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ACADEMIA BRASILEIRA DE LETRAS

Textos Escolhidos

No jogo da verdade a crítica é criação

A tarefa de deslindamento crítico consiste num processamento ideológico,


corresponde a um interminável esforço de compreensão da verdade. Compreender
a verdade é localizar-se no interior do seu jogo e acompanhar a sua dinâmica
interna. Assim como a verdade joga para totalizar, a crítica só é criação quando se
confunde com o jogo total do mundo, com aquela "fascinação suprema", carregada
de sentidos maiores. Essa reflexão arranca de Heráclito, que viu no logos o
princípio e o fim de tudo, e que foi - e somente sendo poderia ver - o primeiro
dialético consciente do pensamento ocidental. O logos é uma dinâmica de jogo;
livre, sem leis nem regras. A temporalidade do logos é o seu jogo. Heráclito assim
falou num Fragmento famoso, de nº 52 - a temporalidade do logos é uma criança
deslocando pedrinhas para lá e para cá: a vida da criança. O jogo é a própria
dinâmica de estruturação da temporalidade. Dele emergem aquelas condições de
relacionamento - entre os homens e as coisas, por exemplo - e de manifestação
totalizadora da verdade.

Modernamente Johan Huizinga conduziu essa investigação para o âmbito das


descrições culturais. Ao lado do Homo sapiens, e ocupando um esparço bastante
mais amplo que o do Homo faber, ele colocou o Homo ludens. Acentuando o caráter
lúdico da cultura e surpreendendo no jogo a fonte e o impulso do avanço
civilizatório, Huizinga autonomiza a noção de jogo, conferindo-lhe o status de um
macro-modelo por vezes absorvente e duvidoso. Em que pese essa perigosa
expansão conceitual, o seu obstinado esforço teórico guarda o mérito de haver
contribuído decisivamente para recuperar a positividade, a seriedade do jogo. Para
além do racional e do irracional, da lucidez e da loucura, as funções lúdicas
instauram o mito e a poesia. O jogo é, como afirmou Eugen Fink, ligando Heráclito
ao pensamento de hoje, o símbolo do mundo.

O jogo do mundo e o jogo da verdade se implicam reciprocamente, tanto mais que


o problema da verdade se coloca a partir de um movimento histórico, e é dentro
desse movimento, condicionado pela sua dinâmica fundadora, que ele exibe
diferentes faces. Para compreendê-las é necessário escalar os degraus de um
equacionamento contraditório, onde a interpretação metafísica vai sendo
progressivamente aberta pelas figuras do homem e da história. Isto significa uma
mudança radical no quadro da tradição, na maneira de pensar do Ocidente. A
estrutura tradicional da verdade era sustentada por um pacto de conformidade
entre o juízo e o seu objeto, a coisa julgada, a realidade. A ordem interna que
referendava este acordo excluía a contradição. Mesmo transposto o
enclausuramento medieval, a reflexão transcendental de Kant insistia na
adaequatio rei ad intellectum. Permanecia a oposição entre verdade e erro. A
verdade continuava uma relação isomórfica tal qual; e por isso mesmo, degradava-
se.
Como se estruturava essa verdade tradicional, fundada na lógica e na adequação?
O relacionamento lógico é pré-requisito da adequação. E ele exige apenas a
compatibilidade dos elementos da síntese judicativa. No exemplo "o círculo e
quadrado" o que predomina é uma ordem de compatibilidade interna. Na
adequação, necessário se torna que os elementos não se excluam e que,
correspondendo à realidade, mantenham o compromisso instrumental e
pragmático. A formulação tradicional, alternando entre um ou outro nível,
renunciava à totalização. Talvez ignorando que um acordo deste tipo - tal qual -
depende sempre das condições específicas do sujeito que julga e do objeto julgado.

Qualquer que seja a natureza da verdade e o seu lugar, ela mantém-se


irreversivelmente ligada ao homem. Até a estruturação metafísica depende do
homem; é ele quem realiza a verdade historicamente. O homem é passagem
obrigatória na curva da verdade lógica de adequação para a verdade originária de
revelação. Agora o revelador respeita, preserva a diferença do objeto que julga
porque a noção de verdade pressupõe e exige a interpretação do homem.

Evidentemente a manifestação da verdade não é estática mas histórica. Ainda


mais: o movimento de manifestar-se é a própria historicidade. E assim as criações
globais - pensamento, arte, religiosidade - são instâncias de acionamento da
manifestação: do homem e da realidade. São formas originárias de instalação da
verdade originária. Tanto mais originária quanto mais desdobra-se objetivamente
numa transgressão sintática. A linguagem enquanto verdade predicativa abre-se
numa relação isomórfica sustentada pelo dualismo significante e significado, da
mesma maneira que a linguagem enquanto verdade manifestativa destrói, porque
transpõe, este sistema maniqueísta de oposições. E nessa situação limite a arte
emerge como modo originário de manifestação da verdade do Ser. Está mais uma
vez explicado porque a atitude existencial da poesia distancia-se da do discurso. O
entretexto não se dá ao nível da isomorfia tal qual; atua como verdade da
existência. Enquanto o discurso pressupõe mundo, história, existência, a poesia os
cria. Mas cria dentro das dimensões do discurso. O poeta utiliza a língua, as regras
da gramática, sem se deixar aprisionar por elas. Ele é tanto mais poeta quanto
menos obediente se mostra as determinações formalizantes.

Assim como a questão da verdade coloca o problema do homem, este só se


aprofunda no horizonte problemático da história. Não poderia ser de outra maneira:
o homem existe dentro de modalidades fundamentais que são as épocas da
história. A ilusão sistêmica ou estruturalóide, de feição predominantemente
sincrônica, parece imaginar que, no seu relacionar-se com o mundo e as coisas, o
homem pode prescindir da história. Ignora igualmente que a própria constituição do
discurso depende de aberturas nitidamente epocais, e chegam a proclamar uma
onticidade inevitavelmente hemiplégica. Já podemos entender porque o
conhecimento ôntico, toda vez que se apresenta como um corte, é um saber
regional, comprometendo aquele pressuposto segundo o qual o existir do homem
implica em colocar suas relações dentro de uma estrutura referencial. E é a partir
daí que a existência do homem se faz constitutiva da verdade. Isto não quer dizer
que o homem seja a fonte formal da verdade. Não. Diz unicamente que as
condições de possibilidade da verdade ancoram no espaço do homem. Neste
instante o homem encontra na diáspora a sua metáfora natural. Ele é um mediador
nato, realizando plenamente a dialética identidade e diferença. Podemos dizer que
certo estruturalismo militante falta com a verdade na medida em que retira o
homem da estrutura. A rigor é o homem quem se retira, porque transborda os
acanhados limites territoriais da estrutura. O que acontece sem a menor
periculosidade para ele, já que permanece maior do que o abismo. A própria
dicotomia objetividade e subjetividade não esgota o homem; é apenas um pequeno
abismo.
Se a verdade é historicamente tópica, como atua no interior do nosso tempo? O
questionamento dessa indagação arranca e se apóia num princípio básico: a
verdade de nossa existência e a capacidade histórica de tornar a verdade possível.
Ao caracterizar a sua identidade e diferença, o homem se assume como revelador
histórico da verdade. No decorrer dessa discussão radical, o ser-no-mundo aparece
como fundamento ontológico da verdade e podemos compreender a positividade da
não-verdade. A não-verdade deixa de ser a parte contrária da verdade, o erro, o
falso, para se fazer componente constitutivo da verdade. Para além da
concordância, do acordo, da conformidade, verdade e não-verdade se implicam
reciprocamente. A não-verdade é a totalidade encoberta, e a constatação do erro
pode ser levada a efeito quando a dialética se relaxa e o homem localiza-se em um
dos pólos. É nesse nível que se torna possível e fascinante a odisséia da reflexão.
"Que nos restará para investigar - são palavras de Heidegger - se admitirmos que
sabemos o que significa a concordância de uma enunciação com uma coisa?" Para
esse tenso e infatigável empenho de restauração ontológica o que está sendo
problematizado é, em última análise, a verdade do Ser. Não é sem razão que
Martin Heidegger conclui o seu livro-chave Ser e tempo, dando um novo rumo à
questão. Para ele a verdade originária se gera na abertura do homem. Essa
abertura é historicamente elaborada na medida em que as épocas históricas trazem
para o homem as condições de possibilidades de relacionamento consigo mesmo e
com o seu contorno existencial. A existência humana está originariamente nos dois
lados, no da verdade e no da não-verdade. E a verdade mais originária não se
localiza na verdade. Aqui se ilumina ainda mais a famosa sentença heideggeriana:
"a arte é pôr na obra a verdade". Guimarães Rosa para dizer esse jogo bifronte e
múltiplo, que é o jogo do próprio entretexto, instituiu uma terceira dimensão - "a
terceira margem do rio"; aí onde a liberdade é possível.

Toda vez que sufocamos a liberdade, comprometemos a essência da verdade. A


racionalidade repressiva do Ocidente fez da verdade uma meia verdade, unilateral e
arbitrária; e como não existe meia verdade, recolhemos a inverdade. Está
perfeitamente claro como, a cada momento, estamos falando do homem e suas
criações mais plenas. E compreende-se porque a verdade é preocupação constante
em toda reflexão que visa a recolocar o problema da literariedade. O intento
semiológico, ao investigar o sentido das representações, consiste em pesquisar
concretamente o que quer dizer num discurso, mediante, está claro, a articulação
na faixa do sistema de signos. A preocupação ontológica investiga todo o
movimento estruturante do sistema de signos; desce ao núcleo dinâmico da
experiência poética, à criatividade, lá onde a ideologia impulsiona a verdade. Por
isso a crítica é a verdade da ideologia - a crítica que não se confunda com um
catálogo de utensílios, capaz de preservar aquela peculiaridade hermenêutica,
segundo a qual conhecer e co-nascer. E saiba: somente se conhece nascendo com.
Essa crítica ontológica ou poética não é apenas uma linguagem sobre -
metalinguagem, como o querem Barthes e seus epígonos - mas uma linguagem
com. A aliança criadora do com, ela a realiza em dois níveis. Ao se deixar levar
para a própria fonte das possibilidades do entre-texto e daí retirar forças para
alçar-se ao estado de criação, e ao reconduzir todas as coisas à poesia, à sua fonte,
trazendo para este nível o conjunto de implicações do texto, sejam as elaborações
lingüísticas, as oscilações psicológicas ou os movimentos sociais. A primeira
dimensão desse empreendimento é determinante porque uma crítica que não é co-
natural, ou seja, não é da mesma natureza, será sempre uma meta - aqui sinônimo
de passar por fora ou à margem - linguagem. Ao contrário da linguagem sobre, a
linguagem com procura ser, ela mesma, uma criação; mas uma criação peculiar,
alimentada pela idéia de que não se fala sobre literatura de fora da literatura. No
caso de Roland Barthes, faça-se justiça, a qualidade textual do exercício crítico é
desmentido da crítica como exclusiva metalinguagem. E parodiando as palavras de
Platão, no Livro VII da República "se o nosso olho não fosse solar não poderia ver a
luz do sol" - podemos acrescentar: uma crítica não criativa não pode ver a criação.
A crítica literária consiste, portanto, em apreender o movimento livre da criação.
Por isso a leitura hermenêutica ou poética confunde-se com a própria obra.

A co-naturalidade da crítica deve abranger solidariamente as duas instâncias do


com. Será tanto mais abrangente quanto mais projete a sua estrutura dialética. O
que acontecerá sempre que desenvolva o seu caráter silético (syn + lego,
etimologia que pode ser traduzida com + reunir). Silética é a linguagem que
instaura mediações e promove a estruturação dos níveis descritos; o da elevação e
o da recondução. Este segundo articula uma redução, não evidentemente no
entendimento vulgar de diminuição mas no sentido fenomenológico de reconduzir.
Reconduz a criação poética a seu nível, já que ela não se plenifica em todas as suas
dimensões porque a luta com o não-ser poeta é constante e interminável. Daí
emerge a função redutora do crítico, reconduzindo, fazendo-se o para-si da
literatura. O crítico tem muito do filósofo, do pensador, do hermeneuta. No seu
deixar ser silético verifica-se um enriquecimento das forças de decisão, de
julgamento; julgamento que se alimenta das energias mobilizadas pela redução;
syn e lego. Julgar é, portanto, uma decisão no nível da verdade. E a própria palavra
crítica concentra todo esse universo, acentuando-se o seu caráter criador por ser,
ela mesma, a expressão da verdade originária de revelação ou desvelamento (to
alethea). No dinamismo do jogo da verdade a crítica é criação.

(Fundamento da investigação literária, 1974.)

José Guilherme Merquior: a destreza crítica

Agora que passou de moda atacar a José Guilherme Merquior, talvez se possa
revisitá-lo, longe dos preconceitos ideológicos, ou de associações simplesmente
apressadas. Para início de conversa, é bom lembrar que Merquior foi a mais
fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista - irreverente, agudo, sábio.
A reedição de suas obras certamente contribuirá para colocá-lo novamente em
cena.

José Guilherme Merquior quase se desculpa por operar na freqüência da história


das idéias, festejada ontem, desvalorizada hoje. Ele sabe que a inflação e a
vertigem da novidade têm razões que a própria razão desconhece. E que
alternativas metodológicas pacientemente elaboradas podem ser, da noite para o
dia, inexplicavelmente inabilitadas. Merquior procura contrapor, à trapaça da
erosão produzida, o vigor da reflexão. Sendo um ensaísta da literatura e da arte,
como se mostra nos vinte e cinco anos de militância selecionados no volume
Crítica, é antes o pensador que evita a "literarização" - o termo é seu - do
pensamento. A sua crítica dialógica ancora ao largo da imanência, e se absorve
uma ou outra lição da intertextualidade, jamais se entrega à ansiedade da
influência. Ele proporcionaliza, com a necessária astúcia crítica, as diferentes
esferas da compreensão. Não simplifica, nem reduz. O seu olhar abrangente se
protege da mera avaliação estetizante, e se distancia, em tempos tão objetivos, da
canonização do nível empírico, nas marchas e contramarchas da ambição científica.

José Guilherme Merquior não poupa as artimanhas do saber acadêmico, na versão


confessadamente institucional. E se empenha, com êxito, em permeabilizar a
erudição, o deslumbramento cumulativo, com a ironia. A hipotensão cultural do
erudito vê-se a todo instante reprogramada. O ataque à "antropologia de poltrona"
tem tudo a ver com esse esforço de renascimento. A destreza rígida, e ao mesmo
tempo exibicionista - Merquior diria narcisista, o que vem a ser quase a mesma
coisa - do scholar, desce a sabedoria convenientemente erotizada. Acrescente-se
que o nosso crítico está preocupado em se fazer entender, e tornar igualmente
acessíveis linhas mestras do pensamento contemporâneo. Daí "evitar expressões
técnicas", nas quais surpreende, muito a contragosto, o jargão ocioso e predatório.

Em De Praga a Paris, ele poderia ter feito apenas a reconstituição historiográfica,


ou genealógica, do estruturalismo, e de suas projeções pós-estruturalistas. José
Guilherme Merquior vai mais adiante. Confronta as várias propostas estruturalistas,
tendo o seu ex-professor Claude Lévi-Strauss à frente do cortejo, com as diversas
inflexões desdobradas pelo pensamento, a partir da indecisa ou parcial diáspora
metafísica. Do mesmo jeito que se opusera ao pessimismo da primeira Escola de
Frankfurt, ele agora impugna a "triste estética da ausência" que, no lusco-fusco do
segundo pós-guerra, Bataille, Blanchot, e depois Barthes, puseram em circulação. A
essa tertúlia crispada, não poderiam faltar Gide, Bachalard, Sartre, Camus, Genet,
e tantos outros. Os representantes da chamada "esquerda heideggeriana francesa"
(por Luc Ferry e Alain Renaut, em O pensamento 68: ensaio sobre o anti-
humanismo contemporâneo), Jacques Derrida, Jean François Lyotard, Gilles
Deleuze, Michel Foucault, foram recebidos com evidentes sinais de
constrangimento, e talvez de animosidade. De Jacques Lacan nem há o que falar.

José Guilherme Merquior jamais perdoa os dissidentes da razão, e nem admite que
se toque ou se ponha em dúvida o espólio reflexivo da modernidade. A sua
metralhadora giratória não poupa as inflexões insólitas da racionalidade, e menos
ainda as irrupções da desrazão. Os que se arvoram a navegar contra a correnteza
da razão hegemônica são logo estigmatizados como militantes da contracultura,
decadentistas incorrigíveis, todos alistados na frente comum antimodernista. Nem a
desconstrução, à maneira de Derrida (e do pós-estruturailsmo), nem a
reconstrução, ao modo de Habermas. Contra o desconstrucionismo, Merquior
escreveu o seu mais enérgico libelo, que é certamente o livro Michel Foucault ou o
Niilismo da cátedra. Desde Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin,
quando o autor deixara escapar certo sotaque heideggeriano, que o seu empenho
de recuperação tem sido infatigável. A referência ao ser, à noite metafísica, à
essência da técnica, provenientes da Floresta Negra, bem como a idéia da ausência,
do autor morto, dos significados brancos, recolhida no asfalto de Paris, passaram a
desagradá-lo enormemente. Mesmo o conceito de dissenso negociado, ou de
diferendo, trazido à mesa das negociações pelo professor Lyotard, ou ainda a via do
consenso comunicativo, segundo as indicações de Jürgen Habermas, pareciam
provocações inaceitáveis de pensadores que não sabiam o que fazer com a herança
metafísica.

Essas proclamações chegam aos seus ouvidos como palavras irreflexas, como
pequenos caprichos intelectuais, destituídos de horizontes. Nem mesmo uma das
mais chocantes sentenças da época conseguiu sensibilizá-lo: "A morte do homem".
Não há nisto qualquer tipo de sectarismo, ou inflexibilidade. Merquior identifica no
estruturalismo "um estilo de pensamento no lado humanístico do conhecimento".
Chega até a manter o crédito de confiança no "binarismo inveterado" de Lévi-
Strauss, inclinando-se por ver nele o preciso recurso metodológico de que se serve
a análise estrutural. Mais do que isto, não concede.

No seu livro O liberalismo, antigo e moderno, José Guilherme Merquior leva a efeito
a reconstituição crítica do processo liberal. Parte da revalorização, isenta e livre, de
formulações de José Ortega y Gasset, em um livro esquecido e não raro difamado:
A rebelião das massas, de 1929, que reuniu ensaios dos anos anteriores. Para
Merquior, "Ortega restitui o sentido moral da palavra a seu sentido político". Isto
significa que o desempenho político nunca deve descartar-se do compromisso ético.
Em vez de uma simples mistura, trata-se de implantar um sistema de permutas
compartilhadas. Mas o princípio relativista, que amparou esperanças tão generosas
quanto ingênuas, agravou consideravelmente esse quadro. Desde o liberal Alain, "o
parlamentarismo corrupto" faz pendant com o presidencialismo permissivo. Até
aqui e ali, não nos foi possível desarmar essa lógica perversa. O que só será viável
mediante a assinatura de contratos rescindidos, ou jamais assinados: o contrato
social, revisto e atualizado; o contrato natural, já lembrado por Michel Serres, é
capaz de conferir sentido à idéia imobilizada do "desenvolvimento sustentável"; e
principalmente o contrato moral, em condições de interromper a marcha acelerada
da desertificação ética. Não chegaremos lá pela estrada do pensamento único, nem
do paleoliberalismo concentracionário, evasista e satisfeito, de alguns dos nossos
mais condecorados dinossauros.

Em compensação, seria inexplicável ignorar-se o balanço favorável da London


School of Economics, de Isaiah Berlin ou Ernest Gellner, também Aron e
Dahrendorf, Rawls ou Bobbio, nessa jornada complexa. Provavelmente por isso
Merquior conclua pela variedade do liberalismo, e nós poderíamos acrescentar que
cada qual tem o liberalismo que merece - desde o que inclua o direito à imagem
nos meios de comunicação, até aquele outro que se conforma com a inglória
liberdade de morrer de fome.

"Em sua idade de ouro - nos lembra oportunamente José Guilherme Merquior - o
século XIX, o movimento liberal atuava em dois níveis, o nível do pensamento e o
nível da sociedade." Hoje, ao que tudo indica, as duas frentes exibem evidentes
sinais de esgotamento. O déficit legal, normativo, aumenta o coeficiente de
adversidade. Enquanto isso, a aspiração liberal só nos unirá, na medida em que
reunir democracia e justiça social. Merquior jamais perdeu de vista esta
perspectiva. Intelectual que se distinguiu pelo traço cosmopolita e pela condição de
brasileiro, logo nos indicou o seu lugar vincado: "Liberal neo-iluminista". Não
devemos deixar que se interrompa o nosso colóquio com ele.

(O Liberal, Belém - PA, 9.3.1996.)


O INTELECTUAL E SEUS FANTASMAS

Eduardo Portella

A figura do intelectual emerge no marco das Luzes, e é fácil escutar, como


trilha sonora renitente, ou estridente, os estertores da Revolução
Francesa. Hesito em falar da situação do intelectual hoje. Talvez seja mais
apropriado mencionar a falta de situação, de lugar razoavelmente
recortado, ou de ausência, vazio ou incomodidade. Seria ele o sobrevivente
de si mesmo, o entreparêntese, o prestador de serviços inorgânicos? Em
todo caso, algo bem distante da luminosidade que exibiu em dias de
triunfo. Como fator agravante, vale observar que os últimos
gutembergianos e os primeiros intemautas não conseguiram
assinar, pelo menos até o presente momento, um acordo de cavalheiros.

O intelectual já foi o profeta, sermonista aplicado, que se dedicava a


profecias infalíveis, e prometia paraísos que só muito depois constatamos
serem artificiais. Ele também foi o messias, investido de indiscutível
programa salvacionista. Os programas não se cumpriram e a salvação ficou
adiada sine die. Ambos foram atirados na vala comum do descrédito. O
intelectual foi igualmente o guru mais ou menos desempregado, e em
algumas culturas desdobrou uma inflexão esotérica nada confiável.
O sistema oficial de transmissão do saber entronizou e canonizou a
figura do intelectual na sua fórmula ilustrada. Aquela que ostenta, não a
consciência partilhada, revigorada no contato com os outros - porém a
consciência dobrada sobre si mesma. Os derradeiros depositários dessa
consciência plena conservaram sempre a fala sentenciosa, e
freqüentemente enganosa, do humanismo filantrópico.
Os traços fisionômicos desse intelectual moderno, que se tornaram
familiares pelo menos desde Voltaire, vão perdendo, a cada hora, os seus
conhecidos contornos identitários. Por auto-suficiência e conseqüente
isolamento.
O detentor da última palavra vai se transformando no protagonista
demissionário. Sartre preservou o seu protagonismo porque nele o
trabalho da consciência, da linguagem, se bateu o tempo todo por transpor
as muralhas do eu individual.

II

Hoje, na cena conturbada da baixa modernidade, o intelectual se junta


ao político, como atores sociais descartáveis. O primeiro, por falta de
audiência; o segundo, por falta de credibilidade. Ambos se encontram na
UTI do espírito, com modestas chances de recuperação. Mesmo assim nada
nos autoriza a aceitar o fato consumado. Ninguém sai ganhando com essas
duas perdas.
O Poder e audiência são, agora mais do que nunca, termos
correlatos. A passagem talvez se encontre entre o poder desfigurado e a
audiência manipulada. A passagem é ainda uma porta estreita, porém é
uma porta. E isto pode acontecer quando o intelectual se afasta dos seus
próprios fantasmas, retoma os caminhos do pensamento, reinventa ou
reencontra a ética da convivência. Persistem algumas turbulências no
horizonte da reflexão-ativa.

Precisamos rever os nossos instrumentos críticos. O intelectual


deste fim de milênio parece aquele aparelho atingido em pleno vôo.
Quando comemorava os ganhos da especialização pura foi surpreendido
pelo vigor da complexidade, inscrito na aventura humana e, até segunda
ordem, na história, na sociedade, no saber, em
todos os lugares protegidos contra a apropriação monodisciplinar.
O traçado sinuoso desse percurso insólito tem algumas paradas
obrigatórias:
- Com a Revolução Francesa se cristaliza e prosperará a idéia do
intelectual público, modelo Voltaire, versão Sartre, transformador,
subversivo, em
qualquer hipótese inconformista.
- Com a modernidade urbanizada o intelectual se afirma como
encarnação e intérprete da cidade, sensível aos mínimos passos do
"homem da
rua". Essa trepidação urbana, veloz e cada vez mais dessingularizadora, foi
registrada em textos emblemáticos de Edgar Allan Poe e Charles
Baudelaire.
- Com a propagação do ideário revolucionário, o intelectual,
reconhecendo "o papel das mediações ético-culturais (Michael Löwy), não
vacilou
em "sujar as mãos" (como se disse) no dia a dia da contenda social.
- É quando avança o desempenho do intelectual partidarista,
reconhecidamente "orgânico", servidor dedicado ou inflamado da causa
revolucionária, estendendo-se diversificadamente até os desenlaces e as
fragmentações da segunda metade do século.
As "ilusões perdidas", as certezas abandonadas, denegariam, de uma
vez
por todas, os sonhos das construções plenas e acabadas.

III

Bernard-Henri Lévy procurou recentemente reconstituir o perfil do


intelectual
padrão, exemplo e referência desta espécie, provavelmente em extinção,
no seu
Le Siècle de Sartre (Paris, Grasset, 2001). O livro, talvez seja a afetuosa
elegia ou
o simples réquiem para o intelectual defunto. Indisfarçável nostalgia,
solidariedade
tão paradoxal quanto inútil, perpassam as suas páginas. Às vezes ficamos
sem
saber onde estamos: se do lado de Sartre ou contra Sartre. Ao mesmo
tempo em
que nos fala de Sartre como a representação superior da "generosidade",
ele nos
revela o Sartre "cruel" - cruel até para consigo mesmo. Sartre destrói os
amigos
em vida para ressuscitá-Ios afetuosamente depois de mortos. Foi assim
com
Maurice Merleau-Ponty, com Paul Nizan, com Albert Camus. Sartre seria o
especialista em discursos póstumos pretensamente compensatórios.
Polêmicas
implacáveis diante de vivos perplexos e tocante complacência diante de
corpos
silenciados. Há sempre um outro, que conduz o intelectual no limite do
extermínio e
da redenção possível. Como se o intelectual nunca pudesse viver, ou
sobreviver,
sem os seus fantasmas.
Não sei. Mas chego a supor que, em que pese a retórica apologética de
que se serve Lévy, Sartre sai bastante ferido dessas estranhas páginas de
louvação. Acidente de percurso? Queima de arquivos? Acerto de contas?
Crime perfeito? Não sei, não. Mas é difícil resistir à impressão
predominante de que o
autor não quis ou não soube evitar o extermínio generalizado da condição
de
intelectual, em tempos de cólera. .
Bernard-Henri Lévy nos indica vários Sartre, ao longo de uma jornada
ciclotímica, entre crispada e crivada. Há um Sartre inicialmente
heideggeriano, que ele descreve em nota loquaz ("Note sur Ia
question Heidegger", ps. 181 a 217), talvez inflamada, porém pouco
reveladora. É o "mau" Sartre. Há um capítulo final
sobre "Sartre avec Lévinas" (p.652), onde ele afirma textualmente: "Ce
dernier
Sartre est lévinassien" (p. 654). Este é o "bom" Sartre.
O livro de B.H.L. é um livro que dialoga, debate incessantemente com o
judaísmo, sua genealogia e suas sucessivas representações, suas
revelações e
seus mal-entendidos. Não seria de todo desbaratado imaginar-se que o
autor usou
diferentes interlocutores, os que circulam através destas páginas, para
discutir a
questão judaísmo, aqui e agora. E ainda para impugnar, nem sempre com
razão, o
filósofo Martin Heidegger. Especialmente quando projeta o episódio
político sobre o
conjunto do pensamento do autor de Ser e Tempo. Bem mais elucidativo da
recepção de Heidegger na França são os dois volumes de Dominique
Janicaud,
Heidegger en France, recentemente publicados por Albin Michel (2001). Aí,
a
paixão da imparcialidade jamais chega a nos conduzir, como costuma
ocorrer
nessas ocasiões, à parcialidade sem paixão.

IV

Bernard-Henri Lévi classifica Jean-Paul Sartre como o intelectual


absoluto, sem se aperceber que tudo o que é absoluto pertence
hoje ao reino do fantasmal.
Segundo ele, Sartre teria ganho, com todos os méritos diga-se de
passagem, "a
posição de intelectual absoluto" (ps. 28, 37, 180). E não vacila em
designar, sob os
auspícios da plenitude ou da totalidade, a "Igreja Sartre". Diga-se o que se
disser,
Sartre nunca seria um credo. Foi, antes, uma agenda de debates - "a
aventura
complicada, paradoxal, perturbada", que o próprio Lévi soube reconhecer.
Pode
alguém, nos tempos modernos, ser intelectual se não trouxer consigo essa
desolação irreparável? Tudo indica que não.
A esta altura, seria a hora de perguntarmos o que persiste do corte
oracular,
precocemente institucionalizado, do intelectual moderno. A primeira
resposta não
seria das mais favoráveis. Persiste, deslocada, a velha pose sacerdotal,
presente
ainda na maioria das diversas falas, como se repetisse, em versão menos
arrogante, os velhos tiques nervosos dos déspotas esclarecidos. A eles se
juntam
a nostalgia do todo e a resistência decrépita da consciência plena. O culto
da
totalidade nunca deixou de ser o persistente fantasma do intelectual, ou o
próprio
intelectual enquanto fantasma. A segunda resposta não é mais animadora.
Persiste a impostação salvacionista, autolegitimadora, que reproduz o seu
registro
de origem. No fundo falso da história, o original se repete como farsa. A
terceira
resposta busca recuperar alguma coisa do otimismo esmigalhado. Entende
que o
intelectual referência, panteonizado, efeméride nacional, morreu, sem
dúvida a
contragosto, com Jean-Paul Sartre, e desapareceu em meio à multidão
que, entre
contrita e desatenta, acompanhou a Cérémonie des Adieux. O prestígio e a
prestidigitação da consciência, o mandato cheque em branco do soberbo,
depôs as
suas armas.
Agora, não sei se resignado ou infeliz, mas certamente despojado de
suas
vestes talares e de suas luzes imperiais, o intelectual finissecular foi
reduzido a um
ator social a mais na cena multitudinária da sociedade baixo-moderna. Não
é
pouco. Somente seria pouco se comparado com o muito de que já dispôs.
Mesmo
assim, nessa fronteira imprevisível, os fantasmas não foram de todo
dissipados.

* Texto discutido na PG/FL/UFRJ, mimeo., 2001.

in Revista Tempo Brasileiro, 145, Rio de Janeiro, Tempo Brasileiro, 2001.

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