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Pelotas, 2009
Banca Examinadora:
Introdução...................................................................................................................6
Capítulo I.....................................................................................................................8
Capítulo II..................................................................................................................18
Considerações Finais................................................................................................26
Referências...............................................................................................................27
Introdução
Pelotas foi por muito tempo considerada um grande centro cultural do Rio
Grande do Sul. Tal efervescência cultural foi permitida pelo desenvolvimento
econômico que teve a região, através da produção do charque e de outros produtos
extraídos do gado, como couros, sebos, etc., além do comércio que se desenvolvia
em localidades de grande desenvolvimento econômico. No entanto, é importante
perceber o meio através do qual gerou-se a riqueza que serviu de base a essa
sociedade de opulência: o trabalho escravo como principal relação de trabalho.
A utilização de mão-de-obra escrava precede, inclusive, a formação das
charqueadas pelotenses. Há muitos indícios da presença de escravos entre os
povoadores da vila de Rio Grande 1 – que englobava os territórios onde mais tarde
vão se formar, respectivamente, a Freguesia São Francisco de Paula, a vila São
Francisco de Paula e a Cidade de Pelotas.
A vila de Rio Grande de formou-se em torno do forte de Jesus Maria José,
fundado em 1737. Desde então tem-se notícias do povoamento “extra-oficial” da
região de Pelotas 2, principalmente por, lagunenses cariocas, lusos da península e,
em seguida, alguns casais açorianos. Tudo isso se deu sem os ordenamentos
legais. Oficialmente, se conhece a doação, em 1758, de uma sesmaria a Tomás Luis
Osório 3. É provável que o sesmeiro não tenha conhecido suas terras, e é a partir da
1
HAMEISTER, Martha Daisson. Para dar Calor à Nova Povoação: estratégias sociais e familares na
formação da Vila do Rio Grande através dos Registros Batismais (c.1738-c.1763), 2006, Tese.
(Doutorado em História Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro; MAESTRI,
Mário. O Escravo no Rio Grande do Sul Trabalho Resistência Sociedade. 3.ed. Porto Alegre: Editora
da UFRGS, 2006; QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande:
FURG, 1987.
2
“Afora achados arqueológicos, raros, sobre populações indígenas, a mais velha informação que se
tem sobre o atual município de Pelotas dá notícia da presença, nos seus limites, de um integrante
daquela remota expedição de João de Magalhães (1725): Luiz Gonçalves Viana”. MAGALHÃES,
Mario Osorio. Opulência e Cultura na Província de São Pedro do Rio Grande do Sul: um estudo sobre
a história de Pelotas (1860-1890). Pelotas: Editora da UFPel/Livraria Mundial, 1993.
3
A sesmaria em questão incluiria um vasto território que ficava “à margem esquerda do arroio
Pelotas, abrangendo, entre outras extensões, os balneários do Laranjal e a Colônia Z-3”
MAGALHÃES, Op. Cit.
venda da sesmaria, realizada por sua viúva, que vai dar-se a origem das primeiras
grandes estâncias.
O povoamento do território onde hoje se encontra Pelotas intensifica-se com
a tomada de Colônia do Sacramento e de Rio Grande pelos castelhanos, já que boa
parte da população das duas vilas portuguesas foge e se espalha pelo território
sulino. Com o fim da dominação espanhola em Rio Grande 1776, e com o tratado de
Santo Ildefonso (1777), no qual definem-se algumas questões de fronteira entre os
países Ibéricos (a disputa permanecerá, porém em outros locais da província), o
povoamento da região se intensifica, ainda que sua ocupação mais significativa se
dê no início do século XIX.
A partir da divisão e venda de sesmarias, da ocupação do território por
casais açorianos, e por descendentes de trasmontanos e minhotos, originários
principalmente de Colônia do Sacramento 4, e da compra de terras por homens
provenientes de outras localidade, vão ser criadas estâncias que se ocuparão,
principalmente, da criação de gado, da agricultura de subsistência, e do plantio do
trigo, todas essa ocupações utilizando mão-de-obra escrava 5. Parte dessas
estâncias vão, aos poucos, sendo repartidas em terrenos menores e vendidas, e
neles sendo instaladas as charqueadas.
José Pinto Martins foi, provavelmente, o primeiro a estabelecer uma
empresa charqueadora em Pelotas. Por empresa charqueadora, me refiro à
produção de charque em larga escala, considerando que a fabricação de carnes não
era assunto desconhecido, nem era tão somente utilizada no âmbito doméstico de
quem produzia 6. Retirante de uma grande seca no Ceará, em 1777, José Pinto
4
MAGALHÃES, Op. Cit.
5
BAKOS, Margaret Marchiori. RS: Escravismo e abolição. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1982;
GUTIERRES, Ester J. B. Negros, Charqueadas e Olarias: um estudo sobre o espaço pelotense.
Pelotas: Editora Universitária/UFPel; Livraria Mundial, 1993; CARDOSO, Fernando H. Capitalismo e
Escravidão no Brasil Meridional: O Negro na Sociedade Escravocrata do Rio Grande do Sul. São
Paulo: DIFEL, 1962.
6
Ainda que se tenha José Pinto Martins como um dos responsáveis pelo início da fabricação de
charque em larga escala, é preciso ressaltar, no entanto, que a produção que se estabeleceu às
margens do arroio Pelotas era muito distinta da produção de carne de sol ou carne seca que se fazia
no nordeste. Essas últimas são peças inteiras de carne desidratada, enquanto o charque se constitui
de finas mantas de carne postas pra secar, e que utilizam muito mais sal. Crê-se que a tecnologia do
charque tem origem andina, onde era muito utilizada pelos indígenas para a feitura de alimentos
desidratados: “Parte de la carne era convertida en charqui, que se conservaba bien en las
condiciones andinas. (...) Los guanacos machos se cazaban para charqui, que era almacenando en
los depositos estatales “para alimentar al ejército [do Inca]. (...) Junto con otros productos del la puna,
los colla cambiaban el charqui por maíz, frutas y coca con sus parientes trasladados a las yungas”;
“CHARQUI: (Q.Ch’arki) carne u otro tejido animal, alternativamente helada y asoleada; hecha
Martins instala-se, pouco tempo depois, na margem direita do arroio Pelotas. A
localização se dá em função da possibilidade de escoar a produção por via fluvial e
de, ao mesmo tempo, ficar distante o suficiente dos ventos e da areia de Rio
Grande. Aos poucos, outras charqueadas foram surgindo. Acredita-se que tenham
existido, simultaneamente, um mínimo de 18 e um máximo de 40 charqueadas no
período anterior a 1835 7.
Com o desenvolvimento das charqueadas desenvolve-se também a região,
de forma que os moradores solicitam a criação de um Freguesia, que é criada em
1812, sob o nome de São Francisco de Paula. Os registros existentes hoje na
Diocese de Pelotas têm, portanto, aí seu marco inicial. A Freguesia recebeu o
estatuto de Vila em 1832, e em 1837 a Vila de São Francisco de Paula é elevada à
condição de cidade, dessa vez com o nome que era-lhe usual: Pelotas.
As charqueadas, produzindo em grande quantidade e para exportação,
necessitavam, de uma grande quantidade de “braços” para a realização de suas
atividades. Por esse motivo a escravidão em Pelotas, mais precisamente a
escravidão nas charqueadas pelotenses, foi tida como o fator responsável pelo
desenvolvimento de um sistema escravista propriamente dito no Rio Grande do Sul.
Essa idéia foi veiculada principalmente por Fernando Henrique Cardoso 8. O autor
considera a existência de trabalho escravo no Rio Grande do Sul desde os primeiros
tempos de colonização, porém não o toma como representativo de um sistema
escravista, sendo a utilização do trabalhador cativo apenas esporádica. Seria
apenas a vinculação a um mercado externo o fator capaz de gerar a necessidade da
mão-de-obra escrava. Isso teria se dado, primeiramente, com a produção do trigo,
entre o final do século XVIII e os primeiros anos do século XIX. Como, porém, a
produção trigueira não prospera, em função de problemas como a ferrugem, é
apenas com a produção do charque, segundo esse autor, que a escravidão vai se
estabelecer plenamente no Rio Grande do Sul.
O trabalho de Cardoso foi importante por se contrapor à idéia de uma
escravidão mais branda no Rio Grande do Sul do que em outras localidades do país,
e também por dar a devida importância, em termos demográficos, à presença negra
no estado - já que a maioria dos trabalhos anteriores referentes à história do Rio
conserva” (no Glosario). In: MURRA, John. La Organización Económica del Estado Inca. México:
Siglo XXI, 1978. p. 25 e 88-89
7
MAGALHÃES, Op. Cit.
8
CARDOSO, Op. Cit.
grande do Sul consideravam a parcela escrava da população muito pequena se
comparada àquela das populações livre branca e indígena. No entanto Cardoso não
diferencia-se muito dessa produção no que se refere ao peso do trabalho escravo
nas demais unidades produtivas gaúchas, já que o mesmo seria apenas
circunstancial, como foi referido 9. Além disso a idéia passada pelo trabalho de
Cardoso, com relação às atividades econômicas no Rio Grande, principalmente o
tropeirismo, era a de que as oportunidades estavam disponíveis da mesma maneira
para todos que aqui se aventuravam. No entanto, pesquisas mais recentes 10, vêm
salientando as maiores facilidades em se estabelecer encontradas por aqueles que
já possuíssem algum cabedal, seja ele financeiro, de relações ou de prestígio.
Não é o objetivo deste trabalho discutir o caráter do escravismo gaúcho.
Devo ressaltar, porém, que, embora a região charqueadora tenha configurado
provavelmente o principal pólo escravista no Rio Grande do Sul, não se deve
subestimar a presença cativa em outras regiões, e em outras atividades. Presença
essa que aparece inclusive na região charqueadora, empregada em outras
atividades 11, e que portanto faz parte do corpo social que deu origem aos registros
com os quais trabalho.
A historiografia acerca da escravidão em Pelotas é bastante significativa,
embora a maioria dos trabalhos possuam abordagens bastante próximas. São
trabalhadas principalmente questões como a violência sofrida pelo cativo, e as
formas de resistência do mesmo 12. Muito rapidamente se trata das condições de
vida da escravaria, e menores ainda são as referências a questões como família
escrava e reprodução dos escravos.
Entre a produção existente temos a de Maestri que, assim como Cardoso,
considera que é com a produção do charque, a partir das duas últimas décadas
século XVIII, que “pela primeira vez se estruturará no Sul um modo de produção
9
XAVIER, Regina Célia Lima et al. História da Escravidão no Brasil Meridional: guia bibliográfico.
Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2007, p. 30.
10
GIL, Tiago Luís: Coisas do caminho: Tropeiros e seus negócios do Viamão à Sorocaba (1780-
1810). Tese. 2009. (Doutorado em História Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro; OSORIO, Helen. Estancieiros, Lavradores e Comerciantes na constituição da estremadua
portuguesa na América: Rio Grande de São Pedro, 1737-1822.: Tese. 1999. (Doutorado em História
Social)- Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro.
11
GUTIERRES, Op. Cit.; FARINATTI, Luis Augusto. Confins Meridionais: famílias de elite e sociedade
agrária na Fronteira Sul do Brasil (1825-1865). 2007.
12
CARDOSO, Op. Cit.; MAESTRI, Op. Cit.; BAKOS, Op. Cit.; ASSUNPÇÃO, J. E. O Negro nas
Charqueadas Pelotenses. In: TRIUMPHO, Vera (org.). Rio Grande do Sul: Aspectos da Negritude.
Porto Alegre: Martins Livreiro Editor, 1991.; AL-ALAM, C. C. A negra forca da princesa: polícia, pena
de morte e correção em Pelotas (1830-1857). Pelotas: Edição do Autor; Sebo Icária, 2008.
efetivamente escravista” 13. E, assim como Cardoso, traz a idéia do escravo
“coisificado” 14, alienado de sua humanidade a não ser quando se rebelava. Seu
texto trata, então, das tarefas em que os escravos eram empregados, da violência a
que eram submetidos, e das formas de resistência que utilizavam.
No mesmo sentido discorre Assunpção, num texto que trata de forma geral
da escravidão do negro nas charqueadas pelotenses. Acerca do tratamento dado ao
cativo, afirma que:
A vida dos escravos nas charqueadas era dura, pois as
mesmas tinham seu período produtivo de novembro a maio.
Nestes meses os senhores tiravam do escravo o maior
rendimento que estes poderiam dar, ocasionando jornadas
extremamente longas de trabalho. Nas antigas charqueadas a
matança era feita durante a noite 15
13
MAESTRI, Op. Cit., p. 74.
14
“O escravo, como ‘coisa’ produtiva, tem que se ocupar das atividades que lhe são votadas;
entregar a totalidade (ao menos formalmente) dos frutos do seu trabalho; viver com o que seu senhor
julgue bom lhe entregar [...] O escravismo exigia, efetivamente, que o escravo se transformasse em
uma máquina, que alienasse ao máximo sua humanidade”. MAESTRI, Op. Cit., p. 112-113.
15
ASSUMPÇÃO. Op. Cit., p. 120
trabalhava diretamente no processo de produção do charque,
deveria ocupar algum galpão junto aos outros, destinados às
diversas tarefas da elaboração da carne salgada, conforme
indicado no inventário de Francisco Medina, proprietário do
saladeiro Colla, na Banda Oriental do Uruguai. 16
16
GUTIERRES. Op. Cit., p. 85.
17
GORENDER, Jacob. O Escravismo Colonial. São Paulo: Ática, 1992 (1978), p. 321-322
18
MAESTRI. Op. Cit., p. 112
19
MAESTRI, Op. Cit. P. 113
de diversos escravos que, no primeiro quartel do século XIX, pregava o fim da
escravidão por considerá-la anti-econômica - no que concerne à família escrava:
O senhor não quer que o escravo case porque o incomoda com
isso e acontece também não ter fundos para comprar-lhe
mulher, ao mesmo tempo que é inconciliável casá-lo fora de
casa. Os senhores de grandes fazendas, como lhes é fácil
obter escravos robustos por pouco dinheiro, não tratam da
tardia procriação, que não vale, segundo frase de muitos, a
pena cuidar de crianças; e se chegam a consentir alguns
casais, não prestam as ditas crianças os necessários socorros,
pelos que morrem à míngua. 20
20
CHAVES, Gonçalves apud ASSUNPÇÃO. Op. Cit., p. 123.
21
“parece ter havido um desinteresse por parte dos proprietários de escravos em relação à
procriação dos cativos e, sobretudo, ao que se referia à mortalidade infantil. A percepção de que os
cuidados com gestantes e depois com os recém-nascidos implicariam em um investimento maior
explica, assim, a opção de certos senhores por adquirir no mercado ‘escravos novos’ para o aumento
do seu plantel” GERTZE, J. M. Notas para o estudo da mortalidade infantil entre a população escrava
no Rio Grande do Sul. In: I Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra no Rio Grande do Sul, 1990,
Porto Alegre. Anais do I Simpósio Gaúcho sobre a Escravidão Negra no Rio Grande do Sul. Porto
Alegre : Editora da PUC/RS, 1990. v. Único, p. 139.
22
GERTZE, Op. Cit., p. 138.
Sul. Por ora, considera-se mais prudente mencionar esta
questão hipoteticamente 23
A partir disso, toda uma nova produção tem sido gerada, a partir de fontes
documentais, que trata das questões da família escrava, nascimentos e mortes de
crianças. Vão Alguns desses trabalhos relacionam mortalidade e tráfico, mortalidade
e família, família e tráfico, ou ainda os três elementos em conjunto.
Nesse sentido, Assis traz dados diferenciais em sua análise da mortalidade
escrava em Saquarema no período de 1774 a 1819. O primeiro deles é a relação
23
GERTZE, Op. Cit., p. 157.
24
FRAGOSO & FLORENTINO, Marcelino, filho de Inocência crioula, Neto de Joana Cabinda: Um
Estudo Sobre Famílias Escravas em Paraíba do Sul (1835-1872). In: Revista Estudos Econômicos
1987, p. 161.
25
FRAGOSO & FLORENTINO, Op. Cit. p. 160-161
entre tráfico de africanos e mortalidade: devido ao choque microbiano a entrada de
novas levas de cativos levava sempre a um aumento na mortalidade geral. Isso valia
também, e talvez mais fortemente, inclusive, para a mortalidade infantil,
considerando que mais da metade dos crioulos que foram enterrados em
Saquarema eram crianças 26.
Essa relação entre mortalidade e tráfico também é estudada por Sheila de
Castro Faria, que trabalha com os registros de óbitos de algumas freguesias do
sudeste nos séculos XVIII e XIX:
Indiscutivelmente, eram crianças abaixo dos 10 anos as que
mais morriam, livres ou escravas. Os dados proporcionais são
ainda mais alarmantes, se levarmos em conta a grande entrada
de pessoas adultas na região, fossem escravos, através do
tráfico, fossem livres, através da migração espontânea. As
terríveis “febres” impediam efetivamente que pelo menos
metade dos que nasciam chegassem aos 10 anos de idade 27
Faria argumenta, porém, que esses dados não devem indicar uma melhor
condição de vida das crianças escravas, pois são fruto apenas do “padrão
demográfico do tráfico africano, que introduzia mais adultos e homens do que
mulheres e crianças”. 29 Ela afirma, ainda, que as crianças abaixo de 10 anos eram
26
ASSIS, Marcelo Ferreira de. A influência do tráfico de africanos sobre a taxa de mortalidade
escrava: os registros de óbitos de Saquarema-RJ, 1774-1819. In: BOTELHO, Tarcísio Radrigues (ET
al). História quantitativa e serial no Brasil. Belo Horizonte, 2001, pp. 91-114.
27
FARIA, Sheila de Castro. Família e morte entre escravos. In: XI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais, 1998, Caxambu. Anais do XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais. Caxambu :
ABEP, 1998, p. 1283
28
FARIA, Op. Cit., p. 1277
29
FARIA, Op. Cit., p. 1281
as que mais morriam, independentemente se serem livres ou escravas, o que era
devido, principalmente, às freqüentes febres e epidemias.
A autora trata, no início do artigo, da importância de se datar e regionalizar
práticas e procedimentos, o que, segundo ela, não tem sido feito pela historiografia
que trata sobre o tema. Embora muitos estudos estejam sendo feitos acerca da
realidade do escravo brasileiro, da sua vida social, esses trabalhos geralmente têm
ficado restritos a certos centros.
É preciso que sejam feitos novos estudos, para dar conta da complexidade
do tema da escravidão no Brasil, para que não fiquemos restritos a dicotomias pré-
concebidas e extremistas e possamos ver o escravo enquanto sujeito, mesmo
quando agindo dentro dos parâmetros do sistema Isso não implica que esqueçamo-
nos de que a escravidão pressupunha, sempre, o uso de violência, ainda que
implícita, e que, por mais diversas que possam ter sido as formas de escravidão e as
vivências dos escravos, a liberdade era sempre um desejo do cativo. Não é, como
se pode perceber, assunto fácil, e é apenas com a multiplicação de trabalhos que
investiguem esse período da nossa história que poderemos caminhar para um
melhor entendimento do tema.
Nesse sentido, essa pesquisa se coloca como uma tentativa de contribuição
para a historiografia da escravidão. Não há, que sejam do meu conhecimento,
trabalhos acerca da mortalidade escrava em Pelotas, em qualquer período, quiçá
acerca da mortalidade infantil. Espero que, a partir deste trabalho, outros possam
ser feitos, e assim possa ser ampliado o conhecimento que temos acerca da
escravidão em Pelotas.
Capítulo II
30
NADALIN, Sergio Odilon. História e demografia: elementos para um diálogo. Campinas:
Associação Brasileira de EstudosPopulacionais-ABEP, 2004
mesmas adaptações metodológicas e trabalhando com as mesmas fontes, faria uma
abordagem qualitativa das mesmas.
Tal dicotomia foi criticada por muitos historiadores, por ser mais formal do
que prática, considerando que as supostas abordagens de ambas se mesclam no
trabalho do historiador.
Tem-se, então, a história das populações – conceito amplo que inclui a
demografia histórica e/ou a história demográfica, em diálogo estreito com outras
disciplinas, como a antropologia, a economia e a sociologia. Nadalin, a esse
respeito, propõem que “o interessado no grande tema das populações transita entre
as técnicas de análise em demografia (os estudos demográficos dominados pelas
técnicas quantitativas) e as virtualidades características dos estudos populacionais –
e das histórias das populações” 31.
Concordo com o que diz Nadalin, pois reconheço a importância do diálogo
entre as abordagens quantitativa e qualitativa, na busca de um maior entendimento
da dinâmica das sociedades. Além disso, também creio que as fronteiras entre um
abordagem e outra não são tão claras quanto podem, a uma primeira vista, parecer.
Este estudo, portanto, é de demografia histórica, no sentido de que busca
dados sobre a mortalidade e, tangencialmente, sobre a mortandade de crianças
escravas numa freguesia do sul do Brasil no início do século XIX. Mas também é de
história demográfica, no sentido de que essa busca de dados pretende contribuir
para o conhecimento que se tem sobre as condições de existência dessas mesmas
crianças. É, portanto, um estudo de história da população.
Voltemos, então aos problemas que originaram a demografia histórica e/ou a
história demográfica: como lidar com fontes que dificilmente foram produzidas para
atender às demandas dos historiadores. Tratarei, nesse ponto, especificamente dos
registros paroquiais.
A existência dos Registros Paroquiais é fruto da disposição da Igreja
Católica de efetuar um melhor controle de seus fiéis, que se traduz, principalmente,
através do Concílio de Trento, em uma série de normas a serem cumpridas por
párocos e fiéis. Entre essas normas estava a padronização dos registros dos
principais sacramentos católicos. No Brasil, as determinações do Concílio de Trento
foram adaptadas pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia. Segundo
31
NADALIN, Op. Cit., p. 75.
tais ordenações, em cada paróquia deveriam existir livros, encadernados e
numerados, que dessem conta do registro dos sacramentos, dentre os quais os
principais eram os batismos, os casamentos e o assento dos óbitos.
Nas constituições também ficavam designado alguns parâmetros para a
feitura do registro em si. No entanto, notou-se uma disparidade muito grande no
conteúdo dos registros de acordo com a localidade, o período e, seguidamente,
mesmo com o pároco. Sheila de Castro Faria diz, a esse respeito, que
A falta de uniformidade permitiu constatar a autonomia dos
padres locais, refletindo a pequena influência das normas
eclesiásticas nas escriturações cotidianas desta comunidade.
Por outro lado, esta mesma falta de uniformidade permitiu que
se vislumbrasse com certa clareza costumes e práticas locais 32
32
FARIA, Sheila de Castro. Família e Morte entre Escravos. In: XI Encontro Nacional de Estudos
Populacionais da ABEP. 1998, Caxambu. Anais do XI Encontro Nacional de Estudos Populacionais.
Caxambu : ABEP, 1998. p. 1275.
33
FARIA, Op. Cit., p. 1285.
ocorridas sem o devido sacramento foram posteriormente referidas nos livros de
registros de óbitos. 34.
Passemos, então, aos registros de óbitos de escravos referentes à
Freguesia de São Francisco de Paula. Temos, com esse tipo de assentamento,
livros que cobrem o período de 1812, ano da criação da freguesia, a 1887. O
período trabalhado, que vai de outubro de 1812 a dezembro1834 é abarcado pelo
primeiro livro de registro de óbitos de escravos (1812-1846). O livro está em bom
estado, contendo apenas algumas páginas com parte do conteúdo ilegível. Contém,
no entanto, uma lacuna que vai de fevereiro a dezembro de 1830. A ausência de
qualquer registro de óbito de escravos no período foi registrada pelo padre Visitador
que, em 24 de julho de 1832, escreveu o seguinte:
Vejo em visita. Não aparece neste livro acento algum lavrado
pelo Rdo Pad. Manoel Ant. de Azevedo no decurso de hum
anno e ainda mais; o [quanto] notável nesta fre digo não ter
falecido nesta freguesia escravo algum; da sorte que quando
sendo preciso alguma certidão á algum fregues de óbito de
algum escravo então falecido, não se lhe poderá dar pela
[ilegível] do livro do dito Rdo Pad. Abade Manoel Ant. de
Azevedo. Cumpre por tanto a [ilegível] desta visita no livro dos
óbitos das pessoas livres as folhas cento e quarenta e nove,
visto. Villa de S. Franco de Paula de Pelotas 24 de Julho de
1832. [assinatura ilegível]” 35
34
Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).
Diocese de Pelotas.
35
Primeiro livro de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846).
Diocese de Pelotas. p. 146
já que informavam, geralmente, mas nem sempre, também o nome da mãe e,
quando se tratava de filhos legítimos, o nome do pai. O mesmo não se dava com os
inocentes africanos, que eram poucos e cujos registro poucas informações traziam.
O termo inocente era utilizado pela própria igreja para designar as pessoas
que já receberam o batismo mas que ainda não fizeram a crisma, sacramento
através do qual o fiel torna-se responsável por sua vida espiritual. A idade
recomendada para a crisma é de sete anos. Optei pela utilização desse termo como
um modo de designar as crianças que são objeto da pesquisa, sem no entanto,
procurar definir o que seria infância por ser tal conceito de infância extremamente
variável. Definir o que era entendido por infância pelos habitantes de São Francisco
de Paula no início do século XIX – se é que tal idéia existia, principalmente em se
tratando de escravos – seria bastante complicado, e fugiria aos propósitos dessa
pesquisa.
Utilizo, então, o termo inocente para designar o conjunto da população que é
foco dessa pesquisa, por ser um ele largamente utilizado, pelas pessoas que
produziram os registros, para designar esse mesmo grupo. Devo ressaltar,
entretanto, que designo assim crianças de zero a oito anos de idade, e não sete,
como seria de se esperar, já que as últimas também eram assim designadas pelos
párocos.
36
Antonio Congo, 8 anos; Francisco Benguela, 4 anos; Manoel Rebolo, 4 anos. Fonte: Primeiro livro
de Óbitos de Escravos da Freguesia de São Francisco de Paula (1812-1846). Diocese de Pelotas.
Considerações Finais