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Uma pessoa que procura uma análise quer saber qual é sua verdadeira história, seu
verdadeiro “romance familiar”. É como se cada um tivesse um quê de filho adotivo.
Cada qual, em meio às suas ficções, busca o aceso à própria verdade: o remédio que
espera do analista na certeza de, em o recebendo, resolver seu sofrimento.
“Está claro que é atrás do verdadeiro que se corre, disse-lhes já que é o verdadeiro da
verdade que se procura”5 .
A expressão de Lacan nos remete à discussão desse ponto delicado: o verdadeiro da
verdade. De que maneira uma verdade se garante, como legitimar essa verdade, base
de uma identificação almejada?
Tomemos como exemplo a diferença de falarmos em verdade e partir de uma posição
do signo em contraposição à do significante.
Restringindo-nos a definir signo como aquilo que representa alguma coisa para
alguém, podemos, simplificadamente, dizer por exemplo que os animais respondem a
verdades sígnicas. Uma determinada pessoa, e não outra, aparece para um cachorro
como seu dono6. Dificilmente esse animal faz erro de pessoa ou apresenta fenômenos
de transferência. As posições sígnicas provêm verdades estáveis e rígidas. Um
cachorro age sempre como um cachorro, um macaco como um macaco, um cavalo
como um cavalo. Feliz ou infelizmente só o animal homem pode, sem muito espanto,
fazer uma macaquice, uma cachorrada ou dar um coice. Buscando o verdadeiro da
verdade desse lado das grandezas sígnicas, nisso só terá sucesso o obsessivo que
faz com que o mundo pare, para que sua certeza fique bem plantada.
A verdadeira verdade e o seu verdadeiro devem ser buscados do lado do significante.
A plasticidade das identificações humanas não é suportável na estabilidade sígnica;
“nossa experiência nos mostra que os diferentes modos, os diferentes ângulos sob os
quais somos levados a nos identificar como sujeitos, supõem o significante para
articulá-lo”7 .
Como garantir uma verdade, quando operamos com o significante, é agora a nossa
questão.
No nível sígnico ela é mais simples, pois aí a verdade se traduz por semelhança, por
aparência; o dono do cachorro se parece consigo mesmo.
Esses critérios não são válidos quando estamos trabalhando com o significante. Aqui,
para que algo seja verdadeiro, devo prová-lo não por aparência; um dos métodos mais
usuais é a prova da verdade como se faz em lógica: sei que tal sentença é verdadeira
se posso, a partir de dados axiomas, respeitando sua linguagem e suas regras de
transformação, deduzi-la completamente.
Um paciente fala, livremente, como lhe pede a regra fundamental. Numa primeira
aproximação, verdade seria tudo aquilo que adquire sentido face a um axioma
estabelecido. Todas as falas ou todos os caminhos desembocam nesse axioma que é
uma ficção estável.
Temos aqui, na psicanálise, um evidente paralelo com os métodos axiomáticos de
prova da verdade utilizados em matemática.
Nossos problemas, e também os dos lógicos, não ficam por aí. A se estabilizar nesse
nível, a verdade de um paciente só seria resolvida no universal - ou seja, numa ficção
que serve a vários, globalizante. O particular de seu desejo não se resolve dessa
maneira - exige que haja uma outra forma de se garantir - antes prefere uma fixão no
Real a uma ficção universal.
“Eu me resolvo com o outro, mas nunca como o outro” pode ser uma máxima do ideal
do analisando.
Enquanto isso na lógica, o que é que está ocorrendo? Também aí a verdade não se
tranqüiliza de ser puramente axiomática.
Goldbach faz a seguinte conjectura: - “Todo número par é a soma de dois números
primos.”
“Nós nunca encontramos um número par que não seja a soma de dois números
primos, porém ninguém nunca pode demonstrar que essa conjectura de Goldbach se
aplique sem exceção a todos os números pares. Esse é um exemplo de uma
proposição aritmética que pode ser verdadeira, mas que, ao mesmo tempo, pode não
ser deduzível dos axiomas da aritmética”.8
Imagino que todos reconheçam aí um dos clássicos exemplos do “teorema da
incompletude” de Gödel. Como já chamamos a atenção em um trabalho anterior9, a
importância dessa demonstração de Gödel para nós, analistas, é dupla: a) são
possíveis sentenças verdadeiras não axiomatizáveis, e, ainda mais forte, b) não se
trata de pensar que gerando novos axiomas poderei deduzir essas verdades; a criação
de novos axiomas demonstra que sempre persistirão sentenças que podem ser
verdadeiras embora não axiomatizáveis.
São as sentenças indecidíveis.
Cabe aqui uma pergunta aos lógicos, nossos colegas, - o que Gödel dizia em 1931
sobre as proposições formalmente indecidíveis é que poderia haver proposições
verdadeiras, entre as indecidíveis, indecidíveis por não serem axiomatizáveis. Ele, no
entanto, não nos diz como, a partir daí, decidir sobre esses indecidíveis. É essa a
nossa pergunta: puderam os lógicos garantir, nesses posteriores 58 anos, uma
verdade indiferente ao axioma?10
Para nós, a decisão de uma verdade além do axioma, ao qual chamamos ‘fantasma’,
que é uma ficção, denomina-se ato analítico; uma fixão no Real. É o ponto onde a
ficção se fixa.
7. Conclusão