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Sobre a diferença entre autoilusão “normal” e “patológica”

Quando nos voltamos para a autoilusão, temos a escolha de perseguir ou


bem a questão de saber como é possível iludir a si mesmo e se deixar ao mesmo
tempo iludir por si mesmo, ou bem perguntar, contudo, por que nós seres humanos
tendemos a fugir para o interior da autoilusão e o que buscamos aí. O que me
interessa aqui é esse último elemento. Ao mesmo tempo, porém, me parece uma
abordagem por demais superficial, quando se fala “da” autoilusão, como se toda e
qualquer autoilusão se confundisse com todas as outras, sendo justamente uma
“autoilusão”. Guiada por reflexões próprias à filosofia da existência, coloco aqui
em jogo, por isso, dois tipos fundamentalmente diversos de autoilusão e
pressuponho que nós sempre nos evadimos em direção a uma ou a outra autoilusão
e que nós buscamos aí sempre a cada vez algo diverso. Eu designo um tipo de
autoilusão “normal”, assim como o outro “patológico”, me baseando aí na
linguagem corrente. Como “normal”, eu designo aquela autoilusão que é
universalmente difundida e, por isso, também não chama a atenção como
autoilusão; como “patológica”, em contrapartida, aquela autoilusão, que só tem
como ser encontrada junto aos seres humanos singulares, e, por isso, chama a
atenção do entorno como “doentia” ou como “patológica”1.
Afirmar que também há uma autoilusão “normal” é algo que só muito
dificilmente levará alguém a buscar uma contradição, na medida em que há
consenso quanto ao fato de que ninguém pode saber ou pretender saber toda a
verdade sobre si mesmo. Caso se pergunte, então, o que se imagina correntemente
por uma autoilusão “normal”, rapidamente se mostra que, com isso, só se tem em
vista uma forma simples de autoilusão “patológica”, que, com base em sua extensão
mínima, não afeta o funcionamento da vida cotidiana “normal e média”. De acordo
com essa concepção corrente, portanto, a dimensão puramente quantitativa decide
se o mesmo tipo de autoilusão ainda aparece como “normal” ou precisa ser
considerado como “patológico”. Sigmund Freud pode se apresentar como uma
testemunha dessa concepção. Ele designa o ser humano saudável como um
neurótico “virtual”, porque o sonho parece “ser o único sintoma”, “que ele
precisaria ser capaz de formar”, a fim de, então, ainda reconhecer: “Caso se submeta

1
Eu coloco os adjetivos “normal” e “patológico” entre aspas para indicar que, com esse emprego, também
estou interpelando uma outra diferença, que pretendo clarificar acima de tudo na presente conferência.
a sua vida em vigília a uma prova mais aguda, se descobre naturalmente (...) que
essa vida supostamente saudável é atravessada por uma grande quantidade de
formações sintomáticas iníquas, praticamente insignificantes”2.
Uma vez que eu parto do fato de que a autoilusão “normal” e a “patológica”
são qualitativamente diversas, impõe-se a questão sobre em que consiste a diferença
com a qual se ligam, então, as outras questões de saber se elas perseguem a mesma
intenção ou se as intenções já diferem, e sob que condições qual das duas
autoilusões é preferida.
O ponto de partida é formado pela autoilusão “normal”, que, como veio à
tona imediatamente, não é apenas normal no sentido de que ele é universalmente
difundido, mas no sentido mais fundamental de que ele possibilita em geral
“normalidade” e a protege ao mesmo tempo da irrupção de experiências que
seduzem na maioria das vezes a buscar uma fuga para a autoilusão “patológica”.

I. A autoilusão “normal” na visão filosófico-existencial

I. 1. A autoilusão “normal” como ilusão quanto ao próprio ser-humano

Somente sobre o solo da filosofia da existência é que se torna possível


distinguir entre a ilusão e relação a si mesmo como esta pessoa individual XY e
aquela ilusão sobre si mesmo como ser humano. Isso porque essa filosofia expôs a
ambiguidade da relação humana consigo mesmo, a saber, tanto uma relação ôntica
consigo como este indivíduo concreto quanto a relação ontológica consigo como
ser um ser humano. “Autoilusão”, por isso, sempre pode se ligar a si mesmo como
esse indivíduo ou, contudo, como o próprio ser (humano). Por um lado, eu me iludo
sobre as capacidades concretas próprias ou sobre a qualidade e relevância fática de
minhas realizações ou mesmo quanto ao modo como eu sou avaliado por outros;
por outro lado, eu me iludo em relação àquelas condições fundamentais ontológicas,
às quais minha vida se encontra submetida enquanto vida humana, em relação à
conditio humana.
Logo que se expõe essa diferença, fica claro que a autoilusão é equiparada
na maioria das vezes e mesmo em Freud com a autoilusão “ôntica”. Somente se se
acrescenta o conhecimento da filosofia da existência ao fato de que o ser humano
não está de maneira alguma simplesmente cego para as condições fundamentais do

2
S. Freud (1917), Preleções para a introdução à psicanálise, Obra reunida, vol. XI, p. 475.
ser humano, mas se se comporta em relação a essas condições sempre de algum
modo, então vem à tona o problema da autoilusão ontológica ou da “ilusão com o
ser”. Apesar de se tratar, portanto, nos dois casos de uma autoilusão, essa autoilusão
tem sempre a cada vez um outro conteúdo.
Quanto a isso, um exemplo breve, que se refere ao fato de que nós não
estamos simplesmente submetidos enquanto seres humanos à lei do tempo, mas
temos uma relação com isso. Na medida em que essa relação é ambígua, nós
também podemos nos iludir de uma maneira dupla em relação ao nosso ser
temporal. Trata-se de autoilusão ôntica, quando eu me iludo em relação à minha
própria idade, me arrogo ser mais jovem do que de fato sou, e, com isso, sou da
opinião de que hoje ainda estariam à minha disposição todas aquelas possibilidades
e chances, que um dia tive, quando ainda era jovem; uma autoilusão ontológica, em
contrapartida, tem lugar, quando eu estou firmemente convencido de eu mesmo não
estar submetido à lei do tempo, ou seja, não habitar um corpo perecível e, assim,
também não precisar morrer.
Esse exemplo deixa, além disso, claro o fato de que nem toda autoilusão
ontológica merece ser de algum modo denominado com o atributo “normal”. A
convicção de não estar submetido à lei do tempo não apenas não ocorre de maneira
rara, mas também não é compatível com uma vida cotidiana “normal”. Retém-se,
em verdade, nesse caso o fato de que a autoilusão designada por mim como
“normal” tem sempre um conteúdo ontológico, sendo que isso não significa,
contudo, que, inversamente, autoilusões ontológicas também podem ser
consideradas per se como “normais”.

I.2. O esquecimento “normal” da verdade ontológica

Em ligação com o exemplo acima impõe-se agora a questão de saber “como


uma autoilusão ontológica ‘normal’ funciona em comparação com uma
‘patológica’. A primeira resposta provisória é: como um mero esquecimento. Há
um bom exemplo disso na correspondência entre Freud e Binswanger. Ao ser
comunicado por carta por Ludwig Binswanger de que esse teria precisado se
submeter a uma operação por conta de um tumor nos testículos, Freud reage com a
seguinte sentença: “O senhor foi apenas relembrado de uma maneira mais
chamativa da insegurança, na qual todos nós pairamos e de quem tão prontamente
nos esquecemos”3.
Freud distingue aqui que tinha afetado seu jovem colega Binswanger e
aquilo que concerne a todos nós durante toda a nossa vida, a saber, pairar
constantemente em perigo de adoecer pesadamente, porque nosso corpo é por
princípio suscetível às doenças. Quanto a esse fato, em dias saudáveis, nós estamos
por demais dispostos a esquecer dele. Na terminologia filosófico-existencial trata-
se aí de um fato ontológico de nossa suscetibilidade fundamental à doença e de
nossa vulnerabilidade fundamental, das quais não temos como escapar.
Pode parecer espantoso à primeira vista que justamente Freud, alguém que
se posiciona de resto fortemente contra o esquecimento e em favor da lembrança,
considere esse esquecimento justificado, apesar de nós fecharmos os olhos, com
isso, para uma verdade que nos concerne de maneira central. É assim que isso se
encontra formulado em uma das cartas seguintes a Binswanger, que se refere uma
vez mais ao seu adoecimento: “O senhor tem razão ao se abstrair assim da incerteza
que paira ainda sobre o senhor como nós, levianos, o fazemos todos com as nossas
incertezas ”4. Freud pode considerar esse esquecimento legítimo, porque ele é de
um tipo completamente diverso do “recalque”. Em verdade, ele serve da mesma
forma à descarga psíquica, mas os pontos em comum param por aí5. Por isso, a
“leviandade” manifesta nesse esquecimento não é nenhuma falha que devêssemos
superar.
Para irmos agora ao encontro da questão de saber por que nós chegamos
mesmo a precisar de tal leviandade, nós precisamos mudar de Freud para
Heidegger. Em sua obra capital de juventude Ser e tempo, Heidegger expôs o
esquecimento que aqui nos interessa como o modo predominante de nossa
autorrelação e postulou que o esquecimento seria o modo “cotidiano” de nos
comportarmos em relação ao nosso ser (humano). Ele não deixa aí tampouco
qualquer dúvida quanto ao fato de que um cotidiano “normal” só pode funcionar

3
Carta de 14 de abril de 1912, in: G. Fichtner (org.), Sigmund Freud – Ludwig Binswanger: Briefwechsel
1908-1938, Frankfurt junto ao Main: Fischer 1992, p. 95.
4
Carta de 16 de dezembro de 1912, idem, p. 119.
5
O recalque diz respeito em Freud em primeiro lugar aos desejos e não aos fatos; em segundo lugar, o
“recalcado” no sentido rigoroso (dinâmico) se torna “inconsciente”, enquanto as condições ontológicas
esquecidas são a qualquer momento uma vez mais lembráveis e, portanto, no sentido de Freud, sempre
apenas “pré-conscientes”; em terceiro lugar, o recalque tem na maioria das vezes consequências
patológicas, porque os desejos recalcados retornam sob a forma de sintomas neuróticos, enquanto o
esquecimento de fatos ontológicos (angustiantes) só trazem descarga.
graças a esse esquecimento: “Para poder se encaminhar em efetivamente ‘perdido’
para o mundo utensiliar e manusear, o si mesmo precisa se esquecer de si”6. Essa
sentença não pode ser lida, como se se precisasse esquecer quem se é
concretamente7. Ao contrário, para permanecer no exemplo de Binswanger, é
preciso poder esquecer em dias saudáveis que se pode ser afetado a qualquer
momento por um adoecimento pesado, para que se tenha a “leviandade”, para poder
planejar o futuro. É preciso que se possa viver, como se não houvesse a ameaça
ontológica, que paira sobre nós, para que se possa se dedicar efetivamente às tarefas
que concretamente se apresentam.
Para Heidegger, pelo puro fato de que o ser humano, ao invés de estar
submetido cegamente à conditio humana, ter uma relação com essa condição pesa
sobre ele como uma “carga ontológica”, da qual ele precisa se descarregar por meio
do esquecimento, para poder subsistir no cotidiano. O esquecimento, portanto, não
é um processo “normal” apenas porque ele é praticado por quase todos, mas também
porque o funcionamento de um cotidiano “normal” depende disso. Com certeza,
reside também em todo esquecimento uma autoilusão ontológica. Ela é certamente
de um outro tipo, diferente daquele que mencionamos acima. Tomando o exemplo
da própria temporalidade: faz uma grande diferença, se apenas se esquece no
cotidiano que se é perecível e, portanto, também suscetível à doença, ou se se nega
ativamente a própria perecibilidade ativamente, arrogando-se imortal. No
esquecimento, nós só negamos o fato da própria temporalidade e caducidade
passivamente; e apenas porque a lembrança disso traria consigo uma sobrecarga
desnecessária para o nosso cotidiano. Pode-se até mesmo dizer que esse
esquecimento, graças à descarga que é alcançada por meio daí, nos torna livres para
nos preocuparmos com aquilo que concretamente se encontra diante de nós.

I.3. O esquecimento “normal” como um obscurecimento da “inclusão”


ontológica

O significado do esquecimento “normal” só pode ficar claro, se se coloca


diante dos olhos o fato de que não se precisa de maneira alguma de um evento grave
(como o pesado adoecimento no caso de Binswanger), para nos lembrarmos de

6
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), Tübingen: Max Niemeyer, 18a edição 2001, p. 354.
7
Nesse caso, tratar-se-ia de um autoesquecimento ontológico, que viria à tona, quando alguém se deixasse
aprisionar a tal ponto em uma ligação ôntica com uma coisa ou com um ser humano, que se imergisse
completamente nela, esquecendo-se de si aí.
nossa situação ontológica fundamental. Nesse caso, nós somos apenas lembrados,
como diz Freud, de uma maneira mais chamativa. Alguns exemplos devem mostrar,
que mesmo ocorrências completamente cotidianas são suficientes para tanto,
porque aquilo que elas nos dizem é sempre ambíguo em termos ônticos e
ontológicos. O olhar para o relógio: nós olhamos, em verdade, para o relógio,
porque queremos saber exatamente que horas são agora, mas nós também somos aí
inevitavelmente lembrados de que o tempo progride ininterruptamente e que nós
mesmos estamos submetidos ao tempo, sendo, portanto, finitos; o sentimento de
fome: ele desperta em nós, com efeito, na maioria das vezes, o desejo imediato de
comer algo, mas ele nos lembra ao mesmo tempo do fato de que nós dependemos
de comida para a nossa sobrevivência corporal e que também somos dependentes
durante toda a nossa vida de um mundo incalculável; o convite para uma festa de
aniversário: ele exige de nós de saída que apenas nos decidamos, se nós o queremos
aceitar ou recusar, sempre de acordo com o nosso gosto e com a nossa possibilidade
– de qualquer forma, porém, ele nos lembra também ao mesmo tempo que nós
nunca podemos ter certeza no momento de uma decisão se nós nos arrependeremos
dela mais tarde, e que em última instância somos sempre nós mesmos que
precisamos assumir a responsabilidade por nossa decisão; o encontro casual com
um conhecido na rua leva concretamente apenas a que acenemos para ele ou que o
cumprimentos de maneira breve, ao mesmo tempo, contudo, nós também nos
lembramos desse encontro fugaz de que nós somos por princípio visíveis para
outros e de que nossa vida também transcorre por isso à vista de outros seres
humanos, sem que saibamos, para não falarmos de determinarmos, como eles nos
veem e nos julgam.
Para as nossas reflexões sobre o significado da autoilusão ontológica é
decisivo o fato de que são as ocorrências cotidianas mesmas, que nos lembram da
conditio humana e, com isso, nos obrigam a nos comportarmos de algum modo em
relação a ela. Com isso, a cisão corrente entre um “seguir vivendo natural” (Husserl)
e uma reflexão (filosófica) sobre o próprio ser-humano é suspensa ou desvelada.
Em uma passagem, Heidegger emprega para tanto a imagem pertinente da
“inclusão” ontológica no ôntico8. Nisso não ganha voz apenas o fato de que o ôntico

8
Formulado de maneira exata, o que temos lá é: “Toda compreensão ôntica tem suas ‘inclusões’ ainda que
apenas pré-ontológicas, ou seja, não concebidas de maneira teórico-temática”; in: Martin Heidegger, Ser e
tempo, op. Cit., p. 312.
mesmo remete para o ontológico, mas também que ele permanece na maioria das
vezes inserido aí, porque é ultrapassado em favor do ôntico.

I.4. O esquecimento da inclusão ontológica como fuga ante a angústia

Até agora acentuamos o fato de que a inclusão ontológica no ôntico precisa


ser esquecida, para que um cotidiano “normal”, livre de um peso ontológico possa
ocorrer. Nesse caso, parecia inquestionável, que isso que é necessário também
acontece de maneira exitosa. Agora, porém, é mais do que tempo de se perguntar
uma vez com espanto como é se chega, afinal, à situação em que o esquecimento
(ontológico) e não a lembrança ôntica determine nosso cotidiano, uma vez que tudo
no cotidiano nos apresenta sempre também uma inclusão ontológica, que poderia a
qualquer momento atrair para si a nossa atenção. O que faz com que nós nos
abstraiamos na maioria das vezes disso e nos foquemos de maneira unidimensional
no ôntico? É natural supor que, no caso do autoesquecimento dominante no
cotidiano, não se trata de um estado, que é algum dia alcançado e, então, possibilita
um cotidiano desonerado em termos ontológicos, mas de um processo constante no
qual se procura evitar aquilo que sempre se mostra como ameaçador. É preciso
imaginar, portanto, o autoesquecimento cotidiano dinamicamente como um
movimento constante de fuga. O fato de ele ter na maioria das vezes sucesso é algo
que, portanto, não se compreende por si mesmo. E é, além disso, de se supor que
esse esquecimento requisite um dispêndio psíquico, que nós temos que produzir
constantemente, ainda que isso aconteça de maneira imperceptível.
Essa suposição intensifica-se, quando nós colocamos diante de nossos
olhos, com base nos exemplos já dados, o conteúdo peculiar da inclusão ontológica.
Na carta para Binswanger, Freud alude ao fato de que todos estamos
constantemente sob a ameaça de adoecermos de maneira a colocar em risco nossas
vidas; o olhar para o relógio nos lembra de que nós seres humanos nos encontramos
inexoravelmente sob a lei do tempo; o sentimento de fome nos lembra de que nós,
enquanto seres carentes, somos dependentes de um mundo às últimas
consequências indiferente; o convite nos lembra de que nós sempre precisamos nos
decidir, antes de podermos saber se uma coisa ou outra seria melhor para nós; o
encontro casual com um conhecimento nos lembra de que nós temos de conduzir
nossa vida nolens volens sob o olhar e o juízo de outros. – O “fato de que” é, por
isso, a cada vez escrito em itálico, porque ganha voz aí ao que a inclusão ontológica
faz referência, a saber, à conditio humana em sua pura “facticidade”: o fato de que
nossa vida se encontra submetida a essas condições ontológicas fundamentais e
nenhuma outra, o fato de que essas condições são inalienáveis e de que nós não
podemos escapar delas durante toda a nossa vida.
Se, então, essa lembrança ontológica é comparada com as lembranças
ônticas, então uma diferença importante vem à tona. Nós nos lembramos, em
verdade, com frequência também de fatos ônticos como, por exemplo, o fato de que
hoje é meu aniversário, de que amanhã é o dia da morte de meu pai ou do jubileu
do início da 1ª Guerra Mundial, de que meu amigo já está desempregado há mais
tempo etc. Todavia, tais fatos concretos têm para nós sempre um significado
determinado, e os sentimentos que estão ligados com esses fatos emergem do
significado que eles têm para nós. Assim, nós nos alegramos com o nosso
aniversário, quando ele é para nós um evento feliz. Fatos ônticos, além disso, estão
sempre articulados com outros fatos, o que faz com que nós raramente nos
lembremos de um mero fato, mas antes na maioria das vezes de toda uma história,
à qual esse fato pertence. No caso dos fatos ontológicos acima mencionados, porém,
as coisas são completamente diversas. Se nós nos lembrarmos deles, então a
lembrança se dá apenas em sua pura factualidade: o fato de nós vivermos em um
corpo físico por princípio suscetível de adoecimento ou o fato de todas as nossas
decisões serem falíveis e de nós não podermos alterar isso em nada. Tais lembranças
não remetem a outras lembranças, elas não se inserem em nenhuma história, sim,
elas não têm nem mesmo o caráter de apelo, tal como conhecemos a partir do
“memento moriendum esse” romano ou do “memento mori” cristão-medieval. Em
suma: lembranças ontológicas nos confrontam sempre apenas com o fato de que
nossa vida está submetida a determinadas condições ontológicas fundamentais
inalteráveis e elas nos deixam por isso tão sozinhos quanto perplexos diante delas.
Ninguém elaborou tão claramente quanto Heidegger a diferença entre uma
lembrança narrativa e uma lembrança do próprio ser em sua pura facticidade – com
certeza, sob outras categorias diretrizes. O lembrar narrativo cai nele sob a categoria
ou o existencial da “compreensão”, enquanto o lembrar da conditio humana em sua
facticidade nua e crua, em contrapartida, cai sob o existencial da “disposição” ou
da “afinação”. Com isso, Heidegger desmente a suposição da metafísica tradicional,
segundo a qual o próprio ser só se tornaria acessível ou bem em um pensamento ou
na pura intuição. Para a imagem de ser humano própria à filosofia da existência e,
portanto, também para a compreensão própria à filosofia da existência da
autoilusão, o decisivo é que aqui se atribui às tonalidades afetivas um significado
completamente novo. Novo é o fato de que se concede a elas algo assim como uma
força própria de conhecimento. Se a metafísica tradicional estava simplesmente
pronta a admitir no caso das tonalidades afetivas uma certa influência sobre a
“compreensão” (sobre o pensamento e a intuição), tendencialmente antes negada,
uma vez que produtora de impurezas, então lhes é conferida agora uma posição
hierárquica cooriginária de mesmo nível ao lado do compreender, posição essa que
se revela mesmo a partir de uma consideração exata, como um primado.
Portanto, o compreender e o ser afinado se encontram um em face do outro
como dois modos de acesso ao próprio ser9. E, com isso, coloca-se agora uma
questão, para a qual até agora não estávamos de maneia alguma atentos: que modo
de acesso pertence à lembrança da inclusão ontológica, a compreensão ou a
tonalidade afetiva? A resposta a essa pergunta não é difícil, na medida em que o
compreender não pode estar em questão, porque ele se movimenta por definição na
dimensão de sentido e significado. Quando quer que nós nos aproximemos de nosso
próprio ser compreensivamente, nós inserimos o ser na dimensão do sentido e
perguntamos que sentido ele tem ou em que reside seu verdadeiro sentido, que se
acha possivelmente velado por detrás das dissimulações e encobrimentos. Para o
compreender, portanto, o ser é sempre apenas apreensível como um sentido
(qualquer), razão pela qual o ser enquanto um “fato de que” desprovido de sentido
cai inexoravelmente sob o domínio do que é alijado e deixado de lado.
O fato de a disposição nos descerrar o nosso próprio ser de maneira mais
originária do que a compreensão é algo que Heidegger aprendeu com Kierkegaard,
ainda que ele não diga isso expressamente. Em contrapartida, Heidegger deixa claro
pela primeira vez porque há entre o descerramento compreensivo do próprio ser e
seu descerramento emocional um fosso intransponível. “Desconsideraria
completamente em termos fenomênicos aquilo que a tonalidade afetiva descerra e
como ela o descerra, caso se quisesse juntar com o descerrado aquilo que o ser-aí
afinal ‘ao mesmo tempo’ conhece, sabe e acredita. Mesmo se o ser-aí estiver
‘seguro’ na crença de seu ‘para onde’ ou achar que sabe o ‘de onde’ em meio a um
esclarecimento racional, tudo isso não institui nada contra o estado de fato

9
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), op. cit., p. 133: “Os dois modos cooriginários constitutivos de
ser o aí são vistos por nós na disposição e no compreender”.
fenomenal de que a tonalidade afetiva traz o ser-aí para diante do puro fato de que
de seu aí, como o qual ele o considera com olhos vidrados em sua enigmaticidade
inexorável”10.
Importante, portanto, é que a tonalidade afetiva e a compreensão não
descerram sempre a cada vez algo completamente diferente: uma vez o “fato de que
de seu aí”, outra vez seu “para onde e de onde”, mas o fato de que os dois não
coincidem. Enquanto nós somos interpelados na tonalidade afetiva por aquela
verdade sobre o próprio ser, que permanece enigmático e, portanto, estranho
enquanto um puro “fato de que”, o próprio ser é para a compreensão desde o
princípio de algum modo articulado pelo sentido, se deixando, por isso, se tornar
familiar por intermédio do compreender. Essa familiaridade imanente ao
compreender em sua força e amplitude ilimitadas se comprova em face da
capacidade das tonalidades afetivas para nos trazer para diante do fato de que
desprovido de sentido do próprio ser, como excessivo e como uma ilusão. Nós
retornaremos uma vez mais a esse momento ilusório em toda compreensão na
terceira parte, porque ele forma aquele segundo esteio de sustentação da autoilusão
“normal”, que ainda não consideramos até aqui.
Aqui, nós permaneceremos junto ao primeiro esteio da autoilusão “normal”,
no esquecimento do próprio ser, para, então, concretizar o fato de que o
esquecimento aqui relevante diz respeito justamente àquilo que só as tonalidades
afetivas em geral descerram: o ser em sua pura facticidade. O que precisa ser
constantemente esquecido no cotidiano é, sim, a inclusão ontológica nas
ocorrências cotidianas concretas, e essa inclusão lembra sempre apenas, como os
exemplos mostraram, do “fato de que” dos estados de fato fundamentais do próprio
ser-humano. Lembrar-se disso, na medida em que alguém se abre para a inclusão
ontológica, significa, então, contudo, se expor a uma experiência puramente
emocional. A “lembrança” do próprio ser, portanto, é de um tipo completamente
diferente das lembranças ônticas concretas usuais da própria história, para a qual se
tem palavras e a qual se pode contar aos outros. Aqui, não há nada a contar, porque
não há nada a compreender.
Agora fica claro porque o cotidiano “normal” depende do esquecimento da
inclusão ontológica: o esquecimento não protege o cotidiano das questões

10
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), op. Cit., p. 136; itálico meu.
existenciárias que concernem ao sentido do próprio ser-humano, mas de uma
experiência emocional, que não é apreensível, dizível, narrável enquanto tal.
Quando alguém se lembra no cotidiano de questões existenciárias que o tocam, isso
pode sobrecarregar seu cotidiano, mas também pode enriquecê-lo e aprofundá-lo.
Quem, em contrapartida, é afetado no cotidiano pela experiência puramente
emocional do próprio ser em seu fato de que nu e cru se acha em uma situação
completamente diversa. Pois quem se abre para a inclusão ontológica experimenta
“angústia”. A fuga em direção ao esquecimento sempre é, por isso, fuga ante a
angústia.
Por “angústia” tem-se em vista aqui aquela experiência emocional
fundamental descoberta por Kierkegaard11, que não tem quase nada em comum com
aquele sentimento que nós designamos na linguagem corrente como angústia e que
na maioria das vezes se equipara ao temor12. Ao mesmo tempo, é praticamente
impossível querer descrever essa experiência emocional particular, uma vez que ela
descerra aquilo que se subtrai a toda compreensão e para o que, por isso, também
não se encontram à disposição quaisquer palavras adequadas. Assim, jamais pode
se dar algo diverso do fato de que quem quer que venha a ser exposto a essa
experiência é jogado para fora do caminho e perde a orientação. Um cotidiano
“normal”, portanto, só pode funcionar para aquele cuja fuga ante a “angústia” tem
êxito em meio ao esquecimento.

II. A “escuta aguçada” como adversária da fuga “normal” em direção ao


esquecimento do próprio ser

II. 1. A escuta aguçada e o sofrimento com a angústia

Eu designo como marcados por uma “escuta aguçada” aqueles seres


humanos, que “escutam” no cotidiano a inclusão ontológica no ôntico, ao invés de
obscurecerem essa inclusão como seria “normal”. Eu coloco o “ouvir” entre aspas,
porque não se trata aí de um ouvido no sentido mais restrito, mas de uma

11
S. Kierkegaard (1844), Der Begriff Angst (O conceito de angústia), Stuttgart: Reclam, 2003.
12
Na linguagem corrente, os conceitos de angústia e de temor são ou bem usados como sinônimos ou bem
subordinados aos sentimentos dirigidos intencionalmente a um objeto (temer ante algo, alegrar-se em
relação a algo etc.), enquanto a angústia, em contrapartida, é atribuída às atmosferas desprovidas de objeto,
que imergem tudo em uma determinada luz (estou amedrontado; estou feliz etc.). Com isso, porém, não se
apreende de maneira alguma a angústia no sentido de Kierkegaard, mas simplesmente a tonalidade afetiva
que corresponde ao sentimento do temor de uma temerosidade geral ou de um pânico.
experiência emocional13. Essa experiência é por um lado de um tipo filosófico, uma
vez que ela trata do próprio ser-humano; por outro, essa experiência é per se
verdadeira, na medida em que ela se encontra em uma posição anterior a toda e
qualquer ilusão possível e mesmo à intenção de ilusão.
Quem possui uma escuta aguçada, portanto, está exposto a uma experiência
da qual se está protegido normalmente graças ao esquecimento da inclusão
ontológica. E porque aquele que possui a escuta aguçada não é confrontado apenas
por meio de eventos ônticos graves (tais como, por exemplo, Binswanger por causa
de seu pesado adoecimento corporal) com fatos ontológicos fundamentais, mas já
em meio a coisas e eventos cotidianos inofensivos, a realização cotidiana de sua
vida não pode mais se movimentar em vias normais. Ter uma escuta aguçada é, por
isso, um dom profundamente ambíguo. Por um lado, trata-se aí de fato de um “dom
particular”, que distingue aquele que possui a escuta aguçada ante os seres humanos
medianos “normais”14. Por outro lado, esse dom tem um preço elevado, justamente
porque com isso a angústia irrompe no cotidiano. Compreende-se mal o fenômeno
da escuta aguçada, caso se acredite que aquele que possui tal escuta se encontra sob
o domínio de questões existenciárias acerca do sentido e do fundamento da vida.
Aquele que possui a escuta aguçada não se ocupa com questões existenciárias, mas
se encontra sob o domínio da “angústia”. A angústia, em verdade, diferentemente
do medo, tem um conteúdo inteiramente filosófico. Esse conteúdo, porém, como
deixa claro na citação introduzida acima, se acha separado por meio de um fosso
intransponível daquele que ganha voz nas questões “derradeiras” acerca do para
onde e do de onde do ser humano.
Em outro lugar, eu fundamentei as razões pelas quais a “angústia”
descoberta por Kierkegaard, quando ela se abate involuntariamente e quando o
caminho de fuga em direção ao esquecimento renovado permanece bloqueado,
possui um efeito traumatizante15. Quem tem uma escuta aguçada para a inclusão
ontológica no ôntico, portanto, está involuntariamente aberto para uma experiência,

13
Espero que seja supérfluo notar que essa “escuta aguçada” não tem nada em comum com um talento
qualquer por assim dizer sobrenatural, que supostamente viabilizaria, de acordo com uma concepção
esotérica, determinados seres humanos a ouvir mensagens do “além” ou coisas do gênero.
14
Joachim Küchenhoff emprega essa expressão in: Versuch uber die Hellhörigkeit (Ensaio sobre a escuta
aguçada), em: Sonderheft des Bulletins der GAD sobre o 70º aniversário de A. H. (2013), pp. 43-48.
15
Sobre a qualidade traumática da angústia, ver: A. Holzhey-Kunz, Angústia enquanto experiência
filosófica e enquanto sintoma patológico, in: Stefano Micali, Thomas Fuchs (org.): Angst. Philosophische,
psychopathologische und psychoanalytische Zugänge (Angústia. Acessos filosóficos, psicopatológicos e
psicanalíticos), coleção da DGAP, Freiburg/Munique: Alber 2016, pp. 98-123; p. 105esegs.
que não é apenas traumatizante para ele, mas que se lançaria para a maioria de nós
para além da medida do suportável e, com isso, do psiquicamente metabolizável.
Quem tem uma escuta aguçada “tem”, com isso, angústia no sentido de que ele
sofre com ela como uma experiência traumática.
O que significa agora, porém, sofrer de angústia – nós não encontramos para
tanto nenhuma elucidação da filosofia da existência, porque já Kierkegaard tanto
quanto Heidegger e Sartre parte do fato de que ou bem se consegue fugir da angústia
(em direção à “idiotia” em Kierkegaard, ao “esquecimento de si” e ao “impessoal”
em Heidegger, à “má fé” em Sartre), ou bem, contudo, se é capaz e se está ao mesmo
tempo pronto para se colocar diante dela e sustentá-la. Aquele que possui a escuta
aguçada não se adequa a esse esquema “ou-ou”, porque o que é característico para
ele é estar involuntariamente exposto à angústia, da qual ele só padece, por isso,
como um negativo. Assim, em todo e qualquer sofrimento há um não ao sofrimento
sob a figura do desejo de suspensão do estado de sofrimento. Isso também é válido
para o sofrimento com a angústia. Esse desejo torna-se, então, o motor da fuga na
direção daquela outra autoilusão “patológica”, que se funda na escuta aguçada.
Em conclusão, sublinhemos uma vez mais que a “escuta aguçada” não pode
ser considerada nela mesma nem como uma falta nem enquanto tal como um
sintoma do sofrimento psíquico. A escuta aguçada antecede ao sofrimento psíquico,
encontrando-se à sua base. Não é, portanto, o “adoecimento” psíquico que torna a
escuta aguçada, mas, ao contrário, a escuta aguçada que na maioria das vezes leva
a uma luta inglória contra a angústia ou contra aquilo que é experimentado nela.
Essa luta manifesta-se como “perturbação” patológica do cotidiano normal, porque
ela é combatida no cotidiano com meios cotidianos junto a todos os estados de coisa
cotidianos.
Colocar a escuta aguçada no início do sofrimento psíquico é sem dúvida
alguma incomum, uma vez que isso não apenas contradiz a concepção médica, mas
também a psicanalítica, que partem as duas de uma falha e só debatem de que tipo
de falha se trata, quando essa falha evoca sofrimento psíquico: ou bem um déficit
neurobiológico ou bem um trauma psíquico sofrido na infância ou uma estrutura de
defesa psíquica patogênica adquirida na infância etc. Logo que se faz valer contra
isso, porém, uma escuta aguçada, estabelece-se inversamente um menos com vistas
a um excesso sobrecarregador em termos de abertura. Mesmo que as consequências
sejam as mesmas, o sofrimento psíquico aparece com isso em um outro contexto e
conquista por meio daí um significado transformado.

II.2. O sofrimento com a angústia como fuga em direção à autoilusão


“patológica”

A peculiaridade da autoilusão “patológica” emerge da escuta aguçada. Nós


vimos que a escuta aguçada por assim dizer sabe demais, para poder se assentar
sobre a autoilusão “normal”. Quem tem uma escuta aguçada sofre invariavelmente
com a angústia. E mesmo esse sofrimento porta em si – como todo e qualquer
sofrimento – o desejo de um fim do estado de sofrimento. Todavia, aquele que tem
a escuta aguçada, não teria tal escuta se ele só quisesse se livrar da angústia
enquanto um sentimento subjetivo difícil de suportar. Ele sabe intuitivamente que
o que constitui a angústia determina a própria vida, mesmo quando se anestesia o
sentimento subjetivo da angústia. Por isso, ele sabe que seu sofrimento com a
angústia só tem um fim, caso ele consiga alterar a tal ponto o que constitui a
angústia, que não se ofereça mais nenhuma razão para a angústia.
Considerado em termos racionais, esse desejo é irrealizável, uma vez que
não há nenhuma chance de tornar disponível para a incorporação própria per se
condições fundamentais ontológicas indisponíveis. Todavia, é possível mostrar a
partir do modo como aquele que possui a escuta aguçada lida com aquilo que o
angustia, que ele se deixa guiar, ou melhor, seduzir aí justamente por esse desejo
impossível.
É possível, com efeito, se perguntar com espanto por que aquele que possui
a escuta aguçada também não permanece com tal escuta em relação a isso,
vislumbrando o caráter inútil de seu empenho. Por um lado, responsável por isso
pode ser a particular pressão do sofrimento, sob a qual aquele que possui a escuta
aguçada se encontra. Essa pressão não é apenas grande, porque ser exposto à
angústia não é senão muito dificilmente suportável, mas também de um tipo
especial, porque se está sozinho com o sofrimento junto à angústia, isolado de todos
aqueles que não conhecem a angústia graças à fuga em direção ao esquecimento
“normal” e também querem evitar de modo reflexo uma confrontação com a
angústia. Essa solidão daquele que possui a escuta aguçada faz com que seu
sofrimento não seja comparável com um sofrimento ôntico com perigos, privações
ou perdas concretas, porque tudo isso é comunicável e normalmente também se
busca sair da indigência através de caminhos que são percorríveis conjuntamente.
Em contrapartida, quem está sozinho com um sofrimento que permanece
enigmático para si mesmo, logo cai na tentação de confundir desejo e realidade
efetiva.
Todavia, não é só a pressão do sofrimento condicionado pela angústia que
seduz aquele que possui a escuta aguçada a seguir um desejo impossível, mas isso
se dá por meio da própria experiência da angústia. Como os exemplos mostraram,
ela sempre está ligada para aquele que possui a escuta aguçada com eventos ôntico-
concretos no cotidiano. Trata-se do mal-estar corporal ou da tarefa a ser agora
enfrentada, ou do encontro casual na rua, ou do sentimento de fome agora sentido,
que confronta com a realidade ontológica de que se é mortal ou falível ou visível
para outros seres humanos ou fundamentalmente carente ou dependente. Bem, mas
o desejo de alterar algo no mal-estar corporal concreto ou o desejo de tornar boa
uma tarefa concreta não são apenas justificados, mas também realizáveis. E o desejo
de não encontrar mais nenhum conhecido na rua ou o desejo de se tornar senhor
sobre a própria sensação de fome tem sempre a chance de uma realização
temporária.
A autoilusão se imiscui aqui, porque aquele que possui a escuta aguçada não
distingue entre aquilo que ele deseja para si ôntico-concretamente e o desejo
ontológico por redenção da conditio humana. Com isso, ele não consegue senão se
enganar quanto ao fato de que sua ação concreta não tem apenas um efeito sobre o
estado de fato ôntico-concreto, mas, para além daí, também sobre a sua inclusão
ontológica. A ilusão está em acreditar que, com a vitória sobre a indisposição
concreta, também seria conquistada a vitória sobre a caducidade fundamental
corporal. O mesmo vale também para os outros exemplos: aquele que tem a escuta
aguçada pode acreditar, então, que poderia conquistar para si por meio de um
comportamento irrepreensível e por meio de um trabalho perfeito a infalibilidade e,
com isso, também a inocência; de maneira análoga, ele pode achar que precisaria
apenas permanecer o tempo inteiro o mais discreto e inaparente possível, a fim de
estar em segurança frente ao olhar do outro; e ele pode acreditar que, com a luta
constantemente renovada contra a sensação de fome, seria possível conquistar uma
ausência de carências próprias e, assim, uma independência.
Eu assumo a partir de Freud o conceito de “agir”, para denominar aquela
ação do que possui uma escuta aguçada e que tem o sentido secreto de poder
realmente transformar a inclusão ontológica de eventos ônticos concretos. Freud
declara que o neurótico “age ao invés de lembrar”16. Em Freud, lembrar e agir estão
ligados ao próprio passado na primeira infância. O fato de o neurótico agir ao invés
de se lembrar visa, em Freud, por isso, ao fato de que ele se comporta agindo ao
invés de lembrando em relação a uma parte de sua própria primeira infância. Isso,
porém, é reconhecidamente uma questão da impossibilidade. Portanto, Freud
também denomina a ação um “agir”, quando ela se baseia na ilusão de que se
poderia intervir no próprio passado exatamente da mesma forma que no presente.
O impossível aparece para o neurótico como possível graças à “transferência”. Na
“relação transferencial” com o analista, esse agir se torna, com efeito,
particularmente distinto, marcando, porém, ao mesmo tempo o seu cotidiano. O
analisando “transfere”, por exemplo, uma parte de seu passado para o analista,
quando ele confunde o analista com seu pai e se sente uma vez mais como o
pequeno garoto de outrora. Com isso, parece se abrir involuntariamente a chance
de poder revidar depois a seu favor aquilo que transcorreu outrora com o pai e que
tinha magoado profundamente outrora o menino. No “agir”, o paciente se entrega,
portanto, à autoilusão de que aquilo que só se mantém como lembrança, mas não
pode mais ser alterado, ainda poderia ser de qualquer modo realmente
transformado.
Mesmo a tentativa daquele que possui a escuta aguçada de poder exercer
por meio da ação um efeito sobre as condições fundamentais ontológicas, pode ser
designada como um “agir”. A única diferença é que agora o agir se encontra no
lugar do esquecimento “normal”: aquele que tem a escuta aguçada age, porque ele,
com base nessa escuta, é lembrado do próprio ser, sem poder e sem querer, contudo,
reconhecer essa lembrança, ou seja, sem poder e sem querer suportar a angústia. A
fuga em direção ao agir é para aquele que possui a escuta aguçada sempre fuga ante
a angústia, e o agir persegue, com isso, a mesma meta que o esquecimento “normal”
– só que sob as condições particulares da escuta aguçada.
Conclusão: como aquele que possui a escuta aguçada sabe demais, ele tem
o destino de também querer demais. Isso faz com que uma grande parte de sua
energia e de seu tempo fluam para um projeto que está necessariamente condenado
ao fracasso. Já isso leva a um prejuízo de seu cotidiano, porque um domínio

16
Cf. S. Freud (1914/1999), Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten (Lembrar, repetir e elaborar), in:
Obras reunidas Volume X, p. 129esegs.
“normal” do cotidiano dependeria justamente daquela energia e daquele tempo, que
não se encontram mais agora à disposição. Todavia, o cotidiano também é marcado
de maneira completamente imediata pela compaixão, porque a luta ilusória por uma
transformação da realidade ontológica inalterável é realizada junto a ocorrências
cotidianas. De maneira correspondente, essas ocorrências são carregadas com
“angústia”, o que significa dizer que aquele que tem uma escuta aguçada não
consegue perceber ou avaliar mais de maneira adequada seu significado e
relevância ôntico-concreta. Logo que a angústia, porém, se fixa no ôntico, ela se
torna um temor irracional ante o “nada”, ou seja, antes perigos meramente
imaginários, que, então, tornam insegura a realização cotidiana da vida daquele que
possui a escuta aguçada.

III. Por que a autoilusão “normal” consegue imunizar contra a angústia

III. 1. A fuga ante a experiência emocional do “puro fato de que” em meio à


compreensão do próprio ser

As exposições sobre a autoilusão “patológica” mostraram o quanto


elementarmente importante é proteger o cotidiano ante a irrupção da angústia. Pois
só lá onde o temor (ôntico) permanece livre da contaminação por meio da angústia
(ontológica), perigos concretos podem ser avaliados de maneira adequada e é
possível de maneira igualmente adequada reagir a eles. Até aqui, vimos que a
possibilidade de viver um cotidiano mais ou menos livre de angústia, e, nesse
sentido, “normal” estava alocada na possibilidade de esquecer aquilo de que nos
lembra constantemente a inclusão ontológica. Isso poderia nos levar a concluir que
a autoilusão “normal” não consistiria em nada senão nesse esquecimento, e que,
portanto, a ilusão consistiria apenas em se iludir e se deixar levar pelo próprio
autoesquecimento, porque também pertenceria ao esquecimento “pleno” o fato de
que também se deu o esquecimento de concomitantemente esquecer.
Essa conclusão seria precipitada, porque o autoesquecimento não é um
estado, mas uma tarefa que precisa ser constantemente realizada uma vez mais. Essa
tarefa sempre pode fracassar, mesmo quando se acrescenta aí o poder do hábito,
porque no lugar do esquecimento pode entrar a qualquer momento a lembrança.
Para poder viabilizar um cotidiano livre de angústia, o esquecimento carece ele
mesmo de proteção. Essa proteção lhe permite aquela relação com o próprio ser,
com a qual já aprendemos a tomar conhecimento como a grande alternativa à
experiencia emocional do ser: o compreender.
Por que o compreender do próprio ser pode servir como baluarte contra a
angústia? A resposta já foi indicada no I.3 e diz formulada sinteticamente: o
compreender consegue preencher essa função, porque todo compreender envolve a
crença na compreensibilidade principial daquilo que deve ser compreendido. O fato
de algo ser compreensível significa, porém, que o próprio ser na totalidade seria
resgatável em sentido. E é justamente essa resgatabilidade do ser no sentido que
está em questão. Logo que se conquista uma familiaridade com isso, o “puro fato
de que” parece ser simplesmente um “quid” ainda não compreendido.
O compreender, portanto, consegue proteger da angústia, porque não pode
haver de maneira alguma, de acordo com a sua lógica, angústia, mas apenas temor.
Temor é em princípio sempre compreensível. O que se mostra como angústia não
pode ser, por isso, senão um tipo de temor, que é difícil de ser suportado, porque
ele ou bem ainda não é compreendido ou bem emerge de um estado anímico
doentiamente perturbado e, por isso, representa um sentimento doentiamente
deformado.
Conclusão: a compreensão consegue proteger o esquecimento “normal” da
irrupção da angústia, porque ele nega as barreiras estabelecidas pela angústia e se
ilude quanto à sua própria amplitude limitada. O compreender, com isso, graças a
essa super autoavaliação que lhe é própria, consegue conquistar um poder sobre a
angústia. Pois só na medida em que o compreender se posiciona absolutamente, ele
consegue gerar a impressão de que seria capaz de realizar algo mais e algo diverso
daquilo que ele de fato consegue realizar: a saber, tecer um tecido de sentido, e,
com isso, encobrir a “nudez” do ser. O que não passa de uma roupagem que apenas
envolve é agora identificado com o ser ele mesmo, com o que está ligado o
asseguramento tranquilizador, o fato de que “ser” e “sentido de ser” coincidem.

III.2. A confiança na compreensão como confiança no sentido

Nós sabemos pelo cotidiano que nós não precisamos ter nenhuma angústia
(temor) lá onde podemos ter confiança. Isso também diz respeito à confiança na
compreensão. Nós já vimos que a confiança imanente ao sentido confia apenas em
que compreender e entendimento são fundamentalmente possíveis17. Essa
confiança na compreensão é indispensável para a compreensão. Trata-se aí de uma
confiança fundamental hermenêutica, que não tem como ser abalada pelas opiniões
equivocadas e pelas incompreensões, porque essas apenas indicam que o
compreender, como pertencente ao ser humano finito, é igualmente falível. A
confiança no compreender não reside no mesmo plano que a confiança nas ligações
humanas ou nas coisas, mas também se encontra à base dessa confiança.
Caso perguntemos agora o que propriamente consegue proteger ante a
angústia, então trata-se menos da própria compreensão e mais da atmosfera de
confiança que lhe é imanente e que também pode ser designada de maneira sintética
como confiança no sentido. A confiança em que também há sentido lá, em que
(ainda) não se consegue vê-lo, torna possível se movimentar de maneira confiante
no cotidiano e se imiscuir também em algo novo, desconhecido, confiando em que
também aquilo que é de início experimentado como alheio se deixa tornar
compreensivamente familiar.
Essa confiança fundamental hermenêutica, ainda que irrecusável para uma
vida “normal” no cotidiano, é, não obstante, uma ilusão. Ela produz a ilusão de ser
tão pouco questionável em seus elementos de fundo quanto a compreensão, na qual
se confia. Essa ilusão pode ser vitalmente importante, porque ela preenche a função
de nos proteger ante uma irrupção da angústia, que sobrecarrega demais, no
cotidiano. No entanto, ela não consegue suspender efetivamente a angústia, porque
a angústia permanece aquela tonalidade afetiva “insigne”, que também se encontra
ainda à base da confiança fundamental hermenêutica e que nos confronta com
aquela realidade ontológica que não tem como ser ultrapassada por nenhuma
interpretação de sentido.

III.3. Conclusão

17
Nesse sentido, Emil Angehrn (2015) fala da “confiança no poder da linguagem” como um “cerne
maximamente íntimo da confiança no sentido, confiança essa de que o ser humano precisa para a orientação
no mundo e para a condução de sua vida”. In: Vertrauen (Confiança), M. Fischer-Geboers, Brenno Wirz
(org). Leben verstehen. Zur Verstrickung zweier philosophischer Grundbegriffe (Compreender a vida.
Sobre o enredamento de dois conceitos filosóficos fundamentais), Weilerswist: Velbrück Wissenschaft,
2015, pp. 19-34; p. 30; sobre a “confiança” no sentido, ver: E. Angehrn (2013), Grundvertrauen zwischen
Metaphysik und Hermeneutik. Vom Seinsvertrauen zum Vertrauen in den Menschen (Confiança
fundamental entre metafísica e hermenêutica. Da confiança ontológica à confiança nos seres humanos), in:
I.U. Dalferth, S. Peng-Keller (org.): Grundvertrauen. Hermeneutik eines Grenzphänomens (Confiança
fundamental. Hermenêutica de um fenômeno limítrofe), Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2013, pp.
161-185; p. 174esegs.
Eu tentei fundamentar porque é míope tomar a autoilusão como um
fenômeno uno e contrapor-se a uma postura de veracidade pessoal ou de uma
vontade de verdade pessoal em face de si mesmo. Isso só procede, na medida em
que se equipara autoilusão com uma autoilusão ôntico-psicológica, o que, por sua
vez, só procede, se se mantém na posição filosófico-transcendental, segundo a qual
as condições ontológicas enquanto condições transcendentais da possibilidade do
existir humano residem de antemão e à base da vida do ser humano particular e só
têm como se tornar conscientes por meio de uma reflexão explicitamente filosófica
em geral. A filosofia da existência criticou essa posição e manteve contra isso o fato
de que, em primeiro lugar, a relação com o próprio ser pertence essencialmente ao
existir humano e de que essa relação ontológica não pode, em segundo lugar, ser
equiparada com uma compreensão de ser, mas consiste basicamente em uma
experiência ontológica emocional que sobrecarrega o ser humano.
Graças a esse conhecimento filosófico-existencial torna-se possível
distinguir entre duas formas fundamentalmente diversas de autoilusão ontológica:
por um lado, aquela autoilusão culturalmente instituída e dividida, da qual nós seres
humanos não apenas dependemos, mas que consegue constituir também um
cotidiano “normal” – livre de angústia – e que foi designada aqui como “normal”;
por outro lado, aquela autoilusão designada aqui como “patológica”, para a qual
seres humanos marcados por uma escuta aguçada fogem e com a qual eles também
passam a chamar a atenção, porque essa autoilusão se manifesta no cotidiano em
uma vivência e um comportamento inadequados e, por isso, que atuam de maneira
perturbadora.
A autoilusão “normal” tem, portanto, uma dupla função: por um lado, ela
deve impedir que nós sejamos expostos no cotidiano involuntariamente à
experiência da angústia e que sejamos perturbados por ela; por outro, ela deve alijar
o perigo da fuga em direção a uma autoilusão patológica, que, precisamente por
causa de sua promessa de cura, representa sempre uma tentação para nós seres
humanos “ontologicamente” sobrecarregados.
Bibliografia:

Angehrn, Emil (2015): Vertrauen, in: M. Fischer-Geboers, Benno Wirz (Hg.) Leben
verstehen. Zur Verstrickung zweier philosophischer Grundbegriffe, Weilerswist:
Velbrück Wissenschaft, 2015, S. 19-34; 30.;

_____________ (2013): Grundvertrauen zwischen Metaphysik und Hermeneutik.


Vom Seinsvertrauen zum Vertrauen in den Menschen, in: I.U. Dalferth, S. Peng-
Keller (Hg.): Grundvertrauen. Hermeneutik eines Grenzphänomens, Leipzig:
Evangelische Verlagsanstalt, 2013, S. 161-185.

Fichtner, Gerhard (Hg.) Sigmund Freud – Ludwig Binswanger: Briefwechsel 1908-


1938, Frankfurt a.M.: Fischer 1992.

Freud, Sigmund (1914): “Erinnern, Wiederholen, Durcharbeiten”, Ges. Werke, Bd.


X, Frankfurt am Main: Fischer S. 126-136.

- (1917): Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Ges. Werke, Bd. XI,
Frankfurt am Main: Fischer 1999.

Heidegger, Martin (1927): Sein und Zeit, Tübingen: Max Niemeyer, 18. Aufl. 2001.

Holzhey-Kunz, Alice (2016): Angst als philosophische Erfahrung und als


pathologisches Symptom, in: Stefano Micali, Thomas Fuchs (Hg.): Angst.
Philosophische, psychopathologische und psychoanalytische Zugänge,
Schriftenreihe der DGAP, Freiburg/München: Alber 2016, S. 98-123; 105ff;

__________________ (2016) Why the distinction between ontic and ontological


trauma matters for existential therapists, in: Existential Analysis 27.1 The Journal
of the Society for Existential Analysis, London 2016, p. 16-27.

Kierkegaard, Sören (1844): Der Begriff Angst, Stuttgart: Reclam 2003.


Küchenhoff, Joachim (2013): Versuch über die Hellhörigkeit, in: Sonderheft des
Bulletins der GAD zum 70. Geburtstag von A.H., Zürich 2013, S. 43-48.

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