somente de minha consciência, mas ainda de to-
da consciência que eu possa encontrar. O que vejo com meus pró-
prios olhos esgota para mim as possibilidades da visão. Sem
dúvida, só o vejo sob um certo ângulo e admito que um es-
pectador situado de outra maneira perceba aquilo que eu ape-
nas adivinho. Mas esses outros espetáculos estão atualmente
implicados no meu, assim como o verso ou a parte inferior
dos objetos são percebidos ao mesmo tempo em que sua face
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visível, ou assim como o cômodo vizinho preexiste à percep-


ção que eu efetivamente teria dele se para lá me dirigisse;
as experiências de outrem ou as que eu obteria deslocando-
me apenas desenvolvem aquilo que está indicado pelos hori-
zontes de minha experiência atual, e nada acrescentam a ela.
Minha percepção faz coexistir um número indefinido de ca-
deias perceptivas que a confirmariam em todos os pontos e
concordariam entre si. Meu olhar e minha mão sabem que
todo deslocamento efetivo suscitaria uma resposta sensível exa-
tamente conforme à minha expectativa, e sinto pulular sob
meu olhar a massa infinita das percepções mais detalhadas
que antecipadamente possuo e sobre as quais tenho poder.
Portanto, tenho consciência de perceber um ambiente que
não "tolera" nada além daquilo que está escrito ou indicado
em minha percepção, comunico-me no presente com uma ple-
nitude intransponível71. O alucinado não crê tanto: o fenô-
meno alucinatório não faz parte do mundo, quer dizer, ele
não é acessível, não existe caminho definido que conduza dele
a todas as outras experiências do sujeito alucinado ou à ex-
periência dos sujeitos sãos. "Você não ouve minhas vozes?",
diz o doente, "então sou o único a ouvi-las." 72 As alucina-
ções desenrolam-se em uma outra cena que não a do mundo
percebido; elas são como imagens sobrepostas: "Olhe", diz
um doente, "enquanto estamos prestes a falar, me dizem is-
to e aquilo, e de onde é que isso poderia vir?." 73 Se a aluci-
nação não toma lugar no mundo estável e intersubjetivo, é
porque lhe falta a plenitude, a articulação interna que fazem
com que a coisa verdadeira repouse "em si", aja e exista por
si mesma. A coisa alucinatória não é, como a coisa verdadei-
ra, atulhada de pequenas percepções que a sustentam na exis-
tência. Ela é uma significação implícita e inarticulada. Dian-
te da coisa verdadeira, nosso comportamento sente-se moti-
vado por "estímulos" que preenchem e justificam suá inten-
ção. Se se trata de um fantasma, é de nós que vem a iniciati-
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va, nada corresponde a ela no exterior' 4 . A coisa alucinató-


ria não é, como a coisa verdadeira, ura ser profundo que con-
trai em si mesmo uma espessura de duração, e a alucinação
não é, como a percepção, meu poder concreto sobre o tempo
em um presente vivo. Ela escorrega sobre o tempo como es-
correga sobre o mundo. A pessoa que me fala em sonho nem
mesmo descerrou os dentes, seu pensamento comunica-se a
mim magicamente, sei aquilo que ela me diz antes mesmo
que ela tenha dito alguma coisa. A alucinação não está no
mundo, mas "diante" dele, porque o corpo alucinado per-
deu sua inserção no sistema das aparências. Toda alucina-
ção é em primeiro lugar alucinação do corpo próprio. "E co-
mo se eu ouvisse com minha boca." "Aquele que fala agarra-
se aos meus lábios", dizem os doentes75. Nos "sentimentos
de presença" (leibhaften Bewusztheiten), os doentes sentem ime-
diatamente perto deles, atrás deles ou sobre eles a presença
de alguém que não vêem nunca, eles o sentem aproximar-se
ou distanciar-se. Uma esquizofrênica tem sempre a impres-
são de ser vista nua e de costas. George Sand tem um duplo
que ela nunca viu, mas que a vê constantemente e a chama
por seu nome com sua própria voz76. A despersonalização e
o distúrbio do esquema corporal imediatamente se traduzem
por um fantasma exterior, porque para nós é uma e a mesma
coisa perceber nosso corpo e perceber nossa situação em um
certo ambiente físico e humano, porque nosso corpo não é
senão essa mesma situação enquanto ela é efetiva e realiza-
da. Na alucinação extracampine, o doente acredita ver um
homem atrás de si, acredita ver de todos os lados em torno
de si, acredita poder olhar por uma janela que está situada
atrás de suas costas77. Portanto, a ilusão de ver é muito me-
nos a apresentação de um objeto ilusório do que o desdobra-
mento e como que o enlouquecimento de uma potência vi-
sual doravante sem contrapartida sensorial. Existem alucina-
ções porque nós temos, através do corpo fenomenal, uma re-
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lação constante com um ambiente em que ele se projeta e


porque, separado do ambiente efetivo, o corpo permanece
capaz de evocar, por suas próprias montagens, uma pseudo-
presença desse ambiente. Nessa medida, a coisa alucinatória
nunca é vista nem visível. Um paciente sob efeito de mesca-
lina percebe o parafuso de um aparelho como uma ampola
de vidro ou como uma hérnia em um balão de borracha. Mas
o que ele vê exatamente? "Eu percebo um mundo de intu-
mescências... E como se mudassem bruscamente a chave de
minha percepção e me fizessem perceber intumescido, assim
como se toca uma peça em dó ou em si bemol... Neste ins-
tante, toda a minha pecepção se transformou e, por um se-
gundo, percebi uma ampola de borracha. Isso quer dizer que
não vi nada a mais? Não, mas eu me sentia como que 'mon-
tado' de tal maneira que não podia perceber de outra forma.
Invadiu-me a crença de que o mundo é assim... Mais tarde,
fez-se uma outra mudança... Tudo me pareceu ao mesmo
tempo pastoso e escamado, como certas serpentes grandes que
vi desenrolarem seus anéis no zoológico de Berlim. Neste mo-
mento me veio o pavor de estar em uma ilhota cercado de
serpentes." 78 A alucinação não me dá as intumescências, as
escamas, as falas como realidades pesadas que pouco a pou-
co revelam seu sentido. Ela só reproduz a maneira pela qual
essas realidades me atingem em meu ser sensível e em meu
ser lingüístico. Quando o doente rejeita uma comida como
"envenenada", é preciso compreender que para ele a pala-
vra não tem o sentido que teria para um químico79: o doen-
te não crê que no corpo objetivo o alimento possua efetiva-
mente propriedades tóxicas. Aqui o veneno é uma entidade
afetiva, uma presença mágica como aquela da doença e da
infelicidade. A maior parte das alucinações são não coisas com
facetas, mas fenômenos efêmeros, picadas, tremores, estou-
ros, correntes de ar, ondas de frio ou de calor, centelhas, pon-
tos brilhantes, clarões, silhuetas80. Quando se trata de ver-
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dadeiras coisas, como por exemplo de um rato, elas só são


representadas por seu estilo ou por sua fisionomia. Esses fe-
nômenos desarticulados não admitem entre si elos precisos
de causalidade. Sua única relação é uma relação de coexis-
tência — uma coexistência que para o doente tem sempre um
sentido, porque a consciência do fortuito supõe séries causais
precisas e distintas e porque aqui estamos nos fragmentos de
um mundo arruinado. "O escorrimento do nariz torna-se um
escorrimento particular, o fato de cochilar no metrô adquire
uma significação singular." 81 As alucinações só são ligadas
a um certo domínio sensorial enquanto cada campo sensorial
oferece à alteração da existência possibilidades de expressão
particulares. O esquizofrênico tem sobretudo alucinações au-
ditivas e táteis porque o mundo da audição e do tato, em ra-
zão de sua estrutura natural, pode, melhor que um outro,
representar uma existência possuída, exposta, nivelada. O al-
coólatra tem sobretudo alucinações visuais porque a ativida-
de delirante encontra na visão a possibilidade de evocar um
adversário ou uma tarefa que é preciso enfrentar82. O aluci-
nado não vê, não ouve no sentido normal, ele usa de seus
campos sensoriais e de sua inserção natural em um mundo
para fabricar-se, com os fragmentos deste mundo, um am-
biente factício conforme à intenção total de seu ser.
Mas, se a alucinação não é sensorial, ela é muito menos
ainda um juízo, ela não é dada ao sujeito como uma constru-
ção, não toma lugar no "mundo geográfico", quer dizer, no
ser que nós conhecemos e do qual julgamos, no tecido dos
fatos submetidos a leis, mas na "paisagem" 83 individual pela
qual o mundo nos toca e pela qual estamos em comunicação
vital com ele. Uma doente diz que alguém no mercado a
olhou, ela sentiu esse olhar sobre si como um golpe, sem po-
der dizer de onde ele vinha. Ela não quer dizer que, no espa-
ço visível para todos, uma pessoa de carne e osso estava ali
e voltou os olhos em direção a ela — e é por isso que os argu-
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mentos que podemos opor-lhe não a atingem. Não se trata,


para ela, daquilo que se passa no mundo objetivo, mas da-
quilo que ela encontra, daquilo que a toca ou a afeta. O ali-
mento que o alucinado rejeita só está envenenado para ele,
mas irrecusavelmente o está. A alucinação não é uma per-
cepção, mas ela vale como realidade, só ela conta para o aluci-
nado. O mundo percebido perdeu sua força expressiva84, e
o sistema alucinatório a usurpou. Embora a alucinação não
seja uma percepção, há uma impostura alucinatória e é isso
que não compreenderemos nunca se fizermos da alucinação
uma operação intelectual. É preciso que a alucinação, por
mais diferente que ela seja de uma percepção, possa suplantá-
la e existir para o doente mais do que suas próprias percep-
ções. Isso só é possível se alucinação e percepção são modali-
dades de uma única função primordial pela qual dispomos
em torno de nós um ambiente de uma estrutura definida, pe-
la qual nós nos situamos ora em pleno mundo, ora à margem
do mundo. A existência do doente está descentrada, ela não
se consuma mais no comércio com um mundo áspero, resis-
tente e indócil que nos ignora, ela se esgota na constituição
solitária de um ambiente fictício. Mas essa ficção só pode valer
como realidade porque no sujeito normal a própria realidade é alcança-
da em uma operação análoga. Enquanto tem campos sensoriais
e um corpo, o normal também traz esta ferida aberta por on-
de pode introduzir-se a ilusão; sua representação do mundo
é vulnerável. Se cremos naquilo que vemos, é antes de qual-
quer verificação, e o erro das teorias clássicas da percepção
é introduzir, na própria percepção, operações intelectuais e
uma crítica dos testemunhos sensoriais aos quais só recorre-
mos quando a percepção direta encalha na ambigüidade. No
normal, sem nenhuma verificação expressa, a experiência pri-
vada liga-se a si mesma e às experiências alheias, a paisagem
abre-se a um mundo geográfico, ela tende para a plenitude
absoluta. O normal não desfruta a subjetividade, ele se es-
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quiva dela, ele deveras está no mundo, tem um poder franco


e ingênuo sobre o tempo, enquanto o alucinado se beneficia
do ser no mundo para talhar-se um ambiente privado no mun-
do comum e tropeça sempre na transcendência do tempo.
Abaixo dos atos expressos pelos quais ponho diante de mim
um objeto com sua distância, em u m a relação definida com
os outros objetos e provido de caracteres definidos que se po-
dem observar, abaixo das percepções propriamente ditas, exis- ^
te portanto, para subtendê-las, u m a função mais profunda 3
sem a qual aos objetos percebidos faltaria o índice de realida- ' §
de, como falta no esquizofrênico, e pela qual os objetos pas- g â
sam a contar ou a valer para nós. Ela é o movimento que ^^ ^
nos leva para além da subjetividade, que nos instala no mundo 3 '
antes de toda ciência e de toda verificação, por u m a espécie §' ^
de " f é " ou de "opinião originária" 8 5 — ou que, ao contra- ° £"
rio, se afunda em nossas aparências privadas. Neste domínio o ?j
da opinião originária, a ilusão alucinatória é possível, embo- "§ o
ra a alucinação nunca seja u m a percepção e o m u n d o verda- ' ~
deiro seja sempre suspeitado pelo doente no momento em que jí.
este se desvia dele, porque ainda estamos no ser antepredica-
tivo e porque a conexão entre a aparência e a experiência
total é apenas implícita e presuntiva, mesmo no caso da per-
cepção verdadeira. A criança debita ao mundo seus sonhos
assim como suas percepções, ela acredita que o sonho se pas-
sa no quarto, ao pé de sua cama, e simplesmente só é visível
para aqueles que dormem 8 6 . O mundo é ainda o lugar vago
de todas as experiências. Ele acolhe misturados os objetos ver-
dadeiros e os fantasmas individuais e instantâneos, porque
ele é um indivíduo que envolve tudo e não um conjunto de
objetos ligados por relações de causalidade. Ter alucinações
e, em geral, imaginar é aproveitar essa tolerância do mundo
antepredicativo e nossa vizinhança vertiginosa com todo ser
na experiência sincrética.
460 FENOMENOLOGIA DA PERCEPÇÃO

Portanto, só se consegue dar conta da impostura aluci-


natória retirando da percepção a certeza apodítica, e da cons-
ciência perceptiva a plena posse de si. A existência do perce-
bido nunca é necessária, já que a percepção presume uma
explicitação que iria ao infinito e que, aliás, não poderia ga-
nhar de um lado sem perder do outro e sem se expor ao risco
do tempo. Mas não se deve concluir disso que o percebido
é apenas possível ou provável e, por exemplo, que ele se re-
duz a uma possibilidade permanente de percepção. Possibi-
lidade e probabilidade supõem a experiência prévia do erro
e correspondem à situação da dúvida. O percebido é e per-
manece, a despeito de toda educação crítica, aquém da dúvi-
da e da demonstração. O sol "nasce" tanto para o cientista
como para o ignorante, e nossas representações científicas do
sistema solar permanecem da ordem do dizem que, assim co-
mo as paisagens lunares, nas quais nós nunca acreditamos
no sentido em que acreditamos no nascer do sol. O nascer
do sol e, em geral, o percebido é real, de um só golpe nós
o debitamos ao mundo. Se cada percepção sempre pode ser
"barrada" e passar para o rol das ilusões, ela só desaparece
para dar lugar a uma outra percepção que a corrige. Cada
coisa pode depois parecer incerta, mas pelo menos para nós
é certo que existem coisas, quer dizer, um mundo. Perguntar-
se se o mundo é real é não entender o que se diz, já que o
mundo é justamente não uma soma de coisas que sempre se
poderia colocar em dúvida, mas o reservatório inesgotável de
onde as coisas são tiradas. O percebido tomado por inteiro,
com o horizonte mundial que anuncia ao mesmo tempo sua disjun-
ção possível e sua substituição eventual por uma outra percepção, ab-
solutamente não nos engana. Não poderia haver erro ali on-
de ainda não há verdade, mas realidade, onde ainda não há
necessidade, mas facticidade. Correlativamente, precisamos
recusar à consciência perceptiva a plena posse de si e a ima-
nência que excluiria toda ilusão. Se as alucinações devem po-
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der ser possíveis, é preciso que em algum momento a cons-


ciência deixe de saber aquilo que faz, sem o que ela teria cons-
ciência de constituir uma ilusão, não aderiria a esta, então
não haveria mais ilusão — e justamente, como o dissemos,
se a coisa ilusória e a coisa verdadeira não têm a mesma es-
trutura, para que o doente aceite a ilusão é preciso que ele
esqueça ou recalque o mundo verdadeiro, que deixe de referir-
se a este e que pelo menos ele tenha o poder de retornar à
indistinção primitiva do verdadeiro e do falso. Todavia, nós
não cortamos a consciência de si mesma, o que proibiria to-
do progresso do saber para além da opinião originária e, em
particular, o reconhecimento filosófico da opinião originária
como fundamento de todo o saber. E preciso apenas que a
coincidência de mim comigo, tal como se realiza no cogito,
nunca seja uma coincidência real, e seja somente uma coin-
cidência intencional e presuntiva. De fato, entre mim mes-
mo que acabo de pensar isto e eu que penso que o pensei,
já se interpõe uma espessura de duração e sempre posso du-
vidar de que este pensamento já passado era exatamente tal
como eu o vejo presentemente. Por outro lado, como não te-
nho outro testemunho sobre meu passado senão estes teste-
munhos presentes, e como todavia tenho a idéia de um pas-
sado, não tenho razão em opor o irrefletido, como um incog-
noscível, à reflexão que faço incidir nele. Mas minha con-
fiança na reflexão significa finalmente assumir o fato da tem-
poralidade e o fato do mundo enquanto quadro invariável de
toda ilusão e de toda desilusão: só me conheço em minha ine-
rência ao tempo e ao mundo, quer dizer, na ambigüidade.

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