Você está na página 1de 19

Etnografias em tempos de Belo Monte: afetos e (des)confianças no fazer antropológico, ou a

antropóloga e os Xikrin

Ao finado Bep-Djare Xikrin,


tenaz combatente desde o início,
que nos deixou muito cedo e faz muita falta
Clarice Cohn

Universidade Federal de São Carlos

Bolsista Produtividade CNPq

Introdução

Foi em 2009 que tudo começou – para mim assim como para os Xikrin do Bacajá, povo com
quem vinha trabalhando desde 1992. Foi em 2009 que pela primeira vez cheguei não como a
pesquisadora, da graduação ao doutorado defendido em 2006, mas como a antropóloga
integrante da equipe que realizava os Estudos de Impacto Ambiental – Componente Indígena
no processo de licenciamento da Usina Hidrelétrica de Belo Monte para a Terra Indígena
Trincheira-Bacajá e para os Xikrin1.

Logo antes, havia recebido um telefonema, em que fui informada de que os Xikrin do Bacajá2
haviam sido consultados sobre quais antropólogos teriam confiança e indicariam para
acompanhar tais estudos – que, aliás, veremos, eles ainda mal sabiam quais seriam e a que
vinham – e haviam dado três nomes, dentre eles o meu. Os outros eram o de William Fisher,
que fez suas pesquisas com eles entre as décadas de 1980 e 1990 (cf. dentre muitos Fisher
1991, 2000), e o de Paride Bolettin, que havia iniciado suas pesquisas ligado a uma
universidade italiana, a de Perugia. Sendo eu a única antropóloga com cidadania brasileira, a
FUNAI daria prioridade a meu nome, e eu devia reagir. As condições eram das piores.

1
Os agradecimentos em qualquer texto parecem infindos. Em um texto como esse, em que grandes
emoções e desafios vêm à tona, parecem ainda mais impossíveis: impossível abarcar todo mundo.
Agradeço primeiro aos Xikrin, por tudo, pela confiança, pelas desconfianças, pelos ensinamentos e pelo
afeto. Agradeço minhas e meus alunos, que me acompanham, me sucedem, me apoiam ao longo desse
processo, tanto em reflexões como em ações, em especial a Lucas Sena, que, pesquisando os aspectos
jurídico-burocráticos desse processo, reviu generosamente o texto. Agradeço às minhas professoras,
formadoras que sempre estiveram na luta pelos direitos indígenas, e que por isso mesmo me foram
inspiração para que fizesse quaisquer dessas coisas: Aracy Lopes da Silva, in memorian, Manuela
Carneiro da Cunha, minha orientadora na Iniciação Científica, Lux Vidal, minha orientadora no mestrado,
e que me levou aos Xikrin, ainda estudante de graduação, e Dominique Gallois. Agradeço a meus pais,
que não só aguentaram tudo isso, como foram um apoio constante (foi minha mãe quem me lembrou,
lá no começo, quando eu, exasperada, disse que os Xikrin estavam pedindo de mim mais do que eu
sabia ou podia dar, que eles também sempre me haviam dado tanto, e isso diz tudo). Agradeço à
FAPESP, à CAPES e ao CNPq pelos financiamentos e bolsas que me permitiram continuar a fazer
pesquisas durante esse processo, e à UFSCar por ser o ambiente institucional que permitiu que esses
meus muitos papeis fossem vividos e realizados. O texto acaba por nomear agradecimentos mais
pontuais. Por fim, agradeço à organizadora e ao organizador desse livro, que me incentivaram a
escrever, mesmo sabendo das dificuldades, não só emocionais, mas narrativas e analíticas.
2
Os Xikrin, que são Mebengokré (como os Kayapó), se dividem entre a Terra Indígena Trincheira-Bacajá
e a Terra Indígena Cateté. Uso a referência constante Xikrin do Bacajá, mas, ao escrever apenas Xikrin,
será sempre deles de que estou falando.
Considerados “indiretamente impactados” pela construção da Usina Hidrelétrica de Belo
Monte, foi-nos dados dois meses de trabalho com uso de dados indiretos. Minha reação
imediata era a de recusar. Primeiro, por conta das condições dadas – e pelo fato mesmo de
eles não serem devidamente considerados impactados; depois, pelo temor em legitimar um
processo do qual discordava; além disso, porque nunca havia tido experiência, ou sido
formada, para atuar assim, junto aos processos de licenciamento3; mas, principalmente, por
me saber desde então o que chamava de a parte mais fraca da corda. Afinal, eu seria a única
da equipe a ter uma história com eles, a ter sido indicada por eles, e, se e quando as coisas
dessem errado, eu seria, inevitavelmente – como fui –, a primeira e a principal a ser
responsabilizada, e talvez jamais perdoada.

E elas deram muito mais errado do que eu poderia ter previsto, mesmo que alguma conquista
tenha sido feita. Mas, como eu havia antevisto, fui eu a ser tomada, de diversos modos e em
diversos momentos, como responsável. Fui responsabilizada de “agourar” o futuro deles
quando conversávamos sobre os riscos da construção do empreendimento; também pela
inocuidade e pela falta de acuidade dos estudos; assim como “por não ter avisado”, explicado
bem; e depois pelos próprios impactos e pela dificuldade em lidar com o Estado – parte do
“meu mundo”, de que devia conhecer melhor, afinal – em responder a eles pelos órgãos
responsáveis nos termos dados pelos protocolos das políticas de licenciamento ambiental, as
medidas de compensação e mitigação.

Este texto é sobre essa história – parte da minha história de 30 anos com eles, que foi
retomada reflexivamente em outro texto, mais abrangente (Cohn 2022). Ele é escrito com as
vísceras – sim, porque o coração também é uma víscera, e seu pulsar e os afetos a despeito de
tudo permanecem presentes, mas principalmente porque o gosto de bílis, a indignação, e a
sensação de impotência e medo, se fazem presentes em todo esse enredo.

1. Belo Monte, os Xikrin e se tornar perita em antropologia

2009 foi quando tudo começou para todos nós por duas razões: porque eu só havia feito
pesquisas com vistas à academia com eles4, e porque eles, descobrimos, descrentes, não
tinham sido até aquele exato momento avisados ou informados das mudanças do projeto de
engenharia que colocaram seu rio em risco direto.

Para seguirmos nossa história, é fundamental que algo tenha que ser contado sobre Belo
Monte. Uma história conhecida por muitos, mas que guarda ainda uma grande área de
desconhecimento, que deve ser deslindada para que se entenda todo esse processo vivido por

3
Minhas experiências com políticas públicas não eram poucas naquele momento, mas sempre tinham
tido o tom de colaborar na sua formulação, avaliação e implantação, em especial no campo da Educação
Escolar Indígena e na colaboração com o Ministério da Educação/MEC e o Conselho Nacional de
Educação. Porém, os trâmites, e a negociação política, de um processo de licenciamento ambiental me
eram completamente novos e desconhecidos, e nessas condições descritas, evidentemente, não me foi
dado o tempo necessário sequer para estudá-los.
4
Embora minha primeira experiência etnográfica com eles, em 1992, foi feita, com um financiamento da
FAPESP, acompanhando minha orientadora Lux Vidal que não fazia pesquisa, mas retornava a eles os
relatórios preliminares da proposta de demarcação da Terra Indígena, que foi aprovada por eles e
encaminhada, e homologada, como Terra Indígena Trincheira-Bacajá, em 1995. Assim, (minha) pesquisa
e ação (a dela) estiveram presentes desde os primórdios, mas eu, embora atenta e observadora, estava
neste momento longe de ser parte dessas ações.
nós. Belo Monte é a revisão do antigo projeto de aproveitamento hidrológico para produção
de eletricidade no Rio Xingu, na região de Altamira/PA. É, de fato, uma continuidade daquele
proposto durante a Ditadura Civil-Militar com o nome de Kararaô. Este, após uma grande
mobilização realizada em Altamira em 1989 – ano em que eu ingressava na graduação, não
tinha ideia e nem como tê-la de que iria me afetar diretamente, e que, como a maior parte das
pessoas, acompanhei pela cobertura midiática –, em que indígenas, liderados por Paulinho
Paiakã, em grande parte Kayapó, entidades civis e políticos, com o apoio de pessoas públicas
internacionais, como o cantor Sting, foi interrompido e, imaginava-se, arquivado. Turner
(1991), grande estudioso dos Kayapó-Gorotire desde a década de 1960, pode demonstrar
como essa mobilização foi tão bem-sucedida por ter sido idealizada e realizada pelo finado
Paiakã como um grande ritual.

Mas o projeto ficou longe de ser arquivado. Foi retomado, em plena democracia, como parte
do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC) na primeira gestão de Lula como Presidente.
Renomeado Belo Monte, o nome do município onde as turbinas principais foram instaladas,
evitando assim uma das grandes reclamações dos Kayapó – a da apropriação de um grito de
guerra deles para dar nome a algo que os violentava –, o projeto também ganhou nova
engenharia. Se Kararaô iria inundar Terras Indígenas Kayapó do Pará e do Mato Grosso, o novo
projeto, chamado de hidrelétrica de “fio d’água”, foi concebido para desviar o rio em uma
extensão de 600km, na Volta Grande do Xingu, abrindo um canal – para o qual, ouvi dizer, se
usou mais explosivos do que para abrir o Canal do Panamá – que faria o rio correr em um
declive mais linear do Sitio Pimental, o local original de barragem, para Belo Monte. Assim, o
novo projeto não inundaria mais Terras Indígenas a seu montante. Mas a barragem no Sítio
Pimental, construída mesmo que não comportando mais as turbinas principais, fundamental
para que o canal fosse aberto, seca as Terras Indígenas a seu jusante. Dentre elas, a Trincheira-
Bacajá.

Ademais, como mostra Fisher (2014), nas novas condições políticas e econômicas em que
estava sendo planejado, Belo Monte não dependia mais dos recursos internacionais do Banco
Mundial, tendo sido financiado pelo BNDES como parte de um projeto desenvolvimentista que
perpassou todas as gestões nacionais do PT – o que diminuiu em grande parte a capacidade de
contar com a pressão internacional para se opor a ela. A resistência a ele dependia também de
um novo desenho da própria mobilização indígena local – pelo simples fato de que haviam
mudado os povos indígenas, e seus territórios, a serem impactados. Infelizmente, isso foi um
desafio tanto para organizações civis indigenistas e ambientalistas, que mantiveram seus
antigos aliados e porta-vozes, como uma dificuldade nas articulações entre indígenas. De fato,
embora todos se reconheçam a si mesmos como Mebengokré, tanto aqueles nacionalmente
conhecidos como Kayapó quanto os Xikrin, eles são inimigos históricos (cf. Giannini et ali 2009,
Cohn 2005, 2010). Como já se disse para os Tupinambá (Viveiros de Castro 2000), de que não
há melhor inimigo para um Tupinambá que outro Tupinambá, o mesmo se pode dizer, por
razões diversas, dos Mebengokré. A guerra, dentre elas as com outros Mebengokré, pautou a
história dos Xikrin, e foi sendo reinventada quando tiveram de abdicar das guerras que
contavam com batalhas campais com o que o Estado denomina “contato” e “pacificação”
(Cohn 2005). Isso gerou muitas tensões, e a dificuldade nas alianças e na aceitação de novos
protagonismos paralisou o que tinha sido a grande aliança Mebengokré de 1989 (Cohn 2010).

De fato, muitos Xikrin me contaram da beleza da mobilização em 1989 – histórias relembradas


cada vez mais enquanto se acelerava o processo de licenciamento e construção de Belo
Monte. Lembravam dos discursos, das falas, da comensalidade, das festas, e do gesto que
ficou mundialmente famoso, quando Tuíra se levantou com o facão na mão e o posicionou na
garganta do representante da Eletronorte dizendo que não aceitariam a barragem.
Lembranças que foram ficando cada vez mais nítidas e vívidas – mas o fato de emergirem
neste momento, e nunca terem sido mencionadas a mim antes, embora tenham me contato
muitas histórias de guerras e embates, me fazia cada vez mais suspeitar de que eles não foram
participantes principais naquele encontro, embora fossem os Mebengokré da região. Essa
suspeita era potencializada pela percepção ao longo dos anos de que nunca eram convidados
para os maiores encontros dos Mebengokré – e por vezes passavam dias no rádio da aldeia
aguardando o convite chegar, ou auscultando os céus aguardando o avião que iria pegar as
lideranças, parentes, irmãos, como lembravam, dos que estavam se reunindo5.

Se ela havia sendo potencializada, ganhou mais materialidade com uma reunião realizada em
Altamira em 2008, apresentada como uma mobilização celebrando os 30 anos do que ficou
conhecido como Altamira 1989. Não errei nas contas – foi feita em 2008, mesmo. Para essa
reunião, chegaram ônibus lotados de Mebengokré (Kayapó) do Mato Grosso, e indígenas da
Terra Indígena do Xingu, que se hospedaram no Sítio Bethânia, um local mantido pelo Centro
Indigenista Missionário – CIMI – de Altamira para formações, e se reuniram no mesmo Ginásio
Poliesportivo que havia sido palco da grande Altamira 1989. O cenário era perfeito, a
organização, reunindo povos indígenas de diversas etnias, hercúlea. Mas alguns erros foram
feitos: todos que estavam presentes, muitas pessoas muito influentes no debate, indígenas,
ambientalistas e especialistas, ainda debatiam as inundações das Terras Indígenas,
aparentemente sem terem se dado conta das mudanças do projeto, dos impactos, e dos
riscos, sociais, culturais e ambientais6; e os Xikrin do Bacajá não foram convidados. Disso eu
sei, bem, porque dessa vez estava, por coincidência, chegando em Altamira para subir às
aldeias. Quando vi a mobilização e fiz, como sempre, uma visita à Casa do Índio mantida em
Altamira pela FUNAI7, encontrei alguns jovens Xikrin, e os convidei para irmos lá ver o que
estava acontecendo. Não iria lá sozinha, sem sua proteção, e entendi naquele momento que
ele deveriam ir lá acompanhar a mobilização e se informar do que estava acontecendo. Me
arrependi quase imediatamente – não tivemos lugar nem no espaço central do ginásio, nas

5
Remeto novamente a meu trabalho de doutorado (Cohn 2005) para essa tensão permanente entre a
situação de parente e inimigo, uma ambivalência em que, argumento, um parente pode sempre ser
inimizado, assim como um inimigo aparentado, argumentando ainda que essa ambivalência deva, para
eles, ser assim mantida. Um mundo só de parentes ou só de inimigos, em que essas posições se
congelem, é um mundo paralisado, congelado ele mesmo. O fato é exatamente que essa possibilidade –
que teria sido a do (re)aparentamento de inimigos – infelizmente, tendo em vista o decorrer do
processo, não pode ser efetivada por eles, inclusive por ter sido muito dificultado pelas entidades civis
(inclusive OnGs) que buscavam apoiar a luta contra Belo Monte, e a ressonância midiática de lideranças
que, se permanecem muito importantes, não poderiam, ao menos aos olhos dos Xikrin, com todas as
mudanças do contexto político e do projeto, ser mantidas como foco único, gerando ainda mais tensões.
6
Embora a modificação estivesse plasmada anos antes no Decreto788/05.
7
No fim da década de 1980, a FUNAI que tem sede em Altamira – à época a Administração Regional –
construiu, e mantem até hoje, uma Casa do Índio, localizada na beira do cais do Rio Xingu. Ela é
diferente da Casa de Saúde do Índio (CASAI), que é parte da atenção à saúde indígena e mantida pelos
Distritos Sanitários Especiais Indígenas. Altamira conta com uma CASAI também, em que indígenas em
tratamento de saúde e seus e suas acompanhantes são hospedados. Na Casa do Índio, as instalações
servem de suporte para uma estadia na cidade, com quartos, chuveiros e banheiros, locais para se
preparar uma refeição, e uma área comum. Atualmente, encontra-se praticamente abandonada, mas
ainda é utilizada por indígenas em trânsito ou que necessitam permanecer na cidade para resolver
questões de todo tipo, já que é lá que lidam com a FUNAI, com questões referentes à escola e à saúde,
fazem documentos pessoais, se cadastram para programas de transferência de renda, vendem
artesanato e realizam cursos desde o ensino médio, havendo nas aldeias apenas o Ensino Fundamental.
quadras, preparado para receber os indígenas convidados, ornados, alimentados e que
chegavam com performances e danças combinadas e ensaiadas. Me senti envergonhada –
para usar uma palavra com grande valor para os Xikrin – por tê-los exposto a essa situação de
visível e patente exclusão. O clima, de enorme tensão, os incomodou muito também, porque o
público não-indígena da cidade vaiava, o que lhes pareceu desrespeitoso – um problema
recorrente em manifestações desse tipo em reuniões que contam com ativismo político,
porque, em sua ética, mesmo discordando intensamente com o que se fala, nunca se
interrompe, ou se silencia, um orador8 – representante da Eletronorte que, carioca,
demonstrava a necessidade da construção da usina pela necessidade industrial – sulista, na
maior parte – do Brasil. Mas o encontro deu definitivamente errado quando alguns dos
indígenas participantes, cenografando, como fizeram muitas vezes naquele dia, o mesmo
gesto de Tuíra que havia tido tanto sucesso, político e midiático, o engenheiro representante
da Eletronorte saiu acidentado, com um pequeno corte no braço. Não vi como acabou o
evento – os Xikrin logo me cercaram e me tiraram de lá, se retirando também. Mas a
repercussão midiática foi muito desfavorável, e o evento resultou inclusive em processos
judiciais. Dessa vez, a grande mobilização havia dado errado9.

Mas deu aos Xikrin uma nova certeza: a de que a vez era deles. De que, em sua terra, na
cidade em que estão sempre, com a barragem para ser construída na parcela do rio em que
eles moravam – o Rio Bacajá é um afluente do Xingu na sua Volta Grande –, eles deveriam
tomar a frente, junto aos povos indígenas dessa região, hoje conhecida como Médio Xingu: os
dos rios Bacajá, da Volta Grande do Xingu, da foz do Xingu e do Iriri. De fato, uma vez me
disseram que se vissem mais uma vez um ônibus de Kayapó do Mato Grosso chegando na
cidade deles, eles iriam se retirar para a aldeia – o que aconteceu novamente em uma versão
do Acampamento Terra Livre na beira do Xingu em Altamira, gerando um novo efeito,
extremamente duradouro: a acusação de que os Xikrin teriam se vendido para se beneficiar
com a construção de Belo Monte. Passemos a essa questão, das acusações sofridas por eles, e
por mim.

2. Desconfianças e acusações: o Estado, os empreendedores, movimentos e a academia

Ser contra Belo Monte e permanecer uma pessoa com inclinações políticas declaradas de
esquerda nunca foi fácil. O novo projeto, retomado da Ditadura, agora era proposto pelos
governos do PT, as gestões mais à esquerda que havíamos tido desde a redemocratização.
Criticar Belo Monte era criticar o Lula – o que seria inimaginável. Como se criticar um ponto de
seu governo fosse criticá-lo como um todo, e ser, com isso, imediatamente, de direita. De fato,
fui chamada, à época, de “Serrista”, em referência às candidaturas PSDBistas tão fortes no
Estado de São Paulo, onde resido. Mais interessante e produtivo é refletir, junto a Eliane Brum,
como “Os Silva são diferentes”, ao pensar as diferenças de Luiz Inácio Lula da Silva e sua
política desenvolvimentista e Marina Silva, que chegou a ser sua Ministra do Meio Ambiente
até se contrapor exatamente a essa política (Brum, 2014). Brum nos ajuda a pensar também
na sucessão de Lula, nos governos Dilma. E, de fato, após o golpe de 2016, que me indignou
como a tantos de nós, me vi indigada também ao assistir pela primeira vez uma aparição

8
A retirada deles de diversas reuniões importantes em que movimentos sociais utilizavam-se dessa
tática acabou, inclusive, por aumentar a acusação de que eles seriam coniventes com a construção da
usina, de que falarei logo abaixo.
9
Citei acima referências de estudos de Altamira 1989, mas não conheço, infelizmente, nenhuma análise
ou mesmo descrição ou registro desse evento de 2008, que temo não existir de fato, muito
provavelmente pelo seu fracasso.
pública de Dilma, em que, com Belo Monte como cenário, ela iniciou sua fala afirmando que
Belo Monte foi a melhor coisa que fez em seu governo.

Nada pior do que vivemos em termos de política nacional no momento em que redijo esse
texto, e que temos tanta esperança de mudar – o cenário de violência, genocídio, crise
ambiental, intolerância10. Mas isso não quer dizer que podemos nos calar diante do fato de
que as construções de usinas hidrelétricas na Amazônia foram cheias de violência e de
ilicitudes11. O processo de licenciamento ambiental, que é bem regulamentado – e nisso nos
calcávamos ao aceitar fazer o EIA, tanto na regulamentação do processo quanto no
entendimento, que se revelou vão, de que as gestões nacionais e da própria FUNAI iriam
respeitá-la –, foi sendo cada vez menos respeitado em diversos pontos – em especial o direito
da Consulta Prévia e Informada, ratificado pelo Brasil na Convenção 169 da OIT – e de fato não
reconhecia os direitos e os modos de vida daqueles que seriam diretamente impactados. O
desenvolvimentismo se ligava às grandes obras (Lins Ribeiro, 2014), à aceleração do processo
mesmo de decisões políticas (Montaño 2014), e uma tecnicidade que silenciou e invisibilizou
os povos lá residentes (Mantovanelli, 2014, 2016).

E há também a acusação que se reveste de ética em pesquisa. Antropólogos têm feito laudos
antropológicos há anos, mas estes parecem ser politicamente legítimos quando, por exemplo,
se ligam a direitos como ao do território. Aqueles que têm como preocupação os direitos aos
territórios quando eles se vêm sob risco por conta da construção de um
megaempreendimento são vistos como realizando uma deturpação do uso da antropologia.
Quem participa de Estudos de Impacto Ambiental – tenho certeza de não ter sido eu a
primeira ou a única a ouvir isso – estaria se vendendo, ou vendendo sua antropologia.
Certamente, isso tem a ver com um vício desses próprios processos de licenciamento – em que
os contratantes são os próprios interessados na construção da obra, em contraste com os
laudos de demarcação territorial, em que o contrato passa diretamente pela FUNAI, ou seja,
pelo Estado. Estudos de Impacto Ambiental são feitos por empresas – bastaria ver a
quantidade de logos que emolduram suas páginas iniciais – e, quando envolvem direitos
indígenas, passam para a aprovação pela FUNAI e depois pelo IBAMA. Os resultados desse
vício e dessa lacuna judicial são muitos – e não são poucos os pesquisadores, incluindo nós,
que protocolam seus resultados de estudo antes de entregá-los aos contratantes para se
proteger de manipulações em seus textos. Mas... alguém há de fazê-los. No meu caso, pensei
que, não fora eu, que à época conhecia os Xikrin há quase duas décadas, seria alguém com
menos possibilidades e instrumentos, em especial dadas as condições que enunciei acima, que
ocuparia esse lugar. E que infelizmente, como é evidente, nada era tão simples assim – minha
recusa, por alguma razão de ética profissional que me era cobrada, não iria impedir que Belo
Monte fosse construída. Mas em mim mesma a impressão de que estava com isso legitimando
um projeto que não aprovava ressoava, forte.

Como já disse, sofri desde o primeiro momento, e antecipei tensões e um eventual


rompimento definitivo, uma perda das minhas relações, que ultrapassam em muito o fazer
acadêmico, com os Xikrin. Sofri, cada vez mais, ao ver que participar desse processo era cada

10
De que os Xikrin sofrem diretamente, não só com este caso, mas com o aumento das invasões de suas
terras, que têm denunciado midiaticamente, ou pelas redes sociais (cf. por exemplo
https://www.youtube.com/watch?v=u85orkOL4Z0 ). Cf. também Cohn, Cavalcante e Sena, 2022.
11
Na mídia teve bastante impacto, recentemente, ou, pouco antes do momento em que redijo esse
texto, a cobrança de Sônia Guajajara, importante liderança indígena, de que Lula se comprometesse, no
palanque que com ela dividia, exatamente a não fazer mais Belos Montes....
vez mais participar de um processo ilícito, até vir a me relacionar apenas com o Ministério
Público Federal diretamente e a apoiadores como a Comissão Arns, com quem colaborei para
a redação de documentos (cf. Carneiro da Cunha, 2019). Mas não pude, não me permiti, me
omitir, no todo, em fazê-lo. As tensões não foram poucas, e o risco do rompimento definitivo
foi iminente – como logo veremos.

Antes, gostaria de falar de algo mais: as acusações sofridas pelos Xikrin de que eles teriam se
vendido, permitindo a construção de Belo Monte. O que fazer como antropóloga frente a
acusações como essas? Foi um longo aprendizado, que não fiz – nunca o fazemos – sozinha.
Briguei com muita gente – infelizmente, inclusive, com gente com mais capacidade de
influenciar esses processos ou mobilizações do que eu mesma – e debati, inclusive em
situações de eventos científicos, em debates públicos como Mesas Redondas, mas também
pelos corredores, defendendo os Xikrin, buscando explicar. Mas foi William Fisher quem, em
uma dessas ocasiões – era, nominalmente, uma reunião da SALSA realizada em Belém do Pará
–, assistindo a esses meus embates, me puxou de lado e me lembrou: quem se diz antropólogo
e faz esse tipo de acusação é quem está usando de má, ou nenhuma, antropologia. Como
acusar um povo indígena de se vender, ou de ser corrupto, sendo que suas lógicas, relações, e
a própria compreensão do Estado é outra? Ele certamente me salvou de passar mais uma
década entrando nesse debate, que sei que seria ademais inócuo, ou que terá que ser feito
com mais vagar e profundidade. Mas nunca se desfez a sombra dessas acusações, e há pessoas
convictas até hoje de que de fato os Xikrin são vendidos12.

Já falamos da dificuldade em se inserir e serem reconhecidos na nova modalidade de


construção e licenciamento de um megaempreendimento com que se viram os Xikrin. Mas,
mesmo surpreendidos, divididos, confusos, eles nunca ficaram calados. Sempre afirmaram a
técnicos e ao Estado os impactos que seriam sofridos por eles e pelo rio que atravessa sua
Terra Indígena (Cohn 2014, Mantovanelli 2014), e se mobilizaram mais de uma vez. Em uma
delas, participaram do planejamento, com seus vizinhos indígenas, de um acampamento que
se viu frustrado – tanto por falta de recursos como pelas incompreensões na comunicação
com aqueles que poderiam e se dispunham a dar apoio logístico, dentre eles de transporte,
essencial naquela vastidão – no próprio Sítio Pimental, onde começaria a obra com a
construção da ensecadeira, com os diversos povos do Médio Xingu. Pessoalmente, aguardei
com expectativa e me entristeci muito com o fracasso desse plano, que para mim parecia ser
um dos mais belos acampamentos multiétnicos de que tinha notícias, em especial na época.
Mas eles não se deram por vencidos. Ocuparam, quando iniciadas, as obras de Belo Monte,
paralisando a construção da ensecadeira – que é como que um gigantesco muro de terra e
pedras que corta o rio, o seca e viabiliza a construção da barragem propriamente dita. Essa
ocupação, efetivamente interétnica, de que participaram os Xikrin, os Juruna do Paquiçamba,
os Arara da Volta Grande do Xingu, e os Parakanã, acabou por ser desmobilizada também –
por um jogo da Norte Energia, consórcio que ganhou a licença de construção, e que conseguiu
convencê-los que, sendo os impactos diferentes, deveriam fazerem reuniões em Altamira em
separado. Não tendo testemunhado essa negociação, não sei dizer sequer como eles
conseguiram convencê-los disso. Mas o que me contam os Xikrin é que, recusando mais um
documento que temiam não ser cumprido, foram convencidos a ir à reunião com o presidente
da Norte Energia, que poderia dar sua palavra porém não iria à ocupação. Dar a palavra é um

12
Essa acusação vem junto a uma incompreensão do que foi de fato resolução do Estado, e não deles: o
chamado Plano Emergencial, em 2011, pelo qual se decidia fornecer um valor a cada aldeia de cada
Terra Indígena impactada enquanto o PBA não era posto em atuação, o que ocorreu apenas em 2012.
valor aos Xikrin, e desde dada uma palavra, não se volta, jamais, atrás; e se reunir com quem
manda, o benadjwyry, o presidente da Norte Energia, era para eles, certamente, já uma
conquista. Dessa reunião, de que fez parte a FUNAI (a Coordenação Geral de Licenciamento)
gerou o que se chamou em documentos ulteriores de “Acordo”13, o qual os Xikrin não
reconhecem, e que de fato esvazia muitas de suas demandas e desconhece direitos. É fato
também que na época dessa mobilização não houve cobertura midiática, por mais que
tenhamos tentado, e que ninguém sabia como ajudar – Mukuka Xikrin, jovem liderança, esteve
em uma Reunião Brasileira de Antropologia na PUC/SP expondo a /situação14, em uma sala
cheia, mas em que o que mais se ouviu da plateia foi como se poderia ajudar, ou o sentimento
de impotência da plateia para tanto, e as muitas entrevistas que deu não tiveram maior
repercussão. De fato, mais um desconforto: o evento acabou por coincidir com a ocupação, e
ele se decidiu por participar, a meu convite. Me pergunto sempre, conhecendo sua capacidade
de liderança e mediação, o que teria acontecido na desmobilização da ocupação se ele
estivesse estado lá? Porque o grande apoio e a grande cobertura midiática que esperávamos
não ocorreu, de fato.

Nesse mesmo grande problema, há a questão de lidar com a “política dos brancos”, a que eles
fazem tantas críticas (Santiago, 2014; Mantovanelli 2016). Reuniões que não resultam em
nada, documentos que não têm efeito, palavras dadas que não são cumpridas, discursos que
são interrompidos, falas que se justapõem. Isso se soma às particularidades do licenciamento
desse empreendimento, em que formou uma confusão, em especial com o Plano Básico
Ambiental – Componente Indígena (PBA/CI), sobre quem tem a responsabilidade sobre o quê.
Assim, a Norte Energia joga a responsabilidade da saúde indígena ao DSEI, que a devolve; o
mesmo em relação à educação escolar, à fiscalização e ao monitoramento do território, e tudo
o mais15. Desse modo, os Xikrin estão sempre descontentes porque nada se resolve, mas são
sempre acusados de, exatamente, estarem sempre descontentes.

Mobilizações locais, como a ocupação da sede da FUNAI e do Distrito Sanitário Especial


Indígena/DSEI, iniciativas de divulgação midiática, e o recurso ao Ministério Público Federal
continuaram a ser feitas, assim como tentativas de diálogo com as muitas empresas, sub-
contratadas pelo empreendedor que gerenciavam os projetos que deveriam ser de
compensação e mitigação em seu território.

Sentindo-me impotente, e incompetente, me afastei do processo de licenciamento e da


atuação junto ao Estado. Minhas únicas iniciativas neste período foi o estudo, por demanda
deles, do Plano Básico Ambiental – Componente Indígena (já necessitado da revisão prevista
nas regulamentações do processo de licenciamento ambiental e que não foi realizada até
hoje), em 2017, na aldeia Ráp-Kô, a redação de documentos sobre a realidade que vi nas
aldeias e encaminhar com eles ao MPF de Altamira um documento exigindo que o PBA fosse
devidamente realizado, ambos, um em meu nome, outro, redigido por eles, em nome deles,
no MPF de Altamira, assim como um documento, que eles de modo genial intitularam “Contra-
Relatório”, em que, tendo visto a beleza do que aparecia no relatório oficial publicado pela
Norte-Energia demonstrando o que teriam feito como compensação e mitigação, fotografaram

13
Denominada em documento oficial como “os ´acordos de canteiro’ estabelecidos bilateralmente entre
algumas comunidades indígenas e empreendedor”, na Informação nº223 /2015/CGLIC/DPDS/FUNAI-MJ
de 2015.
14
Sua fala pode ser acompanhada em https://youtu.be/HJM0IxPnHK8
15
Cf., para uma discussão sobre dessa desresponsabilização mútua para outros casos, Bronz 2013.
a realidade de sua aldeia, contrapondo, ponto por ponto, o que era mostrado como bem
realizado com o que se via na aldeia.

Retornei, de fato, só recentemente a estas discussões com eles. 2022 foi o ano em que o
Ministério Público Federal – que mantêm muitas ações em nome dos povos indígenas da
região expondo as falhas e omissões nas compensações e mitigações dos impactos de Belo
Monte –, depois de uma década de diálogos, mas em Altamira, na própria sede do MPF, visitou
a Terra Indígena Trincheira-Bacajá, e combinou com eles, em visita a diversas aldeias e uma
reunião final na aldeia do Mrõtidjãm, uma série de procedimentos. Depois de anos sem fazer
parte de uma ação do Estado, acompanhei essa que se intitula “Missão”, mais uma vez, como
antropóloga. Mais uma vez, sabia que, como dizia, estava colocando meu pescoço no laço, que
sentia apertar cada vez mais, enquanto passávamos pelas aldeias e eu discursava sobre o valor
de tal ação. Mais uma vez, recebi muito afeto, mas a responsabilidade era grande, imensa.
Desde 2009, nada ou quase nada havia sido conseguido. As tensões foram expressas, e
compromissos com a Procuradora Dra. Thaís Santi e sua equipe foram firmados. Imagino que
todos tenham estado o tempo todo, e saído, com uma ponta de esperança e de desconfiança,
somada a uma sensação de impotência. Mas, como disse Bepore Xikrin, que atuou como
tradutor na reunião final, se é difícil, e dolorido, continuar debatendo Belo Monte, e por vezes
pareça inócuo, ele de fato agradecia porque com isso uma nova porta se abria, e a esperança
podia se refazer. Só tenho a esperar que essa expectativa seja de algum modo respondida.

Os Xikrin ganharam muito pouco nessas batalhas que têm enfrentado16. Mas nem se
venderam, nem se renderam. Assim como eu não o fiz. Porém, além dos embates políticos –
naquilo que reconhecemos como política e eles tanto criticam (Mantovanelli 2016) –, há os
embates técnicos, de conhecimentos, dos Estudos e do reconhecimento de suas existências e
direitos, aqueles em que me vi implicada desde 2009. Voltemos a eles.

2. “Então vai ficar pior”: as idas e vindas nas relações.

Voltemos a 2009, quando tudo isso começou para nós17. Aceitando a responsabilidade de
participar da equipe do EIA/RIMA, apesar das condições, passei a fazer parte de uma pequena,
mas muito engajada, equipe, coordenada por Isabelle Giannini18. As condições, lembremos,
após um acordo (a mim nunca esclarecido) entre a Eletronorte, à época quem respondia pelo
empreendimento, e a FUNAI, era de que, considerados indiretamente impactados, os Estudos

16
A questão da “pacificação” e do fim das guerras, e a incapacidade da “guerra reinventada” (Sztutman
e Cohn 2003, Cohn 2005) para essa situação deve ser mais detidamente analisada, o que pretendo fazer
em outras oportunidades.
17
Para dar uma cronologia, o Decreto que permitiu a implantação de Belo Monte em sua nova
configuração é de 2005; os Estudos de Impacto Ambiental – Componente Indígena para a Terra Indígena
Trincheira-Bacajá, de 2009; a Licença Prévia, de 2010; a Licença de Operação, de 2010; os Estudos
Complementares do Rio Bacajá, de 2011; o Plano Básico Ambiental, com validade de cinco anos e até
agora não revisado, foi implantado em 2012; o Plano Operativo, de 2013; e a Licença de Instalação é de
2015.
18
Giannini, que ademais é filha de Lux Vidal, que foi minha orientadora – nas nossas etnografias esses
“parentescos acadêmicos” são outro ponto que costumam ficar de fora... – fez pesquisa com os Xikrin
do Cateté, da qual resultou um lindo mestrado (Giannini 1991), e sempre foi ativa em questões
referentes a direitos indígenas e a projetos ambientalistas. Ela havia participado de outros processos de
licenciamento, e fazer parte de uma equipe coordenada por ela me dava a segurança que me faltaria de
outro modo.
de Impacto Ambiental para os Xikrin seriam realizados com dados secundários. Fizemos o
trabalho com dados secundários, mas Giannini conseguiu negociar, junto à Coordenação Geral
de Licenciamento, uma viagem a campo, de exatos 20 dias. Nela, passaríamos pelas quatro
aldeias então existentes na Terra Indígena Trincheira-Bacajá (Mrõtidjãm, Bacajá, Potikrô e
Pykajakà), para ouvir deles quais seriam os impactos que eles reconheciam. Minha parte no
relatório ficou sendo essa, a de escrever o que chamamos de “Contexto Antropológico”
(Giannini et alli 2009, 119-164), em que se inseriu as falas dos Xikrin (em “Impactos do
Empreendimento nas percepções dos Xikrin”; Giannini et alli, 2009: 164-185), e dar então
visibilidade a seus usos e conhecimentos sobre seu território. Mais que isso, queríamos
comprovar – o que fizemos com a elaboração conjunta, enriquecido e completado em cada
aldeia, de um mapa – a importância do rio para suas vidas e atividades. Nele, mostramos a
construção de aldeias, à época todas na beira do rio, a abertura de roças, pesca, caminhos de
caça e coleta, acesso a castanhais, há muito uma das principais fontes de renda deles (cf.
Fisher 2000), além de seu valor como coleta, e de como tudo tinha como ponto de referência e
início o rio. Para ambas essas tarefas, as reuniões foram verdadeiros sucessos – reunimos
muito depoimentos, ouvimos como eles tinham certeza, e podiam argumentar, que com a
seca, ou o que se chama tecnica e eufemisticamente de Vazão Reduzida, do Rio Xingu, o Rio
Bacajá iria secar, ouvimos sobre experiências históricas de seca e seus impactos sobre os
peixes, a caça, os tracajás e a potabilidade do rio, além de sua navegabilidade, comprometidas,
e sua preocupação com as crianças e o futuro. Os mapas de satélite preparados por Gianinni e
levados foram também imediatamente apropriados por eles, que, sem formação de
cartografia, logo reconheceram os rios, os caminhos, as voltas e curvas do rio, os poços, as
corredeiras, as aberturas nas matas, e puderam montar conosco um incrível documento de
seu uso do rio. Ambos, falas e mapa, estão no documento final (Giannini et allli, 2009), e, com
isso, pudemos inscrever os conhecimentos e as práticas xikrin em nosso relatório. Pudemos,
também, ter uma grande conquista, reconhecida no Parecer 21 da FUNAI (2009), a do
reconhecimento de que os Xikrin seriam diretamente impactados, revertendo o acordo
anterior, e de que os impactos em seu rio teriam que ser estudados – o que foi tornado
condicionante da obra, nomeadamente, os Estudos Complementares do Rio Bacajá.

Mas a viagem começou com uma grande surpresa: na exata primeira reunião descobrimos que
eles não conheciam, até então, o novo projeto de engenharia da Usina Hidrelétrica em
construção. Ou seja, ninguém, nem mesmo a FUNAI, havia ido explicar a eles. Quando
iniciamos a primeira reunião, na aldeia do Mrõtidjãm, a mais próxima da cabeceira do rio –
navegável ainda, fomos de voadeira, e decidimos subir direto, acompanhadas de Bep-Djare
Xikrin, para ir descendo e parando nas aldeias depois –, ao mostrar pela primeira vez o mapa
do planejamento da hidrelétrica, e depois de muita discussão entre eles, com vários se
levantando para estudar de perto o mapa preso à parede da casa central de reuniões, vimos a
então liderança da aldeia, Bep-Katenti, conhecido por Maradona, ir ao mapa, estudá-lo com
cuidado, se certificar de uma ou outra coisa na língua (mekaben), e então nos olhar e
proclamar, em português: “então vai ficar pior para a gente!”. Ou seja, foi a primeira vez em
que tiveram a notícia de que Belo Monte não iria inundar as Terras de seus parentes-inimigos,
mas secar a parte do Rio Xingu que lhes dava acesso à cidade de Altamira, a que, como já
disse, recorrem para grande parte dos serviços e para demandar ou efetivar seus direitos,
como que seu rio, o Bacajá, e seu território, com suas florestas, roças e caça também
dependentes do rio, estavam em risco.

Os estudos para o aproveitamento hidrelétrico do Rio Xingu de fato nunca haviam parado; mas
o novo projeto já estava desenhado – embora eu mesma não soubesse disso, assim como
aqueles especialistas, indigenistas, ambientalistas e indígenas reunidos em Altamira em 2008 –
desde antes, e Estudos de Impacto Ambiental do Componente Indígena já haviam sido
iniciados na Volta Grande do Xingu no mínimo desde 2006 (cf. LEME Engenharia, 2009; Melo
Patrício 2014, Guedes Vieira, 2014). Como isso tudo nos passou desapercebido? Não sei
responder. O contato dos Xikrin com os povos indígenas, Juruna e Arara da Volta Grande, é
constante, em especial no que chamamos de “Baixo Bacajá”, as aldeias mais próximas da foz e
do próprio Xingu, nas quais casamentos com pessoas da Volta Grande são frequentes. E eu...
bom, eu, me pareceu, deveria sabê-lo, como antropóloga. O fato é que assisti, e jamais me
esquecerei, o momento em que eles perceberam que tudo ficaria pior, e que eles seriam
diretamente impactados, tendo que ser reconhecidos como tal. Se, como disse, as reuniões, os
depoimentos, os ensinamentos sobre os impactos, e a feitura do mapa foram um sucesso, o foi
pelo sentido de urgência e pela confiança que depositaram em mim, neta (classificatória) da
Lux e criada e ensinada por eles, e em sua filha, Isabelle. Uma confiança que depois disso foi
colocada em questão diversas vezes.

Foi nessa viagem que Maradona teve uma ideia digna de uma grande liderança, e que foi
retomada diversas vezes depois: a de que os resultados dos Estudos teriam que ser
apresentados a todos juntos, em uma só aldeia, para que pudessem ter uma reação conjunta,
uma decisão coletiva, kaben pudji, uma fala única. Foi assim que aconteceu a grande reunião
na aldeia do Bacajá, a mais antiga da Terra Indígena, de que participaram eu, Giannini,
apresentando nosso relatório, representantes da FUNAI e dos empreendedores. Embora o
Estudo tenha sido aceito, o debate foi grande, e outra imagem de que nunca mais esquecerei
foi quando Sulamika, da aldeia Potikrô, reagindo à apresentação do representante da FUNAI
sobre os passos e o processo de licenciamento – uma linha do tempo, e não vamos sequer
discutir o quão inadequada a ideia de que linhas progressivas de tempo sejam assim
universais, em que estavam desenhados literalmente passinhos, pezinhos andando – levantou
e disse algo como “vocês estão nos mostrando os passos do que vai acontecer conosco, mas
eu percebo que vocês já estão muito adiantados, nos obrigando a apressar nossos passos”, o
que demonstrou com uma caminhada acelerada.

Todo o processo político que resumi acima passou a se voltar então contra a gente. Técnicos
da FUNAI ligados à CGLic e que eram contrários ao modo como o processo de licenciamento
estava acontecendo foram transferidos, e os Estudos Complementares do Rio Bacajá /ECRB
(LEME Engenharia, 2012), nesses passos apressados, foram realizados enquanto, durante,
simultaneamente, o licenciamento da barragem, assim como da formulação do Plano Básico
Ambiental (PBA), que definiria as medidas de compensação e mitigação da obra. Além disso, a
reunião na aldeia do Bacajá, que era de apresentação do EIA, foi tornada pela FUNAI uma
“oitiva indígena”, ou seja, uma das obrigações do processo de licenciamento ligado ao direito à
Consulta Prévia e Informada (o que aconteceu em todo Médio Xingu, como denunciou o finado
José Carlos Arara em vídeo19).

Tínhamos a palavra – quem disse que antropólogas não caem nesse mesmo golpe? – de que
assim que houvesse os resultados do ECRB, eles seriam incorporados ao PBA. Belo Monte
recebeu a Licença de Instalação, o PBA foi sendo construído, e o ECRB não havia ainda
terminado. Mais que isso, diferente dos Estudos de Impacto Ambiental – Componente
Indígena, que foram realizados por profissionais com experiência em estudos com populações
indígenas e sobre as especificidades jurídicas e de direito das territorialidades indígenas, o

19
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=zdLboQmTAGE
ECRB foi realizado pela Leme Engenharia, que realizava o que chamávamos, contrastivamente,
de “PBA Geral”, e não tinha especialistas ou conhecimento das especificidades dos direitos dos
povos e das Terras Indígenas.

Logo vi os riscos na relação com os Xikrin ficarem mais fortes. Aceitei, agora ainda mais contra
todas as evidências – confesso aqui que o ECRB sequer tinha Termos de Referência, e eram por
tudo isso completamente irregulares – a fazer parte desse processo, coerente com minha
impressão de que se não fosse alguém comprometida com eles, tudo ficaria pior. Mas não
havia conserto possível, logo aprendi. É fato que pude, como uma espécie de consultora –
dessa vez não teria como realizar as viagens, que eram de quatro equipes e em quatro
“campanhas”, como chamam, durante o ano, na seca, na enchente, na cheia e na vazante –
modificar um ou outro método, e garantir a presença de antropólogas e antropólogos em
quase todos os estudos, menos o da qualidade da água, feito, incrivelmente, longe das aldeias.
Foi um ano de reuniões intermináveis – em Brasília, Belém, Belo Horizonte, sede da Leme
Engenharia, e Altamira – com a FUNAI, a Norte Energia, agora já consorciada como
empreendedora depois do leilão e da Licença de Instalação, a própria LEME e suas equipes, e o
Ministério Público Federal. Mas tudo – ou quase tudo – em vão. Muito acertadamente, os
Xikrin criticam o ECRB, não só mal realizado, mas feito em apenas um ciclo hidrológico (o que
quem conhece a Amazônia e seus rios, como eles, sabe ser absolutamente insuficiente). Além
disso, os resultados dos estudos não compuseram o PBA. Mas, se eles se frustraram com
minha inabilidade e incompetência, mantiveram a generosidade que lhes é característica, e
neste momento não me criticaram.

A crítica começou a chegar a mim anos depois. O ECRB foi feito em 2011, o PBA colocado em
operação em 2012. Por resolução da FUNAI, o PBA de Belo Monte não iria ser uma
indenização20, e as medidas de compensação e mitigação seriam realizadas como projetos. O
documento do PBA, cuja construção pude acompanhar, tendo sido convidada duas vezes a
participar das reuniões de equipe, e tendo acompanhado, a convite novamente da equipe que
coordenava a elaboração desse documento, lideranças Xikrin a Brasília para uma apresentação
das propostas e sua eventual aceitação (agora, quando escrevo, duvido que fosse
efetivamente, então fiquemos no eventual, que abrange tanto a eventualidade da aceitação,
ou não, dos povos indígenas lá reunidos das propostas sendo construídas, assim como a
eventualidade de que sua não-aceitação fizesse alguma diferença...), que teria sido implantado
em 2012, é, apesar disso, muito bom, realizado por especialistas de diversos campos e
conhecedores das realidades indígenas e dos processos de licenciamento, e previa uma gestão
participativa, ou seja, da qual indígenas fariam parte. No entanto, ele nunca foi efetivado. A
Norte Energia passou a contratar empresas – poucas com a experiência devida – e fragmentou
o que era uma proposta integrada em ações diversas e incompletas. De fato, em algum
momento desse processo – outro que perdi –, se acordou que o PBA fosse tornado algo que se
chamou de Plano Operativo, e reduzido em planilhas de ações que, dos originais três grossos
volumes, virou um pequeno livreto.

Foi aí que a coisa se complicou de vez. Quanto piores os “projetos”, quanto piores as ações,
mais frustrados ficavam os Xikrin comigo21. Passaram a mandar recados pelas minhas alunas,

20
Como o é em diversos outros casos, em especial com seus parentes mais próximos, os Xikrin do
Cateté (cf. Gordon 2005).
21
Mesmo porque os Xikrin nunca ficaram satisfeitos com a ideia de que projetos seriam feitos para (e
por) eles, em contraposição à indenização que os seus parentes Xikrin do Cateté há anos recebiam da
orientandas de mestrado e doutorado, de que eu não era mais bem recebida lá, e que nem me
desse ao trabalho de ir. Mas, se já o era, aprendi ainda mais com eles a ser... teimosa. Em 2017
– tantos anos depois – tinha um projeto aprovado pelo CNPq para, a pedido dos jovens,
crianças com quem realizei minha primeira pesquisa (Cohn 2000, 2002), retornar os materiais
audiovisuais que só tinha até então em formato analógico. O projeto me permitiu, com o apoio
dessas mesmas alunas, digitalizar esse material, e realizar uma viagem, junto à então
doutoranda Camila Beltrame e uma equipe composta por jovens Xikrin, para a sua
apresentação e uma discussão de como eles seriam retornados a eles22. Avisada que estava de
que não deveria nem mesmo me dar o trabalho de voltar, voltei. Pensei que décadas de
relações não poderiam ser interrompidas por recados.

A viagem me revelou que não era consensual a decisão de que eu não deveria mais visitá-los.
Ela havia sido expressa publicamente por muitos, e era mais difundida exatamente para as
lideranças mais jovens, aquelas que apareceram neste processo de Belo Monte. Baixinho, no
privado e com muita cautela, muitos dos mais velhos me puxaram para si – um gesto
frequente e carinhoso – para me contar que sempre me defendiam, e que nunca haviam
acreditado no que ouviam de acusações a meu respeito. Eram, de fato, aqueles e aquelas que
mais diretamente estavam implicados em minha formação, e tinham mais confiança na
eficácia de seus trabalhos em minha construção como pesquisadora e pessoa (cf. Cohn 2022).
Mas eu permanecia sem saber em que consistiam tais acusações.

Foi na aldeia Potikrô, que havia mandado o recado que era para eu nem aportar – viajava de
barco em um rio ainda navegável, e acompanhada naquele ponto do piloto, da Camila, e do
Bep-jakare Xikrin, o Koka, e seu sobrinho Tumre – que fui descobrir o que estava acontecendo.
É uma história tão bonita e tocante que compartilho aqui. Sozinha, subi o barranco à aldeia, e
recebi, imediatamente, do professor, indígena, da aldeia, saindo do campo de futebol e
correndo, suado e esbaforido mas sorridente, a chave da escola, me dizendo para ficarmos lá.
Como sempre, e como se deve, me dirigi à casa da liderança, que ficava do outro lado do
círculo da aldeia. Acostumada com ser recebida já na beira do rio, respirei fundo ao perceber
que iria atravessar a aldeia solitária. Chegando lá, fui recebida por um chefe circunspecto,
recém-pai, sentado ao lado da rede em que sua esposa e novo filho estavam. Como liderança
que é, abaixou a cabeça ao falar comigo – não se olha nos olhos em situações assim formais
entre os Xikrin. Perguntou quem estava comigo, o que iria fazer, e eu respondi que, embora
tivesse recebido seu recado, estava em viagem parando por todas as aldeias retornando e
mostrando as fotos “dos tempos de antigamente”, como elas ficaram conhecidas durante a
viagem (cf. Cohn 2020), e que não queria deixar de mostrá-las para as pessoas daquela aldeia.
Ele perguntou por que eu havia subido sozinha, a que respondi que quem me acompanhava
estava com medo de entrar na aldeia, respeitando seu recado. Ele então riu, falou que era
bobagem, me contou de um acidente no mato em que quase havia morrido, e, ao ver Koka,
com quem tem uma relação de parentesco marcada pela jocosidade, se aproximando, riu solto
e me disse que ele tinha vindo averiguar se eu ainda estava viva. Permitiu-se assim nossa
estada no Potikrô, e a apresentação das fotos ficou marcada para a noite seguinte (já que

Vale do Rio Doce (cf. Gordon 2005), e os Kayapó receberam em muitos processos de licenciamento,
inclusive, para minha total surpresa, por conta de Belo Monte.
22
Cf. Cohn (2021) para uma análise desse processo, e das dificuldades impostas à antropóloga na
decisão do que deveria ou não ser mostrado, retornado, etc, tendo em vista questões como as imagens
e as vozes de pessoas falecidas, registros de coisas que não deveriam ser vistas por qualquer pessoa, e
dilemas, como chamei, desse tipo, assim como sobre a recepção do material e como se resolveu o
retorno.
necessitávamos do escuro para as projeções), ocasião em que ele e sua família se fizeram
presentes.

Mas o que aconteceu a seguir jamais poderia ter sido previsto por mim. A noite era de culto –
muitos Xikrin são evangélicos, e a aldeia Potikrô tem uma igreja muito bem construída, com
um pastor residente, e recebe com frequência crentes e pastores não-indígenas da região,
sendo aquela noite uma dessas ocasiões. Ouvindo o culto, pedi a Tumre, o sobrinho do Koka
que nos acompanhava, para me levar à igreja. Ele se comprometeu a me acompanhar e me
buscar, mas não a ficar. Chegando lá, vi o brilho nos olhos da esposa da liderança, que vi
crescer, de cuja família sempre fui muito próxima, e que me deu lugar junto a ela e suas
crianças. Nessa igreja, as mulheres sentam à esquerda, os homens à direita. Por diversas vezes,
enquanto acontecia o culto, o vi me olhando, e folheando sua bíblia. Ele me olhava, abria a
bíblia, fechava de novo, e assim aconteceu por umas três vezes. Quando as pessoas que
haviam se prontificado a ler ou cantar hinos começaram a ser chamadas, lá foi ele ao púlpito. E
discursou, em português: “está aqui uma pessoa a quem devo pedir perdão. Nossa amiga
desde sempre, desconfiei dela, disse a quem quisesse ouvir que ela não era mais bem vinda
entre nós, mas agora que a vejo, percebo que estava errado”. E completou dizendo que havia
selecionado um verbete sobre pescadores – tema privilegiado nos cultos xikrin –, mas que,
desde que eu havia entrado na igreja, ele abrira três vezes a bíblia e que em todas elas o
mesmo sucedera: ele abria na página de um verbete sobre o perdão, que escolheu para ler,
então, em substituição. Me chamou ao lado dele, e só pude, eu – que não sou evangélica e
pouco conheço dos cultos, permanecendo portanto calada, mesmo que se esperasse uma fala
minha –, ele, sua esposa, e nosso piloto, que lá estava por ser evangélico, chorar. O pedido de
perdão, e o novo aceite como parte da vida deles, tinha sido feito, em público e, literalmente,
aos olhos de Jesus.

Porém, como acontece com os Xikrin também em momentos de preocupação, não consegui
pregar os olhos aquela noite. Perguntei, de manhã, ao piloto, se poderia ir conversar com a
liderança, porque sentia que havia ainda algo não dito – seu incômodo – e portanto não
resolvido. Ele, evangélico e conhecedor dessas situações, me instruiu que não o fizesse,
porque ele já teria pedido o perdão no lugar mais potente para tal. Mas eu não aguentei.
Minha relação com os Xikrin tinha estado por um fio, e se as tais acusações não fossem
respondidas, discutidas, o mesmo poderia voltar a acontecer. Fui, e o encontrei pronto para ir
à roça. Me concederia alguns minutos, disse. E bateu em minha perna, me dizendo (em
português, já que ele é um bilíngue perfeito, ao contrário de mim), “não se preocupe, está
tudo resolvido”. Perguntei o que precisava ser resolvido, que acusações eram aquelas. E ele
me contou que tanto a Norte Energia como a FUNAI – uma responsável por contratar e realizar
as ações de compensação e mitigação, outra por garantir que elas sejam feitas de acordo e
com qualidade – lhes diziam sempre que não iriam responder a suas demandas, referentes a
essas ações, “porque a antropóloga de vocês não deixa”, porque eu quereria, nesse
argumento, que eles vivessem como antigamente, no mato, sem as casas de alvenaria, os
automóveis e as estradas – que substituiriam o rio agora não mais navegável – que almejavam.
Foi a vez de rirmos de novo – porque lhe lembrei que, se eu não conseguira parar a construção
de Belo Monte ou mesmo garantir que os ECRB fossem bem feitos, não teria como ter poder
de mandar nem na empreendedora nem na FUNAI, as impedindo de fazer algo. Depois do
momento na igreja, ele me contou então algo tão fascinante quanto: que, tendo notícias de
que eu iria chegar, foi até a vila mais próxima, onde teria sinal de internet, e me procurou. E
me achou – me achou em vídeos em que viu que “eu falava para os kuben as palavras dos
velhos”23, que eu nunca havia esquecido o que havia aprendido ou deixado de respeitar e
reconhecer o que eles haviam me dito. Um verbete da bíblia havia seguido, na verdade, uma
pesquisa anterior, em que ele havia tomado o cuidado de se certificar da veracidade das
acusações. O que explica o mal-estar do nosso primeiro reencontro – orgulhoso, ele tinha que
ser coerente consigo mesmo – mas também a rapidez com que ele virou afeto e jocosidade
(duas coisas, aliás, que andam juntas no mundo xikrin, e na vida com os Xikrin).

O desafio não acabava aí, porém. Nesta mesma viagem, as aldeias do Alto organizaram uma
reunião com lideranças de quatro aldeias – hoje são 21, e a fragmentação de aldeias não
parece acabar nunca, mas essa é outra história –, Ràp-kô, Mrõtidjam, Bacajá e Putakô, para
que eu me explicasse. Foi uma tarde no calor da casa central me explicando, ao lado de Bebere
Xikrin, jovem liderança, que havia se prontificado a me proteger e defender, e com a presença
das mulheres da aldeia, que cuidaram de não me deixarem sozinha com os homens. A reunião
terminou quando tive que explicar o fracasso de mais uma de minhas iniciativas, um projeto
com as mulheres xikrin implementado em parceria com a FUNAI local, de que eu era acusada
de ter roubado o dinheiro financiado pelo PDRS/Xingu, já que as ações propostas por mim e
minhas alunas a partir das demandas delas não haviam sido efetivadas. Respondendo que eu
não tive acesso aos recursos, que ficaram sob gestão da FUNAI local, a outra liderança que
naquele momento mais me acusava sentou, refletiu, e finalmente me perguntou: “então, por
que a FUNAI vive falando que você só enriquece às nossas custas e não faz projeto nenhum
que nos beneficie?”. Quem deu a resposta foi Bebere, ao dizer “ora, é fácil, é porque eles
querem que a Clarice faça projetos para ficar com o dinheiro”. Sua resposta causou risos, e a
reunião foi desfeita, com o humor xikrin novamente marcando o fazer as pazes e o afeto.

Enfim. Acusações sérias, muitos fracassos, muitos embates. Como vimos, a aceitação das
acusações não era consensual – e muitos, e muitas, torciam para que eu pudesse deslindar o
que acontecia. Mas ela era forte e disseminada, e se não fosse minha teimosia – e talvez a
melhor razão para voltar lá, o retorno do que era enfim nossa história juntos e a memória que
nos unia –, talvez de fato as relações, como eu temia há tanto, tivessem se acabado para
sempre.

Mas deixei de contar algo que começou... no começo dessa história. Um desconforto
constante deles com minhas falas que lhes pareciam apocalíticas. De fato, embora muita gente
falasse do “fim do mundo tal como o conhecemos” – um título que dei a um texto sobre Belo
Monte (Cohn, 2014) –, havia também a expectativa de que as coisas pudessem melhorar para
eles – indígenas no Brasil todo, mas em especial naquela região, só recebem os piores serviços
e as piores coisas, da pior qualidade. Havia um sentimento de medo do futuro misturado com
uma esperança de um mundo melhor, e depois piorado com a sensação de impotência. Nossas
conversas, em que eu falava dos impactos, do que conhecia sobre o que acontecera com
outros povos indígenas e em outras Terras Indígenas, e de como eles deviam lutar com todas
as forças para que isso não lhes acontecesse, lhes pareceu, diversas vezes, e legitimamente,
uma incapacidade minha de confiar nas suas habilidades para tomar decisões sobre suas
próprias vidas e de lidar com a situação. Foi com dor no coração que eu ouvi, em uma reunião
novamente na aldeia do Mrõtidjãm com o então Procurador da República que acompanhava o
caso – enquanto a jurisdição do caso estava na MPF de Belém –, Florício Pontes, um velho,
meu querido Karangré, se levantar e se dirigir a mim, em sua língua, dizendo “mas tudo isso é
muito ruim para nós. Me entristece perceber que você, Clarice, a quem cuidamos com tanto

23
Cf. https://www.youtube.com/watch?v=oOngS2xM-jk
carinho desde novinha, a quem ensinamos tanto, que é nossa parente (bikwá), não tenha nos
avisado disso”. Eu tinha. Eu tinha tentado. Eu tinha tentado fazer tudo certo. Mas eu merecia
essa bronca. Porque àquela altura – estávamos em 2011 – tudo já estava muito ruim e só ia
piorar.

Enfim. As histórias são muitas e entremeadas, e não é possível contá-las todas, muito menos
(bem, devidamente) analisá-las, ou muito menos saber o que o futuro nos espera, porque é
um processo ainda em andamento. Novos mal-entendidos, novas tentativas fracassadas,
novos reencontros certamente acontecerão. Antes de partir para o que proponho como uma
conclusão, ao contrário, tomo mais uma vez emprestada a expressão de Ngrenhdjam Xikrin, a
Rafaela, em depoimento que nos deu (Ngrenhdjam 2014: 445): “é isso, um fim sem fim,
porque sempre vai surgir mais alguma coisa para contar”. E, nesse futuro, muitos encontros,
mas também muitos desencontros, irão acontecer.

4. Ser aparentada e ser inimizada

Quando escrevi, recentemente, sobre como a pesquisa de campo é ao mesmo tempo uma
construção da pesquisa, dos conhecimentos a serem partilhados, como da pesquisadora,
enfatizei o quanto os Xikrin me tornaram parente (Cohn, 2022). Me aparentaram, me
manipularam o corpo, me escrutinaram para saber o que eu já havia aprendido e o que estava
pronta a aprender, me construíram como antropóloga e como pessoa. Lá, já enfatizava que o
me construir como antropóloga não era e nem podia ser um completo aparentemento - minha
alteridade era fundamental para que eu fosse uma boa antropóloga.

Tenho argumentado pelo valor da alteridade, da mudança contínua e da diferenciação para os


Xikrin. Tenho buscado demonstrar que sem isso, como já disse acima, seu mundo se paralisa,
se congela, e que eles perdem sua capacidade de fazer novas pessoas, e coletivos, belos e
fortes, fazendo quem sabe apenas versões enfraquecidas de si (Cohn 2005).

Mas também tenho mostrado que a lógica da guerra, reinventada ou impossibilitada como for,
demanda o contínuo translado de pessoas do aparentamento à inimização (idem). Neste texto,
mostro como – e é ao escrever que o percebo mais nitidamente –, aparentada que fui, me vi
também inimizada. E reaparentada e reinimizada, em um processo que está longe de acabar -
porque os impactos de Belo Monte estão longe de acabar, há novos riscos, como Belo Sun,
chegando, e porque as batalhas seguem.

O processo de aparentemento envolveu um ensino e uma expectativa de aprendizagem e


conhecimento adquirido, mesmo que parcial por definição, e uma construção da antropóloga-
pesquisadora em Mebengokré e só assim capaz de aprender - como já argumentei também,
não sendo jamais plenamente Xikrin nem plenamente parente, me faltavam e sempre me
faltarão muito do que se faz necessário para bem aprender e saber. Isso é reconhecido e
tolerado por eles (Cohn 2022).

Mas Belo Monte me colocou na outra ponta: a da Outra, a da alteridade sempre mantida, mas
pela qual se esperava que eu conhecesse e soubesse manipular mais os modos dos meus, dos
kuben, para melhor ajudá-los. Eu, cada vez mais, fui me perdendo nos entremeios de um
processo que foi ficando cada vez mais nublado, tortuoso, escapando à regulamentação que
eu esperava ter sido respeitada. Cada derrota recaía fortemente sobre mim, e por vezes eles,
ou muitos deles, duvidaram que eu sequer tivesse aprendido algo.
Como a Xikrin que sou, e que fui feita, permaneci, e me mantive na luta. E, como Xikrin, jamais
plenamente parente, mas também não permanentemente inimiga. É mesmo um fim sem fim,
com muitas novas histórias a contar, em que novas reinimizações e, espero, novos
reaparentamentos vão seguir.

REFERÊNCIAS

BRONZ, Deborah. 2013. “O Estado não sou eu”. Estratégias empresariais no licenciamento
ambiental de grandes empreendimentos industriais. Campos - Revista de Antropologia, v. 14,
n. 1/2, p. 37-55. Disponível em: <https://revistas.ufpr.br/campos/article/view/42472/25828>.
Acesso em: 03 set. 2022

Brum, Eliana. 2014. Os Silva são diferentes. Coluna Opinião, El País. Disponível em
https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/01/opinion/14

CARNEIRO DA CUNHA, Manuela. 2019. Suicídio ecológico e ecocídio indígena e de ribeirinhos.


Disponível em: https://comissaoarns.org/pt-br/blog/suic%C3%ADdio-ecol%C3%B3gico-e-
ecoc%C3%ADdio-ind%C3%ADgena-e-de-ribeirinhos/ . Acesso em 15/08/2022.

COHN, CLARICE. 2000a. A criança indígena. A concepção xikrin de infância e aprendizado.


Dissertação de Mestrado. Departamento de Antropologia, Universidade de São Paulo.

COHN, CLARICE. 2000b. Crescendo como um Xikrin: uma análise da infância e do


desenvolvimento infantil entre os Kayapó-Xikrin do Bacajá. Revista de Antropologia, v. 43 nº 2,
pp. 195-222.

COHN, Clarice. 2005. Relações de diferença no Brasil Central: os Mebengokré e seus outros.
Tese de Doutorado. SBD-FFLCH-USP.

COHN, Clarice. 2010. Belo Monte e processos de licenciamento ambiental: As percepções e as


atuações dos Xikrin e dos seus antropólogos. Revista de Antropologia da UFSCar, v. 2, n. 2, p.
224-251. Disponível em https://www.rau2.ufscar.br/index.php/rau/article/view/34

COHN, Clarice. 2014. O fim do mundo como o conhecemos: os Xikrin do Bacajá e a barragem
de Belo Monte. In.: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs). Belo Monte e a questão indígena.
Brasília: ABA, p. 253-276.

COHN, Clarice. 2020. Retornando sua coleção de material audiovisual: os dilemas de uma
antropóloga. In: Journal de la Société des Americanistes. 106-2. Disponível em:
https://journals.openedition.org/jsa/18556

COHN, Clarice. 2022. Construindo a antropóloga e a pesquisa: reflexões a partir de 30 anos de


etnografia com os Xikrin do Bacajá. Revista Pós Ciências Sociais, 19(2), 285–306. Disponível em:
https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/rpcsoc/article/view/19434

COHN, Clarice; CAVALCANTE, Jucimara; SENA, Lucas. O Futuro da Amazônia e os povos


indígenas: de volta ao passado. in IORIS, Rafael R; IORIS, Antônio Augusto R.(org.). Amazônia
no século XXI: trajetórias, dilemas e perspectivas. São Paulo : Alameda, 2022. 1 ed. p. 461 -
488.
FISHER, WILLIAM H. 1991. Dualism and its Discontents: social organization and village
fissioning among the Xikrin-Kayapo of Central Brazil. Ph.D. Dissertation. Faculty of the
Graduate School of Cornell University .

FISHER, WILLIAM H. 2000. Rain Forest Exchanges. Industry and Community on an Amazonian
Frontier. Washington, Smithsonian Institution Press.

FISHER, William H. 2014 O contexto institucional da resistência indígena a megaprojetos


amazônicos. In: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs.) Belo Monte e a Questão Indígena, ABA,
Brasília-DF, 2014.

FUNAI. 2009. Parecer técnico 21: análise do componente indígena dos estudos de impacto
ambiental UHE Belo Monte. Brasília, 2009. Disponível em:
<http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/BeloMonteFUNAI.pdf>. Acesso em: 25
ago. 2022.

GIANNINI, ISABELLE VIDAL. 1991a. A Ave Resgatada: “A impossibilidade da Leveza do Ser”.


Dissertação de mestrado, Universidade de São Paulo, mimeo.

GIANNINI, Isabelle Vidal et alli, 2009. Estudo Socioambiental da Terra Indígena Trincheira
Bacajá – TITB. Disponível em http://philip.inpa.gov.br/publ_livres/Dossie/BM/DocsOf/EIA-
09/Vol%2035/TOMO%205/Texto/Relat%C3%B3rio%20TI%20Trincheira%20Bacaj%C3%A1.pdf ,
acesso em 15 de agosto de 2022.

GORDON, César. 2005. Economia Selvagem. Ritual E Mercadoria Entre Os Índios Xikrin-
Mebêngôkre. São Paulo: Edunesp/FAPESP/ISA.

LEME ENGENHARIA, 2009. Aproveitamento hidrelétrico de Belo Monte: estudo de impacto


ambiental. Rio de Janeiro: Eletrobras, 2009. 36 v.

LEME ENGENHARIA, 2012. Estudos complementares da bacia hidrográfica do rio Bacajá:


volume VII: tomo IV. [S.l.]: Leme: Norte Energia.

PACHECO DE OLIVEIRA, João e COHN, Clarice (orgs.) 2014. Belo Monte e a Questão Indígena,
ABA,Brasília-DF. Disponível em:
http://www.portal.abant.org.br/publicacoes2/livros/Belo_Monte_Questao_Indigena_-
_Joao_Pacheco_de_Oliveira_&_Clarice_Cohn.pdf

RIBEIRO, Gustavo Lins. Quanto maior melhor? Projetos de grande escala: uma forma de
produção vinculada à expansão de sistemas econômicos. In: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs.)
Belo Monte e a Questão Indígena, p. 50-69.

MANTOVANELLI, Thais Regina. 2016a. Os Xikrin do Bacajá e a Usina Hidrelétrica de Belo


Monte: uma crítica indígena à política dos brancos. Tese (Doutorado em Antropologia Social) –
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos. Disponível em:
https://repositorio.ufscar.br/handle/ufscar/9009

MANTOVANELLI, Thaís R, 2016b. Os Xikrin da Terra Indígena Trincheira-Bacajá e os Estudos


Complementares do Rio Bacajá: reflexões sobre a elaboração de um laudo de impacto
ambiental. In: Horizontes Antropológicos, no. 46. Disponível em
https://seer.ufrgs.br/horizontesantropologicos/article/view/58046. Acesso em: 23 de agosto
de 2022.
MONTAÑO, Marcelo. 2014. Planejamento às avessas: os descompassos da Avaliação de
Impactos Sociais no Brasil. In: In: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs.) Belo Monte e a Questão
Indígena, p. 33-49.

NGRENHDJÃM XIKRIN. 2014. O processo de Construção de Belo Monte na fala de uma jovem
Xikrin. In: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs). Belo Monte e a questão indígena. Brasília: ABA.

PATRÍCIO, Marlinda Melo. 2014. Reflexões em torno da vida sociocultural dos Arara da Volta
Grande do Xingu frente ao megaempreendimento da usina hidrelétrica de Belo Monte,
Altamira-PA. In.: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs). Belo Monte e a questão indígena. Brasília:
ABA, pp. 340-358 .

SANTIAGO, Ana Elisa, 2014. Entre papéis, pessoas e perspectivas. Etnografia da Gestão da
Educação Escolar Indígena em Altamira/PA. Dissertação (Mestrado). São Carlos.
PPGAS/UFSCar. Disponível em:
https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/238/6368.pdf?sequence=1&isAllowed=
y

SZTUTMAN, Renato; COHN, Clarice. 2003. “O visível e o invisível na guerra ameríndia”. In:
Sextafeira [guerra], vol 7. São Paulo, Editora 34, pp. A043-A056.

VIEIRA, Maria Elisa Guedes. 2014. Os Juruna do contexto da usina hidrelétrica de Belo Monte.
In.: Pacheco de Oliveira e Cohn (orgs). Belo Monte e a questão indígena. Brasília: ABA.

VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo B. 2002. A Inconstância da Alma Selvagem e Outros Ensaios de


Antropologia. São Paulo: Cosac & Naify.

TURNER, Terence. 1991. Baridjumoko em Altamira. Povos indígenas no Brasil, 1987-90


(Aconteceu Especial 18), São Paulo: Cedi (Centro Ecumênico de Documentação e Informação),
p. 337-338, 1991b. Disponível em:<http://issuu.comk/instituto-sociambiental/docs>. Acesso
em: 10 de agosto de 2022.

Você também pode gostar