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Textos Escolhidos
Agora que passou de moda atacar a José Guilherme Merquior, talvez se possa
revisitá-lo, longe dos preconceitos ideológicos, ou de associações simplesmente
apressadas. Para início de conversa, é bom lembrar que Merquior foi a mais
fascinante máquina de pensar do Brasil pós-modernista - irreverente, agudo, sábio.
A reedição de suas obras certamente contribuirá para colocá-lo novamente em
cena.
José Guilherme Merquior jamais perdoa os dissidentes da razão, e nem admite que
se toque ou se ponha em dúvida o espólio reflexivo da modernidade. A sua
metralhadora giratória não poupa as inflexões insólitas da racionalidade, e menos
ainda as irrupções da desrazão. Os que se arvoram a navegar contra a correnteza
da razão hegemônica são logo estigmatizados como militantes da contracultura,
decadentistas incorrigíveis, todos alistados na frente comum antimodernista. Nem a
desconstrução, à maneira de Derrida (e do pós-estruturailsmo), nem a
reconstrução, ao modo de Habermas. Contra o desconstrucionismo, Merquior
escreveu o seu mais enérgico libelo, que é certamente o livro Michel Foucault ou o
Niilismo da cátedra. Desde Arte e sociedade em Marcuse, Adorno e Benjamin,
quando o autor deixara escapar certo sotaque heideggeriano, que o seu empenho
de recuperação tem sido infatigável. A referência ao ser, à noite metafísica, à
essência da técnica, provenientes da Floresta Negra, bem como a idéia da ausência,
do autor morto, dos significados brancos, recolhida no asfalto de Paris, passaram a
desagradá-lo enormemente. Mesmo o conceito de dissenso negociado, ou de
diferendo, trazido à mesa das negociações pelo professor Lyotard, ou ainda a via do
consenso comunicativo, segundo as indicações de Jürgen Habermas, pareciam
provocações inaceitáveis de pensadores que não sabiam o que fazer com a herança
metafísica.
Essas proclamações chegam aos seus ouvidos como palavras irreflexas, como
pequenos caprichos intelectuais, destituídos de horizontes. Nem mesmo uma das
mais chocantes sentenças da época conseguiu sensibilizá-lo: "A morte do homem".
Não há nisto qualquer tipo de sectarismo, ou inflexibilidade. Merquior identifica no
estruturalismo "um estilo de pensamento no lado humanístico do conhecimento".
Chega até a manter o crédito de confiança no "binarismo inveterado" de Lévi-
Strauss, inclinando-se por ver nele o preciso recurso metodológico de que se serve
a análise estrutural. Mais do que isto, não concede.
No seu livro O liberalismo, antigo e moderno, José Guilherme Merquior leva a efeito
a reconstituição crítica do processo liberal. Parte da revalorização, isenta e livre, de
formulações de José Ortega y Gasset, em um livro esquecido e não raro difamado:
A rebelião das massas, de 1929, que reuniu ensaios dos anos anteriores. Para
Merquior, "Ortega restitui o sentido moral da palavra a seu sentido político". Isto
significa que o desempenho político nunca deve descartar-se do compromisso ético.
Em vez de uma simples mistura, trata-se de implantar um sistema de permutas
compartilhadas. Mas o princípio relativista, que amparou esperanças tão generosas
quanto ingênuas, agravou consideravelmente esse quadro. Desde o liberal Alain, "o
parlamentarismo corrupto" faz pendant com o presidencialismo permissivo. Até
aqui e ali, não nos foi possível desarmar essa lógica perversa. O que só será viável
mediante a assinatura de contratos rescindidos, ou jamais assinados: o contrato
social, revisto e atualizado; o contrato natural, já lembrado por Michel Serres, é
capaz de conferir sentido à idéia imobilizada do "desenvolvimento sustentável"; e
principalmente o contrato moral, em condições de interromper a marcha acelerada
da desertificação ética. Não chegaremos lá pela estrada do pensamento único, nem
do paleoliberalismo concentracionário, evasista e satisfeito, de alguns dos nossos
mais condecorados dinossauros.
"Em sua idade de ouro - nos lembra oportunamente José Guilherme Merquior - o
século XIX, o movimento liberal atuava em dois níveis, o nível do pensamento e o
nível da sociedade." Hoje, ao que tudo indica, as duas frentes exibem evidentes
sinais de esgotamento. O déficit legal, normativo, aumenta o coeficiente de
adversidade. Enquanto isso, a aspiração liberal só nos unirá, na medida em que
reunir democracia e justiça social. Merquior jamais perdeu de vista esta
perspectiva. Intelectual que se distinguiu pelo traço cosmopolita e pela condição de
brasileiro, logo nos indicou o seu lugar vincado: "Liberal neo-iluminista". Não
devemos deixar que se interrompa o nosso colóquio com ele.
Eduardo Portella
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