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O PAVOR DO GROUNDING E A NOITE NEGRA DA ALMA

Maarten Aalbarse

1. INTRODUÇÃO
Pretendo descrever o processo terapêutico sob uma perspectiva algo diferente
discutindo-o como um processo de grounding.
Primeiramente, apresentarei exemplos de alguns conceitos básicos e heranças
filosóficas oriundos da antiga tradição da espiritualidade ocidental, da psicodinâmica
moderna, do pensamento existencial e de minha própria experiência com a terapia
neo-reichiana.
Desenvolvida esta perspectiva teórica, trabalharei posteriormente com o processo
terapêutico. Dado que o modelo de terapia desenvolvido pó James Masterson em
sua longa experiência com clientes limítrofes e narcísicos é altamente relevante para
este tema, apresentarei um resumo das suas teorias e tecerei alguns comentários
sobre o modo como este modelo se relaciona com a teoria do vínculo e o processo
de grounding.
A isso se seguirá uma descrição de alguns modos de interrupção de tendências para
se elevar acima do chão ou afundar-se nele, já que são padrões básicos da
ausência de grounding.
À medida ·que vai melhorando o seu grounded, o cliente entra em contato com
sentimentos aterrorizantes de abandono; tentarei esclarecer os componentes
emocionais mais importantes da depressão de abandono que vai emergindo.
Voltando à teoria do vínculo, ilustrarei a maneira como se pode lidar com esta
situação assustadora nos quatro níveis de vínculo.
À medida que a terapia progride, o cliente se move do abandono à aceitação da
solidão existencial; exemplificarei o modo como os clientes podem experienciar esta
solidão nos quatro níveis de vínculo. A solidão existencial é ao mesmo tempo
dolorosa e desafiadora, e eu sugerirei alguns meios de aceitar esse desafio para que
se curem.
O cliente pode se tomar tão preocupado com a sua solidão que precise se abrir
(novamente) para a dimensão coletiva ou universal da sua experiência. Isso não
precisa ser uma fuga da sua solidão; no caso, a intenção é antes manter esta
polaridade existencial (a de ser só e pertencer a algo, ou, como descreveu Bugental:
"De estar à parte e ser uma parte ao mesmo tempo") em equilíbrio dinâmico.
Portanto, incluirei algumas intervenções que podem ajudar o cliente a se conectar
novamente com essa dimensão Universal.
A última recompensa deste processo, os momentos preciosos de transcendência da
solidão e experienciação da unidade (que é diferente da experienciação da
universalidade), serão aqui apenas sugeridos, Dar a este último tema a atenção que
merece exige algo que está "além de mim"; ou, pelo menos, além do tempo e do
espaço que tenho disponíveis no momento.

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2. PAVOR DO GROUNDING
Durante minha formação com Jay, ouvi-o usar o termo "pavor do grounding" uma
vez ou duas, mas, sendo um homem sempre à procura de novas imagens e
abordagens, lançou o conceito pouco depois de descobrí-Io.
Para mim, este termo refere-se ao pavor que o cliente experiência quando, ao
buscar o fundamento de sua existência, depara com um vazio apavorante, sentindo-
se abandonado por tudo e por todos. Acredito que o termo "pavor do grounding."
descreve exatamente o que o cliente experiencia quando é confrontado com este
abandono absoluto.
Uma criança (acredito firmemente que esses sentimentos de abandono têm suas
raízes nos primeiros anos da vida de uma pessoa) sente-se abandonada a se ver
privada de algo que lhe é vital, ao ser rejeitada, ofendida, ridicularizada, ao ver seus
sentimentos não reconhecidos ou postos de lado. Esta sensação de ter sido
abandonada se aprofunda quando o pai* não pode reconhecer a dor da criança e
responder a ela com compaixão (como geralmente acontece, com maior ou menor
freqüência). À criança introjetará gradualmente a atitude parental de rejeição, tanto
numa tentativa de manter “algum tipo de conexão com seus pais quanto para
distanciar-se dos seus próprios sentimentos destroçados de abandono”.
Isto impede, é claro, o desenvolvimento posterior da criança rumo à autonomia e à
unidade. O vínculo primário entre o pai 1 e a criança é quebrado e substituído por
uma relação mais estressante, desconfiada e distorcida.
Exteriormente a criança parece ajustar-se à situação em que se encontra, enquanto
no mais profundo de seu ser ela começa a alimentar o sonho de encontrar uma
pessoa ideal, que a salvará para sempre do seu abandono. Já que nenhuma pessoa
ou meio ambiente reais podem corresponder a esse sonho de salvação, os -
sentimentos subjacentes de abandono serão continuamente reforçados.
Como descrevi em outro texto, uma tarefa terapêutica essencial é a de construir um
vínculo curativo entre terapeuta e cliente. Tendo estabelecido o momento em que o
cliente ficou impedido de prosseguir no seu desenvolvimento (isto é, em qual
necessidade básica o cliente sente-se mais abandonado, qual a que lhe parece ter
sido mais negada, num primeiro momento), o terapeuta sabe que estilo de vínculo é
necessário para facilitar a mudança num nível fundamental. Em certa fase do
processo terapêutico, a principal tarefa do terapeuta pode ser dar continência ao
cliente, em outra, ser uma pessoa mais provedora; já em outros momentos será um
professor que o confronta de modo benigno, ou um parceiro. Esses estilos de
vínculo proporcionam a segurança necessária de que o cliente precisa antes que
possa enfrentar o seu pavor do grounding, e ao terapeuta chegar até ele no nível em
que foi abandonado. O cliente pode começar a encarar as suas ilusões, seus
sentimentos de abandono e lamentar suas perdas. Pode intemalizar gradualmente
imagens benignas realistas dos outros e se reengajar em tarefas inacabadas do
desenvolvimento. Então, ele se toma capaz de estabelecer vínculos mais flexíveis e
maduros com as pessoas que lhe são importantes.
Algumas aplicações desta teoria do vínculo serão descritas com maior detalhamento
1
No original, parent, um termo que se refere tanto à figura do pai quanto à da mãe.
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posteriormente no texto. Neste momento, quero salientar que a confrontação e o
trabalho com a depressão de abandono são aspectos essenciais do crescimento
rumo a um vínculo maduro e uma percepção unitiva.

3. A NOITE NEGRA DA ALMA


A "Noite Negra da Alma" é um termo que provém da tradição da espiritualidade
cristã; ele se refere a um período da mais profunda escuridão pela qual o
contemplativo tem de passar antes que possa ser amor destituído de self, trazendo
luz para o mundo que o cerca de maneira ativa e criativa; antes que possa, como se
diz na tradição cristã, viver uma vida Unitiva. (Jay certamente não foi a primeira
pessoa que pensou em termos de um "processo unitivo": na tradição espiritual
ocidental, o termo "via unitiva" já era usado no século VI.) Para ilustrar o que se quer
exprimir por essa noite negra da alma, citarei algumas descrições características
encontradas no estudo clássico de Underhill sobre o misticismo ocidental.

A dor do amante que subitamente perdeu o seu objeto de amor;


(....) sentimentos de confusão, impotência, solidão e estagnação;
(....) um sentido esmagador de escuridão e alijamento; (....) um
período de lassidão emocional e aridez completos; (...) uma
tempestade de ansiedades, dúvidas, medo e pavor. (Underhill)

Estou mergulhada numa tal escuridão espiritual que me vejo


completamente perdida na falsidade e na ilusão, decepcionando
a mim e aos outros. (Lucie-Christine).

Uma prostração incompreensível num. incompreensível nada.


(Tauler)

(....) Serás abandonado por Deus e pelo homem, (....) e tudo


aquilo que empreenderes, que poderia te trazer alegria e
consolo, dará em nada. (Suso)
A sombra da morte e as dores e tormentos do inferno são sentidos do modo mais
agudo, e' isto provém da sensação de ter sido abandonado por Deus, sendo
castigado e expulso pela sua cólera e grave descontentamento. A alma sente tudo
isso e até mais do que isso neste momento, pois um temor terrível acometeu-a, a de
que isso a acompanhará para sempre. Ela também tem o mesmo sentimento de
abandono com relação a todas as criaturas, e que é objeto de desprezo para todos,
especialmente para os amigos. (São João da Cruz)
Esta noite negra da alma, esta crise incompreensível da metade da vida na senda
espiritual, este completo abandono, emergem depois que, como ·resultado de uma
intensa disciplina, energias positivas altamente carregadas abriram caminho durante
ou depois da meditação. A pessoa viveu um período de experiências místicas
profundas. Mas a "consciência do' transcendente foi sentida principalmente como
um aumento da visão. e da felicidade pessoais" (Underhill). O perigo nesta etapa é
que o ego da pessoa não é tão· transcendido, mas antes inflado. Ou, ainda a pessoa
pode ser pega na armadilha da "glutonice espiritual"; em vez de "amar a Deus", ela
pode deleitar-se passivamente com os "presentes de Deus".
Eis por que, de acordo com todos os grandes mestres da espiritual idade cristã, a
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deflação, a aridez e a dor da noite negra têm uma função purificadora necessária. É
preciso viver e sofrer ao passar por esta noite negra, sem saber se ela jamais terá
fim; é preciso submeter-se à realidade para crescer em direção à verdadeira
maturidade espiritual. São João da Cruz (o grande místico espanhol e
psicoterapeuta transpessoal avant-Ia-Iettre, que criou o termo "noite negra da alma")
descreve esta função da noite negra do seguinte modo:

“Neste vazio árido no qual o homem não encontra mais apoio


nos meios confiáveis da meditação e da oração nesta noite
Deus o libertará das fontes daquelas gratificações e prazeres
através da aridez pura e da escuridão interior. Ele retira Seus
braços e faz com que fique sobre os próprios pés”.
O contemplativo será tentado a usar as energias transpessoais como uma espécie
de "recuo espiritual" e perderá a visão do verdadeiro objetivo da meditação. O
tormento da noite negra funciona como uma espécie de "banho de água fria", uma
libertação implacável desta inclinação pseudoespiritual.
O contemplativo será tentado a olhar as "suas" experiências transpessoais como
uma prova de quão longe progrediu na senda espiritual, quão "arrogantemente
humilde" se tomou, quão grande e heróica é a sua disciplina.
Na noite negra, esta grandeza ilusória é despedaçada.
A meditação não traz mais "sucessos", ao passo que o contemplativo poderia ter
começado a acreditar que conseguiria "alcançar a luz" pela própria vontade. A noite
negra da alma destrói essa onipotência ilusória.
Confrontado com a noite negra, o contemplativo é arrastado para fora dessas três
armadilhas, essas três formas perenes de loucura; portanto, a experiência da noite
negra tem a função de libertar o indivíduo, de modo extremamente radical e
doloroso, do seu narcisismo espiritual.

4. RELAÇÕES OBJETAIS E ABANDONO


Não é apenas na tradição mística da Cristandade que se enfatiza a importância de
enfrentar os sentimentos de abandono, fadados a emergir uma vez que o
contemplativo se abra para os níveis mais profundos de si mesmo.
Provenientes de uma herança cultural bastante diferente e utilizando métodos
diferentes para fazer uma pessoa entrar em contato com realidades mais profundas,
algumas das modernas teorias psicanalíticas sobre o narcisismo também afirmam
enfaticamente a mesma coisa, ainda que usando uma outra terminologia.
Alice Miller, por exemplo, descreve o drama da criança bem dotada, como se segue:

“Se eu for diferente do modo como meus pais querem me ver,


se eu não me comportar de uma forma que vá ao encontro da
imagem que’ eles me impuseram, serei ignorada ou rejeitada”.

O "verdadeiro self' está isolado, trancado numa prisão de


irrealidade. Para libertar esse verdadeiro self" essa autentica
ânsia de viver, é necessário enfrentar a falta de reconhecimento
dos sentimentos e necessidades autênticos da criança, e passar
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por um processo de pesar.
James Masterson enfatiza repetidamente que o "falso self funciona como uma
defesa contra a depressão do abandono. Ou, como no caso dos limítrofes, os dois
falsos self. A defesa central dos limítrofes é a cisão, A cisão com a "mãe boa" é
mantida. Isso tem uma causa e uma função; a causa é á interrupção do
desenvolvimento; durante a infância, o desenvolvimento do limítrofe foi interrompido
na fase da reaproximação, antes que ele desenvolvesse a constância do objeto. A
função é preservar a "mãe 'boa" do domínio e da destruição pela "mãe má".
Não é somente a Imagem do objeto primário que fica cindida, o limítrofe também
cinde a sua auto-imagem. Ele se identifica alternadamente com uma Imagem do
"selfbom", formando uma unidade com a "mãe boa" que recompensa o
comportamento regressivo, e uma imagem do "self mau", unida à "mãe má" que
pune as tendências à autonomia, Se o limítrofe se permitir individualizar as
tendências, sentirá que foi punido pela "mãe má" e perderá a sua conexão com a
"mãe boa".
Na terapia, a "imagem da mãe boa" e a "imagem da mãe má" são projetadas
alternadamente no terapeuta; num certo momento ele é experienciado como um
salvador e, no momento, seguinte, como um monstro cruel (quando o terapeuta não
recompensa o padrão regressivo do cliente).
É necessário· trabalhar com esta depressão de· abandono (pelo menos em alguma
extensão) antes que o "verdadeiro self”, prejudicado, possa se desenvolver.
Mas a depressão de abandono que emerge em primeiro lugar como "pavor do
grounding" não é apenas uma questão central dos problemas pré-edípicos. A solidão
(resultado de uma resolução ótima da situação edípica) e o abandono (resultado de
uma situação edípica patogênica) também são temas centrais dos problemas
edípicos.
Se tudo correr bem, a criança (e, mais tarde, o adolescente) descobre que a porta
do "quarto dos pais está gentilmente fechada para ela", mas que a "porta da sala
permanece amplamente aberta". A criança se sentirá sozinha, mas não
abandonada.
Porém, com freqüência, as coisas acontecem de outro jeito: reagindo às tendências
eróticas subjacentes, a criança se sente conduzida ao "círculo mágico proibido" e
então é rejeitada; a "porta do quarto de dormir é ruidosamente batida bem no seu
nariz".
O "vencedor edípico" também fica isolado; ele perde o pai do mesmo sexo tanto
como aliado quanto como objeto de identificação, e cresce prematuramente.
A criança também pode ser conduzida vigorosa ou sedutoramente para um conflito
entre seus pais, tendo de formar uma coalisão doentia com um deles, que abusa
desse filho ao torná-Io seu aliado, e perdendo o vínculo com o outro, que se toma
seu inimigo.
o abandono mais profundo é o destino da criança vítima de abuso sexual, cuja
crença, inocência e limites foram violados, que é totalmente desconsiderada na sua
condição de criança, que tem de continuar vivendo com um corpo ferido, com um
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segredo terrível e que, no mais das vezes, perdeu o apoio dos pais.

5. DISCUSSÃO
A "noite negra" espiritual e a depressão de abandono são fundamentalmente
diferentes ou estreitamente paralelas?
Tendo descrito as duas experiências da noite negra por que passam muitas pessoas
que se dedicam à contemplação e os sentimentos de abandono que voltam a
emergir na psicoterapia dinâmica, a pergunta que fica é: Quão similares são esses
dois processos?
As citações que inicialmente coloquei oriundas de místicos passando pela noite
negra poderiam muito bem ter vindo de clientes em depressão de abandono.
Ken Wilber, por outro lado, afirma categoricamente que as depressões de abandono
narcísica, limítrofe e neurótica não deveriam ser confundidas com o abandono da
noite negra da alma, apontando que são dinâmicas muito diferentes; ele fornece dois
argumentos para fundamentar esta opinião:
1) O místico estabeleceu contato com a fonte da bem-aventurança e percebeu o
significado da vida apenas para perdê-Io novamente. Wilber sugere que esta é a
diferença fundamental com relação ao abandono (pré) edípico.
2) Um segundo argumento é que "não importa quão profunda a depressão ou agonia
dá noite negra possam ser, a literatura não apresenta virtualmente nenhum desses
casos conduzindo ao suicídio (em forte contraste com as depressões existenciais ou
Iimítrofes, por exemplo)".
Quero tecer comentários a respeito de cada um desses dois argumentos.
1) Eu descreveria esta diferença entre a maioria dos clientes e os místicos de uma
maneira um pouco diferente. Muitos clientes perderam o caminho de volta para a
sua fonte de bem-aventurança nos primeiros meses de suas vidas.
O místico que passa pela noite negra, por outro lado, perdeu o contato com a fonte
de bem-aventurança que experienciou recentemente. Portanto, ele viverá esta perda
de um modo muito mais agudo e estará muito mais consciente do que perdeu do
que a maioria dos clientes.
Poder-se-ia argumentar que a bem-aventurança "vinda de Deus" nas primeiras
experiências místicas são bem diferentes da que uma criança sente nos seus
momentos de fusão ou simbiose com a mãe. Não estou tão certo disso:
É bem possível que um feto e um bebê não só sintam (pelo menos algumas vezes)
uma fusão bem-aventurada com a mãe, mas também estejam em contato com
realidades transcendentais. Ou, como colocou Boadella: "Há muitas evidências de
que o feto é altamente psíquico". Pode ser que nas primeiras experiências místicas
haja um forte elemento de retorno à vivência anterior aos estados pré-pessoais.
Fico impressionado com a freqüência com que os mestres espirituais mencionam a
analogia entre a criança amamentada pela mãe e' a bem-aventurança das primeiras
experiências místicas.

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Esses primeiros rompantes de energias transpessoais são comparados com a
espiritual idade madura da vida unitiva, em que o contemplativo foi purificado por
aceitara separação na noite negra. A vida unitiva foi descrita como uma participação
ativa (em vez de um prazer passivo) com a "energia divina", pela expressão desta
energia inspirada na ação.
Os próprios mestres místicos ocidentais apontam para as semelhanças entre o'
desenvolvimento na primeira infância e as experiências na trajetória espiritual
Portanto, parece provável que, durante a noite negra, o contemplativo também
transfira seus sentimentos com relação ao pai que o abandonou na infância para a
sua imagem de Deus.
Wilber também menciona que o místico que passa pela noite negra perdeu o
significado de sua vida, e sugere que isso ocorre num grau muito menor no cliente
lirnítrofe ou narcísico em depressão de abandono. Mas esses clientes levaram
dentro de si o sonho de se fundirem novamente com uma figura materna
inteiramente boa. Este sonho era parte do significado de suas vidas, e ter de
renunciar a essa ilusão é a principal fonte do desespero que o cliente experiencia de
modo tão intenso na depressão de abandono.
Há, é claro, uma diferença entre passar· por uma disciplina intensiva para encontrar
Deus e sonhar encontrar um salvador perfeito em algum lugar. No entanto, esta
diferença às vezes pode não ser tão imensa quanto parece à primeira vista:
Antes da noite negra, o contemplativo pode muito bem estar, pelo menos
parcialmente, motivado pela busca de um salvador perfeito, projetado na sua
imagem de Deus.
A luta para viver na sociedade atual pode exigir de muitos dos clientes mais
destituídos uma intensidade de esforços que sustenta uma comparação com a
disciplina dos contemplativos.
2) Não acho este segundo argumento muito convincente. Os contemplativos viveram
num ambiente cultural em 'que o suicídio era um tabu absoluto, punido com o inferno
eterno, o que está muito menos presente nos clientes da nossa cultura
contemporânea. Isso leva a duas conseqüências:
Para uma pessoa quê pertence à cultura cristã, o suicídio é uma alternativa quase
impossível. Um suicídio eventual será muito provavelmente negado ou abafado
numa cultura religiosa. Sabe-se que muitos místicos agiram de modo bastante
autodestrutivo em algum período de suas vidas (Santa Catarina de Siena, por
exemplo, foi apelidada' "Santa Anorexia”). E é bem possível que para alguns
contemplativos esta autodestrutividade tenha levado a uma doença fatal; a linha
divisória entre esse tipo de autodestrutividade e o suicídio é realmente tênue.
Em suma, acredito que haja diferenças, mas também muitos paralelos importantes
entre a depressão de abandono pré-édípica ou edípica e a noite negra da alma; o
limite entre esses dois tipos de abandono não parece tão denso quanto Wilber
sugeriu.
Pelo amor à clareza quero acrescentar que não é porque os grandes místicos
passaram pela noite negra que necessariamente todo indivíduo que passa pela
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depressão do abandono virá a ser um grande místico.

6. ENTRE LEVANTAR E AFUNDAR: O PONTO DE CONTATO DO


GROUNDING
Uma das formas de clarificar o que é grounding (isto é, o grounding vertical) consiste
em compará-lo às duas formas de evitá-lo. O grounding pode ser definido como um
equilíbrio dinâmico entre dois pólos opostos: elevar-se acima do solo e afundar-se
nele. Encontrar um grounding vertical ótimo significa encontrar o "ponto de contato"
entre elevar-se e afundar-se.
O termo "ponto de contato" foi cunhado por Jay Stattman; e refere-se ao equilíbrio
dinâmico em uma polaridade. Um exemplo deste ponto de contato é o tônus vivo e a
sensibilidade na nossa mão, que podemos experienciar quando não esticamos os
nossos dedos em demasia nem apertamos o punho, mas encontramos um ponto
entre esses dois extremos. Tendo encontrado esse ponto de ligação, sentimos
nossas mãos mais abertas, vivas e sensíveis. Se desejarmos tolerar uma certa
quantidade de vulnerabilidade e incerteza, este sentimento poderá se estender para
nosso antebraço ou peito e também para fora, sentindo nossa energia se
expandindo além da pele.
1) Uma maneira de evitar o grounding é recusar-se a ficar sobre os próprios pés; em
vez disso, nos apoiamos sobre os outros e os tomamos responsáveis por aquilo que
sentimos ("você me faz sentir..."). Se isso não funciona, nós nos curvamos,
afundamos passivamente, apaticamente, desmoronamos. Quando este é um padrão
mais ou menos crônico, ele significa esquivar-se, de modo regressivo, da nossa
realidade adulta e subestimar o nosso potencial.
Desenvolver grounding quer dizer: ficar de pé e defender o que é importante para
nós. Mas... isso é sentido como, algo muito pesado; movemo-nos com chumbo nos
pés; a gravidade parece nos puxar para baixo, nos sentimos abatidos, desalentados.
Esse sentimento de estar "pesado", "para baixo", que pode ser experienciado muito
concretamente depois de fazer 'exercícios de grounding por um bom tempo, pode
ser' a primeira manifestação da depressão de abandono, mas não necessariamente.
A primeira camada da depressão que emerge habitualmente resulta de uma
tendência, para nos deixarmos cair, nos humilharmos, nos desmoralizarmos; uma
depressão resultante de um ódio intenso de nós mesmos. É importante distinguir
entre estás duas formas de depressão; uma depressão de ódio por si mesmo é,
muitas vezes, uma defesa contra a depressão de abandono, mais profunda e,
aparentemente mais dolorosa. Este ódio de si é habitualmente o resultado de
exigências introjetadas e julgamentos negativos; engolimos estas exigências e
julgamentos porque, éramos bem-vindos apenas à medida que cedíamos. Parece
ser melhor odiar a nós mesmos do que nos arriscarmos a ser expulsos; eis por que
pode ser tão difícil deixar que o ódio por nós mesmos se vá!
Em outros momentos, a sensação de estar "para baixo" pode não ser a que se
encontra no primeiro plano da nossa experiência, e sim uma sensação de fraqueza.
Não podemos mais suportar literalmente o que está acontecendo conosco, nossas
pernas parecem incapazes de continuar nos carregando, elas parecem ser feitas de
borracha.
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Quando escolhemos ficar com esta fraqueza, a ansiedade de cair, que procuramos
evitar por meio da nossa apatia (não vai funcionar, então, por que tentar?), vem à
tona: "parece que estamos para cair dentro de um abismo profundo". "Segure-me!
Não me jogue!", gostaríamos de gritar, desesperados, mas é tarde demais; no
passado, eles nos abandonaram. Não podiam nos manter seguros, não podiam nos
dar o apoio suficiente; eles poderiam carregar nossos próprios sentimentos,
necessidades e impulsos. Revivendo esses momentos, nosso velho abandono vem
à superfície com toda a intensidade.
2) O oposto a esta atitude de apoiar-se sobre os outros e afundar é recusar-se a
sentir o contato com o chão. Erguemo-nos acima do chão e acima dos outros;
levantamo-nos e, arrogantemente, consideramos os outros abaixo de nós, que não
vêm o quanto somos especiais. Parecemos estar firmes e agimos como se não
precisássemos dos outros. Caso nossas pernas comecem a ceder, apertamos o
diafragma (se não podemos ficar sobre os pés, ainda podemos tentar afastar o
diafragma em direção contrária), erguemos nossos ombros, enrijecemos nosso
pescoço e travamos nossos maxilares. Recusamo-nos a ceder e negamos nossa
insegurança, vulnerabilidade e incapacidades. Esta é uma negação da realidade da
interdependência e uma super estimação dos nossos próprios recursos.

Desenvolver o grounding significa, neste caso: soltar essa pose, ceder, tomar-se
mais humilde e admitir nossa insegurança com "pernas trêmulas". O medo de cair
neste caso é sentido primeiramente como medo de falhar (cair de cara) e, num nível
mais profundo, como medo de ser desprezado e expulso por causa das nossas
inabilidades.

Jay formulou isto uma vez de um modo muito sucinto: "Uma pessoa pode estar
acima do chão, dentro do chão ou sobre o chão". Quando discuti posteriormente
com ele a respeito dessa questão, tomou-se claro que uma pessoa corta suas
energias pélvicas tanto quando se ergue acima do solo quando afunda nele. No
primeiro caso, ela se traciona acima de uma pélvis comprimida, no segundo ela cai
sobre uma' pélvis sem vida. Os dois casos podem ser formas de evitar o abandono
carregado de pânico, resultante da rejeição edípica. Mas o preço é alto: perdemos
contato com nossa base biológica, extinguimos nosso fogo interior em alto grau e
apagamos a nossa ânsia de vida; sentimo-nos queimados, mais cedo ou mais
tarde.

7. GROUNDING: FICAR SOZINHO


Ficar sobre os próprios pés significa essencialmente: ficar sozinho, como o
descrevem os existencialistas. Todo mundo é essencialmente único e possui uma
história de vida única, diferente de qualquer outra pessoa. Ninguém vê uma árvore
exatamente como eu a vejo, e palavras como solidão e singularidade provavelmente
não têm para mim a mesma conotação que têm para qualquer outra pessoa.
Ninguém pode saber o que é bom para mim, e, portanto as escolhas que faço e que
dão forma a minha vida são só minhas.
A solidão existencial não é idêntica ao abandono, embora esses dois conceitos
habitualmente estejam estreitamente associados ao nível afetivo (uma pessoa que
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não passou, pelo menos em parte, pelos sentimentos do abandono primário
regredirá quando for confrontada com a sua solidão existencial e responderá como
se alguém estivesse lhe fazendo uma injustiça). Para mim, o sentimento de
abandono refere-se a um sentimento de estar sendo rejeitado, negligenciado ou·
abusado pelos outros,· e tem suas raízes no passado. O abandono é resultado de
deficiências neuróticas contra as quais nossos provedores primários lutaram e que
atuaram sobre nós, sem querer ou, às vezes, até querendo; para enfrentar isso,
tivemos de recorrer a defesas primitivas, e o resultado foi um desenvolvimento
distorcido. A solidão existencial, por outro lado, não está relacionada a ninguém que
leve a culpa. Mais ainda: encará-la, aceitá-la, suportá-la é condição necessária para
um desenvolvimento sadio, para um contato autêntico e, por mais paradoxal que
possa parecer, para uma relação profundamente vivenciada com os outros, como
pretendo ilustrar a seguir.

8. RELACIONABILIDADE: O PONTO DE LIGAÇÃO ENTRE FUSÃO E


ISOLAMENTO
Tanto à experiência de ter sido abandonado quanto a de estar existencialmente só
podem ser evitadas de duas formas: tentando fundir-se com alguém, com um grupo
ou um objeto, ou se isolando.
1) Ao buscar a fusão, nego a minha singularidade, a minha separabilidade e as do
outro. Eu me perco e tento desaparecer no outro, procurando me retirar daquilo que
me assusta ou me oprime. Ao me tomar anônimo e me adaptando, dizendo, sim
quase que antecipadamente e me recusando a pôr limites, tento me fundir com o
outro. O mote ambíguo é: "Que nada esteja entre nós".
2) Ao me isolar, nego minha necessidade de contato, escondo meus sentimentos e
necessidades do outro, tentando, assim me proteger da incompreensão e da
rejeição. De fato, rejeito o outro, reduzo-o a alguém que não é importante ou mesmo
inexiste para mim.
A solidão não é mais dolorosa; escolhi-a e idealizei-a como se fora a liberdade: o
outro não é mais uma preocupação para mim. Esta é, no entanto, uma liberdade
negativa e não uma expressão de autonomia: é uma liberdade de, em vez de uma
liberdade para.
Martin Buber, que dedicou sua vida à propagação do relacionamento existencial Eu-
Tu, o relacionamento no qual a solidão é transcendida, salientou que uma certa
distância é um pré-requisito para um encontro Eu-Tu. Ele descreve dois
"movimentos" que uma pessoa deve fazer se quiser se engajar num relacionamento
Eu-Tu: "Colocar o outro a uma certa distância"; com este movimento, ele expressa
seu desejo de deixar o outro ser verdadeiramente um outro ser humano. "Entrando
em relação" ou "engajando-se num diálogo genuíno", no qual os dois parceiros
reconhecem e apreciam um ao outro, A abertura mútua. e o compromisso intensos
são as características principais deste diálogo, que é "uma confirmação do ser de
cada um".
"Deixar o outro ser outro" é algo que parece simples, mas significa que
reconhecemos e aceitamos nossa singularidade; requer uma capacidade de estar
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em grounding * (Eu não quero sugerir que tanto a fusão quanto o isolamento com
relação aos outros não possam ser maneiras de ser significantes, satisfatórias;
enriquecedoras e autênticas; elas se tornam problemáticas quando nos agarramos a
elas para evitar a solidão).
Também significa que devemos renunciar à ilusão de que podemos abarcar o outro,
que podemos adaptá-Io às nossas categorias mentais. Significa que deixamos que
vá embora aquilo que nos é familiar, os vieses e os preconceitos; em outras
palavras: que aceitamos a nossa "pobreza de mente". Mas seremos generosamente
recompensados por esses sacrifícios. Buber deu algumas belas sugestões desta
recompensa, como esta: "Tão logo tocamos um Tu, somos tocados por um sopro da
vida eterna" ..
O paradoxo da união autêntica (em contraste com a fusão) é que só podemos
experienciar a unidade quando ousamos ficar sozinhos. Esta experiência da unidade
pode ser formulada do seguinte modo: "Eu estou só, você está só e ainda assim há
algo incompreensível, um mistério que une você e eu".
Este algo que une você e eu transcende o nosso conhecimento dualístico, mas pode
ser experienciado quando desenvolvemos uma atenção contemplativa.
Este algo que une você e eu pode ser experienciado como uma carga energética
entre nós. Podemos sentir esta energia quando abrimos o nosso coração e a nossa
pélvis e tomamos conta do espaço entre nós; podemos suportar esta energia
quando também ficarmos em contato com o "nosso" chão. Nesse momento,
podemos experienciar o que Buber descreveu de modo tão admirável: "Encontramos
a salvação, mas não a solução".

9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BUGENTAL, James. The searchfor authenticity. Hol,. Rinehart & Winston, 1965.
KRUIS, Joannesvan H. Mystieke Werken.·Carmelitana, 1980.
MASTERSON, James. The real self. Brunner/Mazel 1985.
MASTERSON, James & KLEIN, Ralph (eds.). Psychotherapy of the dísorders af
the self. Brunner/Mazel, 1989.
MILLER, Alice. Het drama van het begaafde kind. Het Wereldvenster, 1981. No
Brasil, O drama da criança bem dotada. São Paulo, Summus, 1986. STATTMAN,
Jay. Conceituação teórica apresentada durante o treinamento em psicoterapia
unitiva.
STEGGINK, Otger: Jan van het kruis wijst een weg uit het narcisme ais bron
van geweld. Speling, 1978.
WILBER, Ken; ENGLER, Jack & BROWN, Daniel. Transformations of
consciousness. New Science Library, 1986.

(Texto extraído do livro Energia e Caráter - organização Rubens Kignel, Summus


Editorial, volume 1)

Curso de Especialização em Psicologia Transpessoal – Mai/2008

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