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ESPECIAL ESPIRITUALIDADE E GESTÃO

Espiritualidade e
conhecimento

IMAGEM: KIPPER

Na história do Ocidente, as palavras “espírito” e


“espiritualidade” distanciaram-se de seu sentido
filosófico. Para os gregos, espiritualidade referia-
se a uma experiência contemplativa pela qual se
alcançava o conhecimento verdadeiro das coisas.
Similarmente, Nietzsche defende a contemplação
filosófica e espiritual como forma de vencer a su-
perficialidade do mundo moderno. O artigo explora
as repercussões dessas idéias sobre os tomadores
de decisão de hoje.

por Jean Bartoli FGV-EAESP

Falar de espiritualidade implica en- uma paixão partilhada, não mística, de da palavra “espírito” para os filósofos
frentar a grande pergunta que a hu- pertencer a algo muito maior do que gregos; em um segundo, analiso,
manidade faz para si mesma sobre o nosso próprio ego individual. ainda entre os gregos, a experiência
“espírito” e que a incomoda em todos Neste artigo pretendemos exa- filosófica como experiência espiritual.
os ramos do saber. Segundo Robert C. minar mais especificamente a espi- Em um terceiro momento retomo
Solomon, no livro Espiritualidade para ritualidade como uma experiência o pensamento do filósofo Friedrich
céticos, a palavra “espírito” evoca uma de conhecimento. Em um primeiro Nietzsche, no século XIX, para o qual
disposição de ânimo. Evoca também momento, apresento o significado a experiência filosófica exige algumas

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atitudes radicais. Por fim, proponho
algumas trilhas de reflexão sobre a
questão da espiritualidade para quem
Num ambiente povoado de perfis altamente definidos e
exerce a responsabilidade de tomar rotulados, as pessoas penam para ser reconhecidas no seu
decisões.
mistério mais profundo, e a empresa pode transformar-se
O significado de “espírito”. num ambiente povoado de fantasmas, pouco propício ao
O que significa a palavra “espírito” desenvolvimento de verdadeiros talentos.
para os mestres gregos? A definição
do ser humano como “animal racio-
nal”, atribuída a Aristóteles, procede
de dois erros de tradução: os gregos vra “espírito”), designa a vida e o que prezavam a relação instrumental com
não têm um termo que oponha o faz um ser vivo ser animado. as coisas: não observavam o mundo
animal ao homem, a não ser o de fera Diferentemente do que entende- para usá-lo, mas sim para descobrir
selvagem. mos normalmente por alma, a psyché sua ordem e sua beleza, aprendendo
O que traduzimos por “animal” não é uma substância una e separada; desse modo o que é o universo e
(zôon) designa o ser vivo animado, ela inclui tudo o que torna um ser quem somos.
inclusive o homem, por oposição ao vivo: o movimento, a percepção, A alegria da descoberta, da intui-
vegetal e ao inerte. Em relação à pala- a sensação, a reprodução e, para o ção, da idéia que ilumina o espírito,
vra “racional”, ela decorre da palavra homem, a razão e a intuição. Trata-se implica a faculdade de ver algo de
latina rationale, transcrição da palavra de saber como o ser vivo percebe, tem mais real do que os dados banais
grega logicon, que significa dotado de sensações e desejos, se mantém vivo e dos sentidos, de alcançar um nível
logos, quer dizer, ao mesmo tempo de comanda seus movimentos. de realidade mais profundo do que a
linguagem e de razão. Se a alma é comum aos homens e evidência do mundo tangível. Platão
Aristóteles propõe, portanto, aos animais, pois ela assegura o funcio- apresenta a subida da alma por meio
uma definição muito mais simples namento do corpo, existe uma “parte da “alegoria da caverna”, que descreve
e incontestável: o homem é um ser superior” que é própria do homem: a oposição entre duas realidades: a das
vivo que tem a capacidade de falar e essa parte superior, o pensamento, é sombras, do nosso cotidiano, e a ou-
de raciocinar...e não só de despejar também complexa. Pode-se distinguir tra, superior, que permite apreender
tudo que tem na cabeça. Costuma- a sabedoria prática, phronésis, a razão a ordem universal e exige uma longa
se, também, atribuir aos gregos uma lógica ou discursiva, dianoïa, e o inte- ascensão.
visão dualista do homem, de oposição lecto, noûs, que representa a faculdade A alegoria insiste nas provações
entre a alma e o corpo. Essa oposição intuitiva. É esse conhecimento direto da subida e na impossibilidade de
tem mais a ver com Descartes do que do ser que Platão apresenta por meio comunicar aos outros o que se con-
com Platão. da alegoria da alma que sai da penum- templou. O conhecimento autêntico
De fato, embora o discípulo de bra da caverna para chegar à luz do não pode ser demonstrado, porque
Sócrates e seus herdeiros neoplatôni- real. Isso introduz a segunda etapa da é dado na visão que pressupõe uma
cos professem o desapego do corpo, nossa reflexão. longa preparação: é uma experiência
os gregos não têm um termo que espiritual.
corresponda ao que chamamos de Filosofia e experiência espi- Já a relação de Sócrates com a
alma. Traduzimos por “alma” a palavra ritual. Para os gregos, a filosofia é palavra é singular. Se a apreensão da
psyché, que, por referência ao “sopro” contemplativa e vivenciada como uma verdade escapa à palavra, esta é fun-
(spiritus em latim, de onde vem a pala- experiência espiritual. Os antigos des- damental para desalojar o erro porque

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a primeira etapa da ascensão consiste muito reais, a propósito das quais jovem Nietzsche defendeu um lema
em despojar-se das falsas concepções. preferimos não nos interrogar porque durante toda a vida: “Torne-se o que
Afirmando sua ignorância, Sócrates o caminho da indução, da intuição, você é” – e estava tão apegado à idéia
pede que seus interlocutores definam da descoberta tem algo de desestabi- da realização individual que descon-
um conceito que parece tão evidente lizador no nosso universo mental de fiava de tudo que impedisse o pleno
que, rapidamente, se estilhaça! Posto análise e de dedução. desabrochar da pessoa.
em contradição consigo mesmo, quem O reconhecimento do intelecto Ora, para Nietzsche, tornar-se si
acreditava saber – o que, aliás, todo implica o domínio do corpo: deixar-se mesmo e viver em estado contemplati-
mundo acredita – se dá conta de que dominar pelos impulsos e pelos apeti- vo significam a mesma coisa. A inten-
sua resposta era só ilusão! A verdade tes físicos significa abafar a aspiração a ção do filósofo era criar uma ciência
só pode jorrar do interior, no fim de realidades intangíveis. Para os gregos, que não fosse distante da experiência
um itinerário cujo ponto de partida foi portanto, o ser humano possui uma existencial de quem pensa. Assim,
a palavra socrática. Ela é uma intuição faculdade “divina”, o intelecto, que, ele prescreve a vida contemplativa,
inexprimível, depois de um longo e bem trabalhada, lhe permitirá con- principalmente para aqueles que se
difícil trabalho que nasceu na discus- templar o ser real cuja beleza eclipsa interessam pelos grandes problemas
são dialética. A palavra se transmite, tudo que a Terra propõe aos nossos e não se contentam com a superficia-
mas a visão só pode ser vista! sentidos. lidade do “homem ordinário”.
Temos dificuldade em entender Nietzsche considera a “inquietude
isso porque privilegiamos o pensa- A virada de Nietzsche. Vinte e moderna” uma doença. A desvalo-
mento dedutivo. Platão, ao contrário, quatro séculos mais tarde, Nietzsche, rização do ócio, própria da época
liga o pensamento a seu contexto fascinado pelos gregos e... irritado moderna, atinge os cientistas que se
emocional: nasce num estado de por Sócrates, propõe uma experiência entregam à escravidão dos pequenos
consciência e dá conta de experiências filosófica espiritual e contemplativa. O fatos. Essa escravidão e essa agitação

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provocam o declínio da cultura, por-
que se torna vergonhoso pensar por
A espiritualidade é um caminho para quem não pára no mundo
si mesmo e pesar cada idéia.
Os homens do século de Nietzs- das aparências e não se contenta com devaneios místicos cuja
che sofreriam, então, de um excesso proveniência patológica ou manipuladora pode manifestar-se
de energia? Não, porque a causa pro-
funda dessa preocupação febril seria com uma certa obviedade!
uma insidiosa preguiça, escreve ele em
seu livro Humano, demasiado humano:
“Acho que cada pessoa deve ter uma isso resulta numa estéril e talvez triste como a da pulga; o último homem é o
opinião própria sobre cada coisa a solidão. Isso nada tem em comum que vive mais tempo. ‘Descobrimos o
respeito da qual é possível ter opinião, com a solidão da vita contemplativa que é a felicidade’ – dizem os últimos
porque ela mesma é uma coisa parti- do pensador: quando ele a escolhe, homens, e piscam os olhos. [...] Não
cular e única, que ocupa em relação não está abdicando de nada; talvez falta um pouco de prazer para o dia e
a todas as outras uma posição nova, significasse renúncia, tristeza, ruína de um pouco de prazer para a noite; mas
sem precedentes. Mas a indolência si mesmo, para ele, ter de perseverar respeita-se a saúde”.
que há no fundo da alma do homem na vita practica: a esta ele renuncia A característica que se opõe a
ativo impede o ser humano de tirar por conhecer-se. Assim adquire ele a essa fuga do desprazer é a dureza. Ser
água de sua própria fonte”. sua serenidade”. “duro”, na linguagem de Nietzsche,
Paradoxalmente, o preguiçoso é Nietzsche, em outro livro seu, significa perseguir as menores co-
o “homem de ação” que se entrega chamado Genealogia da moral, quer vardias para enfrentar por inteiro as
ao trabalho para fugir dos proble- trazer de volta o homem para o coti- próprias provações.
mas! O remédio consiste em forçar diano e a disciplina que deve ordená- É precisamente na reflexão sobre
os indivíduos a buscar um lazer lo: essa disciplina é semelhante à vida o conhecimento que se encontra um
corajoso. Nietzsche chama isso de contemplativa tradicional. Ela traz convite para ser duro: não existe pen-
“vida contemplativa”. Em sua própria uma serenidade que deixa o homem samento profundo que não doa, pelo
definição, encontrada no mesmo que pensa em paz com o mundo, con- menos num primeiro momento. Diz
livro mencionado antes: “Por falta sigo mesmo, com seu próprio corpo Nietzsche: “Cada palmo de verdade
de tranqüilidade, nossa civilização se e com seus impulsos. Contudo, isso deve ser obtido com luta, por ela foi
transforma numa nova barbárie. Em significa enfrentar provações. Renun- preciso abandonar quase tudo a que
nenhum outro tempo os ativos, isto é, ciar às provações é recusar enobrecer, se apega o coração, o amor, a confian-
os intranqüilos, valeram tanto. Logo, quer dizer, crescer e viver. A figura do ça na vida. Isso requer grandeza de
entre as correções que necessitamos “último homem”, profetizada em seu alma: o serviço da verdade é o mais
fazer no caráter da humanidade está livro Assim falava Zaratustra, repre- duro serviço. – Que significa, afinal,
fortalecer em grande medida o ele- senta bem essa atitude. ter retidão em coisas do espírito?
mento contemplativo”. Novamente nas palavras do fi- Ser rigoroso com seu coração, des-
A nova vida contemplativa será a lósofo: “Que vem a ser isso de amor, prezar os “belos sentimentos”, fazer
do pensador que não se furta do mun- de criação, de ardente desejo, de de cada Sim e Não uma questão de
do nem desaparece como indivíduo, estrela?’ – pergunta o último homem, confiança!”
pois busca a si mesmo enfrentando os revirando os olhos. A terra tornar- Essa dureza do homem do conhe-
problemas. Novamente nas palavras se-á então menor, e sobre ela andará cimento tem um nome conhecido: é o
de Nietzsche: “Renunciar ao mundo aos pulos o último homem que tudo “trágico”. Nietzsche, “pensador trági-
sem conhecê-lo, como uma freira – apouca. A sua raça é indestrutível co”, distingue-se dos construtores de

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sistemas. Para ele, o homem “teórico” no seu mistério mais profundo, e a das solicitações intelectualmente
é decadente porque acredita nos con- empresa pode transformar-se num confusas e eticamente contraditórias
ceitos de sua ciência; ele não percebe ambiente povoado de fantasmas, que povoam seu dia-a-dia. Buscar
que são simplesmente instrumentos pouco propício ao desenvolvimento reconhecer os fatos, discernir as in-
que podem virar caricaturas das de verdadeiros talentos. tenções e procurar a integridade pode
coisas, mas nunca expressar integral- A espiritualidade é um caminho representar uma verdadeira provação.
mente sua substância. para quem não pára no mundo das Esse é o desafio espiritual e “contem-
Uma pessoa é forte na medida em aparências e não se contenta com plativo” descrito e experimentado por
que se arrisca a conhecer e suporta devaneios místicos, cuja proveniência Nietzsche!
o conhecimento. Sustentar a verdade patológica ou manipuladora pode O ativismo pode ser indolência
era, para Nietzsche, o critério por manifestar-se com uma certa obvie- intelectual. Antes de Nietzsche, filó-
excelência que distinguia os verda- dade! Daí a afinidade da experiência sofos como Pascal e outros já tinham
deiros filósofos. Diz ele: “Qual dose espiritual com a reflexão filosófica: os desmascarado a auto-ilusão repre-
de verdade um espírito é capaz de grandes espíritos nunca abrem mão do sentada pela fuga na bulimia ativista.
suportar; qual dose de verdade ele uso crítico da inteligência. Afinal, do que estamos fugindo? De
pode arriscar? Eis o que se tornou Os tomadores de decisão estão, nós mesmos? Dos outros? Talvez, um
para mim o verdadeiro critério de hoje mais do que nunca, solicitados pouco de cada! Por meio da busca
valores. O erro é uma covardia...Toda a um discernimento criterioso. Nem da integridade e da dureza de um
aquisição do conhecimento é conse- sempre o que é apresentado como conhecimento mais exigente – já que
qüência da coragem, da dureza e da evidente é verdadeiro ou real. A mais enraizado na realidade do que
probidade em relação a si mesmo”. ditadura das pesquisas de opinião e vivemos –, talvez possamos cons-
dos formadores de opinião requer truir uma verdadeira serenidade que
Trilhas de reflexão. A partir muito sangue-frio e sabedoria para prescinda de acrobacias “esotéricas” e
das experiências que acabamos de quem quiser distinguir o que tem “místicas” vendidas como sucedâneos
descrever, algumas trilhas se abrem fundamento do que é grito da mul- de uma experiência espiritual autên-
para nossa reflexão. Os gregos apon- tidão; aliás, cada vez mais estridente tica e exigente.
tam para a unidade da pessoa: nada e cada vez mais vazio de conteúdo Gostaria de concluir este trabalho
de espiritualismo desencarnado, mas substancial! com uma citação de Marie Balmary,
também nada de materialismo. A A espiritualidade não é um cami- citação essa que abriu para mim
pessoa humana é um mix de chão e nho de facilidade porque a maturidade algumas perspectivas: “O que é pró-
de mistério! Essa ambigüidade está na e o uso da liberdade não prescindem, prio do espiritual é misterioso: uma
base de toda reflexão antropológica, habitualmente, do sofrimento e do energia ao mesmo tempo recebida
psicológica e religiosa, e constitui um conflito. Não cabe explicação, é um de fora e do íntimo, do outro e de si
desafio contínuo. dado observado por todas as grandes mesmo; ao mesmo tempo da alma e
Todos os sistemas que propõem tradições espirituais dignas desse do corpo, esta separação não existindo
uma interpretação fechada são fa- nome, expresso pela alegoria dos no espírito.” Não precisa comentar:
dados ao fracasso. Quando aceitam dois caminhos, na qual o caminho da só meditar.
dialogar, podem derrotar o reducio- felicidade é sempre apresentado como
nismo das definições superficiais e semeado de obstáculos.
tornar-se servidores da sabedoria. Os tomadores de decisão sentem
Num ambiente povoado de perfis na pele esse ambiente de conflitos e
Jean Bartoli
altamente definidos e rotulados, as de tensões, não por sobrecarga de tra- Professor da FGV-EAESP
pessoas penam para ser reconhecidas balho (isto é, cansaço), mas por causa E-mail: jeanbartoli@uol.com.br

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