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DÚVIDAS E ORIENTAÇÕES
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ATENDIMENTO AO ALUNO
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Sumário
As Formações do Inconsciente
O método usado por Freud que, aliás, corresponde à única regra imposta,
sem a qual não se caracteriza a psicanálise, é chamado de associação livre. É
considerada a única regra, porque, uma vez estabelecida, tudo o mais pode decorrer
dentro do previsto. Consiste na orientação inicial que o psicanalista faz ao paciente:
“diga tudo o que lhe vier à cabeça, sem selecionar nada, sem considerar que
qualquer coisa seja mais importante que outra, sem se preocupar de achar que está
dizendo bobagem”. Quando Freud pedia para se dizer qualquer coisa, sabia que não
era o mesmo que pedir para dizer uma coisa qualquer. Isto é, nossa linguagem não
é aleatória, nosso discurso obedece a uma lógica, não só gramatical, não só
consciente, mas, sobretudo, a uma lógica do inconsciente.
Qual é a lógica do inconsciente? O inconsciente surgiu do fato de
recalcarmos, de querermos esquecer ou deletar determinadas lembranças que são
consideradas desagradáveis, perigosas ou assustadoras, e que são enviadas para o
exílio, para que não nos perturbem mais. Acontece que, da mesma maneira que um
exilado político sonha sempre em voltar para sua pátria de origem, e ele foi exilado
justamente por ter ideias consideradas subversivas, assim acontece no chamado
retorno do recalcado. O inconsciente sabe que, por mais perigosas que sejam as
ideias excluídas, elas precisam ser elaboradas para não continuarem ameaçando o
sujeito. Por isso, o inconsciente cuida de aproveitar qualquer chance possível, para
trazer de volta o recalcado à sua pátria, à consciência, mesmo contrariando a
vontade do sujeito.
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Considerado por Freud como sua obra-prima mais importante, o livro sobre os
sonhos, embora terminado em 1899, só foi publicado em 1900, para comemorar a
passagem do século. À euforia, seguiu-se a depressão. O livro não vendia. Nos seis
primeiros anos, só foram vendidos 351 exemplares. Foi preciso algum tempo para
que o livro fosse considerado um dos grandes clássicos da literatura científica.
Por que Freud se tornou o referencial praticamente único, quando se trata de
interpretar sonhos? É que criou uma teoria totalmente nova, desativando tudo o que
se tinha dito antes, e uma teoria que é comprovada por milhares de analistas e
milhões de pacientes pelo mundo afora.
Cabeçalho do livro sobre A interpretação de sonhos: “Se não posso dobrar os
Poderes Supremos, moverei as Regiões Infernais”, citandoa Eneida, de Virgílio.
O princípio, como em toda grande descoberta, é extremamente simples. Não
há dicionário de sonhos, não há chaves de interpretação pré-fabricadas que se
aplicam a muitas pessoas, não há interpretações simbólicas como a dos sonhos do
Faraó do Egito (as vacas magras e as vacas gordas), narrados na Bíblia.
Considerados a “via régia” para o inconsciente, o fórum privilegiado onde tentamos,
alucinatoriamente, realizar nossos desejos inconfessos ou frustrados, os sonhos
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sonho.
Foi isto que Freud designou como sendo a psicopatologia presente nos atos
de nossa vida cotidiana, alterando a antiga explicação de que os esquecimentos ou
trocas de nomes eram simples resultado de distração ou cansaço mental, não
havendo motivo para levá-los em consideração. Pelo contrário, o ato só é falho na
perspectiva da consciência, sendo, do ponto de vista do inconsciente, um ato muito
bem sucedido. Queríamos falar uma coisa, falamos outra, ficamos vermelhos de
vergonha, mas nosso inconsciente nos flagrou dizendo a verdade. O ato falho é
sempre involuntário. Se alguém o produz deliberadamente, deixa de ser ato falho.
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Podemos dizer que essa trilogia de livros de Freud forma um grande chiste,
que ele não teve intenção de dizer, mas que para o mundo se torna claro: Freud foi aí
um linguista, sem querer. Esem saber.
A palavra, a linguagem, o discurso, estão sempre presentes em todas as
formações do inconsciente citadas acima. Isto porque, para Freud, o recalque não
se faz sobre os afetos ou emoções, mas sim sobre as ideias, as palavras. Daí
que o método psicanalítico, buscando recuperar aquelas ideias “adoecidas”, se
concentra na chamada cura pela palavra.
Transferência e Histeria
Um dos temas mais apaixonantes da psicanálise é a transferência. Ela está no
cerne da atividade clínica, é a mola do tratamento, a garantia do sucesso e eficácia
de todo o trabalho analítico. E é extremamente delicada, difícil de ser conduzida, e
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O caso Dora
Seu verdadeiro nome era Ida Bauer (1882-1945). Este, sim, foi o primeiro
grande tratamento psicanalítico propriamente dito, realizado por Freud, em 1901,
publicado em 1905. O título de Fragmentos da análise de um caso de histeria
predominou sobre a intenção de intitulá-lo como Sonhos e histeria. O grande
diferencial deste caso, sobre os anteriores, é que, pela primeira vez, Freud baseou
sua análise em dois importantes sonhos de Dora, trabalhados agora já com a técnica
da associação livre.
O tratamento durou só três meses, por motivos que veremos abaixo. No início,
Dora apresentava diversos distúrbios nervosos: enxaqueca, tosse convulsiva, afonia,
depressão,tendências suicidas. E acabara de sofrer uma grande afronta psicológica.
A grande repercussão do caso evidenciou-se pelos comentários, polêmicas,
artigos, livros, um romance, uma peça teatral e estudos sobre o feminismo. Freud
encontrou dificuldades pessoais neste atendimento, mas nunca fez segredo disso,
tentando aprender com os erros. Houve também oposições externas daqueles que
acusavam a psicanálise de perverter as mulheres, levando-as a confessarem
sujeiras sexuais induzidas pelo analista. Não se parece com a acusação feita ao
filósofo Sócrates, de corromper a juventude?
Dora era a filha caçula, uma mocinha virgem, de 18 anos, judia, nascida em
Viena, de uma rica família burguesa. Sua história tem de tudo: drama, comédia e
romance picante. Um quinteto depersonagens são os atores do drama:
DORA, que herdou da mãe as dores abdominais, não recebia a menor
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atenção nem carinho, fazia-lhe duras críticas e fugia a qualquer influência dela. Mas
Dora gostava muito da governanta que cuidava dela. Diferente da mãe, a governanta
era uma mulher moderna e arejada, que ensinou a Dora os segredos da vida sexual,
lendo para ela livros que guardava escondidos.
O PAI DE DORA (Philipp Bauer) era um industrial admirado pela filha e,
segundo Freud, um homem ativo e talentoso. Quando adoeceu de tuberculose,
mudou-se com a família para tratamento.
A MÃE DE DORA (Katharina Bauer) era uma dona de casa pouco instruída,
simplória, que sofria de dores abdominais permanentes. Sem interesse pelos filhos,
sem amor pelo marido, pelo menos após a doença deste, passava o dia limpando a
casa obsessivamente, com sinais de “psicose doméstica”, segundo Freud.
O SR. K. (Hans Zellenka) era um negociante mediano, que conheceu o pai de
Dora na cidade onde este fora se tratar, e ficaram amigos.
A SRA. K. (Giuseppina ou Peppina) era uma bela italiana que sofria de
distúrbios histéricos e frequentava os sanatórios. Confidenciava com Dora, e
ofereceu-lhe o famoso livro A fisiologia doamor, de Paolo Mantegazza. Este autor era
um sexólogo darwinista, especialista nas grandes práticas sexuais humanas:
lesbianismo, onanismo, masturbação, inversão, felação etc.
produzido pela BBC de Londres, com o título de Rat Man. O roteiro é fiel ao texto
original. Mas, o importante, neste caso, foi que Freud percebeu claramente que os
sentimentos inconscientes do paciente para com o analista eram manifestações de
uma relação recalcada com as imagos parentais. Estava aberta a porta para uma
rigorosa teoria sobre a transferência.
Foi aí que surgiu o clássico artigo de 1912, chamado A dinâmica da
transferência. Nele, Freud identificou uma transferência positiva, feita de
sentimentos amigáveis de ternura e amor, eventualmente até mesmo de paixão, que
são conscientes, e de outros sentimentos com raízes inconscientes, que costumam
ter um fundamento erótico.
Por outro lado, há uma transferência negativa, marcada por sentimentos
hostis, agressivos, ou de desconfiança, no interior da análise. As duas modalidades
podem ser simultâneas ou sucessivas. Nenhuma delas é, necessariamente, um
obstáculo para a análise, como Freud suspeitou inicialmente. Mas, a transferência
negativa pode funcionar como resistência, o mesmo acontecendo quando a
transferência positiva é carregada de elementos eróticos recalcados.
Aos 26 anos de idade, Sabina foi uma das primeiras mulheres a ingressar na
Sociedade Psicanalítica de Viena, apresentando um trabalho sobre a Pulsão de
Destruição. Anos depois, Freud se inspirou nesse trabalho para desenvolver a tese
sobre a pulsão de morte. Freud se sentiu muito feliz quando Sabina lhe comunicou o
casamento com um médico judeu russo, bem como a gravidez que logo se seguiu.
Sabina exerceu a atividade clínica e o ensino da psicanálise, tendo recebido
como paciente e aluno o famoso psicólogo Jean Piaget. Em 1923, com apoio de
Freud, voltou para a Rússia. Em 1935, o regime totalitário russo perseguiu sua
família. O marido morreu de enfarto, enquanto seus dois irmãos foram expurgados e
desapareceram no Gulag. Quando os nazistas ocuparam a cidade de Rostov,
promoveram massacres dos judeus, incluída Sabina e suas duas filhas, enterradas
numa vala comum. O affaire Jung-Sabina ficou escondido em documentos secretos,
durante 35 anos.
E o que é a contratransferência?
Este conceito, bastante polêmico entre os teóricos da psicanálise, foi bastante
explorado pela Escola Inglesa. Para escapar do sectarismo de Melanie Klein e Anna
Freud, alguns psicanalistas criaram um terceiro grupo, chamado de Independentes.
Uma das características de toda a Escola Inglesa foi a teorização sobre a
contratransferência e o enfoque na teoria da Relação de Objeto. Destacou-se aí a
relação mãe-criança, entendidas estas como um objeto real e concreto, chamadas
de lactante-lactente. Para Freud, ao contrário, o bebê se inscrevia numa equivalência
simbólica, como um falo.
De acordo com a psicanalista Fernanda Pacheco, em sua tese de Mestrado
na PUC-Rio, a obra de Freud permite, de fato, duas leituras distintas: a primeira leva
um enfoque hermenêutico- espiritual-idealista, seguindo Fichte, Schopenhauer e
Nitzsche, derivado do romantismo, que valoriza a alma, o espírito, o pensamento, a
vida, o não-sensível, o não-mensurável e o teleológico. Esta foi a opção da Escola
Francesa.
A segunda leitura, dentro da tradição intelectual britânica, preferida pelos
Independentes, segue uma filosofia positivista-pragmática, baseada na biologia,
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Contudo, não pertencente à Escola Inglesa, Sandor Ferenczi (1873- 1933) foi
quem criou o conceito de contratransferência. Psiquiatra e psicanalista húngaro,
considerado o discípulo preferido de Freud, foi o clínico mais talentoso da história do
freudismo. Durante quinze anos, trocou com o mestre vienense 1200 cartas. Era
criativo, sensível, sensual e feminino. Dedicou-se à medicina social, à ajuda aos
oprimidos, à escuta das mulheres, dos excluídos e marginais, e à defesa dos
homossexuais. Mas viveu uma história tumultuada. Sandor Ferenczi
Em 1904, Ferenczi torna-se amante de Gizella Palos, com a tolerância do
marido desta. Recebeu-a também como sua paciente e, mais tarde, tratou também
de Elma, filha de Gisella. Freud o advertiu contra os perigos de tal prática, sem
conseguir demovê-lo. Ferenczi apaixona-se depois pela própria Elma, o que redundou
no suicídio do noivo dela. A seguir, Ferenczi anuncia o casamento com ela, sem,
contudo, desistir de Gisella. Finalmente, caiu em si e, percebendo aconfusão em que
se metera, encaminhou Elma para análise com Freud. O próprio Ferenczi analisou-
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se com Freud por três vezes, tendo este assumido o papel de um pai autoritário,
obrigando o paciente a se casar com Gisella e renunciar a Elma.
Em 1914, Ferenczi analisou Melanie Klein e Ernest Jones. Embora mantendo
uma relação ambivalente com Jones, conseguiu sustentar um grande debate com
ele, a respeito de telepatia.
Foi neste contexto confuso que surgiu o conceito de contratransferência. E
ninguém era mais adequado para inventá-lo do que Ferenczi, levando-se em conta
suas experiências pessoais. Freud acabou encampando o conceito, mas nunca deu
destaque à contratransferência em sua teoria.
Definição de contratransferência:
Conjunto das manifestações do inconsciente do analista, relacionadas com as
da transferência de seu paciente.
A partir de 1919, com a intenção de satisfazer, ao máximo, as expectativas de
seus pacientes, e fazê-los superar as resistências, Ferenczi inventou a técnica ativa,
que consiste em intervir diretamente no tratamento, através de gestos de ternura e
afeto. Logo percebeu que asresistências só aumentavam.
Ainda segundo a psicanalista carioca Fernanda Pacheco, citada acima,
Ferenczi abandonou esta técnica, percebendo que ela transformava a análise numa
relação entre mestre e aluno. Entretanto, para dar mais elasticidade ao trabalho,
voltou a usar o relaxamento e a técnica da neocatarse, revalorizando o fator
traumático dos tempos de Breuer, cuja técnica Ferenczi chamade paleocatarse.
Percebendo que a técnica do relaxamento levava os pacientes a estados de
transe, e diante de suas queixas sobre a violência do procedimento, Ferenczi deu-se
conta da contratransferência. Mais ousado ainda, propôs a técnica da análise mútua,
em que o analisando é convidado a ‘dirigir’ o tratamento junto com o terapeuta. O
objetivo era impedir que os desejos inconscientes do analista interferissem na cura.
Fez outra incursão na teoria, propondo uma nova ciência, chamada de
“bioanálise”, ou psicanálise das origens. Seu livro Thalassa, ensaio sobre a teroria da
genitalidade, baseado nas teorias evolucionistas de Lamarck e Haeckel, defende a
ideia de que a existência intrauterina seria a repetição das formas anteriores de vida,
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2. Wilfred Ruprecht Bion (1897-1979), nascido na Índia, foi educado por uma
ama de leite. Aos oito anos, foi mandado para a Inglaterra, onde seus pais o
abandonaram. Gostava dos esportes e tinha repugnância pela sexualidade, casando-
se virgem aos 40 anos. Nos campos de guerra, tinha a patente de capitão.
Clínico erudito e brilhante, reformador da psiquiatria militar, experiente com
adolescentes delinquentes, com psicóticos e pacientes borderline, Bion foi o aluno
mais turbulento de Melanie Klein. Rejeitou o dogmatismo kleiniano e construiu uma
sofisticada teoria do Self e da personalidade, fundada em modelo matemático. Sua
reforma da psiquiatria, que deu origem à teoria dos pequenos grupos sem líder, foi
elogiada por Lacan.
Bion mostrou algumas originalidades teóricas, afirmando que a personalidade
psicótica é um componente normal do eu. Ora, ela destrói o eu, impedindo o acesso
à simbolização, ora, ao contrário, coexiste com outros aspectos do eu, sem se tornar
um agente de destruição. Incapaz de formar símbolos, o psicótico não consegue
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sonhar.
Em 1945, Bion começou sua terceira análise, agora com Melanie Klein,
durante oito anos, à qual avisou, logo de início, que se recusaria a qualquer idolatria,
agindo com independência. Depois de 1968, mudou-se para Los Angeles, e fez
várias viagens ao Brasil, onde seu ensino teve grande repercussão. Sua teoria foi
chamada de neokleinismo (ou pós-kleinismo).
contratransferência é aceito, uma vez que, com eles, a interpretação dos desejos
inconscientes é ineficaz. Nestes casos, cabe manter uma relação dual, especular,
restrita à função materna, como tentativa de se conseguir algum resultado, mesmo
que seja só a estabilização dos sintomas. Em se tratando de psicóticos, por exemplo,
Lacan preferia falar de tratamento, na linha de uma psicoterapia, em vez de
psicanálise. Mas, com pacientes neuróticos, a função materna entra só como etapa
iniciale estratégia eventual para introduzir a função paterna da castração.
pulsão de morte.
Lacan consegue conferir uma precisão conceitual às ideias de Freud, como
nenhum outro seguidor conseguiu, na história da psicanálise. Assim, começa por
separar a transferência e a repetição, consideradas como dois conceitos
fundamentais e distintos. A repetição fica restrita ao significado que Freud lhe
atribuiu em Além do princípio do prazer. Quanto à transferência, Lacan dedica um
ano de seminário a este tema, apresentado nos anos de 1960-1961.
Com relação aos termos de: sugestão, resistência, repetição (no primeiro
sentido), amor de transferência e neurose de transferência, Lacan os classifica todos
como fenômenos transferenciais, mas nenhum deles define a estrutura da
transferência. Dizer que são fenômenos significa que são contingentes, são
dispensáveis, podem aparecer ou não numa análise, sem comprometê-la, embora
sejam bastante frequentes e até úteis.
O que vai definir a estrutura da transferência, o que é necessário e suficiente,
sem o qual não há análise, é a chamada suposição de saber. O analista é o sujeito-
suposto-saber. O paciente precisa supor que o analista tem um saber sobre o
inconsciente dele (paciente), apesar de o analista mesmo saber que não sabe do
inconsciente do outro.
A suposição de saber, na análise, é a mesma que levava as pessoas a
interrogarem os oráculos, as pitonisas, certas de que lá estavam as respostas que
procuravam. As respostas, em forma de enigmas incompreensíveis, eram a prova de
que os oráculos de fato não sabiam nada, mas forçavam as pessoas a entenderem o
que eles diziam e, nisto, a encontrarem suas soluções.
Esta postura do analista está nos Diálogos de Platão, na Apologia de
Sócrates, onde se afirma que o verdadeiro saber consiste em saber que não se
sabe. Mas desde que o paciente esteja convencido de que o analista sabe, ele
transfere para o analista este saber sobre si mesmo, queé a transferência.
É dentro do paciente que reside este saber, procurado no analista. A análise
vai levá-lo a descobrir isto. Como um espelho, o analista vai refletir o que se passa
no inconsciente do analisando. Freud fez um raciocínio idêntico, a respeito do
significado dos sonhos, dizendo que o sonhador sabe o significado de seus sonhos,
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só não sabe que sabe. Trata-se do saber-não sabido, outro nome para o
inconsciente.
O ponto nevrálgico desta questão está no fato de que, para Lacan, a natureza
da transferência não é afetiva, romântica, melosa, não está nos sentimentos do
paciente em relação ao analista. Daí, pouco importa se a transferência é positiva ou
negativa, isto é secundário e totalmente imaginário.
A distinção entre transferência imaginária e transferência simbólica introduz
uma precisão conceitual fundamental. Pode-se chamar de transferência imaginária
tudo o que foi relacionado como fenômenos transferenciais, como apaixonar-se pelo
analista, seduzi-lo, admirá-lo ou, ao contrário, criticá-lo, hostilizá-lo. Nada mal se
tudo isto acontece, inclusive porque facilita para o analista conduzir o paciente para
a transferência simbólica.
A transferência simbólica é aquela em que o paciente consegue fazer
associação livre. A etimologia de ‘simbólico’ vem do grego ballein, lançar, dançar. O
simbólico é o que se lança junto, o diabólico é o que separa. O que caracteriza a
associação livre não é o fato de se proferirem palavras, umas depois das outras,
separadamente, mas é o fato de se proferirem palavras, umas por causa das outras,
havendo ilação entre elas. Ao fazer isto, o paciente transfere para o analistaas ligações
que ele articula sobre os fatos de sua vida.
Na transferência imaginária, o paciente vê no analista a mãe que vai cuidar
dele, vai curá-lo, resolver seus problemas, devolver-lhe a felicidade, livrá-lo dos
sintomas. Está em jogo a função materna da completude. Esta transferência
imaginária é o trampolim para se alcançar a transferência simbólica. Como
decorrência do fato de o analista não ter respondido à demanda de completude, o
paciente vai se defrontar com seu desejo, com a falta, com a castração, com afunção
paterna. Aí está a transferência simbólica.
Quando Lacan desconsidera o fator afetivo na estrutura da transferência, está
se baseando em Freud, para quem o afeto não é recalcado no inconsciente. O
recalque atinge o representante dos afetos, as palavras. Logo, é só através das
palavras que podemos acessar o inconsciente, não pelas emoções ou sentimentos.
Freud viu isso muito bem quando estabeleceu a regra da associação livre,
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que é uma maneira de falar da suposição de saber. Quando o analista manda dizer
tudo o que vem à cabeça, o paciente entende que dali deverá surgir um saber. O
paciente só erra ao pensar que o saber vem do analista e não de si mesmo. Portanto,
a suposição de saber está no próprio inconsciente do analisando. E aí está o erro de
pessoa, de que fala Freud.
E a contratransferência? Se este conceito já encontrou pouco interesse em
Freud, muito menos em Lacan, que o considera impróprio. Prefere dizer que a
contratransferência é contra a transferência. Isto não significa que não haja amor e
até paixão na análise. Há e tem que haver.Só que não é amor ou paixão pela pessoa
do paciente, é uma paixão pelo processo analítico, para que a análise funcione da
melhor maneira.
Em vez de contratransferência, Lacan propõe a expressão desejo do
analista. Não se trata de um sinônimo de contratransferência. O conceito de desejo,
em Freud, é um dos mais ricos. Qualé o desejo do analista?
Evidentemente não é um desejo caprichoso de se aproveitar da situação de
fragilidade e dependência do paciente, somada à suposta superioridade do analista,
para seduzir o pacienteem benefício próprio.
Este tipo de desejo subjetivo e contratransferencial, no mau sentido, é
perverso, e é lamentável que tenha ocorrido, mesmo que esporadicamente, na
história da psicanálise. O desejo do analista deve ser escrito com maiúscula, isto é,
um desejo depurado na análise do próprio analista, que vise o bem do paciente e da
análise, não o bem ou qualquer vantagem do analista.
O analista não põe, por princípio, sua subjetividade em jogo na análise.
Ao invés de ser um sujeito, em pé de igualdade com o paciente, numa relação
dual e simétrica,Lacan defende um analista que seja objeto. Mas não é um objeto (de
amor) que vá satisfazer ao paciente, é o chamado objeto a, um objeto inespecífico,
cuja função é ser a causa do desejo do analisando.
A relação analítica não é então intersubjetiva, porque não há dois sujeitos. Há
uma dessimetria entre um sujeito e um objeto. Chamar o analista de objeto é uma
maneira enfática de dizer que ali ele não é sujeito. Como causa do desejo, o desejo
do analista é que a análise prossiga da melhor maneira.
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A metáfora do amor
O que ocorre entre o amante e o amado? O amante é aquele que, sentindo
que algo lhe falta, mesmo sem saber o quê, supõe em outro, o amado, algo que o
completaria. O amado, por sua vez, sentindo-se escolhido, supõe que tem algo a dar,
sem saber bem o quê. Mas, como o amado é também um ser falante e faltante, algo
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também lhe falta, como ao amante. Assim, o que ambos têm a dar é um nada, um
vazio. E aquilo que o amado supõe ter para dar, não é, necessariamente, o que falta
ao amante.
O amante não sabe o que lhe falta, o amado não sabe o que tem, um
nãosaberque é do inconsciente.
A metáfora do amor faz com que o amante, ao escolher o amado, inverta as
posições, o amado tornando-se agora o amante e vice-versa. Assim também o
analista se apresenta como o amante (platônico) que convida o paciente (o amado)
para uma profunda experiência de amor. Ao aceitar, através da transferência, o
paciente assume o lugar do amante, e o analista passa a ser o amado.
Na análise, duas pessoas se encontram, com determinada frequência,
durante meses ou anos, numa sala trancada, onde passam horas a sós, falando do
que há de mais íntimo, pessoal, secreto, sofrido, magoado, triste, esperançoso, feliz,
alegre, todas as fantasias à solta, nenhum risco de julgamento ou censura. Sem
falsas promessas, dizem-se coisas que a ninguém mais é dado ouvir, nem aos pais,
irmãos, parentes, amigos, namorados, amantes, parceiros, colegas; coisas que, se
não fossem ditas ali, nunca mais seriam proferidas pelo resto da vida e, isso, diante
de alguém total e incondicionalmente disponível a escutar, sem limites. Então, não
está aío grande e verdadeiro amor? Aquele que dá o que não tem?
Lacan conclui, em seu texto sobre A direção do tratamento: “Se o amor é dar
o que não se tem, é verdade que o sujeito pode esperar que isso lhe seja dado, uma
vez que o psicanalista nada mais tenha a lhe dar. Mas nem mesmo esse nada ele
lhe dá, e é bom que seja assim: e é por isso que se paga a ele por esse nada, e
generosamente, de preferência, para deixar bem claro que, de outro modo, isso não
valeria grande coisa”.
Voltemos às diferenças entre psicoterapia e psicanálise. Na psicoterapia ocorre
uma relação dual entre paciente e terapeuta. Este ajuda com conselhos, soluções,
exercendo uma função materna, no registro do imaginário ou da completude,
aplicando técnicas, como relaxamento, meditação etc, adequadas a este objetivo.
Perspicaz ao extremo, Freud logo percebeu que não deveria entrar no jogo de
sedução, que não deveria responder simplesmente à demanda histérica, mas instalar
o discurso analítico, dirigir a cura, sem dirigir a consciência do paciente, e levá-lo a
descobrir o desejo inconsciente que subjaz à demanda. Em vez de apresentar um
diagnóstico ou uma explicação, como faziam os médicos, Freud pede ao paciente
para falar mais sobre si mesmo, a fazer associações com o que já foi dito.
Em outras palavras, Freud deixa implícito que, em vez de esperar dele uma
solução, o paciente descobriria em si mesmo, através de seu discurso, um saber que
não era sabido, mas que estava lá, latente. O paciente tinha a suposição de que este
saber estaria no analista. Freud foi humilde ao reconhecer que não possuía um saber
sobre o inconsciente do outro e, assim, abriu a chancepara que a verdade eclodisse.
Este é o único discurso em que o desejo se inscreve. A resposta do analista
ao pedido do histérico é a seguinte: o analista, como causa (ou provocador) do
desejo, a, no lugar do agente, interpela o outro, o paciente, $, pedindo a ele para
associar, colocar em movimento a cadeia significante, S2, transformando o saber em
verdade do sujeito, e conseguindo, como produto, o S1, o significante-mestre que
organiza a cadeia, e com o qual, desde sempre, o sujeito se identifica.
Para Lacan, este é o discurso que inclui a função do fantasma, cuja fórmula é
($ # a), que descreve a relação entre o sujeito e o ‘objeto a’, do sujeito em relação a
todos os objetos do desejo. Agora fica claro o título do Seminário 17, dizendo que o
discurso do mestre é o avesso do discurso analítico.
Em 1972, em conferência realizada em Milão, Lacan sugeriu de se pensar em
um quinto discurso, o discurso capitalista. Sua proposta não provocou grande
interesse entre os analistas, sobretudo tendo em vista que os discursos do histérico e
do analista foram muito bem recebidos,por sua utilidade clínica e teórica.
Derivado do discurso do Mestre, o discurso do capitalista substitui, no lugar do
agente, o S1 pelo $. Sem entrar em mais detalhes, o que ocorre neste discurso é
uma dessubjetivação, no sentido de que o sujeito praticamente se identifica com os
objetos de consumo. O ser perde importância diante do ter. O sujeito, manipulado
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REFERÊNCIAS
Ferreira, Fernanda P. “Poderia me dizer, por favor, que caminho devo tomar
para sair daqui? Rio de Janeiro, Tese de Mestrado na PUC, 2003, inédito. Freud,
Sigmund. A interpretação de sonhos. ESB, Vols. IV e V. Rio de Janeiro,Imago, 1972.
Freud, Sigmund. A psicopatologia da vida cotidiana. ESB. Vol. VI. Rio de Janeiro,
Imago, 1976.
Freud, Sigmund. Os chistes e sua relação com o inconsciente. ESB, vol. VIII. Rio de
Janeiro, Imago, 1977.
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Janeiro, 1974.
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Freud, Sigmund. Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise.
ESB. vol.XII, Rio de Janeiro, Imago, 1969.
Freud, Sigmund. Observações sobre o amor transferencial. ESB. vol.XII, Rio de
Janeiro, 1969.
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Lacan, Jacques. A direção do tratamento e os princípios de seu poder.
Escritos, Rio de Janeiro, Zahar, 1998.
Lacan, Jacques. A relação de objeto. Livro IV. Rio de Janeiro, Jorge Zahar,1995.
Lacan, Jacques. A ética da Psicanálise. Livro 7. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1988.
Lacan, Jacques. Os quatro conceitos fundamentais da Psicanálise. Livro 11, Rio de
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Lacan, Jacques. A transferência. Livro 8. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1992. Platão.
O Banquete. Rio de Janeiro, Tecnoprint S.A,, sem data.
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