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Biblioteca Digital Curt Nimuendajú - Coleção Nicolai

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MUDANÇA CULTURAL DOS TERENA (*)


por .

FERNANDO ALTENFELDER SILVA

INTRODUÇÃO
É propósito dêste trabalho examinar as recentes mu­
danças ocorridas na cultura dos índios Terena í1), aldeados
em Bananal, no sul do Estado de Mato Grosso. Duas visitas
foram feitas à Aldeia de Bananal: a primeira em Junho de
1946, prolongando-se por uma semana; a segunda de Dezem-
(♦) Tese apresentada ao Corpo Docente da Divisão de Estudos Post-Graduados em
cumprimento de uma das exigências para obtenção do Grau de Mestre em Ciência.
Desejamos patentear o nosso profundo agradecimento à Escola Livre de Sociologia
e Política de São Paulo, que custeando as despesas decorrentes de nossa visita à Aldeia
de Bananal, no Sul do Estado de Mato Grosso, tornou possível a realização dêste trabalho.
Ao Prof. Kalervo Oberg, do Instituto of Social Anthropology do Smithsonian Insti-
tution, que nos acompanhou e orientou no trabalho de campo bem como na elaboração
desta tese, o nosso especial agradecimento.
Aos Professores Donald Pierson, Herbert Baldus, Octavio da Costa Eduardo, Emilio
Willems, Oracy Nogueira e Antonio Rubbo Müller, nossos agradecimentos pela crítica
paciente e construtiva.
Não fugimos contudo à responsabilidade dos erros e omissões que certamente terão
ocorrido neste trabalho, apesar do valioso auxílio que recebemos.
Desejamos ainda testemunhar ao Serviço de Proteção aos índios, nas pessoas dos
seus funcionários, Srs. Coronel Nicolau Horta Barbosa, então Inspetor Regional em Campo
Grande, e Francisco Ibiapina, Encarregado do Pôsto Visconde de Taunay, na Aldeia de
Bananal, o auxílio espontâneo e as facilidades concedidas, que tornaram possível a coleta
de material.
Aos índios Terena, aos nossos informantes em geral, e em particular a Antonio
Aurélio Marcos, Antonio Vicente, Marcolino Wollily, Patrício Wollily e José Francisco
(Japão), nosso sincero agradecimento.
Aos nossos colegas e funcionários da Escola Livre de Sociologia e Política de São
Paulo, Maurício Segall, Juarez R. Lopes, José Novais Paternostro, Adelheid Jlamburger.
Maria Georgina von Pritzelwitz e Helena Penteado Cardoso, o nosso reconhecimento pelo
auxílio prestado na elaboração dêste estudo.
Ao meu irmão Dr. José Altenfelder Silva, a minha gratidão pelo trabalho de revisão
o correção dos originais,
São Paulo, Dezembro de 1948 — Escola Livre de Sociologia.
(1) Com referência ao nome Terena, convém mencionar a maneira pela qual esses
índios são designados por outros autores. Max Schmidt, por exemplo, oferece uma lista
de autores que escreveram sôbre os Guaná e nomes empregados para designar essas tribos,
('‘Guaná”, Zeitschrift fur Ethnologie, t. XXXV, Borlin, 1903, pags. 328, 329, 330 e 331).
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br o de 1946 até Fevereiro de 1947. Quanto ao material


bibliográfico de que lançamos mão, é preciso ressaltar ter
sido o seu auxílio muito limitado. A razão é que os autores
que escreveram sobre os Terena ou não possuíam treino
etnológico adequado, como por exemplo Bach, ou se preo­
cuparam com aspectos muito restrictos da cultura desses
índios, No correr deste trabalho procuraremos, sempre que
julgarmos oportuno, mencionar o que foi relatado por outros
autores. Entretanto, sempre que o deixarmos de fazer de
maneira explícita, estaremos utilizando observações feitas
em campo.
# * #

Como teremos de tratar de fenômenos de aculturação no de­


correr dos capítulos seguintes, examinaremos primeiramente este
conceito tal qual é ele aceito atualmente em Antropologia. Em 1936
o Sub4Jommittee of lhe Social Research Council, integrado pelos
etnólogos Mel vi He Herskovits, Ralph Linton e Robert Redfield, apre­
sentou a seguinte definição de aculturação:
“Acculturation comprehends those phenomena which
result when groups of individuais having different cultures
come into continuous first hand contact, with subsequent
changes in the original cultural patterns of either or both
groups/ (2)
A essa definição julgou-se necessária a anexação de uma nota
para diferenciar o conceito de outros afins:
“Under this definition acculturation is to be distin-
guished from culture change, of which it is but one aspeet,
and assimilation, which is at times a phase of acculturation.
Segundo Max Schmidt são usadas as seguintes designações para os Terena: Eterena,
Hervas; Etelena, Aguirre e Azara; Etelenoe, Aguirre; Terenoe, Pefia; Terénog, Castelnau;
Terenas, Taunay; Tíreno, Boggíani; e Teréno, Max Schmidt. Usaram-se ainda as grafias:
Terenoe, Rhode; Terenas, Bach; Tereiw^, Hay; Tereno, H, Baldus; Terena, Margaret
Harden, Kalervo Oberg; Tereno, E. Willems. Em trabalho publicado anteriormente grafa­
mos Terena, por nos parecer esta a grafia que correspondia melhor ao nome pelo qual
êseea índios se designam. Neste trabalho manteremos a grafia Terena,
(2) Melville J. Herskovits, AccaUiiratíon: the Stady of Culture Contact, (New
York, J. J. Augustin PubL, 1938), pâg. 10, -
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It is also to be differentiated from difusion, which while


occuring in all instances of acculturation is not only a phe-
nomenon which frequently takes place without th© occurence
of the types of contact specified in the definition given
above but also constitutes only one aspect of the process of
acculturation. ” (3)

Em nosso trabalho trataremos não somente de aspectos da


aculturação dos Terena, como também de outros aspectos da mudança
cultural que não poderíam ser designados pelo termo aculturação,
uma vez aceita a definição acima. Por esse motivo intitulamos êste
trabalho Mudança Cultural dos Terena.
Desejamos, inicialmente salientar a carência de documentos que
permitam precisar a época em que se iniciaram os contatos per­
manentes entre os Terena e as culturas espanhola e portuguesa. O
problema se torna ainda mais complexo quando consideramos as
possibilidades de mudanças provocadas pelos contatos não só com
as demais tribos do Chaco, mas ainda com elementos de origem afri­
cana trazidos para o Brasil.
Os Terena de Mato Grosso, sub-grupo dos Guaná, de língua
Aruak, totalizam hoje cêrca de três mil indivíduos, localizados nas
proximidades das cidades de Miranda e Aquidauana. Dados forne­
cidos pela Inspetoria do Serviço de Proteção aos índios, em Campo
Grande, indicavam, em Dezembro de 1946, a seguinte população para
essas aldeias: Bananal, 995; Cachoeirinha (próxima a Miranda),
650; Ipegue (a 6 quilômetros de Bananal), 384; Capitão Viturino
(nas proximidades de Nioae), 185; Buriti (nas proximidades de
Cidiolândia), 476, dos quais somente 2/3 são Terena; Lalima (nas
proximidades de Lalima), 182, dos quais somente cêrca da metade
Terena; Vanuirê e Araribá, respectivamente, com 451 e 176, dos
quais somente uma centena de Terena (ambas as aldeias nas proxi­
midades de Bauru, no Estado de São Paulo) ; Posto Benjamin Cons-
tant (nas proximidades de União), com 476 indivíduos. Podem ainda
ser citadas as aldeias de Limão Verde (próxima a Aquidauana),
Souza (próxima a Miranda) e Moreira (também próxima a Miran­
da), sobre cuja população não se possuem dados oficiais, mas que se

(3) Ibid-, pãg. 10,


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calcula em duas centenas de Terena. A Aldeia de Bananal, estu­


dada em particular neste trabalho, encontra-se a quatro quilômetros
da Estação de Taunay, na linha férrea da Noroeste do Brasil, entre
as cidades de Aquidauana e Miranda.
Baseados nos dados mencionados acima podemos afirmar que o
número de Terena não sofreu grande variação desde a penetração
desses índios em Território Brasileiro, cm fins do século XVIII e
princípios do século XIX. Os Terena podem ser considerados de
estatura submediana e colocados no limite inferior da braquicefalia*
De acordo com os dados elaborados pelo Professor Emílio WiUems
(baseado em mensuraçoes feitas por nós em Bananal e em mensu-
rações complementares, tomadas por outros pesquisadores, em Ara-
ribá, junto a outro agrupamento Terena), esses índios apresentam
uma altura média de lm.617 para o sexo masculino e lm.497, para
o sexo feminino. O índice cefálico, calculado para ambos os sexos,
é igual a 81.9 (4).
Depois de se deslocarem para o Sul de Mato Grosso os Terena
mantiveram-se, por algum tempo, isolados das populações brasileiras.
Gradativamente, porém, foram eles influenciados pelos contatos com
as povoaçoes daquela região. Por ocasião da guerra do Paraguai
(1864-1869) muitos dêles já falavam o português. Em fins do século
passado e princípios deste século, quando a colonização do Sul de
Mato Grosso foi envolvendo as terras antes ocupadas pelos índios,
viram se os Terena ameaçados de completa destribalização. Em
1910, o estabelecimento do Serviço de Proteção aos índios, porém,
veio sustar esse processo, garantindo aos índios a posse de suas
terras.
Julgamos de utilidade, no exame perfuntório da história dos
Terena, dividi-la em quatro períodos principais: primeiramente o
período que vai até a penetração dos Terena no Território Brasi­
leiro; um segundo período que se estende até a Guerra do Paraguai;
um terceiro, desde a Guerra do Paraguai até a fundação do Serviço
de Proteção aos índios, em 1910; finalmente, o período contem­
porâneo.

(4) Emílio Willem^ “ Contribuição pura o Estudo Autropométrico dos índios


Tereno", Revi/sta do MtMrti Paulista, (hova sitie) Vol. 1, 1947, págs, 129 152,
. REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 275

Os Terena no território do Chaco


Os Guaná ou Chaná, grupo a que se filiam os Terena do Sul de
Mato Grosso, não podem ser considerados índios tipicamente brasi­
leiros, pois os elementos de sua cultura estão mais ligados às culturas
dos índios do território do Chaco, de onde provém. Os Guaná per­
tencem à família linguística Aruak, da qual são os representantes *
mais meridionais. Nos tempos pré-colombianos e nos dois séculos
que se seguiram à descoberta da América, os Guaná mantiveram-se
numa faixa de terra compreendida pelos décimo nono e vigésimo
nono graus de latitude sul (5). Segundo Álfred Métraux, era a se­
guinte a distribuição das aldeias dos Guaná, em fins do século dezoito:
os Laiana, opostos à foz do rio Apa; os Niguecactemic (Neguecagate-
migi), ramo dos Laiana, que ocupavam uma aldeia separada, a oeste
do Pão de Açúcar, a 21 graus e 44 minutos de latitude sul; os
Terena, que ocupavam as aldeias a oeste dos Laiana, a 29 graus de
latitude sul; os Echoaladi-, que ocupavam duas aldeias, a oeste dos
Terena, e finalmente os Quiniquinao (Kinikinao), localizados entre
os 19 e 20 graus de latitude sul (6).
Os primeiros contatos dos Terena com as culturas européias
ocorreram provavelmente com as primeiras penetrações espanholas
e portuguesas que buscavam, através do Chaco, um caminho para o
famoso Império Peruano. Sánchez Labrador menciona contatos do
missionário Agustin Castanieras com os Terena, por volta dos anos
de 1740 a 1750 (7). . É provável que esses índios, como os demais
Guaná e Mbayá tenham iniciado os contatos com as culturas hispano-
portuguêsas muito antes, embora não haja prova. Os diferentes
autores que estudaram os contatos entre os Guaná e os Mbayá, são
de opinião que os primeiros prestavam vassalagem aos segundos,
desde os tempos pré-colombianos. Métraux (8) apoiado em Schmi-
dei (9), defende essa hipótese. Entretanto Sánchez Labrador refe-
(5) José Sánchez Labrador, El Paraffuay Católico, (Buenos Aires, 1910), Vol,
II, pág. 257.
(6) Alfred Métraux, "Ethnography of the Chaco”, Handbook o/ South American
Indiana, (BulL 143 SmithBoni&n Institution, Burcau of American Ethnology, 1946)
VoL I, pág. 239.
(7) José Sánchez Labrador, Op. cit., Vot II, pág, 275.
(8) Alfred Métraux, Op. cit,, íbidem.
(9) Schmidel, Vía^e al Rio De La Plata, (15 3 5-15 5 4) (Buenos Aires, 1903)
pág. 252.
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re-se a relatos indígenas segundo os quais os Mbayá e os Guaná


viviam primitivamente em condições de igualdade nas terras do
Chaco, antes da chegada dos europeus, sendo a vassalagem dos
últimos um fenômeno mais recente. Essa vassalagem consistiría,
* segundo os autores mencionados, no fornecimento de produtos agrí­
colas e de outros artigos em troca de proteção contra a pilhagem
das tribos vizinhas inimigas. Mas sabemos que os Guaná não eram
exclusivamente agricultores. Embora a agricultura dominasse a sua
vida econômica, durante parte do ano dedicavam-se à caça e pesca.
De outra parte, a vassalagem descrita por Sánchez Labrador limi­
tava-se à hospitalidade oferecida pelos Guaná aos Mbayá, e troca de
presentes de parte a parte (10).
. As assertivas de que os Guaná copiaram aos Mbayá a sua orga­
nização militar parecem-nos mais razoáveis. Entretanto não estamos,
no momento, especialmente interessados na origem desses elementos
culturais; basta-nos saber que os Mbayá e os Guaná possuíam grande
número de elementos culturais semelhantes.
Quando o primeiro choque das culturas europeias se fêz sentir
sobre os Mbayá e Guaná, esses dois grupos adotaram, em maior ou
menor grau, elementos da cultura opressora; mas foi aos primeiros
que coube a liderança na luta contra os invasores.
Neste ponto pedimos auxílio à crônica oral dos Terena para
reforçar o que dizem os documentos históricos. Afirmam os velhos
Terena de Bananal que seus avós viviam no Chaco, às margens de
uma baía, nas proximidades da margem ocidental do Rio Paraguai.
A sua aldeia era bastante isolada e a aldeia mais próxima era habi­
tada por índios Laiana, denominados por eles Layano Kiakatche
(Katche — sol; Kiakatche, sol poente, ou “já é tarde”). Os Terena
viviam próximos aos Quiniquinao a quem denominavam de Koino-
konoi (pois, segundo explicam, êsses índios tinham o hábito de se
sentarem apoiando as mãos na testa; inoku, testa). Entre as tribos
inimigas que os rodeavam mencionaram os Terena os Ylái e os
Yúaenô^ que não pudemos rèconhecer entre as tribos mencionadas
pela literatura etnográfica do Chaco, mesmo porque os dados forne­
cidos a respeito, pelos Terena de hoje, são muito vagos; os Ylái não

(10) José Sâncbez Labrador, Op. cü., VoL 11, pág-. 266.
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tinham casas e viviam ao abrigo das árvores, eram caçadores e não


plantavam, usavam xiripã (saiote ou tanga de penas); os Yúaenô
andavam completamente nus e usavam arcos muito grandes, maiores
do que eles mesmos. Êsses dois grupos costumavam atacar os Te­
rena para lhes roubar as colheitas. Dizem ainda os Terena que ao
chegarem ao Chaco os homens brancos estabeleceram boas relações
com eles ao passo que passaram a combater os Ylái e Yúacnô.
Na época em que viviam na região do Chaco, os Terena eram
agricultores, combinando a agricultura com a caça e coleta. O
ambiente em que viviam se caracterizava como uma área de planícies
com pequenas elevações e de clima ameno. (No inverno, porém, de­
vido aos fortes ventos que sopram do Sul, de junho a agosto, a tem­
peratura alcança o ponto de congelação da água. As chuvas se
estendem de Outubro a Maio, constituindo o período de plantio).
Êles moravam em casas que, segundo a descrição de Sánehez Labra-
dor no que diz respeito aos Guaná em geral, eram longas e de teto
arqueado (n). Em cada casa viviam várias famílias obedecendo a
um chefe. 0 mobiliário era rudimentar e consistia em giraus, deno­
minados ipêf armados sobre quatro estacas. Por esse tempo, embora
possuíssem o algodão e conhecessem a técnica de tecer, não usavam
redes que só adquiriríam mais tarde. Seu vestuário consistia em
saiotes de algodão denominados xiripâ^ que presos por uma faixa à
cintura, desciam até a altura dos joelhos. Costumavam depilar intei­
ramente o corpo, excepção do crâneo, e esta operação estava ligada
a crenças mágicas (como veremos mais adiante, ao tratarmos das
crenças e mitos dos Terena).
Embora plantassem a mandioca e a utilizassem como alimento,
não conheciam ainda os processos de fabricação da farinha. O fogo
era produzido pela fricção de duas varetas, e a maioria dos alimentos
era cozida. A divisão do trabalho reservava ao homem as lides
agrícolas e guerreiras, deixando à mulher a cerâmica e a fiação. A
cestaria, contudo, era tarefa masculina. A unidade econômica era
a família extensa. As casas se distribuíam na aldeia ao redor de uma
praça central, ficando as roças ou plantações separadas, na área
exterior.

(11) José Bánchez Labrador, Op^ cü.. Voi. II, págs. 275-276.
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Social mente eles se dividiam em metades endó gamas e em classes


que se assemelhavam às dos Mbayá. Na distribuição das casas, na
aldeia, não parece ter havido nada que evidenciasse a existência
das metades tribais, ao menos de acordo com as informações que
obtivemos; entretanto, durante a festa religiosa que realizavam
anuahnente, as duas metades tribais se comportavam de maneira
diversa, propositadamente. Os Terena mencionam quatro diferen­
tes classes: a “dos nobres”, donde eram recrutados os “chefes de
povo”; a “dos guerreiros”; a “dos plebeus” (uarrerê — tchané,
que significa literalmente “gente feia”), e a dos “escravos”. Em
cada aldeia havia dois “chefes de povo”, correspondentes a cada uma
das metades, e um “chefe de guerra”. As decisões eram tomadas
em assembléias presididas pelos “chefes de povo” e o “chefe de
guerra” bem como pelos anciões da aldeia. Através de feitos de
guerra era possível a um simples escravo ingressar na classe dos
“guerreiros” e mesmo ser indicado para “chefe de guerra”. De outra
parte era possível aos guerreiros renomados ingressar na classe dos
nobres. Crimes, tais como o assassínio, eram relevados desde que o
ofensor se distínguisse na guerra, saldando com a morte de um
inimigo a dívida para com o grupo.
Os Terena possuiam um sistema classificatório de parentesco,
sendo que tanto os primos paralelos quanto os primos cruzados, do
lado materno ou paterno, eram chamados respectivamente de irmãos
ou irmãs, de acordo com o respectivo sexo. O casamento entre pri­
mos cruzados ou paralelos era outrossim proibido.
Se examinarmos a religião dos Terena da época do Chaco, verifi­
caremos uma série de crenças animísticas, mas não encontraremos
um deus criador. O mito dos gêmeos Yurikoyuvakai (12) parece
justificar a divisão da tribo em metades. De outra parte o herói
civilizador dá aos homens as armas e os instrumentos agrícolas, e
às mulheres, o fuso, justificando-se assim tal divisão de trabalho.
Os Terena acreditavam em seres que dominavam as chuvas e ventos;
o controle do sobrenatural era especialidade dos médicos-feiticeiros,
que atuavam nas guerras, na caça e na pesca, nas doenças e nos
acontecimentos inusitados, tais como inundações.
(12) Fernando Altenfelder Silva, ^Terena Religion", Acta Americana, Vol. IV,
N.° 4, pÃgs. 214-223.
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Os Terena no Brasil
No início do século XIX, devido à crescente pressão de outras
tribos do Chaco ou talvez atraídos pelas vantagens de um tráfico
com os europeus, os Guaná começaram a se deslocar para a margem
oriental do rio Paraguai, penetrando no Território Brasileiro em
levas sucessivas, que perduraram até fins do século. Distribuiram-se
pelos arredores de Albuquerque, confinando seus territórios com os
dos Guató, com quem mantinham relações hostis.
Em 1861 von den Steinen menciona os Quiniquinao como aldea­
dos a três léguas de Albuquerque, na aldeia de Nossa Senhora do
Bom Conselho, sob a orientação de Missionários Franciscanos; ao
passo que os Terena, Laiana, e Guató, em número de 2.500 viviam
em colônias, a uma légua de Miranda (13). Em 1845 Castelnau
visitou os aldeamentos próximos a Albuquerque e Miranda, e o relato
que nos deixou, embora retrate os Guaicuru e Laiana como grande­
mente aculturados, assim se refere aos Terena:
“ C Vst une nation guerrière qui a maintenu dans toute
leur intégrite les costumes de ses pères (14).
Castelnau descreve a aldeia Terena como sendo formada de 110
casas unidas umas às outras, dispostas em círculo ao redor de uma
grande praça. As suas armas eram, segundo a descrição do autor
em questão, a lança com ponta de ferro, a maça, o arco e flecha, e
o arco de duas cordas (bodoque). Acrescenta o autor:
“Dans la voisinage immediat de ce village, sont trois
autres aldeas moins considerables, et que avaient eté nouveL
lement formées par des troupes dTndiens venus de desert,
ayant encore en leur possession des objets pris sur des
Espagnols qulls avaient massacre. La population totale de
ces quatres villages est d’ênviron trois milles Indiens” (15).
(13) Karl von den Steinen, Entre os Aborígenes do Brasil Central, (Trad. Departa­
mento de Cultura de São Paulo» 1940), pAgs. 6 96-7. Às pâgs. 6 9 3-9 4. na transcrição das
Alas Cuiabanas, referentes aos anos de 1848 e 1872, mencionam-se 2.000 Terena» aldeados
nas proximidades do presídio de Coimbra.
(14) Francis de Castelnau, Expéditíon dana les Partíes Cenlrales de PA intrigue
du Sud (Paria, 1850), Vol. II, pág. 470.
(15) Francia de Castelnau, Op. ciL, Vol. II, págs. 470-472.
280 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N S., VOL. III

Os Terena, dentre os Guaná do Sul de Mato Grosso, foram os


que melhor resistiram ao embate das culturas hispano-portuguêsas.
Os Guaná em geral sofreram profundas mudanças desde o início da
era Colombiana; adotaram muitos elementos da cultura dos edropeus,
dentre os quais a cana de açúcar e o gado vacum e cavalar, e inicia­
ram um sistema de trocas com as povoações espanholas e portu­
guesas.
Em meados do século XIX os acordos estabelecidos entre Brasil,
Argentina e Paraguai, tornaram o Rio Paraguai íivre à navegação
internacional. Até então o total da população indígena no Sul de
Mato Grosso superava de muito o número de brancos, negros e
mestiços. Os relatórios do Ministério da Guerra Brasileiro, em 1864
e 1865, revelam ser então “lastimoso o estado militar da província”
que contava com uma guarnição total de 851 homens (16). Os meios
de comunicação eram difíceis e as velhas rotas das Bandeiras eram
ainda seguidas.

A Guerra do Paraguai

A invasão do Sul de Mato Grosso pelas forças do Exército Pa­


raguaio durante a guerra de 1864 e 1869, provocou novas mudanças
nas culturas dos Guaná. Localizadas nas imediações de Miranda,
as aldeias desses índios foram destruídas e arrazadas. Taunay, em
1866, faz referências à aldeia do Naxe-Daxe ou de Santa Cruz, a
seis léguas da vila de Miranda, onde “tinham os índios Terenas pro­
curado um refugio, por ocasião da invasão dos paraguaios, dedican­
do-se ao plantio, apesar da carência de sementes e grãos, em que se
acharam” (17).
Os Guaná viram-se envolvidos na luta, e o próprio cronista da
Guerra do Paraguai nos relata fatos em que alguns índios Terena
foram atacados pelos paraguaios e menciona ainda a inclusão de
Terena e Quiniquinao nos contingentes brasileiros em operações con­
tra o Paraguai (18). A crônica oral dos Terena é farta em referências
à Guerra do Paraguai, na qual esses índios tomaram parte ativa (19)*
(16) Gustavo Barroso, História, Militar do Brasil, (Brasiliana, sério 5A voL 49,
São Paulo, 1936) pág. 229.
(17) Visconde de Taunay, OaíupnnAa de Matto Grosso, (Livraria do Globo, São
Paulo, 1923), pág. 83.
(18) Visconde de Taunay, Op, cit., pâga. 115 e 205.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 2gl

Pouco após a campanha do Paraguai, habitavam os Terena,


segundo êles próprios informam, as seguintes aldeias: Ipegue (em
área compreendida entre as atuais aldeias de Ipegue e Bananal);
Imokovookoti (nas imediações da atual aldeia de Caehoeirinha);
Tuminiku (nas proximidades da atual aldeia de Bananal); Coxi
(próxima ao córrego de Taquarí); Nare-Daze (nas proximidades do
córrego do mesmo nome) ; Háokoé (nome Terena para a fruta do
pindó; situava-se a aldeia a uma légua de Tuminiku) ; Moreira e
Akuleá (ambas nas proximidades de Miranda); Kamakuê (próxima
à atual aldeia de Duque Estrada) ; Brejão (próxima a Nioaque);
Limão Verde (próxima a Aquidauana) ; Cerradinho (na área do
atual Município de Campo Grande). Nessa época estimavam-se os
Terena entre 3 e 4 miL
Os nossos informantes em Bananal referiram-se a um grande
chefe Tovoolé, nascido no Chaco, e que possuia patente de Capitão
do Exército Imperial, concedida por D. Pedro II. De outra parte
Taunay menciona o chefe Terena José Pedro de Sousa, que “sabia
lêr e escrever; mantinha em sua aldeia severa disciplina: organi­
zara uma escola para meninos'' (20). O mesmo autor adianta ainda
que José Pedro de Sousa fora educado pelo missionário Mariano
Bagnaia, e obteve em 1867 uma nomeação para capitão, concedida
pelo Governo Imperial. Verificamos assim que os chefes Terena,
por essa época, já estavam ligados à organização política brasileira.
Além disso, o dinheiro já começara a influir grandemente na econo­
mia dos Guaná. Taunay relata, com indignação, a venda pelos pró­
prios pais, de índios em Miranda (2l).
Os relatos deixados por Bach, em 1898, mostram-nos os Terena
numa dependência ainda maior com relação ao comércio brasi­
leiro (22). Afirma ainda Bach que os Terena praticavam o infan-
ticídio e estimou a proporção de um homem para cada três mu­
lheres nas aldeias desses índios.
O mesmo autor calculou os Terena de Miranda entre 12 e 14
mil, estimancí) para o Município de Miranda a população de 15 mil
(19) Vejam-se sob o título “Guerra”, no capítulo referente a Mudanças na Orga­
nização Social, alguns relatos Terena a êsse respeito.
(20) Visconde de Taunay, Op. cit., pág. 83.
(21) Visconde de Taunay, Op. cit., pág. 139,
(22) J. Bach, “Datas sobre loa índios Terenas de Miranda”, Analea dê ia Sodedad
Cientifica Argentina, Vol. 82, (Buenos Aires, 1916), pág. 88.
282 BEV18TA DO MUSEU PAULISTA, N. SM VOL. 111

habitantes (23). Êsses dados parecem bastante exagerados, desde


que o recenseamento de 1872 deu para toda a Província de Mato
Grosso a população de 60 mil habitantes (24). De outra parte, o
censo de 1920 indicou a população de 5.055 habitantes para Mi­
randa (36). '
Baeh, segundo êle mesmo o afirma, visitou as aldeias de Agachy,
Boquehina, Morrinho, Morro, Ipegue, SanVAna (Naxe Daxe) e
Caytapé de um total de doze aldeias Terena que declarou existirem
naquela época. O total da população das aldeias visitadas é esti­
mado pelo autor em 2.348 índios (26), o que nos permite a afirma­
ção de que o número dos Terena manteve-se sem grandes variações
até a época atual, entre 3 e 4 mil.
Desde o Brasil colonial até os nossos dias procurou-se proteger
os interêsses indígenas por meio de numerosos atos, e leis, visando
pôr cobro à espoliação de seus bens e terras. O direito dos índios aos
territórios que ocupavam foi reconhecido no Alvará Régio de 1 de
Abril de 1680, confirmado por uma Lei de 6 de Junho de 1775, a
qual determinava a “observância do Breve de Benedicto XIV, de
20 de Dezembro de 1741, assim como várias leis do Reino, sobre a
liberdade das pessoas e bens e comércio dos índios do Pará e
Maranhão (27).
Mais tarde os índios foram declarados órfãos e sob tutela da
Nação, pela Lei de 27 de Outubro de 1831 (28), estabelecendo-se
sistemas de Diretórios junto às aldeias indígenas. Durante o período
monárquico, o Governo Brasileiro procurou proteger os agrupamen­
tos indígenas e as catequeses. “ Como medida primordial — escreve
o Sr. José Maria de Paula — procurou-se levar direta e efetivamente
ao índio a assistência e a proteção do governo, que até então somente
existia nos textos das leis, alvarás e regulamentos. Para isso, subor­
dinada a um diretor provincial, institui-se uma diretoria em cada
aldeia, com prescrições taxativas no sentido de serem reunidos os
(23) J. Bach, Op. citt pága. 87 e 90.
(24) Santa Anna Nery, La Brésil en 1889, (Paris, 1889), pág. 199.
(25) Diretoria Gorai de Estatística, RecsnBeamento do Brazil, (Ministério da Agri-
cutura, Indústria e Comércio, 1929, Rio de Janeiro), Vol. IV, 4.® parte, pág. 177.
(26) J. Bach, Op. dt.r pags. 90 e 91.
(27) José Maria de Paula, Terror dos índios (Boletim N.° 1, Ministério da Agri­
cultura, Serviço de Proteção aos índios, 1944), pága. 69 e 70.
(28) José Maria de Paula, Op. cü.f pág. 42.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 283

índios nesses núcleos de população indígena, para que assim, sob


as vistas dos funcionários do Govêrno, para isso estipendiados, e
galardoados com postos e honras militares, pudessem gozar efetiva­
mente, das garantias que lhes facultava a lei. . (29) ,
Mas, conforme reconhece o mencionado autor, os diretórios indí­
genas não provaram ser eficientes no tocante à proteção dos índios.
E assim, “aos poucos, por ineficácia do regime, foram decaindo ou
se extinguindo esses aldeamentos, voltando os índios novamente a
procurar trabalho junto aos agricultores da região ou indo ocupar
outros tratos de terra, em que retornavam aos seus usos e costumes
primitivos’' (80).

Mudanças recentes

A partir dos meados do século XIX a colonização de Mato


Grosso se intensificou com a abertura da navegação do Rio Paraguai
ao comércio internacional. Com isso foi favorecida a imigração e
se a população do Estado era de 60.417 habitantes em 1872, o censo
de 1920 indica o total de 246.612 para todo o Estado.
O povoamento do Sul de Mato Grosso acarretou novas mudanças
para os Terena: suas aldeias foram envolvidas pelas fazendas de
gado o que aumentou ainda mais a sua dependência dos adminis­
tradores e senhores de fazenda. Em 1892 Cuiabá foi ligada à rêde
telegráfica brasileira, A partir dessa data prosseguiram os trabalhos
para a ligação telegráfica de todo o Estado, sob a direção do*hoje
General Cândido Mariano da Silva Rondou. Nos primeiros anos
deste século. Cândido Rondon alcançava os aldeamentos dos Terena
e procedia ao levantamento das áreas ocupadas pelos índios. Mais
tarde, cm 1910 conseguiu êle a criação de reservas indígenas, lançan­
do os fundamentos do Serviço de Proteção aos índios. Várias turmas
de índios Terena, juntamente com outros Guaná, trabalharam para
a comissão encarregada do estabelecimento das linhas telegráficas do
Estado de Mato Grosso, até a conclusão das mesmas em 1908.
As grandes fazendas de gado passaram a interferir de perto na
vida econômica e social das aldeias indígenas. As plantações dos
(29) José Maria de Paula, Op. rit., páç. 27.
(30) José Maria de Paula, Op. cít., pôg. 74,
284 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

índios eram frequentemente prejudicadas pelos rebanhos das fazen­


das, e casos havia em que para se ressarcirem de eventuais prejuízos,
os fazendeiros impunham tributos aos índios,' Em consequência
muitas aldeias se despovoaram completamente.
O estabelecimento, em 1910, do Serviço de Proteção aos índios
* constituiu para os Terena uma garantia de sobrevivência, quando
eles já se achavam em vias de uma completa destribalização. Outro
fator de grande importância que influiu grandemente na vida dos
Terena foi a construção da Estrada de Ferro Noroeste do Brasil,
ligando Bauru a Porto Esperança, no Rio Paraguai. Em fins de
1903 foi assinado um decreto aAorizando o funcionamento da E. F.
Noroeste do Brasil, que planejava inicialmente a ligação Bauru-
Cuiabá. Por motivos relacionados com a política externa brasi­
leira, o traçado inicial foi modificado, orientando-se não mais em
direção a Cuiabá mas visando Corumbá, para seguir daí, futura­
mente, para a Bolívia. A construção se iniciou em 1905, progredindo
os trabalhos numa média de 100 km. por ano, e alcançando a mar­
gem do Rio Paraná em 1908, o que deu origem à povoação de Três
Lagoas, hoje com 15.580 habitantes (3I). O novo traçado obedecia
a motivos de ordem econômica também (32). Em 1908, visando
apressar a construção da linha, iniciou-se em Pôrto Esperança outra
secção que prosseguiu demandando as pontas de trilhos vindas do
Rio Paraná. O encontro das duas secçoes se deu nas proximidades
de Campo Grande. A secção Pôrto Esperança-Campo Grande alcan­
çou as cidades de Miranda e Aquidauana nos anos de 1911 e 1912.
Na construção e conservação das linhas da Noroeste, nessa última
secção, passaram a ser utilizados trabalhadores Terena.
A Noroeste do Brasil ligou diretamente o Sul de Mato Grosso
com o Estado de São Paulo, promovendo tráfego por áreas afins aos
aldeamentos dos Terena; desde então intensificaram-se os contatos
desses índios com as populações brasileiras. Em 1910 o missionário
Henrique Whittington visitou as aldeias de Bananal e Ipegue, e em
1913, sob os auspícios da Inland South America Missionary Union,
fundou junto às mesmas uma missão religiosa.

(31) AndKao do Resultado do Censo Demográfico (Instituto Nacional de Geografia


« Eatatíetica, Serviço Nacional de Recenseamento, 1944) Vol. I, pág. 60.
(32) Euclides da Cunha, 2 Margem da História, (Porto, 1926) páge. 154-163.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 285

Origem de Bananal

A atual aldeia de Bananal, que conta com mais de novecentos


índios, teve a sua origem no comêço dêste século, em área próxima *
às das antigas aldeias de Naxe-Daxe e Ipegue, Devido às persegui­
ções movidas pelos fazendeiros da região, muito poucas famílias de
índios permaneciam nessa área. Entre essas contavam-se as dos
índios Kaliu-zé, Eperú, Paruerê, Sacamã, Pikihi, José Sabino e
Antonio Vicente. Em 1906 o brasileiro João Gomes, amasiado com
uma Terena, “nomeou” o índio Manoel Pedro capitão da aldeia de
Bananal. Em 1908, Manoel Pedro e alguns índios, entre os quais
Mareolino Wollily (que depois veio a sucedê-lo) iniciaram a demar­
cação dás terras da aldeia, provàvelmente orientados pelo GaL Ron-
don que já la estivera fazendo o levantamento da área. Em 1915^
Mareolino Wollily foi apontado pelo S. P. I. para o cargo de Capitão
da aldeia, distinguindo-se na defesa dos interesses do Terena contra
as constantes exigências dos fazendeiros vizinhos. Convertido ao
credo protestante, Mareolino fêz com que parte da aldeia se conver­
tesse também.
Sob a acusação de instigar os índios contra as autoridades do
S. P. I., os missionários da Inland South America Missionary Union
foram, em 1920, expulsos de Bananal. Em 1925, retomando as ativi­
dades dessa organização, missionários norte-americanos da South
America Indian Mission estabeleceram-se em Bananal e vêm desde
então prosseguindo na catequese dos Terena. Em 1933 Mareolino
Wollily foi preso e destituído do posto de capitão da aldeia, sob a
acusação de fomentar uma revolta contra o S. P. I. Tentou-se um
sistema de triunvirato, onde se faziam representar três correntes do­
minantes na aldeia: os protestantes, os não-protestantes (ou católi­
cos), e o S. P. I. Mas o sistema não se mostrou operante, e um ano
depois Mareolino foi restabelecido na chefia dos índios.
O ligeiro esboço histórico dos Terena de Bananal, que fizemos,
permite-nos avaliar os contatos mantidos por êsses índios desde sua
migração do Chaco para o Brasil.
Ao examinar nas páginas seguintes as mudanças culturais sofri­
das pelos Terena, procuramos apresentar sempre uma descrição da
cultura no passado antes da análise de cada aspecto da situação
286 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

atual; nem sempre, porém, dispomos de material suficiente, embora


apoiados nas informações obtidas junto aos índios de Bananal e na
literatura existente sobre os Terena. Devido às dificuldades ineren­
tes a todo o trabalho de campo e, em especial, ao prazo de tempo
de que dispúnhamos para permanecer entre os Terena, muitos dos
aspetos de mudança cultural que se desejaria melhor elaborados,
tais como as influências decorrentes da educação escolar ou mesmo
as mudanças sofridas pelas populações brasileiras vizinhas por mo­
tivo dos contatos com os Terena, ou ainda as mudanças recíprocas
resultantes dos contatos dos Terena com outras culturas indígenas
são por nós apenas mencionados. Desejamos salientar que, embora
concientes da necessidade de se estudarem tais fenônemos limitamo-
nos apenas a apontá-los devido à carência do material indispensável
.para tais estudos.
No correr dêste trabalho citamos uma centena de palavras em­
pregadas pelos Terenas para designar diferentes objetos ou situações.
Não é propósito nosso fazer um estudo da língua Terena, e não só'
deixamos dê apresentar um vocabulário Terena como não discutimos
siquer a origem dessas palavras, isto é, si foram ou não introduzidas
na língua devido a contatos com outros agrupamentos; limitamo-nos
a citar as palavras Terena tal qual pudemos constatar serem usadas,
e na medida que nos parecerem elas de algum auxílio para o texto.
Na disposição do material dividimos este trabalho em cinco
capítulos, em que examinamos as mudanças na vida econômica dos
Terena, na sua organização social, no seu ciclo de vida, em suas
crenças e mitos, nas suas festas, danças e folguedos, terminando por
um sumário, com algumas considerações gerais e sugestões para fu­
turas pesquisas.
Mudanças na Vida Econômica
Pretendemos examinar neste capítulo, a vida econômica dos
Terena, no passado, e a presente situação na aldeia de Bananal, pro­
curando evidenciar as mudanças ocorridas.
Os Terena, outrora um povo de agricultores, que entremeavam
o plantio com a caça, pesca e coleta, vivem hoje na dependência
econômica das povoações brasileiras vizinhas, dedicando-se ao plantio
de mandioca, cana de açúcar, e trabalhando nas fazendas próximas.
BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, K 8-, VOL. III 287

Até fins do século XVIII os Terena localizavam-se no território


paraguaio, numa região situada entre a margem direita do Rio Pa­
raguai e os limites do noroeste do Chaco. Essa área caracteriza-se
por planícies com pequenas elevações; o clima é ameno mas durante
o inverno, que vai de Junho a Agosto, devido aos fortes ventos que
sopram do sul, a temperatura alcança o ponto de congelação da
água. As chuvas se estendem de Outubro a Maio. A vegetação é
caracterizada por arbustos e capoeiras cerradas, ricas em plantas
alimentícias, como a algarroba, (Prosopis Alba e Prosopis Nigra) e
numerosas espécies de palmeiras. As matas eram abundantes em
caça e os rios, em peixes. Os Terena habitavam aldeias, oneo> onde
as casas se distribuíam em círculo ao redor de uma praça central.
A aldeia constituía uma unidade política mas a unidade econômica
básica era a família. Cada casa, ovoculi, possuia a sua plantação,
cavané, organizada pelos membros da família (que abrangia pais,
filhos, genros e escravos) ; a posse de escravos significava auxílio
na guerra e no preparo das plantações.
Os antigos Terena construíam casas com telhados de duas águas,
os quais desciam até as proximidades do solo, descançando sobre
paredes de cêrca de lm.60 de altura (®3) ; no centro e nos extremos
três postes sustentavam uma viga centrai sobre a qual se apoiavam
caibros e ripas. A cobertura era feita de sapé ou folhas de acurí.
O têrmo Terena para teto é tuti-echatê. Segundo Métraux, os Guaná
do século XVIII construíam casas de telhado arqueado (34)< Os
Terena de hoje não se recordam desse tipo de casa. Em 1845 Cas-
telnau, relatando a visita que fêz a unia aldeia Terena, nas proxi­
midades de Miranda, escreve:
“ .. .Le village contient de cent à cent dix maisons
réunies les unes aux autres: ce sont de longues huttes dis-
posées en circle au tour d bine grande place” (35)t
(33) José Sánehes Labrador, El Paraguai/ Católico, (Buenos Aires, 1910), Vol. II,
págs. 2 75 e 276. Refere-se o autor ãs casas dos Guaná, como sendo longas o de teto
arqueado. Neste trabalho descrevemos apenas as casas dos Terena já em Território Brasi­
leiro, baseando-nos em relatos de informantes índios de Bananal.
(34) Alfred Métraux, “Indians of the Gran Chaco”, Handbook of South American
Xndians (Bul). 143, Bunau of American Indians. Smithsonian Institution, 1946) Vol. I,
pág. 269.
(35) Francis de Castelnau, Expédüion dana les Parties Centrales de VAmérique
da Sud (P. Bertrand, Paris, 1850) Vol. 2.°, pág. 471.
238 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

As casas eram de forma retangular, e as paredes da frente e dos


fundos se apresentavam inclinadas para o interior, no alto. Segun­
do afirmam alguns informantes, as portas eram simples aberturas,
sem outra proteção. A praça central ao redor da qual se dispunham
as casas era denominada none-ovocuti. Não havia distinção especial
no tocante à casa do chefe da aldeia, nem parece ter havido distri­
buição especial com referência à localização das metades tribais. As
roças, cavané, eram feitas por detrás das casas.

Mobiliário e utensílios

Os Terena dormiam sobre giraus (plataformas armadas sobre


quatro estacas terminadas em forquilha), denominadas ipê. A pla­
taforma era recoberta com trançados de bambu ou couro. Sôbre essa
armação estendiam-se peles de animais. Não possuíam mesas nem
parece existir na língua Terena uma palavra especial para tal objeto.
A mesa é hoje chamada ipê (cama), ou simplesmente pango (desig­
nação Terena para banco, que também não possuíam). No passado
êles sentavam-se em esteiras de piri, denominadas hiturí. A rede
parece ser de aquisição recente e era fabricada de algodão ou de
simples tiras de couro trançadas, toiti vacamoio (toiti, rede; vacá,
vaca). Tapetes de pele, panketi, eram usados no passado. -
Os recipientes variavam das cabaças e potes de barro aos tran­
çados de fibras vegetais e cestaria. Os alimentos pendiam do teto
ou das paredes; cabaças cortadas ao meio, de vários tamanhos, ser­
viam para guardar água e mel; potes de barro, cestos e bolsas de
fibra, pendentes das paredes, completavam o mobiliário. No interior
das casas os antigos Terena guardavam ainda peles de animais,
armas, (arco, chekiê; flecha, chitmé; lança, suikê; clava, pu’lae)f
utensílios, (foice, chopilocoti; machado, inicialmente de pedra,
povooti; bastão de cavar, üomeH^ fusos, material para fiar, bem
como presas de guerra, enfeites de plumas e material para pintura.

Vestuário e adornos

O vestuário mais comum era o xiripá, um saiote que ia da cin­


tura até os joelhos. Em tempo de guerra usavam um xiripá bem
curto, de cor preta. Ainda era assim em 1845, segundo testemunha
BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 289

Castelnau (3a). O cabelo era puxado para cima e amarrado atrás


da cabeça. Usavam alpercatas de couro, de forma pentagonal, com
uma tira de couro que descançava no peito do pé. Durante o inverno
protegiam-se do frio com camisas sem mangas, tecidas de algodão,
denominadas repenoti. Costumavam depilar completamente o corpo
empregando uma pinça (mais tarde uma lâmina de ferro recurvada),
denominada maiecovôpeti. A depilação estava ligada a crenças
mágicas (como veremos na secção dedicada às crenças e mitos).
Usavam colares, nacati, pulseiras, imo-taki, e enfeites para a perna,
imó-hevê. Êsses adornos eram feitos pela ligação de sementes, contas
ou dentes e ossos de animais, com fios de algodão; os braceletes
eram, às vezes, de ouro e prata, possivelmente obtidos dqs Mbayá (37)t
Nas festas usavam diademas de penas vermelhas e saiotes de plumas
de ema. As penas de papagaio, amarelas, eram privativas dos che­
fes, pois o papagaio era considerado “um chefe” (afirmam os infor­
mantes) ; o uso da pena de papagaio significaria outrossim, a morte
de um inimigo.
A pintura do corpo era indispensável nas danças e festas. Pin­
tavam o corpo com riscas, em branco e preto. Castelnau refere-se
à pintura dos Terena como muito semelhante à dos Guaicuru.
Escreve o aludido autor:
“Les dessins sont souvent dhme excessive finesse et
presentent une harmonie et une delicatesse quhl est impos­
sible decrire” (38)-
Na pintura do corpo utilizavam-se do jenipapo e do carvão
vegetal.
Na guerra o chefe de guerra, chuná-acheti, vestia uma capa de
pele de onça.

Atividades de subsistência
A região onde habitavam primitivamente era muito rica em
caça e plantas alimentícias, e não obstante haverem os Terena se
(36) Francis de Castelnau» Op. eit., Vol. II» págs. 470-471.
(37) José Sánchez Labrador» Op. cit., Vol. II» pág. 268.
(38) Franeia de Castelnau, Op. cü.» VoL II, pág, 471.
290 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

distinguido como agricultores, sua subsistência não dependia unica­


mente das plantações.
A época do plantio era determinada pelas chuvas. Dizem os
Terena que as primeiras flores do mato anunciavam a época do
plantio, nhopeti, que ocorre por volta dos fins de Agosto e princí­
pios de Setembro. As chuvas iniciam-se em Outubro, prolongando-se
às vezes até Maio, e durante o período das chuvas é que se proce­
diam às atividades agrícolas. A época de plantio e colheita coinci­
dia com a das águas. Quando escasseavam os alimentos, voltavam-se
os Terena para a coleta, caça e pesca. A época propícia a essas
atividades, no Chaco, vai de Janeiro a Agosto. De Janeiro a Abril,
coleta; de Abril a Junho, caça; de Junho a Agosto, pesca. Nos de­
mais meses, procediam-se às lides do plantio.

Lavoura

Não se recordam os Terena de atividades agrícolas cooperativas.


Dada a deficiência dos instrumentos de lavoura de que dispunham,
é provável que constituísse trabalho de grupo. Em fins de Agosto,
procediam à limpeza do mato, tarefa masculina. Depois de queima­
do o mato, os troncos carbonizados eram cortados e macetados com
os machados, povooti, e maças, p^lae. Para plantar sentavam-se
sobre os calcanhares e empregavam um bastão de cavar de madeira,
Home^i. Na limpeza do mato utilizavam-se também de uma espécie
de foice de madeira, chopilocoti. Mais tarde adotaram a enxada, a
que chamaram ahará. Mencionam, mesmo, os informantes, um arado
primitivo, com forma triangular e arestas de madeira, uarrerè-opeti,
mas é de se notar que até hoje não se afizeram ao uso do arado no
preparo da terra.
A sementeira podería ser auxiliada pelas mulheres. No plantio
do algodão cabería às mulheres lançar as sementes nas covas abertas
pelos homens. Das principais plantas cultivadas pelos antigos Te­
rena cabe mencionar como mais importantes o milho, a mandioca, o
fumo, a batata doce, o algodão, o cará e várias espécies de abóboras.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 291

Milho, soboró

Os Terena conheciam diversas variedades de milho. Nossos


informantes mencionaram as seguintes: milho amarelo, huanketi-
soboró; milho branco, heopuiti-soboró ; milho de grãos mistos, cuati-
soboró. Uma outra variedade, de “espiga longa e grão muito macio”,
era denominada de soboró, simplesmente. A época do plantio do
milho era como a das demais plantas por êles cultivadas, a das chu­
vas. A colheita se realiza três meses depois ou mesmo seis meses,
conforme a variedade do milho, e deveria, portanto, estar completa­
mente terminada em fins de março. As espigas eram colhidas ainda
verdes e tostadas ao fogo, ferventadas ou ainda esmagadas para o
preparo de pequenos bolos denominados chipa, O milho era ainda
utilizado no preparo de bebidas fermentadas.

Mandioca, tchupú

Embora desconhecessem o processo de fabricação da farinha de


mandioca, que só mais tarde vieram a dominar, os antigos Terena,
segundo nos adiantaram informantes de Bananal, teriam cultivado
a mandioca brava, suáiMchupú, a par com as variedades não vene­
nosas, echoti-tchupú. A mandioca mansa era comida cozida ou
assada. As variedades venenosas eram utilizadas na fabricação de
bolinhos, denominados hihi, ou de bolos maiores, hapape. Depois
de raspada a casca da mandioca brava com facas de madeira (peri-
lau), esmigalhavam o miolo em raladores de madeira. A massa
assim obtida era envolvida em tecidos de algodão, que eram retor­
cidos com o auxílio de varetas de madeira. Libertada do caldo
venenoso a massa era cozida em panelas de barro até perder o sabor
amargoso.
A mandioca mansa era muitas vezes cozida de mistura com
pedaços de carne defumada ou peixe moqueado. A época do plantio
da mandioca coincidia com a do milho, mas a colheita exige de oito
a doze meses; dessa forma a mandioca constituía boa reserva de
alimento, pois as raizes não utilizadas são conservadas no solo.
292 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

Batata doce, coé

A batata doce, coe, era cultivada no Chaco pelos Terena, que


afirmam haverem conhecido as seguintes variedades: branca, heopui-
ti-coé, amarela huanketi-coé, roxa, haraiti-coé. Apesar de poder ser
plantada durante todo o ano, o seu plantio é mais aconselhável de
Outubro a Março, durante a estação chuvosa. A batata era comida
assáda diretamente nas cinzas, ou ferventada. Havia ainda uma
terceira maneira de prepará-la. O processo consistia em fazer um
buraco no solo, enchê-lo de lenha e atear fogo; lançava-se a batata
sobre o braseiro e recobria-se o buraco com terra, deixando-o assim
por um dia ou mais. O forno subterrâneo era chamado de xidupu-
peno-uti-coé.

Banana, severená-sô-unô

A banana da terra era conhecida e cultivada no Chaco e denomi­


nada severená-sô-unô. As demais espécies que teriam sido conhecidas
e cultivadas no passado são: a banana branca, heopuiti-pana^ e
uma outra denominada carapé-panana, No entanto o próprio nome
híbrido leva-nos a pensar numa aquisição mais recente.

Outras plantas

Conheciam e cultivavam o algodão, nevoi, a abobrinha, caamé,


o amendoim, curiké, o fumo, tchaki, e o feijão miudo, careokê. Mais
recentemente adquiriram a cana de açúcar.

Caça e pesca

A caça e a pesca desempenhavam parte importante na dieta. A


época da pesca sucedia à do plantio e coleta, antecedendo à da caça.
Os Terena viviam nas proximidades de rios e lagoas e desde peque­
nos se familiarizavam com a técnica da pesca. Nas expedições de
pesca costumavam sair em grupos de cinco a doze índios, mas a caça
parece ter constituído tarefa individual. Ambas, porém eram ativi­
dades masculinas, Na caça utilizavam-se os Terena do arco, chekiê,
da flecha, chumé, e da zagaia, suikê. A zagaia era de madeira com
ponta de osso, e mais tarde, com ponta de ferro. O arco era de
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 293

secção retangular, sendo que a face interior apresentava ligeira con­


vexidade. (Tivemos ocasião de medir um arco conservado por um
Terena como relíquia de família. Media lm.58 de comprimento;
na secção máxima media de largura 0,m.027, e de espessura Om.016).
Conheciam também o bodoque de duas cordas, para lançamento de
pedras. No encordamento dos arcos empregavam fibras de tucum.
Utilizavam-se de flechas com pontas de osso ou pontas rombudas,
estas últimas denominadas xororó, e empregadas para apanhar pás­
saros. As armadilhas para animais de pequeno e grande porte eram
de uso frequente.
Afirmam os Terena que, quando ainda no Chaco, costumavam
caçar, entre outros, os seguintes animais: onça, siini; veado do
campo, tiipê; veado mateiro, nai’iaró; anta, maine-cano; jaó, ma-
coró’i. A onça era caçada com lança; o caçador esperava ox animal
pular sobre êle para espetá-lo. A pesca era feita com arco e flecha,
por meio do timbó (Paullinia pinnata), do côvo ou simples pescaria
a mão, ou ainda por meio de anzol e linha, a cujo conjunto denomi­
navam mareisona-numico (anzol, numico). O anzol era feito de
osso. Na pesca de arco e flecha, empregavam flechas com fisgas
laterais, na extremidade. Usavam ainda um cesto feito com talos
de piri unidos com fibras de tucum, com a forma de tronco de cone
e denominado chumenó. A base maior do chumenó era apoiada
contra o fundo da água, e o pescador enfiava a mão pela abertura
mais estreita agarrando o peixe porventura capturado. Dentre
os peixes mais comuns na área do Chaco, mencionam os infor­
mantes de Bananal os seguintes: marobá, tchaca-tchaca; traíra,
hümon; bagre, oiaporé; e dourados. A carne da caça era ou tostada
diretamente no braseiro ou moqueada, o que faziam também com o
peixe. Mencionam ainda os Terena uma cobra d^gua denominada
munum ou mussum pelos caboclos e tié pelos índios, bem como
caramujos d’água, caeió, os quais constituíam parte de sua dieta.

Coleta

A coleta era tarefa tanto masculina como feminina, e abrangia


a apanha de frutas e mel silvestres, bem como de ovos de ema,
kppahe, e de tartaruga, palmitos e raizes medicinais. As matas que
294 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

bordejam o Rio Paraguai são abundantes em plantas de valor alimen­


tício, e mencionaram nossos informantes as seguintes: algarroba,
mée; o evêf fruta semelhante ao jambo; o vaápú, fruto de caracte­
rísticas semelhantes às da jaboticaba, embora menor. Apreciavam
muito a flor do capim do brejo, lapoienü, e a bocaiuva, ecaíé. O
mel, ou mopá, era não só utilizado como alimento mas também no
preparo de bebidas alcoólicas. O mesmo se dirá com relação aos
palmitos.
Criação de animais

Após o contato com os europeus, os Terena adquiriram o cavalo


e a vaca, a que chamaram respectivamente de camó e vacá. Nos
seus combates com as demais tribos vizinhas, passaram também a
capturar os rebanhos adversários. Mas não aprenderam a utilizar
o leite de vaca como alimento, nem chegaram a empregar o cavalo
na guerra. Mesmo para o transporte pessoal preferiam lançar mão
do boi de sela, o qual, afirmam, caminha muito melhor nos pantanais
e charcos (3&). Para montar utilizavam uma sela constituída por
dois cilindros de folhas de bananeira, ligados por tiras do mesmo
material. Chamavam a esse tipo de sela de nico-coroli, Possuíam
também cães, papagaios e araras, As penas de arara e papagaio
eram utilizadas na manufatura de enfeites.

Produção do fogo
Os Terena produziam o fogo, duicú, pelo método de fricção de
duas varetas, uma apoiada perpendicularmente à outra. Com as
mãos imprimiam à vareta perpendicular um movimento de rotação,
comprimindo-a contra a haste horizontal.

Divisão de trabalho
A divisão de trabalho parece justificada no mito de criação, no
qual Yurikoyuvakai, os heróis gêmeos dão aos homens os instrumen­
tos de trabalho agrícola e as armas de guerra e, às mulheres, o fuso
de fiar. A limpeza da roça e o amanho da terra eram tarefas mas-
(39) Herbert Baldusr em Indianerstudien im NorddsUiehen Chaco, (Leipzíg, 1931),
p6g. 34, menciona a utilização de vacas como montarias pelos Kaxkiha.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 295

culinas. Também cabiam ao homem a guerra, a caça, a pesca e a


cestaria. As mulheres cabiam as tarefas de fiação, a cerâmica e
cuidados caseiros. A coleta era feita por ambos os sexos.

Cerâmica

'Conheciam e empregavam o processo de espirais de argila para


fabricação dos potes e das panelas. Costumavam enfeitar os obje­
tos assim fabricados com desenhos em branco e preto. Os vasos e
potes eram cozinhados após serem pintados com resina de jatobá.

Cestaria
Fabricavam cestos e abanicos de carandá ou de piri ou ainda de
bambu. Os cestos eram utilizados para guardar e transportar alimen­
tos. Cestos especiais eram feitos para transporte de crianças. Êstes
últimos eram adatados às costas das mulheres e presos à cabeça por
meio de faixas de algodão.

Fiação
Na fiação, tarefa feminina, empregavam-se fibras de algodão,
de palmeiras e de um arbíisto denominado yuhi e cujo nome corres­
pondente em português desconhecemos. Para fiar o algodão usavam
um fuso, hopaé, de vareta de madeira e tortual de barro. Para as
fibras mais grossas, como as do yuhi, empregavam fusos maiores,
feitos com o mesmo material, aos quais chamavam de uosso-copeti,
Antes de utilizarem o yuhi para fiar, deixavam-no por alguns
dias mergulhado nagua. Em seguida as fibras do yuhi, assim tra­
tado, eram facilmente separadas, depois de secas, eram fiadas com
auxílio do uosso-copeti. Com as fibras de yuhi faziam dois tipos de
bolsas, uma pequena, verii e outra maior, nimaquê. O verii era
utilizado para guardar frutas, pequenas cabaças e outros objetos; o
nimaquê era empregado no transporte de mandioca e outros pro­
dutos, da roça para as moradias. Faixas de algodão (de cerca de
0m.200 de largura), denominadas hco-eti, eram utilizadas para pren­
der os xiripá; amarradas à cintura.
296 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

A SITUAÇÃO ATUAL
Após êste ligeiro esboço da vida econômica no passado, e da
constatação de uma atividade de subsistência baseada na agricultura
e entremeada com a caça, pesca e coleta, procuraremos examinar as
mudanças sofridas na vida econômica dos Terena bem como sua
presente situação na aldeia de Bananal.
Devido à falta de territórios adequados para a caça, pesca e
coleta, os Terena de hoje vêem-se forçados a limitar suas atividades
à agricultura ou ao trabalho nas fazendas vizinhas.
Nas diferentes aldeias em que se distribuem atualmente, cuidam
durante parte do ano, de suas plantações; parte do tempo é empre­
gado no trabalho de peão, nas fazendas vizinhas ou ainda nos serviços
de conservação de linha da Noroeste do Brasil. Embora a aldeia de
Bananal, que passaremos a descrever, se encontre em melhor situação
econômica que as demais, o seu exame nos permitirá avaliar as mu­
danças sofridas pelos Terena, em geral, em Mato Grosso.

A aldeia de Bananal (40)


Bananal está localizada num planalto, com pequenas colinas
arredondadas pela erosão, na base da Serra de Aquidauana, a 4 km.
da vila brasileira de Taunay, na Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil. A 6 km. de Bananal acha-se Ipegue. O fornecimento de
água da Aldeia é feito por meio de uma dezena de poços (seis dos
quais foram construídos pelo S. P. I.), e ainda por dois açudes. (No
centro de Bananal a água é encontrada à profundidade de 13 a 15
metros). O clima é quente e úmido; as chuvas se iniciam em Se­
tembro ou Outubro e vão até Abril ou Maio. No período da seca,
de Junho a Setembro, a água chega a escassear.
Na disposição espaçada dos seus edifícios, que obedecem ao
alinhamento de ruas largas e retilmeas, Bananal se afasta do tipo
comum dos povoados brasileiros. Suas casas, algumas caiadas exter­
namente, erguem-se à beira das ruas; mangueiras, plantadas às
instâncias do S. P. I-, oferecem sombra acolhedora.
(40) A denominação oficiai da Aldeia, de acordo com o Serviço de Proteção aos
índios, é Pôsto Visconde de Taunay. Entretanto a denominação corrente continua a ser
Bananal, evitando-se assim a confusão com a cidade de Taunay, a quatro quilômetros
apenas.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 297

No centro da aldeia existem oito edifícios de tijolos, caiados


externamente e com cobertura de telha. São eles: a igreja dos mis­
sionários católicos; a escola do S. P. L; o hospital (mandado cons­
truir pelo S. P. I. mas sem aparelhamento técnico e sem pessoal
habilitado ou mesmo não habilitado); a sede do Posto e um edifício
anexo; a escola dos missionários protestantes; a igreja dos missioná­
rios protestantes; e a casa pertencente ao antigo capitão Marcolino
Woílily. Há ainda outras 78 construções, das quais 73 habitadas,
e assim distribuídas conforme o material utilizado na construção:
14, feitas com adobe, caiadas externamente e recobertas com telhas;
8, de adobe, caiadas, e recobertas com sapé; 19, de adobe, recobertas
com sapé; 23, de pau-a-pique, barreadas e recobertas com sapé; 9, de
pau-a-pique, com telhado de sapé; uma casa de tijolo, pintada e com
telhado de sapé; uma casa de pau-a-pique, barreada, coberta com
telhas; três ranchos de paredes de folhas de palmeira e sapé, cobertos
de sapé. Fora da aldeia, ou antes, do perímetro central, acham-se
as chácaras, com casas dè pau-a-pique e, algumas vezes, barreadas.
Alguns índios que se dedicam ao comércio, procuram imitar na
fachada das casas a pintura das lojas de Taunay.
Após o estabelecimento do Serviço de Proteção aos índios as
terras de Bananal foram doadas pelo Governo Brasileiro aos Terena.
A terra é propriedade coletiva, enquanto não ocupada. Para ter
direito a um lote, , o índio necessita ocupá-lo quer residindo nele quer
cultivando-o; a casa e os benefícios introduzidos no lote são de pro­
priedade particular e podem ser comprados ou vendidos; a constru­
ção das casas é de iniciativa individual. O S. P. I. tem incentivado
o tipo de casa pintada e recoberta com telhas, fornecendo as telhas
necessárias; os tijolos de adobe são fabricados pelos próprios índios.
As casas geralmente possuem dois compartimentos, um dos quais, ao
menos, fechado com quatro paredes. O uso de vidraças é aperfei­
çoamento somente encontrável nos edifícios do S. P. I.; nas casas
dos índios algumas janelas possuem encaixes de madeira e na maioria
as portas se resumem em simples aberturas deixadas nas paredes.
Algumas poucas casas são caiadas e mesmo pintadas internamente;
essas são na maioria “boliches”, ou seja, lojas de comerciantes
(índios) intermediários.
298 HEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

Mobiliário e utensílios
Resume-se o mobiliário dos Terena em: a cama (que em muitos
easos se identifica com o jirau dos velhos tempos), bancos, redes,
utensílios de cozinha e instrumentos de trabalho. A rede é encom
trável em quase todas as casas; o dono da casa geralmente dorme
ém jiraus ou camas e os filhos e hóspedes, em rêdes. Para forrar
os jiraus usam cobertores de algodão.
Nas casas mais abastadas é possível encontrarem-se mesas e
cadeiras, e até mesmo armários e prateleiras, fabricados pelos pró­
prios índios. Na maioria dos casos, porém, caixotes vazios, quando
necessário, fazem as vêzes de mesas, cadeiras e armários.
Potes e panelas de barro, feitos pelos índios, amontoam-se de
mistura com panelas de ferro e latas vazias de conserva (utilizadas
como recipientes). Potes de barro e cabaças para guardar água são
usados simultâneamente com latas de querozene. Pequenas latas de
conserva, canecas de ferro esmaltado e chícaras de porcelana, bem
como pratos de barro, alumínio e porcelana, e mesmo copos de vidro,
coexistem em Bananal, às vezes, na mesma casa.
Nas refeições os Terena usam hoje colheres de alumínio; para
cortar, si necessário, empregam a faca que trazem consigo e que usam
também nas lides diárias. Cestos de vime e verü e nimaquê, bem
como vasilhas feitas de cabaças são ainda muito utilizados. Gar­
rafas de pinga vazias são empregadas para guardar melado. Para
iluminar as casas durante a noite usam velas de sebo ou esperma-
cete, ou lamparinas de querozene.
A cozinha, que se resume numa simples fogueira e num forno
de barro, localiza-se nos fundos da casa, do lado de fora.

Vestuário e adornos
Nas roupas e adornos os índios de Bananal pouco se diferenciam
das populações rurais da região. Os trajes obedecem a padrões de
origem européia: os homens usam calças e camisas de algodão; as
mulheres, vestidos de chita ou morim. Alguns poucos já se habi­
tuaram a andar calçados; a maioria anda descalça ou usa alpercatas
feitas na própria aldeia. As mulheres usam sapatos nas festas da
aldeia; nas ocasiões solenes os homens usam paletó. O uso do chapéu
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 299

também não é comum; os índios mais idosos usam chapéus de palha


e mesmo de feltro.
A maioria dos Terena já trabalhou em fazendas e procura
imitar o vestuário dos peões: a bombacha (calça larga e bordada,
cheia de pregas), e as botas de couro, de cano curto e em sanfona,
são muito apreciadas pelos jovens. Alguns usam fardas militares
compradas de segunda mão ou remanescentes de um período de ser­
viço no Exército. As crianças de menos de cinco anos andam nuas
no verão; no inverno são protegidas com camisetas de algodão teci­
das pelas índias.
O material para o vestuário é adquirido em Taunay ou Aqui-
dauana; as roupas são feitas pelos próprios índios, a mão ou a
máquina, pois existem em Bananal oito máquinas de costura (intro­
duzidas pelo S. P. I.).
Os homens aparam o cabelo na altura das orelhas, e geralmente
não costumam penteá-lo; o uso de bigodes não é comum. Alguns
indíos velhos deixam crescer a barba. As índias jovens que já esti­
veram em Aquidauana procuram imitar a maneira de vestir e de
pintar-se das moças da cidade. Algumas ondeiam o cabelo, usam
baton e carmim. Os antigos adornos de pulso são substituídos agora
por pulseiras de ouro ou douradas, com o nome gravado.
Durante as festas do bate-pau, prestigiadas pelo S. P. I., os
homens ainda pintam o corpo e se adornam com penas de ema.

Ciclo diário de atividades


O dia de trabalho comum começa bem cedo para os Terena. Ao
clarear do dia êles se levantam. A primeira tarefa é a de acender
o fogo (fora da casa) e deixar sobre o mesmo uma vasilha com água
para o chimarrão; a tarefa de acender o fogo cabe ao primeiro que
se levanta, homem ou mulher.
O chimarrão, depois de preparado, é bebido por todos os da
casa, que chupam, por turno, na bomba de chimarrão, a sua porção.
A operação é repetida várias vezes. Si houver algo guardado (carne
seca, farinha de mandioca, rapadura ou melado) fazem uma pequena
300 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

refeição. Depois os homens pegam suas ferramentas e vão para o


trabalho; quando o sol atinge o meio do céu eles regressam. As
mulheres ficam em casa, com as crianças, preparando o almoço e
cuidando da casa.
O almoço se compõe, em geral, de arroz, feijão e carne seca.
Cada membro da família se senta separado dos demais, com a sua
ração. Depois, deitam-se nas redes e dormem até que o sol se apre­
sente ligeiramente oblíquo. A estimativa depende de cada um, mas
o Posto do S. P. I. costuma fazer soar um sino, marcando o início
do segundo período de trabalho. Após uma nova rodada de mate
os homens seguem para o trabalho, onde ficam até “o sol deítar-se'
no horizonte”. Quando voltam, fazem uma ligeira ablução, trocam
de roupa, e jantam. Depois tomam mate e descançam na rêde.
Alguns saem para fazer visitas; as mulheres geralmente ficam em
casa. Ao visitante oferece-se mate, passando-se a cuia de mão em
mão, enquanto se palestra sôbre os fatos do dia.
Nos dias de chuva é algo diverso: O Terena não cuida da roça
enquanto está chovendo, a não ser que a chuva o surpreenda no
trabalho.
A mulher, após levantar-se inicia logo a tarefa de preparar algo
para o marido ou filhos. Carrega as crianças que ainda mamam ou
deixa-as sentadas no chão (as crianças mamam até os sete anos ou
às vezes até mais tarde). Vai tirar água do poço e volta carregando
os potes na cabeça. (Si o homem “tiver tempo” irá tirar água, mas
segundo vários informantes, isso raramente acontece). Após a ro­
dada de mate a mulher inicia o preparo do almoço e a limpeza da
casa. Após o almoço, prepara o mate e antes do marido ou filho
seguir para o trabalho, bebem todos, em turno, o chimarrão.
Vai depois cuidar do jantar; deixa tudo preparado; enche nova­
mente os recipientes de água; faz trabalhos de costura e fiação ou
lava e passa roupa. Há tempo ainda para pequenas visitas às
vizinhas.
Após o jantar, limpa as panelas e, enquanto o marido sai, fica
cuidando das crianças ou faz outro serviço qualquer. Espera o
marido voltar para irem dormir.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 301

Lavoura
O ano agrícola se inicia em Agosto ou Setembro, com o período
das chuvas. Nessa época os índios limpam as roças e iniciam o
plantio; é também o período das colheitas, e vai até Março e Abril,
quando findam as chuvas. De Abril a Agosto é frequente sairem
os índios para trabalhar nas fazendas vizinhas. Finalmente, com
as chuvas de Agosto se inicia um novo ano agrícola.
A ordem do plantio é aproximadamente a seguinte: em Agosto
planta-se o feijão miúdo; em Setembro, a mandioca e o milho,
iniciando-se também o plantio da cana de açúcar; em Setembro e
Outubro colhem-se a mandioca e a cana, iniciando-se a moagem da
cana e a fabricação da rapadura. Em Janeiro planta-se a banana;
em Fereveiro, o arroz e, em Março, o feijão rasteiro. Os demais
plantios não têm época determinada, processando-se, entretanto, no
período das águas.
Os Terena fazem plantios mistos de mandioca e outros produtos
para a própria subsistência; mas os produtos que lhes são vantajosos
economicamente são a mandioca e a cana de açúcar.
Calculam os Terena em duzentos cruzeiros a quantia necessária
para a limpeza e plantação de um lote (40m. x 40m<). Desde que as
terras são doadas na base de lotes, o lote (40 m. x 40 m.) passou a
constituir a unidade geral de medida. Um índio cultivará um, dois,
três ou mais lotes. Para cultivar uma extensão de terreno maior
que a de cinco lotes, êle se associará com alguns amigos, a fim de
cotizar o arame necessário para cercar a área em questão (o cerca-
mento do terreno é indispensável, desde que os fazendeiros no Sul
de Mato Grosso se dedicam em especial à criação de gado, e o gado
é deixado solto).
O arroteamento do terreno se processa de forma similar à se­
guida pelos agricultores brasileiros. Consiste na roçada e derrubada,
queimada e coivara ou limpeza da área carbonizada.
Limpo o terreno (depois de “assentada a cinza” da coivara), a
roça está pronta para o plantio. Os índios não empregam o arado
nem costumam revolver a terra antes do plantio; as covas abertas
com auxílio da enxada, são fechadas com o pé, empurrando-se a terra
por sobre a semente ou ao redor da muda, conforme for o caso. A
limpeza da roça é feita periodicamente, de acordo com a planta.
302 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S7 VOL. III

PLANTAS CULTIVADAS
Mandioca, tchupú
A mandioca, tchupú, é de primária importância para os índios
de Bananal, contribuindo grandemente para sua alimentação e renda.
Utilizam-se variedades mansas e bravas. A época do plantio vai de
Agosto a Setembro, Cortam-se pedaços do caule, de 10 a 15 em., e
faz-se o que se chama de plantio de montículo: depois de abertas no
solo as covas de 20 cm., de diâmetro, cobrem-se os buracos, até for­
mar um montículo; o caule da planta é então fincado no montículo
assim formado, deixando-se para fora cêrca de um terço de seu com­
primento. Vinte dias depois, faz-se a primeira capina.
As variedades de mandioca brava plantadas em Bananal exigem
um ano para serem colhidas, mas as raizes se conservam bem no solo
até três anos. Como as mudas de mandioca são plantadas em fileiras
paralelas, a colheita também é feita por fileiras. Um índio dirá:
“Colhi duas carreiras (fileiras). Vou fazer uma carreira de farinha/'
Na colheita o índio é auxiliado, se preciso, pela mulher e pelos
filhos; a mandioca é transportada em nimaquê (bolsas feitas com a
fibra do yuhi) da roça para as casas. Como o tempo de conservação
da mandioca, fora do solo, é limitado, o índio colherá apenas o que
vai consumir ou vender.

Fabricação de farinha
Atualmente a fabricação de farinha constitui uma das princi­
pais atividades dos Terena. O processo utilizado é semelhante ao
aplicado nas fazendas vizinhas. Depois de limpa a mandioca das
impurezas mais grosseiras, são as raizes esfregadas em raladores de
madeira, com crivos de pregos ou folhas de zinco e latão com orifícios
de bordos salientes. Em alguns-casos faz-se uso de uma roda reco­
berta com folha de flandres (cheia de orifícios de bordos salientes),
à qual se adapta uma manivela.
A massa obtida depois de ralar a mandioca denominada hihi, é
tratada em prensas de madeira, a fim de ser libertada do ácido cianí-
drico. Em alguns casos a massa de mandioca é envolvida num pano
de algodão e torcida várias vezes. O caldo extraído é aproveitado na
fabricação do polvilho, ou yumá.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 303

Depois de libertada do suco venenoso, a massa de mandioca é


deixada ao sol para secar e depois torrada em largas panelas de ferro
ou mesmo de barro.
Para fabricação do polvilho, yumá, o calda venenoso é aban­
donado numa vasilha, para sedimentação. 0 líquido é depois decan­
tado e o polvilho assim obtido é pôsto para secar.

Cana de açúcar, cana


A cultura da cana é a segunda em importância para os índios de
Bananal, que conhecem as variedades “caiena”, a “cana do Japão”
e a denominada “cana 78”. As mudas dessas variedades foram tra­
zidas de Miranda e são as que melhor se adaptam ao clima local.
Planta-se de Setembro a Novembro, colhendo-se um ano após. A
cana é utilizada na alimentação diretamente, ou moida para fabri­
cação de “garapa”, melado, rapadura e açúcar preto.
Existem em Bananal dois engenhos de ferro, no Pôsto dó S. P. I.
Entretanto os mesmo não são utilizados pelos índios que preferem
os seus engenhos de madeira, de tipo primitivo, com três cilindros
perpendiculares, e movidos a tração animal ou humana.
O açúcar preto consumido na Aldeia é fabricado pelos próprios
índios. O melado da purga do açúcar é utilizado na alimentação.
0 melado e a rapadura constituem, unidos à mandioca e à batata
doce, o forte da alimentação dos Terena. 0 processo de clarificação
do açúcar não é conhecido.

Milho, soboró
Dos tipos de milho mais empregados em suas plantações citam
os Terena o milho amarelinho, kali-hua^ e o milho de
grãos mistos, cuati-sóboró. O plantio é feito em Setembro e a colheita,
três meses após. Come-se o milho ainda verde, tostado nas brasas.
Fazem-se bolos de milho verde, chipa. O mingau de milho é deno­
minado tchomoiú. Fazem-se também pamonhas, yukui. O fubá de
milho maduro socado não é muito usado.

Batata doce, coé


Cultivam-se as variedades branca e vermelha. Planta-se espe­
cialmente nos meses de Janeiro a Março.
304 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. UI

Outras plantas
É preciso mencionar ainda outras plantas cultivadas em Bana­
nal, tais como o arroz, o cará, o feijão miúdo e feijão rasteiro, o fumo,
o algodão e a banana. O arroz é de plantio difícil em Bananal e os
resultados não são satisfatórios. Periodicamente, entretanto, devido
à insistência do S. P. I*, os Terena fazem novas tentativas. Conhe­
cem eles as variedades: catetinho, purúdceti-naketi - arroz grande,
heupidceti-naketi; e arroz dourado, kalorina. O plantio do arroz é
feito de Agosto a Janeiro, conforme as chuvas cheguem cedo qu
tardiamente. O descaseamento do arroz é feito em pilões de madeira.
O feijão rasteiro não se aclimata bem em Bananal e o seu plan­
tio não é produtivo; planta-se em Março. O feijão miúdo, que não
tem época certa para o plantio, é encontrado em quase todas as
roças. O cará é também encontrável em quase todas as roças, geral-
mente associado com a mandioca. Os plantios do fumo e algodão
são feitos em escala diminuta.
Nas roças dos Terena podem ainda ser encontradas, em pequena
escala: pimenta, teetí; pimentão, puiti-taetí; cebola, heoé, e outras
hortaliças.

EXEMPLOS DE OCUPAÇÕES ECONÔMICAS


Vamos em seguida dar alguns exemplos dos tipos de ocupações
econômicas encontráveis em Bananal.

Agricultor — José Francisco


José Francisco, “Japão”, chamado, na língua Terena, CohVilú
é descendente do chefe Terena Tovoolé. Seu avô Kaliu-ze, o Capitão
José Tavares, veio do Chaco. Seu pai, José Francisco, nasceu na
aldeia de Ipegue. Japão nasceu na fazenda “Agua tirada”, na serra
de Aquidauana, “por volta de 1890”. Aprendeu a lidar com o gado
e começou, desde rapazelho, a cuidar dos animais. Logo se distin-
guiu como amansador de potros e, segundo afirma, “ganhando a
estima do patrão”, Com a vinda de um novo administrador para
a fazenda onde trabalhava, em 1908, afirma Japão que sofreu muitos
vexames no trabalho e entrou em conflito com o administrador que
o ameaçou de “mandar surrar”. (Segundo afirmam os Terena os
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 305

fazendeiros costumavam, como castigo por alguma falta, mandar


amarrar os índios a um poste e chicoteá-los). Japão fugiu para
Nioaque e engajou-se como soldado; esperava com isso que os ânimos
serenassem na fazenda e, ao mesmo tempo, punha-se a salvo de repre­
sálias. Em 1910 deu baixa no Exército e foi para Bananal, onde
passou a residir. Gostava de trabalhar como tropeiro. Em 1913
acompanhou a Comissão de Linhas Telegráficas, sob as ordens do
General Rondon. Um ano após regressou a Bananal e casou-se,
Japão afirma que foi batizado em Nioaque, “quando ainda pequeno”.
Em Bananal entrou em contato com os missionários protestantes,
com quem aprendeu a ler e escrever; hoje êle se considera protestante.
Japão tem quatro filhos e três filhas vivos; perdeu cinco filhos
(dos quais quatro do sexo masculino). Mora em casa adobada, com
três quartos e um galpão de pau-a-pique; a cobertura da casa é de
sapé. Com Japão moram a mulher, três filhos e duas filhas. Possui
uma roça, fora do perímetro central da aldeia, onde planta man­
dioca, cana, milho e banana. Fabrica farinha de mandioca e rapa­
dura que vende aos próprios índios ou para as fazendas vizinhas.
Em troca recebe dinheiro ou carne e outros mantimentos ou ainda
roupas e utensílios. Costumava trabalhar periodicamente nas fazen­
das mas agora, afirma êle, a sua saúde não lhe permite sair de
Bananal.
Japão exerce, ainda, as funções de “chefe de polícia” de Bana­
nal, por nomeação do encarregado do Pôsto do S. P. I. Essa situação
lhe dá prestígio na Aldeia, além do que desfruta por ser considerado
capaz de curar com benzeduras aprendidas ria fazenda onde foi
criado.

Trabalhador do Pôsto ■— Eleutério Demétrio — Oroopa


Embora filho de pai caboclo e mãe Terena, Eleutério Demétrio,
Oroopa, se considera “Terena puro”. Afirma Eleutério que nasceu
na Fazenda do Toco Preto, “por volta de 1912 ou 1913”, não está
bem certo. Em 1917 foi para Bananal onde ficou vivendo com o
avô e um tio maternos. Em 1926 começou a frequentar a escola dos
missionários protestantes, onde “aprendeu a ler, escrever e fazer
contas”. Trabalhou então para os missionários, campeando animais
ou trazendo e levando correspondência. Trabalhava também com o
306 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

tio, auxiliando-o no cultivo da roça. Com cerca de 16 anos (Eleu­


tério não esta bem certo a respeito da idade) seguiu para Aquidaua-
na onde trabalhou como ajudante de pedreiro e como horticultor.
Depois de dois a três anos voltou para Bananal. Em 1930 juntou-se
a um grupo de índios Terena que seguiu para trabalhar com a Comis­
são de Linhas Telegráficas. Voltou depois para Bananal onde esteve
trabalhando até 1932, quando acompanhou o encarregado do Posto,
unindo-se aos revoltosos matogrossenses que haviam aderido à Re­
volução Paulista. Depois disso regressou a Bananal onde tem con­
tinuado a trabalhar.
Nas festas de Bananal conheceu uma índia Terena, nascida numa
fazenda vizinha, “mas criada em Bananal”. Casou-se com ela e foi
morar com o sogro para quem passou a trabalhar.
Eleutério se diz católico, porque “foi batizado quando era pe­
queno”, na fazenda onde nasceu. Seu avô, José Pereira, Xapakivi,
era médico-feiticeiro, vindo do Chaco, mas não lhe ensinou como
curar. Embora tenha trabalhado e estudado na missão protestante,
Eleutério afirma que não chegou a “aderir” embora admire muito
os missionários que são “gente muito boa”. Ê festeiro de Santo
Antônio, pois seu sogro o era.
Tem seis filhos, dos quais três do sexo masculino. Um dos filhos
está estudando na escola dos missionários, por que “a escola do
governo não está funcionando”. Mora em casa de pau-a-pique,
barreada e coberta de sapé. Dorme em jirau; “os rapazes dormem
em redes”.
Eleutério está trabalhando para o Posto do S. P. I. como diarista.
Trabalha durante dois períodos: das 16 às 11 e das 13 às 18 horas.
Recebe uma diária de 14 cruzeiros. Eleutério se queixa de que há
três anos trabalha para o Pôsto ç desde então deixou de cuidar da
roça. Falta-lhe, agora, o necessário para iniciar outra roça. Eleu­
tério embriaga-se frequentemente e por vêzes falta ao serviço por
esse motivo.

Ourives — Antonio Vicente — Pikihi


Antonio Vicente, Pikihi, tanto poderia ser apontado como exem­
plo de ourives como de ferreiro ou serrador. Nasceu êle em Bananal
“por volta de 1900”. (Não existem em Bananal registros referentes
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 307

a nascimentos sinão a partir da época muito recente, e as datas men­


cionadas dependem da memória do informante). Ainda em pequeno
acompanhou o pai para os lados de Ponta Porã e divisas com o Pa­
raguai. Voltou para Bananal com cerca de 10 anos. Aprendeu a
ler com o professor Octavio Magalhães, que visitou a aldeia nessa
época. Passou depois a frequentar a missão protestante. Com cerca
de dezoito anos começou a viajar, acompanhando expedições “pelo
gosto de viajar”; aos vinte e três acompanhou alguns missionários
protestantes numa visita que estes fizeram à aldeia dos Caduveo em
Nabileque. Aos trinta anos casou-se com uma índia de Bananal. O
casamento se realizou em Aquidauana; alguns anos depois enviuvou.
Juntou-se, depois, com uma índia e por esse motivo foi expulso da
missão protestante. (Essa última informação não foi mencionada
por Pikihí), Apesar de não poder mais frequentar o culto, Pikihí
ainda se considera um “crente”. Os católicos (não protestantes),
na sua opinião, “fazem desordem, bebem muito e mentem. Os pro­
testantes não fazem isso”.
Antonio Vicente {Pikihí} tem três filhos, dois homens e uma
mulher. Seu filho mais velho, Leão Vicente, fez parte da Força
Expedicionária Brasileira, em operações na Itália, e mora atual­
mente num lote junto ao de Vicente. A casa de Pikihí é feita de
pau-a-pique, barreada e coberta de sapé; a de seu filho porem é
adobada, pintada e coberta com telhas. No seu lote Pikihí possui
algumas árvores frutíferas e alguns pés de feijão miudo, batata doce,
mandioca mansa, milho, pimenta e tomate; além disso fora da área
central da Aldeia, possui uma roça onde planta mandioca e milho.
Faz farinha e polvilho de mandioca, que vende para Taunay ou
mesmo para os próprios índios quando estes precisam.
Nas suas viagens, Pikihí aprendeu diferentes ofícios tais como
os de ourives, ferreiro e serrador. Como ourives faz anéis, braceletes
e brincos de ouro c prata (a maioria do trabalho para atender a
encomendas de Taunay). Isso lhe proporciona, na sua estimativa,
uma média de dois cruzeiros por hora de trabalho. Acredita porém
que trabalhar com ouro “faz mal para o peito”, e por isso pretende
abandonar esse gênero de trabalho. Possui uma serraria incipiente,
na qual prepara caibros e ripas, “de acordo com os pedidos”. Uma
tora de madeira serrada, na sua estimativa, pode dar-lhe duzentos
308 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

cruzeiros. E êle explica: “Nóis pobre tem de fazê de tudo pra pode
vive”. Vicente trabalha ainda como ferreiro e mecânico, “quando
lhe surgem oportunidades”, e costuma sair para trabalhar nas fa­
zendas, no fim do período das águas, “si há serviço”. Mostra-se
desejoso de se estabelecer fora de Bananal, “numa grande cidade”,
e na ocasião estava interessado em saber o necessário para se poder
viver em Bauru.

Comerciante — Domingos Miguel — Tremelé


Nasceu em Bananal; seu pai era da classe dos Chefes, e chama­
va-se Tulomó. Até quinze anos morou com o pai, ajudando-o no
plantio da roça. Aprendeu a ler e escrever com os missionários
protestantes. Afirma ter “grande respeito pelos protestantes mas
continua católico” como seü pai o foi. Sua mãe tornara-se protes­
tante mas antes de morrer voltou à religião católica.
Aos quinze anos Tremelé começou a trabalhar nas fazendas vizi­
nhas, voltando sempre na época das plantações, “para ajudar o pai
na roça”. Por volta dos trinta anos casou-se; sua mulher morreu
deixando-lhe quatro filhos (três dos quais, do sexo masculino). Além
dos filhos moram com êle um cunhado e o sogro.
Mora em casa barreada, pintada, com um prolongamento que
estava sendo barreado na época em que o visitámos. A casa tem
dois quartos. Tremelé dorme em cama do tipo “patente”. Uma
divisão da casa é ocupada pelo seu “boliche” e está mobiliado com
um balcão de madeira, sobre o qual descança uma balança de dois
pratos, e prateleiras com artigos a serem vendidos; a um canto
empilham-se outros artigos. Miguel explicou, desculpando-se pela
“desarrumação”, que estava montando a loja. Possuia experiência
do negócio, pois já tivera açougue em 1932. Por morte da esposa
e de um filho, acabou com o negócio. Agora pretende abandonar as
demais atividades e dedicar-se exclusivamente ao comércio. No seu
boliche, Domingos Miguel vende arroz, mate, feijão, sal, querozene,
fósforos, cigarros, rapadura, caramelos e farinha de mandioca. Com­
pra dos índios e de Taunay, para revender para os próprios índios
ou para as fazendas vizinhas, quando recebe encomendas.
Domingos Miguel cultiva uma roça de 300 x 400 ints., fora da
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. UI 309

área central da aldeia, e planta mandioca e cana. Fabrica repadura,


farinha e açúcar preto.

Carroceiro — Antonio Aurélio Marcos


Antonio Aurélio Marcos nasceu em Bananal. Quando meninote
acompanhou o pai em sua mudança para Aquidauana; passou depois
a trabalhar em fazendas, transportando boiadas. Numa fazenda em
que trabalhou aprendeu a ler; comprou uma cartilha e se esforçou
até “dominá-la”. Mais tarde, tendo sido enganado numa compra
que fêz em Miranda, resolveu aprender aritmética; comprou um livro
elementar e estudou sozinho. Com o estabelecimento dos missioná­
rios em Bananal, Aurélio, que fixara residência na Aldeia, começou
a aprender na “escola dos missionários”.
Aurélio Marcos é chamado pelos funcionários do S. P. I. em
Bananal de “advogado dos índios”, tendo por diversas vezes tomado
a defesa dos interesses dos Terena nas suas questões junto aos fazen­
deiros e comerciantes de Taunay. Ligado ao capitão da Aldeia, Mar-
colino Wollily, por laços de parentesco e amizade, atuava como con­
selheiro nas decisões daquêle, passando, recentemente, a substituído.
Aurélio tem três filhos e três filhas (quatro moram com ele).
Mora em casa barreada e pintada, recoberta com telhas e com 2 salas
e três quartos. Como mobiliário possui mesas, bancos, cadeiras e
prateleiras, feitas em Bananal. Fora da área central da Aldeia cul­
tiva uma área de 8.000 m3., onde planta mandioca e cana.
Aurélio já trabalhou como fotógrafo e possui ainda duas máqui­
nas fotográficas. Mas afirma que o preço do material fotográfico
não lhe permitiu continuar. Atualmente possui uma carroça, com
a qual faz viagens da Aldeia para Taunay, três vezes por semana.
Os seus serviços são utilizados pelos índios, pela gente de Taunay
e, às vezes, pelo próprio S. P. I.. Mas Aurélio afirma que tira o
seu principal rendimento da roça.

Cesteiro — José Gardini — Kalihóo


José Gardini, Kalihóo^ nasceu na aldeia de Cachoeirinha, então
Boocoti. Conta atualmente cêrca de setenta anos. Seu pai veio do
Chaco. Kalihóo não sabe escrever nem ler e não fala o português.
310 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 9., VOU III

Afirma, contudo, ser capaz de “compreender um pouco”. Com a


idade de 12 anos acompanhou o pai em sua fuga de Cachoeirinha
para Bananal, por motivo de “perseguição dos fazendeiros”. Daí
por diante nunca mais deixou Bananal. A mulher o abandonou,
deixando-o com seis filhos, dos quais quatro do sexo masculino.
Mora com os filhos numa casa de pau-a-pique, coberta com sapé e
dotada de um único compartimento. Os vãos dos paus, nas paredes,
são tapados com folhas de palmeira e sapé. No interior da casa,
além do girau onde dormem, vêem-se amontoados alguns bancos
baixos, panelas, material para fiação e cestaria,.
Em sua roça, Kdlihóo planta mandioca brava (com a qual fa­
brica farinha) e milho Possui ainda algumas mangueiras, laran­
jeiras, feijão miudo, batata doce e fumo. Kalihóo trabalha em ces­
taria, fazendo chapéus e abanicos que “vende para a gente de Tau­
nay”. Vende cada abanico por 2 a 5 cruzeiros e é capaz de fazer
dois abanicos por dia. Faz também cestos e peneiras, conforme os
pedidos que recebe de Taunay.

Criador — José da Silva, Malambuike


José da Silva, ou Zezinho, ou ainda Malambuike, afirma que
nasceu “ou em Miranda ou em Nioaque”, não está bem certo. Seu
pai era da aldeia de Ipegue e sua mãe da aldeia de Cachoeirinha.
Malambuike foi criado na “Fazenda de São Marcos”, na raiz da
serra de Aquidauana. Alí viveu até “ficar homem em idade de
casar”, e ali aprendeu a lidar com os animais. Casou-se na “Fa­
zenda São Leopoldo”, onde fora trabalhar, com uma índia Terena,
nascida naquela fazenda. Ao mudar-se para Bananal, em 1924, já
tinha três filhas. Levou consigo algumas cabeças de gado que re­
cebeu em paga de serviços. Começou então a trabalhar para a
Estrada de Ferro Noroeste do Brasil. “Economizou” e comprou
uma carreta. Passou, depois, a trabalhar com a carreta, fazendo
transportes, para as fazendas vizinhas e às vezes para o Posto
do S. P. I..
Atualmente possui 50 rezes e tira em média 20 litros de leite por
dia. Fabrica queijo que vende para Taunay. Trabalha na roça e
afirma que “o leite dá pra vivê”.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 311

Sapateiro — Feliciano de Morais


Filho de pai português e de mãe índia Guaieurú, Feliciano de
Morais vive em Bananal por motivo de se haver unido a uma índia
Terena. Feliciano nasceu em Miranda, onde “aprendeu a ler e
contar, alguns elementos de música e a tocar piston”. Ainda mo­
cinho aprendeu o ofício de carpinteiro; trabalhou em Miranda e
Aquidauana. Mais tarde aprendeu o ofício de sapateiro. Casou-se
primeiramente com “uma branca” a quem abandonou devido ao seu
“mau procedimento”. Amigou-se, depois, com uma índia Terena de
Bananal, e desde 1938 vive na Aldeia.
Devido a um defeito no pé, Feliciano trabalha unicamente con­
sertando sapatos e arreios, e não pode trabalhar na roça. Trabalha
para atender a encomendas de Taunay e para os próprios índios.
Nos fundos do lote que ocupa possui uma pequena horta com a qual
“se entretem nas horas vagas”. Mora em casa de pau-a-pique, com
dois quartos. Num deles dois giraus servem de leito e constituem
o único mobiliário; o outro quarto é aberto para os fundos e serve
de oficina e depósito de material de trabalho.
Com Feliciano moram duas filhas e um filho. Sua última
mulher o abandonou. Feliciano diz-se satisfeito em Bananal; “em­
bora não saiba falar a língua Terena dá-se bem com todos”. Afirma
ser católico, embora mantenha boas relações com os missionários
protestantes. Feliciano atúa como curandeiro, fazendo benzeduras
e preparando remédios para os índios e peões de fazendas vizinhas.
Afirma que as suas benzeduras são boas para curar e “está sempre
disposto a ajudar sem cobrar nada”.

Pedreiro — Domingos Veríssimo Marcos — Mihi


Domingos Veríssimo Marcos, Mihi, nasceu em Bananal. É filho
de pai e mãe Terena e conta atualmente vinte anos. Mora com o
cunhado, Domingos Miguel. Aprendeu a ler e escrever na escola
dos missionários em Bananal, “quando tinha apenas sete anos”. Ao
sair da escola dos missionários, com quatorze anos, começou a tra­
balhar periodicamente fora da Aldeia, nas fazendas. Mais tarde
aprendeu o oficio de pedreiro em Aquidauana, “com o índio Jus-
tino”, para quem trabalhou como servente. Continuou, depois,
312 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

“aprendendo o ofício com o Joãozinho, filho do Aurélio Marcos”, em


Bananal. Atualmente trabalha como pedreiro e ajuda o cunhado
na roça. Pretende sair para trabalhar fora, a fim de, segundo afir­
ma, “aprender mais”.

Pedreiro — Francisco Xavier


Ê índio Terena, filho de índios Terena, nascido e criado em
Miranda. Trabalhou para o S* P. I. como pedreiro. Francisco
Xavier reside em Miranda, onde é pastor de uma Igreja Evangélica.
Costuma fazer pequenas práticas aos sábados e domingos. Fala bem
o Terena e o português. Explicando as razões por que não pode
viver em Bananal, afirma: “Eu fui criado na cidade. Tenho duas
chácaras em Aquidauana. O chefe (inspetor do S. P. I.) quer que eu
venha morar aqui. Mas não é possível. Para morar aqui eu preciso
ter trabalho. E si eu não trabalhar todos os dias não ganho o bas­
tante para viver”.

A ATUAL DEPENDÊNCIA ECONÔMICA


Examinamos até agora a vida econômica dos Terena, no pas­
sado e no presente, na Aldeia de Bananal. Resta-nos sumarizar as
mudanças observadas e discutir a situação dos Terena de Bananal.
Com a colonização das áreas adjacentes ao seu território, 110
século XIX, foram os Terena aumentando também a frequência dos
contatos com as populações de origem européia. Até meados do sé­
culo XIX o Rio Paraguai era o único caminho aberto à exploração
do Sul de Mato Grosso e os Terena desfrutavam de um relativo
isolamento. A guerra com a República do Paraguai levou as tropas
brasileiras a uma penetração em direção ao sul, através dos territó­
rios indígenas, e muitas vezes os próprios Terena tomaram parte na
luta. Desde então a colonização foi se processando mais intensa-
mente. A criação de gado, a que se dedicavam os colonizadores,
exigia cada vez maiores extensões de terra, deslocando ou envolven­
do as antigas aldeias indígenas. O contacto mais íntimo com a civi­
lização trouxe aos Terena novas necessidades de vestuário, utensílios
e alimentos. De outra parte, na região matogrossense, de população
escassa, o trabalho indígena, de fácil remuneração, era e ainda é
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. UI 313

considerado como a solução para o problema da falta de braços.


Como consequência os Terena foram se acostumando a trabalhar
periodicamente nas fazendas, voltando, contudo, para suas aldeias,
durante o plantio.
Em 1913, o estabelecimento da Estrada de Ferro Noroeste do
Brasil veio tornar mais fáceis e mais freqüentes os contatos entre os
índios do Sul de Mato Grosso e os colonizadores, ao mesmo tempo
que abria essa região à influência do suleste brasileiro, especialmente
de São Paulo e Rio de Janeiro. No tocante aos Terena de Bananal,
a estrada de ferro lhes oferecia oportunidade de trabalho bem remu­
nerado, em relativa igualdade com os trabalhadores brasileiros.
Desde então têm os Terena estado em constante contato com mis­
sionários protestantes e católicos, viajantes e mascates, sertanistas,
militares e bandoleiros.
Baseados nos recenseamentos do S. P. L e em estimativas feitas
sobre os índios que vivem fora do controle do S. P. I., podemos
calcular em cêrca de 3.000 o número de Terena atualmente aldeados
nas proximidades de Taunay, Miranda, Nioaque, e Lalima. Hoje,
os Terena de Bananal vestem trajes de feitio europeu, empregam
instrumentos tais como facões, enxadas e machados, bebem mate
chimarrão e usam técnicas agrícolas similares às dos plantadores
brasileiros; muitos dêles aprenderam a ler e escrever, quer na escola
dos missionários protestantes ou na escola mantida pelo S. P. I..
Para obter os artigos a que se afizeram e que não produzem, os
Terena necessitam trabalhar nas fazendas. A sua produção de fa­
rinha de mandioca e de rapadura não é suficiente como meio de
subsistência. A solução continua ainda em trabalhos periódicos nas
fazendas vizinhas, na Estrada de Ferro Noroeste do Brasil ou mesmo
no Posto do S. P. I. (que aliás têm possibilidades pequenas de em­
prego para os índios). Como as suas plantações só exigem cuidados
temporários, a saída periódica da Aldeia não chega a lhes desorga­
nizar por completo as roças, embora lhes limite as possibilidades do
trabalho agrícola. Segundo as informações prestadas pelo S. P. I.
em Bananal, cêrca de 100 índios permanecem mensalmente fora da­
quela aldeia, trabalhando ou nas fazendas vizinhas ou na estrada de
ferro* Essa média cai grandemente na estação das chuvas, elevando-
se, de outra parte, na estação seca.
314 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL III

Pode-se afirmar que todo o Terena possui uma plantação de


mandioca para fabricação de farinha; muitos outros plantam cana
de açúcar e fabricam rapadura. A par com essas atividades, desen­
volvem-se outras tais como as de ourives, cesteiro, carpinteiro, fer­
reiro, mecânico, serrador, sapateiro, lojista, pedreiro e alfaiate. Na
época em que visitámos Bananal, havia na Aldeia, eêrea de 6 pedrei­
ros, 3 carpinteiros, 3 ourives, 1 sapateiro, 1 cesteiro, e uma dezena
de lojistas. Duas carretas e uma carroça faziam o serviço de trans­
porte mais urgente. As costuras de roupas de homem e mulher
eram feitas em Bananal. Seis índios trabalhavam para o Pôsto e
dois índios se dedicavam a criação de gado (um dêles com 50 rezes).
Entretanto, fora as atividades de criador e plantador, as demais
raramente constituem meio de vida exclusivo. Na maioria dos casos
consiste apenas numa maneira de acrescentar mais recursos aos obti­
dos pelo cultivo do solo.
A dependência econômica em que os índios de Bananal vivem
das fazendas vizinhas e das cidades, para aquisição dos artigos a que
se afizeram e que não são capazes de produzir, obriga-os ao preparo
de farinha de mandioca e rapadura não mais apenas para o próprio
consumo mas também para a venda. Acontece, porém que a pro­
dução dos Terena é reduzida. Não se tendo adatado ainda perfeita-
mente ao sistema de trocas a que estão submetidos, o que os Terena
fazem, na verdade, é vender parte do que habitualmente consumi­
ríam. Em outras palavras, os Terena apenas produzem um pouco
mais do que necessitam para o próprio consumo, e como necessitam
obter outros produtos, vendem o que deveríam consumir. Assim é
que em certas épocas os Terena se vêm na contingência de comprar
farinha de mandioca e rapadura, das quais são os próprios pro­
dutores.
Para cobrir a diferença de sua balança de contas são os Terena
obrigados a trabalhar nas fazendas, e o fazem periodicamente. Po­
demos fazer uma estimativa da situação econômica dos índios de
Bananal, baseados nos preços dos artigos de primeira necessidade
correntes em Taunay, na época em que visitámos a Aldeia, e na
média dos salários pagos aos Terena nas fazendas.
Admitindo-se a média mensal de 100 índios trabalhando nas
fazendas, e a diária de Cr. $ 15,00, como a média paga a cada índio,
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 315

teríamos uma receita anual de 100 X 15 X 360, igual a ...........


Cr. $ 540.000,00. Entretanto essa seria a receita máxima possível,
acreditando-se que esses 100 índios estivessem constantemente tra­
balhando, sem falhar ao serviço. Entretanto, si considerarmos que
a média de cem índios indica apenas o número de Terena que per­
manecem fora da Aldeia para trabalhar nas fazendas, e não o dos
que comparecem ao trabalho; se considerarmos ainda que esse número
muitas vezes inclui mulheres, que obtém pagamento lavando roupas,
com diária menor que a de Cr. $ 15,00; e considerando ainda que
muitos índios não são regulares no serviço, e como diaristas somente
são pagos pelos dias que trabalham, somos obrigados a admitir que
dois terços da renda, que estimamos para os Terena será a mais
provável. Assim poderemos dizer que os Terena têm uma renda
anual média de 2/3 de Cr. $ 540.000,00, igual a Cr. $ 360.000,00.
Essa renda de trezentos e sessenta mil cruzeiros anuais provem do
trabalho em fazendas e na linha férrea. É preciso, contudo não
esquecer que se trata de uma estimativa.
De outra parte, obtivemos a seguinte lista de preços de artigos
de maior consumo, adquiridos pelos Terena em Taunay ou em Ba­
nanal, válidos em junho de 1947:

Alimentos:
Arroz, o litro, Cr. $ 2,00; mate, o quilo, Cr. $ 3,50; sal, o quilo,
Cr. $ 2,00; querozene, o litro, Cr. $ 5,00; fumo, em corda, o
metro, Cr. $ 15,00; sabão, o pedaço, Cr. $ 3,00; caramelos,
cada, Cr. $ 0,10; açúcar preto, o quilo, Cr. 17,00; milho o
litro, Cr. $ 1,50; banha de gado, o quilo, Cr. $ 15,00

Ve^íwrw:
Fazenda para roupa de homem, metro, Cr. $ 14,00; fazenda
para roupa de mulher, metro, Cr. $15,00 ; morim, metro,
Cr. $ 15,00; fazenda para camisas e roupa branca, metro,
Cr. $ 9,00; um par de sapatos, Cr. $ 120,00.

Instrumentos:
Enxada, cada, Cr. $ 30,00; machado, cada, Cr. $ 90,00; facão,
cada, Cr. $ 40,00; foice, cada Cr. $ 35,00.
316 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL, III

Em geral um índio adquire um novo terno cada seis meses, uma


vez que a qualidade do tecido que utilizam é precária. Os sapatos
têm duração mais prolongada, podendo-se admitir á média de tres
anos para cada par. As índias necessitam de vestidos que imitem
os vestidos usados pelas mulheres de Taunay e das fazendas vizinhas.
Entretanto ainda que a duração desses vestidos seja grande, devemos
considerar a necessidade de outros vestidos para o uso diário. De
maneira geral, podemos fazer a seguinte estimativa da despesa mí­
nima anual de uma família Terena, composta de sete pessoas:

Alimentação:
Por semana: mate, Cr. $ 3,50; sal, Cr. $ 1,00; arroz, Cr. $ 1,00;
carne, Cr. $ 8,00; banha, Cr. $ 5,00; total, Cr. $ 18,50. Por
ano, 18,5 X 52 X 100, (pois existem em Bananal 100 famí­
lias), Cr. $ 96.200,00, dispendidos com a alimentação. (Outros
artigos, como açúcar, mandioca etc., não foram computados,
desde que os Tèrena os produzem).
Vestuário:
Se adicionarmos agora os diferentes totais referentes a despesas
anual necessária para o vestuário de uma família de índios
de sete pessoas, teremos, 1.200 X 100, igual a Cr. $ 120.000,00
a despesa anual necessária para toda aldeia.
Outras despesas:
Podemos estimar como média anual necessária, de despesa,
por família., com artigos tais como fumo, pinga, instrumentos
de trabalho, querozene, enfeites e transportes, de Cr.$L500,00.
Obteremos então um total de 1.500 X 100, igual a ...........
Cr. $ 150.000,00 para toda a Aldeia.
Si adicionarmos agora os diferentes totais referentes a despesas
mínimas consideradas necessárias para toda a aldeia, no tocante à
alimentação, vestuário e outros artigos, teremos: 96.200,000 mais
120.000,00 mais 150.000,00, igual a Cr. $ 366.200,00 anuais.
Evidentemente ambas as estimativas que fizemos não passam
de “estimativas”, e se baseiam em dados mais ou menos arbitrá­
rios na falta de olitros mais positivos. Entretanto elas nos permitem
BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 317

uma certa perspectiva da situação econômica da Aldeia de Bananal.


A maior parte da renda obtida pelos Terena é gasta na alimentação,
vestuário e bebidas. Os artigos adquiridos em Taunay, Miranda,
Aquidauana ou fazendas vizinhas são, na maior parte importados de
São Paulo e,outros Estados, daí o seu elevado preço. De outra parte
o pagamento aos trabalhadores é, eti muitos casos, feito não em
dinheiro, mas em espécie. O fazendeiro adiantará ao índio roupas,
mate, machado, enxadas etc.. (As dívidas feitas assim são sempre
respeitadas).
A estimativa que fizemos mostra uma receita inferior à despesa
considerada mínima. Vemos pois que não há para os Terena de
Bananal, dentro do atual regime de vida, grandes possibilidades de
acumulação de capital.
Para compreender a presente situação econômica dos Terena de
Bananal é preciso considerar o rápido crescimento da Aldeia que é
hoje o mais populoso dos aldeamentos Terena. (Por volta do início
dêste século o número de famílias aldeadas em Bananal não ultra­
passava a uma dezena, segundo informam os antigos moradores da
região). A produção dos Terena é reduzida e não lhes permite
acumular capital. Saídos de uma economia auto-suficiente, embora
há muito em contato com os núcleos de população brasileira, os Te­
rena ainda não se afizeram ao sistema econômico brasileiro ao qual
estão ligados. Acresce ainda que o índio não é recebido em pé de
igualdade pelos trabalhadores brancos. É fácil enganá-lo, e a bebida
alcoólica é capaz de arrancar ao índio, nuns poucos dias, o equiva­
lente a um mês de trabalho.
A nova geração dos Terena vem se esforçando cada vez mais para
aprender, e as escolas do Posto e da Missão, até certo ponto, lhes
estão possibilitando esse desiderato. Há ainda a mencionar a grande
escola prática representada pela caserna, pois muitos já serviram
voluntariamente no Exército. Além do mais os Terena têm conciên-
eia de seus problemas e desejam ser tratados em pé de igualdade
pelos brasileiros.
Quanto ao trabalho nas fazendas vizinhas, regime que, ao que
nos parece, perdurará ainda por longo tempo, é preciso que se re­
lembre que os antigos Terena não agiam de forma muito diversa;
318 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

semeavam eles na estação chuvosa e, na seca, dedicavam-se à caça


e pesca. Hoje a caça e a pesca não são mais possíveis pela falta de
territórios adequados, e o trabalho nas fazendas vem corresponder,
de certo modo, a essas atividades.

MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

Pretendemos examinar neste capítulo a organização social dos


Terena, no passado, descrevendo em seguida a sua organização na
Aldeia de Bananal e discutindo as mudanças observadas.
Segundo nos adiantaram nossos informantes, no passado os
Terena dividiam-se em metades endógamas e em classes; a família
extensa constituía a unidade econômica e cooperativa; em cada
aldeia havia sempre representantes das duas metades, a dos chztmo-onô
e a dos sukiriki-onô ; cada uma das metades se subdividia em quatro •
classes, a dos nobres, a dos guerreiros, a dos plebeus e a dos escravos.
Possuíam uma nomenclatura de parentesco classifieatória, estenden­
do-se o parentesco bilateralmente. Os filhos mais velhos deveríam
suceder aos pais e eram chamados pelos demais irmãos de endjovi
(meu irmão mais velho). A família constituía a unidade econômica
dos Terena; numa casa viviam marido, mulher (ou mulheres), filhos
solteiros, filhas, genros e netos. No preparo e cultivo de uma roça o
chefe de família era ajudado pelos filhos e genros, bem como pelos
escravos que por ventura possuísse. Os primos, cruzados e para­
lelos, paternos e maternos, eram chamados de irmãos e irmãs, con­
forme o respectivo sexo, e não era permitido o casamento entre êles.

Divisão em metades
Os Terena se dividiam em metades endógamas: a dos sukiriki-
onô e a dos chumo-onô. Embora houvesse essa divisão em todas as
aldeias, a existência das metades não transparecia na distribuição
geral das casas, nem há evidência de que num passado ainda mais
remoto existisse uma sub-divisão das metades em clãs. Embora as
metades fossem endógamas, não há indícios de sanções organizadas
contra casamentos de elementos de metades diferentes. No caso de
tal casamento, os filhos do casal poderíam optar por qualquer das
metades dos pais.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 319

A divisão dos Terena em chumo-onô e sukiriki-onô se tornava


patente, porém, durante a época das colheitas, por ocasião da festa
anual dos Terena, a Oheokoti. Durante essa festa, as duas metades
deveríam assumir comportamentos opostos: os chumo-onô mostran­
do-se brincalhões e turbulentos; os sukiriki-onô, sofrendo, sem
revidar as brincadeiras dos primeiros. Uns seriam a juventude
irriquieta; outros, a maturidade.
Durante o período das chuvas, os chumo-onô saiam de casa em
casa, atirando pedaços* de pau uns nos outros, lambuzando-se com
barro e fazendo grande algazarra. Si um chumo-onô surpreendesse
um sukiriki-onô comendo a sua refeição, ele lhe entornaria o alimento
sobre a cabeça; nesses dias tudo deveria ser aceito sem revide pelos
Sukiriki~ôno. A não ser, porém, nessas ocasiões de festa, a divisão
da tribo em metades não se mostrava aparente, sinão nas ligações de
casamento e na duplicidade da chefia, desde que havia um “chefe
de povo” dos sukiriki-onô e um “chefe de povo” dos chumo-onô”.

Divisão em classes

Similarmente aos antigos Mbayá, os Terena se dividiam em


classes: a dos nobres ou “chefes de conselho” ou ainda “chefes de
povo”, unati-aché; a dos guerreiros ou chuná-acheti; a dos plebeus,
uarrerê-tchané (uarrerê, feio; tchané, gente, povo); e finalmente a
dos escravos ou cautí. Essas classes eram distribuídas entre as duas
metades; o acesso às classes era determinado ou pelo nascimento ou
por algum feito heróico, praticado durante a guerra. A classe dos
nobres ou unati-aché abrangia não só os “chefes de povo”, como
também as suas parentelas; o acesso a essa classe era pois garantido
pelo nascimento, mas em casos especiais era possível a um guerreiro
de grande valor casar-se com uma jovem unati-aché ingressando
nessa classe.
A classe dos guerreiros, ou chuná-acheti abrangia os que se
haviam distinguido na guerra e respectivas parentelas; assim uma
mulher podería ser chuná-acheti, isto é, pertencer à classe dos “che­
fes de guerra”. Mas si o ingresso na classe dos “guerreiros” era
possível pelo nascimento, era também facultado e garantido por atos
heróicos praticados na guerra. O prestígio do “chefe de guerra”,
como indivíduo, era maior que a do “chefe de povo”; mas o pres-
320 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

tígio da classe dos “chefes de povo” era bem maior que a dos “chefes
de guerra”. Qualquer plebeu, uarrerê-tckané, ou mesmo escravo
poderia ingressar na classe dos “guerreiros”, desde que demonstrasse
valor para isso.
A classe dos uarrerê-tchané se sobrepunha à dos escravos, captu­
rados nas guerrilhas. É possível que os uarrerê-tchané bem como
os escravos, cauti, fossem utilizados no preparo das plantações, mas
os nossos informantes não puderam confirmar essa hipótese. O
casamento fora das classses era, em geral, reprovado pelo grupo e
sancionado com a perda de status. Assim, diz-nos um informante,
o homem que se casasse com uma escrava seria considerado escravo
também. Os índios, eram, por vezes, obrigados à exogamia, com
relação à aldeia, desde que nem sempre era possível encontrar na
própria aldeia um cônjuge adequado.

Os médicos-feiticeiros
A instituição dos médicos-feiticeiros desempenhava parte impor­
tante na organização social dos Terena. Eram êles responsáveis pelo
bem estar físico dos índios. Castelnau constatou esse fato (41), e
as histórias que nos foram contadas sobre a morte de médicos-
feiticeiros são numerosas. Ao médico-feiticeiro, koichomuneti, es­
tavam afetas, além das tarefas de curar, as de localizar o inimigo
nas guerras e prever os possíveis resultados de uma expedição guer­
reira. Os koichomuneti atuavam também nas partidas de caça, loca­
lizando os animais procurados. Possuíam êles espíritos protetores
aos quais recorriam quando necessitavam de auxílio. Os koicho­
muneti tinham poderes sobre os vivos e mortos. Anualmente, durante
o mês de Abril, cabia-lhes reunir os índios, promovendo a festa anual
do Oheokoti, de carater religioso.

Chefia entre os Terena


Cada um dos bandos em que se dividiam as aldeias Terena
possuia um “chefe de povo”. Havia, pois, em cada aldeia, um “chefe
de povo”, ou unati-Oché, para os chimo-onô, e um “chefe de povo”
para os sukiriki-onô. A transmissão desses cargos era hereditária,
(41) Franeis de Castelnau, Expédition dans les Parties Central^ de VAmériquê
du Sud, (Paris, 1850) VoL II, pág. 475.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 321

dentro da classe dos unati-aché. No caso da morte de um unati-aché,


seu filho mais velho deveria sucedê-lo. No caso de o primogênito
não estar preparado para tanto, outro filho seria escolhido para o
cargo, desde que contasse com a aprovação da aldeia. Os irmãos do
unati-aché também poderíam sucedê-lo (42).
0 direito de sucessão era assegurado ao filho do unati-aché pela
festa do timé. Quando o primogênito já possuía “idade e juizo”
suficientes, o unati-aché fazia-o receber um manto vermelho rubro.
Por ordem do unati-aché colhia-se, primeiramente, o mel necessário
para o preparo das bebidas fermentadas. Na época fixada o jovem,
vestindo um manto vermelho-claro (a que tinha direito por nasci­
mento), dirigia-se para a casa do pai, onde se realizaria a festa do
timé. Lá chegando sentava-se ao chão; a mulher do unati-aché
aproximava-se dêle e substituía o manto vermelho claro por um
manto vermelho-rubro, característico dos “chefes de conselho”.
Em seguida era distribuída bebida aos presentes. Os convidados
presenteavam o primogênito do unati-aché, que permanecia sentado,
sem beber, recebendo as homenagens.

As reuniões do conselho
Ao unati-aché cabia zelar pelo bem estar da aldeia, dirimindo
disputas e fixando as datas para as festas e partidas de caça e
pesca. As decisões mais importantes, porém, eram tomadas nas
“reuniões de conselho” da aldeia, onde a palavra dos anciões era
sempre acatada. Nessas assembléias os dois chefes de bando ou
unati-aché ladeavam o “chefe de guerra”, chuná-acheti e eram rodea­
dos pelos Terena de idade avançada e demais índios. Um cachimbo
era preparado, aceso, e entregue ao chuná-acheti, e passado depois
aos “chefes de povo” e em seguida aos demais, na ordem de pres­
tígio de cada um. A autoridade suprema cabia ao chuná-acheti ou
“chefe de guerra”, mas essa autoridade só era efetiva nas ocasiões
de guerra ; o chuná-acheti não interferia na administração da aldeia,
senão nas discussões do “conselho”.
(42) Ilerbert Baldus em °A Sucessão Hereditária do Chefe entre os Terena \
Ensaio# d# Etnologia, Brasileira,, (Col. Brasiliana, Série 5.A VoL 101, São Paulo, 1937),
págs, 70-80, menciona elaboradamente a ordem segundo a qual se processava a sucessão
dos chefes Terena, Não faz referências, contudo, à necessidade de aprovação por parte
da aldeia.
322 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

Eleição do “chefe de guerra”

0 chuná-acheti não era cargo hereditário, mas eletivo. Para


tal posto era escolhido o mais valente da aldeia, em reunião deno­
minada Houchi-nomati-uw “festa de fazer chefe”. Reu­
niam-se todos em casa do “chefe de conselho”, unati-aché, e senta­
vam-se de acordo com a ordem hierárquica: ao centro o “chefe de
guerra”, ladeado pelos “chefes de bando”, rodeados pelas parentelas
dos chefes e pelos guerreiros. O “chefe de guerra”, que devido à
idade ou a outro motivo qualquer ia deixar o posto, levantava-se e
expunha à assembléia os méritos deste ou daquêle candidato, histo­
riando-lhe os feitos de guerra. Em seguida, com a aprovação do
conselho, o “chefe de guerra”, chuná-acheti, se dirigia para o guer­
reiro escolhido, e depois de tirar algumas baforadas do cachimbo
trazido por um escravo, ajoelhava-se e entregava o cachimbo ao novo
“chefe de guerra” que fumava também. O antigo chuná-acheti des­
pia, então, o manto de pele de onça que envergava e que era caracte­
rístico de sua dignidade, entregando-o ao novo chefe, dizendo que lhe
transmitia também as responsabilidades de guerra. Afirmam os
Terena que era tão tocante a cerimônia que o novo chuná-acheti, ao
receber o manto de pele de onça, não continha as lágrimas pois sabia
que nos combates próximos seria o alvo preferido pelos inimigos.
Ao chuná-acheti era reservado o direito de fazer soar a trompa
de guerra . Cabia-lhe não só comandar a guerra como preparar os
guerreiros. Na guerra, êle deveria seguir à frente, envergando o
manto de pele de onça. Por sua ordem, as mulheres e crianças se­
riam escondidas em lugar seguro. Coragem é destreza na guena
era o que se exigia de um chuná-acheti. Um guerreiro ou um escravo
que se distinguisse na guerra podería aspirar ao cargo de “chefe de
guerra”. Os filhos dos “chefes de guerra”, porém pertenceríam,
por nascimento, à classe dos guerreiros. E, desposando uma
unati-aché, o “chefe de guerra” podería ingressar também na classe
dos “chefes de conselho”. É de se notar que em todas as aldeias
possuiam um “chefe de guerra”. Todas, porém tinham “chefes
de bando”.
O conselho dos anciões, ou assembléias em que se reuniam os
“chefes de povo” e os “guerreiros”, parece ter desempenhado parte
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL* III 323

importante nas decisões dos Terena* Vimos como os “chefes de


guerra” eram eleitos nesses conselhos; as decisões que afetavam o
interesse da aldeia eram também tomadas nesses conselhos. Castel-
nau teve ocasião de assistir a uma reunião dessas, quando procurava
convencer alguns jovens Terena a abandonar a aldeia para trabalhar
como remadores. Castelnau relata a maneira por que um ancião falou
perante a assembléia e como três jovens que hesitavam em deixar
a aldeia resolveram, finalmente, devido às admoestações do conselho,
desistir da idéia (4S). Era nesses conselhos também que se decidiam
as guerras ou incursões em aldeias inimigas, guerras que justifica­
vam a existência de uma classe de guerreiros e que faziam parte
integrante da antiga cultura dos Terena.

Guerra

A guerra parece ter sido para os Terena um problema difícil de


enfrentar. Ao guerreiro que se distinguisse nos combates eram
oferecidas oportunidades de acesso à classe superior. A guerra era
o teste final a que se submetiam todos aquêles que mostravam valen­
tia ou belicosidade, quebrando os padrões habituais de comporta­
mento do grupo. Assim, por exemplo, o indivíduo cujo comporta­
mento prejudicasse a ordem social, deveria, no primeiro combate,
patentear a sua valentia. Em caso de realmente mostrar coragem e
de voltar com vida, tudo que houvesse feito anteriormente lhe seria
relevado. Ao Terena que matasse outro, seria exigido como condição
para seu perdão, que matasse também um inimigo, na primeira
oportunidade. Um exemplo, ainda recente poderá ser dado com o
relato de um informante Terena, sobre a Guerra do Paraguai:
“No tempo da Guerra do Paraguai, os Terena e Ca-
duveo lutavam juntos. Essa é a história de uma luta tra­
vada perto da Fazenda de Forquilha. Havia então um
homem que era muito ruim quando bebia e que havia feito
um crime de morte. Para acabar com aquelas cousas êle
devia ir para a guerra e servir de sentinela. Os índios
(43) Francis de Castelnau, Op. cit., Vol. II, púgs. 4 72-4 73.
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S24 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

costumavam brigar durante a noite e de madrugada. Eles


foram para o local da luta, Terena e Caduveo, comandados
pelos seus chefes. Lá chegando mandaram buscar o homem
que fizera o crime de morte e mandaram-no espiar as posi*
ções dos paraguaios. Êle foi e voltou. Depois, seguindo à
frente, conduziu os outros índios. Quando chegou perto
dos paraguaios atirou primeiro. Êle era valente mesmo; êle
tinha que matar um paraguaio; atirou e foi morto também.
A luta acabou logo depois. Mas si ele voltasse seria per­
doado *\
Quando iam para a guerra os Terena substituíam o xiripá que
lhes caía até os joelhos por um mais curto, o que lhes facilitava os
movimentos. A eôr de guerra era o preto. Pintavam-se de preto,
vestiam-se com um xiripá da mesma eôr. A emplumação das setas
era feita com penas de urubu, urututú. Afirmam os informantes
que as armas empregadas na guerra eram o arco, chekiê, a flecha,
chumé, a lança de arremesso, suikê, e a maça, pu’lae. Costumavam
envenenar as flechas. A sequência do combate era a seguinte: em
primeiro lugar, lançavam as flechas; depois, aproximando-se mais
atiravam as lanças e os próprios arcos que faziam de lanças; a
luta corpo a corpo, com o auxílio do pu’lae constituía a última
fase do combate. Ao penetrar na aldeia inimiga costumavam captu­
rar as mulheres e crianças. O índio que matasse um inimigo ter ia
o direito de usar, em seu diadema, uma pena amarela, de papagaio.
Os médicos-feiticeiros acompanhavam os guerreiros e faziam
previsões e augúrios. As duas histórias de guerra que reproduzimos
em seguida, e que nos foram relatadas em Bananal, referem-se a dois
períodos diferentes na vida dessa tribo, o mais remoto quando os
Terena ainda se encontravam no Chaco, e, o segundo, quando os
Terena, já em Território Brasileiro, tomaram parte na Guerra do
। Paraguai:
“Antigamente os Terena se reuniam no Chaco para
r brigar com os Ylâi, nas margens do Rio Paraguai. Os Te-
rena e os Ylái se preparavam para brigar. Costumavam
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 325

brigar de noite e de madrugada. Os Terena viviam numa


baía que tinha muito peixe. Se encontrassem os Ylái ou
os Yúaenô brigavam com êles. Então, os Terena vão fazer
pouso à beira de um córrego para apanhar peixe. Mas êles
não podem dormir sossegados e passam a noite vigiando,
poís o inimigo está no córrego e vem negaceando. Um dos
Yúaenô avistou os Terena e o inimigo toma conselho se deve
ou não atacar e vão ver se os Terena estão vigiando. Se os
Terena estiverem dormindo êles avançarão, se os encontra­
rem vigiando imitarão o assobio do macoro^i (jaó). Os
Terena ouvem o assobio e bem sabem que o uivo do lobinho
tem o mesmo sentido. O mais velho dos Terena aconselha
os demais a vigiarem, pois se adormecerem o inimigo
atacará. Quando o dia clareou, o perigo passou”.
Segundo os Terena, os Ylái e Yítaenô viviam caçando; os pri­
meiros usavam xiripá e os últimos não. Ambos eram inimigos dos
Terena. Uma outra história, também ouvida em Bananal, relata
o seguinte:
“No tempo da Guerra do Paraguai, Caduveo e Terena
lutavam juntos. Os chefes Caduveo e Terena se reuniam e
combinavam sobre a luta. Então êles disseram: “Vamos
levar a criançada para brincar lá”. Isso significava que
êles iriam levar a sua gente para lutar contra os paraguaios,
em um certo lugar. Êles estavam a caminho do local da
luta e passaram perto de um cemitério de índios. Ouviram
então o som de uma busina. Mandaram chamar o “padre”,
(médico-feiticeiro) para adivinhar. O “padre” veiu e se
adiantou do resto do grupo, olhou o sol e voltou e disse
aos chefes: “esse que está tocando busina é alma de gente
morta, e de gente que morreu há muito tempo. Porque
no meio deste grupo tem sangue”. Então a metade do
grupo ficou com medo e volto. Só uma metade seguiu,
326 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. IH

pela madrugada, para brigar. Mas dois índios morreram


e o grupo voltou derrotado”.
Os Terena admitem que nas lutas em que tomaram parte jun­
tamente com os Caduveo, o comando geral sempre coube a estes
últimos. Explicam dizendo que os Caduveo são melhores guerreiros.
Referem-se, ainda, os índios de Bananal, a um exercício prepa­
ratório para a guerra, denominado mainhú. Consistia em provas de
resistência e em combates simulados executados sob as ordens do
“chefe de guerra”. Os guerreiros saíam da aldeia pela manhã e
voltavam quando o sol já ia alto no céu. Dividiam-se em dois gru­
pos e sob as ordens do chuná-acheti imitavam as diferentes fases do
combate. Carregavam consigo um pouco d'água, “apenas para mo­
lhar os lábios”, por que a “água tira a resistência”.

Direito primitivo

Entre os antigos Terena, o assassínio, a magia negra e o adul­


tério eram os delitos mais comuns. O sistema de repressão a esses
crimes repousava na vingança pessoal e nos perigos da guerra que
deveríam ser enfrentados pelos culpados.
O assassínio, issucoti, podia ser vingado pelos parentes do assas­
sinado, dentro do prazo de um dia. Decorrido esse prazo, a vingança
não seria mais justificada e constituiría também delito punível. Mas
o assassino adquiria para com o grupo uma dívida que deveria pagar
matando um inimigo, na primeira oportunidade oferecida pela
guerra. Se bem sucedido, teria êle assegurado também o seu pres­
tígio como guerreiro, além de lhe ser relevada a culpa.
No caso de adultério, o marido ofendido deveria perseguir o
ofensor e matá-lo. Teria também o direito de matar a mulher adúl­
tera mas em geral se contentava com espancá-la. No caso de o
marido ofendido não procurar castigar o ofensor, seria alvo da
sanção satírica.
Os casos de espancamento ou brigas não saíam da órbita fami­
liar. As disputas eram resolvidas pelos parentes e amigos dos inju­
riados, e os “chefes de conselho” só interferiam como mediadores e

E ■
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 327

conselheiros. Se uma moça fugisse da casa dos pais para casar ou


viver com um homem, o pai, ajudado pelos parentes e amigos, perse­
guiría o casal; o homem seria espancado e a mulher laçada e arras­
tada ao redor da aldeia.
A magia negra era punida. Se um médico-feiticeiro provocasse
a morte de um índio, os amigos e parentes do morto poderiam matar
o feiticeiro desde que o fizessem fora da aldeia. Caso contrário a
morte do feiticeiro seria considerada issucoti ou assassinato. Os casos
de incesto eram raros. Se um índio tivesse relações sexuais com a
própria irmã, seu pai mandaria açoitar a ambos. Essa era a pu­
nição máxima.
No caso geral de um membro de uma classe casar-se com um
elemento da classe inferior, seria considerado como pertencente à
classe inferior. De outra parte, si uma mulher fugisse para casar
ou viver com um homem, seria forçada a morar em outra aldeia, pois
dentro de sua própria aldeia seria sempre passível de punição.

TERMINOLOGIA DE PARENTESCO — PARENTES


CONSANGÜÍNEOS

O sistema Terena de parentesco põe ênfase tanto nas gerações


ascendentes como descendentes (44). Na segunda geração ascen­
dente os avós são classificados segundo o critério do sexo: tanto o pai
do pai de Ego como o pai da mãe de Ego, serão chamados pelo
termo onzú. Da mesma forma tanto a mãe do pai de Ego como a
mãe da mãe de Ego, serão chamados onze. Os termos onzú e onzê
são extendidos respectivamente aos irmãos e irmãs dos avós. Assim
por exemplo, o irmão da mãe do pai de Ego, chamar-se-á onzú e a
irmã do pai da mãe de Ego chama r-se-á onze. Encontramos ainda
para onzú e onze, respectivamente, as variantes ootu e ootê, que
entretanto observam as mesmas características classificatórias.
Na primeira geração ascendente, embora a mesma tendência
classifieatória seja observada, há, entretanto, uma discrepância no
(44) Ilerbert Baldus em “Tereno-Texte”, Anfhropou (Viena, 1937), Vol. XXXII,
pégs. 528-544, estuda o sistema de parentesco do um grupo Terena, nas proximidades de
Miranda; a maioria dos informes coincidem com os que obtivemos em Bananal. Divergem,
contudo, no tocante à designação dos parentes, quando ego masculino ou feminino.
328 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. HI

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tocante ao irmão do pai e ao irmão da mãe, e também no que se
refere à irmã do pai e à irmã da mãe. O têrmo Terena para pai é
sa’a e o têrmo para mãe é eenot O pai poderá ainda ser chamado
de ta^ta e a mãe de meme, mas esses dois últimos termos podem ser
usados como tratamento respeitoso para os demais membros das duas
gerações ascendentes. O irmão do pai é chamado poi-zãaf o que
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 329

significa “outro pai”. Êle poderá também ser chamado eungo ou


lulu, ou ainda de elchovi-záa, que literalmente significa “irmão do
pai”. A irmã da mãe é designada pelo termo poi-wo, que significa
“outra mãe”. O têrmo “etchovi-eeno” é puramente descritivo. A
irmã do pai é designada pelo têrmo descritivo monguetcha*záa.
Tanto a irmã do pai como a irmã da mãe podem ser chamadas de
ongo, o que corresponde mais ou menos ao têrmo português “tia”.
O irmão da mãe é chamado ayo-eno.
330 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL HI

Embora os irmãos da mãe e do pai possam ser chamados pelo


têrmo comum eongo, parece haver uma distinção entre esses dois
parentes. Comprova-se isso pelo têrmo poi-záa, reservado ao irmão
do pai, Da mesma forma o têrmo poi-eno (“outra mãe”, na tra­
dução literal) é reservado à irmã da mãe,
Na geração de Ego, é preciso distinguir algumas diferenças,
conforme o sexo de Ego. Se Ego fôr homem, haverá distinção entre
o irmão mais velho e os mais moços, ao passo que as irmãs serão
designadas por um único têrmo. O contrário sucederá para Ego
feminino. Na linguagem masculina, o têrmo para irmão mais velho
é endjovi ou lelê; o têrmo para irmão mais moço é andi ou ati; o
têrmo correspondente a irmã, monguetchá. Reciprocamente, na lin­
guagem feminina, haverá para a irmã mais velha, o têrmo endjoví;
para a irmã mais moça, andi; e o têrmo correspondente a irmão, ayo.
O têrmo anho é coletivo para irmãos do sexo masculino.
Os têrmos usados para irmão e irmã, tanto na linguagem mas­
culina como na feminina, são estendidos aos primos cruzados e pri­
mos paralelos.
Na primeira geração descendente Ego chamará djéa ao seu
filho, e inziné à sua filha. Os filhos e filhas dos irmãos de Ego
masculino serão também chamados pelos têrmos djéa e inziné, res­
pectivamente. O mesmo sucederá com relação aos filhos e filhas das
irmãs de Ego feminino. De outra parte, os filhos dos irmãos de
Ego feminino e os filhos das irmãs de Ego masculino serão chama­
dos por um único têrmo nevonguê, sem distinção de sexo. Êste
sistema discriminatório de terminologia, conforme o sexo de Ego, é
aplicado a todos os demais parentes da primeira geração descendente,
conforme se trate dos filhos de um parente a quem Ego chame de
irmão ou irmã.
Quando necessária uma diferenciação, Ego poderá chamar aos
próprios filhos de tchetchá, e discriminar tchetchá-hoyeno, “filho
homem”, e tchetchâ-seeno, “filho mulher”.
Na segunda geração descendente só há um têrmo de parentesco,
amori. Para designar um neto do sexo masculino ou feminino, bas­
tará acrescentar, respectivamente, as partículas hoyeno e seeno,
“homem” e “mulher”: amori-hoyeno e amori-seeno.
332 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. SM VOL. III

têrmo para o marido da irmã do pai é oneá-záa9 isto é “cunhado do


pai”. A mulher do irmão da mãe é chamada yeno-lulu, (descritivo).
Na primeira e segunda gerações ascendentes os termos tata e
mente, tratamento de respeito, poderão ser estendidos aos parentes
eonsagüíneos ou afins, respectivamente do sexo masculino e feminino.
O pai do cônjuge é chamado imonjucó, e a mãe do cônjuge, imonzé.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 333

Na geração de Ego encontramos os termos yeno, esposa, e imá,


marido. Conforme o sexo de Ego variará também o têrmo reservado
para designar a “mulher do irmão” ou o “marido da irmã”: assim,
para Ego masculino, o marido da irmã será oné’a e a mulher do
irmão, enomiê; para Ego feminino, a mulher do irmão será onun-
guenâ, e o marido da irmã, enomiá. Na antiga língua Terena o
marido da irmã de Ego masculino era chamado tuiá, e o irmão da
mulher, iécoti. Atualmente os termos oné’a ou enomiá, e enomiê
ou onunguená são tanto aplicáveis ao “marido da irmã” e “mulher
do irmão”, como ao “irmão da mulher” e “irmã da mulher”.
Na geração dos filhos, aparecem os termos senená para mulher
do filho e tsina para marido da filha.
Se examinarmos as diferentes gerações na terminologia de pa­
rentesco Terena, verificaremos que, à excepção da primeira ascen­
dente, os termos são classificatórios, distinguindo-se apenas as dife­
renças de sexo. Na primeira geração ascendente há uma certa
indecisão com referência ao tratamento relativo ao irmão e à irmã
do pai, e ao irmão e à irmã da mãe. Há uma tendência para separar
o irmão da mãe, de uma parte, e a irmã do pai, de outra, do núcleo
central pai e irmão do pai, e mãe e irmão da mãe, como indicam os
termos poi-záa (outro pai), e poi-eno (outra mãe). Mas a extensão
dos termos lulu e eungo tanto ao irmão do pai como ao irmão da
mãe, e, de outro lado, a aplicação do têrmo ongo, tanto à irmã do
pai como à irmã da mãe, caracteriza tendência oposta à primeira.
Desde que sé observam diferenças nas linguagens do homem e
da mulher, no tocante à terminologia de parentesco dos sobrinhos,
podemos estabelecer os seguintes pares de termos de tratamento recí­
procos: poi-eno e inziné; poi-eno e ãjéa; poi-záa e inziné; poi-záa
e djéa.. De outra parte podemos estabelecer os conjuntos monguet-
cha-záa e nevongué; e ayo-seeno e nevongué, Há pois, dentro do
sistema, uma visível diferenciação entre tios e tias paternas e ma­
ternas.
A tendência a chamar ongo indiferentemente às tias materna e
paterna, de eungo tanto ao tio paterno quanto ao materno, só deve
ser explicada, a nosso ver, como um fenômeno mais recente, e, talvez
como tentativa de ajustamento aos atuais padrões de organização
social. Os Terena, nos últimos cincoenta anos, têm vivido em intenso
334 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III t

contato com as populações brasileiras, cuja nomenclatura de paren­


tesco não admite a diferenciação entre os tios e tias, se são paternos
ou maternos- Aceitamos, pois, como provável, a hipótese de que na
antiga nomenclatura de parentesco, os termos Terena para “pai”
e “mãe” eram estendidos, respectivamente, ao “irmão do pai” e
à “irmã da mãe”. Poderemos, então, encontrar semelhanças entre
o sistema Terena e os sistemas Cheyenne-Arapaho dos índios norte-
americanos das planícies do Rio Missouri. Em tais sistemas o irmão
do pai é designado pelo mesmo termo que o pai, e a irmã da mãe,
pelo mesmo termo que a mãe; termos diferentes são reservados ao
irmão da mãe e à irmã do pai. Na geração dos avós, são usados
apenas dois termos classificatórios, fazendo-se distinção do sexo do
parente referido. Na geração de Ego são usados termos especiais
para o irmão mais velho ou para a irmã mais velha, conforme o sexo
de Ego, Os termos reservados aos irmãos e irmãs são estendidos
bilateralmente- Os filhos das irmãs, quando Ego é do sexo mas­
culino, são chamados sobrinho è sobrinha enquanto que os filhos doe
irmãos são chamados filhos ou filhas; o inverso sucede quando Ego
é feminino.
Com referência aos sistemas de parentesco de tribos de índios
do Brasil, poderiamos mencionar as semelhanças existentes entre o
sistema de parentesco Terena e o Sistema Tupi referido por Charles
Wagley e Eduardo Galvão (46).

MUDANÇAS NA ORGANIZAÇÃO SOCIAL

A estrutura social dos Terena de Bananal apresenta profundas


mudanças com relação às formas de agrupamento básicos da antiga
cultura. Assim, desapareceram pràticamente as metades e a divisão
em classes, e a família extensa tende a se transformar em família
elementar. Os Terena de Bananal somente em parte se recordam
de sua divisão em sukiriki-onô e chumo-onâ. Ünicamente os índios
com mais de trinta anos serão capazes de indicar a classe e a metade
a que pertenciam seus pais. De outra parte, o sistema de parentesco
dos Terena mostra-se hoje grandemente influenciado pelos termos

(45) Charles Wagley e Eduardo Galvão, “O Parentesco Tupi-guarani’\ Boletim


do Museu Nacional (Antropologia, N. 6, 1946).
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 335

de parentesco usados pelos brasileiros. Os Terena são bilíngues e


usam frequentemente termos tais como “tio”, “papai”, “mamãe”,
“cunhado”, “marido”, e “mulher” de preferência aos antigos termos
Terena. E as próprias regras de incesto apresentam mudanças desde
que o casamento entre primos, em Bananal, não é raro.
As regras de casamento dentro das respectivas metades ou
mesmo das classes, de muito que não vigoram. Mareolino Wollily,
antigo capitão dos Terena, por exemplo, embora pertencendo à me­
tade dos chumo-onô, casou-se com uma índia sukiriki-onô.
E se os casos de poligamia eram comuns no passado (4$), agora
são desconhecidos na Aldeia. Os Terena alegam, com certo senso
humorístico, que a situação econômica já é bastante difícil com uma
única mulher.
O acasalamento é, atualmente, mais comum do que o casamento
legalizado pelos missionários ou pelo encarregado do Pôsto do S. P. I..
Afirmam os Terena que o casamento fica “muito caro”. O casamento
com aparatos e festas depende dos recursos econômicos das famílias
dos cônjuges. O novo casal irá morar na casa dos pais da mulher
ou do marido, indiferentemente, ou em casa próxima às daqueles.
A comparação do presente com o passado leva à constatação de
grandes mudanças na organização social dos Terena, tendentes a
aproximá-la da organização social dos agrupamentos brasileiros que
os rodeiam, no Sul de Mato Grosso. Torna-se difícil, porém, o esta­
belecimento dos estágios intermediários.
Originàriamente os Terena praticavam a agricultura, entre­
meando-a com a coleta, caça e pesca, na estação sêea. As frequentes
incursões feitas contra as suas plantações pelas tribos vizinhas
(Chiquito, Chamacoco, Guató) levou-os provàvelmente a copiar dos
Mbayá (melhor sucedidos na guerra) a sua organização militar. A
prolongada convivência dos Mbayá com os Guaná, acusada pelos
autores que escreveram sobre essas tribos, é testemunhada pela seme­
lhança de formas encontradas em muitos aspetos das culturas dos
Terena e dos Caduveo. Com o gradativo deslocamento dos Terena
para o Território Brasileiro, foram eles gradualmente sofrendo in­
fluência da organização brasileira. Os chefes Terena passaram a
(46) J, Bach, “Datas sobre loa índios Terenaa de Miranda”, Anales de la Sbciedad
Cientifica Argentina (Buenos Aires, 1916), Vol. 82, pág. 89.
336 KEVISTA DO MUSEU PAULISTA, K S., VOL. III

receber a confirmação de sua autoridade do Govêrno Brasileiro, que


somente reconhecia um único chefe para cada aldeia (47). Muitas
vêzes os “chefes’’ Terena recebiam patentes de oficiais do Exército
Imperial.
Modernamente, os índios estão sob a proteção da Lei brasileira
e sujeitos a ela* A autoridade do chefe, ou seja do “capitão” dos
índios é pequena. Na verdade êle atua apenas como representante
dos índios junto à autoridade brasileira local, à qual se submete,
Para efeitos judiciais, o índio é considerado menor de idade, e escapa,
assim, aos tribunais comuns. Quando culpado, o índio é submetido
a julgamento pelas autoridades do S. P. L. A punição pode variar
desde o espancamento (não legal dentro das Leis brasileiras, mas
efetuado às ocultas) até o exílio, Êste último castigo consiste na
transferência do índio culpado para outro aldeamento, geralmente
de índios de tribo diferente; o índio deverá trabalhar no novo aldea­
mento, recebendo pagamento pelo trabalho, mas não poderá deixar
os limites do Posto, até que termine a sua pena.
A fim de reforçar a sua autoridade, o inspetor do S. P. I. em
Bananal estabeleceu uma polícia local, composta de índios “de con­
fiança”. Constava a “Polícia”, na época em que estivemos na Aldeia,
de um grupo de índios (seis a dez, conforme cresce ou diminui a
“confiança”) chefiados pelo índio José Francisco, “Japão”. Os
elementos da “Polícia” não recebem pagamento pelos serviços pres­
tados, mas são prestigiados pela autoridade local do S. P. I.. A
polícia só é mobilizada em ocasiões de festas ou quando surge algum
acontecimento especial; a sua atuação se processa sob a orientação
direta do chefe local do S. P. L, independentemente do controle do
“capitão” dos índios. Nos casos de insubordinação, os índios são
levados pela “polícia” local para uma cadeia improvisada num
antigo galpão, nas dependências do S. P. L, e são mantidos alí por
um período que varia de algumas horas a alguns dias. No caso de
necessitar de apoio, o chefe local do S. P. L solicita a interferência
da Polícia da cidade próxima de Taunay.
A aplicação aos índios da Legislação Brasileira (com as res­
salvas de se considerar o índio menor e de se deixar a sua punição
a cargo do S, P. I.), acarreta, evidentemente o reforçamento dos
(47) Visconde de Taunay, Campanha de Matto Grosso, (São Paulo, 1923), pág. 142.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 337

padrões culturais brasileiros em detrimento dos costumes dos índios.


Os Terena afirmaram-nos, várias vezes, não compreenderem como
o defloramento, da esfera dos assuntos familiares e destinados a
serem resolvidos entre as famílias interessadas, possa constituir
objeto de interferência do S. P. I. e ser passível de punição.
A instituição dos médicos-feiticeiros subsiste ainda, paralela­
mente com as atividades das missões religiosas, católicas e protes­
tantes (multi-denominacionistas). Mas as atividades outrora reser­
vadas aos médicos-feiticeiros, de guardiães dos mitos e lendas dos
Terena, cabem agora às duas escolas existentes no Posto, e mantidas
respectivamente pelo S. P. I. e pela South America Indian Mission.
Finalmente, as antigas danças e jogos dos Terena vão sendo grada­
tivamente substituídos por danças e jogos dos brasileiros. Hoje, o
futebol e os “bailes” ao som das violas e sanfonas, despertam enorme
interesse entre os Terena e contam com a participação dos elementos
da nova geração, embora sejam reprovados pela geração mais velha.
As principais mudanças ocorridas na organização social dos Te­
rena podem, a nosso ver, ser explicadas da seguinte forma:
Ao se deslocarem para o Brasil tiveram eles a sua economia
(baseada na agricultura combinada com a caça, pesca e coleta), gran­
demente desorganizada; não lhes era possível caçar, pois o territó­
rio em que viviam foi, pouco a pouco, envolvido pelas fazendas de
criação de gado; seus plantios eram limitados e insuficientes, pois
o solo que passaram a ocupar é bastante pobre. E com a aquisição
de número cada vez maior de elementos culturais brasileiros, viram-
se os Terena na crescente dependência econômica dos fazendeiros
para quem foram forçados a trabalhar. Os Terena apresentam em
sua cultura uma pluralidade de formas que testemunham o crescente
processo de aculturação por que passaram e por que estão passando
ainda. Nas suas casas, as panelas de barro e as cabaças se empilham
de mistura com panelas de ferro, latas de conserva e garrafas de
vidro. O mesmo se observa com relação ao vestuário, às danças e
aos jogos. Êsse processo de mudança se tem acelerado nos últimos
trinta anos, sob a influência, conciente ou inconciente, dos missioná­
rios (católicos e protestante), do Serviço de Proteção aos índios, e
dos comerciantes e fazendeiros das áreas vizinhas. Temos pois que
examinar a situação atual na base desses três grupos de fatores.
338 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

O Posto do S* P. I. em Bananal

O Serviço de Proteção aos índios mantém em Bananal um


Posto com um pequeno rebanho de cerca de duzentas reses, e com
recursos técnicos tais como instrumentos agrícolas, pregos, arame
farpado, etc., que são emprestados aos índios, O representante do
S. P. I, vive em Bananal com sua respectiva família. Para garantir
a ordem mantém uma “polícia” indígena, e somente em casos extre­
mos é que a intervenção da polícia de Taunay é solicitada.
Quando necessitados os índios prestam serviços como diaristas
no Posto, e são pagos com “coupons” que lhes permitem a retirada
de gêneros nos armazéns de Taunay. A assistência médica propor­
cionada pelo Posto é quase nula, desde que o mesmo não possui os
recursos necessários. Em caso de acidente que exija intervenção
médica, o doente é conduzido para Aquidauana. O Posto possui
uma escola primária, fundada em 1936.

Influência dos missionários

As missões religiosas interessadas atualmente nos índios de


Bananal são a South' America Indian Mission, de missionários pro­
testantes multidenominacionistas, norte-americanos, e a dos padres
Rendentoristas, norte-americanos^ sediados, êstes últimos, em Aqui­
dauana. Os missionários católicos estão em contato periódico com a
Aldeia, visitando-a uma vez por mês, e suas atividades se limitam
aos ofícios religiosos; os missionários protestantes, porém, mantêm
contato diário com a Aldeia, onde, auxiliados pelos índios, construi­
ram uma escola e uma igreja. Junto aos missionários protestantes,
de outra parte, os índios obtêm auxílio médico e instrução, gratui­
tamente. O ensino na escola dos missionários é ministrado em por­
tuguês, com auxílio de professores nativos, com suficiente conheci­
mento dos idiomas Terena e português. Os missionários protestantes
verteram para a língua Terena o Evangelho de São João, que dessa
maneira, é ensinado aos índios em seu próprio idioma. *
Atualmente Bananal se acha dividida em dois grupos princi­
pais : o dos protestantes, e o dos católicos ou não protestantes. Com
a identificação da escola dos missionários da South America Indian
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8,, VOL. III 339

Mission com o grupo que prefere as suas idéias religiosas, a escola


oficial do Posto foi identificada com o grupo de índios denominados
católicos, ou seja, o dos não protestantes.

A escola

Os dois grupos, protestante e católico, frequentam respectiva­


mente a escola dos missionários e mantida pelo S. P. I. As matérias
ensinadas em ambas são semelhantes. A escola evangélica (a dos
missionários), contava com duas professoras, auxiliadas por profes­
sores nativos devidamente treinados; o Evangelho era incluído entre
as disciplinas lecionadas. A média anual de alunos era, nos últimos
anos, de uma centena (tendo-se atingido em 1936 a 120). A escola
do Posto, fundada em 1936, conta com duas professoras e com uma
média de 40 alunos; a regularidade das aulas é menor, embora as
instalações sejam melhores que as da escola evangélica. Há grande
competição entre as duas escolas; a frequência a ambas é gratuita,
mas a inclusão de uma criança Terena numa ou noutra escola, é
interpretada como a adesão dos respectivos pais ao grupo represen­
tado pela escola, isto é, ao grupo protestante ou ao não protestante.-
Quando um índio se indispõe com as autoridades do Posto ou com
os missionários protestantes, faz com que o filho troque de escola.

Divisão em católicos e protestantes


Aos índios protestantes de Bananal se exige que não fumem,
não bebam e não freqüentem os bailes e danças da aldeia. De outra
parte afirma-se que os índios do grupo católico “consomem todo o
álcool que conseguem adquirir” na cidade de Taunay ou nas fazen­
das. O comportamento dos dois grupos lembra, de certo modo, a
antiga divisão cerimonial dos Terena em chumo-onô e sukiriki-onô ;
na verdade essa divisão se reflete nos divertimentos e jogos. Exis­
tem, por exemplo, em Bananal, dois quadros de futebol: um pro­
testante e outro católico. Entretanto, a identificação dos dois gru­
pos com a antiga divisão em metades seria perigosa.
Um índio católico, ao manifestar a sua opinião sobre o grupo
protestante, depois de assegurar que eles (protestantes) não respei­
tavam os próprio mandamentos, pois iam “beber e dançar”, acres-
340 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

centou: “êles vivem deflorando moças, (alusão aos casos de deflo­


ramento de índias, em que se viram envolvidos índios do grupo
“protestante”). Os católicos quando querem casar pedem logo a
moça; não fazem esses papéis”. ‘
De outra parte, um índio protestante explicou dessa forma a
.diferença entre os dois grupos: “Não tem diferença de índio cató­
lico e índio protestante; somos o mesmo que antes. Só que êles
(católicos) bebem muito”.
A divisão existente entre católicos e protestantes poderá ser
melhor compreendida se observada dentro do conjunto das aldeias,
cidades e fazendas que rodeiam Bananal. Os índios protestantes
constituem maioria em Bananal, mas minoria considerando-se a tota­
lidade dos índios Terena. As aldeias de Ipegue, Cachoeirinha e
Lalima são, na grande maioria, não protestantes, e, portanto “cató­
licas”. Uma tal situação provoca nos índios de Bananal um senti­
mento de unidade e uma maior tendência a se opor à pressão econô­
mica e social dos grupos brasileiros. Há mesmo um menor número
de acasalamentos entre índios e brasileiros em Bananal que nas de­
mais aldeias. Em 1933 os índios de Bananal se opuseram à pene­
tração de suas terras pelos fazendeiros vizinhos. Os Terena de
Bananal adquiriram, desta forma um maior auto-respeito e maior
conciência dos próprios problemas que as demais aldeias Terena.
Mas o grupo de índios protestantes não é bem visto pelos fazendeiros
e comerciantes vizinhos e há muitas razões para*isso; os índios de
Bananal adquiriram novos padrões de comportamento e tendem a
escapar à ordem das relações a que haviam chegado fazendeiros e
índios e que eram as de proteção-obediência; em segundo lugar, os
índios protestantes não contribuem para o comércio de Taunay no
que se refere ao consumo de álcool.

Relações com as fazendas

A área de terra reservada pelo S. P. I. aos Terena confina com


várias fazendas e com a própria cidade de Taunay. A região não
se presta à agricultura e os fazendeiros se dedicam à criação de gado.
Nessas fazendas há sempre necessidade de trabalhadores e a maioria
dos Terena costuma, periodicamente, buscar trabalho como peões.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N; S., VOL. III 341

De outra parte, os Terena vendem às fazendas, a farinha de man­


dioca e rapadura que produzem. Nas fazendas os Terena aprendem
costumes brasileiros que, pouco a pouco, vão adotando.
A maioria dos índios de Bananal conhece o Sul de Mato Grosso,
tendo visitado as cidades de Taunay, Miranda, Aquidauana, Campo
Grande, Dourados e Corumbá. Alguns conhecem Bauru, no Estado
de São Paulo e ponto terminal da Noroeste do Brasil.
Os índios visitam freqüentemente Taunay e Aquidauana para
fazer compras. Nas festas de São Sebastião (20 de Janeiro), Santo
Antônio (13 de Junho) e São João (24 de Junho) e ainda, no Dia
do índio (19 de Abril), Bananal recebe numerosos visitantes, não
só de Aquidauana, Taunay e Miranda, mas ainda de Campo Grande.
Embora sejam freqüentes e variados os contatos com as comunidades
brasileiras, os Terena ainda não estão assimilados, files se consi­
deram “índios” e se identificam com outros agrupamentos não Te­
rena. Falando, por exemplo, dos Caduveo ou dos Quiniquinao, o
Terena dirá: “meus patrícios”. Interrogado a respeito, o índio de
Bananal dirá: “Sou índio Terena”. file dirá: “os índios” e “os
brasileiros”. Uma das razões para isso é que o índio é tratado como
inferior; pareceu-nos haver, nas cidades vizinhas de Bananal, maior
discriminação com relação ao índio do que com relação ao negro,
(Há nas cidades vizinhas alguns médicos e advogados de côr, rela­
tivamente bem aceitos pela população).
Um Terena explica assim a situação: “Fazendeiro, antigamente,
meu pai contava, pegava os índios para escravo. Até já no meu
tempo, (êle tem de 50 a 60 anos), pegavam os índios dizendo que
eram ladrão. Agora ainda dizem que índio é ladrão. Os índio
agora é sempre amigo dos fazendeiro. Os fazendeiro velho já
morreu todos e os filho dos fazendeiro não se importa com os índio.
Trata nois a mesma cousa que os branco. Só que os índio não sa­
bendo ler, tem que comer numa mesa separada. Em Taunay tratam
a gente mal, talvez porque a gente é pobre”.
Para os brasileiros das comunidades vizinhas, o índio é “bêbado,
ladrão e vagabundo”. Há poucas oportunidades para o Terena. Os
fazendeiros o tratam com superioridade protetora mas sem admissão
de igualdade possível. O índio é o elemento que domina o mercado
de trabalho. As fazendas vizinhas necessitam de braços e os índios
342 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 81, VOL. III

possuem um padrão de vida suficientemente baixo para se tornarem


mercadoria procurada.
Para resumir, constatamos o desaparecimento das antigas divi­
sões dos Terena na base de metades, classes endógamas e a sua
substituição por uma organização social em moldes semelhantes aos
das comunidades brasileiras. Há, entretanto, uma divisão da aldeia
em “protestantes” e “católicos” que não deve ser confundida com
a antiga divisão em metades. Esta era, a nosso ver, antes cerimonial,
e a divisão em “protestantes” e “católicos” tem bases religiosas e
políticas, pois representa, de certa forma, a oposição dos Terena,
na pessoa do seu antigo capitão Marcolino Wollily e de seus lide­
rados, contra os “católicos” que abrangem os brasileiros em geral
e os índios submetidos.
0 inevitável enfraquecimento da liderança tradicional dos Te­
rena, devido ao controle protetor do S* P. L e à influência dos mis­
sionários e populações brasileiras, em geral, deve ser considerado
como fator importante nas mudanças da sua organização social. De
outra parte, eles não encontram expectativas de comportamento favo­
ráveis por parte dos agrupamentos brasileiros que os rodeiam. Os
Terena possuem características físicas que facilitam a sua identifi­
cação étnica, e as expectativas de comportamento com referência aos
índios são as de que eles se portem como “bêbados”, “preguiçosos”
ou “ladrões”. Em outras palavras, os Terena não são aceitos pelos
agrupamentos brasileiros, o que os leva a se considerarem “índios”,
identificando-se com os demais índios. De outra parte, a tutela do
S. P. I., procurando reviver alguns traços isolados da cultura Te­
rena, tais como as festas do “bate-pau”, cria um ambiente artificial
para a Aldeia, adiando a solução do dilema indígena: assimilação e
desaparecimento ou constituição de uma nacionalidade.

Mudanças no Ciclo de Vida

Pretendemos descrever neste capítulo, na medida que no-lo


permitirem os informes obtidos junto aos Terena de Bananal, as
principais etapas do ciclo de vida desses índios, no passado e no
presente.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL, III 343

Nascimento, hipuhicoti-hiurá
O nascimento, entre os antigos Terena era acontecimento de
grande importância, cercado de rituais mágicos. Marido e mulher
se submetiam a um jejum protetor. A parturiente era assistida
pela mãe, mème, e pela mãe do marido, imonzé, No caso de não
ser a criança desejada, a mulher dava à luz em lugar afastado da
casa. Bach refere-se a parturientes que davam à luz em covas adrede
preparadas e examinavam o sexo da criança para decidir sôbre a sua
vida ou morte (48). Referências sôbre o aborto generalizado são
feitas por Taunay (4Ô) e Baldus (50).
Após o nascimento da criança, o cordão umbilical, uró, era
cortado pelo marido. O marido sem filho era chamado imá; ao
nascer o primeiro filho passava a ser chamado de háa. Após o
nascimento da criança o marido ía em busca de palmito de bocaiuva,
que se acreditava auxiliar a parturiente na amamentação do filho.
O marido ou a própria mulher lavava a criança. A mulher repou­
sava seis dias. Baldus menciona proibições alimentares para o casal,
durante a gravidez, e a reclusão do marido, após o nascimento do
filho (51).
Quando o umbigo, uró, caía, era guardado para auxiliar os par­
tos difíceis; se uma mulher tivesse alguma dificuldade durante a
gravidez ou ao dar à luz, amarrava à cintura um uró já ressecado.
O nome seria dado à criança pelos avós. A criança era carregada
às costas pela mãe, em um cesto preso à fronte ou ao peito por meio
de uma faixa denominada apoone. As crianças eram amamentadas
até idade superior a cinco anos. Gêmeos eram mortos ao nascer,
por enforcamento. Nos casos do nascimento de gêmeos, hapaparu-
kalivono, a parturiente enrolava à cintura um uró ressecado.
Observamos que durante a gravidez a mulher e o marido toma­
vam medidas protetoras, tais como a abstenção de certos alimentos;
a criança e os pais são considerados em estado de perigo. Durante
(48) J. Bach, 14Datas sobre loa índios Terenas de Miranda"1, Analet de la Soeiedad
Cíentifica -Argentina (Buenos Aires, 1916), Vol. 82, pág. 89.
(49) Visconde de Taunay, Campanha de Matto Grosso (São Paulo, 1923), pag. 141.
(50) Herbert Baldus, .Ensaios de Etnologia. Brasileira, (Col. Brasiliana, Ser. 5.a,
Vol. 49, Sao Paulo, 193?}, pág. 73.
(51) Herbert Baldus, Op. cit„ pág. 72.
344 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

a gravidez, o uso do uró facilitará o parto e protegerá a parturiente


e a criança. -
A incorporação da criança à família se inicia com a assistência
prestada à parturiente pela même^ mãe, e imonzé, mãe do marido.
O ato de incorporação da criança ao grupo é completado pelo pai
ao cortar o cordão umbilical, desligando simbolicamente a criança da
parturiente. Finalmente, a união da criança com as gerações pas­
sadas é feita por meio do nome, escolhido pelos avós, e referente a
algum antepassado.
Atualmente os Terena ainda observam algo do antigo ritual com
relação ao nascimento. Mas, como medida protetora preferem recor­
rer aos missionários protestantes ou aos médicos-feiticeiros ou benze-
dores locais. Embora o nascimento continue a constituir uma situação
de perigo, as medidas protetoras são outras. O corte do cordão
umbilical, agora, é feito pela mulher ou pela pessoa prática em par­
tos que atende a parturiente. A integração do recém-nascido na
vida social se faz por meio de uma festa, si os recursos o permitem,
ou por meio do batismo, ou ainda, mais geral, informalmente.
O aborto continua a ser praticado e os métodos ainda são os
mesmos: chás e outras beberagens preparadas pelos médicos-feiticei­
ros. De outra parte também se pratica o infanticídio. O Serviço de
Proteção aos índios e os missionários protestantes têm contribuído
para diminuir essas práticas.

Puberdade
Nada sabemos sobre ritos iniciáticos com referência aos meninos
Terena e nada nos foi possível obter a respeito junto aos informantes
de Bananal. Sabemos, contudo, que as jovens Terena, ao sofrerem
a primeira menstruação, passavam por uma cerimônia denominada
yoti. Consistia, em desnudar-se a jovem, pintar o corpo e sentar-se
de pernas cruzadas num tapete de piri. Mulheres, parentes da
jovem, sentavam-se em derredor. A notícia era anunciada por meio
de uma sineta, kohé, presa à porta da casa e sacudida por uma
mulher de idade da classe dos uarrerê4chané, Em se tratando da
filha de um chefe, a festa do yoti era celebrada de forma mais solene.
As mulheres da tribo viríam, uma a uma, e atirariam sementes sobre
a cabeça da jovem e lhe fariam presente de tufos de algodão.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 345

Durante a menstruação as mulheres não poderíam ir ao rio


lavar-se, pois irritariam hihiai-uné, a “mãe d água”, que, em repre­
sália, provocaria chuvas muito fortes; durante êssc período a mulher
ficava reclusa.

Casamento, coiênoli
O casamento, ou coiênoti parece ter constituído acontecimento
de relevância para os antigos Terena. Por meio do casamento, por
exemplo, podia um “guerreiro” ascender à classe dos “chefes de
conselho”. Como regra geral, a combinação de um casamento,
coiênoné, era matéria da competência dos pais dos noivos, e ocorria
quando o menino ou a menina não haviam ainda atingido a puber­
dade (52). O coiênoné se realizava mediante troca de presentes e da
seguinte maneira: Os pais do noivo enviavam um emissário, geral­
mente um escravo, à casa da noiva. O emissário, yuhócoti, dizia aos
pais da noiva: Haranziminó viarünoetchá, que numa tradução livre
significa “clieguebpara tratar da mocinha”. O pai da moça respon­
dería: Unati enomonécopó, “bom, eu recebo". Após combinado o
casamento realizava-se troca de presentes. A época do casamento
dependia da puberdadade da jovem; quando esta ocorria, fixava-se
a data para o casamento, iniciando-se a coleta do mel necessário à
fabricação das bebidas.
As maneiras particulares segundo as quais se realizava o casa­
mento dependiam evidentemente do status dos pais dos noivos. O
casamento de um Terena pertencente à classe dos guerreiros, foi
realizado da seguinte forma: Em época oportuna, o pai do noivo,
precedido por três guerreiros, dirigiu-se para a casa da noiva. Os
guerreiros iam vestidos com saiotes de penas de ema, diadema de
penas do mesmo material e alpercatas de couro, e carregavam arcos,
flechas e lanças. Ao chegar à casa da noiva os três guerreiros cairam
de joelhos diante do pai da noiva e solicitaram fosse marcado o dia
do casamento, dizendo: Epemoponoati geái akeaicathé apeiacumo
coiênoti, isto é, “pedir que dia vai ser casamento”. O pai da noiva
(52) J. Bach, Op. eit., Vol. 82, pág. 89, menciona a realização do casamento de
Terena em qualquer idade. Parece-nos provável que o referido autor tenha confundido o
casamento com a simples combinação de casamento.
346 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

estendeu no chão um tapete de piri, kit uri, e êle e o pai do noivo,


sentados, discutiram a época mais conveniente para a coleta do mel.
Quando o mel, mopó, já estava colhido e preparadas as bebidas,
os três guerreiros conduziram o noivo à casa da noiva, vestidos da
mesma forma descrita acima. Ao chegar, disseram: Haranguri
coponô homoehó tcháuti, “vimos trazer este nosso filho”. O pai da
noiva agradeceu, ainapoiákuê. Em seguida a noiva e o noivo sen­
taram-se juntos num hituri, (Mais reeentemente substituiu-se o
tapete de piri, hituri, pela rêde). Os três guerreiros permaneceram .
ajoelhados e recebiam bebidas em pequenas cabaças; êles foram os
primeiros a beber e o fizeram até se embebedarem.
Um casamento realizado em fins do século passado, na área da
atual aldeia de Bananal foi nos relatado da seguinte forma: Tra­
tava-se do casamento de um índio da classe dos “chefes de conselho”.
No dia marcado, já pela manhã começaram, os festejos na casa da
noiva, com o concurso de tocadores de flauta e de caixa. Um abrigo
coberto de folhas de palmeira foi preparado para as danças. Os
emissários do pai da noiva foram buscar o noivo e este seguiu acom­
panhado dos seus pais; ao chegar, foi o noivo recebido pela noiva,
e ambos se dirigiram para uma rêde onde se sentaram, apoiando os
pés num hituri. O pai da noiva disse então para o noivo: cotche-
etchá guichopine, “você ficou meu filho”.
Em ambos os relatos observamos: 1) a combinação prévia do
casamento, matéria da alçada dos pais dos noivos; 2) em ambos os
casos o noivo é acompanhado até a casa da noiva, onde vai para
ficar integrado na família da mulher; 3) o tapete de piri, ou hituri
parece simbolizar o novo casal, desde que o Terena nascia, vivia e
morria sobre um hituri; 4) a coleta do mopó, feita pelas famílias
dos noivos, antes do casamento, pode ser interpretada como o símbolo
da nova aliança cooperativa; 5) o casamento era sancionado pelo
pai da noiva.
Atualmente o casamento se encontra bastante simplificado. Há
mesmo o padrão “amor romântico”; Baidus, por exemplo, descreve
a maneira pela qual um Terena da aldeia Moreira, próxima de Ml
randa, corteja e consegue a sua desejada. O jovem que pretende a
moça, segundo Baidus, diz-lhe: “Quero; amo esta mulher; queria
estar casado: quero, quero, amo”. A moça, estando de acordo, declara
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU III 347

simplesmente “quero”. Em seguida os pais trocam presentes e tra­


tam do casório (53).
Em Bananal, atualmente, há também um namoro prévio. O
jovem faz o pedido aos pais da noiva, ou pessoalmente ou enviando
emissários. A mancebia, oontudo, é mais comum que o casamento
oficializado. Os Terena afirmam que o casamento “fica muito caro”
e que o simples acasalamento, sem comunicações e sem festas é a
solução mais satisfatória. No caso de um jovem ficar noi^o, perma­
nece nesse estado até ajuntar o dinheiro necessário; casa-se, depois,
no civil (isto é, no cartório de paz) ou faz um registro de casamento
junto ao encarregado do Posto do S. P. I. Poderá, depois, casar-se
no religioso, com auxílio dos missionários, católicos ou protestantes.
Se o casamento religioso se realiza, os índios procuram seguir os cos­
tumes brasileiros, na extensão de suas posses. A noiva vestir-se-á
de branco e usará véu; o noivo porá um traje domingueiro, camisa
e gravata.
Morte, okôovoti
Quando morria um índio, os parentes procuravam cortar todos
os laços que os uniam ao morto, com medo de morrer também; as
crianças, em especial não deviam se aproximar do morto ou vê-lo.
Ao ser transportado para o lugar de enterramento, o morto era car­
regado por pessoas idosas, que com a idade possuíam uma certa
imunidade contra os poderes mágicos maléficos do morto. Envol­
via-se o índio numa esteira e nela era levado. Ao seu lado, no local
de sepultamento, peatcholi, eram deixados os objetos de uso do morto.
Os Terena costumavam fazer um velório; as mulheres, ligadas
por parentesco ao morto, despiam-se, cortavam os cabelos e choravam
aos gritos. Esperava-se da esposa e da mãe as maiores manifestações
de dor, antes do sepultamento. O médico-feitíceiro seguia antes do
sepultamento a fim de avisar aos demais mortos que mais um lhes
iria “fazer companhia”; o médico-feiticeiro seguia, depois, com o
morto, e era o último a sair.
Abria-se uma cova no chão, e o morto era enterrado com a
cabeça voltada para o ocidente e os pés para o oriente; ao se despren­
der do corpo, a alma do morto se dirigiría para o Chaco.
(53) Herbert Baldua, Op. cü., pága. 72 e 73.
348 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

Os pertences do morto que não eram enterrados com êle eram


queimados ou distribuídos a pessoas não aparentadas. A casa do
morto era destruída pelo fogo ou tinha a porta trocada, a fim de não
ser reconhecida pelo morto, caso voltasse a buscar algum parente.
Baldus menciona a mudança de nomes dos filhos, o que não se faz
quando um dos cônjuges já morreu (M). Segundo a nossa opinião,
neste caso é evidente a idéia de que o morto não precisa mais de
companhia.
Atualmente os Terena são enterrados em cemitérios semelhantes
aos dos brasileiros. Existe, a cerca de um ou dois quilômetros de
Bananal um cemitério Terena, onde se pode observar em cada túmulo
uma cruz. O cabelo já não é cortado como prova de luto e este se
assemelha ao luto usual das famílias brasileiras.

MUDANÇAS NAS CRENÇAS E MITOS DOS TERENA


Pretendemos examinar, neste capítulo, as crenças e mitos dos
Terena, no passado e no presente, procurando analisar as mudanças
constatadas.
Na extensão do que nos foi possível obter junto aos nossos
informantes em Bananal, podemos afirmar que os Terena possuíam,
no passado, um conjunto de crenças e práticas inter-relacionadas,
perfeitamente integrado na sua cultura. Reconheciam eles uma
alma, hoipihapati, para as pessoas, animais e plantas. Havia outros
sêres sobrenaturais, maus e bons, como os heróis-gêmeos Yurikoyu-
vakai ou os espíritos das águas Voropi e Hihíai-uné. Acreditavam
ainda que certos objetos e plantas possuíam poderes mágicos. -
Apesar de havermos, em trabalho já publicado (55), mencionado
a crença dos antigos Terena em um Deus supremo, Itukovitche, po­
demos afirmar que se trata da introdução de um elemento novo na
cultura dos Terena. Taunay refere-se ao uso, pelos Terena de Mi­
randa, das palavras nhande-iára, emprestada dos Caiuá, e echai-
uanuché, “que está no céu, esta última lembrando a tradução literal
(54) Herbert Baldus, Op. cü.t pâg. 72. O autor mencionado não interpreta, da
mesma forma que fazemos, a mudança de nomes. Também os relatos de Baldus, quanto
ao sepultainento dos antigos Terena diferem do que obtivemos.
(55) Fernando Áltenfelder Silva, “Terena Religion”, Acta Americana/ Vol. 4,
N.° 4, (1946) pág. 214.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 349

para o Terena do conceito cristão da divindade (50). O vocábulo


Itukovitche significa “que nos fêz”, e não era conhecido no passado
com o sentido de ser supremo. Bach, em seu pequeno vocabulário
da língua Terena cita a palavra guarani tupa, como versão Terena
de Deus (57).
Os Terena eram animistas; o hoipihapaii é algo que sobrevive
às pessoas, plantas e animais. Assim, nós o veremos, o médico-feiti-
ceiro será visitado pelo seu espírito protetor, o hoipihapati de um
animal ou planta, ou ainda de outro médico-feiticeiro já morto.

ANTIGOS MITOS TERENA

Yurikoyuvakai, o herói civilizador


Tudo o que possuem os Terena atribuem aos heróis-civilizadores,
os gêmeos Yurikoyuvakai, cuja origem é relatada no seguinte mito:
“No princípio havia um único Yurikoyuvakai que vivia
com sua irmã Livetclietchevena. Yurikoyuvakai cortava o
raio do mundo. Sua irmã plantou uma árvore, e quando
esta frutificou, Yurikoyuvakai roubou o fruto. Livetche-
tchevena zangou-se e cortou-o pelo meio. Da parte de cima
cresceu um Yurikoyuvakai; da parte de baixo cresceu outro.
Mas o primeiro era quem mandava”.
Há uma outra versão do mesmo mito, no qual Lwetchetchevena,
abrindo o próprio ventre, origina outro Yurikoyuvakai.
Outro mito conta como os Terena foram encontrados por Yuriko­
yuvakai que lhes fêz presente do fogo:
“Yurikoyuvakai andava por cima dos Terena. Yuriko­
yuvakai era uma lacraia que queria ir com a mãe na roça.
Esta não queria que o filho fosse. Yurikoyuvakai insistiu
em acompanhá-la, e a mãe zangou-se, cortando-o ao meio.
Ficaram então dois Yurikoyuvakai; êles já eram irmãos. Os
dois Yurikoyuvakai faziam armadilhas para apanhar pas-
(56) Visconde de Taunay, Campanha de MaÜo Grosso, (Livraria Globo, São Paulo,
1923) pág. 132.
(57) J. Bach, “Datas sobre loa índios Terenas de Miranda”, Andles de la Sociedad
Cientifica Argentina, (1916, Buenos Aires), Vol. 82, pág. 93.
350 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU III

sarinhos. Mas sempre encontravam a armadilha vazia e


restos de ossos de passarinhos. Yurikoyuvakai mandou
então à lagartixa que vigiasse a arapuca. Mas esta se des­
cuidou e não viu que roubavam os passarinhos. Quando no
dia seguinte Yurikoyuvakai encontrou a armadilha vazia
perguntou à lagartixa quem havia roubado. A lagartixa
não soube dizer e, zangando-se Yurikoyuvakai atirou-a
contra uma árvore. É por isso que a lagartixa sobe nas
árvores.
Yurikoyuvakai mandou então ao bem-te-vi que vigiasse
a armadilha. No dia seguinte, encontrando a armadilha
vazia, perguntou quem roubava a caça. O bem-te-vi começou
a voar sobre um monte de capim. Voava e baixava. Levan­
tava e baixava. Então Yurikoyuvakai arrancou o monte de
capim. Tinha uma porta. Era um buraco cheio de índios.
Os índios todos estavam ali. Quando Yurikoyuvakai espiou,
êles estavam todos com a boca escancarada. Yurikoyuvakai
mandou sair todos os índios. Não ficou nenhum. Êles não
falavam. Yurikoyuvakai deu a fala para êles. Então
Yurikoyuvakai pôs os índios num lugar, em que êles podiam
viver. Mas os índios não tinham fogo e tremiam de frio.
O fogo nesse tempo era guardado por um bicho chamado
Takê-orê. Yurikoyuvakai mandou a lebre, [Lepus Brasi-
liensis), que corre muito, buscar o fogo. Takê-orê não quiz
dar, e para protegê-lo pôs-se de pernas abertas sobre êle.
Mas a lebre apanhou uma vagem, hivoi, que arrebenta no
fogo, e atirou-a sobre as brasas. As brasas saltaram e
Takê-orê se assustou. A lebre se apoderou do fogo e fugiu.
Takê-orê perseguiu-a e quando a estava alcançando, a lebre
encontrou um pedaço de pau oco e escondeu-se nele. Takê-
orê cotucou com um pau para ver se matava a lebre, mas
esta cortando o dedo pingou com o sangue o pedaço de pau.
Takê-orê pensou então que a lebre havia morrido e foi-se
embora. A lebre então levou a brasa que roubara e lançou-a
num campo incendiando-o. E assim os índios conseguiram
o fogo.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA. N. S., VOL. UI 851

Mas os índios não tinham instrumentos e foram pedidos


a Yurikoyuvakai. Êste deu aos Terena todos os instrumen­
tos: para os homens deu a faca de madeira, peritau; foice
de madeira, chopilocoti; o machado, povooti; a enxada,
ahará; e o tacape ou pu’lae; e para as mulheres, Yuriko-
yuvakai deu o fuso, hopai (58).

Mito do dilúvio, Ivoióneli

Outro mito Terena conta a história do dilúvio, Ivoióneti:


“Chovia uma chuva que nunca parava. Era Vanuno
que estava descendo. (Kameoné uti-e monti Vanuno vanukê,
“falava a voz de Vanuno no céu”)- A chuva encheu os
campos. Então tinha um koichomuneti (médico-feiticeiro).
que cantava para fazer a chuva parar. Já estava tudo
coberto. O padre cantava sacudindo a itaaka, (cabaça).
Se Vanuno baixasse até o chão a água cobriría tudo. O
padre continuava cantando. Vanuno falava. Os índios
ouviam a voz de Vanuno, mas não compreendiam. Vanuno
era ruim e fazia mal para os índios. O padre continuava
cantando. Foi indo, foi indo a voz de Vanuno foi recuando
mais para cima e parou de falar. Quando parou a chuva
é que o padre parou de cantar”.

Voropi e Hihiai-uné
As florestas que rodeavam os Terena em seu “habitat” no Chaco,
eram dominadas por dois sêres míticos: Voropi e Ilihiai-uné.
“Voropi é o rei d’água”, explica um informante. —- Voropi
vivia no mato. Era uma espécie de cobra grande com cara de gente.
Não gostava de cheiro de gente. Quando alguém se aproximava de
sua casa Voropi ficava zangado e mandava chuva forte, com raios
e trovões. Os flancos de Voropi relampagueavam quando ele via
gente, e caia chuva forte. A água subia e afogava os intrusos.
Voropi não morava na água; morava no seco, morava numa árvore
(58) Uma versão semelhante, embora mais simples, foi por nós publicada em
“Terena Religion”, Acta Americana, Vol. 4, N.° 4. Herbert Baldus em “Tereno Tezta",
Anthropos, XXXII, (1937), pig. 534, obtém a versão: “eu índio saí da terra".
352 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOU III

perto d'água. Voropi não gostava de pelos* “Por isso é que a gente
do Chaco não tinha barba, nem sobrancelhas, nem pestanas, nem
nenhum pêlo. Tirava tudo com o maiecovopeti (pinça para depilar).
Voropi não gostava de pessoas com pelos. Se elas tomassem banho
na lagoa, Voropi mandava chuva forte”.
De Hihiai-uné^ a mãe d’água dependia também o controle das
chuvas. Hihiai-uné morava nas lagoas do Chaco e matava as pessoas
que dela se aproximavam. Os médicos-feiticeiros a conheciam. Di­
ziam êles ser ela uma cobra muito grande. Nos seus transes xama-
nísticos os médicos-feiticeiros costumam conversar com ela. Hihiai-
uné não gostava das pessoas de luto ou das mulheres menstruadas.
Estas não deviam sair de casa para ir lavar-se no rio. Se o fizessem,
Hihiai-uné mandaria uma chuva forte que destruiría as casas.
Hihiai-uné mandaria saipoti e saipanéf ventos e chuvas fortes.
Quando ainda no Chaco os Terena costumavam queimar os ramos
de um arbusto denominado chevêe, cujas cinzas tinham o sabor do
sal e por essa razão eram empregadas como condimento. Essas cinzas
não deveríam, porém, ser misturadas com água, pois provocariam as
iras de Hihiai-uné que castigaria com chuvas fortes. Da mesma
forma, si um homem tivesse relações com uma mulher menstruada,
deveria evitar a água para não enfurecer a Hihiai-uné.

Análise dos mitos


Os mitos de Yurikoyuvakqi, Ivoióneti, Voropi e Hihiai-uné per­
mitem, de certa forma, a reconstrução da antiga cosmologia dos Te­
rena. O mito dos heróis gêmeos, muito espalhado na mitologia sul-
americana (5Ô), oferecia aos antigos Terena não só explicação para
a sua origem e para a origem de sua cultura, como a justificação de
muitos dos seus costumes. A origem telúrica dos Terena e o plantio,
iniciado por Livetchetchevena, salientam a importância da terra
para esse povo de agricultores. É possível que em épocas remotas
as mulheres Terena se tivessem dedicado à agricultura, enquanto os
homens caçavam e pescavam. Porém, a divisão do trabalho feita por
Y urikoyuvakai mostra-se bem clara: os instrumentos da lavoura
(59) Alfred Métraux, "Twin Serões in South American Mythülogy”, Journal of
American Folklore, .VoL 5 9, N. 232, (AprlLJune, 19 46) págs, 114-123.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 353

para os homens e o fuso para as mulheres. Finalmente, o fogo,


lançado a um campo pela lebre, ainda coincide com a maneira dos
Terena prepararem o solo para as sementeiras. Yurikoyuvakai dá
aos índios a linguagem; ousamos reconhecer nesse fato a admissão
pelos Terena de uma origem comum com as demais tribos de língua
Guaná (ou tchané, eomo dizem os Terena). A divisão dos Terena
em metades pode encontrar a sua justificação no mito dos gêmeos
Yurikoyuvakai. É interessante, lembrar que um deles, o Yuriko-
yuvakai que surgiu da metade superior é que liderava.
Os demais mitos Terena sobre o dilúvio, Voropi e Hihiai-uné
poderão ser melhor compreendidos quando examinados à luz do pri­
mitivo “habitat” dos Terena, no Chaco. Nas áreas em que viviam,
constituídas de planícies, havia inundações periódicas na época das
chuvas. Voropi e Hihiai-uné refletem a dependência em que êsses
índios viviam das grandes chuvas. E o episódio heróico do médico-
feiticeiro, afastando com seus cânticos os poderes de Vanuno, justi­
ficam a autoridade de que no passado desfrutavam os koichomunetk
De outra parte, os Terena explicavam as grandes chuvas e tempes­
tades como sanções impostas às transgressões dos padrões culturais
de depilação do corpo e reclusão e interdição da mulher menstruada.
O seres sobrenaturais, que rodeavam os Terena do passado, eram
na maioria hoipihapati, almas de plantas, animais ou de índios. As
doenças e infortúnios eram causados pelos espíritos. Os sucessos
na agricultura e caç^ na guerra e no amor podiam, porém, ser favo­
recidos por êsses espíritos mediante a ação oportuna dos médicos-
feiticeiros.
Os Terena temiam os seus mortos e procuravam, cortar as cone­
xões que os ligavam a eles, um hoipihapati poderia voltar em busca
de parentes. As propriedades do morto eram queimadas, distribuí­
das ou, si objetos de uso pessoal, enterradas com êle* A fim de evitar
a volta do hoipihapati de um índio, os seus parentes queimariam a
casa em que o morto vivera ou mudariam a porta a fim de que não
a reconhecesse. Em casos especiais em que o hoipihapati de um
morto voltasse para pertubar os parentes, o médico-feiticeiro seria
chamado para esconjurá-lo.
854 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

XAMAMSMO
Quando doentes, os Terena consultavam o médico-feiticeiro,
koichomúneti^ que examinava as causas da doença que eram, geral­
mente, provocadas por algum inimigo pessoal, através da atuação de
de outro koíchomúneti; a cura era feita simplesmente pela aplicação
de raizes e folhas silvestres ou mediante a interferência dos espíritos
protetores dos médicos-feiticeiros.
Durante a grande festa anual, denominada Oheokoti, os medi'
cos-feiticeiros invocavam os hoipihapati dos mortos da aldeia, a fim
de apaziguá-los e pedir-lhes assistência. A essa festa, de caráter
religioso, seguiam-se festas profanas.
Ao médico-feiticeiro cabia interceder junto aos seres sobre­
naturais, como atesta o mito do dilúvio, Ivoióncti. Durante a festa
anual, Oheokoti, os koichomúneti relatavam aos índios os mitos Te­
rena. Na agricultura, na caça e na guerra, o koichomúneti era
sempre chamado a interceder junto aos poderes sobrenaturais; a
êle caberia curar as doenças, afastar as influências malignas, prever
0 futuro e atuar favoravelmente em negócios amorosos ou desa­
venças. O koíchomúneti desfrutava pois um status especial, e o seu
prestígio era mantido mediante a reivindicação da culpa das mortes
ocorridas na tribo. Castelnau e Taunay constataram essa situação
dos koichomúneti (60),
Os médicos-feiticeiros possuíam escravos que cuidavam de sua
alimentação e os protegiam; o assassinato de um koichomúneti
acusado de magia negra não era raro e era permitido, desde que
cometido fora da aldeia. Na guerra o koichomúneti combatia como
guerreiro; mas a êle competia espceialmente prever onde estava o
inimigo e se as expedições seriam ou não bem sucedidas. Atuava
também nas partidas de caça e pesca, mas sua principal atuação
era junto aos doentes. Em seus transes os koichomúneti tinham,
ainda, o poder de entrar em contato com Voropi e Híhiai-uné con­
troladores das chuvas, e com as almas de mortos e vivos, agindo
sôbre elas.
Ao invocar os espíritos, os médicos-feiticeiros faziam uso de dois
instrumentos principais: uma cabaça, cheia de sementes ou pedri-
(60) Francis de Castelnau, Expéditian danu Us Parties Central^ d^ VAmêriquç
du Sud, (Paris, 1850), Vol. II, Págs. 476-477. — Visconde da Taunay, Op. cii.t pAg. 133.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 355

nhas, itaaka, e um tufo de penas de avestruz, kidfpahe (que se


assemelha a um espanador sem cabo). Para entrar em contato com
os espíritos os koichomúneti pintavam-se com desenhos geométricos,
nos braços, no peito e nas costas, envergavam um saiote ou xiripii,
empunhavam o tufo de penas, kidfpahe e a cabaça, itaaka, e, em
passos lentos e compassados, ao som do chocalhar da cabaça, canta­
vam chamando o seu espírito protetor ou o espírito de algum koicho-
múncti já falecido ou ihákú-okovê. Em seu cântico, o médico-
feiticeiro dirá: “giahi kaponé neixá vomori”, “vem, olha para mim”.
A repetição da frase algumas vezes, afirmam os Terena, era
suficiente para forçar a vinda do espírito. Este, ao chegar pergun­
tava: Akuivati vomori?, “porque me chamaste?”. O koichomúneti
diría: “Enomoné iusacikinopi, “por isto te chamo”. Explicava,
então a razão da consulta. Durante o seu transe o médico-feiticeiro
poderia, também, ser transportado para os domínios de Voropi,
adquirindo poderes sôbre a chuva.
Ao ser chamado para curar um doente o koichomúneti decidiría
se a doença fora causada por magia negra ou não. O koichomúneti
chuparia a parte do corpo injuriada e extrairía dela pedaços de
ossos, dentes, insetos, ou pequenas lascas de madeira ou pedra. Êsses
objetos teriam sido introduzidos no corpo do paciente mediante a
magia praticada por outro koichomúneti. O médico feiticeiro po­
deria prescrever o emprego de raizes ou folhas silvestres, para serem
aplicadas nas feridas ou tomadas em infusão, nos casos de febres
e dores internas, Quando chamado para praticar a magia negra
contra alguém, o koichomúneti usaria os seus instrumentos sagrados
e invocaria a alma da vítima, que assim ficaria completamente à
sua mercê; ordenaria, então, ao espírito de uma cobra ou de algum
objeto para que atuasse sôbre o espírito da vítima, cujo corpo seria
então atingido.
. Por todas essas atividades os médicos-feiticeiros eram pagos
com alimentos, presentes em animais ou em objetos de uso.
O koichomúneti era capaz ainda de promover encantamentos
amorosos “que tornavam um índio irresistível”, Um dos processos
seria, por exemplo, o da pulverização de uma flor vermelha, comum
nos pantanais do Chaco; êsse pó mágico, convenientemente prepara­
do pelo koichomúneti, era espalhado na direção da pessoa cujo amor
356 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

se desejava conquistar. Outra maneira de administrar êsse pó seria


misturado, ocultamente, a qualquer bebida e oferecê-la, oportuna­
mente à vítima.

O Oheokoli, festa dos médicos-feiticeiros


Uma função importante dos médicos-feiticeiros era a de pre­
parar e realizar a festa anual dos Terena, denominada Oheokoti, Os
koichomúneti examinavam primeiramente o céu verificando se as
Pleiades haviam atingido a sua altura máxima, quando isso se dava
iniciavam os preparativos para o Oheokoti, Consistiam, esses pre­
parativos, especialmente, na coleta de grandes quantidades de mel,
necessárias à fabricação de bebidas alcoólicas para toda a aldeia.
Durante esses preparativos, que duravam cerca de um mês, os
koichomúneti recitavam, à noite, os seus cânticos e invocações e
submetiam-se a um regime alimentar especial. Terminada a coleta
de mel, construíam, no centro da aldeia, uma cabana rudimentar,
consistindo num teto de folhas de palmeira ou sapé, sustentado por
quatro ou mais estacas, fincadas no solo,
Na madrugada do dia marcado para o Oheokoti, os koichomúneti
da aldeia se reuniam num lugar afastado; as crianças os acompa­
nhavam. Acendiam uma fogueira e sentavam-se ao redor. Então,
um por um, os koichomúneti se levantavam, e voltando-se em direção
ao lugar onde se enterravam os mortos, peatcholi, gritavam: “Acor­
da”! Um a um, os nomes dos mortos da aldeia eram invocados. (O
koichomúneti que estava chamando pelos mortos era designado pela
expressão ivahá-koti, “está coçando”)- Depois, com grande alga­
zarra voltavam para a aldeia. Então, na cabana erigida no centro,
um a um os koichomúneti invocavam os seus espíritos protetores e
executavam os "milagres” que sabiam; retiravam- da boca um bicho
ou objeto, sopravam sobre êle, faziam-no crescer e decrescer, e final­
mente o deglutiam.
Iniciavam, então, um desfile pela aldeia, parando na casa de
cada koichomúneti, até esgotar a bebida aii acumulada, passando è
casa de outro. Finalmente caíam prostrados pela bebedeira e, segun­
do diziam, em sonos mediúnicos.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III 357

Iniciação dos koichomúneti


Na época do Oheokoti novos koichomúneti e aprendizes de mé-
dico-feitieeiro cantavam juntos com seus mestres, tornando-se assim
públicamente conhecidos como iniciados em poderes de invocar os
espíritos. Aos koichomúneti cabia escolher e ensinar aos futuros
koichomúneti. Geralmente o discípulo seria escolhido entre os pró­
prios filhos do médico-feiticeiro. Mas outra criança, menino ou
menina, poderia ser escolhida, desde que os pais consentissem.
A iniciação geralmente se processava durante o Oheokoti. O
noviço recebería um filhote de cobra, pássaro ou outro animal qual­
quer para engolir; na noite imediata seria visitado em sonhos pelo
espírito da mãe do animal ingerido, tornando-se protegido por esse
espírito. Êsse animal (também poderia ser planta), se tornava
tabu para o noviço.
O novo koichomúneti continuaria a ser ensinado pelo mestre,
aprendendo as histórias, os cânticos e os encantamentos; quando já
considerado apto, ser-lhe-ia permitido empunhar a cabaça e o tufo
de penas durante as invocações do Oheokoti. Desde então estava
êle apto para curar.
Ao executar os seus “milagres”, um koichomúneti retiraria da
boca o animal correspondente ao seu espírito protetor. Se este fosse
uma planta, por exemplo, retiraria da boca uma semente. Sopraria
sobre ela e a faria crescer e frutificar, e em seguida decrescer nova­
mente até a simples semente original que seria engulida de novo.
Tais “milagres” eram de enorme importância na obtenção de pres­
tígio junto aos índios; e muitos Terena asseguram hoje terem visto
êste ou aquele koichomúneti “retirar o seu ‘bicho5 da boca”.

Mudanças necentes
Atualmente não se pode falar em uma religião dos Terena mas
nas religiões dos Terena. Já tivemos ocasião de mencionar a divisão
dos Terena de Bananal em católicos e protestantes. Mas para des­
crever a sua religião atual seria necessário descrever as crenças e
rituais católicos, protestantes e remanescentes dos antigos rituais e
crenças Terena. Já por volta de 1766, na época em que visitou os
aldeamentos Guaná, Sánchez Labrador ouviu de alguns índios Te-
358 BEVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL IIE

rena referencias feitas às visitas recebidas pela tribo de uni missio­


nário jesuíta, embora aquele autor não ofereça maiores detalhes (61).
No Território Brasileiro os Terena. eram visitados periodicamente
por missionários católicos, e Taunay encontrou entre eles as palavras
Nhanãe-iára e Echai^anuché designando o Todo Poderoso (62).
Baeh recolheu o nome tupa designando Deus (63). Ora, sabemos que
Echai-uanuché, por exemplo, significa “que está no céu”; sabemos,
de outra parte, pelo mito de Ivoióneti, que Vanuno “era ruim e fazia
mal aos índios”, e sua voz “falava no céu”. A idéia de um Deus
habitando no céu foi, evidentemente, introduzida na cultura dos
Terena, e já o fora no tempo de Taunay. O mesmo poderiamos
talvez dizer a respeito de Tapa, identificado pelos missionários, desde
os primórdios da catequese, com o Deus cristão.
Mais tarde, nas fazendas, os Terena serão batizados e casados
por padres católicos.
Em 1910 o missionário inglês Ilenry Whittington visitou o
aldeamento de Bananal, estabelecendo contato com os índios. Co­
meçou por ensinar-lhes a ler e oferecendo-lhes auxílio médico e
técnico a par com ensinamentos morais. Os Terena de hoje ainda
se referem a Whittington com respeito: “O senhor Henrique era um
homem muito bom, sempre disposto a ajudar”. Em 1913, estabe­
leceu-se em Bananal um ramo da Inland South America Missionary
Union, com missionários de nacionalidade inglesa. Devido à pressão
dos católicos, índios e especialmente brasileiros, e do S. P. I., a
missão cessou suas atividades em Bananal em 1920. Em 1925 os
trabalhos desses missionários foram retomados pelo South America
Indian Mission, de pastores norte-americanos. Em 1930 uma missão
de padres redentoristas norte-americanos se estabeleceu cm Aqui-
dauana e incluiu dentro de sua esfera de atividades a aldeia Terena '
de Bananal.
Através dos missionários protestantes entraram os Terena em
contato com a Bíblia. Existem em Bananal muitos exemplares da
- Bíblia que é, aliás, a principal literatura dos Terena de hoje; Pelos
(61) José Sánchez Labrador, £i Paraguay Católico* (Buenos Aires, 1010), Vol. I,
pág#. 259-260.
(62) Visconde do Taunay, Op, cit., pág. 132.
(63) J, Baeh, Op. eit., p&g 93.
BE VIST A DO MUSEU PAULISTA, N. 8-, VOL. III 359

protestantes foram os índios advertidos, principalmente, contra o


álcool, o fumo e as danças; foram-lhes proibidas as comemorações de
festas tais como as joaninas, aprendidas das populações brasileiras.
Os missionários católicos, de outra parte, não se esforçam por extir­
par dos índios de Bananal as suas antigas crenças e práticas; limi­
tam-se êles aos rituais da missa e sacramentos de batismo e de matri­
mônio* Os índios pertencentes ao grupo católico festejam os dias
de São João, Santo Antônio, São Benedito e São Sebastião; festejam
ainda o Natal e a Semana Santa.
Por iniciativa do Serviço de Proteção aos índios foi restabele­
cida a “festa dos padres”, o Oheokoti, celebrado agora no dia 19 de
Abril, “Dia do índio”, juntamente com outras cerimônias cívicas
brasílicoundígenas, tais como o hasteamento do Pavilhão Brasileiro,
ao som do Hino Nacional entoado pelos índios, e a realização de
danças Terena, agora reavivadas.
Os índios de Bananal tiveram as suas antigas crenças substi­
tuídas em parte pelas crenças bíblicas e pelos mitos caboclos. Em
Bananal poucos índios serão capazes, atualmente, de explicar quem
eram Yurikoyuvakai, Voropi, Vanuno ou Hihiai-uné. Em compen­
sação a quase totalidade conhece “casos” de assombração causados
pelo “lobisomem” ou pela “mula sem cabeça”.
As regras de conduta do grupo protestante são, antes nega­
tivas : não beber, não mentir, não dançar, não fumar. O grupo
“católico”, de outra parte, frequenta as práticas dos atuais médicos-
feiticeiros e “benzedores” e, às vezes, as práticas católicas, É ver­
dade que muitos protestantes também comparecem às práticas xama-
nísticas, mas a sua freqüência às praticas dos missionários (protes­
tantes) é mais regular. De uma maneira geral, contudo, os missio­
nários afirmam que os “índios são inconstantes e fracos na sua fé”.
Todas as tardes, na Missão Evangélica, em Bananal realizam-se
predicas sobre moral evangélica e os ensinamentos de Cristo; aos
domingos realizam-se ofícios e muitas vezes, trechos do evangelho
são lidos em língua Terena.
Os índios denominados católicos, por via de regra, não se mos­
tram interessados nas práticas religiosas católicas; as suas grandes
festas religiosas são as festas joaninas, a festa de São Sebastião e
a Oheokoti, agora restabelecida. São João e Santo Antônio são ceie-
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brados no sistema das fogueiras e levantamento de mastros, tão


querido de nossas populações, seguindo-se bailes de viola ou sanfona.
Os Terena de Bananal costumavam também festejar o dia de
São Benedito. Havia uma “Bandeira de São Benedito” que per­
corria as fazendas vizinhas e incluía Bananal na rota de sua pere­
grinação. São Benedito, o santo de côr, é o protetor dos pretos, e
era o que mais se ajustava, na ordem hierárquica dos patronos cató­
licos, ao «tatus do índio na organização social brasileira. Ultima*
mente São Benedito foi deslocado por São Sebastião. Êsse herói
mártir da Igreja Católica é representado, habitualmente, amarrado
a um tronco, com o corpo cravado por várias setas. Recentemente,
missionárias católicas de Aquidauana bordaram um estandarte com
a efígie de São Sebastião e doaram-no à aldeia de Ipegue, tida como
“aldeia católica” por excelência, desde que os protestantes ainda não
conseguiram se instalar lá. Os índios de Ipegue iniciaram, desde
então, peregrinações anuais com a Bandeira de São Sebastião. A
Bandeira se assemelha à “Bandeira do Divino Espírito Santo”, em
sua organização geral; muitos dos versinhos cantados à guisa de
saudação, pelos músicos do grupo, parece terem sido adaptados dos
“cantos” do Divino. Consiste a Bandeira numa peregrinação pelas
aldeias e fazendas vizinhas, de um grupo de índios que transportam
consigo o estandarte doado a Ipegue. A Bandeira inicia a sua par­
tida um mês antes do dia de São Sebastião, comemorado a 20 de
Janeiro. A peregrinação se faz a fim de angariar donativos para
a festa, a ser realizada naquela data.. O desfile parte de Ipegue;
o estandarte é carregado à frente, sendo acompanhado de um tocador
de sanfona, dois tocadores de caixa (tambores cilíndricos), e pelos
“cantadores”. Ao chegar a uma casa, o “cantador” que lidera os
cânticos inicia uma saudação cantada, na qual pede almoço, jantar,
pousada ou uma simples esmola “para o Santo”, conforme for o
caso. A saudação é cantada em português. Os cantadores repetem-na
ao som da sanfona e com um ritmo marcado pelas “caixas”. O dono
da casa virá pessoalmente receber os cantadores; se tiver alguma
imagem em casa improvisará um altar, e os cantadores repetem novos
cantos em honra de São Sebastião e dos santos de sua devoção. A
música e o ritmo são sempre os mesmos e somente as palavras, que
nem sempre são conhecidas de todos os cantores, é que variam, de
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU III 361

acordo com a oportunidade. O pouso, si pedido, jamais é negado.


O dono da casa irá pessoalmente fazer o seu donativo e é seguido
dos demais membros da família que vão, um a um levar o seu óbulo.
Cada donativo é saudado com uma cantiga de agradecimento*
O grupo segue de casa em casa, almoçando, jantando e vivendo
à custa dos devotos. Na casa onde pousa a Bandeira, realiza-se um
baile, ao som de violas, violões e sanfonas. Os festeiros já são tradi­
cionais de forma que a rota da Bandeira já tem os “pousos” fixa­
dos; “quem festeja um ano tem que festejar no seguinte, sinão atrai
desgraça”. O baile é realizado no sistema caboclo, com interrupções
durante as quais os devotos vão rezar diante do estandarte de São
Sebastião*
Como resultado dessas peregrinações a Bandeira consegue
alimentos e bebidas suficientes para a festa; os fazendeiros vizinhos
geralmente doam um novilho e há sempre carne bastante para a
festa. No dia 19 de Janeiro, vésperas de São Sebastião, realiza-se
um “baile” em Ipegue, ao qual comparecem índios de Bananal e
outras aldeias, bem como rapazes e moças, índios e não índios de
Aquidauana, Miranda, Taunay e fazendas vizinhas.
Mas acima de tudo Bananal possui os seus feiticeiros. Um dos
devotos de São Sebastião, em casa de quem a Bandeira costuma per­
noitar ao passar pela Aldeia de Bananal, é o índio Brígido, um dos
líderes do grupo “católico” ou “não protestante”, e reputado médico-
feiticeiro* Brígido é guató de nascimento mas foi criado pelos Guai-
curu de Lalíma. Mais tarde casou-se em Bananal e aí fixou resi­
dência. Seu sistema de curar é semelhante, em muitos pontos, ao
dos antigos Terena; êle também invoca o seu “bicho” para fazer as
curas. Mas Brígido também faz “benzeduras”, nas quais faz o sinal
da cruz e recita esconjurações. Os “poderes” de Brígido, porém,
segundo a opinião corrente em Bananal, “não se comparam com os
de Antônio Sabino, que “é capaz de tirar o 'bicho' da boca e fazê-lo
crescer”. Segundo a afirmação de vários informantes, Antônio
Sabino ainda realiza os “milagres” dos antigos koichomúneti.
Eperú é outro koichomúneti que atua em Bananal - seus poderes,
porém, segundo êle mesmo o afirma, são pequenos, porque “não
acabou de aprender” ainda. Existem ainda em Bananal duas mu­
lheres que “sacodem a cabaça”, isto é, que invocam os espíritos sa-
363 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOU UI

cudindo a itaaka dos antigos Terena, Até pouco tempo, havia mesmo
em Bananal uma koichomúneti que atraia enorme clientela das fa­
zendas e cidades vizinhas. Porém, como o pagamento fosse, na maio­
ria, feito em garrafas de pinga, houve interferência do Serviço de
Proteção aos índios e a koichomúncti foi interditada aos “brancos ’.
Há ainda em Bananal “benzedores” como Japão e Feliciano
que curam por meio de rezas e infusões, mas sem invocar os espíritos,
É difícil dizer-se hoje quanto das práticas xamanísticas dos
índios de Bananal são inteiramente Terena e quais as que foram
recebidas dos Mbayá (64) ou mesmo dos próprios “curadores”
caboclos.
Os koichomúncti ainda desfrutam prestigio, não só entre os
índios de Bananal como entre as populações brasileiras vizinhas,
mas esse prestígio decresceu muito comparativamente ao passado.
Com a mudança de “habitat” os Terena puseram-se a salvo de pro­
blemas tais como o das inundações; de outra parte desapareceram
as possibilidades de guerra, caça e pesca. Dessa forma o campo de
atividade dos koichomúneti ficou restrito apenas à cura de doenças
e à magia negra. A princípio os médicos-feiticeiros desempenhavam
variadas e importantes funções: atuavam na guerra; transmitiam
os mitos da tribo, na festa anual do Oheokoti na qual eram as figuras
centrais; interferiam junto aos mortos, afastando suas influências
■ maléficas; finalmente curavam e exerciam a feitiçaria. Hoje somente
exercem as últimas dessas atividades. Desprovida de recursos, como
é a região, há sempre.oportunidade para médicos-feiticeiros, que con­
seguem clientelas não só de índios mas de brasileiros que, em Taunay,
por exemplo, não contam com o auxílio de um único médico.
Mesmo em suas atividades de curadores os koichomúneti so­
frem, porém, a “eoncurrencia” dos missionários protestantes e dos
funcionários do S. P. I. que administram remédios gratúitamente,
curando doenças que os “curadores” não são capazes de curar.
No Chaco os antigos Terena possuiam um sistema de crenças
e rituais bem integrado e operante dentro do regime de vida que
(64) José SÃnchez Labrador, Qp, cit., Vol. II, págs, 31 e 32, descreve as técnica#
do curar e de invocar os espíritos dos Mbayá, as quaia muito sê «asemolham às doa antigos
Terena. Torna-se difícil dizer-se quais das culturas, Mbayá e Guaná, teriam agido com#
dowttoT a receptor.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. &, VOU HI 368

levavam. O Oheokoti} por exemplo, coincidia com a época das


colheitas; na guerra e na caça as incertezas eram superadas pelo
koichomúnetí, As doenças dos Terena eram, possivelmente, limi­
tadas, pois acreditamos que houvessem desenvolvido uma resistência
ao meio; ao menos não havia para o koichomúneti o problema das
novas doenças introduzidas pelo “branco”.
Desde o século dezessete há elementos indicando a influência
ativa de missionários cristãos junto aos Terena. O cristianismo
oferecia aos índios certos elementos de segurança, como por exemplo
os “padrinhos” para os filhos e a proteção dos “compadres”.
A situação religiosa atual da Aldeia mostra a mesma plurali­
dade de formas que se encontra nos demais aspetos da cultura dos
Terena. É bem possível que no futuro Bananal apresente uma fusão
das diferentes formas atualmente em curso. Mas a evolução de suas
crenças, acreditamos, dependerá em grande parte, da política segui­
da no futuro pelos administradores locais do Serviço de Proteção
aos índios.

MUDANÇAS NAS FESTAS, DANÇAS E FOLGUEDOS


É nossa intenção examinar neste capítulo as danças e folguedos
dos Terena no passado e descrever, em seguida, a maneira pela qual
08 índios de Bananal costumam atualmente preencher as suas horas
de lazer.
Não pretendemos porém fazer uma análise da totalidade das
festas dos antigos Terena mesmo por que o material de que dispomos
é bastante limitado e se resume em grande parte, a relatos de infor­
mantes; somente em poucos casos pudemos observar diretamente as
danças ou os jogos descritos. De outra parte, a literatura sobre as
danças dos Terena, como sobre os demais aspetos de sua cultura,
é muito pobre e falha. J. Bach (65) menciona quatro danças a que
assistiu nas proximidades de Miranda e que, de certa forma, lem­
bram as danças dos Caduveo descritas por Boggiani (66). Entre-
(65) J. Bach, "Datas sobre los índios Terenas de Miranda”, Ánaíe# de Ia Sotfiedaã
Cientifica Argentina, (Buenos Aires, 1916), Vol. 82, págs. 92-93.
(66) Guido Boggiani, Os Caduveo, (Trad. Ed. Martins, São Paulo, 1945), pâgs.
152-153.
364 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III

tanto os dados fornecidos por aquele autor, embora aproveitáveis não


são completos e deixam a desejar em muitos pontos.
A maioria das festas dos Terena ocorria no tempo das colheitas,
quando os alimentos eram abundantes e as próprias atividades agrí­
colas exigiam um maior grau de interação. A festa religiosa, o
Oheokoti, realizada por volta de Abril, era o ponto de partida de
outras tais como o Cotchóvono-neti, o Tchucutchú e o Pirituti (67).
Outras festas havia, porém, que eram realizadas em qualquer época,
e durante a estação das chuvas. Descrevemos, pois, as festas e
danças dos antigos Terena na seguinte ordem: a) festas do tempo da
colheita; b) festas sem época certa; c) o “bate-pau”, de origem mais
recente.
Festas do tempo da colheita
O Oheokoti, já descrito no capítulo dedicado às crenças e mitos,
realizava-se por volta de Abril, “quando as Pleiades atingiam a sua
altura máxima no céu”. Essa festa religiosa marcava o inicio não
só do tempo de colheita eomo também de uma série de atividades
sociais. Na época das colheitas os Terenas se reuniam em suas
aldeias, como o atesta o relato de Sánchez Labrador, sobre os Guaná:
“Quando ya presumem que las sementes empiezan a
fructifiear, enviam unos que les registren” (G8).
O Oheokoti era uma festa controlada pelos koichomúneti, eomo
já tivemos ocasião de ver. Seguia-se a ela uma série de festas pro­
fanas. Inicialmente procedia-se ao Tchucutchú, ou tadique como é
chamado hoje pelos brasileiros, que empregam um vocábulo Mbayá.
Logo depois das cerimônias do Oheokoti os Terena reuniam-se em
torno de seus “chefes de conselho”. Era especialmente nessas
ocasiões que se evidenciava a divisão em metades chumo-onô e
sukiriki-onô. As duas metades se reuniam sob a chefia de seus res­
pectivos “chefes de conselho” formando dois grupos distintos. Os
índios vestiam seus enfeites e pintavam-se de branco e preto. Os
(67) Rhodo, (citado por Colmi, num apêndice ao Os Oaduveo, de Boggíani, acima
mencionado, págs, 295-297) parece haver confundido duas festas realizadas na mesma
época, descrevendo-as como uma única, a festa religiosa.
(68) Sánehea Labrador, El' Paraguay Católico, (Buenos Aires, 1910), Vol. II,
pâg. 258.
REVISTA DO MUSEU PAULISTA. N. S„ VOL. III 365

“chefes de conselho” sentavam-se no chão sôbre tapetes de piri, um


em frente ao outro, tendo diante de si um potezinho de barro, cilín­
drico, pooku, sôbre o qual havia sido estendida uma pele de cotia,
formando um pequeno tambor. Os dois “chefes de conselho” come­
çavam a cantar, pereutindo os tamborezinhos com bastonetes de
madeira, e sacudindo pequenas cabaças cheias de sementes ou pe-
drinhas. Ao redor dos “chefes de povo” ficavam, agrupados, os
demais índios. Os filhos mais velhos dos unati-aché e seus prováveis
sucessores iniciavam, então, uma luta na qual eram usados os punhos
como armas de combate. As metades, a que pertenciam respecti­
vamente os dois lutadores, saudavam com grande alarido o lutador
vitorioso que conseguisse derrubar o adversário. Os lutadores eram
em seguida substituídos, lutando sempre índios de metades diferen­
tes. Finalmente as mulheres também participavam. Terminado o
exercício os dois “chefes de conselho” se levantavam; eram então
servidos aos presentes alimentos e bebidas. As duas metades man­
tinham-se separadas, pois era nessa ocasião que os chumo-onô inicia­
vam as suas “brincadeiras”. A expectativa de comportamento geral
era a de que os Sukiriki-onõ suportassem com boa vontade, e sem
revide, as brincadeiras e provocações da outra metade.
O Cotchóvono-netiy ou festa da colheita, era realizado após o
Oheokoti. Alguns índios vestiam-se com saiotes de penas de ema,
pintavam-se e colavam, no rosto e nos cabelos, tufos de algodão, de
maneira e se tornarem irreconhecíveis. Na cabeça vestiam um verii,
(bolsa de algodão trançado). A casa em que esses índios se vestiam
ficava interditada às mulheres e crianças, desde que um dos prin­
cipais divertimentos consistia em adivinhar quem eram os fantasia­
dos. Assim vestidos, partiam os índios em correrías pela aldeia,
provocando sustos e hilaridades. O brinquedo terminava com dis­
tribuição de alimentos e bebidas.
O pirituti, jogo altamente estimado pelos antigos guerreiros
Terena, era geralmente associado ao Cotchóvono-neti e se realizava
no mesmo dia, logo após a mesma. Escolhia-se um dos melhores
atiradores de clava da aldeia, que passava a ser o pirituti, a figura
central do jôgo. O píníuh* devia se vestir da mesma maneira que
os índios fantasiados do Cotchóvono-neti, e sua tarefa era a de
ameaçar e perseguir os demais, atirando pedaços de pau contra os
366 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 0., VOU UI

índios que encontrasse. Se um índio se considerasse sufieientemente


agil, arrostaria o pirituti, esquivando-se dos seus arremessos. O
primeiro arremesso era feito de uma distância de vinte passos. Se
o guerreiro não se intimidasse, um segundo arremesso seria feito de
uma distância bem menor. Finalmente, um terceiro arremêso, de
alguns passos de distância apenas, poria à prova os mais valentes e
ágeis. Os Terena de Bananal contam com admiração a história de
um Terena que se esquivou com êxito do terceiro arremêsso do
pirituti.
Festas sem época fixa

Durante o tempo das chuvas os Terena costumavam divertir-se


com brinquedos os mais variados, dos quais os índios de Bananal
apenas se recordam vagamente. Os nossos informantes foram capazes
de lembrar com alguns detalhes de dois brinquedos: o evarani
e o laia,
O evarani era realizado sempre que havia fartura de alimentos.
Num dia chuvoso, alguns índios que desejavam brincar sairiam em
busca do vihê, “ earaguatá”, e apanhariam algumas folhas dessa
planta. Seguiríam, depois, para a casa do “chefe de conselho” e
atirariam sobre êle as folhas do vihê. Sabedor do que se tratava, o
unati-aché dava o seu consentimento e o grupo sairia no meio da
chuva, lambuzando-se de barro. O principal brinquedo consistia em
lambuzar de barro, também, a todos os demais índios que fossem
encontrados, e que assim se reuniam ao grupo, reforçando-o. Quando
o grupo já estava bastante numeroso, dirigiam-se todos para a casa
do unati-aché. O “chefe de conselho” tomava então um pequeno
pote de barro e enterrava-o no chão, fincando uma pequena estaca
sobre êle. Um índio de idade e de reconhecida força física era esco­
lhido para guardar o potezinho, ficando de pernas escancaradas
sobre êle. Ao redor do ancião os rapazes se reuniam para defendê-lo
das mulheres índias que o atacariam. As mulheres procurariam des­
locar o ancião de cima do potezinho, o que afinal sempre conseguiam.
O brinquedo terminava com a distribuição de alimentos c bebidas.
O laiá consistia num jogo de prendas, no qual se arrecadavam
alimentos e bebidas que seriam consumidos no último dia, numa
grande festa. Trata-se de um brinquedo de origem evidentemente
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. &, VOL. III 367

brasileira. 0 brinquedo laiá apresentava as seguintes personifi­


cações : um rei ou a filha do rei, rinerei; um soldado, andarú; e um
bufão, atihocoti. 0 brinquedo contava ainda com uma prisão, ikaai,
para a qual seriam levados todos aquêles que, achando graça nas
facéeias do bufão, desrespeitavam com suas risadas a autoridade de
um rei ou de sua filha, rinerei. Para sair da cadeia o culpado pa­
garia multa, porexoti, que variava entre uma galinha, um cabrito,
algumas rapaduras ou litros de farinha, conforme as posses de
cada um.
b

O “bate-pau”

O “bate-pau”, kohichotidcipahé, dança dos Terena, é descrita


aqui em separado, não só porque sua origem se reveste de caráter
mítico, mas porque ainda é praticada em Bananal. Afirmam os
Terena que um koichomúneti durante uma de suas invocações xama-
nístieas, caiu em transe e em sonhos visitou uma floresta na qual
assistiu ao kohichotiddpahê ; ao acordar, recordando-se do que so­
nhara, ensinou a dança aos Terena que desde então passaram a
executada. Entretanto os antigos Terena não dançavam o “bate-
pau”, como é chamado o kohichot^ pelas populações bra­
sileiras.
Em suas linhas gerais o “bate-pau” consiste em dois grupos de
índios, que chefiados por dois “caciques” dançam em filas paralelas
e depois se separam em dois grupos distintos. Depois de separados,
os dois grupos repetem os mesmos passos dançados anteriormente,
mas cada grupo procura executar melhor os diferentes passos e du­
rante maior tempo, pondo a prova a sua resistência. () grupo que
resistir por mais tempo é o vencedor, e o seu “cacique” é carregado
em triunfo ao redor da Aldeia, por todos os que tomaram parte na
dança. No “bate-pau” tomam parte, em número par, índios vestidos
com diademas e saiotes de penas de ema e com o corpo pintado de
branco e preto. (Atualmente as penas de ema rareiam, na área de
Bananal, e foram substituídas por folhas d? bananeira). ■ Dois tam­
bores cilíndricos e duas flautas de bambu fornecem a música e o
ritmo necessários à dança. (Afirmam os Terena que o uso de flautas
constitui inovação relativamente recente). A pintura dos dançarinos
era característica de cada grupo; um grupo se pintaria, por exemplo,
368 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL. III

dividindo o corpo em duas partes simétricas pintando-as de vermelho


e branco, e o outro grupo usaria as cores azul e preto. Uma outra
maneira de diferençar os grupos seria a de pintar-se um com riscas
verticais e o outro, eom riscas horizontais. Atualmente, nas danças
de “ bate-pau” os índios de Bananal não se preocupam em distinguir,
com pinturas, os dois grupos participantes.
No desenvolvimento da dança^ os dançarinos fazem usos de pe­
quenos arcos, munidos de flechas prêsas (destinados a fazer ruido),
e de bastões de madeira, que são percutidos uns contra os outros,
o que motivou a alcunha brasileira de “bate-pau”.
O “bate-pau” exige treino prolongado para ser escutado com
perfeição; durante um mês antes da data fixada para a sua reali­
zação, os líderes dos dois grupos selecionam e adextram os seus
homens, em exercícios diários e prolongados,
Na madrugada do dia marcado, os índios se reunem, conveniem
temente pintados e vestidos e iniciam o ubate-pau”: formam duas
fileiras paralelas, encabeçadas pelos “caciques” de cada um dos
grupos, e iniciam a marcha para o local da dança. A ordem em
cada fileira é a seguinte: tocador de flauta, tocador de caixa “caci­
que”, “sub-cacique” e dançarinos. Ao chegar ao local escolhido para
a ‘dança, os tambores percutem demoradamente avisando o inicio da
dança. Nos primeiros movimentos, os dançarinos executam passos
lentos, mostram-se cautelosos como se estivessem explorando um ter­
reno. Os dois caciques iniciam a dança, seguidos pelos demais
índios do seu grupo; as duas fileiras se separam, uma à direita, outra
à esquerda, para formar dois círculos simétricos. Os tocadores de
flauta e tambor não se movem do lugar, mas continuam a marcar o
ritmo da dança. Unia nova figura é iniciada, consistindo nos mesmos
passos que os anteriores, executados, porém, em ritmo mais rápido,
e fingindo-se disparar as flechas prêsas dos pequenos arcos. Seguem-
se algumas variações em que os dois círculos giram em sentidos
opostos e se cortam, de maneira que os dançarinos se entremeiam,
e, fingindo um combate corpo a corpo, batem, uns contra os outros,
os bastões de madeira que carregam. As figuras seguintes são
variações da antecedente; os bastões são percutidos duas vêzes, e
depois, três vêzes. Finalmente, as duas fileiras se subdividem, de­
pois de separadas e afastadas uma da outra. O “cacique” de cada
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. S., VOL, III 369

fileira passa a ser o cacique de meia fileira, resultante da divisão e


o “sub-cacique” passa a “cacique” da outra meia fileira. Os tam­
bores e flautas se separam, também, acompanhando cada uma das
fileiras. Assim, cada um dos grupos, separados uns dos outros,
repete agora os números que juntamente haviam executado. A dança
continua durante o correr do dia, com pequenos intervalos de des­
canço, pondo a prova a resistência dos índios. Mas nesses pequenos
intervalos os dançarinos ingerem todo o álcool que lhes é oferecido
pelos que presenciam a dança. Por volta do meio dia os dançarinos
mal se mantêm em pé ou por cansaço ou por embriaguez. O grupo
que resiste mais tempo é aclamado vencedor.

A “corrida de cavalinho”
Outro brinquedo dos Terena, que também teria sido inspirado
por um koichomúneti, é o ivuVchote-vogomoto, chamado pelos bra­
sileiros de “corrida de cavalinho”. Êsse brinquedo, realizado espe­
cialmente pelos Terena de Cachoeirinha e pràticamente ignorado em
Bananal, consiste numa corrida na qual os índios montam cavalinhos
de pau enfeitados e recobertos com couro de vaca e penas de ema.
Manejando lanças procuram alcançar certos objetos postados no
caminho por onde devem seguir. Bach menciona êste jogo (e9),
que a nosso ver, faz lembrar os “torneios” introduzidos no Brasil
pelos portugueses.

FOLGUEDOS E DANÇAS ANUAIS


. De uma forma geral, o “bate-pau” e a “corrida de cavalinho”
representam para os Terena que a êles se apegam, algo distintivo da
tribo. O Serviço de Proteção aos índios tem incentivado êsses fol­
guedos com a intenção de “salvar” o que resta da cultura dos Terena.
O efeito dessas danças sobre os índios é de grande importância. Na
opinião dos brasileiros da região, “é preciso ter cuidado com os
índios durante o “bate-pau”, pois êles ficam muito excitados”.
Pudemos, realmente, observar que na execução dessa dança, alguns
Terena que se mostravam humildes e tímidos no contato diário com
os elementos europeizados da aldeia, assumiam uma atitude de supe-
(69) J. Bach, Op. cit.t pág. 92.
f

370 REVISTA DO MUSEU PAULISTA, W. 8., VOL. III

rioridade e mesmo de hostilidade durante a realização do “bate-pau”.


Um detalhe que mostra essa conciência de grupo dos Terena, du­
rante o bate-pau, revela-se no dístico inscrito, em letras de fôrma,
nos tambores usados para a dança: “Viva os índios”.
As demais danças e jogos dos Terena de Bananal são comuns
aos brasileiros da região. Atualmente, os principais divertimentos
dos índios de Bananal são as danças (“bailes”) e os jogos de futebol.
Acrescente-se a isso ainda as corridas de cavalo, ou “carreiras”,
como são elas chamadas, e os jogos de cartas, mais populares entre
os da nova geração.
As danças ou os “bailes”, como são elas denominadas pelos
índios e brasileiros, são realizadas no interior das casas ou nos ter­
reiros, ao som de violas ou sanfonas. Dança-se a polca paraguaia,
a valsa brasileira, algum maxixe ou marchinha. Os “sucessos musi-,
cais” são introduzidos na aldeia pelos violeiros que os aprendem em
Miranda ou Aquidauana. A etiqueta usada nos bailes é semelhante
à corrente nos bailes em certas partes do interior de São Paulo e
Mato Grosso: a moça não pode recusar um convite para dançar;
não se deve conversar ao dançar pois o contrário significaria namoro
e por tanto um certo compromisso; as mulheres são segregadas dos
homens, sentando-se separadas e distantes dos mesmos; ao se iniciar
a música os cavalheiros sempre em número superior, atiram-se numa
corrida para conquistar um par o que nem sempre conseguem.

O futebol
O futebol, se não o único, é ao menos o preferido dos esportes
da Aldeia, sendo apoiado, às vezes com auxílio financeiro, pelos mo­
radores brasileiros de Taunay e vizinhanças. Existem em Bananal
três quadres de futebol: um deles c liderado por um índio do grupo
“católico” e conta com dez elementos “católicos”, sendo o último
elemento protestante; o segundo quadro, liderado por um “protes­
tante”, conta com dez “protestantes” e um “católico”; o terceiro
quadro, o “quadro da criançada” é composto de elementos que ou
pela idade ou falta de destreza necessária, não conseguem fazer parte
dos dois primeiros. A Aldeia se interessa grandemente pelos jogos
de futebol; há um campo de futebol, gramado, com as demarcações
necessárias. Os dois primeiros quadros possuem camisas de cores
HE VI ST A DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 371

características. A família do encarregado do S. P. I. em Bananal


doou aos diferentes quadros, os calções necessários para completar
o uniforme. Existe na Aldeia um índio que atua como juiz nas
partidas e que, na opinião dos índios, “conhece todas as regras do
jôgo”.
O futebol foi introduzido em Bananal em 1933. As aldeias de
Ipegue e Cachoeirinha também possuem os seus quadros de futebol
e frequentemente se realizam partidas entre essas aldeias e Bananal.
Os índios de Bananal costumam também disputar partidas de fute­
bol com os quadros de Miranda, Aquidauana e Taunay, não só em
seu próprio campo como também nos dessas cidades.

A 66carreira” de cavalos

As corridas de cavalo, ou “carreiras” como são chamadas local­


mente, são muito apreciadas pelos índios de Bananal, especialmente
pelos do grupo “católico”, desde que muitas vezes a sua realização
coincide com os horários das práticas da missão protestante. Existe
em Bananal uma ráia de 400 metros onde são disputadas as corridas.
As “carreiras” são disputadas geralmente entre dois “corredores”
e são combinadas de antemão, mediante apostas. Outras apostas são
feitas, no desenrolar da corrida, entre os próprios assistentes. As
apostas variam de cinco cruzeiros até o próprio valor do cavalo.
Os Terena costumam, ainda, jogar cartas, o que fazem a dinheiro
ou mediante apostas de um número determinado de cigarros. A
Missão protestante tem procurado se opôr aos jogos de azar bem
como aos “bailes”, assim como se opõe ao abuso do álcool; mas quase
todos os elementos da nova geração dos Terena que pertencem ao
grupo protestante tomam parte nesses “bailes” e jogos.
Verificámos, ao examinar as danças e jogos dos Terena, o desa­
parecimento das antigas danças e folguedos e sua gradativa substi­
tuição por danças e divertimentos brasileiros. Devido às instâncias
do Serviço de Proteção aos índios os Terena voltaram a realizar,
com certa regularidade, as suas danças de “bate-pau” e as “corridas
de cavalinho”. Vemos de um lado a pressão da cultura brasileira
que fêz com que o futebol e os “bailes” viessem a constituir os prin­
cipais passatempos dos Terena. De outra parte, num movimento
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oposto, o Serviço de Proteção aos índios, visando “salvar” a cultura


dos Terena, reavivou certas danças Terena, que representam o resul­
tado de adaptações às modificações culturais de outras épocas, hoje
superadas. Podemos resumir essas considerações dizendo que as
danças e jogos dos Terena refletem hoje o fenômeno de mudança
cultural já constatado nos demais aspetos da cultura Terena.

Sumário

Os Terena, pertencentes à família linguística Aruak, são origi­


nários do Chaco, onde viveram até meados do século dezoito. Pene­
trando, ' desde então, em levas sucessivas, no Território Brasileiro,
localizaram-se no Sul do Estado de Mato Grosso. Os seus contatos
com as populações brasileiras foram se intensificando gradativa-
mente, acarretando profundas mudanças na sua cultura. Os Terena
eram originalmente agricultores que entremeavam as atividades
agrícolas com as de caça, pesca e coleta, numa economia auto-sufi­
ciente. No Brasil, passaram êles a fazer parte do sistema latifun­
diário do Sul de Mato Grosso, dependendo economicamente das
fazendas, onde começaram a trabalhar, periodicamente, e para as
quais desde então vendem a sua produção de farinha de mandioca
e rapadura.
Os Terena acham-se distribuídos por ,doze aldeias, nas proxi­
midades de Aquidauana, Taunay e Miranda, totalizando cerca de
três mil índios. Os Terena de hoje são bilíngues, vestem-se com tra­
jes de feitio europeu e vivem em casas semelhantes às das populações
brasileiras da região. Na sua organização social apresentam êles
profundas mudanças com relação ao passado. Nada mais resta da
sua antiga divisão em metades e em classes; a chefia de suas aldeias
é hoje diretamente supervisionada pelo Serviço de Proteção aos
índios, sendo diminuta a autoridade dos “capitães” de índios; a
terminologia de parentesco Terena imita, em certos pontos, a termi­
nologia de parentesco das populações brasileiras.
Com referência à religião, os índios de Bananal aceitaram
muitas das crenças cristãs e se dizem ou “-católicos” ou “protestan­
tes”, constituindo-se em dois grupos de certa forma antagônicos nas
suas atitudes. Grande parte dos Terena foi batizada e criada nas
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, K 8., VOL, III 373

fazendas, visitadas periodicamente por missionários católicos. O


início dos trabalhos de missionários protestantes junto à Aldeia de
Bananal, representa uma nova linha de desenvolvimento dentro do
quadro geral de mudanças sofridas pela cultura Terena,
Os Terena de Bananal, examinados neste trabalho, apresentam
além das mudanças gerais em sua cultura, comuns aos demais Te­
rena, as acarretadas por outros fatores de mudança tais como as
solicitações de missionários de credos diversos (protestantes e cató­
licos) o que motiva a divisão da aldeia em dois grupos. Como o
número dos que integram o grupo “protestante” predomina, Ba­
nanal é considerada uma aldeia “protestante”.
Nos demais aspetos de sua cultura, os Terena apresentam
mudanças que tendem cada vez mais a aproximá-los das populações
brasileiras da região. Assim é que as suas danças e folguedos são,
de maneira geral, danças e folguedos brasileiros ou integrantes da
cultura brasileira. Podemos citar, por exemplo, os bailes e o futebol.
De outra parte, as festas de caráter indígena, tais como o Oheokoti?
“festas dos padres”, e o Kohichoti-kipahé”, “bate-pau”, estão sendo
reavivadas por instância do Serviço de Proteção aos índios, mas não
conseguem isoladamente deter a orientação da mudança cultural dos
Terena.
Se tentarmos sumarizar as causas da mudança cultural sofrida
pelos índios de Bananal, em particular, deveremos mencionar pri­
meiramente o seu deslocamento do Chaco para o Brasil. Ao penetrar
no Sul de Mato Grosso os Terena deixaram atrás de si uma área
sujeita a freqüentes inundações passando a habitar um planalto
cuja terra é menos fértil e onde os recursos de água não são abun­
dantes durante a estação seca. De outra parte, libertaram-se das
incursões de pilhagem a que os submetiam as vizinhas tribos chaquea-
nas. Passando a fazer parte do sistema político brasileiro desapa­
receram os fundamentos em que se baseava a sua antiga estrutura
em classes; “chefes” Terena passaram a receber patentes de oficiais
do Exército Imperial Brasileiro. As autoridades brasileiras ao
reconhecer um único chefe para cada aldeia contribuiram para o
desaparecimento dos “conselhos” ou “assembléias” bem como da
duplicidade de chefes responsáveis, respeetivamente pelas duas me­
tades em que se dividiam os antigos Terena. A mudança de ambiente
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tornou inoperantes muitos elementos da antiga cultura dos Terena:


os seus médicos-feiticeiros, por exemplo, já não eram mais conside­
rados capazes de curar; os sêres sobrenaturais, controladores das
chuvas e ventos, outrora importantes no Chaco, não o pareciam ser
nas novas áreas protegidas contra os perigos de inundações; as técni­
cas de caça e pesca tornaram-se inúteis desde que não podiam ser
mais utilizadas por falta de territórios adequados; finalmente, o
contato com as populações brasileiras e seu sistema econômico criou
para os Terena a necessidade de obter grande número de novos
artigos que êles não eram capazes de produzir. A antiga cultura
Terena não lhes permitia resolver os novos problemas criados com
a mudança de ambiente dando lugar a uma crescente insatisfação
e desejo de mudança; de outra parte as populações brasileiras ofere­
ciam aos Terena sugestões de novas formas culturais. De início é
provável que as mudanças tenham ocorrido no campo tecnológico,
ganhando gradativamente os demais aspetos da cultura.
O movimento expansionista das fazendas de criação, no Sul de
Mato Grosso, envolvendo as terras ocupadas pelos Terena, levou-os
a uma desorganização bastante adeantada e quase completa destri-
balizaçao. Finalmente, a concessão de terras aos índios e a criação
de um Serviço de Proteção aos índios, permitiu aos Terena se reor­
ganizarem, afluindo para os postos indígenas, como aconteceu por
exemplo no caso da Aldeia de Bananal que conta hoje com cêrca
de novecentos índios.
Mas o processo de mudança cultural dos Terena prossegue ainda
nas diferentes aldeias, por motivos ligados às peculiaridades locais.
No caso especial de Bananal, examinado neste trabalho, são os Te­
rena solicitados por três grupos de forças: primeiramente as da
antiga cultura, representadas pela geração mais antiga; em segundo
lugar, o Serviço de Proteção aos índios e, de certa forma, as fazen­
das e aldeias brasileiras vizinhas, atuando em sentido oposto e levan­
do a um comportamento mais afim com a cultura brasileira; em
terceiro lugar, os missionários protestantes, exigindo dos índios a
renúncia de certos elementos culturais e a adoção de outros, em sen­
tido divergente das culturas Terena e brasileira.
Após a fundação do Serviço de Proteção aos índios e a garantia
oferecida aos Terena da posse de suas terras, Bananal, então uma
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pequena aldeia, começou a crescer até superar todas as demais


aldeias Terena. A ligação ferroviária Porto Esperança-Campo
Grande acarretou grande desenvolvimento na região, intensificando
os contatos dos índios com as populações brasileiras. Em' 1913 o
estabelecimento da Inland South America Missionary Union junto
à Aldeia de Bananal não só veio acarretar mudanças nas crenças
dos índios mas trouxe-lhes novas técnicas com a fundação de uma
escola; a geração atual dos homens adultos alfabetizados de Bananal
aprendeu a ler com os missionários da Missionary Union. Em 1915,
quando da fundação de um posto do S. P. I. em Bananal, os Terena
não alcançavam mais do que algumas centenas, mas já se sentiam
com forças para questionar com os fazendeiros. Na crônica oral do
S. P. I. os Terena de Bananal eram “perigosos e sempre prontos a.
se rebelar”. A prisão do “capitão” dos Terena, Marcolino Wollily,
em 1930, sob a acusação de fomentar a rebelião dos índios, demons­
tra a capacidade que os Terena de Bananal haviam adquirido de
agir como unidade. A oposição dos Terena aos fazendeiros favo­
recia a aceitação das crenças pregadas pela Missionary Union,
crenças essas que faziam de Bananal uma aldeia Terena diferente
das outras aldeias. De um lado, a aceitação das crenças protes­
tantes e das novas técnicas ensinadas por eles contribuiu para dar
aos Terena de Bananal uma maior unidade e auto-respeito; de outra
parte a oposição das populações brasileiras, tradicionalmente cató­
licas, às novas crenças, favoreceu a aceitação das mesmas pelos índios.
Entretanto a atividade dos missionários acarretou uma compe­
tição religiosa ao redor da Aldeia de Bananal. Em 1930 missioná­
rios católicos norte-americanos, da ordem dos Padres Redemptoristas,
estabeleceram-se em Aquidauana e incluiram Bananal na órbita de
suas atividades, desde que havia índios não protestantes naquela
aldeia. Isso veio, naturalmente, aumentar a divisão entre os grupos
“protestantes” e “católicos” em Bananal.
As autoridades do S. P. I. se ressentem do prestígio dos mis­
sionários protestantes junto aos Terena de Bananal, o que às vezes
interfere com a sua política administrativa. Consequentemente,
desenvolvem elas atitudes favoráveis aos índios do grupo denominado
“católico”.
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Os Terena se vestem e se comportam eomo brasileiros; a maioria


fala o português, além da língua Terena, Mas, se interrogados, êles
dirão: “Nos, os índios Terena*. Os missionários afirmam que
os “Terena são fracos moralmente”; os funcionários do S. P. I.
asseguram que os “Terena são crianças grandes”, embora sejam
“crianças perigosas e traiçoeiras”. A razão é que os Terena muitas
vezes negligenciam suas obrigações para com o Pôsto do S. P. I. e
esquecem compromissos assumidos para com os missionários, entre­
gam-se à embriagues e, em geral, mudam de credo religioso sem
razão aparente. Os Terena parecem traduzir, no seu comportamento,
não haverem atingido um ajustamento satisfatório nem a unidade
interna que esse ajustamento acarretaria. E dentre as muitas razões
que poderíam ser apontadas para justificar essa falta de ajustamento
satisfatório, mencionaremos as seguintes:
Primeiramente, a tutela do Serviço de Proteção aos índios res­
tringido a liberdade dos Terena, protegendo-os de uma parte, contra
a espoliação por parte das populações brasileiras vizinhas ou de
novos colonizadores, mas retardando, indefinidamente a sua capa­
cidade de auto-determinação.
Em segundo lugar a dificuldade em que se encontram os Terena
de alcançarem uma paridade econômica com as vizinhas populações
brasileiras. Embora a terra de que dispõe não seja especialmente
boa para a agricultura, os Terena poderiam sem grandes dificul­
dades produzir mais do que necessitam para o próprio sustento.
Continuam porém numa economia de subsistência, consumindo ou
vendendo o que produzem e alugando-se, depois, como trabalhadores,
. nas fazendas vizinhas, em prejuizo de suas plantações.
O ajustamento dos Terena à cultura das populações brasileiras
vem se processando com dificuldade e lentamente. Mas se compa­
rarmos os Terena com as demais tribos de índios do Brasil, teremos
que admitir que êles constituem o exemplo mais feliz de ajustamento
que podemos citar.
Não pretendemos neste nosso estudo, em absoluto, ter esgotado
o assunto. Muito $0 contrário, reconhecemos as limitações dêste
trabalho, decorrentes, aliás, do pequeno espaço de tempo que nos
foi dado permanecer junto aos Terena de Bananal. Desejamos
repetir aqui o que já frizámos na introdução desta tese: este estudo
REVISTA DO MUSEU PAULISTA, N. 8., VOL. III 377

se baseou em um trabalho de campo e as hipóteses por ventura levan­


tadas sobre o material colhido não pretendem ser ás únicas possíveis,
nem as obrigatoriamente válidas. A nosso ver elas poderíam servir
de base para futuras pesquisas de campo mais intensas e completas.
Seria, por exemplo, de grande oportunidade um estudo comparativo
entre as diferentes comunidades de índios Terena, cada uma delas
sujeita a diferentes situações físicas e sociais. O trabalho que aqui
concluímos parece mostrar a existência de um preconceito com rela­
ção ao índio, na área Sul de Mato Grosso; seria interessante um
trabalho em que se procurasse verificar até que ponto é verdadeira
essa afirmação. No campo linguístico parece-nos de grande inte­
resse um trabalho em que se procurasse completar o estudo da
língua Terena, desde que esses índios constituem o grupo Aruak
mais numeroso em todo o Brasil. Essas são algumas sugestões de
pesquisa que, se levadas avante, justificariam este trabalho.

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