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3.

Freud e a ficção - Forbs

O que acabamos de expor se relaciona, em certa medida, com a problemática que


Freud levanta em 1908 em dois textos que podemos cotejar, a saber: Escritores
criativos e devaneio e Romances familiares.
Freud, em Escritores criativos, está muito intrigado “em saber de que fontes esse
estranho ser, retira seu material, e como consegue impressionar-nos com o mesmo e
despertar-nos emoções das quais, talvez, nem nos julgássemos capazes.1
Os escritores criativos, finalmente, têm a sua inspiração no mesmo local onde os
“escritores não criativos”, os neuróticos do “romance familiar”2 , a buscam: no jogo
infantil, na brincadeira de se inventar uma nova família, a mais bela história
garantidora de uma identidade poderosa e feliz.
Freud lembra que “nas criações desses escritores um aspecto salienta-se de forma
irrefutável: todos possuem um herói, centro do interesse, para quem o autor procura
de todas as maneiras possíveis dirigir a nossa simpatia e que parece estar sob a
proteção de uma Providência especial”3. E, mais para a frente, ao se referir ao
despudor do escritor em sua ars poetica, conclui: “Talvez até grande parte desse efeito
(liberador de tensões) seja devida à possibilidade que o escritor nos oferece de, dali
em diante, nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem auto-acusações ou
vergonha”4 .
Atenção, o fato de nos deleitarmos com os escritores não nos transforma num deles.
Segue a questão de por que uns, ao contar uma história, são maçantes e outros,
atraentes. Constatamos, imediatamente, que os narradores interessantes são aqueles
que possibilitam aos leitores se encontrarem na história que lhes está sendo contada,
a qual terá que ser suficientemente plástica para proporcionar essa abertura. Essa
plasticidade será tanto mais eficiente quanto mais o sujeito se vir decididamente
ancorado no Real, ali garantido, fixado, para dessa fixão poder contar várias histórias,
ficções com personagens em aberto para o leitor.

4. O verdadeiro da verdade - o ponto onde a ficção se fixa

Uma pessoa que procura uma análise quer saber qual é sua verdadeira história, seu
verdadeiro “romance familiar”. É como se cada um tivesse um quê de filho adotivo.
Cada qual, em meio às suas ficções, busca o aceso à própria verdade: o remédio que
espera do analista na certeza de, em o recebendo, resolver seu sofrimento.
“Está claro que é atrás do verdadeiro que se corre, disse-lhes já que é o verdadeiro da
verdade que se procura”5 .
A expressão de Lacan nos remete à discussão desse ponto delicado: o verdadeiro da
verdade. De que maneira uma verdade se garante, como legitimar essa verdade, base
de uma identificação almejada?
Tomemos como exemplo a diferença de falarmos em verdade e partir de uma posição
do signo em contraposição à do significante.
Restringindo-nos a definir signo como aquilo que representa alguma coisa para
alguém, podemos, simplificadamente, dizer por exemplo que os animais respondem a
verdades sígnicas. Uma determinada pessoa, e não outra, aparece para um cachorro
como seu dono6. Dificilmente esse animal faz erro de pessoa ou apresenta fenômenos
de transferência. As posições sígnicas provêm verdades estáveis e rígidas. Um
cachorro age sempre como um cachorro, um macaco como um macaco, um cavalo
como um cavalo. Feliz ou infelizmente só o animal homem pode, sem muito espanto,
fazer uma macaquice, uma cachorrada ou dar um coice. Buscando o verdadeiro da
verdade desse lado das grandezas sígnicas, nisso só terá sucesso o obsessivo que
faz com que o mundo pare, para que sua certeza fique bem plantada.
A verdadeira verdade e o seu verdadeiro devem ser buscados do lado do significante.
A plasticidade das identificações humanas não é suportável na estabilidade sígnica;
“nossa experiência nos mostra que os diferentes modos, os diferentes ângulos sob os
quais somos levados a nos identificar como sujeitos, supõem o significante para
articulá-lo”7 .
Como garantir uma verdade, quando operamos com o significante, é agora a nossa
questão.
No nível sígnico ela é mais simples, pois aí a verdade se traduz por semelhança, por
aparência; o dono do cachorro se parece consigo mesmo.
Esses critérios não são válidos quando estamos trabalhando com o significante. Aqui,
para que algo seja verdadeiro, devo prová-lo não por aparência; um dos métodos mais
usuais é a prova da verdade como se faz em lógica: sei que tal sentença é verdadeira
se posso, a partir de dados axiomas, respeitando sua linguagem e suas regras de
transformação, deduzi-la completamente.
Um paciente fala, livremente, como lhe pede a regra fundamental. Numa primeira
aproximação, verdade seria tudo aquilo que adquire sentido face a um axioma
estabelecido. Todas as falas ou todos os caminhos desembocam nesse axioma que é
uma ficção estável.
Temos aqui, na psicanálise, um evidente paralelo com os métodos axiomáticos de
prova da verdade utilizados em matemática.
Nossos problemas, e também os dos lógicos, não ficam por aí. A se estabilizar nesse
nível, a verdade de um paciente só seria resolvida no universal - ou seja, numa ficção
que serve a vários, globalizante. O particular de seu desejo não se resolve dessa
maneira - exige que haja uma outra forma de se garantir - antes prefere uma fixão no
Real a uma ficção universal.
“Eu me resolvo com o outro, mas nunca como o outro” pode ser uma máxima do ideal
do analisando.
Enquanto isso na lógica, o que é que está ocorrendo? Também aí a verdade não se
tranqüiliza de ser puramente axiomática.
Goldbach faz a seguinte conjectura: - “Todo número par é a soma de dois números
primos.”
“Nós nunca encontramos um número par que não seja a soma de dois números
primos, porém ninguém nunca pode demonstrar que essa conjectura de Goldbach se
aplique sem exceção a todos os números pares. Esse é um exemplo de uma
proposição aritmética que pode ser verdadeira, mas que, ao mesmo tempo, pode não
ser deduzível dos axiomas da aritmética”.8
Imagino que todos reconheçam aí um dos clássicos exemplos do “teorema da
incompletude” de Gödel. Como já chamamos a atenção em um trabalho anterior9, a
importância dessa demonstração de Gödel para nós, analistas, é dupla: a) são
possíveis sentenças verdadeiras não axiomatizáveis, e, ainda mais forte, b) não se
trata de pensar que gerando novos axiomas poderei deduzir essas verdades; a criação
de novos axiomas demonstra que sempre persistirão sentenças que podem ser
verdadeiras embora não axiomatizáveis.
São as sentenças indecidíveis.
Cabe aqui uma pergunta aos lógicos, nossos colegas, - o que Gödel dizia em 1931
sobre as proposições formalmente indecidíveis é que poderia haver proposições
verdadeiras, entre as indecidíveis, indecidíveis por não serem axiomatizáveis. Ele, no
entanto, não nos diz como, a partir daí, decidir sobre esses indecidíveis. É essa a
nossa pergunta: puderam os lógicos garantir, nesses posteriores 58 anos, uma
verdade indiferente ao axioma?10
Para nós, a decisão de uma verdade além do axioma, ao qual chamamos ‘fantasma’,
que é uma ficção, denomina-se ato analítico; uma fixão no Real. É o ponto onde a
ficção se fixa.

5. Lacan e a fixão do Real

“Recorrer ao nãotodo, ao pelomenosum, quer dizer aos impasses da lógica, é, por


mostrar como escapar das ficções da Mundanidade, fazer uma outra fixão do real: isto
é, do impossível que o fixa pela estrutura da linguagem. E também é traçar o caminho
por onde em cada discurso se depara o real com o qual ele se envolve, e despachar
os mitos com os quais ele ordinariamente se supre”.11
Lacan dixit!
Espero que os quatros pontos até aqui desenvolvidos ajudem a suportar a densidade
das articulações estabelecidas nesta frase de Lacan, entre as quais destaco:
Recorrer ao nãotodo, ao pelomenosum, aos impasses da lógica, é o que tentei
explicitar através dos impasses da demonstração axiomática e o teorema da
incompletude de Gödel. Há que se decidir no indecidível, escapando das ficções da
mundanidade, dos números repetitivos do romance familiar.
Do possível, enquanto aquilo que se interpreta, que pode se escrever, há que se
destacar uma outra fixão do real: isto é, do impossível que o toma pela estrutura da
linguagem, e que ao fazê-lo, despacha os mitos (e os fantasmas) com os quais ele,
ordinariamente, se supre.
Ao rigor desse parágrafo de Lacan em L’Étourdit vou antepor alguns de Pierre Rey,
seu analisando. É como se dessa fixão, retornasse uma ficção.

6. O paciente de Lacan e sua ficção

Ouçamo-lo em suas próprias palavras:


“Nunca procurei saber quanto tempo iria durar o trabalho que eu empreendera sob sua
tutela. No intervalo, se bem que meu estado civil tenha ficado com dez anos mais, eu
me sentia mais moço. E também mais velho. Mistura curiosa, onde se acavalavam
tempos de infância e de homem. Em minha relação com Lacan, as tensões tinham se
pacificado. Não mais dramas. Sobrava só meu desejo de saber, que me arrastava,
como nas Mil e Uma Noites, hora após hora, dia após dia, século após século.
Entrementes, imperceptivelmente, modificaram-se meus centros de interesse. Eu não
me arrependia de nada que eu vivera, mas seria incapaz de revivê-lo. Não mais
gostava do que antes gostara, e estranhamente, agora que eles me metiam menos
medo, conhecer-me melhor me tornara mais curioso dos outros, mais aberto, mais
indulgente quanto à tolice - não há mal-entendidos, e sim, somente mal-entendedores.
Sabia eu também, pois ele não se perde nem perde o frescor, que só o talento é o
verdadeiro poder.
Eu, igualmente, invertera certas proposições, cuja mentira social, o uso coletiva,
educação e cultura, nos fazem pensar que é imutável sua ordem.
Quero dizer, em vez de sujeitar meus desejos a meus meios, decidido a pagar o seu
preço, eu havia preferido criar-me os meios de meus desejos - partir do desejo para
multiplicar sua vida mais do que ajustar seus desejos ao limitado da vida. E ainda eu
devia ter aprendido que a finalidade do desejo não é preencher a falta, mas pelo
contrário, que a falta é a causa do desejo.
Sabendo disso, por que não tentar vivê-lo?
Excetuando-se raras concessões feitas à amizade, ao dever ou à necessidade, é
excepcional que eu não esteja bem, lá onde estou. Por uma simples razão, se fosse o
caso, eu já estaria em outro lugar.”12

7. Conclusão

A fixão do Real é o modulador das ficções. Antes de atingi-la, as ficções são


repetições do mesmo, do romance familiar. Depois, valendo-nos de que a fixão do
Real origina a repetição da diferença, dão-se as ficções criativas.
Isso é fundamental: a repetição da diferença, por ser sempre outra coisa,
repetidamente diversa, diverte e cria. Deve ser a justa articulação de desejo e gozo.
Aqui, na fixão do Real, o número é destituído de significado. Torna-se só um indicador
de um lugar numa série com seqüência;
- Agora você, o próximo!
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