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CONCEITOS FUNDAMENTAIS – O INCONSCIENTE


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CONCEITOS FUNDAMENTAIS – O INCONSCIENTE

DÚVIDAS E ORIENTAÇÕES
Segunda a Sexta das 09:00 as 18:00

ATENDIMENTO AO ALUNO
editorafamart@famart.edu.br
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Sumário

As Formações do Inconsciente ................................................................................... 4


Transferência e Histeria ............................................................................................ 12
O caso Dora .............................................................................................................. 17
Afinal, o que é a transferência? ................................................................................. 21
E o que é a contratransferência? ............................................................................... 25
Lacan retoma o caso Dora ........................................................................................ 32
Lacan e o desejo do analista ..................................................................................... 33
Teoria dos quatro discursos ...................................................................................... 38
REFERÊNCIAS ......................................................................................................... 46
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As Formações do Inconsciente

O método usado por Freud que, aliás, corresponde à única regra imposta,
sem a qual não se caracteriza a psicanálise, é chamado de associação livre. É
considerada a única regra, porque, uma vez estabelecida, tudo o mais pode decorrer
dentro do previsto. Consiste na orientação inicial que o psicanalista faz ao paciente:
“diga tudo o que lhe vier à cabeça, sem selecionar nada, sem considerar que
qualquer coisa seja mais importante que outra, sem se preocupar de achar que está
dizendo bobagem”. Quando Freud pedia para se dizer qualquer coisa, sabia que não
era o mesmo que pedir para dizer uma coisa qualquer. Isto é, nossa linguagem não
é aleatória, nosso discurso obedece a uma lógica, não só gramatical, não só
consciente, mas, sobretudo, a uma lógica do inconsciente.
Qual é a lógica do inconsciente? O inconsciente surgiu do fato de
recalcarmos, de querermos esquecer ou deletar determinadas lembranças que são
consideradas desagradáveis, perigosas ou assustadoras, e que são enviadas para o
exílio, para que não nos perturbem mais. Acontece que, da mesma maneira que um
exilado político sonha sempre em voltar para sua pátria de origem, e ele foi exilado
justamente por ter ideias consideradas subversivas, assim acontece no chamado
retorno do recalcado. O inconsciente sabe que, por mais perigosas que sejam as
ideias excluídas, elas precisam ser elaboradas para não continuarem ameaçando o
sujeito. Por isso, o inconsciente cuida de aproveitar qualquer chance possível, para
trazer de volta o recalcado à sua pátria, à consciência, mesmo contrariando a
vontade do sujeito.
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A associação livre, livre de censura, tira as defesas do sujeito, que pensa


estar dizendo coisas sem importância, quando se surpreende dizendo mais do
queria dizer. É quando aparecem os atos falhos, as trocas de palavras, numa
manifestação clara de que algo “estranho” apareceu. Estranho a quê? À lógica da
consciência. Portanto, a sequência do discurso, numa associação livre, nunca é
inconsequente. Pode até ser caótica, o que já é um bom sinal. É que existe uma
determinação psíquica, fazendo com que as palavras não surjam por acaso, por
mais que tomemos o cuidado de só dizer aquilo que, de fato, pensamos e queremos
dizer.
A associação livre, proposta pela psicanálise, nada tem a ver com o teste de
associação de palavras, proposto pelo grande e dissidente discípulo de Freud, Carl
Gustav Jung. O método de Jung consistia em apresentar ao paciente uma lista de
palavras pré-selecionadas, a cada uma das quais ele deveria associar a primeira
palavra que lhe ocorresse à cabeça. O objetivo era detectar determinados complexos
psicológicos. Mas o paciente não tinha a liberdade de escolheras palavras-estímulo.
As intervenções do analista são chamadas de interpretação, não são
respostas diretas às perguntas eventualmente feitas, não são soluções a problemas
propostos, mas são intervenções no sentido de levar o paciente a pesquisar qual o
desejo implícito naquela pergunta ou naquele dizer. Inclusive são questionamentos
sobre o porquê de determinado assunto tervindo depois ou por causa de um outro.
O analista freudiano não orienta em nada sobre o que o paciente deve falar.
Só orienta que ele deva falar, não o quê. Suas intervenções sempre se baseiam
naquilo que já foi dito pelo paciente.
Ah! E para quê o divã? O divã não é uma regra tão fundamental como a
associação livre, porque o inconsciente não funciona só numa determinada posição.
Até porque no inconsciente não há noção de espaço nem de tempo. Mas os
analistas insistem em convidar ou, pelo menos, recomendar insistentemente seu uso
pelos pacientes, para facilitar a associação livre. Olhar, cara a cara, o interlocutor,
implica num controle das reações corporais e faciais, interferindo no que se vai dizer.
Cortar a relação especular e imaginária é fundamental para que se concentre, de
ambas as partes, no conteúdo simbólico da fala.
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O que acontece depois que a pessoa se deita no divã? Vencida a hesitação


ou estranheza daqueles que têm medo do divã, porque ele se parece com uma
cama (fantasias sexuais), ou com seu anagrama, a maca (lembrando As
intervenções do analista são chamadas de interpretação, não são respostas diretas
às perguntas eventualmente feitas, não são soluções a problemas propostos, mas
são intervenções no sentido de levar o paciente a pesquisar qual o desejo implícito
naquela pergunta ou naquele dizer. Inclusive são questionamentos sobre o porquê
de determinado assunto ter vindo depois ou por causa de um outro. o doente de
hospital), a sensação é de isolamento, de se estar falando sozinho, de falar para as
paredes, de não se estar acostumado a falar sem olhar nos olhos. Mas a proposta é
mesmo de o sujeito falar principalmente consigo mesmo, embora diante de uma
testemunha, o que é mais inusitado ainda.
Freud não tinha a menor ideia daquilo que o paciente iria dizer. Como não
temos, até hoje. E isto é muito bonito, nesta experiência. O uso do divã, além de
deixar a pessoa fisicamente relaxada, o que não é em si tão importante e, ás vezes,
não tão fácil, contudo propicia ao sujeito uma experiência inédita em sua vida. Ele
nunca fez nem fará nada igual. Poder falar sobre qualquer coisa, sem ser
interrompido nem censurado pelo que diz, sabendo que nada do que vai dizer sairá
do recinto daquelas quatro paredes, é uma liberdade que não tem preço.
E ainda que comecem a aparecer assuntos difíceis, desagradáveis,
vergonhosos, ameaçadores, sofridos, a sensação de que estamos dizendo coisas que
nunca falamos com ninguém, nem com os pais, irmãos, parentes, melhores amigos,
parceiros, é inédito e muito gratificante. Grandes descobertas sobre nós mesmos,
das quais nem nós mesmos suspeitávamos. Uma das grandes características das
pessoas analisadas é que, se não fosse a análise, passariam a vida inteira e
morreriam sem nunca terem chance de dizer um monte de coisas.
Tudo foi surpresa também para Freud. Mas, perspicaz e atento como ele era,
mesmo sem ter determinado o que as pessoas deveriam dizer, foi percebendo que,
espontaneamente, começaram a aparecer relatos de sonhos, descrição de sintomas,
atos falhos, chistes, queixas, lamentos, culpas, decepções, medos, desesperos,
fantasias de todos os tipos, mas também esperanças, alegrias, gratificações,
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momentos felizes e prazerosos. Nada é privilegiado na fala do paciente. Tudo é


igualmente importante. Quer dizer, o desejo rola solto.
A partir de sua escuta atenta, como sempre fez, é que o mestre começava a
costurar suas teorias e formatar seus casos clínicos. E logo de início reuniu
abundante material para escrever três livros importantes, entre outros, considerados
o tripé inicial de suas formulações sobre as formações do inconsciente: A
interpretação dos sonhos (1900), A psicopatologia da vida cotidiana (1901) e Os
chistes e sua relação com o inconsciente (1905).

Considerado por Freud como sua obra-prima mais importante, o livro sobre os
sonhos, embora terminado em 1899, só foi publicado em 1900, para comemorar a
passagem do século. À euforia, seguiu-se a depressão. O livro não vendia. Nos seis
primeiros anos, só foram vendidos 351 exemplares. Foi preciso algum tempo para
que o livro fosse considerado um dos grandes clássicos da literatura científica.
Por que Freud se tornou o referencial praticamente único, quando se trata de
interpretar sonhos? É que criou uma teoria totalmente nova, desativando tudo o que
se tinha dito antes, e uma teoria que é comprovada por milhares de analistas e
milhões de pacientes pelo mundo afora.
Cabeçalho do livro sobre A interpretação de sonhos: “Se não posso dobrar os
Poderes Supremos, moverei as Regiões Infernais”, citandoa Eneida, de Virgílio.
O princípio, como em toda grande descoberta, é extremamente simples. Não
há dicionário de sonhos, não há chaves de interpretação pré-fabricadas que se
aplicam a muitas pessoas, não há interpretações simbólicas como a dos sonhos do
Faraó do Egito (as vacas magras e as vacas gordas), narrados na Bíblia.
Considerados a “via régia” para o inconsciente, o fórum privilegiado onde tentamos,
alucinatoriamente, realizar nossos desejos inconfessos ou frustrados, os sonhos
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contêm material precioso numa análise. Se na associação livre, como vimos, as


defesas estão diminuídas, mais ainda acontece no sonho, quando nem acordados
estamos. Neste momento, o material exilado no inconsciente aproveita a ausência
dos vigias e retorna à cena. Mas retorna de maneira disfarçada, camuflada, para não
nos assustar muito.
Por isso os sonhos são confusos ou aparentemente sem sentido. Nesta
operação, o inconsciente transforma aquelas ideias inaceitáveis em imagens visuais
caóticas, difíceis, mas não impossíveis de entender, porque ficam pistas para
descobrirmos o significado.
Para a psicanálise, cada sonho é único e personalizado, e sua interpretação é
feita exclusivamente pelo próprio sonhador, que recebe do analista o incentivo e
ajuda para fazer associações. A interpretação de um sonho para uma pessoa não
serve para outra,mesmo na hipótese de que os dois sonhos fossem idênticos.
Ao relatar um sonho, contamos o chamado conteúdo manifesto, consciente,
que esconde um outro conteúdo, latente, inconsciente. É este que a análise revela.
Usando de condensações metafóricas e de deslocamentos metonímicos, ficamos
atordoados. Na condensação, várias imagens de diferentes lugares ou pessoas se
fundem numa só imagem, enquanto que, no deslocamento, uma característica de
um lugar ou pessoa migra para outro lugar ou pessoa.
Sem falar no fato de que, para despistar ainda mais, cometemos, muitas
vezes, o ato falho de esquecer o conteúdo do sonho, ou de pensar que não
sonhamos naquela noite.
Freud insistia em que todos sonhamos, várias vezes, numa mesma noite.
Sendo que alguns sonhos são recorrentes, incômodos, em geral. Aconselhava os
pacientes a anotarem seus sonhos logo que acordassem, para comentá-los na
sessão.
Recentemente, foram feitos estudos detalhados sobre a fisiologia do sonhar,
determinando, através de eletrodos que detectam as ondas cerebrais, o momento
exato em que uma pessoa começa e termina um sonho, a quantidade e duração dos
sonhos, os efeitos no organismo quando se impede que a pessoa sonhe, acordando-
a, por exemplo, pouco antes que as ondas cerebrais anunciam que vai começar o
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sonho.

Nada disto interessa à psicanálise. A esta interessa só uma coisa que


nenhuma aparelhagem, por mais sofisticada que seja, consegue registrar: o que
significa aquele sonho e qual foi o desejoque levou o sujeito a sonhar aquilo.
Para Freud, o sonho tem a função de proteger nosso sono, para evitar que
lembranças muito ansiosas nos acordem pela madrugada, como acontece nos
pesadelos, em que a angústia extrapola. Neste caso, nossas defesas deixaram
escapulir o que era para ser filtrado e deformado. Não estamos conscientes ao
dormir, mas estamos préconscientes,consentimos em sonhar sempre que dormimos,
já que não podemos evitar o sonhar. Para entendermos nossos sonhos, temos de
fazer a operação inversa: transformar as imagens visuais do sonho em ideias,
aquelas mesmas ideias que tentamos afastar. É o chamado retorno do recalcado.
Quanto à segunda formação do inconsciente, o ato falho, a troca de nomes, o
esquecimento de nomes, eles são tão eloquentes que, muitas vezes, ninguém
precisa ser psicanalista para percebê-los e entender o seu significado. Quando o
namorado troca o nome da namorada, ela entende imediatamente o que está
acontecendo na relação. E não perdoa. E tem razão.
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Foi isto que Freud designou como sendo a psicopatologia presente nos atos
de nossa vida cotidiana, alterando a antiga explicação de que os esquecimentos ou
trocas de nomes eram simples resultado de distração ou cansaço mental, não
havendo motivo para levá-los em consideração. Pelo contrário, o ato só é falho na
perspectiva da consciência, sendo, do ponto de vista do inconsciente, um ato muito
bem sucedido. Queríamos falar uma coisa, falamos outra, ficamos vermelhos de
vergonha, mas nosso inconsciente nos flagrou dizendo a verdade. O ato falho é
sempre involuntário. Se alguém o produz deliberadamente, deixa de ser ato falho.
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Por fim, o chiste. Também chamado, nem sempre corretamente, de dito


espirituoso ou gracioso, facécia, piada, pilhéria, gracejo, trocadilho, jogo de palavras,
anagramas, Lacan o chama de ato falho bem sucedido. Para a psicanálise, o sentido
do chiste é específico, não se confundindo com gracejo, nem com piada. É algo que
se diz sem pensar, não-intencional, e que pega de surpresa o próprio autor, que
também acha graça no que disse, bem como as demais pessoas, e não costuma ser
ofensivo.

O trocadilho de Jesus Cristo


Segundo Luís Fernando Veríssimo, articulista da Folha de S. Paulo, o
primeiro trocadilho registrado pela História foi a famosa frase de Jesus Cristo: Tu és
Pedro, e sobre esta pedra... Em latim: Tu es Petrus et super hanc petram... Em
grego: Sú eí Pétros, kai epí táute te pétra...
O chiste supõe um refinamento intelectual e uma graça que, em geral, não
incomoda a quem fala e nem a quem ouve, pelo contrário, é agradável. Já a piada,
por exemplo, é algo pensado eintencional, e nem sempre agrada. De qualquer
modo, o sorriso produzido pelo chiste é fruto do inconsciente, que favoreceu dizer
algo (recalcado), que não é comum de se dizer, como se o autor que o produziu
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fosse um outro sujeito que, naquele momento, estava fora de si.

Podemos dizer que essa trilogia de livros de Freud forma um grande chiste,
que ele não teve intenção de dizer, mas que para o mundo se torna claro: Freud foi aí
um linguista, sem querer. Esem saber.
A palavra, a linguagem, o discurso, estão sempre presentes em todas as
formações do inconsciente citadas acima. Isto porque, para Freud, o recalque não
se faz sobre os afetos ou emoções, mas sim sobre as ideias, as palavras. Daí
que o método psicanalítico, buscando recuperar aquelas ideias “adoecidas”, se
concentra na chamada cura pela palavra.

Transferência e Histeria
Um dos temas mais apaixonantes da psicanálise é a transferência. Ela está no
cerne da atividade clínica, é a mola do tratamento, a garantia do sucesso e eficácia
de todo o trabalho analítico. E é extremamente delicada, difícil de ser conduzida, e
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sujeita a todo tipo de incidentes ou acidentes comprometedores. Enfim, um grande


desafio, a exigir o máximo da habilidade e da ética do analista.
Para início de raciocínio, vale a seguinte afirmação de Freud, na
autobiografia: Não se deve supor que a transferência seja criada pela análise e não
ocorra independente dela. [...] Ela é umfenômeno universal na mente humana, decide
o êxito de toda influência médica, e de fato domina o todo das relações de cada
pessoa com seu ambiente humano.
O fenômeno transferencial é, então, anterior à descoberta da psicanálise e, na
psicanálise, é inseparável da cura das neuroses, em geral, mais especialmente na
histeria. Como vimos, foi neste momento que a transferência irrompeu com muita
intensidade, deixando Breuer atordoadoe Freud perplexo. A transferência possibilitou
também definir os critérios da interpretação, cuja eficácia lhe é inerente, por provocar
a abertura do inconsciente.
Sendo um fenômeno humano, vamos encontrá-lo em todos os registros da
história universal. A partir da existência da medicina, levantou-se a discussão
específica da relação médico-paciente, justamente porque se constatou a existência
de uma variável, a confiança no médico, que extrapola o efeito do medicamento,
através de uma sugestão quase hipnótica, podendo anulá-loou potencializá-lo.
Por que surge a transferência na relação médico-paciente? Simplesmente
porque o médico, em seus procedimentos profissionais, ausculta, apalpa, toca,
orienta, receita (ou re-aceita), em suma cuida (cura) a pessoa. Mesmo que o médico
prescreva um simples placebo, como resposta ao pedido que lhe foi direcionado, o
efeito pode ser desproporcional e surpreendente. Ora, tudo isto são cuidados
maternos. Se, no imaginário do doente, o médico substitui a mãe, é de se esperar
que o paciente transfira para ele os mesmos sentimentos de afeto e gratidão que
sempre teve para com ela. É o que vai ocorrer também na análise.
Na mitologia, os primeiros indícios de medicina encontram-se na história de
Dioniso, divindade grega, chamada de Baco pelos romanos, o Deus do vinho e da
fertilidade, que portava um bastão. Ao declarar que o vinho era um remédio para
todos os males, Dioniso foi seguido e admirado por um cortejo dos sátiros, dos
silenos e das bacantes.
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Outra representação mitológica da figura do médico e do analista, são os


oráculos e as sibilas. Intermediários entre os deuses e os humanos, eram
consultados sempre que a doença, a peste, a fome ou outra desgraça se abatiam
sobre o povo. Foi o caso de Tirésias. Como as mensagens dos oráculos eram
enigmáticas e inacessíveis à compreensão das pessoas, era preciso recorrer aos
sacerdotes e sacerdotisas para fazer as interpretações. Mas estes não podiam ser
vistos, devendo os devotos contentar-se em escutar a sua voz. Os oráculos eram
procurados também para esclarecer as questões essenciais do ser humano: a
origem, o futuro e o destino das pessoas, como na história de Édipo. Em uma
palavra, a questão central era um saber sobre a morte.
Na cidade grega de Epidauro, ficou famoso o templo em que Asclépio
(Esculápio), o deus da saúde, curava os doentes. Estes passavam a noite no templo,
onde dormiam e eram induzidos pelos deuses a sonhar, recebendo, nos sonhos,
instruções de como se livrar, por exemplo, das doenças e das pestes que assolavam
a cidade.

O deus grego Hermes, Mercúrio para os romanos, era o mensageiro do


Olimpo. É representado segurando o caduceu, ao redor do qual estão enroladas
duas serpentes. Tirésias também teve que se haver com as serpentes que mudaram
sua vida. A serpente aparece também na Bíblia, produzindo efeitos especiais
sedutores para Adão e Eva. No matriarcado, a Grande Deusa, ou grande Mãe, era
representada também pelo símbolo da serpente. Hoje, o caduceu e as duas
serpentes são o símbolo da medicina. Afinal, a serpente traz em si tanto o veneno
quanto seu antídoto, portadora também de um poder que hipnotiza.
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Com a decadência da civilização grega, os deuses sumiram do Olimpo, sendo


substituídos pelos poetas, filósofos, escritores trágicos. O teatro foi o grande hospital
público para a purificação, ou catarse. O grego, Hipócrates (460-377 a.C.),
considerado o pai da medicina, foi o maior médico da Antiguidade. Para ele, a cura
deveria centrar-se mais no enfermo do que na enfermidade. Sua ética aparece no
juramento que os novos médicos ainda fazem no dia da formatura.
O filósofo Platão (427-347 a.C.) dedicou seus estudos também aos fármacos.
Outro médico grego, Asclepíades (124-40 a.C.), ensinava que a própria natureza se
encarregaria da cura das doenças. Sobressaiu pela simpatia para com os pacientes.
O grego Galeno (131-201), que morou em Roma, desenvolveu as cirurgias, por
causa do grande número de feridos nas guerras. E classificava os humanos segundo
os tipos humorais: colérico, bilioso, fleumático e melancólico. Prenúncios da
psicologia?
Na Idade Média, houve um retrocesso na medicina. Mais ou menos como no
politeísmo, quando os deuses governavam a vida das pessoas, o Cristianismo
pregava que a doença era um castigo de Deus, em punição ao pecado, ou uma prova
da fé, ou era resultado de feitiçaria e possessãodo demônio. O médico foi descartado
e substituído pelos sacerdotes, que impunham como terapia a oração, a penitência,
as indulgências e a invocação dos santos. Algumas mulheres, que detinham o
conhecimento das ervas medicinais caseiras, foram acusadas de desobediência, de
insolência, e foram condenadas.
Com o surgimento das grandes cidades, e devido à ausência de hábitos
pessoais e coletivos de higiene, surgiram várias pestes, como a Peste Negra, que
devastou quase a metade da população europeia do século XIV. Na charmosa
cidade de Paris, sem banheiro nas casas, as pessoas despejavam o conteúdo de
“secos e molhados” dos urinóis do alto dos prédios, sobre a cabeça dos transeuntes,
esperando que uma enchente providencial do Sena viesse fazer a limpeza das ruas.
Por que será que os franceses se especializaram em fabricar perfumes? Em função
disto, os governos passaram a cuidar da saúde pública, resgatando hábitos da velha
tradição grega.
No século XVI, a Renascença estabeleceu uma nova ordem, centrada no
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homem individual. Com o humanismo, o conhecimento substituiu a fé e a escolástica


medieval. O suíço-alemão Paracelso (1493-1541), destacou-se ao fundamentar a
arte de curar na Filosofia, na Astronomia, na Alquimia e na Virtude, ou amor. Foi o
inspirador da Homeopatia, desenvolvida pelo médico alemão Samuel Hahnemann
(1755-1843). E assim, resumidamente, nos aproximamos de Freud.
Depois que Freud se afastou de Breuer, empreendendo carreira solo, e
utilizando a nova técnica da associação livre, a clínica psicanalítica foi enriquecida
com cinco casos clássicos, dos quais só os três primeiros foram de fato atendidos
por Freud: o caso Dora (Ida Bauer), o Homem dos Ratos (Ernst Lanzer) e o Homem
dos Lobos (Serguei Pankejeff). Com o Pequeno Hans (Herbert Graf), foi mais uma
orientação com o pai do menino e, no caso do Presidente Schreber (Daniel Paul
Schreber), Freud fez um estudo em cima da autobiografia publicada por aquele.
Com Dora, novamente nos defrontamos com a questão da histeria e da
transferência. Não é mais o Freud dos sete primeiros casos de histeria, mas também
ainda não é o experiente analista do Homem dos Ratos e do Homem dos Lobos. Nos
oito primeiros casos, incluindo Breuer, o procedimento usado foi chamado, pelo
próprio Freud, de Psicoterapia da Histeria, título dado àparte final daqueles estudos.
E já no primeiro caso do segundo bloco, com Dora, o título é: Fragmento da análise
de um caso de histeria.
Aqui se deu a passagem da psicoterapia para a psicanálise. E qual é a
diferença entre as duas? Para explicar, Freud recorre à analogia com a pintura e a
escultura. A psicoterapia se assemelha à pintura, per via di porre (pela via do
colocar), porque a pintura parte de uma tela em branco, onde o pintor vai lançando as
tintas segundo seu capricho. A psicanálise opera como a escultura, per via di levare
(pela via do tirar), porque o escultor faz emergir, de um bloco amorfo de mármore, uma
obra de arte que se escondia lá dentro.
Na psicoterapia, a mudança vem de fora para dentro (conselhos, ajuda,
direção, soluções, ou o ombro amigo do terapeuta). Na psicanálise, a mudança vem
de dentro para fora, pela investigação que o próprio paciente faz de seus sonhos e
desejos inconscientes. O que propiciou este salto foi a teorização sobre a
Interpretação dos sonhos, ocorrida no intervalo entre Anna O.e Dora. Na psicoterapia
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não há lugar para a interpretação freudiana dos sonhos. Já na psicanálise, ela é um


dos pilares, talvez seu ponto culminante.

O caso Dora

Seu verdadeiro nome era Ida Bauer (1882-1945). Este, sim, foi o primeiro
grande tratamento psicanalítico propriamente dito, realizado por Freud, em 1901,
publicado em 1905. O título de Fragmentos da análise de um caso de histeria
predominou sobre a intenção de intitulá-lo como Sonhos e histeria. O grande
diferencial deste caso, sobre os anteriores, é que, pela primeira vez, Freud baseou
sua análise em dois importantes sonhos de Dora, trabalhados agora já com a técnica
da associação livre.
O tratamento durou só três meses, por motivos que veremos abaixo. No início,
Dora apresentava diversos distúrbios nervosos: enxaqueca, tosse convulsiva, afonia,
depressão,tendências suicidas. E acabara de sofrer uma grande afronta psicológica.
A grande repercussão do caso evidenciou-se pelos comentários, polêmicas,
artigos, livros, um romance, uma peça teatral e estudos sobre o feminismo. Freud
encontrou dificuldades pessoais neste atendimento, mas nunca fez segredo disso,
tentando aprender com os erros. Houve também oposições externas daqueles que
acusavam a psicanálise de perverter as mulheres, levando-as a confessarem
sujeiras sexuais induzidas pelo analista. Não se parece com a acusação feita ao
filósofo Sócrates, de corromper a juventude?
Dora era a filha caçula, uma mocinha virgem, de 18 anos, judia, nascida em
Viena, de uma rica família burguesa. Sua história tem de tudo: drama, comédia e
romance picante. Um quinteto depersonagens são os atores do drama:
DORA, que herdou da mãe as dores abdominais, não recebia a menor
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atenção nem carinho, fazia-lhe duras críticas e fugia a qualquer influência dela. Mas
Dora gostava muito da governanta que cuidava dela. Diferente da mãe, a governanta
era uma mulher moderna e arejada, que ensinou a Dora os segredos da vida sexual,
lendo para ela livros que guardava escondidos.
O PAI DE DORA (Philipp Bauer) era um industrial admirado pela filha e,
segundo Freud, um homem ativo e talentoso. Quando adoeceu de tuberculose,
mudou-se com a família para tratamento.
A MÃE DE DORA (Katharina Bauer) era uma dona de casa pouco instruída,
simplória, que sofria de dores abdominais permanentes. Sem interesse pelos filhos,
sem amor pelo marido, pelo menos após a doença deste, passava o dia limpando a
casa obsessivamente, com sinais de “psicose doméstica”, segundo Freud.
O SR. K. (Hans Zellenka) era um negociante mediano, que conheceu o pai de
Dora na cidade onde este fora se tratar, e ficaram amigos.
A SRA. K. (Giuseppina ou Peppina) era uma bela italiana que sofria de
distúrbios histéricos e frequentava os sanatórios. Confidenciava com Dora, e
ofereceu-lhe o famoso livro A fisiologia doamor, de Paolo Mantegazza. Este autor era
um sexólogo darwinista, especialista nas grandes práticas sexuais humanas:
lesbianismo, onanismo, masturbação, inversão, felação etc.

O enredo desta trama é assim resumido por Elisabeth Roudinesco:


“Philipp é um marido fraco e hipócrita, que engana sua mulher Katharina, uma
dona de casa ignorante, com Giuseppina, a esposa de Hans, seu amigo, conhecida
numa temporada de férias em Merano. A princípio enciumado, depois indiferente, o
marido enganado tenta, de início, seduzir a governanta de seus filhos.
Depois, apaixona-se por Dora, a filha de seu rival, corteja-a e tenta agarrá-la,
durante uma temporada em sua casa de campo, situada às margens do lago de
Garda. Horrorizada, Dora o rejeita, pespegalhe uma bofetada, e conta a cena para
sua mãe, para que ela fale do assunto com seu pai. Este interroga o marido da
amante, que nega categoricamente os fatos pelos quais é recriminado. Preocupado
em proteger seu romance extraconjugal, o pai culpado faz com que a filha passe por
mentirosa, e a encaminha para tratamento com um médico (Freud) que, alguns anos
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antes, prescrevera-lhe um excelente tratamento contra a sífilis”.


Na cena do lago, descrita acima, O Sr. K. beijou Dora na boca. Foi a primeira
vez que alguém tocou aquela mocinha, com catorze anos na época. Apesar da
repugnância e da fuga, Dora continuou a se encontrar com ele, tendo os dois
mantido o segredo por algum tempo.
Quando Philipp leva sua filha para tratamento com o doutor, esperava que
este se tornasse seu cúmplice, concordasse com ele e se dispusesse a corrigir as
supostas “fantasias sexuais” da moça. Isto é, um “negócio” entre homens, para
coonestar a infidelidade. Mas, como a psicanálise não se propõe a domesticar
ninguém, Freud seguiu o caminho oposto, e foi buscar, nas profundezas subjetivas
do inconsciente de Dora, as raízes de tanta desordem e sofrimento.
A análise girou em torno de dois principais sonhos. No primeiro, um sonho
recorrente, “a casa estava em chamas, e o pai de Dora, ao lado de sua cama, a
acordou. A mãe estava preocupada em salvar sua caixa de joias. Todos saíram
correndo de casa”. Nas associações, o sonho é referido à cena do lago, e o fugir da
casa em chamas foi interpretado como defender a virgindade de Dora (caixa de joias),
ameaçada. Dora acrescenta: o Sr. K. me presenteara com uma custosacaixa de joias.
E Freud comenta que a palavra alemã para caixa de joias, Schmuckkästchen,
também designa os genitais femininos. No último parágrafo do caso, Freud diz que
este sonho representara, para Dora, a fuga do homem que amava para o pai, e “sair
correndo” era um prenúncio do abandono do tratamento.
Freud intuiu, neste sonho, uma referência transferencial a ele, porque Dora
afirmou ter sentido cheiro de fumaça quando acordou, associando isso ao fato de
que seu pai e o Sr. K. eram fumantes. E o charuto de Freud?
No segundo sonho, “Dora perambula sozinha e sem rumo, numa cidade
estranha. Pergunta, várias vezes: onde é a estação? Volta para casa e encontra um
bilhete da mãe, dizendo que seu pai estava morto”. O sonho foi interpretado como
desejo de vingança contra o pai, e que Dora estava pronta para libertar-se dele. E
havia um desejo de defloração (perambular sem rumo).
Embora a cena de sedução no lago tenha sido real, Freud concluiu que havia
em Dora também uma fantasia, um desejo erótico. Só que, para o neurótico, quando
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uma fantasia encontra a chance de se realizar concretamente, a pessoa foge, como


é típico na histeria
Também neste segundo sonho, Freud usa um argumento linguístico, em nota
de rodapé, lembrando que a palavra alemã Bahnhof, além de “estação”, significa
também relações sexuais.
O caso foi interrompido prematuramente, por vários motivos. O pai de Dora,
decepcionado com o rumo que a análise tomou, desinteressou-se pelo tratamento da
filha. E, o pior, Freud se assustou com a convicção de Dora ser lésbica, por causa
de suas confidências íntimas com a Sra. K., nas quais mostrava-se muito envolvida,
descrevendo-a com detalhes, elogiando “a deslumbrante brancura de seu corpo”.
Freud tentou orientá-la a procurar um parceiro masculino, e Dora não se sentiu
devidamente bem escutada. Mas a confissão de Freud foi eloquente: Não me foi
possível dominar a transferência a tempo.
Que são transferências? São as novas edições ou fac-símiles dos impulsos e
fantasias que são criados e se tornam conscientes durante o andamento da análise.
[...] Substituem uma figura anterior pela figura do médico. (S. Freud, no caso Dora).

Terminada a análise, foi a vez de Dora vingar-se concretamente das


humilhações sofridas. Fez a Sra. K. confessar o romance com seu pai, fez o Sr.K.
admitir a cena do lago, em que ela o esbofeteou, e fez seu pai admitir toda a
verdade.Posteriormente, Dora veio a se casar e teve um filho.
Em 1923, mais de vinte anos depois, Dora consultou o psicanalista Felix
Deutsch (1884-1964), queixando-se com ele do egoísmo dos homens, de suas
frustrações e de sua frigidez. Só aos poucos Felix foi percebendo que estava diante
do famoso caso Dora, publicado com o consentimento dela. Ela retomou o relato dos
sonhos que havia apresentado em sua análise com Freud. E tinha imenso orgulho por
ter sido objeto de um texto tão célebre na literatura psicanalítica.
Dora faleceu em Nova York. Depois de ter vivido com a constipação dos
intestinos, herdada de sua mãe, recebeu o diagnóstico, tardio demais, de um câncer
de cólon.
21

Afinal, o que é a transferência?


Assim como, na mitologia, encontramos nomes gregos e latinos para um
mesmo deus, assim, etimologicamente encontramos o mesmo significado para a
palavra latina ‘transferência’, e seu corresponde em grego, ‘a metáfora’, ambas
significando: transferir o afeto de uma pessoa a outra (na transferência), ou o
significado de um significante a outro significante (na metáfora).
O fenômeno universal que vemos em cada esquina, no escurinho do cinema,
ou na intimidade dos quartos, de pessoas enamoradas que trocam afetos, pode ser
chamado de transferência. Apareceu já na mitologia, com os oráculos, com as
pitonisas, sacerdotes e sacerdotisas, passando depois para os poetas, atores do
teatro, os médicos, os professores, os santos da devoção, aos quais as pessoas
recorrem, transferindo ou conferindo a eles determinado poder sobre si mesmas.
Hoje, também nas relações profissionais, sujeitas ao assédio sexual, nos
grupos humanos, nas reuniões sociais e de amigos, no cinema, na televisão e na
internet, as pessoas acreditam encontrar lenitivo, uns com os outros, para suas
dores, e ganhar a felicidade de viver. Onde nos sentimos afetados, está presente o
afeto, a transferência.

Definição de transferência analítica:


Processo constitutivo do tratamento psicanalítico, mediante o qual, os desejos
inconscientes do analisando, concernentes a objetos externos, passam a se repetir, no
âmbito da relação analítica, na pessoa do analista, colocado na posição desses
diversos objetos.
Unanimidade em todas as correntes psicanalíticas, a transferência é talvez o
maior diferencial entre a psicanálise e as psicoterapias. Estas não reconhecem nem
consideram este fenômeno, e cuidam somente de aplicar corretamente determinadas
técnicas, estratégias, ou receitas, julgadas suficientes para alcançar o objetivo. Na
psicanálise, se não há uma transferência bem estruturada, nenhum outro
procedimento será eficaz, podendo até ser nocivo.
Em 1909, Freud publica seu segundo grande caso clínico, o famoso caso do
Homem dos Ratos. Sessenta anos depois, esta história foi transformada em filme,
22

produzido pela BBC de Londres, com o título de Rat Man. O roteiro é fiel ao texto
original. Mas, o importante, neste caso, foi que Freud percebeu claramente que os
sentimentos inconscientes do paciente para com o analista eram manifestações de
uma relação recalcada com as imagos parentais. Estava aberta a porta para uma
rigorosa teoria sobre a transferência.
Foi aí que surgiu o clássico artigo de 1912, chamado A dinâmica da
transferência. Nele, Freud identificou uma transferência positiva, feita de
sentimentos amigáveis de ternura e amor, eventualmente até mesmo de paixão, que
são conscientes, e de outros sentimentos com raízes inconscientes, que costumam
ter um fundamento erótico.
Por outro lado, há uma transferência negativa, marcada por sentimentos
hostis, agressivos, ou de desconfiança, no interior da análise. As duas modalidades
podem ser simultâneas ou sucessivas. Nenhuma delas é, necessariamente, um
obstáculo para a análise, como Freud suspeitou inicialmente. Mas, a transferência
negativa pode funcionar como resistência, o mesmo acontecendo quando a
transferência positiva é carregada de elementos eróticos recalcados.

Há também a neurose de transferência, caracterizada por fragmentos da


vida sexual infantil edipiana, que antes constituíam a neurose original. Na análise,
através de repetição, a neurose original agora é substituída por esta neurose artificial,
que é a transferência dirigida ao analista, chamada neurose de transferência.
Outra conceituação bem diferente é aquela que distingue as neuroses de
transferência, em oposição às neuroses narcísicas. As neuroses de transferência
(histeria, neurose obsessiva e fobia) são assim chamadas a libido, investida em
23

objetos fantasmáticos, transfere-se facilmente para o analista, possibilitando a


análise. Nas neuroses narcísicas (psicoses), a libido reverteu-se para o eu, não se
mobilizando para os objetos, incluído o analista, não favorecendo, portanto, a
transferência analítica.
Além de inevitável, a transferência propicia momentos fecundos para uma boa
interpretação ou intervenção do analista, porque é assim que o inconsciente se abre
para deixar sair os elementos recalcados. E existe outra forma de resistência à
análise, que é a chamada ‘reação terapêutica negativa’, em que o paciente se
recusa a mudar e curar.
Entre vários outros artigos sobre a técnica psicanalítica, desta mesma época
e data, Freud publica Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, em
que assume uma atitude paternal e experiente, com relação aos jovens analistas que
se iniciam no ofício, mostrando que as reações transferenciais dos pacientes não se
dirigem à pessoa do analista, aos seus belos olhos. Portanto, não é para se
entusiasmar com as atitudes sedutoras, nem se agastar com as manifestações de
agressividade dos pacientes. Em vez de corresponder ou de reprimir tais afetos, o
analista deverá interpretar que eles visam, inconscientemente, outras pessoas, como
os pais etc. Com isto, surgem resquícios da técnica de sugestão, dos tempos da
hipnose.
O que ocorre, então, na análise é um reviver do Complexo de Édipo, em que o
analista representa simbolicamente a mãe, o pai, ou os irmãos. Com isto, o paciente
está solicitando ao analista que atualize também a operação de castração, evitando
que a relação incestuosa imaginária se instaure ali novamente. Neste particular, o
fenômeno transferencial adquire características de repetição.
Uma das curiosidades da teorização sobre a transferência aparece no artigo
intitulado Observações sobre o amor transferencial. Freud ruminou, por muito tempo,
a pergunta sobre a natureza deste amor. Trata-se de um amor verdadeiro, ou é um
falso amor? Concluiu que é um amor verdadeiro, como qualquer outro, mas, com a
pessoa errada. Por isso, estabeleceu a chamada regra da abstinência, a qual exige
que o analista ‘negue, à paciente que anseia por amor, a satisfação que ela exige.
[...] Motivos éticos unem-se aos técnicos para impedi-lo de dar à paciente seu amor’.
24

A terceira paciente famosa


Junto com Anna O. e Dora, Sabina Spielrein completa o trio das mais famosas
mulheres do início da psicanálise. Embora a fama aqui não seja totalmente no bom
sentido, o fato histórico é eloquente, e trouxe também suas lições.
Trata-se de Sabina Spielrein (1885-1942), psiquiatra e psicanalista russa,
nascida em Rostov. Recentemente, o cinema produziu o documentário The soul
keeper (o guardador da alma), traduzido em português para Jornada da Alma,
dirigido por Roberto Faenza, recuperando uma história que, por muito tempo, não
passava de uma nota de rodapé nos textos de Freud.
Seus sintomas irromperam cedo: teve uma alucinação, na qual viu dois gatos
ameaçadores sobre sua cômoda, o que desencadeou uma fobia por animais e
doenças. Aos 4 anos, começou a reter as fezes, sentando-se sobre os calcanhares,
de modo a fechar o ânus e impedir a defecação. Aos 18 anos, foi acometida por
depressão, seguida de um surto psicótico.
Em 1904, seus pais decidiram tratá-la na Suíça, onde Jung a recebe como
paciente, aos dezenove anos, diagnosticada como histérica. Jung começava sua
parceria de trabalho com Freud. Entretanto, não distinguindo a transferência
analítica do amor comum, Jung, confessadamente polígamo, apaixona-se
ardentemente por aquela jovem de inteligência excepcional, mantendo um romance
de cinco anos. Ela exige ter um filho com ele, Jung se recusa, e ela faz um
escândalo. Atordoado, Jung confessa o caso a Freud, pedindo-lhe ajuda numa carta
em que diz: o diabo usa as melhores coisas para produzir lama.
Freud encarou o fato com humor, fez gozação com a história do diabo, mas
não quis interferir numa “briga de casal”. Dois meses depois, foi Sabina que pediu
uma entrevista com Freud. Foi muito bem recebida por ele que, em vez de se
compadecer dela, aconselhou-a a resolver o problema sozinha, sem apelar a
terceiros. Sua intenção era ajudá-la a elaborar o luto de uma relação passional sem
futuro. A mulher de Jung entra em ação, enviando uma carta anônima aos pais de
Sabina, exigindo satisfação. Os pais pressionam Jung, que se eximiu de qualquer
responsabilidade.
25

Aos 26 anos de idade, Sabina foi uma das primeiras mulheres a ingressar na
Sociedade Psicanalítica de Viena, apresentando um trabalho sobre a Pulsão de
Destruição. Anos depois, Freud se inspirou nesse trabalho para desenvolver a tese
sobre a pulsão de morte. Freud se sentiu muito feliz quando Sabina lhe comunicou o
casamento com um médico judeu russo, bem como a gravidez que logo se seguiu.
Sabina exerceu a atividade clínica e o ensino da psicanálise, tendo recebido
como paciente e aluno o famoso psicólogo Jean Piaget. Em 1923, com apoio de
Freud, voltou para a Rússia. Em 1935, o regime totalitário russo perseguiu sua
família. O marido morreu de enfarto, enquanto seus dois irmãos foram expurgados e
desapareceram no Gulag. Quando os nazistas ocuparam a cidade de Rostov,
promoveram massacres dos judeus, incluída Sabina e suas duas filhas, enterradas
numa vala comum. O affaire Jung-Sabina ficou escondido em documentos secretos,
durante 35 anos.

E o que é a contratransferência?
Este conceito, bastante polêmico entre os teóricos da psicanálise, foi bastante
explorado pela Escola Inglesa. Para escapar do sectarismo de Melanie Klein e Anna
Freud, alguns psicanalistas criaram um terceiro grupo, chamado de Independentes.
Uma das características de toda a Escola Inglesa foi a teorização sobre a
contratransferência e o enfoque na teoria da Relação de Objeto. Destacou-se aí a
relação mãe-criança, entendidas estas como um objeto real e concreto, chamadas
de lactante-lactente. Para Freud, ao contrário, o bebê se inscrevia numa equivalência
simbólica, como um falo.
De acordo com a psicanalista Fernanda Pacheco, em sua tese de Mestrado
na PUC-Rio, a obra de Freud permite, de fato, duas leituras distintas: a primeira leva
um enfoque hermenêutico- espiritual-idealista, seguindo Fichte, Schopenhauer e
Nitzsche, derivado do romantismo, que valoriza a alma, o espírito, o pensamento, a
vida, o não-sensível, o não-mensurável e o teleológico. Esta foi a opção da Escola
Francesa.
A segunda leitura, dentro da tradição intelectual britânica, preferida pelos
Independentes, segue uma filosofia positivista-pragmática, baseada na biologia,
26

etologia, literatura e não na linguística. Seguiram Locke e Darwin, em vez de Hegel,


valorizando o aspecto espacial, corporal, sensorial, mensurável, factual e
mecanicista. Exploraram mais a fase oral do que a fálica, preferindo também a
segunda tópica à primeira. A tradução oficial das Obras de Freud, feita pelos ingleses,
ressentiu-se profundamente deste viés de parcialidade.
Pelos motivos acima, Lacan insistia em criticar a Escola Inglesa pela ênfase
no imaginário em detrimento do simbólico. Lacan dedicou um seminário inteiro, de
um ano, ao tema d’A relação de objeto, no qual defende a teoria de que não há
relação de objeto, embora faça muitos elogiosa Melanie Klein e a Winnicott.

Contudo, não pertencente à Escola Inglesa, Sandor Ferenczi (1873- 1933) foi
quem criou o conceito de contratransferência. Psiquiatra e psicanalista húngaro,
considerado o discípulo preferido de Freud, foi o clínico mais talentoso da história do
freudismo. Durante quinze anos, trocou com o mestre vienense 1200 cartas. Era
criativo, sensível, sensual e feminino. Dedicou-se à medicina social, à ajuda aos
oprimidos, à escuta das mulheres, dos excluídos e marginais, e à defesa dos
homossexuais. Mas viveu uma história tumultuada. Sandor Ferenczi
Em 1904, Ferenczi torna-se amante de Gizella Palos, com a tolerância do
marido desta. Recebeu-a também como sua paciente e, mais tarde, tratou também
de Elma, filha de Gisella. Freud o advertiu contra os perigos de tal prática, sem
conseguir demovê-lo. Ferenczi apaixona-se depois pela própria Elma, o que redundou
no suicídio do noivo dela. A seguir, Ferenczi anuncia o casamento com ela, sem,
contudo, desistir de Gisella. Finalmente, caiu em si e, percebendo aconfusão em que
se metera, encaminhou Elma para análise com Freud. O próprio Ferenczi analisou-
27

se com Freud por três vezes, tendo este assumido o papel de um pai autoritário,
obrigando o paciente a se casar com Gisella e renunciar a Elma.
Em 1914, Ferenczi analisou Melanie Klein e Ernest Jones. Embora mantendo
uma relação ambivalente com Jones, conseguiu sustentar um grande debate com
ele, a respeito de telepatia.
Foi neste contexto confuso que surgiu o conceito de contratransferência. E
ninguém era mais adequado para inventá-lo do que Ferenczi, levando-se em conta
suas experiências pessoais. Freud acabou encampando o conceito, mas nunca deu
destaque à contratransferência em sua teoria.

Definição de contratransferência:
Conjunto das manifestações do inconsciente do analista, relacionadas com as
da transferência de seu paciente.
A partir de 1919, com a intenção de satisfazer, ao máximo, as expectativas de
seus pacientes, e fazê-los superar as resistências, Ferenczi inventou a técnica ativa,
que consiste em intervir diretamente no tratamento, através de gestos de ternura e
afeto. Logo percebeu que asresistências só aumentavam.
Ainda segundo a psicanalista carioca Fernanda Pacheco, citada acima,
Ferenczi abandonou esta técnica, percebendo que ela transformava a análise numa
relação entre mestre e aluno. Entretanto, para dar mais elasticidade ao trabalho,
voltou a usar o relaxamento e a técnica da neocatarse, revalorizando o fator
traumático dos tempos de Breuer, cuja técnica Ferenczi chamade paleocatarse.
Percebendo que a técnica do relaxamento levava os pacientes a estados de
transe, e diante de suas queixas sobre a violência do procedimento, Ferenczi deu-se
conta da contratransferência. Mais ousado ainda, propôs a técnica da análise mútua,
em que o analisando é convidado a ‘dirigir’ o tratamento junto com o terapeuta. O
objetivo era impedir que os desejos inconscientes do analista interferissem na cura.
Fez outra incursão na teoria, propondo uma nova ciência, chamada de
“bioanálise”, ou psicanálise das origens. Seu livro Thalassa, ensaio sobre a teroria da
genitalidade, baseado nas teorias evolucionistas de Lamarck e Haeckel, defende a
ideia de que a existência intrauterina seria a repetição das formas anteriores de vida,
28

sobretudo a vida marinha (thalassa, em grego, significa ‘mar’).


Devido ao fato de que Freud não aceitou as experiências técnicas de
Ferenczi, este passou a ter delírios paranoicos com relação ao mestre. Os dois
romperam as relações em 1933, ano do falecimento de Ferenczi. Suas teses estão
longe de contar com a concordância ou simpatia de grande número de analistas.
Ernest Jones o chamou de “psicótico”. Seguem alguns nomes de maior destaque
entre os Independentes.
1. Michael Balint (1896-1970), paciente e brilhante aluno de Ferenczi, foi
pioneiro da medicina psicossomática e responsável pelo conceito de relação de
objeto. Definiu também a noção de ‘falha básica’ que, nos pacientes psicóticos indica
a ausência da realidade objetal externa. Tal falha impede a instauração da
transferência, obrigando o analista a adaptar a técnica.
Balint ofereceu também uma opinião sensata a respeito da
contratransferência, vendo nela ecos das falhas do analista, ou marcas residuais da
transferência deste último para seu próprio analista. Esta parece ser uma explicação
razoável para o caso Dora.

2. Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), nascido na Índia, foi educado por uma
ama de leite. Aos oito anos, foi mandado para a Inglaterra, onde seus pais o
abandonaram. Gostava dos esportes e tinha repugnância pela sexualidade, casando-
se virgem aos 40 anos. Nos campos de guerra, tinha a patente de capitão.
Clínico erudito e brilhante, reformador da psiquiatria militar, experiente com
adolescentes delinquentes, com psicóticos e pacientes borderline, Bion foi o aluno
mais turbulento de Melanie Klein. Rejeitou o dogmatismo kleiniano e construiu uma
sofisticada teoria do Self e da personalidade, fundada em modelo matemático. Sua
reforma da psiquiatria, que deu origem à teoria dos pequenos grupos sem líder, foi
elogiada por Lacan.
Bion mostrou algumas originalidades teóricas, afirmando que a personalidade
psicótica é um componente normal do eu. Ora, ela destrói o eu, impedindo o acesso
à simbolização, ora, ao contrário, coexiste com outros aspectos do eu, sem se tornar
um agente de destruição. Incapaz de formar símbolos, o psicótico não consegue
29

sonhar.
Em 1945, Bion começou sua terceira análise, agora com Melanie Klein,
durante oito anos, à qual avisou, logo de início, que se recusaria a qualquer idolatria,
agindo com independência. Depois de 1968, mudou-se para Los Angeles, e fez
várias viagens ao Brasil, onde seu ensino teve grande repercussão. Sua teoria foi
chamada de neokleinismo (ou pós-kleinismo).

3. Donald Woods Winnicott nasceu na Inglaterra (1870- 1937). Era filho de um


rico comerciante, prefeito da cidade de Plymouth. Cresceu num universo marcado
pela presença de mulheres (mãe, avó, babá, governanta, e duas irmãs), sendo que
seu pai não tinha tempo para os filhos.
Winnicott analisou-se com James Strachey, por dez anos. Mas não conseguiu
resolver alguns problemas pessoais relacionados à sexualidade, que o impediram
de consumar o primeiro casamento. Divorciado, casa-se com a psicanalista Clare
Winnicott, com a qual não teve filhos.
Dotado de excepcional gênio clínico, famoso como pediatra, Winnicott foi o
mais profundo teórico da Escola Inglesa, admirado até por seus adversários, tendo
mantido fecunda interlocução comLacan, que não lhe poupou elogios.
Na Primeira Guerra Mundial, atuou como cirurgião a bordo de um
contratorpedeiro. Além da psicanálise, dedicou-se à pediatria durante 40 anos,
atendendo a mais de 60.000 crianças. As doenças das crianças eram vistas por ele
como resultantes de conflitos psicológicos familiares, que o levavam a orientar,
psicanaliticamente, os pais.
Não aceitava a explicação freudiana da agressividade em termos de pulsão
30

de morte, e definiu a psicose como um fracasso da relação materna. Se a mãe for


uma mãe suficientemente boa, a criança terá o sentimento da própria identidade e
desenvolverá o verdadeiro self, sendo espontânea e bem integrada. Caso contrário,
se a mãe não é adequada às necessidades do filho, favorecerá o desenvolvimento
do falso self, e a criança, mesmo tendo boas maneiras, será reservada, sem
espontaneidade, e recorrerá aos mecanismos de defesa.
Winnicott utilizava o termo holding, de difícil tradução, que literalmente seria
sustentar. O bebê passa de um estado de dependência total e absoluta da mãe para
um estado de independência. A mãe terá que proporcionar um ambiente favorável de
sustentação física e psicológica nesta fase, para que a criança atinja seu
desenvolvimento.
Mas o grande trunfo de Winnicott foi o conceito de objeto transicional, que
pode ser um pedaço de pano ou uma fralda, uma boneca ou ursinho, que a criança
afaga nos momentos de ausência da mãe. Como substituto do seio, o objeto
transicional é reconhecido pela criança como próprio, que não faz parte de seu corpo
nem da realidade, nem dentro nem fora, ligando o eu ao não-eu, para apaziguar a
angústia da ausência da mãe.
A técnica psicanalítica de Winnicott, fora dos padrões, não respeitava a
neutralidade, nem a duração das sessões, e incluía relações de amizade calorosa
com os pacientes, no estilo ferencziano. Ele via na transferência uma réplica do laço
materno, um ‘ambiente especial’, em que não duvidava de abraçar os pacientes ou
prolongar as sessões por três horas.
Ao contrário da maioria dos psicanalistas ingleses, Winnicott não ignorou a
doutrina de Lacan, com o qual manteve correspondência assídua, inspirando-se na
noção de estádio do espelho para escrever seu artigo sobre O papel de espelho da
mãe e da família no desenvolvimento da criança. Em retribuição, Lacan declara que
o conceito de ‘objeto transicional’ aproxima-se bastante do seu ‘objeto a’.
Após a Segunda Guerra Mundial, a Escola Kleiniana redefiniu a
contratransferência como sendo o conjunto das reações e sentimentos que o analista
experimenta em relação ao paciente. O analista deve servir-se disso somente como
um instrumento para facilitar a compreensão do inconsciente do analisando.
31

Há divergência, entre os teóricos da Escola Inglesa, sobre a conveniência de


o analistacomunicar ou não esses sentimentos ao paciente. Freud jamais considerou
que a contratransferência pudesse ser utilizada de maneira dinâmica no desenrolar
do tratamento. O analista nunca deve dar ao analisando nada que tenha saído de seu
próprio inconsciente. Quem está em análise é o analisando. O analista já fez a sua
antes.
Melanie Klein postulava que a interpretação deveria manter-se neutra, sem
concessões à contratransferência, como Freud propôs, inclusive na análise com
crianças, na qual Anna Freud, por exemplo, defendia uma postura pedagógica. Klein
acreditava nos processos inconscientes da criança, interpretando-os do mesmo
modo que com os adultos. Já que o analista representa as figuras internas, então,
para Klein, todo o material trazido pela criança contém um elemento de
transferência.
Em síntese, ocorre a contratransferência quando o analista expressa algum
afeto ao paciente, ou o trata com hostilidade. Neste caso, o analista sai de sua
posição simbólica de testemunha do discurso do paciente, deixa de ser o grande
Outro, na expressão de Lacan, para ser o pequeno outro, um parceiro, no mesmo pé
de igualdade, colocando em ação sua subjetividade, numa relação dual.
É exatamente o contrário da advertência de Freud, de não tomar como
dirigido à sua pessoa a sedução ou afeto do analisando, e de não se ofender com
alguma agressão que se lhe seja dirigida por tabela. O dever ético do analista, diante
da sedução ou agressão do paciente, é simplesmente de interpretar, e não de
retrucar. Aplica-se, neste caso, exatamente, a sentença latina, de Santo Agostinho,
que diz: Nec major in laude, nec minor in vitupério (não sou melhor quando elogiado,
nem pior quando criticado).
Se ficou claro que a transferência é a condição para a análise, por outro lado,
a contratransferência é claramente o seu veneno. E todo o esforço teórico e prático
de Freud seguiu no sentido de eliminar sempre a contratransferência, vista como algo
negativo e antiético. Este foi seu ponto de ruptura com Ferenczi que, entretanto,
continuou defendendo o uso da contratransferência.
Muitos teóricos postulam que, com crianças e com psicóticos, o uso da
32

contratransferência é aceito, uma vez que, com eles, a interpretação dos desejos
inconscientes é ineficaz. Nestes casos, cabe manter uma relação dual, especular,
restrita à função materna, como tentativa de se conseguir algum resultado, mesmo
que seja só a estabilização dos sintomas. Em se tratando de psicóticos, por exemplo,
Lacan preferia falar de tratamento, na linha de uma psicoterapia, em vez de
psicanálise. Mas, com pacientes neuróticos, a função materna entra só como etapa
iniciale estratégia eventual para introduzir a função paterna da castração.

Lacan retoma o caso Dora


No texto Intervenção sobre a transferência, de 1951, Lacan faz uma nova
leitura do caso Dora, mostrando como as intervenções de Freud produziram
inversões dialéticas hegelianas, estruturais, em três tempos.
Primeira inversão dialética: Dora começa a análise num contexto em que seu
pai se mostrara hipócrita e falso. Ela testa se Freud vai entrar no jogo mentiroso do
pai. Convencida do contrário, descreve o cenário ridículo do romance de seu pai com
a Sra. K., e da tentativa feita por seu pai de oferecê-la como moeda de troca às
investidas do Sr. K. E pergunta: como consertar esta desordem?
Freud responde com outra pergunta: qual é sua própria parte na desordem de
que você se queixa?
Segunda inversão: Vai ficando claro que o silêncio de Dora, até então, a
respeito dos fatos, implicava numa aprovação implícita do comportamento de seu
pai, bem como em sua participação na corte que lhe fazia o Sr. K., o que, aliás, lhe
rendia benefícios em forma de presentes preciosos recebidos deste. Mas surgem
ciúmes em relação ao pai, quando Dora se identifica com a mãe e se comporta como
uma esposa ciumenta.
Freud intervém, mostrando que o ciúme não se refere à mãe, mas está
deslocado, transferido, para a Sra. K.
Terceira inversão: Aos poucos vão se evidenciando o fascinado apego de
Dora pela Sra. K., diante da declaração desta de nada haver entre ela e seu marido,
bem como as confidências mútuas e as trocas de amabilidades entre as duas.
Lacan as descreveu como embaixatrizes mútuas de seus desejos junto ao pai
33

de Dora. Acresça-se a iniciação sexual que Dora recebeu da Sra. K.


A resposta, que Freud não deu aqui, seria: o verdadeiro valor da Sra. K. para
Dora não era a pessoa da Sra. K., mas o mistério da própria feminilidade, que ela
incorporava.
Esta foi a falha reconhecida pelo próprio Freud. Ele raciocinou que Dora era
homossexual, tentou fazê-la interessar-se por um homem. No entanto, Dora queria
entender o que é ser mulher. Por que sua mãe não preenchia este requisito, que era
tão chamativo na Sra. K? De que maneira, ela, Dora, poderia ser desejada? O que é
que a Sra. K. possuía, e que faltava à mãe de Dora e a ela mesma? O que fazer
para sentir-se desejada? Era só isso que ela queria aprender com sua amiga mais
experiente.
O fracasso deste caso deveu-se ao fato de que o processo dialético, que
Freud desenvolvia, foi suspenso no momento crucial para o sucesso. Freud atribui a
falha à transferência, mas Lacan prefere falar, com todas as letras, que foi uma
contratransferência: Não nos será possível considerá-la aqui como uma entidade
inteiramente relativa à contratransferência, definida como a soma dos preconceitos,
das paixões, dos embaraços e até mesmo da informação insuficiente do analista num
dado momento do processo dialético?
“Assim como em toda mulher, [...] o problema de sua condição está, no fundo,
em se aceitar como objeto do desejo do homem, e é este o mistério, para Dora, que
motiva sua idolatria pela Sra. K.” Jacques Lacan

Lacan e o desejo do analista


Para Lacan, embora Freud tenha conseguido estabelecer, de maneira
indiscutível, a importância da transferência e os perigos da contratransferência, faltou-
lhe clareza na sistematização teórica destes conceitos. Freud não conseguiu definir
exatamente o que era a transferência. Utilizou, alternadamente, vários termos:
sugestão, resistência, repetição, amor de transferência, neurose de transferência,
sem se fixar em nenhum deles. Sua preferência parecia estar no conceito de
repetição, mas, quando introduziu a teoria da pulsão de morte, o conceito de
repetição muda de significado, e a compulsão à repetição torna-se o paradigma da
34

pulsão de morte.
Lacan consegue conferir uma precisão conceitual às ideias de Freud, como
nenhum outro seguidor conseguiu, na história da psicanálise. Assim, começa por
separar a transferência e a repetição, consideradas como dois conceitos
fundamentais e distintos. A repetição fica restrita ao significado que Freud lhe
atribuiu em Além do princípio do prazer. Quanto à transferência, Lacan dedica um
ano de seminário a este tema, apresentado nos anos de 1960-1961.
Com relação aos termos de: sugestão, resistência, repetição (no primeiro
sentido), amor de transferência e neurose de transferência, Lacan os classifica todos
como fenômenos transferenciais, mas nenhum deles define a estrutura da
transferência. Dizer que são fenômenos significa que são contingentes, são
dispensáveis, podem aparecer ou não numa análise, sem comprometê-la, embora
sejam bastante frequentes e até úteis.
O que vai definir a estrutura da transferência, o que é necessário e suficiente,
sem o qual não há análise, é a chamada suposição de saber. O analista é o sujeito-
suposto-saber. O paciente precisa supor que o analista tem um saber sobre o
inconsciente dele (paciente), apesar de o analista mesmo saber que não sabe do
inconsciente do outro.
A suposição de saber, na análise, é a mesma que levava as pessoas a
interrogarem os oráculos, as pitonisas, certas de que lá estavam as respostas que
procuravam. As respostas, em forma de enigmas incompreensíveis, eram a prova de
que os oráculos de fato não sabiam nada, mas forçavam as pessoas a entenderem o
que eles diziam e, nisto, a encontrarem suas soluções.
Esta postura do analista está nos Diálogos de Platão, na Apologia de
Sócrates, onde se afirma que o verdadeiro saber consiste em saber que não se
sabe. Mas desde que o paciente esteja convencido de que o analista sabe, ele
transfere para o analista este saber sobre si mesmo, queé a transferência.
É dentro do paciente que reside este saber, procurado no analista. A análise
vai levá-lo a descobrir isto. Como um espelho, o analista vai refletir o que se passa
no inconsciente do analisando. Freud fez um raciocínio idêntico, a respeito do
significado dos sonhos, dizendo que o sonhador sabe o significado de seus sonhos,
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só não sabe que sabe. Trata-se do saber-não sabido, outro nome para o
inconsciente.
O ponto nevrálgico desta questão está no fato de que, para Lacan, a natureza
da transferência não é afetiva, romântica, melosa, não está nos sentimentos do
paciente em relação ao analista. Daí, pouco importa se a transferência é positiva ou
negativa, isto é secundário e totalmente imaginário.
A distinção entre transferência imaginária e transferência simbólica introduz
uma precisão conceitual fundamental. Pode-se chamar de transferência imaginária
tudo o que foi relacionado como fenômenos transferenciais, como apaixonar-se pelo
analista, seduzi-lo, admirá-lo ou, ao contrário, criticá-lo, hostilizá-lo. Nada mal se
tudo isto acontece, inclusive porque facilita para o analista conduzir o paciente para
a transferência simbólica.
A transferência simbólica é aquela em que o paciente consegue fazer
associação livre. A etimologia de ‘simbólico’ vem do grego ballein, lançar, dançar. O
simbólico é o que se lança junto, o diabólico é o que separa. O que caracteriza a
associação livre não é o fato de se proferirem palavras, umas depois das outras,
separadamente, mas é o fato de se proferirem palavras, umas por causa das outras,
havendo ilação entre elas. Ao fazer isto, o paciente transfere para o analistaas ligações
que ele articula sobre os fatos de sua vida.
Na transferência imaginária, o paciente vê no analista a mãe que vai cuidar
dele, vai curá-lo, resolver seus problemas, devolver-lhe a felicidade, livrá-lo dos
sintomas. Está em jogo a função materna da completude. Esta transferência
imaginária é o trampolim para se alcançar a transferência simbólica. Como
decorrência do fato de o analista não ter respondido à demanda de completude, o
paciente vai se defrontar com seu desejo, com a falta, com a castração, com afunção
paterna. Aí está a transferência simbólica.
Quando Lacan desconsidera o fator afetivo na estrutura da transferência, está
se baseando em Freud, para quem o afeto não é recalcado no inconsciente. O
recalque atinge o representante dos afetos, as palavras. Logo, é só através das
palavras que podemos acessar o inconsciente, não pelas emoções ou sentimentos.
Freud viu isso muito bem quando estabeleceu a regra da associação livre,
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que é uma maneira de falar da suposição de saber. Quando o analista manda dizer
tudo o que vem à cabeça, o paciente entende que dali deverá surgir um saber. O
paciente só erra ao pensar que o saber vem do analista e não de si mesmo. Portanto,
a suposição de saber está no próprio inconsciente do analisando. E aí está o erro de
pessoa, de que fala Freud.
E a contratransferência? Se este conceito já encontrou pouco interesse em
Freud, muito menos em Lacan, que o considera impróprio. Prefere dizer que a
contratransferência é contra a transferência. Isto não significa que não haja amor e
até paixão na análise. Há e tem que haver.Só que não é amor ou paixão pela pessoa
do paciente, é uma paixão pelo processo analítico, para que a análise funcione da
melhor maneira.
Em vez de contratransferência, Lacan propõe a expressão desejo do
analista. Não se trata de um sinônimo de contratransferência. O conceito de desejo,
em Freud, é um dos mais ricos. Qualé o desejo do analista?
Evidentemente não é um desejo caprichoso de se aproveitar da situação de
fragilidade e dependência do paciente, somada à suposta superioridade do analista,
para seduzir o pacienteem benefício próprio.
Este tipo de desejo subjetivo e contratransferencial, no mau sentido, é
perverso, e é lamentável que tenha ocorrido, mesmo que esporadicamente, na
história da psicanálise. O desejo do analista deve ser escrito com maiúscula, isto é,
um desejo depurado na análise do próprio analista, que vise o bem do paciente e da
análise, não o bem ou qualquer vantagem do analista.
O analista não põe, por princípio, sua subjetividade em jogo na análise.
Ao invés de ser um sujeito, em pé de igualdade com o paciente, numa relação
dual e simétrica,Lacan defende um analista que seja objeto. Mas não é um objeto (de
amor) que vá satisfazer ao paciente, é o chamado objeto a, um objeto inespecífico,
cuja função é ser a causa do desejo do analisando.
A relação analítica não é então intersubjetiva, porque não há dois sujeitos. Há
uma dessimetria entre um sujeito e um objeto. Chamar o analista de objeto é uma
maneira enfática de dizer que ali ele não é sujeito. Como causa do desejo, o desejo
do analista é que a análise prossiga da melhor maneira.
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‘O amor é dar o que não se tem’ – Lacan


Fiel a Freud que dizia ser a transferência um amor verdadeiro, Lacan vai
apresentar sua teoria sobre o verdadeiro amor. “O amor é dar o que não se tem”.
Esta frase foi inventada por Lacan, plagiando O Banquete de Platão, em que consta:
“É impossível a qualquer pessoa dar aquilo que não tem, nem ensinar aquilo que
não sabe”. A mensagem clara é que, se o analista ama defato seu paciente, não pode
lhe dar nada, não pode responder à sua demanda, nem corresponder a seu amor. O
nada, no caso, será o melhor presente. Este ‘nada’ significa estar ali só para
provocar o surgimento do desejo do paciente.
Já foi dito que Freud também era leitor de Platão, d’O Banquete,
especialmente. E Lacan vai encontrar ali o protótipo de uma sessão de análise, com
seus principais requisitos: a transferência, o amor e a interpretação.
Naquela reunião d’O Banquete, o tema a ser discutido era o amor, o amor
homossexual, considerado o mais perfeito. Alcebíades toma a palavra, dirige-se a
Sócrates e lhe faz os mais rasgados elogios. Impossível uma declaração de amor
mais explícita. A resposta de Sócrates foitão brilhante quanto o discurso: “Tudo o que
você declarou a mim é muito bonito, mas, na verdade, refere-se a Agatão, no qual
você estava pensando”. Sócrates interpretou a transferência de Alcebíades para com
ele, mostrando que o verdadeiro desejo era direcionado a outro.
A intervenção de Sócrates equivale ao que Freud descreve sobre o amor
verdadeiro, mas com a pessoa errada. Esta é a função do analista: não se iludir com
as manifestações do paciente, e mostrar a ele qual é o verdadeiro endereço de seu
amor ou ódio. Essa é uma questão eminentemente ética, sobre a qual Lacan não se
cansou de insistir, tendo feito também um seminário anual sobre A ética da
psicanálise.

A metáfora do amor
O que ocorre entre o amante e o amado? O amante é aquele que, sentindo
que algo lhe falta, mesmo sem saber o quê, supõe em outro, o amado, algo que o
completaria. O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar,
sem saber bem o quê. Mas, como o amado é também um ser falante e faltante, algo
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também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um
vazio. E aquilo que o amado supõe ter para dar, não é, necessariamente, o que falta
ao amante.
O amante não sabe o que lhe falta, o amado não sabe o que tem, um
nãosaberque é do inconsciente.
A metáfora do amor faz com que o amante, ao escolher o amado, inverta as
posições, o amado tornando-se agora o amante e vice-versa. Assim também o
analista se apresenta como o amante (platônico) que convida o paciente (o amado)
para uma profunda experiência de amor. Ao aceitar, através da transferência, o
paciente assume o lugar do amante, e o analista passa a ser o amado.
Na análise, duas pessoas se encontram, com determinada frequência,
durante meses ou anos, numa sala trancada, onde passam horas a sós, falando do
que há de mais íntimo, pessoal, secreto, sofrido, magoado, triste, esperançoso, feliz,
alegre, todas as fantasias à solta, nenhum risco de julgamento ou censura. Sem
falsas promessas, dizem-se coisas que a ninguém mais é dado ouvir, nem aos pais,
irmãos, parentes, amigos, namorados, amantes, parceiros, colegas; coisas que, se
não fossem ditas ali, nunca mais seriam proferidas pelo resto da vida e, isso, diante
de alguém total e incondicionalmente disponível a escutar, sem limites. Então, não
está aío grande e verdadeiro amor? Aquele que dá o que não tem?
Lacan conclui, em seu texto sobre A direção do tratamento: “Se o amor é dar
o que não se tem, é verdade que o sujeito pode esperar que isso lhe seja dado, uma
vez que o psicanalista nada mais tenha a lhe dar. Mas nem mesmo esse nada ele
lhe dá, e é bom que seja assim: e é por isso que se paga a ele por esse nada, e
generosamente, de preferência, para deixar bem claro que, de outro modo, isso não
valeria grande coisa”.
Voltemos às diferenças entre psicoterapia e psicanálise. Na psicoterapia ocorre
uma relação dual entre paciente e terapeuta. Este ajuda com conselhos, soluções,
exercendo uma função materna, no registro do imaginário ou da completude,
aplicando técnicas, como relaxamento, meditação etc, adequadas a este objetivo.

Teoria dos quatro discursos


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Para esclarecer o ofício e a função do analista, Lacan criou a teoria dos


quatro discursos. Este tema foi apresentado no Seminário 17, O avesso da
psicanálise (1969-1970). Com este título, Lacan avança em sua tese de que o
discurso médico é o avesso do discurso da psicanálise. São dois discursos
mutuamente excludentes.
Freud já havia adiantado que a formação em medicina não era uma boa
indicação para alguém ser analista, apesar de que ele e o próprio Lacan eram
médicos. Ao se tornarem psicanalistas, viraram ao avesso tudo o que tinham
aprendido.
Lacan vinha ruminando suas ideias desde 1965, quando escreveu A ciência e a
verdade. É longa e de triste memória a trajetória da humanidade em torno das
divergências entre a fé, que pretende ser a verdade, e a ciência, que não deixa por
menos. Muitas fogueiras religiosas já crepitaram com o óleo que escorria dos
cérebros de cientistas, só porque firmaram convicções diferentes dos dogmas. A
pergunta que não cessa de ser feita: onde está a verdade, na teologia ou na ciência?
E sabemos bem em que lugar Freud situava o discurso religioso da ilusão, bem
como a precariedade das teses científicas.
Para responder a estas e outras questões, Lacan inventa estes matemas.
Matema significa ensinamento, sendo que a matemática é o ensino sobre os
números. Assim como os mitemas são a menor parte de um mito, os matemas
lacanianos são pequenas fórmulas que resumem as teorias psicanalíticas,
garantindo-lhes o rigor, a precisão e a objetividade. São extremamente úteis e
didáticas.
Os objetivos dos quatro discursos são os seguintes:
a) mostrar como a psicanálise detém um discurso próprio, da interpretação,
com o qual pretende dar contas de sua eficácia social e clínica;
b) mostrar como os demais discursos (da religião, da medicina e da ciência)
têm especificidadespróprias;
c) mostrar qual é o papel do analista e do paciente na transferência analítica,
com rigor,concisão e precisão teórica.
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d) apontar, com clareza, a quota de subjetividade ou de objetividade que cada


discurso comporta;
e) definir o que seja o saber e a verdade.

Definição de discurso: é a organização da comunicação, principalmente a


linguageira, específica das relações do sujeito aos significantes e ao objeto, que são
determinantes para o indivíduo. Trata-se de uma formalização das diferentes
possibilidades de se estabelecerem os laços sociais. É o lugar em que se evidencia
que o ser humano está assujeitado à linguagem, submetido aos efeitos do
significante e incapaz de dizer toda a sua verdade.
Não podemos esquecer que o bebê humano, já antes de nascer, está
presente no discurso (ou desejo) dos pais e, pela vida afora, continuará sendo
monitorado por sentenças do tipo tu és isso, sem escapatória.
A estrutura dos discursos é composta por quatro lugares fixos e por quatro
elementos que intercambiam suas posições, de um discurso ao outro, através de um
quarto de giro no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.

Estes lugares funcionam assim: o agente, embasado numa verdade, agirá


sobre alguém para obter uma produção.

Os quatro elementos, que mudam de posição em cada discurso, são:


S1, significante-mestre, que representa o sujeito para todos os outros
significantes (como o nome próprio, por exemplo), originando a cadeia que determina
o sujeito.
S2, o significante do saber inconsciente (ou a cadeia dos significantes).
Desde que o sujeito se inscreve na linguagem, não tem mais acesso direto ao objeto,
o objeto perdido, agora substituído por um significante. Daí, surge um resto. a, é o
mais-gozar, referência à mais-valia. É também o objeto a, que é o objeto causa do
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desejo. Já que depende da demanda, o desejo do sujeito só aparece nas entrelinhas


(latente). Este objeto não é concreto, não é algo que satisfaria a demanda, no
sentido de uma completude, mas é o objeto que Freud chamou de radicalmente
perdido (a mãe).
$, o sujeito barrado, indicando que ele não é autônomo, mas determinado
pelo significante que o barra (recalca). É o sujeito dividido, de que falava Freud.

O título deste discurso é uma homenagem aos grandes mestres: Platão (o


saber do escravo, no Menon); Aristóteles (competência do escravo e deleite do
mestre, na Política); Hegel (a dialética do senhor e do escravo); K. Marx (controle e
produção da mais-valia).
Este é o discurso da medicina e da ciência, em que o médico, na posição de
mestre, faz o paciente (escravo) se calar, para apresentar-lhe a solução pronta. O
vínculo é de dominação- servidão.
O médico-mestre, S1, na posição de agente, dirige-se ao outro, S2, o
paciente, auscultando seu corpo, com base no saber que possui. Entretanto, no lugar
da verdade, está o $, o sujeito (paciente ou aluno), que não participa do discurso
manifesto, porque está debaixo da barra, recalcado. No lugar da produção, está o
objeto a, porque a ciência visa a fundar a realidade do objeto que, no caso da
medicina, é a doença. E tanto o médico quanto o mestre tiram daí seu mais-gozar, o
gozo, o prestígio e o poder de que tanto se orgulham na sociedade. A descoberta
científica, sendo unificadora, suprime a divisão do sujeito.
Este é também o discurso religioso. O Grande Mestre, Deus, impõe aos
súditos os dogmas absurdos que não podem ser questionados pelas subjetividades
recalcadas.
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É um prolongamento do discurso do mestre, privilegiando a cadeia significante.


Por isso, no lugardo agente, temos o S2, o saber. Na Universidade, ensina-se o saber
coletado junto aos mestres. Os professores lêem os mestres, recolhendo e
transmitindo seu saber, evitando sua entropia.
Assim, este discurso evita o surgimento de significantes novos, que venham
destruir a ordem estabelecida. Por essa razão, o discurso universitário barra ou
recalca o S1, o significanate- mestre, situado no lugar da verdade. O saber liga-se
diretamente aos bens do gozo e ao gozo dos bens que o saber obtém. O saber liga-
se ao a, no lugar do outro. Finalmente, no lugar da produção, temos o $, o sujeito
dividido. Isto é, o aluno fica perdido entre tantas teorias e opiniõesdivergentes.
Não é de estranhar, então, que a Escola e a Educação sejam tão resistentes
às mudanças, tãotradicionais, porque seu discurso não inventa nada, só transmite.

Exemplos claros deste discurso encontramos nos modelos atuais de


vestibular para as Escolas oficiais, em que os programas são impostos aos alunos,
sem chance de escolha. Eles têm que decorar fórmulas, datas, informações inúteis,
leituras obrigatórias, para poderem ingressar na poderosa Instituição. Outro exemplo
gritante são as teses de mestrado-doutorado, em que os alunos são impedidos de
emitir opiniões pessoais, de usar o pronome da primeira pessoa, contentando-se em
citações intermináveis das opiniões, muitas vezes conflitantes, dos outros. São
grandes dissertações, dentro de todas as normas técnicas e códigos estabelecidos,
que jamais serão consultadas, condenadas a descansar numa estante de biblioteca. A
titulação, contudo, garantirá o prestígio e o gozo, inclusive financeiro, do novo doutor
e possível futuro mestre.
Reparem que, nos dois primeiros discursos, o $ (sujeito barrado) esteve
literalmente debaixo da barra, recalcado, por serem discursos que pretendiam a
objetividade em detrimento da subjetividade. Os dois discursos seguintes mostram a
mudança de paradigma proposta pela psicanálise. Neles, o $ tem lugar privilegiado,
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acima da barra, destacando a subjetividade.


Aqui, a palavra ‘histérico’ não se refere a uma neurose, como queriam os
médicos, nem a uma cumplicidade com o mal, na interpretação religiosa. Está em
jogo uma ordem estrutural, que ordena e regula um vínculo social. O que as
histéricas descobriram, na psicanálise, foi justamente a possibilidade de contestar o
saber médico ou religioso, apontando para sua falha. Sendo assim, o discurso
histérico é o discurso de qualquer paciente (homem ou mulher) que contesta o
mestre, dizendo: mostra se és homem, dá as provas de teu ser homem para uma
mulher. Isto é, o histérico constitui um mestre para, em seguida, destituí-lo desta
função, porqueele não tem resposta para a pergunta que lhe é dirigida.
Este discurso é o retorno do recalcado, denunciando o sintoma do mestre. O
fato de que as histéricas ‘simulavam’ qualquer tipo de sintoma, sem ter um sintoma
específico, deixava os médicos atordoados e perdidos. Com isto, elas davam a
entender que seus sintomas não remetiam ao discurso médico, mas ao próprio
sujeito.
Neste discurso, o lugar do agente é ocupado pelo $, o paciente, sujeito
dividido, abrindo nova possibilidade discursiva. O paciente dirige-se ao outro, o
analista, transformado pela histérica em mestre, o S1, pedindo a ele que lhe mostre a
verdade, a causa de seu desejo desconhecido e recalcado (sob a barra), o a, e que
construa, como produção, uma teoria, S2, para explicar seusenigmas.
Este é um discurso de sedução. Como os médicos se consideravam bambas a
respeito de tudo, caíam fácil na arapuca, apresentando, apressadamente, as velhas
respostas: piti, fingimento, falta de homem. Ao que as histéricas retrucavam: vocês
não nos entendem.
Como já foi dito, as histéricas entregaram a Freud, de bandeja, a descoberta
da psicanálise. O trabalho de Freud foi só inverter a prática médica que as mandava
calar (ou casar-se), e deixá- las falar. Nascia a ‘cura pela palavra’. O eureca de
Freud aconteceu bem no começo de suas investigações, nas aulas de Charcot, em
Paris.
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Perspicaz ao extremo, Freud logo percebeu que não deveria entrar no jogo de
sedução, que não deveria responder simplesmente à demanda histérica, mas instalar
o discurso analítico, dirigir a cura, sem dirigir a consciência do paciente, e levá-lo a
descobrir o desejo inconsciente que subjaz à demanda. Em vez de apresentar um
diagnóstico ou uma explicação, como faziam os médicos, Freud pede ao paciente
para falar mais sobre si mesmo, a fazer associações com o que já foi dito.
Em outras palavras, Freud deixa implícito que, em vez de esperar dele uma
solução, o paciente descobriria em si mesmo, através de seu discurso, um saber que
não era sabido, mas que estava lá, latente. O paciente tinha a suposição de que este
saber estaria no analista. Freud foi humilde ao reconhecer que não possuía um saber
sobre o inconsciente do outro e, assim, abriu a chancepara que a verdade eclodisse.
Este é o único discurso em que o desejo se inscreve. A resposta do analista
ao pedido do histérico é a seguinte: o analista, como causa (ou provocador) do
desejo, a, no lugar do agente, interpela o outro, o paciente, $, pedindo a ele para
associar, colocar em movimento a cadeia significante, S2, transformando o saber em
verdade do sujeito, e conseguindo, como produto, o S1, o significante-mestre que
organiza a cadeia, e com o qual, desde sempre, o sujeito se identifica.
Para Lacan, este é o discurso que inclui a função do fantasma, cuja fórmula é
($ # a), que descreve a relação entre o sujeito e o ‘objeto a’, do sujeito em relação a
todos os objetos do desejo. Agora fica claro o título do Seminário 17, dizendo que o
discurso do mestre é o avesso do discurso analítico.
Em 1972, em conferência realizada em Milão, Lacan sugeriu de se pensar em
um quinto discurso, o discurso capitalista. Sua proposta não provocou grande
interesse entre os analistas, sobretudo tendo em vista que os discursos do histérico e
do analista foram muito bem recebidos,por sua utilidade clínica e teórica.
Derivado do discurso do Mestre, o discurso do capitalista substitui, no lugar do
agente, o S1 pelo $. Sem entrar em mais detalhes, o que ocorre neste discurso é
uma dessubjetivação, no sentido de que o sujeito praticamente se identifica com os
objetos de consumo. O ser perde importância diante do ter. O sujeito, manipulado
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pelos artifícios da propaganda e do marketing, transforma- se em marionete,


comprando os últimos modelos de tudo o que lhe oferecem, mesmo sem
necessidade, e sem controle. É uma compulsão pelos shoppings, que atinge mais as
mulheres, cuja felicidade passa a ser proporcional à quantidade de sacolas que
levam para casa, para desespero dos maridos.
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REFERÊNCIAS

Ferreira, Fernanda P. “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar
para sair daqui? Rio de Janeiro, Tese de Mestrado na PUC, 2003, inédito. Freud,
Sigmund. A interpretação de sonhos. ESB, Vols. IV e V. Rio de Janeiro,Imago, 1972.
Freud, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. ESB. Vol. VI. Rio de Janeiro,
Imago, 1976.
Freud, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. ESB, vol. VIII. Rio de
Janeiro, Imago, 1977.
Freud, Sigmund. Notas sobre um caso de neurose obsessiva. ESB. vol.X, Rio de
Janeiro, 1974.
Freud, Sigmund. A dinâmica da transferência. ESB. vol.XII, Rio de Janeiro,1969.
Freud, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise.
ESB. vol.XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
Freud, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial. ESB. vol.XII, Rio de
Janeiro, 1969.
Freud, Sigmund. Além do princípio do prazer. ESB. vol.XVIII, Rio de Janeiro,1976.
Lacan, Jacques. Intervenção sobre a transferência, Escritos, Rio de Janeiro, Zahar,
1998.
Lacan, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder.
Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
Lacan, Jacques. A relação de objeto. Livro IV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1995.
Lacan, Jacques. A ética da Psicanálise. Livro 7. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
Lacan, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Livro 11, Rio de
Janeiro, Jorge Zahar, 1985.
Lacan, Jacques. A transferência. Livro 8. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992. Platão.
O Banquete. Rio de Janeiro, Tecnoprint S.A,, sem data.
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