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Ferreira Oliveira
Introdução
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Graduandos dos cursos de Ciências Sociais – Licenciatura e Bacharelado da Universidade Federal
da Fronteira Sul.
Por fim, temos a narrativa da história de vida de Ana Ferreira Oliveira,
chamada de Dona Ana, onde re-contamos a história, permeada de muita dor e
resistência, de uma das mais antigas residentes e herdeiras do quilombo. A
entrevista foi feita no dia da visita ao Paiol de Telha, onde fomos gentilmente
acolhidos e conversamos com Ana sobre sua trajetória. Neste trabalho, procuramos
relacionar os relatos da moradora com a história do quilombo, mas também
questões profundas sobre pertencimento, identidades, resiliência do povo negro e a
violência usada contra eles históricamente.
Como resultado, para esta pesquisa foi feita a escolha de unir ambos os
métodos, uma vez que são métodos qualitativos de investigação utilizados para
compreender os aspectos subjetivos com relação a temas específicos utilizando o
conhecimento dos materialismos. Durante a pesquisa, foram realizadas gravações e
fotografias que viriam a auxiliar a análise, possibilitando uma avaliação crítica do
discurso.
Dona Ana Ferreira Oliveira, nascida em 1929 neste território, tem hoje 94
anos de idade e narrou um pouco sobre sua história de vida e resistência, numa
trajetória marcada pela luta pelo pertencimento e ligação com uma terra que sempre
fora herdeira. Descendente de um dos 13 escravos libertos e herdeiros, segundo o
testamento deixado por Dona Balbina Francisca de Siqueira Cortez, em 1860, dona
Ana é uma das herdeiras desta terra e nos conta sobre as imigrações, a invasão
alemã e as inúmeras andanças devido às expulsões sofridas e vividas ainda na
infância com seus pais.
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Precursor e grande nome dentro do coletivo intelectual, fundador da linha conhecida como análise
de discurso na segunda metade do século XX, teorizando sobre a materialidade do discurso.
Imagem 4 - Dona Ana Imagem 5 - Turma na casa de Dona Ana
Ela narra sua história em cima de muita dor e sofrimento, mas também sobre
muita luta e resistência. Por meio de seus relatos, é possível perceber como a
estrutura em que estamos calcados – através do colonialismo, a tentativa iminente
de retirada desse povo de sociedade e as expulsões dos herdeiros dos locais que
são seus por direito – demonstram que, para esse sistema, o povo negro será
sempre colocado às margens.
Dona Ana relata que a primeira expulsão ocorreu quando ainda era criança, a
resistência por parte de sua família em deixar as terras herdadas fazia com que
corressem risco de vida e uma prática muito comum na época era a queima das
propriedades dos moradores herdeiros das terras. Com isso, eram jogados de um
canto para outro, sempre partilhando do desdém por onde passavam. Quando se
instalavam em um “canto”3 e trabalhavam no local, com as práticas do campo e da
agricultura de subsistência, “ajeitavam” o local e por lá permaneciam, segundo ela,
sua permanência nos locais variava entre 7 a 9 anos até que precisassem se retirar.
Assim, eles eram levados para outro “canto” e a prática se repetia, através dos seus
trabalhos “ajeitavam” o lugar para serem novamente retirados. Essa prática durou
boa parte da vida dos herdeiros.
As histórias da vida da Dona Ana, junto com a dos outros moradores, levam a
uma reflexão acerca do pertencimento, uma vez que eles não se denominam, e de
certa forma não se identificam, como “sem terra”, já que nas palavras dos mesmos
eles são herdeiros, e a luta não se tratava de uma terra qualquer, mas sim da terra
onde seus antepassados residiram, onde sua ancestralidade estaria. Quando
questionada sobre sua percepção a respeito desses acontecimentos sendo tão
nova, ela disse “Eu tinha 12 anos, só chorava, minha mãe uma vez disse que ia me
jogar no mato se eu não parasse de chorar, então eu parei”. O silenciamento até
mesmo da dor sentida, tendo que desde de muito nova esconder e ser forte, para
poder até hoje com o direito de suas terras e lutar pelo pertencimento.
Pela sua vida dona Ana também enfrentou a dor da perda, relatou que ao
todo ela teve nove filhos, mas devido à falta de recursos de saneamento e saúde,
enfrentou o luto de 7 deles, com a idade que variava de três a cinco anos. Com uma
profunda tristeza no olhar, ela contou sobre a perda de seu último filho, que morreu
vítima do crupe4, disse que não procurou tratamento, pois devido ao trauma da
perda de seis filhos, não queria inconscientemente aceitar a perda de mais um,
negando sua doença. A falta de recursos médicos permeia até hoje na vida dessas
pessoas. Eles tinham como refúgio as crenças populares, as tradições passadas
através das gerações, carregavam a medicina popular e com isso podiam controlar
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Esta é a forma com que a própria herdeira se refere aos locais onde residiam após as expulsões.
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Infecção das vias aéreas superiores que bloqueia a respiração e causa uma tosse forte
característica.
ou amenizar as enfermidades que os acarretavam, contavam apenas com o
conhecimento das ervas, das crenças populares e da lua.
Alguns aspectos nos chamaram a atenção, dentre eles está a fé que Dona
Ana carregava consigo. Sua casa era ornamentada com diversas imagens de
símbolos cristãos, e quando indagada, nos relatou que carrega dentro do si a fé
católica, relatando que também é um dos motivos para ter tanta força. Com isso, nos
contou sobre uma das práticas culturais que foram se perdendo ao longo do tempo:
as “recomendas”. Segundo ela, as recomendas aconteciam quando os moradores,
ornamentados de símbolos católicos, passavam de casa em casa, cantando
músicas específicas daquele rito, em cada casa paravam e, de acordo com o santo
que cada família escolhia, recomendavam as almas do cemitério, do purgatório e
dos antepassados daquela família. Essa prática ocorria nas quartas e sextas-feiras
da quaresma e devia ser feita à noite, com as luzes da casa apagadas e todos
deviam ficar em silêncio até que a procissão passasse, quando as pessoas
chegassem cantando e recomendando as almas, as luzes iam se acendendo.
Atualmente não há mais o costume de praticar a recomenda, mas essa expressão
da religiosidade e festividade permanece viva nas memórias de Dona Ana, que
lamenta o esquecimento do rito por parte das novas gerações.
Mais ao final da nossa conversa com Dona Ana, perguntamos sobre seu
gosto pessoal, o que ela comia quando criança e o que ela carregava na memória. A
resposta, dada com um semblante que remetia a um saudosismo, era de que,
quando criança, adorava comer quirera com suan5 de porco, lembrança que com
nostalgia despertou seu paladar, e assim ela continuou contando sobre os “pratos da
roça” que ela gostava e gosta até hoje. Segundo ela, as comidas cultivadas por eles
mesmo, como a batata doce e a mandioca, era o que mais ela gostava de comer.
Ao final nos despedimos, e ela, com toda simpatia, agradeceu a visita com um
sorriso no rosto pediu e que voltássemos, mas teria que ser logo, se referindo a sua
idade avançada, em uma brincadeira que transparece para nós que ela parece já
estar finalizando sua história, marcada pelo sofrimento, mas também sobre muita
resistência, uma mulher eternizada como símbolo de luta.
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Também chamada de suã mineira ou de espinhaço suíno, é a espinha dorsal do porco, que tem
carne, osso e gordura.
Considerações finais
A história de vida de Dona Ana, contada por ela própria, evidencia uma
dimensão geral e ao mesmo tempo particular de um período da história de luta dos
herdeiros da Invernada Paiol de Telha – Fundão, de Dona Ana e de sua família. A
história de vida apresenta-se então, como uma prática social, segundo Bragança
(2012), e fica evidente no momento dos acontecimentos relatados a
transmissão/recriação da cultura, por meio das narrativas envolvendo pais, filhos,
das histórias da família e da comunidade; estas práticas que passam por gerações,
são a comunicação viva do testamento construído socialmente pela comunidade.
Enquanto grupo, sentados em volta de Dona Ana para ouvir o relato de suas
histórias e de seu conhecimento, nos utilizamos da forma propriamente humana de
produzir conhecimentos, constituindo o registro das narrativas de vivências orais de
vida e da história individual/coletiva.