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TEXTO A

O derradeiro mito da modernidade1


Um dos mitos mais arraigados do pensamento moderno é a crença na
existência de uma verdade objetiva, única e universal. Não faltam exemplos
para provar a falsidade desta crença: culturas diferentes têm verdades
distintas, e mesmo dentro da mesma cultura as verdades não se mantêm as
mesmas de uma época para outra.
Estes exemplos, contudo, podem dar a impressão de que existe uma
verdade impessoal que pertenceria a uma determinada cultura e época. Nada
mais falso! As sociedades são constituídas por indivíduos, e é nas
subjetividades destes que a verdade ocorre, portanto, quando dizemos "a
verdade de uma cultura X", o que queremos dizer é "aquilo que os indivíduos
da cultura X consideram verdadeiro".
De acordo com o dicionário Aurélio, subjetivo significa "existente no
sujeito; individual; pessoal; particular". Se a verdade é algo que ocorre na
mente do sujeito, e se tudo o que ocorre na mente do sujeito é subjetivo,
segue-se que a verdade é subjetiva, ou seja, individual, pessoal, particular.
Somos forçados pela lógica à conclusão de que toda verdade é particular, não
existindo esta verdade objetiva, impessoal, inumana.
Caso o argumento seja muito abstrato e, por isso, pouco convincente,
pense na sinestesia, esta peculiar condição mental que estabelece relações
entre percepções que pertencem a domínios diferentes da sensibilidade.
Existem pessoas que literalmente veem notas musicais. Para alguém nesta
condição, a nota fá, por exemplo, pode ter a cor azul, por conseguinte para ele
é uma verdade que a nota fá seja azul, mas para aqueles que não possuem
esta peculiaridade sensorial, é uma verdade que a nota fá é incolor. Quem está
certo?
A maioria absoluta das pessoas não vê cor em notas musicais, disto se
segue que o sinestésico esteja errado? Não é mais correto dizer que o
sinestésico tem uma verdade e que as pessoas comuns têm outra?

1
Não apresentaremos neste texto toda a vasta e complexa discussão filosófica que envolve o conceito
de "verdade" nem iremos fazer uso explícito de nenhuma teoria filosófica sobre o tema, pois nosso
objetivo é usar este texto simples como instrumento para o debate argumentativo entre vocês.
Mas o mito da objetividade persiste, insiste através de saberes que não
seriam meramente deriváveis de nossa sensibilidade, conhecimentos
supostamente objetivos. O exemplo é sempre o mesmo, cosmológico: o
movimento da Terra. Nosso planeta se move, dizem eles imitando Galileu, e
isto não é apenas uma hipótese, é uma verdade objetiva que quase custou a
vida do herói da ciência.
É a velha retórica positivista em ação: a ciência moderna descobre
verdades objetivas iniludíveis. Pura ilusão! A ciência moderna é apenas mais
uma interpretação do mundo não acima, mas ao lado de todas as outras
interpretações passadas e futuras.
Não conhecemos as coisas como elas são em si mesmas, pois apenas
temos acesso ao mundo exterior através de nossos sentidos e o que eles nos
oferecem é tão somente percepção.
Não vemos a gravidade ao observar uma maçã caindo, porque a
gravidade é apenas uma interpretação do movimento da maçã. Aristóteles, o
inventor da Física, tinha outra interpretação, ele acreditava que os objetos se
moviam em direção ao seu lugar natural que, no caso dos objetos pesados, é o
centro do cosmos: a Terra.
Qual a interpretação é a correta? Para responder a esta pergunta
precisaríamos saber como os objetos são em si mesmos, o que é impossível.
Talvez o universo seja regido por leis para nós eternamente inacessíveis. Tudo
o que temos são nossas percepções e a capacidade para interpretá-las. Uma
interpretação pode ser mais detalhada, coerente e convincente que outra, mas
disto não se segue que seja a mais verdadeira.
Os positivistas, no entanto, contestam tal perspectiva afirmando que é
apenas teórica, que ninguém poderia viver de acordo com ela. Se não
acreditas na gravidade, dizem eles, pule da janela! Que falácia! Eu não preciso
do conceito de gravidade para saber o que me ocorrerá se pular da janela de
um prédio alto. Será que os arautos da modernidade acreditam que antes de
Newton formular sua teoria as pessoas costumavam usar a janela como porta?
É claro que alguém pode argumentar que existem interpretações
verdadeiras e universais: aquelas que nos mantém vivos. Acreditamos que o
fogo queima, e que a água sufoca. Precisamos destas crenças para viver,
serão estas as verdades objetivas?
Na China antiga, as pessoas acreditavam que o eclipse solar era
causado por um dragão invisível que lentamente engolia o Sol. Para evitar que
o Sol fosse consumido, os chineses batiam em botes e tambores visando com
o barulho assustar o dragão. E funciona: o dragão sempre regurgita o Sol!
Crença boba? Certamente. Mas será que no futuro não pensarão o
mesmo da nossa explicação para o eclipse solar?
Se o conceito de verdade objetiva é tão indefensável, porque se tornou
tão proeminente na modernidade? A resposta é simples: poder.
Cada indivíduo tem a sua verdade, e nenhuma verdade é superior a
outra, o que cria uma homogeneidade de poder entre todos. Mas existem
aqueles que querem aumentar seu poder, e usam o saber como arma para
dominar as outras subjetividades. A estratégia é convencer os outros de que só
eles possuem a verdade, para então se tornarem os donos do saber.
É dessa forma que um indivíduo consegue controlar outros indivíduos, e
construir uma sociedade baseada na divisão entre aqueles que possuem o
saber-poder e aqueles que estão submetidos à verdade imposta pelos outros.
Se as pessoas acreditarem que chás, homeopatias e terapias
alternativas têm o mesmo poder de cura que os remédios convencionais, como
a indústria farmacêutica irá sobreviver?
A verdade objetiva nada mais é do que a verdade que um sujeito impõe
sobre os demais.

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