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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO

UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS


PRÓ-REITORIA DE GRADUAÇÃO

Trabalho de Conclusão de Curso

A Mortalidade de Inocentes Escravos em São Francisco de Paula


(1812-1834)

Rachel dos Santos Marques

Orientador: Prof. Dr. Adhemar Lourenço da Silva Júnior

Pelotas, agosto de 2009


RACHEL DOS SANTOS MARQUES

A MORTALIDADE DE INOCENTES ESCRAVOS EM SÃO FRANCISCO DE


PAULA (1812-1834)

Trabalho acadêmico apresentado ao


Curso de Licenciatura em História da
Universidade Federal de Pelotas, como
requisito parcial à obtenção do título de
Licenciado em História.

Orientador: Prof. Dr. Adhemar Lourenço da Silva Júnior

Pelotas, 2009
Banca Examinadora:

Prof. Dr. Adhemar Lourenço da Silva Júnior

Profa. Dra. Martha Daisson Hameister


Agradecimentos

Agradeço, em primeiro lugar, à minha família - nuclear e estendida – pelo


apoio dado, o incentivo nos estudos, e a compreensão, por todas as vezes em que
precisei deixar de estar presente para encaminhar os estudos. A meus pais (os três),
agradeço por sempre acreditarem em mim, sempre permitirem que eu fizesse
minhas próprias escolhas, e sempre estarem do meu lado quando foi preciso. À
Helena e à Laura, agradeço por “segurarem a barra” quando necessário, agradeço
pelas conversas, pelas brincadeiras e pelas alegrias, e peço desculpas por todos os
milhares de pedidos de silêncio, berrados de dentro do quarto. À Sofia, pequena
fonte de encantamento que nasceu praticamente junto com meu ingresso no Curso
de História, agradeço por ter enchido minha vida de alegria.
Depois vêm os amigos, que não só me apoiaram, como me agüentaram
falando milhões de vezes sobre a mesma coisa, e mesmo assim escutaram. A
Jacqueline e a Thaís tiveram uma paciência de anjo, e me ajudaram com idéias
discussões, questionamentos. O Tiago e a Carol, compreenderam meus sumiços, e
sempre estiveram presentes nos momentos em que precisei descontrair. À Ane, à
Aline, à Débora, à Iria, e à Roberta, agradeço por estarem do meu lado não só
durante a faculdade, mas por todos esses anos.
Outras pessoas devem ser mencionadas. Meus avós, que me viram cada
vez menos nesses últimos tempos. A Angélica, que sempre me ajudou a trilhar o
caminho que eu escolhi, seja com orientações, seja com “puxões de orelha”. A Mari,
e seu mate sempre pronto; o Vini e a Fran, sempre me proporcionando boas risadas;
o Sandro e a Ana, sempre dispostos a receber as sobrinhas viajantes. Obrigada a
todos vocês.
À Martha, um agradecimento especial, não apenas pela orientação, pela
dedicação, e pela disposição, mas por ser um exemplo de professor, e um exemplo
de profissional. Poucas pessoas no meio acadêmico possuem essa dedicação em
fazer o que quer que seja bem feito, e essa disposição em ajudar todos os “jacús”
que, desesperados e desorientados, batem à sua porta pedindo socorro.
Ao professor Adhemar, agradeço por ter aceitado entrar nessa “empreitada”,
comprando brigas que não eram suas. Aos professores Beatriz e Mario Osório,
agradeço pelo material, pelas conversas e pelo apoio.
Por fim, agradeço à Diocese de Pelotas, que me permitiu o acesso as fontes
sem as quais esse trabalho não seria possível.
Sumário

Introdução...................................................................................................................6
Capítulo I.....................................................................................................................8
Capítulo II..................................................................................................................18
Considerações Finais................................................................................................26
Referências...............................................................................................................27
Introdução

A presente pesquisa foi produzida como trabalho de conclusão do curso de


licenciatura plena em História da Universidade Federal de Pelotas. Como tal,
procura não somente cumprir seu papel na formação de um profissional de História
– que deve incluir as habilidades de pesquisar e produzir -, mas também ser uma
contribuição à historiografia em geral, e à historiografia da escravidão em específico.
É portanto, também um exercício historiográfico, na medida em que permitiu um
conhecimento mais aprofundado de fontes, metodologias e procedimentos.
O trabalho que apresento trata da mortalidade de inocentes escravos na
freguesia de São Francisco de Paula, no Rio grande do Sul, entre os anos de 1812 e
1834. O marco inicial se dá em função do início da documentação que serviu de
fonte a este trabalho, qual seja, os registros de batismo e óbito da Freguesia. O
marco final, em função do início da Revolução Farroupilha, em 1835, que
desestabilizou a sociedade Rio-Grandense, e que gerou um grande deslocamento
de pessoas, seja em direção à guerra, seja fugindo dela.
As fontes primárias utilizadas na pesquisa são os Registros de Óbitos de
Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula, disponíveis hoje na Diocese de
Pelotas. Nesse ponto gostaria de colocar que a idéia original da pesquisa era
trabalhar a região de Canguçu – cidade do interior do Rio Grande do Sul, cuja
freguesia data de 1800, que não era tão afetada pelo tráfico de escravos, fator que
poderia afetar a taxa de mortalidade. Isso não foi possível em função da inexistência
ou o desaparecimento do livro de óbitos de escravos. Tendo a crer na segunda
alternativa, pois existem e estão disponíveis os livros referentes ao batismo de
escravos. Relato esse caso com a intenção de alertar para um fato infelizmente já
conhecido dos pesquisadores que trabalham com registros paroquiais, o
desaparecimento das fontes, e o aumento das dificuldades de pesquisa em função
de um problema que já não é próprio da geração da fonte ou do período estudado,
mas contemporâneo.
Para a Freguesia de São Francisco de Paula estão completas as séries
documentais, e, no caso dos registros de óbitos de escravos, existem livros que
cobrem o período de 1812 a 1887. O período que analiso está contido no Primeiro
Livro de Óbito de Escravos (1818-1846), onde analiso, como já foi dito, a
mortalidade de inocentes escravos. O termo inocente era usado para designar as
pessoas que ainda não fizeram a crisma, a confirmação na fé católica, cuja idade
própria para ser feita era 7 anos. Porém o uso que se faz do termo nesse trabalho se
refere à pessoas de até 8 anos, pois também essas assim foram designadas nas
fontes consultadas.
No primeiro capítulo é apresentada uma breve discussão da historiografia
que subsidiou a feitura desse trabalho. No segundo, são apresentados os problemas
metodológicos encontrados e os resultados da pesquisa. Salienta-se, porém, que o
trabalho aqui apresentado é mais em um experimento e um exercício de pesquisa
do que uma obra acabada, mas que pretende identificar limites e possibilidades de
um estudo sobre a demografia de uma região charqueadora, se constituindo, quem
sabe, enquanto possível auxílio e referência a demais estudos dessa ordem.
Capítulo I

Pelotas foi por muito tempo considerada um grande centro cultural do Rio
Grande do Sul. Tal efervescência cultural foi permitida pelo desenvolvimento
econômico que teve a região, através da produção do charque e de outros produtos
extraídos do gado, como couros, sebos, etc., além do comércio que se desenvolvia
em localidades de grande desenvolvimento econômico. No entanto, é importante
perceber o meio através do qual gerou-se a riqueza que serviu de base a essa
sociedade de opulência: o trabalho escravo como principal relação de trabalho.
A utilização de mão-de-obra escrava precede, inclusive, a formação das
charqueadas pelotenses. Há muitos indícios da presença de escravos entre os
povoadores da vila de Rio Grande 1 – que englobava os territórios onde mais tarde
vão se formar, respectivamente, a Freguesia São Francisco de Paula, a vila São
Francisco de Paula e a Cidade de Pelotas.
A vila de Rio Grande de formou-se em torno do forte de Jesus Maria José,
fundado em 1737. Desde então tem-se notícias do povoamento “extra-oficial” da
região de Pelotas 2, principalmente por, lagunenses cariocas, lusos da península e,
em seguida, alguns casais açorianos. Tudo isso se deu sem os ordenamentos
legais. Oficialmente, se conhece a doação, em 1758, de uma sesmaria a Tomás Luis
Osório 3. É provável que o sesmeiro não tenha conhecido suas terras, e é a partir da

1
HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar Calor à Nova Povoação: estratégias sociais e familares na
formação da Vila do Rio Grande através dos Registros Batismais (c.1738-c.1763), 2006, Tese.
(Doutorado em História Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; MAESTRI,
Mário. O Escravo no Rio Grande do Sul Trabalho Resistência Sociedade. 3.ed. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2006; QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande:
FURG, 1987.
2
“Afora achados arqueológicos, raros, sobre populações indígenas, a mais velha informação que se
tem sobre o atual município de Pelotas dá notícia da presença, nos seus limites, de um integrante
daquela remota expedição de João de Magalhães (1725): Luiz Gonçalves Viana”. MAGALHÃES,
Mario Osorio. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre
a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: Editora da UFPel/Livraria Mundial, 1993.
3
A sesmaria em questão incluiria um vasto território que ficava “à margem esquerda do arroio
Pelotas, abrangendo, entre outras extensões, os balneários do Laranjal e a Colônia Z-3”
MAGALHÃES, Op. Cit.
venda da sesmaria, realizada por sua viúva, que vai dar-se a origem das primeiras
grandes estâncias.
O povoamento do território onde hoje se encontra Pelotas intensifica-se com
a tomada de Colônia do Sacramento e de Rio Grande pelos castelhanos, já que boa
parte da população das duas vilas portuguesas foge e se espalha pelo território
sulino. Com o fim da dominação espanhola em Rio Grande 1776, e com o tratado de
Santo Ildefonso (1777), no qual definem-se algumas questões de fronteira entre os
países Ibéricos (a disputa permanecerá, porém em outros locais da província), o
povoamento da região se intensifica, ainda que sua ocupação mais significativa se
dê no início do século XIX.
A partir da divisão e venda de sesmarias, da ocupação do território por
casais açorianos, e por descendentes de trasmontanos e minhotos, originários
principalmente de Colônia do Sacramento 4, e da compra de terras por homens
provenientes de outras localidade, vão ser criadas estâncias que se ocuparão,
principalmente, da criação de gado, da agricultura de subsistência, e do plantio do
trigo, todas essa ocupações utilizando mão-de-obra escrava 5. Parte dessas
estâncias vão, aos poucos, sendo repartidas em terrenos menores e vendidas, e
neles sendo instaladas as charqueadas.
José Pinto Martins foi, provavelmente, o primeiro a estabelecer uma
empresa charqueadora em Pelotas. Por empresa charqueadora, me refiro à
produção de charque em larga escala, considerando que a fabricação de carnes não
era assunto desconhecido, nem era tão somente utilizada no âmbito doméstico de
quem produzia 6. Retirante de uma grande seca no Ceará, em 1777, José Pinto

4
MAGALHÃES, Op. Cit.
5
BAKOS, Margaret Marchiori. RS: Escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982;
GUTIERRES, Ester J. B. Negros, Charqueadas e Olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.
Pelotas: Editora Universitária/UFPel; Livraria Mundial, 1993; CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e
Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São
Paulo: DIFEL, 1962.
6
Ainda que se tenha José Pinto Martins como um dos responsáveis pelo início da fabricação de
charque em larga escala, é preciso ressaltar, no entanto, que a produção que se estabeleceu às
margens do arroio Pelotas era muito distinta da produção de carne de sol ou carne seca que se fazia
no nordeste. Essas últimas são peças inteiras de carne desidratada, enquanto o charque se constitui
de finas mantas de carne postas pra secar, e que utilizam muito mais sal. Crê-se que a tecnologia do
charque tem origem andina, onde era muito utilizada pelos indígenas para a feitura de alimentos
desidratados: “Parte de la carne era convertida en charqui, que se conservaba bien en las
condiciones andinas. (...) Los guanacos machos se cazaban para charqui, que era almacenando en
los depositos estatales “para alimentar al ejército [do Inca]. (...) Junto con otros productos del la puna,
los colla cambiaban el charqui por maíz, frutas y coca con sus parientes trasladados a las yungas”;
“CHARQUI: (Q.Ch’arki) carne u otro tejido animal, alternativamente helada y asoleada; hecha
Martins instala-se, pouco tempo depois, na margem direita do arroio Pelotas. A
localização se dá em função da possibilidade de escoar a produção por via fluvial e
de, ao mesmo tempo, ficar distante o suficiente dos ventos e da areia de Rio
Grande. Aos poucos, outras charqueadas foram surgindo. Acredita-se que tenham
existido, simultaneamente, um mínimo de 18 e um máximo de 40 charqueadas no
período anterior a 1835 7.
Com o desenvolvimento das charqueadas desenvolve-se também a região,
de forma que os moradores solicitam a criação de um Freguesia, que é criada em
1812, sob o nome de São Francisco de Paula. Os registros existentes hoje na
Diocese de Pelotas têm, portanto, aí seu marco inicial. A Freguesia recebeu o
estatuto de Vila em 1832, e em 1837 a Vila de São Francisco de Paula é elevada à
condição de cidade, dessa vez com o nome que era-lhe usual: Pelotas.
As charqueadas, produzindo em grande quantidade e para exportação,
necessitavam, de uma grande quantidade de “braços” para a realização de suas
atividades. Por esse motivo a escravidão em Pelotas, mais precisamente a
escravidão nas charqueadas pelotenses, foi tida como o fator responsável pelo
desenvolvimento de um sistema escravista propriamente dito no Rio Grande do Sul.
Essa idéia foi veiculada principalmente por Fernando Henrique Cardoso 8. O autor
considera a existência de trabalho escravo no Rio Grande do Sul desde os primeiros
tempos de colonização, porém não o toma como representativo de um sistema
escravista, sendo a utilização do trabalhador cativo apenas esporádica. Seria
apenas a vinculação a um mercado externo o fator capaz de gerar a necessidade da
mão-de-obra escrava. Isso teria se dado, primeiramente, com a produção do trigo,
entre o final do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. Como, porém, a
produção trigueira não prospera, em função de problemas como a ferrugem, é
apenas com a produção do charque, segundo esse autor, que a escravidão vai se
estabelecer plenamente no Rio Grande do Sul.
O trabalho de Cardoso foi importante por se contrapor à idéia de uma
escravidão mais branda no Rio Grande do Sul do que em outras localidades do país,
e também por dar a devida importância, em termos demográficos, à presença negra
no estado - já que a maioria dos trabalhos anteriores referentes à história do Rio

conserva” (no Glosario). In: MURRA, John. La Organización Económica del Estado Inca. México:
Siglo XXI, 1978. p. 25 e 88-89
7
MAGALHÃES, Op. Cit.
8
CARDOSO, Op. Cit.
grande do Sul consideravam a parcela escrava da população muito pequena se
comparada àquela das populações livre branca e indígena. No entanto Cardoso não
diferencia-se muito dessa produção no que se refere ao peso do trabalho escravo
nas demais unidades produtivas gaúchas, já que o mesmo seria apenas
circunstancial, como foi referido 9. Além disso a idéia passada pelo trabalho de
Cardoso, com relação às atividades econômicas no Rio Grande, principalmente o
tropeirismo, era a de que as oportunidades estavam disponíveis da mesma maneira
para todos que aqui se aventuravam. No entanto, pesquisas mais recentes 10, vêm
salientando as maiores facilidades em se estabelecer encontradas por aqueles que
já possuíssem algum cabedal, seja ele financeiro, de relações ou de prestígio.
Não é o objetivo deste trabalho discutir o caráter do escravismo gaúcho.
Devo ressaltar, porém, que, embora a região charqueadora tenha configurado
provavelmente o principal pólo escravista no Rio Grande do Sul, não se deve
subestimar a presença cativa em outras regiões, e em outras atividades. Presença
essa que aparece inclusive na região charqueadora, empregada em outras
atividades 11, e que portanto faz parte do corpo social que deu origem aos registros
com os quais trabalho.
A historiografia acerca da escravidão em Pelotas é bastante significativa,
embora a maioria dos trabalhos possuam abordagens bastante próximas. São
trabalhadas principalmente questões como a violência sofrida pelo cativo, e as
formas de resistência do mesmo 12. Muito rapidamente se trata das condições de
vida da escravaria, e menores ainda são as referências a questões como família
escrava e reprodução dos escravos.
Entre a produção existente temos a de Maestri que, assim como Cardoso,
considera que é com a produção do charque, a partir das duas últimas décadas
século XVIII, que “pela primeira vez se estruturará no Sul um modo de produção

9
XAVIER, Regina Célia Lima et al. História da Escravidão no Brasil Meridional: guia bibliográfico.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 30.
10
GIL, Tiago Luís: Coisas do caminho: Tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-
1810). Tese. 2009. (Doutorado em História Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro; OSORIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na constituição da estremadua
portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822.: Tese. 1999. (Doutorado em História
Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
11
GUTIERRES, Op. Cit.; FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade
agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). 2007.
12
CARDOSO, Op. Cit.; MAESTRI, Op. Cit.; BAKOS, Op. Cit.; ASSUNPÇÃO, J. E. O Negro nas
Charqueadas Pelotenses. In: TRIUMPHO, Vera (org.). Rio Grande do Sul: Aspectos da Negritude.
Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1991.; AL-ALAM, C. C. A negra forca da princesa: polícia, pena
de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Edição do Autor; Sebo Icária, 2008.
efetivamente escravista” 13. E, assim como Cardoso, traz a idéia do escravo
“coisificado” 14, alienado de sua humanidade a não ser quando se rebelava. Seu
texto trata, então, das tarefas em que os escravos eram empregados, da violência a
que eram submetidos, e das formas de resistência que utilizavam.
No mesmo sentido discorre Assunpção, num texto que trata de forma geral
da escravidão do negro nas charqueadas pelotenses. Acerca do tratamento dado ao
cativo, afirma que:
A vida dos escravos nas charqueadas era dura, pois as
mesmas tinham seu período produtivo de novembro a maio.
Nestes meses os senhores tiravam do escravo o maior
rendimento que estes poderiam dar, ocasionando jornadas
extremamente longas de trabalho. Nas antigas charqueadas a
matança era feita durante a noite 15

No trabalho desse autor também encontramos outras noções referentes à


dureza da vida cativa, como a dificuldade de reprodução natural da escravaria, em
função do elevada taxa de masculinidade, e da contrariedade dos senhores com
relação a esse aspecto, fator que será discutido mais adiante.
Além do trabalho de Assumpção sobre as condições da vida e do trabalho
escravo nas charqueadas, temos em Gutierrez um panorama do ambiente em que
viviam os escravos nas charqueadas. Preocupada, em seu trabalho, principalmente
com a formação do espaço pelotense no século XIX, cita a falta de registro acerca
das senzalas, mas considera que seria
Impossível deixar ao relento centenas de cativos,
principalmente, porque a temperatura chegava a registrar zero
grau centigrado; ventos, que podiam alcançar até 100 km por
hora, vinham do nordeste, em todas as épocas do ano,
varrendo o Atlântico e a laguna dos Patos, e, do sudoeste,
proveniente da Patagônia, soprava o Minuano, principalmente,
nos meses de inverno. As fábricas implantavam-se em lugares
ribeirinhos, alagadiços, numa região onde a média da umidade
do ar é de 80%. Por tudo isso, o frio parece ser superior à dos
termômetros (sic).
Possivelmente, uma pequena parcela de escravos, a de oficio
e a de domésticos, ficasse acomodada no pavimento térreo
das residências de dois pisos. A população servil, que

13
MAESTRI, Op. Cit., p. 74.
14
“O escravo, como ‘coisa’ produtiva, tem que se ocupar das atividades que lhe são votadas;
entregar a totalidade (ao menos formalmente) dos frutos do seu trabalho; viver com o que seu senhor
julgue bom lhe entregar [...] O escravismo exigia, efetivamente, que o escravo se transformasse em
uma máquina, que alienasse ao máximo sua humanidade”. MAESTRI, Op. Cit., p. 112-113.
15
ASSUMPÇÃO. Op. Cit., p. 120
trabalhava diretamente no processo de produção do charque,
deveria ocupar algum galpão junto aos outros, destinados às
diversas tarefas da elaboração da carne salgada, conforme
indicado no inventário de Francisco Medina, proprietário do
saladeiro Colla, na Banda Oriental do Uruguai. 16

Apesar da existência desses trabalhos, que fazem referência às condições


de vida dos cativos, muito pouco é falado acerca das questões referentes à família
escrava, reprodução e mortalidade. Quanto se trata desses aspectos quase sempre
isso é feito a partir da perspectiva da impossibilidade do crescimento natural da
população escrava devido ao chamado cálculo econômico feito pelo senhor. Tal
cálculo é explicado por Gorender:
No regime escravista, a criação dos filhos das escravas
constitui um ônus para o senhor. É ele quem fornece os meios
– alimentos, vestuário, habitação, etc. – para que os filhos das
escravas se desenvolvam até a idade adulta. Cada filho de
escrava representa, por conseguinte, um acréscimo de
despesa de resultados aleatórios. É certo que, se tudo corresse
favoravelmente, ao fim de 16 anos disporia o plantador de um
escravo novo, apto ao trabalho em sua plenitude. Mas a
experiência demonstrou que os escravistas preferiam a compra
de escravos adultos e adolescentes ao risco de criar filhos de
suas escravas ou comprar molequinhos. 17

Esse cálculo seria vigente desde que houvesse sempre a possibilidade de


adquirir novos escravos através do trafico. Com o fim desse, a situação se
modificaria, e os senhores teriam um cuidado maior com a vida do escravo. Mas isso
só se daria, como se sabe, na segunda metade do século XIX.
Nesse sentido, também Maestri fala da “impossibilidade estrutural da
população feitorizada de garantir sua reprodução” 18, e cita, como argumento, a alta
taxa de masculinidade entre os escravos encontrada por Assumpção (82.6%)
através da qual se poderia “intuir a precariedade extrema de laços familiares entre
essa população, para não falarmos simplesmente da dificuldade de simples acesso
à convivência com mulheres” 19.
Assumpção, por sua vez, complementa a apresentação de dados
estatísticos com um referência a Gonçalves Chaves - conhecido charqueador e dono

16
GUTIERRES. Op. Cit., p. 85.
17
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1992 (1978), p. 321-322
18
MAESTRI. Op. Cit., p. 112
19
MAESTRI, Op. Cit. P. 113
de diversos escravos que, no primeiro quartel do século XIX, pregava o fim da
escravidão por considerá-la anti-econômica - no que concerne à família escrava:
O senhor não quer que o escravo case porque o incomoda com
isso e acontece também não ter fundos para comprar-lhe
mulher, ao mesmo tempo que é inconciliável casá-lo fora de
casa. Os senhores de grandes fazendas, como lhes é fácil
obter escravos robustos por pouco dinheiro, não tratam da
tardia procriação, que não vale, segundo frase de muitos, a
pena cuidar de crianças; e se chegam a consentir alguns
casais, não prestam as ditas crianças os necessários socorros,
pelos que morrem à míngua. 20

Se o nascimento de escravos não é incentivado, a vida da criança escrava


também não seria foco de preocupação dos senhores, o que levaria a uma alta
mortalidade infantil. Diversos são os estudos acerca desse tema, embora os
mesmos não sejam voltados para a região em questão.
Assim, Gertze estuda a mortalidade infantil nos Registros de Óbitos de
Escravos sepultados no cemitério da Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre,
entre os anos 1850 e 1872. A autora expõe que, para o período estudado, dos 4.511
sepultamentos de escravos registrados, 2.503 deles eram de crianças entre 0 e 14
anos, ou seja, 55,48%. A autora atribui essa alta taxa à realidade das crianças
escravas, que seria “bastante dura”, ao “desinteresse” 21 dos proprietários, no
cuidado das crianças e, inclusive a um “precário atendimento que recebiam de suas
mães”. Estas “retornavam ‘ao trabalho [...] num espaço e tempo curto: cerca de três
dias” 22. Entretanto a autora afirma que pouco se sabe de concreto a respeito das
condições de vida das crianças escravas, e diz que
se é relativamente fácil inferir acerca da situação sanitária
como fator de influência na mortalidade, atingindo também a
população livre e branca, a busca de respostas nas condições
de vida dos escravos exige primeiramente que se investigue
profundamente este aspecto do escravismo do Rio Grande do

20
CHAVES, Gonçalves apud ASSUNPÇÃO. Op. Cit., p. 123.
21
“parece ter havido um desinteresse por parte dos proprietários de escravos em relação à
procriação dos cativos e, sobretudo, ao que se referia à mortalidade infantil. A percepção de que os
cuidados com gestantes e depois com os recém-nascidos implicariam em um investimento maior
explica, assim, a opção de certos senhores por adquirir no mercado ‘escravos novos’ para o aumento
do seu plantel” GERTZE, J. M. Notas para o estudo da mortalidade infantil entre a população escrava
no Rio Grande do Sul. In: I Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra no Rio Grande do Sul, 1990,
Porto Alegre. Anais do I Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre : Editora da PUC/RS, 1990. v. Único, p. 139.
22
GERTZE, Op. Cit., p. 138.
Sul. Por ora, considera-se mais prudente mencionar esta
questão hipoteticamente 23

Essa perspectiva que define a impossibilidade da reprodução escrava e da


formação de famílias em função do cálculo econômico realizado pelo senhor, tem
sido bastante questionada. A esse respeito, o trabalho de João Fragoso e Manolo
Florentino é pioneiro. No artigo Marcelino, filho de Inocência crioula, Neto de Joana
Cabinda: Um Estudo Sobre Famílias Escravas em Paraíba do Sul (1835-1872) os
autores apresentam dados que demonstram não só a existência de laços de
parentesco entre os escravos, como também a sua manutenção por várias
gerações.
Com relação às afirmações de promiscuidade das senzalas e inexistência de
condições para a formação de famílias de cativos antes da abolição do tráfico
atlântico, os autores argumentam que as mesmas são feitas com base numa visão
da empresa mercantil como existindo sempre em funcionamento ótimo, sem
variações no tempo e no espaço; e que assumem “a mentalidade reificadora dos
senhores acerca dos escravos, para a qual estes eram simples bens econômicos,
desprovidos de toda e qualquer humanidade” 24
Ainda que não descartando a relação entre o tráfico atlântico e a formação
de famílias, afirmam que a lógica demográfica dos escravos independia em certa
medida desse fator:
Este raciocínio circular e reificador dificilmente poderia explicar
a situação de região-objeto, onde, apesar do desequilíbrio na
distribuição sexual e de uma dada opção pelo tráfico atlântico
como veículo de reprodução, eram altos os percentuais de
famílias escravas para o período anterior a 1850. 25

A partir disso, toda uma nova produção tem sido gerada, a partir de fontes
documentais, que trata das questões da família escrava, nascimentos e mortes de
crianças. Vão Alguns desses trabalhos relacionam mortalidade e tráfico, mortalidade
e família, família e tráfico, ou ainda os três elementos em conjunto.
Nesse sentido, Assis traz dados diferenciais em sua análise da mortalidade
escrava em Saquarema no período de 1774 a 1819. O primeiro deles é a relação

23
GERTZE, Op. Cit., p. 157.
24
FRAGOSO & FLORENTINO, Marcelino, filho de Inocência crioula, Neto de Joana Cabinda: Um
Estudo Sobre Famílias Escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). In: Revista Estudos Econômicos
1987, p. 161.
25
FRAGOSO & FLORENTINO, Op. Cit. p. 160-161
entre tráfico de africanos e mortalidade: devido ao choque microbiano a entrada de
novas levas de cativos levava sempre a um aumento na mortalidade geral. Isso valia
também, e talvez mais fortemente, inclusive, para a mortalidade infantil,
considerando que mais da metade dos crioulos que foram enterrados em
Saquarema eram crianças 26.
Essa relação entre mortalidade e tráfico também é estudada por Sheila de
Castro Faria, que trabalha com os registros de óbitos de algumas freguesias do
sudeste nos séculos XVIII e XIX:
Indiscutivelmente, eram crianças abaixo dos 10 anos as que
mais morriam, livres ou escravas. Os dados proporcionais são
ainda mais alarmantes, se levarmos em conta a grande entrada
de pessoas adultas na região, fossem escravos, através do
tráfico, fossem livres, através da migração espontânea. As
terríveis “febres” impediam efetivamente que pelo menos
metade dos que nasciam chegassem aos 10 anos de idade 27

A autora faz também uma comparação entre dados referentes à mortalidade


de escravos, de um lado, e livres/libertos de outro, embora não de forma
proporcional:
A grande maioria das mortes na população livre/liberta dava-se
antes dos 10 anos de idade. Em 6.001 óbitos, 2.997 ou 50%
tinham menos de 10 anos e, destes, 2.046 ou 68% não
chegaram a completar um ano de vida. Entre escravos, o
quadro geral aparentemente era menos drástico, já que em
2.144 registros, 937 (44%) eram de crianças com menos de 10
anos, mas destas, 883, ou 95%, morreram antes de 1 ano. As
idades da morte em meados do século XIX reproduziram
percentuais semelhantes: 53% entre livres/libertos e 45% de
escravos faleceram antes dos 10 anos, sendo 48% e 59%,
respectivamente, falecidos antes de 1 ano. 28

Faria argumenta, porém, que esses dados não devem indicar uma melhor
condição de vida das crianças escravas, pois são fruto apenas do “padrão
demográfico do tráfico africano, que introduzia mais adultos e homens do que
mulheres e crianças”. 29 Ela afirma, ainda, que as crianças abaixo de 10 anos eram

26
ASSIS, Marcelo Ferreira de. A influência do tráfico de africanos sobre a taxa de mortalidade
escrava: os registros de óbitos de Saquarema-RJ, 1774-1819. In: BOTELHO, Tarcísio Radrigues (ET
al). História quantitativa e serial no Brasil. Belo Horizonte, 2001, pp. 91-114.
27
FARIA, Sheila de Castro. Família e morte entre escravos. In: XI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, 1998, Caxambu. Anais do XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu :
ABEP, 1998, p. 1283
28
FARIA, Op. Cit., p. 1277
29
FARIA, Op. Cit., p. 1281
as que mais morriam, independentemente se serem livres ou escravas, o que era
devido, principalmente, às freqüentes febres e epidemias.
A autora trata, no início do artigo, da importância de se datar e regionalizar
práticas e procedimentos, o que, segundo ela, não tem sido feito pela historiografia
que trata sobre o tema. Embora muitos estudos estejam sendo feitos acerca da
realidade do escravo brasileiro, da sua vida social, esses trabalhos geralmente têm
ficado restritos a certos centros.
É preciso que sejam feitos novos estudos, para dar conta da complexidade
do tema da escravidão no Brasil, para que não fiquemos restritos a dicotomias pré-
concebidas e extremistas e possamos ver o escravo enquanto sujeito, mesmo
quando agindo dentro dos parâmetros do sistema Isso não implica que esqueçamo-
nos de que a escravidão pressupunha, sempre, o uso de violência, ainda que
implícita, e que, por mais diversas que possam ter sido as formas de escravidão e as
vivências dos escravos, a liberdade era sempre um desejo do cativo. Não é, como
se pode perceber, assunto fácil, e é apenas com a multiplicação de trabalhos que
investiguem esse período da nossa história que poderemos caminhar para um
melhor entendimento do tema.
Nesse sentido, essa pesquisa se coloca como uma tentativa de contribuição
para a historiografia da escravidão. Não há, que sejam do meu conhecimento,
trabalhos acerca da mortalidade escrava em Pelotas, em qualquer período, quiçá
acerca da mortalidade infantil. Espero que, a partir deste trabalho, outros possam
ser feitos, e assim possa ser ampliado o conhecimento que temos acerca da
escravidão em Pelotas.
Capítulo II

A pesquisa que ora apresento insere-se no grupo dos estudos de história da


população. Tal classificação, no entanto, encerra uma série de significados distintos,
sendo utilizado para designar trabalhos muito diversos. É preciso, portanto, definir
melhor os termos.
A fim de realizar esse intento, me apoiarei no que foi dito por Sergio Odilon
Nadalin 30 sobre o tema. O historiador procura definir alguns conceitos, como os de
estudo de população, demografia histórica e história demográfica, de acordo com o
uso que se tem feito dos mesmos.
Assim, segundo ele, partindo-se da demografia, e sua preocupação com o
estudo dos fenômenos de população, sentiu-se a necessidade de adaptar os
procedimentos demográficos para o estudo de períodos nos quais não eram
produzidas fontes específicas para esse tipo de investigação, como os censos
atuais, por exemplo. Era preciso a utilização de uma metodologia própria para que
se pudesse trabalhar fontes que foram produzidas com outros intentos, que
possuíam características diversas, e que davam conta de parcelas muito distintas
das populações.
Surge então a demografia histórica, que não seria apenas uma demografia
que tem como objeto populações do passado, mais precisamente populações de um
passado pré ou protocensitário – ainda mais se considerarmos que toda demografia
é, num sentido, histórica, uma vez que diz respeito a uma população determinada
em um espaço e tempo determinados. A demografia histórica seria responsável
pelas necessárias adaptações metodológicas, e estaria mais voltada para questões
quantitativas. Por outro lado, a história demográfica seria aquela que, partindo das

30
NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas:
Associação Brasileira de EstudosPopulacionais-ABEP, 2004
mesmas adaptações metodológicas e trabalhando com as mesmas fontes, faria uma
abordagem qualitativa das mesmas.
Tal dicotomia foi criticada por muitos historiadores, por ser mais formal do
que prática, considerando que as supostas abordagens de ambas se mesclam no
trabalho do historiador.
Tem-se, então, a história das populações – conceito amplo que inclui a
demografia histórica e/ou a história demográfica, em diálogo estreito com outras
disciplinas, como a antropologia, a economia e a sociologia. Nadalin, a esse
respeito, propõem que “o interessado no grande tema das populações transita entre
as técnicas de análise em demografia (os estudos demográficos dominados pelas
técnicas quantitativas) e as virtualidades características dos estudos populacionais –
e das histórias das populações” 31.
Concordo com o que diz Nadalin, pois reconheço a importância do diálogo
entre as abordagens quantitativa e qualitativa, na busca de um maior entendimento
da dinâmica das sociedades. Além disso, também creio que as fronteiras entre um
abordagem e outra não são tão claras quanto podem, a uma primeira vista, parecer.
Este estudo, portanto, é de demografia histórica, no sentido de que busca
dados sobre a mortalidade e, tangencialmente, sobre a mortandade de crianças
escravas numa freguesia do sul do Brasil no início do século XIX. Mas também é de
história demográfica, no sentido de que essa busca de dados pretende contribuir
para o conhecimento que se tem sobre as condições de existência dessas mesmas
crianças. É, portanto, um estudo de história da população.
Voltemos, então aos problemas que originaram a demografia histórica e/ou a
história demográfica: como lidar com fontes que dificilmente foram produzidas para
atender às demandas dos historiadores. Tratarei, nesse ponto, especificamente dos
registros paroquiais.
A existência dos Registros Paroquiais é fruto da disposição da Igreja
Católica de efetuar um melhor controle de seus fiéis, que se traduz, principalmente,
através do Concílio de Trento, em uma série de normas a serem cumpridas por
párocos e fiéis. Entre essas normas estava a padronização dos registros dos
principais sacramentos católicos. No Brasil, as determinações do Concílio de Trento
foram adaptadas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Segundo

31
NADALIN, Op. Cit., p. 75.
tais ordenações, em cada paróquia deveriam existir livros, encadernados e
numerados, que dessem conta do registro dos sacramentos, dentre os quais os
principais eram os batismos, os casamentos e o assento dos óbitos.
Nas constituições também ficavam designado alguns parâmetros para a
feitura do registro em si. No entanto, notou-se uma disparidade muito grande no
conteúdo dos registros de acordo com a localidade, o período e, seguidamente,
mesmo com o pároco. Sheila de Castro Faria diz, a esse respeito, que
A falta de uniformidade permitiu constatar a autonomia dos
padres locais, refletindo a pequena influência das normas
eclesiásticas nas escriturações cotidianas desta comunidade.
Por outro lado, esta mesma falta de uniformidade permitiu que
se vislumbrasse com certa clareza costumes e práticas locais 32

Além da falta de uniformidade em si, existe o problema de os registros


eclesiásticos nem sempre abarcam a população uniformemente. Isso não diz
respeito apenas aos sub-registros. Existia uma série de clivagens. A primeira delas
diz respeito ao catolicismo em si. A sociedade colonial brasileira era oficialmente
católica. No entanto, nem todos os seus membros o eram. Infelizmente, não se
possuem muitos registros das demais variantes religiosas nesse período, mesmo
porque as mesmas sofriam perseguições. Nos interessa, no que diz respeito ao
âmbito dessa pesquisa, saber que as crenças religiosas influenciavam a importância
dada aos sacramentos, e portanto a produção de registros.
Se a importância social e espiritual de um sacramento como o batismo, por
exemplo, fazia com que ele fosse realizado numa parcela mais ampla da sociedade,
o mesmo não acontecia para casamentos e óbitos. Com relação aos casamentos, a
existência de uniões consensuais, verificada por muitos pesquisadores, é
representativa das limitações dos registros de casamento quando se pretende
pesquisar mais amplamente uma sociedade. Já no caso dos óbitos, o problema se
agrava, uma vez que o sepultamento de um falecido não ocorria necessariamente
dentro de um cemitério de uma paróquia, e de acordo com os preceitos cristãos – o
que fazia com que nem sempre fosse registrado. Ainda assim, é preciso tomar
cuidado para não supervalorizar a existência de sub-registros 33: muitas mortes

32
FARIA, Sheila de Castro. Família e Morte entre Escravos. In: XI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais da ABEP. 1998, Caxambu. Anais do XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais.
Caxambu : ABEP, 1998. p. 1275.
33
FARIA, Op. Cit., p. 1285.
ocorridas sem o devido sacramento foram posteriormente referidas nos livros de
registros de óbitos. 34.
Passemos, então, aos registros de óbitos de escravos referentes à
Freguesia de São Francisco de Paula. Temos, com esse tipo de assentamento,
livros que cobrem o período de 1812, ano da criação da freguesia, a 1887. O
período trabalhado, que vai de outubro de 1812 a dezembro1834 é abarcado pelo
primeiro livro de registro de óbitos de escravos (1812-1846). O livro está em bom
estado, contendo apenas algumas páginas com parte do conteúdo ilegível. Contém,
no entanto, uma lacuna que vai de fevereiro a dezembro de 1830. A ausência de
qualquer registro de óbito de escravos no período foi registrada pelo padre Visitador
que, em 24 de julho de 1832, escreveu o seguinte:
Vejo em visita. Não aparece neste livro acento algum lavrado
pelo Rdo Pad. Manoel Ant. de Azevedo no decurso de hum
anno e ainda mais; o [quanto] notável nesta fre digo não ter
falecido nesta freguesia escravo algum; da sorte que quando
sendo preciso alguma certidão á algum fregues de óbito de
algum escravo então falecido, não se lhe poderá dar pela
[ilegível] do livro do dito Rdo Pad. Abade Manoel Ant. de
Azevedo. Cumpre por tanto a [ilegível] desta visita no livro dos
óbitos das pessoas livres as folhas cento e quarenta e nove,
visto. Villa de S. Franco de Paula de Pelotas 24 de Julho de
1832. [assinatura ilegível]” 35

Como se pode perceber, o conteúdo dos registros variava, de acordo com o


período, o pároco, ou mesmo as informações concedidas, já que muitos assentos
fazem referência a sepultamentos realizados em outros locais. Essa imprecisão,
existente desde o momento da criação das fontes, leva a uma imprecisão dos
dados, provenientes das mesmas, que infelizmente não pode ser superada, pelo
menos não no âmbito dessa pesquisa.
Nos registros que menos informações trazem constam o nome do falecido, a
data do registro, o nome do dono e o local de sepultamento. A maioria dos registros
informa também a idade, a nação do escravo (forma de classificação utilizada para
identificar os escravos, que geralmente fazia referência ao suposto local de origem,
mas nem sempre), se era casado, solteiro ou viúvo, e a causa da morte. Talvez os
registros mais completos sejam aqueles que dizem respeito aos inocentes crioulos,

34
Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).
Diocese de Pelotas.
35
Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).
Diocese de Pelotas. p. 146
já que informavam, geralmente, mas nem sempre, também o nome da mãe e,
quando se tratava de filhos legítimos, o nome do pai. O mesmo não se dava com os
inocentes africanos, que eram poucos e cujos registro poucas informações traziam.
O termo inocente era utilizado pela própria igreja para designar as pessoas
que já receberam o batismo mas que ainda não fizeram a crisma, sacramento
através do qual o fiel torna-se responsável por sua vida espiritual. A idade
recomendada para a crisma é de sete anos. Optei pela utilização desse termo como
um modo de designar as crianças que são objeto da pesquisa, sem no entanto,
procurar definir o que seria infância por ser tal conceito de infância extremamente
variável. Definir o que era entendido por infância pelos habitantes de São Francisco
de Paula no início do século XIX – se é que tal idéia existia, principalmente em se
tratando de escravos – seria bastante complicado, e fugiria aos propósitos dessa
pesquisa.
Utilizo, então, o termo inocente para designar o conjunto da população que é
foco dessa pesquisa, por ser um ele largamente utilizado, pelas pessoas que
produziram os registros, para designar esse mesmo grupo. Devo ressaltar,
entretanto, que designo assim crianças de zero a oito anos de idade, e não sete,
como seria de se esperar, já que as últimas também eram assim designadas pelos
párocos.

1. As idades dos óbitos


Nem todos os registros informavam a idade. Alguns possuíam apenas a
designação “inocente”. Nesse caso, incluí o registro no total de inocentes, embora
não o possa alocar em nenhuma faixa etária. Incluí também os casos em que se
utilizava a designação crioulinho ou pardinho para identificar o falecido, por
considerar que se tratava de pessoas da mesma faixa etária. Temos, portanto, de
um total de 1439 registros no período, 377 inocentes (26,2%). As idades desses
inocentes são apresentadas no Quadro 1.
QUADRO 1
Idade dos Óbitos de Inocentes Escravos
Freguesia de São Francisco de Paula
1812-1834
Idade Número Porcentagem
de 0 a 1 ano 204 54,1
de 1 (13 meses) a 2 anos 75 19,9
de 2 (25 meses) a 5 52 13,8
de 5 a 8 24 6,4
Não consta a idade, ou estava
22 5,8
ilegível
Total 377
Fonte: Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).

É preciso lembrar que as idades que aparecem nos registros são,


provavelmente, aproximadas. Chega-se a essa conclusão tanto em função da
quantidade de idades semelhante, aparentando um arredondamento das mesmas,
quanto pela própria existência de registros que explicitam essa imprecisão: menos
de um ano, pouco mais de dois anos, mais ou menos seis anos, são alguns
exemplos.
Percebe-se que os inocentes de até 1 ano são os que mais morrem,
seguidos por aqueles de até 2 anos. Parecem ser, portanto, as crianças pequenas
as mais vulneráveis, principalmente em se tratando de mortes causadas por
doenças contagiosas.

2. As causas das mortes


Assim como as idades, as causas das mortes muitas vezes são imprecisas,
alem do fato de muitas vezes simplesmente não serem apresentadas. Além disso, o
que foi designado como causa da morte, muitas vezes eram sintomas,
manifestações, ou condições em que ocorreram as mortes. Causas como febre,
diarréia, e feridas, representam mais os sintomas ou a exteriorização de uma
doença do que a causa da morte em si. Outras como moléstia interna ou inflamação,
podem dizer respeito, em realidade, a doenças muito diferentes que foram
entendidas enquanto um mesmo tipo de mal. Com relação às causas das mortes,
temos, então, os dados apresentados no Quadro 2.
QUADRO 2
Causa da Morte de Inocentes Escravos
Freguesia de São Francisco de Paula
1812-1834
(continua)
Causa da Morte Número Porcentagem
Bexigas 24 6,4
Camaras de Sangue 11 2,9
Constipação 5 1,3
Diarréia 7 1,9
Disenteria 2 0,5
Doença do peito 3 0,8
Dois dias depois de nascido perigosamente 1 0,3
Espasmo 17 4,5
Febre 77 20,4
Febre podre 1 0,3
Feridas 4 1,1
Feridas na boca 1 0,3
Fome 1 0,3
Gangrena 1 0,3
Gastro-entestis 1 0,3
Hidropisia 3 0,8
Impurgens 1 0,3
Indigestão 2 0,5
Inflamação 1 0,3
Inflamação interna 3 0,8
Logo depois de nascido 6 1,6
Lombrigas 6 1,6
Mal de Sete Dias 17 4,5
Maligna 2 0,5
Moléstia da pele 1 0,3
Moléstia do peito 12 3,2
Moléstia interna 51 13,5
Morreu ethica 1 0,3
Prematura 1 0,3
Queimadura 1 0,3
Repentinamente 2 0,5
Reumatismo 1 0,3
Sarampo 36 9,5
Sarna 2 0,5
Subitamente 5 1,3
Tétano 1 0,3
Tísica 2 0,5
Torpe 9 2,4
Tosse 2 0,5
Vício de conformação 1 0,3
Não consta 37 9,8
Ilegível 15 3,4
Total 377 100%
Fonte: Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).

Percebe-se a recorrência de mortes com uma causa em comum em


períodos determinados. É o caso do sarampo em 1829 (27 dos 36 casos da doença
ocorreram nesse ano), ou bexigas, em 1834 (9 dos 24 casos).

3. Nem lá nem cá – o caso das pessoas com mais de 8 e menos de 14 anos de


idade
Ainda que o foco desse trabalho sejam os inocentes, constatei a existência
de uma faixa etária que não era alocada nem no âmbito dos inocentes, nem naquele
dos adultos. As pessoas com até 8 anos de idade eram designadas inocentes. As
pessoas com 14 anos ou mais eram registradas como solteiras, casadas ou viúvas.
No entanto, aquelas pessoas que tinham entre 9 e 13 anos, não possuíam nem um
tipo de designação, nem o outro. Isso leva a crer em uma certa indefinição com
relação à posição ocupada por essas pessoas, e salienta a dificuldade de se definir
infância.
Com relação às causas das mortes nesse grupo, não havia muita diferença
com relação ao grupo dos inocentes - morriam de febre, hidropisia, moléstia interna,
bexigas, constipação, inflamação interna ou subitamente - mas incluem-se as
causas pisado por um cavalo, achado morto no campo, pisado de uma carreta e
raio.
Outra diferença encontrada nos registros de óbitos de pessoas dessa faixa
etária é a quantidade de africanos. Se, dos 377 óbitos de inocentes encontrados,
apenas 3 foram designados como africanos 36, no caso dessa faixa etária
intermediária, dos 24 casos encontrados, 9 eram de africanos.

36
Antonio Congo, 8 anos; Francisco Benguela, 4 anos; Manoel Rebolo, 4 anos. Fonte: Primeiro livro
de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846). Diocese de Pelotas.
Considerações Finais

A pesquisa de cunho demográfico que tem como fontes principais registros


tais como os eclesiásticos, envolve uma série de dificuldades e limitações. As
dificuldades começam na disponibilidade das fontes, sua conservação, o
entendimento que temos das mesmas. Depois, vêm os problemas metodológicos:
como tratá-las, qual a “confiança” que se pode ter em seu conteúdo, como superar
os limites que possuem, o que entender por cada termo encontrado, qual o
significado das mesmas para quem as produziu.
Tudo isso torna a pesquisa mais complicada, mas também mais
interessante. Existem muitas possibilidades de novas pesquisas, com novos
questionamentos, que um tratamento sistemático dessas fontes pode permitir.
Essa pesquisa se configurou mais como um exercício do que como um
trabalho acabado. Espera-se, no entanto que tenha cumprido seu papel como
contribuição à historiografia em geral, e à historiografia da escravidão em particular.
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