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INTRODUÇÃO
É propósito dêste trabalho examinar as recentes mu
danças ocorridas na cultura dos índios Terena í1), aldeados
em Bananal, no sul do Estado de Mato Grosso. Duas visitas
foram feitas à Aldeia de Bananal: a primeira em Junho de
1946, prolongando-se por uma semana; a segunda de Dezem-
(♦) Tese apresentada ao Corpo Docente da Divisão de Estudos Post-Graduados em
cumprimento de uma das exigências para obtenção do Grau de Mestre em Ciência.
Desejamos patentear o nosso profundo agradecimento à Escola Livre de Sociologia
e Política de São Paulo, que custeando as despesas decorrentes de nossa visita à Aldeia
de Bananal, no Sul do Estado de Mato Grosso, tornou possível a realização dêste trabalho.
Ao Prof. Kalervo Oberg, do Instituto of Social Anthropology do Smithsonian Insti-
tution, que nos acompanhou e orientou no trabalho de campo bem como na elaboração
desta tese, o nosso especial agradecimento.
Aos Professores Donald Pierson, Herbert Baldus, Octavio da Costa Eduardo, Emilio
Willems, Oracy Nogueira e Antonio Rubbo Müller, nossos agradecimentos pela crítica
paciente e construtiva.
Não fugimos contudo à responsabilidade dos erros e omissões que certamente terão
ocorrido neste trabalho, apesar do valioso auxílio que recebemos.
Desejamos ainda testemunhar ao Serviço de Proteção aos índios, nas pessoas dos
seus funcionários, Srs. Coronel Nicolau Horta Barbosa, então Inspetor Regional em Campo
Grande, e Francisco Ibiapina, Encarregado do Pôsto Visconde de Taunay, na Aldeia de
Bananal, o auxílio espontâneo e as facilidades concedidas, que tornaram possível a coleta
de material.
Aos índios Terena, aos nossos informantes em geral, e em particular a Antonio
Aurélio Marcos, Antonio Vicente, Marcolino Wollily, Patrício Wollily e José Francisco
(Japão), nosso sincero agradecimento.
Aos nossos colegas e funcionários da Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo, Maurício Segall, Juarez R. Lopes, José Novais Paternostro, Adelheid Jlamburger.
Maria Georgina von Pritzelwitz e Helena Penteado Cardoso, o nosso reconhecimento pelo
auxílio prestado na elaboração dêste estudo.
Ao meu irmão Dr. José Altenfelder Silva, a minha gratidão pelo trabalho de revisão
o correção dos originais,
São Paulo, Dezembro de 1948 — Escola Livre de Sociologia.
(1) Com referência ao nome Terena, convém mencionar a maneira pela qual esses
índios são designados por outros autores. Max Schmidt, por exemplo, oferece uma lista
de autores que escreveram sôbre os Guaná e nomes empregados para designar essas tribos,
('‘Guaná”, Zeitschrift fur Ethnologie, t. XXXV, Borlin, 1903, pags. 328, 329, 330 e 331).
272 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOU IH
(10) José Sâncbez Labrador, Op. cü., VoL 11, pág-. 266.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU III 277
(11) José Bánchez Labrador, Op^ cü.. Voi. II, págs. 275-276.
278 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU III
Os Terena no Brasil
No início do século XIX, devido à crescente pressão de outras
tribos do Chaco ou talvez atraídos pelas vantagens de um tráfico
com os europeus, os Guaná começaram a se deslocar para a margem
oriental do rio Paraguai, penetrando no Território Brasileiro em
levas sucessivas, que perduraram até fins do século. Distribuiram-se
pelos arredores de Albuquerque, confinando seus territórios com os
dos Guató, com quem mantinham relações hostis.
Em 1861 von den Steinen menciona os Quiniquinao como aldea
dos a três léguas de Albuquerque, na aldeia de Nossa Senhora do
Bom Conselho, sob a orientação de Missionários Franciscanos; ao
passo que os Terena, Laiana, e Guató, em número de 2.500 viviam
em colônias, a uma légua de Miranda (13). Em 1845 Castelnau
visitou os aldeamentos próximos a Albuquerque e Miranda, e o relato
que nos deixou, embora retrate os Guaicuru e Laiana como grande
mente aculturados, assim se refere aos Terena:
“ C Vst une nation guerrière qui a maintenu dans toute
leur intégrite les costumes de ses pères (14).
Castelnau descreve a aldeia Terena como sendo formada de 110
casas unidas umas às outras, dispostas em círculo ao redor de uma
grande praça. As suas armas eram, segundo a descrição do autor
em questão, a lança com ponta de ferro, a maça, o arco e flecha, e
o arco de duas cordas (bodoque). Acrescenta o autor:
“Dans la voisinage immediat de ce village, sont trois
autres aldeas moins considerables, et que avaient eté nouveL
lement formées par des troupes dTndiens venus de desert,
ayant encore en leur possession des objets pris sur des
Espagnols qulls avaient massacre. La population totale de
ces quatres villages est d’ênviron trois milles Indiens” (15).
(13) Karl von den Steinen, Entre os Aborígenes do Brasil Central, (Trad. Departa
mento de Cultura de São Paulo» 1940), pAgs. 6 96-7. Às pâgs. 6 9 3-9 4. na transcrição das
Alas Cuiabanas, referentes aos anos de 1848 e 1872, mencionam-se 2.000 Terena» aldeados
nas proximidades do presídio de Coimbra.
(14) Francis de Castelnau, Expéditíon dana les Partíes Cenlrales de PA intrigue
du Sud (Paria, 1850), Vol. II, pág. 470.
(15) Francia de Castelnau, Op. ciL, Vol. II, págs. 470-472.
280 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N S., VOL. III
A Guerra do Paraguai
Mudanças recentes
Origem de Bananal
Mobiliário e utensílios
Vestuário e adornos
Atividades de subsistência
A região onde habitavam primitivamente era muito rica em
caça e plantas alimentícias, e não obstante haverem os Terena se
(36) Francis de Castelnau» Op. eit., Vol. II» págs. 470-471.
(37) José Sánchez Labrador» Op. cit., Vol. II» pág. 268.
(38) Franeia de Castelnau, Op. cü.» VoL II, pág, 471.
290 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III
Lavoura
Milho, soboró
Mandioca, tchupú
Banana, severená-sô-unô
Outras plantas
Caça e pesca
Coleta
Produção do fogo
Os Terena produziam o fogo, duicú, pelo método de fricção de
duas varetas, uma apoiada perpendicularmente à outra. Com as
mãos imprimiam à vareta perpendicular um movimento de rotação,
comprimindo-a contra a haste horizontal.
Divisão de trabalho
A divisão de trabalho parece justificada no mito de criação, no
qual Yurikoyuvakai, os heróis gêmeos dão aos homens os instrumen
tos de trabalho agrícola e as armas de guerra e, às mulheres, o fuso
de fiar. A limpeza da roça e o amanho da terra eram tarefas mas-
(39) Herbert Baldusr em Indianerstudien im NorddsUiehen Chaco, (Leipzíg, 1931),
p6g. 34, menciona a utilização de vacas como montarias pelos Kaxkiha.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 295
Cerâmica
Cestaria
Fabricavam cestos e abanicos de carandá ou de piri ou ainda de
bambu. Os cestos eram utilizados para guardar e transportar alimen
tos. Cestos especiais eram feitos para transporte de crianças. Êstes
últimos eram adatados às costas das mulheres e presos à cabeça por
meio de faixas de algodão.
Fiação
Na fiação, tarefa feminina, empregavam-se fibras de algodão,
de palmeiras e de um arbíisto denominado yuhi e cujo nome corres
pondente em português desconhecemos. Para fiar o algodão usavam
um fuso, hopaé, de vareta de madeira e tortual de barro. Para as
fibras mais grossas, como as do yuhi, empregavam fusos maiores,
feitos com o mesmo material, aos quais chamavam de uosso-copeti,
Antes de utilizarem o yuhi para fiar, deixavam-no por alguns
dias mergulhado nagua. Em seguida as fibras do yuhi, assim tra
tado, eram facilmente separadas, depois de secas, eram fiadas com
auxílio do uosso-copeti. Com as fibras de yuhi faziam dois tipos de
bolsas, uma pequena, verii e outra maior, nimaquê. O verii era
utilizado para guardar frutas, pequenas cabaças e outros objetos; o
nimaquê era empregado no transporte de mandioca e outros pro
dutos, da roça para as moradias. Faixas de algodão (de cerca de
0m.200 de largura), denominadas hco-eti, eram utilizadas para pren
der os xiripá; amarradas à cintura.
296 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III
A SITUAÇÃO ATUAL
Após êste ligeiro esboço da vida econômica no passado, e da
constatação de uma atividade de subsistência baseada na agricultura
e entremeada com a caça, pesca e coleta, procuraremos examinar as
mudanças sofridas na vida econômica dos Terena bem como sua
presente situação na aldeia de Bananal.
Devido à falta de territórios adequados para a caça, pesca e
coleta, os Terena de hoje vêem-se forçados a limitar suas atividades
à agricultura ou ao trabalho nas fazendas vizinhas.
Nas diferentes aldeias em que se distribuem atualmente, cuidam
durante parte do ano, de suas plantações; parte do tempo é empre
gado no trabalho de peão, nas fazendas vizinhas ou ainda nos serviços
de conservação de linha da Noroeste do Brasil. Embora a aldeia de
Bananal, que passaremos a descrever, se encontre em melhor situação
econômica que as demais, o seu exame nos permitirá avaliar as mu
danças sofridas pelos Terena, em geral, em Mato Grosso.
Mobiliário e utensílios
Resume-se o mobiliário dos Terena em: a cama (que em muitos
easos se identifica com o jirau dos velhos tempos), bancos, redes,
utensílios de cozinha e instrumentos de trabalho. A rede é encom
trável em quase todas as casas; o dono da casa geralmente dorme
ém jiraus ou camas e os filhos e hóspedes, em rêdes. Para forrar
os jiraus usam cobertores de algodão.
Nas casas mais abastadas é possível encontrarem-se mesas e
cadeiras, e até mesmo armários e prateleiras, fabricados pelos pró
prios índios. Na maioria dos casos, porém, caixotes vazios, quando
necessário, fazem as vêzes de mesas, cadeiras e armários.
Potes e panelas de barro, feitos pelos índios, amontoam-se de
mistura com panelas de ferro e latas vazias de conserva (utilizadas
como recipientes). Potes de barro e cabaças para guardar água são
usados simultâneamente com latas de querozene. Pequenas latas de
conserva, canecas de ferro esmaltado e chícaras de porcelana, bem
como pratos de barro, alumínio e porcelana, e mesmo copos de vidro,
coexistem em Bananal, às vezes, na mesma casa.
Nas refeições os Terena usam hoje colheres de alumínio; para
cortar, si necessário, empregam a faca que trazem consigo e que usam
também nas lides diárias. Cestos de vime e verü e nimaquê, bem
como vasilhas feitas de cabaças são ainda muito utilizados. Gar
rafas de pinga vazias são empregadas para guardar melado. Para
iluminar as casas durante a noite usam velas de sebo ou esperma-
cete, ou lamparinas de querozene.
A cozinha, que se resume numa simples fogueira e num forno
de barro, localiza-se nos fundos da casa, do lado de fora.
Vestuário e adornos
Nas roupas e adornos os índios de Bananal pouco se diferenciam
das populações rurais da região. Os trajes obedecem a padrões de
origem européia: os homens usam calças e camisas de algodão; as
mulheres, vestidos de chita ou morim. Alguns poucos já se habi
tuaram a andar calçados; a maioria anda descalça ou usa alpercatas
feitas na própria aldeia. As mulheres usam sapatos nas festas da
aldeia; nas ocasiões solenes os homens usam paletó. O uso do chapéu
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 299
Lavoura
O ano agrícola se inicia em Agosto ou Setembro, com o período
das chuvas. Nessa época os índios limpam as roças e iniciam o
plantio; é também o período das colheitas, e vai até Março e Abril,
quando findam as chuvas. De Abril a Agosto é frequente sairem
os índios para trabalhar nas fazendas vizinhas. Finalmente, com
as chuvas de Agosto se inicia um novo ano agrícola.
A ordem do plantio é aproximadamente a seguinte: em Agosto
planta-se o feijão miúdo; em Setembro, a mandioca e o milho,
iniciando-se também o plantio da cana de açúcar; em Setembro e
Outubro colhem-se a mandioca e a cana, iniciando-se a moagem da
cana e a fabricação da rapadura. Em Janeiro planta-se a banana;
em Fereveiro, o arroz e, em Março, o feijão rasteiro. Os demais
plantios não têm época determinada, processando-se, entretanto, no
período das águas.
Os Terena fazem plantios mistos de mandioca e outros produtos
para a própria subsistência; mas os produtos que lhes são vantajosos
economicamente são a mandioca e a cana de açúcar.
Calculam os Terena em duzentos cruzeiros a quantia necessária
para a limpeza e plantação de um lote (40m. x 40m<). Desde que as
terras são doadas na base de lotes, o lote (40 m. x 40 m.) passou a
constituir a unidade geral de medida. Um índio cultivará um, dois,
três ou mais lotes. Para cultivar uma extensão de terreno maior
que a de cinco lotes, êle se associará com alguns amigos, a fim de
cotizar o arame necessário para cercar a área em questão (o cerca-
mento do terreno é indispensável, desde que os fazendeiros no Sul
de Mato Grosso se dedicam em especial à criação de gado, e o gado
é deixado solto).
O arroteamento do terreno se processa de forma similar à se
guida pelos agricultores brasileiros. Consiste na roçada e derrubada,
queimada e coivara ou limpeza da área carbonizada.
Limpo o terreno (depois de “assentada a cinza” da coivara), a
roça está pronta para o plantio. Os índios não empregam o arado
nem costumam revolver a terra antes do plantio; as covas abertas
com auxílio da enxada, são fechadas com o pé, empurrando-se a terra
por sobre a semente ou ao redor da muda, conforme for o caso. A
limpeza da roça é feita periodicamente, de acordo com a planta.
302 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S7 VOL. III
PLANTAS CULTIVADAS
Mandioca, tchupú
A mandioca, tchupú, é de primária importância para os índios
de Bananal, contribuindo grandemente para sua alimentação e renda.
Utilizam-se variedades mansas e bravas. A época do plantio vai de
Agosto a Setembro, Cortam-se pedaços do caule, de 10 a 15 em., e
faz-se o que se chama de plantio de montículo: depois de abertas no
solo as covas de 20 cm., de diâmetro, cobrem-se os buracos, até for
mar um montículo; o caule da planta é então fincado no montículo
assim formado, deixando-se para fora cêrca de um terço de seu com
primento. Vinte dias depois, faz-se a primeira capina.
As variedades de mandioca brava plantadas em Bananal exigem
um ano para serem colhidas, mas as raizes se conservam bem no solo
até três anos. Como as mudas de mandioca são plantadas em fileiras
paralelas, a colheita também é feita por fileiras. Um índio dirá:
“Colhi duas carreiras (fileiras). Vou fazer uma carreira de farinha/'
Na colheita o índio é auxiliado, se preciso, pela mulher e pelos
filhos; a mandioca é transportada em nimaquê (bolsas feitas com a
fibra do yuhi) da roça para as casas. Como o tempo de conservação
da mandioca, fora do solo, é limitado, o índio colherá apenas o que
vai consumir ou vender.
Fabricação de farinha
Atualmente a fabricação de farinha constitui uma das princi
pais atividades dos Terena. O processo utilizado é semelhante ao
aplicado nas fazendas vizinhas. Depois de limpa a mandioca das
impurezas mais grosseiras, são as raizes esfregadas em raladores de
madeira, com crivos de pregos ou folhas de zinco e latão com orifícios
de bordos salientes. Em alguns-casos faz-se uso de uma roda reco
berta com folha de flandres (cheia de orifícios de bordos salientes),
à qual se adapta uma manivela.
A massa obtida depois de ralar a mandioca denominada hihi, é
tratada em prensas de madeira, a fim de ser libertada do ácido cianí-
drico. Em alguns casos a massa de mandioca é envolvida num pano
de algodão e torcida várias vezes. O caldo extraído é aproveitado na
fabricação do polvilho, ou yumá.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 303
Milho, soboró
Dos tipos de milho mais empregados em suas plantações citam
os Terena o milho amarelinho, kali-hua^ e o milho de
grãos mistos, cuati-sóboró. O plantio é feito em Setembro e a colheita,
três meses após. Come-se o milho ainda verde, tostado nas brasas.
Fazem-se bolos de milho verde, chipa. O mingau de milho é deno
minado tchomoiú. Fazem-se também pamonhas, yukui. O fubá de
milho maduro socado não é muito usado.
Outras plantas
É preciso mencionar ainda outras plantas cultivadas em Bana
nal, tais como o arroz, o cará, o feijão miúdo e feijão rasteiro, o fumo,
o algodão e a banana. O arroz é de plantio difícil em Bananal e os
resultados não são satisfatórios. Periodicamente, entretanto, devido
à insistência do S. P. I*, os Terena fazem novas tentativas. Conhe
cem eles as variedades: catetinho, purúdceti-naketi - arroz grande,
heupidceti-naketi; e arroz dourado, kalorina. O plantio do arroz é
feito de Agosto a Janeiro, conforme as chuvas cheguem cedo qu
tardiamente. O descaseamento do arroz é feito em pilões de madeira.
O feijão rasteiro não se aclimata bem em Bananal e o seu plan
tio não é produtivo; planta-se em Março. O feijão miúdo, que não
tem época certa para o plantio, é encontrado em quase todas as
roças. O cará é também encontrável em quase todas as roças, geral-
mente associado com a mandioca. Os plantios do fumo e algodão
são feitos em escala diminuta.
Nas roças dos Terena podem ainda ser encontradas, em pequena
escala: pimenta, teetí; pimentão, puiti-taetí; cebola, heoé, e outras
hortaliças.
cruzeiros. E êle explica: “Nóis pobre tem de fazê de tudo pra pode
vive”. Vicente trabalha ainda como ferreiro e mecânico, “quando
lhe surgem oportunidades”, e costuma sair para trabalhar nas fa
zendas, no fim do período das águas, “si há serviço”. Mostra-se
desejoso de se estabelecer fora de Bananal, “numa grande cidade”,
e na ocasião estava interessado em saber o necessário para se poder
viver em Bauru.
Alimentos:
Arroz, o litro, Cr. $ 2,00; mate, o quilo, Cr. $ 3,50; sal, o quilo,
Cr. $ 2,00; querozene, o litro, Cr. $ 5,00; fumo, em corda, o
metro, Cr. $ 15,00; sabão, o pedaço, Cr. $ 3,00; caramelos,
cada, Cr. $ 0,10; açúcar preto, o quilo, Cr. 17,00; milho o
litro, Cr. $ 1,50; banha de gado, o quilo, Cr. $ 15,00
Ve^íwrw:
Fazenda para roupa de homem, metro, Cr. $ 14,00; fazenda
para roupa de mulher, metro, Cr. $15,00 ; morim, metro,
Cr. $ 15,00; fazenda para camisas e roupa branca, metro,
Cr. $ 9,00; um par de sapatos, Cr. $ 120,00.
Instrumentos:
Enxada, cada, Cr. $ 30,00; machado, cada, Cr. $ 90,00; facão,
cada, Cr. $ 40,00; foice, cada Cr. $ 35,00.
316 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL, III
Alimentação:
Por semana: mate, Cr. $ 3,50; sal, Cr. $ 1,00; arroz, Cr. $ 1,00;
carne, Cr. $ 8,00; banha, Cr. $ 5,00; total, Cr. $ 18,50. Por
ano, 18,5 X 52 X 100, (pois existem em Bananal 100 famí
lias), Cr. $ 96.200,00, dispendidos com a alimentação. (Outros
artigos, como açúcar, mandioca etc., não foram computados,
desde que os Tèrena os produzem).
Vestuário:
Se adicionarmos agora os diferentes totais referentes a despesas
anual necessária para o vestuário de uma família de índios
de sete pessoas, teremos, 1.200 X 100, igual a Cr. $ 120.000,00
a despesa anual necessária para toda aldeia.
Outras despesas:
Podemos estimar como média anual necessária, de despesa,
por família., com artigos tais como fumo, pinga, instrumentos
de trabalho, querozene, enfeites e transportes, de Cr.$L500,00.
Obteremos então um total de 1.500 X 100, igual a ...........
Cr. $ 150.000,00 para toda a Aldeia.
Si adicionarmos agora os diferentes totais referentes a despesas
mínimas consideradas necessárias para toda a aldeia, no tocante à
alimentação, vestuário e outros artigos, teremos: 96.200,000 mais
120.000,00 mais 150.000,00, igual a Cr. $ 366.200,00 anuais.
Evidentemente ambas as estimativas que fizemos não passam
de “estimativas”, e se baseiam em dados mais ou menos arbitrá
rios na falta de olitros mais positivos. Entretanto elas nos permitem
BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 317
Divisão em metades
Os Terena se dividiam em metades endógamas: a dos sukiriki-
onô e a dos chumo-onô. Embora houvesse essa divisão em todas as
aldeias, a existência das metades não transparecia na distribuição
geral das casas, nem há evidência de que num passado ainda mais
remoto existisse uma sub-divisão das metades em clãs. Embora as
metades fossem endógamas, não há indícios de sanções organizadas
contra casamentos de elementos de metades diferentes. No caso de
tal casamento, os filhos do casal poderíam optar por qualquer das
metades dos pais.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 319
Divisão em classes
tígio da classe dos “chefes de povo” era bem maior que a dos “chefes
de guerra”. Qualquer plebeu, uarrerê-tckané, ou mesmo escravo
poderia ingressar na classe dos “guerreiros”, desde que demonstrasse
valor para isso.
A classe dos uarrerê-tchané se sobrepunha à dos escravos, captu
rados nas guerrilhas. É possível que os uarrerê-tchané bem como
os escravos, cauti, fossem utilizados no preparo das plantações, mas
os nossos informantes não puderam confirmar essa hipótese. O
casamento fora das classses era, em geral, reprovado pelo grupo e
sancionado com a perda de status. Assim, diz-nos um informante,
o homem que se casasse com uma escrava seria considerado escravo
também. Os índios, eram, por vezes, obrigados à exogamia, com
relação à aldeia, desde que nem sempre era possível encontrar na
própria aldeia um cônjuge adequado.
Os médicos-feiticeiros
A instituição dos médicos-feiticeiros desempenhava parte impor
tante na organização social dos Terena. Eram êles responsáveis pelo
bem estar físico dos índios. Castelnau constatou esse fato (41), e
as histórias que nos foram contadas sobre a morte de médicos-
feiticeiros são numerosas. Ao médico-feiticeiro, koichomuneti, es
tavam afetas, além das tarefas de curar, as de localizar o inimigo
nas guerras e prever os possíveis resultados de uma expedição guer
reira. Os koichomuneti atuavam também nas partidas de caça, loca
lizando os animais procurados. Possuíam êles espíritos protetores
aos quais recorriam quando necessitavam de auxílio. Os koicho
muneti tinham poderes sobre os vivos e mortos. Anualmente, durante
o mês de Abril, cabia-lhes reunir os índios, promovendo a festa anual
do Oheokoti, de carater religioso.
As reuniões do conselho
Ao unati-aché cabia zelar pelo bem estar da aldeia, dirimindo
disputas e fixando as datas para as festas e partidas de caça e
pesca. As decisões mais importantes, porém, eram tomadas nas
“reuniões de conselho” da aldeia, onde a palavra dos anciões era
sempre acatada. Nessas assembléias os dois chefes de bando ou
unati-aché ladeavam o “chefe de guerra”, chuná-acheti e eram rodea
dos pelos Terena de idade avançada e demais índios. Um cachimbo
era preparado, aceso, e entregue ao chuná-acheti, e passado depois
aos “chefes de povo” e em seguida aos demais, na ordem de pres
tígio de cada um. A autoridade suprema cabia ao chuná-acheti ou
“chefe de guerra”, mas essa autoridade só era efetiva nas ocasiões
de guerra ; o chuná-acheti não interferia na administração da aldeia,
senão nas discussões do “conselho”.
(42) Ilerbert Baldus em °A Sucessão Hereditária do Chefe entre os Terena \
Ensaio# d# Etnologia, Brasileira,, (Col. Brasiliana, Série 5.A VoL 101, São Paulo, 1937),
págs, 70-80, menciona elaboradamente a ordem segundo a qual se processava a sucessão
dos chefes Terena, Não faz referências, contudo, à necessidade de aprovação por parte
da aldeia.
322 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III
Guerra
Direito primitivo
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REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 327
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tocante ao irmão do pai e ao irmão da mãe, e também no que se
refere à irmã do pai e à irmã da mãe. O têrmo Terena para pai é
sa’a e o têrmo para mãe é eenot O pai poderá ainda ser chamado
de ta^ta e a mãe de meme, mas esses dois últimos termos podem ser
usados como tratamento respeitoso para os demais membros das duas
gerações ascendentes. O irmão do pai é chamado poi-zãaf o que
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 329
O Posto do S* P. I. em Bananal
A escola
Nascimento, hipuhicoti-hiurá
O nascimento, entre os antigos Terena era acontecimento de
grande importância, cercado de rituais mágicos. Marido e mulher
se submetiam a um jejum protetor. A parturiente era assistida
pela mãe, mème, e pela mãe do marido, imonzé, No caso de não
ser a criança desejada, a mulher dava à luz em lugar afastado da
casa. Bach refere-se a parturientes que davam à luz em covas adrede
preparadas e examinavam o sexo da criança para decidir sôbre a sua
vida ou morte (48). Referências sôbre o aborto generalizado são
feitas por Taunay (4Ô) e Baldus (50).
Após o nascimento da criança, o cordão umbilical, uró, era
cortado pelo marido. O marido sem filho era chamado imá; ao
nascer o primeiro filho passava a ser chamado de háa. Após o
nascimento da criança o marido ía em busca de palmito de bocaiuva,
que se acreditava auxiliar a parturiente na amamentação do filho.
O marido ou a própria mulher lavava a criança. A mulher repou
sava seis dias. Baldus menciona proibições alimentares para o casal,
durante a gravidez, e a reclusão do marido, após o nascimento do
filho (51).
Quando o umbigo, uró, caía, era guardado para auxiliar os par
tos difíceis; se uma mulher tivesse alguma dificuldade durante a
gravidez ou ao dar à luz, amarrava à cintura um uró já ressecado.
O nome seria dado à criança pelos avós. A criança era carregada
às costas pela mãe, em um cesto preso à fronte ou ao peito por meio
de uma faixa denominada apoone. As crianças eram amamentadas
até idade superior a cinco anos. Gêmeos eram mortos ao nascer,
por enforcamento. Nos casos do nascimento de gêmeos, hapaparu-
kalivono, a parturiente enrolava à cintura um uró ressecado.
Observamos que durante a gravidez a mulher e o marido toma
vam medidas protetoras, tais como a abstenção de certos alimentos;
a criança e os pais são considerados em estado de perigo. Durante
(48) J. Bach, 14Datas sobre loa índios Terenas de Miranda"1, Analet de la Soeiedad
Cíentifica -Argentina (Buenos Aires, 1916), Vol. 82, pág. 89.
(49) Visconde de Taunay, Campanha de Matto Grosso (São Paulo, 1923), pag. 141.
(50) Herbert Baldus, .Ensaios de Etnologia. Brasileira, (Col. Brasiliana, Ser. 5.a,
Vol. 49, Sao Paulo, 193?}, pág. 73.
(51) Herbert Baldus, Op. cit„ pág. 72.
344 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III
Puberdade
Nada sabemos sobre ritos iniciáticos com referência aos meninos
Terena e nada nos foi possível obter a respeito junto aos informantes
de Bananal. Sabemos, contudo, que as jovens Terena, ao sofrerem
a primeira menstruação, passavam por uma cerimônia denominada
yoti. Consistia, em desnudar-se a jovem, pintar o corpo e sentar-se
de pernas cruzadas num tapete de piri. Mulheres, parentes da
jovem, sentavam-se em derredor. A notícia era anunciada por meio
de uma sineta, kohé, presa à porta da casa e sacudida por uma
mulher de idade da classe dos uarrerê4chané, Em se tratando da
filha de um chefe, a festa do yoti era celebrada de forma mais solene.
As mulheres da tribo viríam, uma a uma, e atirariam sementes sobre
a cabeça da jovem e lhe fariam presente de tufos de algodão.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 345
Casamento, coiênoli
O casamento, ou coiênoti parece ter constituído acontecimento
de relevância para os antigos Terena. Por meio do casamento, por
exemplo, podia um “guerreiro” ascender à classe dos “chefes de
conselho”. Como regra geral, a combinação de um casamento,
coiênoné, era matéria da competência dos pais dos noivos, e ocorria
quando o menino ou a menina não haviam ainda atingido a puber
dade (52). O coiênoné se realizava mediante troca de presentes e da
seguinte maneira: Os pais do noivo enviavam um emissário, geral
mente um escravo, à casa da noiva. O emissário, yuhócoti, dizia aos
pais da noiva: Haranziminó viarünoetchá, que numa tradução livre
significa “clieguebpara tratar da mocinha”. O pai da moça respon
dería: Unati enomonécopó, “bom, eu recebo". Após combinado o
casamento realizava-se troca de presentes. A época do casamento
dependia da puberdadade da jovem; quando esta ocorria, fixava-se
a data para o casamento, iniciando-se a coleta do mel necessário à
fabricação das bebidas.
As maneiras particulares segundo as quais se realizava o casa
mento dependiam evidentemente do status dos pais dos noivos. O
casamento de um Terena pertencente à classe dos guerreiros, foi
realizado da seguinte forma: Em época oportuna, o pai do noivo,
precedido por três guerreiros, dirigiu-se para a casa da noiva. Os
guerreiros iam vestidos com saiotes de penas de ema, diadema de
penas do mesmo material e alpercatas de couro, e carregavam arcos,
flechas e lanças. Ao chegar à casa da noiva os três guerreiros cairam
de joelhos diante do pai da noiva e solicitaram fosse marcado o dia
do casamento, dizendo: Epemoponoati geái akeaicathé apeiacumo
coiênoti, isto é, “pedir que dia vai ser casamento”. O pai da noiva
(52) J. Bach, Op. eit., Vol. 82, pág. 89, menciona a realização do casamento de
Terena em qualquer idade. Parece-nos provável que o referido autor tenha confundido o
casamento com a simples combinação de casamento.
346 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III
Voropi e Hihiai-uné
As florestas que rodeavam os Terena em seu “habitat” no Chaco,
eram dominadas por dois sêres míticos: Voropi e Ilihiai-uné.
“Voropi é o rei d’água”, explica um informante. —- Voropi
vivia no mato. Era uma espécie de cobra grande com cara de gente.
Não gostava de cheiro de gente. Quando alguém se aproximava de
sua casa Voropi ficava zangado e mandava chuva forte, com raios
e trovões. Os flancos de Voropi relampagueavam quando ele via
gente, e caia chuva forte. A água subia e afogava os intrusos.
Voropi não morava na água; morava no seco, morava numa árvore
(58) Uma versão semelhante, embora mais simples, foi por nós publicada em
“Terena Religion”, Acta Americana, Vol. 4, N.° 4. Herbert Baldus em “Tereno Tezta",
Anthropos, XXXII, (1937), pig. 534, obtém a versão: “eu índio saí da terra".
352 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOU III
perto d'água. Voropi não gostava de pelos* “Por isso é que a gente
do Chaco não tinha barba, nem sobrancelhas, nem pestanas, nem
nenhum pêlo. Tirava tudo com o maiecovopeti (pinça para depilar).
Voropi não gostava de pessoas com pelos. Se elas tomassem banho
na lagoa, Voropi mandava chuva forte”.
De Hihiai-uné^ a mãe d’água dependia também o controle das
chuvas. Hihiai-uné morava nas lagoas do Chaco e matava as pessoas
que dela se aproximavam. Os médicos-feiticeiros a conheciam. Di
ziam êles ser ela uma cobra muito grande. Nos seus transes xama-
nísticos os médicos-feiticeiros costumam conversar com ela. Hihiai-
uné não gostava das pessoas de luto ou das mulheres menstruadas.
Estas não deviam sair de casa para ir lavar-se no rio. Se o fizessem,
Hihiai-uné mandaria uma chuva forte que destruiría as casas.
Hihiai-uné mandaria saipoti e saipanéf ventos e chuvas fortes.
Quando ainda no Chaco os Terena costumavam queimar os ramos
de um arbusto denominado chevêe, cujas cinzas tinham o sabor do
sal e por essa razão eram empregadas como condimento. Essas cinzas
não deveríam, porém, ser misturadas com água, pois provocariam as
iras de Hihiai-uné que castigaria com chuvas fortes. Da mesma
forma, si um homem tivesse relações com uma mulher menstruada,
deveria evitar a água para não enfurecer a Hihiai-uné.
XAMAMSMO
Quando doentes, os Terena consultavam o médico-feiticeiro,
koichomúneti^ que examinava as causas da doença que eram, geral
mente, provocadas por algum inimigo pessoal, através da atuação de
de outro koíchomúneti; a cura era feita simplesmente pela aplicação
de raizes e folhas silvestres ou mediante a interferência dos espíritos
protetores dos médicos-feiticeiros.
Durante a grande festa anual, denominada Oheokoti, os medi'
cos-feiticeiros invocavam os hoipihapati dos mortos da aldeia, a fim
de apaziguá-los e pedir-lhes assistência. A essa festa, de caráter
religioso, seguiam-se festas profanas.
Ao médico-feiticeiro cabia interceder junto aos seres sobre
naturais, como atesta o mito do dilúvio, Ivoióncti. Durante a festa
anual, Oheokoti, os koichomúneti relatavam aos índios os mitos Te
rena. Na agricultura, na caça e na guerra, o koichomúneti era
sempre chamado a interceder junto aos poderes sobrenaturais; a
êle caberia curar as doenças, afastar as influências malignas, prever
0 futuro e atuar favoravelmente em negócios amorosos ou desa
venças. O koíchomúneti desfrutava pois um status especial, e o seu
prestígio era mantido mediante a reivindicação da culpa das mortes
ocorridas na tribo. Castelnau e Taunay constataram essa situação
dos koichomúneti (60),
Os médicos-feiticeiros possuíam escravos que cuidavam de sua
alimentação e os protegiam; o assassinato de um koichomúneti
acusado de magia negra não era raro e era permitido, desde que
cometido fora da aldeia. Na guerra o koichomúneti combatia como
guerreiro; mas a êle competia espceialmente prever onde estava o
inimigo e se as expedições seriam ou não bem sucedidas. Atuava
também nas partidas de caça e pesca, mas sua principal atuação
era junto aos doentes. Em seus transes os koichomúneti tinham,
ainda, o poder de entrar em contato com Voropi e Híhiai-uné con
troladores das chuvas, e com as almas de mortos e vivos, agindo
sôbre elas.
Ao invocar os espíritos, os médicos-feiticeiros faziam uso de dois
instrumentos principais: uma cabaça, cheia de sementes ou pedri-
(60) Francis de Castelnau, Expéditian danu Us Parties Central^ d^ VAmêriquç
du Sud, (Paris, 1850), Vol. II, Págs. 476-477. — Visconde da Taunay, Op. cii.t pAg. 133.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 355
Mudanças necentes
Atualmente não se pode falar em uma religião dos Terena mas
nas religiões dos Terena. Já tivemos ocasião de mencionar a divisão
dos Terena de Bananal em católicos e protestantes. Mas para des
crever a sua religião atual seria necessário descrever as crenças e
rituais católicos, protestantes e remanescentes dos antigos rituais e
crenças Terena. Já por volta de 1766, na época em que visitou os
aldeamentos Guaná, Sánchez Labrador ouviu de alguns índios Te-
358 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL IIE
cudindo a itaaka dos antigos Terena, Até pouco tempo, havia mesmo
em Bananal uma koichomúneti que atraia enorme clientela das fa
zendas e cidades vizinhas. Porém, como o pagamento fosse, na maio
ria, feito em garrafas de pinga, houve interferência do Serviço de
Proteção aos índios e a koichomúncti foi interditada aos “brancos ’.
Há ainda em Bananal “benzedores” como Japão e Feliciano
que curam por meio de rezas e infusões, mas sem invocar os espíritos,
É difícil dizer-se hoje quanto das práticas xamanísticas dos
índios de Bananal são inteiramente Terena e quais as que foram
recebidas dos Mbayá (64) ou mesmo dos próprios “curadores”
caboclos.
Os koichomúncti ainda desfrutam prestigio, não só entre os
índios de Bananal como entre as populações brasileiras vizinhas,
mas esse prestígio decresceu muito comparativamente ao passado.
Com a mudança de “habitat” os Terena puseram-se a salvo de pro
blemas tais como o das inundações; de outra parte desapareceram
as possibilidades de guerra, caça e pesca. Dessa forma o campo de
atividade dos koichomúneti ficou restrito apenas à cura de doenças
e à magia negra. A princípio os médicos-feiticeiros desempenhavam
variadas e importantes funções: atuavam na guerra; transmitiam
os mitos da tribo, na festa anual do Oheokoti na qual eram as figuras
centrais; interferiam junto aos mortos, afastando suas influências
■ maléficas; finalmente curavam e exerciam a feitiçaria. Hoje somente
exercem as últimas dessas atividades. Desprovida de recursos, como
é a região, há sempre.oportunidade para médicos-feiticeiros, que con
seguem clientelas não só de índios mas de brasileiros que, em Taunay,
por exemplo, não contam com o auxílio de um único médico.
Mesmo em suas atividades de curadores os koichomúneti so
frem, porém, a “eoncurrencia” dos missionários protestantes e dos
funcionários do S. P. I. que administram remédios gratúitamente,
curando doenças que os “curadores” não são capazes de curar.
No Chaco os antigos Terena possuiam um sistema de crenças
e rituais bem integrado e operante dentro do regime de vida que
(64) José SÃnchez Labrador, Qp, cit., Vol. II, págs, 31 e 32, descreve as técnica#
do curar e de invocar os espíritos dos Mbayá, as quaia muito sê «asemolham às doa antigos
Terena. Torna-se difícil dizer-se quais das culturas, Mbayá e Guaná, teriam agido com#
dowttoT a receptor.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. &, VOU HI 368
O “bate-pau”
A “corrida de cavalinho”
Outro brinquedo dos Terena, que também teria sido inspirado
por um koichomúneti, é o ivuVchote-vogomoto, chamado pelos bra
sileiros de “corrida de cavalinho”. Êsse brinquedo, realizado espe
cialmente pelos Terena de Cachoeirinha e pràticamente ignorado em
Bananal, consiste numa corrida na qual os índios montam cavalinhos
de pau enfeitados e recobertos com couro de vaca e penas de ema.
Manejando lanças procuram alcançar certos objetos postados no
caminho por onde devem seguir. Bach menciona êste jogo (e9),
que a nosso ver, faz lembrar os “torneios” introduzidos no Brasil
pelos portugueses.
O futebol
O futebol, se não o único, é ao menos o preferido dos esportes
da Aldeia, sendo apoiado, às vezes com auxílio financeiro, pelos mo
radores brasileiros de Taunay e vizinhanças. Existem em Bananal
três quadres de futebol: um deles c liderado por um índio do grupo
“católico” e conta com dez elementos “católicos”, sendo o último
elemento protestante; o segundo quadro, liderado por um “protes
tante”, conta com dez “protestantes” e um “católico”; o terceiro
quadro, o “quadro da criançada” é composto de elementos que ou
pela idade ou falta de destreza necessária, não conseguem fazer parte
dos dois primeiros. A Aldeia se interessa grandemente pelos jogos
de futebol; há um campo de futebol, gramado, com as demarcações
necessárias. Os dois primeiros quadros possuem camisas de cores
HE VI ST A DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 371
A 66carreira” de cavalos
Sumário
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