Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
1
Eu coloco os adjetivos “normal” e “patológico” entre aspas para indicar que, com esse emprego, também
estou interpelando uma outra diferença, que pretendo clarificar acima de tudo na presente conferência.
a sua vida em vigília a uma prova mais aguda, se descobre naturalmente (...) que
essa vida supostamente saudável é atravessada por uma grande quantidade de
formações sintomáticas iníquas, praticamente insignificantes”2.
Uma vez que eu parto do fato de que a autoilusão “normal” e a “patológica”
são qualitativamente diversas, impõe-se a questão sobre em que consiste a diferença
com a qual se ligam, então, as outras questões de saber se elas perseguem a mesma
intenção ou se as intenções já diferem, e sob que condições qual das duas
autoilusões é preferida.
O ponto de partida é formado pela autoilusão “normal”, que, como veio à
tona imediatamente, não é apenas normal no sentido de que ele é universalmente
difundido, mas no sentido mais fundamental de que ele possibilita em geral
“normalidade” e a protege ao mesmo tempo da irrupção de experiências que
seduzem na maioria das vezes a buscar uma fuga para a autoilusão “patológica”.
2
S. Freud (1917), Preleções para a introdução à psicanálise, Obra reunida, vol. XI, p. 475.
ser humano, mas se se comporta em relação a essas condições sempre de algum
modo, então vem à tona o problema da autoilusão ontológica ou da “ilusão com o
ser”. Apesar de se tratar, portanto, nos dois casos de uma autoilusão, essa autoilusão
tem sempre a cada vez um outro conteúdo.
Quanto a isso, um exemplo breve, que se refere ao fato de que nós não
estamos simplesmente submetidos enquanto seres humanos à lei do tempo, mas
temos uma relação com isso. Na medida em que essa relação é ambígua, nós
também podemos nos iludir de uma maneira dupla em relação ao nosso ser
temporal. Trata-se de autoilusão ôntica, quando eu me iludo em relação à minha
própria idade, me arrogo ser mais jovem do que de fato sou, e, com isso, sou da
opinião de que hoje ainda estariam à minha disposição todas aquelas possibilidades
e chances, que um dia tive, quando ainda era jovem; uma autoilusão ontológica, em
contrapartida, tem lugar, quando eu estou firmemente convencido de eu mesmo não
estar submetido à lei do tempo, ou seja, não habitar um corpo perecível e, assim,
também não precisar morrer.
Esse exemplo deixa, além disso, claro o fato de que nem toda autoilusão
ontológica merece ser de algum modo denominado com o atributo “normal”. A
convicção de não estar submetido à lei do tempo não apenas não ocorre de maneira
rara, mas também não é compatível com uma vida cotidiana “normal”. Retém-se,
em verdade, nesse caso o fato de que a autoilusão designada por mim como
“normal” tem sempre um conteúdo ontológico, sendo que isso não significa,
contudo, que, inversamente, autoilusões ontológicas também podem ser
consideradas per se como “normais”.
3
Carta de 14 de abril de 1912, in: G. Fichtner (org.), Sigmund Freud – Ludwig Binswanger: Briefwechsel
1908-1938, Frankfurt junto ao Main: Fischer 1992, p. 95.
4
Carta de 16 de dezembro de 1912, idem, p. 119.
5
O recalque diz respeito em Freud em primeiro lugar aos desejos e não aos fatos; em segundo lugar, o
“recalcado” no sentido rigoroso (dinâmico) se torna “inconsciente”, enquanto as condições ontológicas
esquecidas são a qualquer momento uma vez mais lembráveis e, portanto, no sentido de Freud, sempre
apenas “pré-conscientes”; em terceiro lugar, o recalque tem na maioria das vezes consequências
patológicas, porque os desejos recalcados retornam sob a forma de sintomas neuróticos, enquanto o
esquecimento de fatos ontológicos (angustiantes) só trazem descarga.
graças a esse esquecimento: “Para poder se encaminhar em efetivamente ‘perdido’
para o mundo utensiliar e manusear, o si mesmo precisa se esquecer de si”6. Essa
sentença não pode ser lida, como se se precisasse esquecer quem se é
concretamente7. Ao contrário, para permanecer no exemplo de Binswanger, é
preciso poder esquecer em dias saudáveis que se pode ser afetado a qualquer
momento por um adoecimento pesado, para que se tenha a “leviandade”, para poder
planejar o futuro. É preciso que se possa viver, como se não houvesse a ameaça
ontológica, que paira sobre nós, para que se possa se dedicar efetivamente às tarefas
que concretamente se apresentam.
Para Heidegger, pelo puro fato de que o ser humano, ao invés de estar
submetido cegamente à conditio humana, ter uma relação com essa condição pesa
sobre ele como uma “carga ontológica”, da qual ele precisa se descarregar por meio
do esquecimento, para poder subsistir no cotidiano. O esquecimento, portanto, não
é um processo “normal” apenas porque ele é praticado por quase todos, mas também
porque o funcionamento de um cotidiano “normal” depende disso. Com certeza,
reside também em todo esquecimento uma autoilusão ontológica. Ela é certamente
de um outro tipo, diferente daquele que mencionamos acima. Tomando o exemplo
da própria temporalidade: faz uma grande diferença, se apenas se esquece no
cotidiano que se é perecível e, portanto, também suscetível à doença, ou se se nega
ativamente a própria perecibilidade ativamente, arrogando-se imortal. No
esquecimento, nós só negamos o fato da própria temporalidade e caducidade
passivamente; e apenas porque a lembrança disso traria consigo uma sobrecarga
desnecessária para o nosso cotidiano. Pode-se até mesmo dizer que esse
esquecimento, graças à descarga que é alcançada por meio daí, nos torna livres para
nos preocuparmos com aquilo que concretamente se encontra diante de nós.
6
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), Tübingen: Max Niemeyer, 18a edição 2001, p. 354.
7
Nesse caso, tratar-se-ia de um autoesquecimento ontológico, que viria à tona, quando alguém se deixasse
aprisionar a tal ponto em uma ligação ôntica com uma coisa ou com um ser humano, que se imergisse
completamente nela, esquecendo-se de si aí.
nossa situação ontológica fundamental. Nesse caso, nós somos apenas lembrados,
como diz Freud, de uma maneira mais chamativa. Alguns exemplos devem mostrar,
que mesmo ocorrências completamente cotidianas são suficientes para tanto,
porque aquilo que elas nos dizem é sempre ambíguo em termos ônticos e
ontológicos. O olhar para o relógio: nós olhamos, em verdade, para o relógio,
porque queremos saber exatamente que horas são agora, mas nós também somos aí
inevitavelmente lembrados de que o tempo progride ininterruptamente e que nós
mesmos estamos submetidos ao tempo, sendo, portanto, finitos; o sentimento de
fome: ele desperta em nós, com efeito, na maioria das vezes, o desejo imediato de
comer algo, mas ele nos lembra ao mesmo tempo do fato de que nós dependemos
de comida para a nossa sobrevivência corporal e que também somos dependentes
durante toda a nossa vida de um mundo incalculável; o convite para uma festa de
aniversário: ele exige de nós de saída que apenas nos decidamos, se nós o queremos
aceitar ou recusar, sempre de acordo com o nosso gosto e com a nossa possibilidade
– de qualquer forma, porém, ele nos lembra também ao mesmo tempo que nós
nunca podemos ter certeza no momento de uma decisão se nós nos arrependeremos
dela mais tarde, e que em última instância somos sempre nós mesmos que
precisamos assumir a responsabilidade por nossa decisão; o encontro casual com
um conhecido na rua leva concretamente apenas a que acenemos para ele ou que o
cumprimentos de maneira breve, ao mesmo tempo, contudo, nós também nos
lembramos desse encontro fugaz de que nós somos por princípio visíveis para
outros e de que nossa vida também transcorre por isso à vista de outros seres
humanos, sem que saibamos, para não falarmos de determinarmos, como eles nos
veem e nos julgam.
Para as nossas reflexões sobre o significado da autoilusão ontológica é
decisivo o fato de que são as ocorrências cotidianas mesmas, que nos lembram da
conditio humana e, com isso, nos obrigam a nos comportarmos de algum modo em
relação a ela. Com isso, a cisão corrente entre um “seguir vivendo natural” (Husserl)
e uma reflexão (filosófica) sobre o próprio ser-humano é suspensa ou desvelada.
Em uma passagem, Heidegger emprega para tanto a imagem pertinente da
“inclusão” ontológica no ôntico8. Nisso não ganha voz apenas o fato de que o ôntico
8
Formulado de maneira exata, o que temos lá é: “Toda compreensão ôntica tem suas ‘inclusões’ ainda que
apenas pré-ontológicas, ou seja, não concebidas de maneira teórico-temática”; in: Martin Heidegger, Ser e
tempo, op. Cit., p. 312.
mesmo remete para o ontológico, mas também que ele permanece na maioria das
vezes inserido aí, porque é ultrapassado em favor do ôntico.
9
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), op. cit., p. 133: “Os dois modos cooriginários constitutivos de
ser o aí são vistos por nós na disposição e no compreender”.
fenomenal de que a tonalidade afetiva traz o ser-aí para diante do puro fato de que
de seu aí, como o qual ele o considera com olhos vidrados em sua enigmaticidade
inexorável”10.
Importante, portanto, é que a tonalidade afetiva e a compreensão não
descerram sempre a cada vez algo completamente diferente: uma vez o “fato de que
de seu aí”, outra vez seu “para onde e de onde”, mas o fato de que os dois não
coincidem. Enquanto nós somos interpelados na tonalidade afetiva por aquela
verdade sobre o próprio ser, que permanece enigmático e, portanto, estranho
enquanto um puro “fato de que”, o próprio ser é para a compreensão desde o
princípio de algum modo articulado pelo sentido, se deixando, por isso, se tornar
familiar por intermédio do compreender. Essa familiaridade imanente ao
compreender em sua força e amplitude ilimitadas se comprova em face da
capacidade das tonalidades afetivas para nos trazer para diante do fato de que
desprovido de sentido do próprio ser, como excessivo e como uma ilusão. Nós
retornaremos uma vez mais a esse momento ilusório em toda compreensão na
terceira parte, porque ele forma aquele segundo esteio de sustentação da autoilusão
“normal”, que ainda não consideramos até aqui.
Aqui, nós permaneceremos junto ao primeiro esteio da autoilusão “normal”,
no esquecimento do próprio ser, para, então, concretizar o fato de que o
esquecimento aqui relevante diz respeito justamente àquilo que só as tonalidades
afetivas em geral descerram: o ser em sua pura facticidade. O que precisa ser
constantemente esquecido no cotidiano é, sim, a inclusão ontológica nas
ocorrências cotidianas concretas, e essa inclusão lembra sempre apenas, como os
exemplos mostraram, do “fato de que” dos estados de fato fundamentais do próprio
ser-humano. Lembrar-se disso, na medida em que alguém se abre para a inclusão
ontológica, significa, então, contudo, se expor a uma experiência puramente
emocional. A “lembrança” do próprio ser, portanto, é de um tipo completamente
diferente das lembranças ônticas concretas usuais da própria história, para a qual se
tem palavras e a qual se pode contar aos outros. Aqui, não há nada a contar, porque
não há nada a compreender.
Agora fica claro porque o cotidiano “normal” depende do esquecimento da
inclusão ontológica: o esquecimento não protege o cotidiano das questões
10
M. Heidegger, Sein und Zeit (Ser e tempo), op. Cit., p. 136; itálico meu.
existenciárias que concernem ao sentido do próprio ser-humano, mas de uma
experiência emocional, que não é apreensível, dizível, narrável enquanto tal.
Quando alguém se lembra no cotidiano de questões existenciárias que o tocam, isso
pode sobrecarregar seu cotidiano, mas também pode enriquecê-lo e aprofundá-lo.
Quem, em contrapartida, é afetado no cotidiano pela experiência puramente
emocional do próprio ser em seu fato de que nu e cru se acha em uma situação
completamente diversa. Pois quem se abre para a inclusão ontológica experimenta
“angústia”. A fuga em direção ao esquecimento sempre é, por isso, fuga ante a
angústia.
Por “angústia” tem-se em vista aqui aquela experiência emocional
fundamental descoberta por Kierkegaard11, que não tem quase nada em comum com
aquele sentimento que nós designamos na linguagem corrente como angústia e que
na maioria das vezes se equipara ao temor12. Ao mesmo tempo, é praticamente
impossível querer descrever essa experiência emocional particular, uma vez que ela
descerra aquilo que se subtrai a toda compreensão e para o que, por isso, também
não se encontram à disposição quaisquer palavras adequadas. Assim, jamais pode
se dar algo diverso do fato de que quem quer que venha a ser exposto a essa
experiência é jogado para fora do caminho e perde a orientação. Um cotidiano
“normal”, portanto, só pode funcionar para aquele cuja fuga ante a “angústia” tem
êxito em meio ao esquecimento.
11
S. Kierkegaard (1844), Der Begriff Angst (O conceito de angústia), Stuttgart: Reclam, 2003.
12
Na linguagem corrente, os conceitos de angústia e de temor são ou bem usados como sinônimos ou bem
subordinados aos sentimentos dirigidos intencionalmente a um objeto (temer ante algo, alegrar-se em
relação a algo etc.), enquanto a angústia, em contrapartida, é atribuída às atmosferas desprovidas de objeto,
que imergem tudo em uma determinada luz (estou amedrontado; estou feliz etc.). Com isso, porém, não se
apreende de maneira alguma a angústia no sentido de Kierkegaard, mas simplesmente a tonalidade afetiva
que corresponde ao sentimento do temor de uma temerosidade geral ou de um pânico.
experiência emocional13. Essa experiência é por um lado de um tipo filosófico, uma
vez que ela trata do próprio ser-humano; por outro, essa experiência é per se
verdadeira, na medida em que ela se encontra em uma posição anterior a toda e
qualquer ilusão possível e mesmo à intenção de ilusão.
Quem possui uma escuta aguçada, portanto, está exposto a uma experiência
da qual se está protegido normalmente graças ao esquecimento da inclusão
ontológica. E porque aquele que possui a escuta aguçada não é confrontado apenas
por meio de eventos ônticos graves (tais como, por exemplo, Binswanger por causa
de seu pesado adoecimento corporal) com fatos ontológicos fundamentais, mas já
em meio a coisas e eventos cotidianos inofensivos, a realização cotidiana de sua
vida não pode mais se movimentar em vias normais. Ter uma escuta aguçada é, por
isso, um dom profundamente ambíguo. Por um lado, trata-se aí de fato de um “dom
particular”, que distingue aquele que possui a escuta aguçada ante os seres humanos
medianos “normais”14. Por outro lado, esse dom tem um preço elevado, justamente
porque com isso a angústia irrompe no cotidiano. Compreende-se mal o fenômeno
da escuta aguçada, caso se acredite que aquele que possui tal escuta se encontra sob
o domínio de questões existenciárias acerca do sentido e do fundamento da vida.
Aquele que possui a escuta aguçada não se ocupa com questões existenciárias, mas
se encontra sob o domínio da “angústia”. A angústia, em verdade, diferentemente
do medo, tem um conteúdo inteiramente filosófico. Esse conteúdo, porém, como
deixa claro na citação introduzida acima, se acha separado por meio de um fosso
intransponível daquele que ganha voz nas questões “derradeiras” acerca do para
onde e do de onde do ser humano.
Em outro lugar, eu fundamentei as razões pelas quais a “angústia”
descoberta por Kierkegaard, quando ela se abate involuntariamente e quando o
caminho de fuga em direção ao esquecimento renovado permanece bloqueado,
possui um efeito traumatizante15. Quem tem uma escuta aguçada para a inclusão
ontológica no ôntico, portanto, está involuntariamente aberto para uma experiência,
13
Espero que seja supérfluo notar que essa “escuta aguçada” não tem nada em comum com um talento
qualquer por assim dizer sobrenatural, que supostamente viabilizaria, de acordo com uma concepção
esotérica, determinados seres humanos a ouvir mensagens do “além” ou coisas do gênero.
14
Joachim Küchenhoff emprega essa expressão in: Versuch uber die Hellhörigkeit (Ensaio sobre a escuta
aguçada), em: Sonderheft des Bulletins der GAD sobre o 70º aniversário de A. H. (2013), pp. 43-48.
15
Sobre a qualidade traumática da angústia, ver: A. Holzhey-Kunz, Angústia enquanto experiência
filosófica e enquanto sintoma patológico, in: Stefano Micali, Thomas Fuchs (org.): Angst. Philosophische,
psychopathologische und psychoanalytische Zugänge (Angústia. Acessos filosóficos, psicopatológicos e
psicanalíticos), coleção da DGAP, Freiburg/Munique: Alber 2016, pp. 98-123; p. 105esegs.
que não é apenas traumatizante para ele, mas que se lançaria para a maioria de nós
para além da medida do suportável e, com isso, do psiquicamente metabolizável.
Quem tem uma escuta aguçada “tem”, com isso, angústia no sentido de que ele
sofre com ela como uma experiência traumática.
O que significa agora, porém, sofrer de angústia – nós não encontramos para
tanto nenhuma elucidação da filosofia da existência, porque já Kierkegaard tanto
quanto Heidegger e Sartre parte do fato de que ou bem se consegue fugir da angústia
(em direção à “idiotia” em Kierkegaard, ao “esquecimento de si” e ao “impessoal”
em Heidegger, à “má fé” em Sartre), ou bem, contudo, se é capaz e se está ao mesmo
tempo pronto para se colocar diante dela e sustentá-la. Aquele que possui a escuta
aguçada não se adequa a esse esquema “ou-ou”, porque o que é característico para
ele é estar involuntariamente exposto à angústia, da qual ele só padece, por isso,
como um negativo. Assim, em todo e qualquer sofrimento há um não ao sofrimento
sob a figura do desejo de suspensão do estado de sofrimento. Isso também é válido
para o sofrimento com a angústia. Esse desejo torna-se, então, o motor da fuga na
direção daquela outra autoilusão “patológica”, que se funda na escuta aguçada.
Em conclusão, sublinhemos uma vez mais que a “escuta aguçada” não pode
ser considerada nela mesma nem como uma falta nem enquanto tal como um
sintoma do sofrimento psíquico. A escuta aguçada antecede ao sofrimento psíquico,
encontrando-se à sua base. Não é, portanto, o “adoecimento” psíquico que torna a
escuta aguçada, mas, ao contrário, a escuta aguçada que na maioria das vezes leva
a uma luta inglória contra a angústia ou contra aquilo que é experimentado nela.
Essa luta manifesta-se como “perturbação” patológica do cotidiano normal, porque
ela é combatida no cotidiano com meios cotidianos junto a todos os estados de coisa
cotidianos.
Colocar a escuta aguçada no início do sofrimento psíquico é sem dúvida
alguma incomum, uma vez que isso não apenas contradiz a concepção médica, mas
também a psicanalítica, que partem as duas de uma falha e só debatem de que tipo
de falha se trata, quando essa falha evoca sofrimento psíquico: ou bem um déficit
neurobiológico ou bem um trauma psíquico sofrido na infância ou uma estrutura de
defesa psíquica patogênica adquirida na infância etc. Logo que se faz valer contra
isso, porém, uma escuta aguçada, estabelece-se inversamente um menos com vistas
a um excesso sobrecarregador em termos de abertura. Mesmo que as consequências
sejam as mesmas, o sofrimento psíquico aparece com isso em um outro contexto e
conquista por meio daí um significado transformado.
16
Cf. S. Freud (1914/1999), Erinnern, Wiederholen und Durcharbeiten (Lembrar, repetir e elaborar), in:
Obras reunidas Volume X, p. 129esegs.
“normal” do cotidiano dependeria justamente daquela energia e daquele tempo, que
não se encontram mais agora à disposição. Todavia, o cotidiano também é marcado
de maneira completamente imediata pela compaixão, porque a luta ilusória por uma
transformação da realidade ontológica inalterável é realizada junto a ocorrências
cotidianas. De maneira correspondente, essas ocorrências são carregadas com
“angústia”, o que significa dizer que aquele que tem uma escuta aguçada não
consegue perceber ou avaliar mais de maneira adequada seu significado e
relevância ôntico-concreta. Logo que a angústia, porém, se fixa no ôntico, ela se
torna um temor irracional ante o “nada”, ou seja, antes perigos meramente
imaginários, que, então, tornam insegura a realização cotidiana da vida daquele que
possui a escuta aguçada.
Nós sabemos pelo cotidiano que nós não precisamos ter nenhuma angústia
(temor) lá onde podemos ter confiança. Isso também diz respeito à confiança na
compreensão. Nós já vimos que a confiança imanente ao sentido confia apenas em
que compreender e entendimento são fundamentalmente possíveis17. Essa
confiança na compreensão é indispensável para a compreensão. Trata-se aí de uma
confiança fundamental hermenêutica, que não tem como ser abalada pelas opiniões
equivocadas e pelas incompreensões, porque essas apenas indicam que o
compreender, como pertencente ao ser humano finito, é igualmente falível. A
confiança no compreender não reside no mesmo plano que a confiança nas ligações
humanas ou nas coisas, mas também se encontra à base dessa confiança.
Caso perguntemos agora o que propriamente consegue proteger ante a
angústia, então trata-se menos da própria compreensão e mais da atmosfera de
confiança que lhe é imanente e que também pode ser designada de maneira sintética
como confiança no sentido. A confiança em que também há sentido lá, em que
(ainda) não se consegue vê-lo, torna possível se movimentar de maneira confiante
no cotidiano e se imiscuir também em algo novo, desconhecido, confiando em que
também aquilo que é de início experimentado como alheio se deixa tornar
compreensivamente familiar.
Essa confiança fundamental hermenêutica, ainda que irrecusável para uma
vida “normal” no cotidiano, é, não obstante, uma ilusão. Ela produz a ilusão de ser
tão pouco questionável em seus elementos de fundo quanto a compreensão, na qual
se confia. Essa ilusão pode ser vitalmente importante, porque ela preenche a função
de nos proteger ante uma irrupção da angústia, que sobrecarrega demais, no
cotidiano. No entanto, ela não consegue suspender efetivamente a angústia, porque
a angústia permanece aquela tonalidade afetiva “insigne”, que também se encontra
ainda à base da confiança fundamental hermenêutica e que nos confronta com
aquela realidade ontológica que não tem como ser ultrapassada por nenhuma
interpretação de sentido.
III.3. Conclusão
17
Nesse sentido, Emil Angehrn (2015) fala da “confiança no poder da linguagem” como um “cerne
maximamente íntimo da confiança no sentido, confiança essa de que o ser humano precisa para a orientação
no mundo e para a condução de sua vida”. In: Vertrauen (Confiança), M. Fischer-Geboers, Brenno Wirz
(org). Leben verstehen. Zur Verstrickung zweier philosophischer Grundbegriffe (Compreender a vida.
Sobre o enredamento de dois conceitos filosóficos fundamentais), Weilerswist: Velbrück Wissenschaft,
2015, pp. 19-34; p. 30; sobre a “confiança” no sentido, ver: E. Angehrn (2013), Grundvertrauen zwischen
Metaphysik und Hermeneutik. Vom Seinsvertrauen zum Vertrauen in den Menschen (Confiança
fundamental entre metafísica e hermenêutica. Da confiança ontológica à confiança nos seres humanos), in:
I.U. Dalferth, S. Peng-Keller (org.): Grundvertrauen. Hermeneutik eines Grenzphänomens (Confiança
fundamental. Hermenêutica de um fenômeno limítrofe), Leipzig: Evangelische Verlagsanstalt, 2013, pp.
161-185; p. 174esegs.
Eu tentei fundamentar porque é míope tomar a autoilusão como um
fenômeno uno e contrapor-se a uma postura de veracidade pessoal ou de uma
vontade de verdade pessoal em face de si mesmo. Isso só procede, na medida em
que se equipara autoilusão com uma autoilusão ôntico-psicológica, o que, por sua
vez, só procede, se se mantém na posição filosófico-transcendental, segundo a qual
as condições ontológicas enquanto condições transcendentais da possibilidade do
existir humano residem de antemão e à base da vida do ser humano particular e só
têm como se tornar conscientes por meio de uma reflexão explicitamente filosófica
em geral. A filosofia da existência criticou essa posição e manteve contra isso o fato
de que, em primeiro lugar, a relação com o próprio ser pertence essencialmente ao
existir humano e de que essa relação ontológica não pode, em segundo lugar, ser
equiparada com uma compreensão de ser, mas consiste basicamente em uma
experiência ontológica emocional que sobrecarrega o ser humano.
Graças a esse conhecimento filosófico-existencial torna-se possível
distinguir entre duas formas fundamentalmente diversas de autoilusão ontológica:
por um lado, aquela autoilusão culturalmente instituída e dividida, da qual nós seres
humanos não apenas dependemos, mas que consegue constituir também um
cotidiano “normal” – livre de angústia – e que foi designada aqui como “normal”;
por outro lado, aquela autoilusão designada aqui como “patológica”, para a qual
seres humanos marcados por uma escuta aguçada fogem e com a qual eles também
passam a chamar a atenção, porque essa autoilusão se manifesta no cotidiano em
uma vivência e um comportamento inadequados e, por isso, que atuam de maneira
perturbadora.
A autoilusão “normal” tem, portanto, uma dupla função: por um lado, ela
deve impedir que nós sejamos expostos no cotidiano involuntariamente à
experiência da angústia e que sejamos perturbados por ela; por outro, ela deve alijar
o perigo da fuga em direção a uma autoilusão patológica, que, precisamente por
causa de sua promessa de cura, representa sempre uma tentação para nós seres
humanos “ontologicamente” sobrecarregados.
Bibliografia:
Angehrn, Emil (2015): Vertrauen, in: M. Fischer-Geboers, Benno Wirz (Hg.) Leben
verstehen. Zur Verstrickung zweier philosophischer Grundbegriffe, Weilerswist:
Velbrück Wissenschaft, 2015, S. 19-34; 30.;
- (1917): Vorlesungen zur Einführung in die Psychoanalyse, Ges. Werke, Bd. XI,
Frankfurt am Main: Fischer 1999.
Heidegger, Martin (1927): Sein und Zeit, Tübingen: Max Niemeyer, 18. Aufl. 2001.