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O Anti-Representacionalismo Antropológico de Jeanne Favret-

Saada

INTRODUÇÃO

A partir da década de 1960, um contraparadigma subversivo nos estudos culturais


emergiu de um conjunto muito peculiar de pressupostos epistemológicos. Essa
nova abordagem tinha pretensão de virar de cabeça para baixo a relação até então
aceita entre fatos e interpretação, linguagem e mundo. Os estudiosos assumiam
que poderíamos realizar uma representação cientificamente objetiva da realidade
decidindo se uma determinada interpretação se adequava ou não aos fatos
observados. No entanto, essa visão não considerava que a interpretação que
alguém faz dos “fatos” (e seu conteúdo semântico) são produtos de práticas sociais
e envolve a mobilização inferencial do uso de conceitos
(Wittgenstein, 1953; Fish, 1980).

Diante desse insight, emergiu um movimento de revisão epistemológica na


filosofia e nas ciências, deslocando também as práticas de interpretação cultural e
a antropologia. Refletindo sobre o status epistêmico da representação, esse
movimento buscou denunciar o chamado
“representacionalismo” em todas as suas formas. Na etnografia, isso levou muitos
etnógrafo críticos do colonialismo a questionar a sua “capacidade de representar
outras sociedades” (Clifford, 2017, p. 42). As produções epistemológicas
ocidentais eram acusadas de serem marcadas pelos rastros do etnocentrismo
dominante que impõe uma objetivação e significação ao seu “outro”. Nesse
sentido, as bases do representacionalismo começaram a ser
abaladas na etnografia, levando a desconstrução de toda pretensão de
legitimidade que se apoiasse na crença de uma vocação especial para revelar a
verdade sobre o mundo do “outro”.

Na antropologia, esse cenário ficou conhecido como “crise da representação”, que

refletia o surgimento do “pós-modernismo”. Um movimento que tinha como pilar


epistemológico a “desconstrução” de qualquer forma de autoridade
representacional inquestionável. Isso gerou algumas lacunas nos estudos
culturais, especificamente no status científico da antropologia. No entanto, a
crítica “pós-modernista” não apenas denunciou a forma representacionalista de
fazer etnografia, mas também instaurou na antropologia novas possibilidades de
se fazer etnografia. Pretende-se aqui apresentar o trabalho de Jeanne Favret-
Saada e seu anti-representacionalismo como uma dessas possibilidades
epistêmicas. Mas antes é preciso falar sobre o que é “representacionalismo” e
“não-representacionalismo”.

REPRESENTACIONALISMO E NÃO-REPRESENTACIONALISMO

Desde pelo menos Sócrates e Platão, o conhecimento era concebido com uma
relação especial do sujeito cognoscente com um objeto da realidade. Como aborda
de forma convincente o filósofo Richard Rorty, em Philosophy and the Mirror of
Nature (1979), esta é a ideia filosófica do conhecimento como representação,
como um espelhamento mental de um mundo externo à mente, que dominou toda
a epistemologia tradicional e moderna. Nesse relato, a epistemologia é vista como
o estudo da estrutura da mente (sujeito) trabalhando com conteúdo empírico
(objeto) para produzir em si itens – representações — que, quando as coisas vão
bem, espelham corretamente a realidade. Para deixar de maneira mais clara,
pense na maneira como o senso comum entende a relação palavra-objeto.
Normalmente se pensa nisso como um tipo especial de relação na qual uma
palavra corresponde a um objeto na realidade, e na qual combinações de palavras
denotam combinações de objetos. Este é o cerne do “representacionalismo”: o
significado de nossas expressões linguísticas advém da propriedade de nossas
palavras de representar objetos; ou como diz Huw Price, é “a suposição de que os
itens linguísticos em questão ‘significam’ ou ‘representam’ algo não-linguístico”
(2013, p. 9).

Por outro lado, o não-representacionalismo é a defesa de que nossa melhor

explicação científica da linguagem, pensamento e conhecimento não fará o uso de


relações semânticas substanciais linguagem-mundo. Nesse sentido, é uma
rejeição da ideia de que o pensamento ou a linguagem espelha o mundo de tal
maneira que podemos extrair verdades fundamentais significativas do mundo e
da cognição. O anti-representacionalismo, em última análise, implica duas classes
de afirmações: (1) que podemos adquirir conhecimento legítimo de objetos e
eventos sem necessariamente usar um vocabulário representacional; e (2) que
mesmo quando representamos objetos ou eventos, a representação não é
prioritária na ordem da explicação dos significados. Essas duas classes de
afirmações foram desenvolvidas de maneiras diferentes por pensadores
diferentes, com suas posturas anti-representacionalistas variando em força e
grau (Ver Brandom, 2013). Mas isso é um tema que está além do escopo
deste texto. O importante aqui é entender o que é o “anti-representacionalismo” e
como e ele vai se relacionar com a teoria antropológica de Favret-Saada.

O “AFETO NÃO-REPRESENTADO” DE FAVRET-SAADA

Jeanne Favret-Saada (1934–) é uma etnóloga francesa nascida na Tunísia,


conhecida por estudar a feitiçaria na região do Bocage, culminando no seu
magnum opus Les Mots, la Mort, les Sorts (1977). Além dessa obra, sua
metodologia serão sintetizadas em dois textos: “Ser Afetado” (2005) e “About
Participation” (1990). Favret-Saada prosseguirá com a crítica à abordagem
antropológica tradicional que sobrevaloriza a representação e a objetividade da
pessoa etnógrafa no desenvolvimento da investigação. De acordo com ela, o
“cientificismo” desta abordagem é um obstáculo para a manifestação dos
elementos pragmáticos da investigação, elementos essenciais na constituição das
capacidades interpretativas do etnógrafo. A eliminação desses elementos impedia
que o etnógrafo refletisse sobre “seu lugar na experiência humana” (Favret-
Saada, 2005, p. 1). Refletir sobre este lugar, afirma ela, é perceber como o
etnógrafo pode ser afetado pelas complexas situações com que se deparam — e
também a percepção do processo de ser afetado por aqueles com quem os
etnógrafos se relacionam.

Durante o desenvolvimento da antropologia, as afecções eram vistas como mero

produto cultural ou representacional, no mesmo patamar que os conteúdos


semânticos e verbais. No entanto, Favret-Saada vai trabalhar com a hipótese de
que “a eficácia terapêutica, quando ela se dá, resulta de um certo trabalho
realizado sobre o afeto não representado” (ibid., p. 155). A principal inovação
de Favret-Saada vai ser ver o afeto como um dispositivo metodológico que a
permite elaborar um certo saber que não é representacional ou semântico.
“Afeto”, para ela, não significa algum tipo de emoção que escapa da razão, mas no
sentido de que é resultado de um processo de afetar, que se situa além dos limites
da representação; ou seja, são “intensidades específicas que geralmente não têm
significado” (1990, p. 193). Em outras palavras, é no sentido do etnógrafo se
deixar ser afetado “pelas mesmas forças que afetam os demais para que um certo
tipo de relação possa se estabelecer” (Goldman, 2005, p. 150). Era esse tipo de
relação que escapava à abordagem tradicional da antropologia, relação que
envolve uma comunicação muito mais complexa que a simples troca verbal e
semântica ou apreensão de conteúdos empiricamente observáveis, como ela
afirma:
O ponto de partida é o reconhecimento de que a comunicação etnográfica
comum – uma comunicação verbal, voluntária e intencional, destinada a
aprender um sistema nativo de representações – constitui uma das variedades
mais pobres de comunicação humana. É especialmente inadequado fornecer o
tipo de informação sobre os aspectos não-verbais e involuntários da experiência
humana. (1990, p. 193)

Neste sentido, o trabalho de Favret-Saada foge do paradigma representacionalista

dos estilos etnográficos mais usuais. O “ser afetado” envolve nem o objetivismo do
método de observação-participante nem o subjetivismo do método empático.
Ambas as abordagens estão preocupadas apenas com o que os sujeitos estão
dizendo ou pensando, estudando os conteúdos de seus enunciados e outros
episódios. Seja como for, Favret-Saada acredita que essas abordagens
desqualificam a palavra nativa e promove a do etnógrafo. Por outro lado, a
abordagem de Favret-Saada está principalmente preocupada com o que os
sujeitos estão fazendo ao dizer ou pensar, participando dos atos desempenhados
ao fazê-lo.

Na abordagem antropológica tradicional, o que realmente contava para os


antropólogos não era a participação, mas “a observação daquilo que era
empiricamente verificável” (Favret-Saada, 2005, p. 156). No entanto, a
participação exige o mínimo de observação possível do evento. É preciso
uma imersão completa no evento para que o processo de ser afetado seja eficaz. A
participação se transforma então um instrumento de conhecimento quando se é
“pego” pelo evento. Por outro lado, aceitar “participar” e ser afetado não envolve
uma operação de conhecimento por empatia, pois este supõe ou uma distância
para imaginar (representar) o que seria estar no lugar do nativo, ou uma
“comunhão afetiva” com este. Pelo contrário, o “ser afetado” envolve precisamente
ocupar um lugar no sistema de práticas sociais dos nativos e ser bombardeado por
intensidades específicas (afetos) que não são significáveis, imagináveis ou
representáveis em si mesmo. Não é um einfühlung, pois “ocupar tal lugar no
sistema [...] não me informa nada sobre os afetos do outro” (2005, p. 159). O que
é comunicado ao etnógrafo é apenas a intensidade não-representável de que o
outro está sendo afetado. Neste sentido, é justamente nesse lugar e nas
intensidades que lhe são ligadas que acontece o processo de aproximação. Como
já foi dito, ocupar esse lugar e ser afetado por ele abre uma comunicação específica
com os nativos: uma comunicação que é involuntária, não
intencional e não verbal, que permite ao etnógrafo explorar os elementos opacos
e pragmáticos dos sistemas culturais. Favret-Saada é bastante direta sobre isso:

[A] minha experiência de trabalho de campo . . . deu espaço à comunicação não-

verbal, não intencional e involuntária, à erupção e ao jogo livre de afetos


desprovidos de representações – minha experiência de trabalho de campo me
forçou a explorar os mil e um aspectos de uma opacidade essencial do sujeito em
relação a si mesmo. (1990, 199)

Por fim, refletir sobre o lugar do antropólogo na experiência de campo e levar a


sério o processo de “ser afetado”, pode nos levar a ver a etnografia como um
processo de “devir” no sentido deleuziano, a saber, “o movimento através do qual
um sujeito sai de sua própria condição por meio de uma relação de afetos que
consegue estabelecer com uma condição outra” (Goldman, 2003, p. 464). Trata-
se, então, de deixar-se afetar pelas mesmas forças que afetam o nativo,
modificando-o e alterando sua “potência”. Isso é bastante coerente com o anti-
representacionalismo de Gilles Deleuze (1994). Para ele, o pensamento não é
representacional no sentido exposto na seção anterior – ou seja, não funciona
fazendo imagens espelhadas do mundo, que podem ser julgadas como verdadeiras
ou falsas dependendo de seu grau de precisão. Pelo contrário. Para Deleuze o
pensamento é criativo e está sempre conectado àquilo em que pensa e ao que
estamos fazendo ao pensar. Em outras palavras, o pensamento é ação, criação e
diferença.

CONCLUSÃO

Embora Favret-Saada não tenha escrito ou discutido sobre isso, não é um exercício
improdutivo interpretar sua teoria antropológica como uma variação filosófica do
movimento anti-representacionalista. Sua reinvindicação do processo de “ser
afetado” como um tipo de saber não-representacional capaz de criar um vínculo e
abertura comunicacional involuntária, não-intencional e tácita com os nativos é
anti-representacionalista em sua essência. Ela não está principalmente
preocupada com o que os sujeitos estão pensando ou dizendo sobre algo – ou seja,
com o conteúdo semântico de seus episódios –, mas sim com o que os sujeitos
estão fazendo – e as condições específicas que os fazem agir – ao dizer ou pensar
sobre algo. Ficar imerso nessas mesmas práticas e condições específicas é ser
afetado por intensidades específicas que nos permitem entrar no vocabulário (e
no mundo) dos nativos.

REFERÊNCIAS

Brandom, R. (2013). “Global anti-representationalism?”. In: Price,


Huw. Expressivism, Pragmatism and Representationalism. Cambridge
University Press, pp. 85–111.

Clifford, James (2017). “Introdução: Verdades parciais”. In: Clifford, J.; Marcus,
G. (Org.). A escrita da cultura: poética e política da Etnografia. Rio De Janeiro:
EdUERJ, pp. 31–60.

Deleuze, Gilles (1994). Difference and Repetition. Columbia University Press.


Favret-Saada, Jeanne (1977). Les Mots, la Mort, les Sorts. Paris: Gallimard.

Favret-Saada, Jeanne (1990). “About Participation”. Culture, Medicine and

Psychiatry 14: pp. 189-199.

Favret-Saada, Jeanne (2005). “Ser Afetado”. Cadernos de Campo, ano 14, n. 13.
Trad. Paula Siqueira. São Paulo: USP. Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50263.

Fish, Stanley (1980). “What makes an interpretation acceptable?” In: Is there a


text in this class?. Fish, S. (Ed.). Cambridge, MA: Harvard University Press, pp.
338–55.

Goldman, Marcio (2003). “Os tambores dos mortos e os tambores dos vivos:
etnografia, antropologia e política em Ilhéus, Bahia”. Revista de Antropologia V.
46 Nº 2, São Paulo, USP, pp. 445–476.

Goldman, Marcio (2005). “Jeanne Favret-Saada, os afetos, a


etnografia”. Cadernos De Campo (São Paulo – 1991), 13(13), pp. 149-153.
Disponível
em: https://www.revistas.usp.br/cadernosdecampo/article/view/50262.

Price, Huw (2013). Expressivism, Pragmatism and Representationalism.


Cambridge University Press.

Rorty, Richard (1979). Philosophy and the Mirror of Nature. Princeton:

Princeton University Press.


Wittgenstein, Ludwig (1953). Philosophical Investigations. Blackwell Publishers.

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